todorov, tzvetan - simbolismo e interpretação - parte ii

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86 Sorensen (B.A.), Symbol und Symbolismus in der iisthetischen Theo- rien des 18. lhds und der deutschen Romantik, Oopenhaga, 1963 (um período particularmente fecundo: pré-romantismo e roman- tismo alemães). Szondi (P.), Einführung in die literarische Hermeneutik, Francfort, 1975 (história da passagem do hermenêutico religioso para o hermenêutico literário, no século XVIII e no século XIX, na Alemanha). Todorov (T.), Teorias do Simbolo, Lisboa, 1979 (algumas teorias particularmente importantes, a de Santo Agostinho, a retórica dássica, os românticos alemães, Freud). 2. Alguns estudos teóricos Boo,th (W.), A Rhetoric of Irony, Chicago, 1974. Dubois (J.) e aI., Rhétorique générale, Paris, 1970. Ducrot (O.), Dire et ne pas dire, Paris, 1972. Empson (W.), The Structure of Complex Wordso Londres, 1950 (tra- dução parcial em francês: «Les assertions dans les mots», Poétique, 6, 1971, pp. 239-270). Grice (P.), «Logic and Conversatio11», in P. Cole e J. L. Morgan (eds.), Syntax and Semantics, vol. III, Speech Acts, Nova Iorque, 1975, pp. 41-58. Henle (P.), «Metaphot», in P. Henle (ed.), Language, Thought and Culture, Ann Arbor, 1958, pp. 173-195. Hirsch (E.Do), Validity in Interpretation, New Haven, 1967. Kerbrat-Orecchioni (C.), La Connotation, Lião, 1977. Piaget (To), La Formation du symbole chez l'enfant, Paris-Neuchatel, 1945. Schleiermaoher (F.), Hermeneutik, Heidelberga, 1959. Sperber (D.), Le Symbolisme en général, Paris, 1974. Strawson (P.H.), «Phrase et acte de parole», Langages, 17, 1970, pp. 19-33. Todorov (T.), «Le sens des sons», Poétique, 11, 1972, pp. 446-462. 2. AS ESTRATÉGIAS DA INTERPRETAÇÃO A arte da interpretação pode ser verda- deiramente focalizada em obras semióticas. Friedrich Schlegel

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Page 1: TODOROV, Tzvetan - Simbolismo e Interpretação - Parte II

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Sorensen (B.A.), Symbol und Symbolismus in der iisthetischen Theo­rien des 18. lhds und der deutschen Romantik, Oopenhaga, 1963(um período particularmente fecundo: pré-romantismo e roman­tismo alemães).

Szondi (P.), Einführung in die literarische Hermeneutik, Francfort,1975 (história da passagem do hermenêutico religioso para ohermenêutico literário, no século XVIII e no século XIX, naAlemanha).

Todorov (T.), Teorias do Simbolo, Lisboa, 1979 (algumas teoriasparticularmente importantes, a de Santo Agostinho, a retóricadássica, os românticos alemães, Freud).

2. Alguns estudos teóricos

Boo,th (W.), A Rhetoric of Irony, Chicago, 1974.Dubois (J.) e aI., Rhétorique générale, Paris, 1970.Ducrot (O.), Dire et ne pas dire, Paris, 1972.Empson (W.), The Structure of Complex Wordso Londres, 1950 (tra­

dução parcial em francês: «Les assertions dans les mots»,Poétique, 6, 1971, pp. 239-270).

Grice (P.), «Logic and Conversatio11», in P. Cole e J. L. Morgan(eds.), Syntax and Semantics, vol. III, Speech Acts, Nova Iorque,1975, pp. 41-58.

Henle (P.), «Metaphot», in P. Henle (ed.), Language, Thought andCulture, Ann Arbor, 1958, pp. 173-195.

Hirsch (E.Do), Validity in Interpretation, New Haven, 1967.Kerbrat-Orecchioni (C.), La Connotation, Lião, 1977.Piaget (To), La Formation du symbole chez l'enfant, Paris-Neuchatel,

1945.Schleiermaoher (F.), Hermeneutik, Heidelberga, 1959.Sperber (D.), Le Symbolisme en général, Paris, 1974.Strawson (P.H.), «Phrase et acte de parole», Langages, 17, 1970,

pp. 19-33.Todorov (T.), «Le sens des sons», Poétique, 11, 1972, pp. 446-462.

2. AS ESTRATÉGIAS DA INTERPRETAÇÃO

A arte da interpretação só pode ser verda­deiramente focalizada em obras semióticas.

Friedrich Schlegel

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Já ,expliquei a diferença entre uma descrição dascondições gerais em que se realizam tanto as activida­des simbólicas como as interpretativas e um estudodas escolhas particulares operadas dentro de todos ospossíveis por determinado género literário ou determi­nada estratégia exegética. Diferença de nível que con­duz, ao mesmo tempo, a duas perspectivas complemen­tares: teórica e histórica. Esta segunda parte do meuestudo será, portanto, simultaneamente uma particula­rização das categorias enumeradas até aqui e um «pôrà prova»: em que medida a teoria permite avaliar arealidade histórica?

Para levar esta tarefa a bom termo, escolhi, em pri­meiro lugar, a vertente interpretativa (de preferênciaà da produção), pois me pareceu menos explorada.Em seguida, destaquei duas escolas exegéticas entremuitas outras: simultaneamente, porque a sua influên­cia foi mais forte que outra qualquer e também por­que a sua articulação histórica me parece rica emensinamentos. São a exegese patrística e a filologia.O meu estudo destas duas estratégias não pretende seroriginal no pJano histórico; o seu objectivo é, sobre­tudo, trazer o necessário complemento à exposiçãogeral que o precede.

UMA INTERPRETAÇÃO FINALISTA:A EXEGESE PATRíSTICA

o QUE FAZ DESENCADEAR A INTERPRETAÇÃO

O primeiro exemplo será o de uma estratégia que,no mundo ocidental, continuou a ser, mais do quenenhuma outra, a dominante: a exegese bíblica, talcomo se formou nos primeiros séculos do cristianismoe se perpetuou pouco mais ou menos até ao século'XVII. Escolhi como texto de referência os escritos teó­ricos de Santo Agostinho, que me permiti completarcom algumas referências aos que prepararam o seucaminho ou àqueles - muito mais numerosos - que oseguiram 1.

1 A questão foi abundante e sabiamente tratada. Aqui estãoalguns títulos úteis: E. Moirat, Notion augustinienne de l'herméneu­tique, Clermont-Ferrand, 1906; M. Comeau, Saint Augustin, exégetedu 4' Evangile, Paris, 1930; R-I. Marrou, Saint Augustin et la fin dela culture antique, Paris, 1938; M. Pontet, L'Exégese de Saint Augustinprédicateur, Paris, 1945: J. Pépin, «Saint Augustin et la fonctionprotreptique de l'al1égorie», Recherches augustiniennes, Paris, 1958,pp. 243-286; J. Pépin, «A propos de l'histoire de l'exégese al1égorique,l'absurdité signe de l'al1égorie», in Studia patristica, t. I, Berlim, 1957,pp. 395-413; G. Strauss, Schrifgebrauch, Schriftauslegung und Schif­beweis bei Augustin, Tübingen, 1959; U. Duchrow, Sprachverstiindnisund biblisches Horen bei Augustinus, Tübingen, 1965. Ref'erir-nos­-emos igualmente às partes correspondentes das histórias da herme­nêutica, tais como a de C. Spicq, Esquisse d'une histoire de l'exégeselatine au Moyen Age, Paris, 1944; J. Pépin, Mythe et allégorie, Paris,1958 (2." ed., 1977); H. de Lubac, Exéf!,ese médiévale, Les quatresens de l'Ecriture (4. vol.) , Paris, 1959-1964; R. M. Grant, L'Inter­prétation de la Bible des origines chrétiennes à nos ;ours. Paris, 1967.O tratado - capital em todos os aspectos - de Santo Agostinho

.A Doutrina Cristã será designado daqui em diante pela abrevia­tura DC. 89

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Princípio geral

A interpretação (distinta da compreensão) não é,como vimos, um acto automáHco; é preciso que al­guma coisa, no texto ou fora dele, indique que o sen­tido imediato é insuficiente, que ele deve ser consi­derado apenas como ponto de partida de uma pro­cura que terá como resultado um senHdo segundo.Qual é, aqui, o índice que põe em movimento o meca­nismo da exegese?

A estratégia patrística comporta uma pormenori­zada resposta a esta pergunta. Mas, de facto, todos ospormenores e reúnem num único princípio. É que, àpartida, já existem dois sentidos e não um único: osentido imediato das palavras que formam o texto daBíblia e o sentido que já sabemos que ela encerra,visto ser ela, como di,sse S. Paulo, divinamente inspi­rada; chamemos a este último sentido, para simplifi­car, a doutrina cristã. A interpretação nasce da dis­,tância (não necessária mas frequente) entre esses doissentidos; ela é apenas o percurso que, por meio deuma série de suoessivas equivalências, nos permitevoltar a ligar e, logo, identificar um com o outro.

O índice que desencadeia a interpretação não seencontra, portanto, no próprio texto, mas na sua con­frontação incessante com um outro texto (o da dou­trina cristã) e na diferença possível ent're os dois.Santo Agostinho é, sobre isso, o mais claro possível: ainterpretação deve exercer-se sobre qualquer expressãofigurada. Ora, como é que se descobre que uma ex­pressão não se deve entender no sentido própl'io?

Mostremos em primeiro lugar o meio de desco­brir se a expressão é própria ou figurada. Aquiestá ele numa palavra. Tudo o que, na palavradivina, não Se possa relacionar, quando tomadono sentido próprio, com a honestidade dos costu­mes nem com a verdade da fé, é dito, não oesqueçai,s, no sentido figurado (DC, III, X, 14).

Este princípio é tão compacto e geral que o tra­balho de desencadear a interpretação não está neces­sariamente regulamentado de forma ,explícita: bastaráque se lembre sempre este princípio. Mas nem por issodeixamos de poder enumerar alguns casos mais parti­culares em que o princípio é adaptado a circunstânciasconcretas; aqui, são as propriedades inerentes ao pró­prio texto que assinalam a necessidade de interpretar.

Inverosimilhançâs doutrinais

Em primeiro lugar, são figuradas e, logo, para in­terpretar, todas as passagens que contradizem aberta­mente a doutrina cristã. Trata-se, por conseguinte, deuma contradição in absentia, de uma inverosimilhançadoutrinal. Aqui está a regra enunciada por Santo Agos­tinho:

Quando a locução formula um preceito, proibindouma torpeza ou iniquidade, ou ordenando umacto útil ou um acto benfazejo, não é figurada.Mas quando, pelo contrário, ela pareça ordenaruma torpeza ou uma iniquidade, ou proibir umaoto útil ou benfazejo, então é figurada (DC, III,XVI, 24). No que se refere aos actos e às pala­vras pretensamente considerados pelos ignorantescomo torpezas e dúvidas sobre Deus ou sobre ho­mens cuja santidade é louvada, eles são semprefigurados.[Segue-se o exemplo:] Assim, um homem serenonão acreditará de modo algum que os pés doSenhor foram humedecidos com um perfume pre­cioso por uma mulher da mesma forma que sehumedeoem habitualmente os pés dos homensvoluptuosos que nos causam aversão. Porque oodor agradável é a boa fama que cada um obtémpor meio de obras de uma vida santa, seguindoas pisadas de Cristo e espalhando, por assimdiZier, sobre os seus pés, o mais precioso dosperfumes. Assim, um acto que, para outras pes­soas, é muitas vezes uma torpeza, torna-se, napes'soa de Deus ou de um profeta, o sinal de umacoisa grandiosa (DC, III, XII, 18).

Inverosimilhanças materiais

Em segundo lugar, nem sequer é necessano que otexto da Bíblia seja ofensi,vo para a religião cristã,hasta que cont'radiga o simples bom senso, os conhed­mentos comuns; é uma inverosimilhança, já não dou­trinal mas, de certo modo, material. Santo Agostinhotambém é explícito neste ponto:

Quando um pensamento é exprimido com termosque, tomados no sentido próprio, o tornamabsurdo, é extremamente necessário que pergun- 91

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temos se esse pensamento, que não compreende­mos, não foi, por acaso, exprimido sob a formadeste ou daquele tropo (DC, III, XXIX, 41).

Aqui eS'Íá a aplicação desta regra:

Com efeito, um índice deve advertir o leitor deque essa narrativa não é para ser entendida nosentido carnal: é que as ervas verdes e as árvoresde fruto constituem a alimentação que a Géneseatribui a todas as espécies animais, a todas asaves assim como a todas as cobras; ora nós bemvemos que os leões... se alimentam exclusiva­mente de carne. (...) Por que razão o EspídtoSanto introduz certas declarações que, aplicadasao mundo visível, parecem absurdas, se não forpara nos obrigar a procurar o seu sentido e1spi­ritual, já que não as podemos entender à letra?(in Ps., 77, 26-27).

Superfluidade

Finalmente, em terceiro lugar, não é necessário que'O texto bíblico calunie Deus ou os seus fiéis, ou ofendaa razão; basta que inclua fragmentos cuja utilidadepara a doutrina cristã não seia evidente. O que produza figura de superfluidade, índioe que consiste na au­sência do positivo mais do que na presença do nega­tivo. Santo Agostinho explica isso num outro texto:devemos cons·iderar como figurado não só o que, to­mado à letra, seria chocante, mas também o que seriainútil do Douto de vista religioso (De gen. ado litt.,IX, 12, 22).

Deve ter-se notado um certo ar de parentesco entreestes diversos processos: em nenhum dos casos sedescobJ1e a existência de um sentido segundo e, logo,a necessidade de interpretar fazendo uma confrontacãode segmentos co-presentes no texto; todas as inverósi­milhanças e superfluidades codificadas por Santo Agoís­tinha J1esultam do reaparecimento de um outro textoapenas presente na memória, que é a própria doutrinacristã. Por outras palavras, os índices que desenca­deiam a interpretação na estratégia pat'rística são pa­radigmáticos e não sintagmáticos. Aqui está tambémo que diferencia uma estratégia de uma outra; se eu,tivesse dado como exemplo a glosa rabínica, teríamosobservado uma distribuição inversa. Mas, natural-

mente, o que é ainda mais característico da exegesepatrística é a ausência da necessidade de dispor deíndices formais para decidir se um texto deve ou nãoser interpretado; a obrigação de interpretar é, de certomodo, dada antecipadamente.

A ESCOLHA DOS SEGMENTOS INTERPRETAVEIS

Na exegese patrística, qualquer segmento do textopode tornar-se objecto de interpretação, desde queesteja sob a alçada do princípio geral. Apesar disso,eústem segmentos que, pela sua própria natureza, ape­lam mais para a interpretação do que outros. A estra­tégia patrística não parece ser nisso particularmenteoriginal, pois encontramos uma escolha semelhantenoutras estratégias interpretativas contemporâneas.

O princípio em que podemos juntar as razões daescolha de um segmento em vez de outro é o seguinte:quanto mais o sentido linguístico é pobre e, portanto,quanto mais limitada for a sua compreensão, mais aevocação simbólica se implanta mais facilmente e,logo, mais rica é a interpretação. Como no léxicoexistem palavras com sentido particularmente limi­tado, serão elas as escolhidas, de preferência a outras,como matéria a interpretar.

Nomes próprios

A classe de palavJ13's de sentido mais pobre é, evi­dentemente, a dos nomes próprios. O que explica que,em quase toda a tradição exegética, lhe seja dedicadauma atenção particular. Santo Agostinho limita-se,neste ponto, a seguir a tradição:

Há muitas palavras hebraicas que não foram tra­duzidas pelos autores destes mesmos livros [daBíblia] e que certamente constituiriam uma forçae um auxílio muito apreciáveis para resolver osenigmas das Escrituras, se alguém os pudessetraduzir. :É verdade que um certo número deexcelentes hebraizantes prestaram um serviço àposteridade que é de assinalar, pois destacaramda Escritura, e traduziram, todas as palavrasdessa categoria. Deram-nos assim a significaçãode Adão, de Eva, de Abraão, de Moisés e tambémdos topónimos Jerusalém, Sião, Jericó, Sinai, 93

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Líbano, Jordão, e de todas as outras palavrashebraicas que são reconhecidas (DC, II, XVI, 23).

Nomes próprios, e nomes próprios estranhos, por­tanto menos compreensíveis, de preferência. SantoAgostinho encontra uma justificação puramente cristãpara esta prática: Cristo, ao dar um novo nome aSimão (Pedro) não provou que os nomes não são arbi­trários?

Números

Por serem os mais pobres em sentido, os nomespróprios não são os únicos a satisfazer a exigênciaexegética. Um outro exemplo de segmentos linguísticosmuito frequentemente interpretados é constituído pe­los números (que não são «assémicos», mas «monossé­micos»). Santo Agostinho pode, mais uma vez, teste­munhá-lo:

A ignorância dos números também impede a com­preensão de uma multidão de expressões utili­zadas nas Escrituras sob uma forma transpostae simbólica. De certeza, um espírito - como di­rei? - bem nascido é necessariamente kvado ainterrogar-se sobre o que significa o facto deMoisés, Elias e o Senhor terem jejuado quarentadias. Ora, esse facto constitui um problema sim­bólico que só se resolve com um exame atentoa esse número. Ele compreende quatro vezes deze, por isso, o conhecimento de que todas as coisasestão inseridas no tempo. É a um ritmo quater­nário que se desenrola o curso dos dias e dosanos (...). O número dez, esse, simboliza o conhe­cimento do Criador e da Criatura; designando otrês a Trindade do Criador e o sete a Criatura,considerando-se a sua alma e o seu corpo. Defacto, há na primeira três movimentos que alevam a amar a Deus com todo o seu coração,com toda a sua alma e com todo o seu espírito,e no segundo quatro elementos muito manifestosque o constituem. Por conseguinte, esse númerosugere-nos que vivamos à cadência do tempo,quer dizer, voltando quatro vez'es, desligados dosprazeres temporais, em castidade e continência, eprescreve-nos o jejum durante quarenta dias.Aqui está o que nos explica a lei personificada

por Moisés, aqui está o que nos mostra a pro­fecia representada por Elias; aqui está o que nosensina o próprio Senhor (DC, II, XVI, 25).

As operações aritmológicas, como se sabe, faciI­mente atingem uma complexidade vertiginosa. Porqueos grandes números devem ser reduzidos aos peque­nos, que são os únicos providos de um sentido bemdeterminado. A análise ,a que Santo Agostinho submeteo número 153 (número de peixes apanhados na pescamilagrosa) é célebre. Primeiro, 153=1+5+ ... +17; é,portanto, um número «triangular»; ora 17=10+7, istoé, a lei e o Espírito Santo. Ou então 153=(50X3)+3,mas 3 é a Trindade e 50=(7x7)+(1 X 1), etc. (Tract.in Joan, 122, 8, 1963). Encontraríamos, nas tradiçõesvizinhas, exemplos ainda mais compIexos e baseadosem associações ainda mais surpreendentes.

Nomes técnicos

Quase tão pobres de sentido como os números sãoos nomes técnicos, estranhos ao léxico comum, quedesignam, por exempIo, uma cIasse de seres.

A ignorância das propriedades de certos animaisna Escritura embaraça muito aqueIe que procuracompreender. Semelhante embaraço é produzidopela ignorância das pedras, das pIantas e de to­dos os arbustos que se seguram à terra por meiode raízes. Pois o conhecimento do pirilampo, quebri:lha nas trevas, ilumina, por sua vez, muitascoisas obscuras dos Livros santos, em toda aparte em que esse animal é utilizado como figura.Por outro Iado, a ignorância do beriIo e do dia­mante fecha muitas vezes as portas à compreen­são. E se é fácil entendermos que o ramo deoliveira trazido pela pomba no seu regresso àarca simboliza a paz perpétua, isso deve-se unica­mente ao facto de sabermos que o brando con­tacto do azeite não pode ser facilmente alteradopor um líquido estranho e que a própria oliveiraestá sempre coberta de folhas (De, II, XVI, 24).

Se um texto fala do pirilampo, do berilo ou daolivdra não é, sem dúvida, por causa destes seres, mastendo em vista a interpretação simbólica a que sesubmetem essas espécies e, logo, essas paIavras. 95

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Como se pode imaginar, cada uma destas interpre­tações teria sido muito mais difícil se se ~ebruça'sse

sobre frases constituídas por palavras maIS comuns~

sem nomes próprios nem algarismos. Mas trata-se aqUIde uma tendência da própria língua e não imposta poruma escolha deliberada dos Padres da Igreja.

AS MOTIVAÇÕES; AS CONCORDÂNCIAS

Motivação semântica

Como os dois sentidos, directo (o das palavras daBíblia) e indirecto (o da doutrina cristã), são dadosantecipadamente, a interpretação co:r:sisti~á em d~­

monstrar que são equivalentes. Ora, nao ~xIstAem.mUI­tíssimos meios para estabelecer uma eqUIvalencIa se­mântica: isso faz-se seguindo as vias do simbolismolexical (abolindo portanto o sentido da asserç~o inicialem que se encontra integrado o segmento a mterpre­tal') ou do simbolismo prop'o~icional (acresc~n~an~o ~primeira uma segunda asserçao). A escolha e tao hmI­tada que cada prática interpretativa terá necessaria­'mente de recorrer às duas possibilidades. Assim, nosexemplos acima citados, o perfume é a bo~ fama: aprimeira acção não teve lugar e, port~nto, e um casode simbolismo lexical. Em contrapartIda, Jesus estevede facto quarenta dias no deserto: a asserção inicialmantém-se; mas, além disso, a indicação da duraçãodessa estada simboliza outra coisa: trata-se agora deum exemplo de simbolismo proposicionaL

Também se poderiam classificar as associações di­zendo que elas vão do geral para o particular, do par­ticular para o geral, do particular para o particular,etc., formando figuras como o exemplo, a metáfora, asinédoque e assim sucessivamente. Veremos um poucomais adiante qual a forma particular de motivaçãoque a exegese patrística reivindica 'par~ si; notemosapenas aqui que ela tem uma predI1ecçao por certasformas do simbolismo proposicional (sustentáculo dosentido literal).

Paronímia

A motivação semântica é obrigat6ria; pode ser, nãosubstituída, mas secundada por uma motivação nosignificante, ou paronímia. Esta, por sua vez, toma

vanas formas: contaminação (uma palavra simples étratada como uma «palavra-saco»), notaricon (cadaletra da palavra é interpretada como inicial de umaoutra palavra), simples calembur, etc. Todas estas téc­nicas estão presentes na exegese patrística e especiti­camente em Santo Agostinho, mas parece terem vindoda tradição judaica.

Frequentemente, as histórias da exegese desprezameste género de pormenores: diferença entre indices sin­tagmáticos e paradigmáticos, natureza dos segmentosinterpretativos, moüvação lexica'l ou proposicional,presença ou ausência do desvio paron:Úmico. E estão,erradas, 'pois o estudo dessas opções pode contribuirprecisamente para esclarecer questões históricas. Po­demos perguntar, por exemp~o, se Théagéne, «inven­tor» do método alegórico, não é ele próprio uma in­venção mais tardia, do tempo dos Estóicos, os quaispraticavam abundantemente a exegese alegórica. Mas'se, globalmente, as duas práticas exegéticas se asse­'melham, elas diferem num pormenor; por exemplo,nos Estóicos o desvio paronímico é quase obrigatório;,em Théagene,ele nunca está presente. Também se diz:não terá Fílon tirado o seu método alegórico dos Es­tóicos? Mas estes interpretam quase exclusivamentenomes próprios, ao passo que Fílon dá mais impor­tância às análises de substantivos comuns; pratica,simultaneamente o simbolismo lexicall e o simbolismoproposicional, en.quanto o~ Estóicos, nes~e domíni.o,se limitam exclusIVamente a palavra. Podenamos facIl­mente multiplicar os exemplos; nunca se falará sufi­cientemente sobre o mútuo proveito que, nesta ma­téria, teriam a teoria e a história se, reciprocamente,elas 'se examinassem mais.

Unidade do sentido

Ao estabelecer uma equivalência semântica, ou mo­tivação, atribui-se à palavra ou à frase um s~n~id? quehabitualmente não é o seu. Mas ta'l estrategm mter­pretativa é, necessariamente, um controlar das associa­ções semânticas e não o pô-las em liberdade. Portanto,é preciso encontrar provas que justifiquem esta moti­vação, este parentesco dos dois sentidos ou, melhorainda, estabelecendo que, de facto, ambos são apenasum. De aí uma pesquisa sistemática de outros segmen­tos do texto onde a palavra - a que se at1ribui, aqui,um sentido novo - já possui, e de forma incontestável, 97

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esse sentido. É isso que obriga a exegese a procurar aconcordância por trás da aparente diversidade.

Santo Agostinho formula assim esta regra: «Deve­mos aprender, segundo as passagens onde os termossão utilizados num sentido claro, a forma de os com­preender nas passagens em que são utilizados numsentido obscuro» (De, III, XXVI, 37). Se procurarmoscompreender o que quer dizer «escudo» em determi­nado salmo, é necessário fazer o levantamento do seu,sentido nos outros salmos. Não se deve, acrescenta'Santo Agostinho, aplicar esta regra cegamente: a pala­vra pode ter mais de um sentido, e um sentido podeser evocado por mais de uma palavra. Não se querafirmar com isto a unicidade absoluta do sentido, masapenas a tendência para controlar o restringir a plura­lidade (voltaremos a este ponto).

A esta primeira regra de controlo acrescenta-seuma outra: não só, em princípio, a mesma palavra oua mesma frase têm sempre o mesmo sentido no inte­rior de um texto, mas as dHerentes palavras, as d1fe­rentes frases do texto têm todas elas um só e mesmo'sentido. A va'riedade dos significantes é tão ilusóriacomo a dos significados. No fundo, a Bi!blia diz inces­santemente a mesma coisa, e se não compreendermoso sentido de uma passagem, basta observarmos o deuma outra: são os mesmos. Orígenes formulara já esteaxioma: «Saibamos que, sendo a Escritura obscura,não é necessário procurar outros meios para a com­preender: basta-nos aproximar umas das outras as pas­sagens em que os elementos de exegese se encontremdispersos» (Select. in Ps. 1). Santo Agostinho concordacom ele neste ponto: «Quase nada se extraiu dessasobscuridades que não se encontre claramente dito nou­:tras passagens» (DC, II, VI, 8); e até São Tomás deAquino, que reformula o princípio: «Tudo o que sejanecessário à Fé e esteja contido no sentido espiritual,está necessária e claramente contido noutras passagensnum sentido literal!.»

Concordâncias

À força de se proourar provar assim a unidade dosentido e do texto, somos conduzidos a um incessantetrabalho de relacionação intratextual, ou, como então

! Somme théologique, Paris-Tournai-Rome, 1947, t. I, questão I,al1tigo 10, solução 1.

se dizia, de concordância - a tal ponto que, por vezes,a procura das equivalências se torna em si mesma umfim. Encontran1:OS um bom exemplo disto nos Sermõesde Santo Agostinho que, partindo da posição simétricaocupada por Cristo e São João Baptista, chega a muitonumerosas e delicadas semelhanças e oposições nostextos em que os descreve: o primeiro nasceu no soIs­ticio de Inverno, quando os dias crescem, o segundono solstício de Verão, quando os dias diminuem; Jesusnasce de mãe jovem e virgem, João Baptista de umamulher idosa; um tornou-se grande na morte pois foierguido na cruz, o outro foi diminuído aos olhos detodos, pois foi decapitado, etc. (d. Pontet, op. cit.,p. 141). Vemos que Santo Agostinho está aqui aindamais atento às oposições que às identidades; no en­tanto, a questão já não é visar - por meio da rela­cionação intratextual- o estabelecimento de um sçn·tido único (pelo menos não imediatamente); a análisefoge por um momento à tutela demasiado visível exer­cida pela procura do sentido.

A encarniçada procura das concordâncias fará nas­cer, alguns séculos mais tarde, uma heresia especial:a de Joachim de Flore. Joachim irá consagrar às con­cordâncias todos os seus esforços, consignados emrvárias obras, tendo uma delas como título: Livro daConcordância entre os Dois Testamentos. Nela se lê:

Dizemos que a conoordância é, a bem dizer, umasim1litude de proporções iguais que se estabeleceentre o Novo e o Antigo Testamento (...). É assimque em ambos um personagem e um personagem,uma ordem e uma ordem, uma guerra e umaguerra se respondem em réplicas semelhantes ese olham com rostos mútuos (...) de tal maneiraque se desvenda ligeiramente o sentido das coi­sas, e que a similitude permite compreender me­lhor o que é dito (oo .). Se raciocinarmos, há, por­tanto um oomo outro destes personagens, já ve­significada.

E eis um exemplo:

A concordância existe, para retomar um dos nos­sos exemplos, entre Abraão e Zacarias, porquetanto, duas coisas significantes para uma coisalhos, geram um filho único de sua mulher, até aíestéril. E que não se diga que há uma diss(JlIll'~

lhança, dado que o patriarca Isaac gerou Jacoi>, !l!1

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enquanto João não gerou mas baptizou Cristo:com efeito, a geração carnal foi afirmada naqueleque foi o pai de um povo de carne, Israel; e nosegundo foi afirmada a geração espiritual, por­que ele foi o pai espiritual de todo o povo cris­tão 1.

Não nos parece ler uma «análise estrutural domito?

A heresia advém aqui do facto de o Antigo e oNovo Testamento serem 'postos exactamente no mesmo'plano, e de o privilégio do Novo em relação ao Antigo- exactamente a base da exegese patrística, di-Io-emosmais uma vez - ter sido eliminado. A tal ponto queJoachim está pronto a interpretar não só o AntigoTestamento como anúncio do Novo, mas também oNovo como anúncio de um terceiro tempo: o próximofim do mundo. Em vez de Se instaurar envre os doisTestamento como anúncio do Novo mas também opretende a ortodoxia da tradição, já não se encarasenão uma repetição, com dois significantes, não hie­rarquizados, de um mesmo significado. Joachim é mui­tíssimo explícito quanto a isso:

Quando descobrires o que significa o Antigo Tes­tamento, não terás necessidade de procurar o quesignifica o Novo, pois desde agora nenhuma dú­vida se pode levantar quanto a esse assunto, osseus dois sentidos têm uma mesma acepção e osdois Testamentos têm uma expHcação espiritual(ibid., p. 45).

A prática exegética de Joachim, que já se encon­trava em germe em certos textos de Agostinho, ultra­passa completamente os quadros da exegese patrística;é o seu interesse próprio, mais do que o seu valor deexemplo, que fez com que o escolhesse. O que continuacomo característica da estratégia cristã é a afirmaçãoda unidade de sentido da Bíblia, e o controlo assimexercido sobre a polissemia.

SENTIDO NOVO OU SENTIDO ANTIGO?

o exegeta da Bíblia não tem qualquer dúvidaquanto ao sentido a que chegará no final; é mesmo

1 J. de Flore, L'Evangile éternel, t. II, Paris, 1928, pp. 41-42.

esse o ponto mais solidamente estabelecido da suaestratégia: a Bíblia anuncia a doutrina cristã. Não éo trabalho de interpretação que permite estabelecer osentido novo, bem pelo con-vrário é a certeza rela­donada com o sentido novo que g~ia a interpretação.Orígenes 1 afirmava já que para bem interpretar aE.s~ritur.a é preciso (e basta) conhecer a mensagemdryma; mve::sam,:nte, para aquele que a ignora, a Es­cntura contmuara sempre obscura. «As coisas divinass~o entregu~s aos homens de forma um pouco escon­dIda, e contmuam tanto mais escondidas quanto maisincrédulos ou indignos fornos» (IV, 1, 7). «A almasó pode conseguir a perfeição do conhecimento setiver sido inspirada pela verdade da sapiência divina»(IV, 2, 7). Portanto, conhece-se antecipadamente oponto de chegada; o que se procura é o melhor cami­nho para lá chegar. É esta a comparação usada porSanto Agostinho:

Se [o l.e~tor] se ~ngana, dando uma interpretaçãoque edIfIca a candade, fim do preceito, engana-sedo mesmo modo que uma pessoa que, por erro,abandonasse a estrada e seguisse através dos cam­pos, para o ponto onde, mais além, essa estradaconduz (De, I, XXXVI, 41).

Uma interpretação que obra na caridade não podeser falsa.

Este princÍpio, pedra angular da exegese patrísticaé forn;ulado frequentemente por todos aqueles qu~a pratIcam. «Para lreneu... não existe senão um cri­tério de interpretação correcta. Esse critério é a regrade fé.» Segundo Clemente de Alexandria: «Como e~co­lherá o leitor entre os sentidos da Escritura? Queprincípio director guiará a sua interpretação? Para umfiel da Igreja só pode existir uma única resposta: achave de toda a Escritura é a fé em Cristo, na suapessoa e na sua obra.» Aos olhos de Tertuliano «aúnica forma de esc(jlher entre a interpretação literale a alegórica de determinada passagem era ver se oseu sentido primeiro estava ou não de acordo com osensinamentos da Igreja» (Grant, op. cit., pp. 62, 69, 91).

Santo Agostinho reformula frequentemente estaideia:

1 Traité des principes, Paris, 1976. 101

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Aproveitai a ocasrao para advertir [o candidatoà conversão] que se ele ouvir mesmo nas Escri­turas uma palavra com acento carnal, não deverácrer menos por isso, pois não terá oompreendidoque ela significa uma verdade espiritual, relativaà santidade dos costumes e à vida futura. Eleaprende assim, em poucas palavras, que tudo oque ouvir ou ler nos livros canónicos e não puderrelacionar com o amor da eternidade, da verdade,da santidade e do amor ao próximo, deve seralhada por ele como uma palavra ou acto figu­rado; e, por conseguinte, procurará compreen­dê-Ias de forma a conseguir reencontrar a esseduplo amor (De catech. rud., XXVI, 50).

Sabe-se antecipadamente que os livros falam deamor; este saber faz por encontrar simultaneamenteo índice das expressões carregadas de um sentido sim­bólico ou segundo e a própria natureza desse sentido.A incógnita, neste trabalho, não é o conteúdo da inter­pretação, mas a maneira como esta se constrói; nãoé o «o que é que» mas o «como». É o que também dizum enunciado mais breve da mesma regra:

Eis a regra a observar para as locuções figura­das: é necessário examinar o que se lê com umaatenção minuciosa, até que a interpretação sejalevada ao seu fim: o reino da caridade (DC, III,XV, 23).

Já que é o sentido «finaI» que conta acima de tudo,pouco se preocuparão com o sentido «originaI» ou in­tenção do autor. A procura deste último é uma preo­cupação quase ociosa, exterior ao projecto da exegeseque é ligar o sentido dado ao sentido novo.

Quem quer que tire do estudo das Escriturasuma ideia útil à edificação da caridade, sem queno entanto traduza o autêntico pensamento doautor na passagem que interpreta, não cometeerro pernicioso nem a menor mentira (DC, I,XXXVI,40).

E ainda:

Uma coisa é não ver o que pensou o próprioautor, outra é afastar-se das margens de pi,edade.Se ambas puderem ser evitadas, o leitor apro-

veita o máximo. Mas se não se puderem evitarambas as ooisas, então, mesmo que a intençãodo autor fique na incerteza, não será inútil fazerjorrar uma significação mais profunda, conformecom a verdadeira fé (De Gen. ado litt. I, 21).

Para todos os efeitos, a procura da intenção passapara segundo plano, depois da edificação da caridadee das «regras de piedade».

A DOUTRINA DOS QUATRO SENTIDOS

Admite-se, desde a época patrística, que a Escrituratem múltiplos sentidos. A variante mais comum destateoria consiste em dizer que esse sentido é quádruplo,articulado em primeiro lugar sobre uma oposição entresentido literal· (ou histórico) e sentido espiritual (oualegórico), subdividindo-se logo este último em três:sentido alegórico (ou tipológico), sentido moral (outmpológico) e sentido anagógico. Uma fórmula de SãoTomás de Aquino codifica assim o que era desde hámuito uma opinião comum:

A primeira significação, isto é, aquela em que aspalavras utilizadas e:1Cprimem certas coisas, cor­responde ao primeiro sentido, que é o sentidohistórico ou literal. A significação segunda, pelaqual as coisas exprimidas pelas palavras signifi­cam, de novo, outras coisas, é aquilo a que sechama o sentido espiritual. que assim se baseiano primeiro e o implica. Por sua vez, o sentidoespiritual divide-se em três sentidos distintos.Com efeito, diz o Apóstolo: «A lei antiga é uma,figura da nova lei»; Denis acresoenta: «A 'lei novaé uma figura da lei futura»; finalmente, na novalei, o que se passa com o Chefe é o signo daquiloque nós próprios devemos fazer. Portanto, quan­do as coisas da lei antiga significam as da leinova, temos o sentido aleRórico; quando as coisasrealizadas por Cristo ou dizendo respeito 8S fi'~II­

ras de Cristo são o signo daquilo que nós dev('­mos fazer, temos o sentido moral; rinnlll1elll(', S('

considerarmos que essas mesmas COiS;1S Síl':lliri­

cam o que é a eterna glória, lemos () SCIlI ido 103

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anagógico (A razão teológica, questão I, artigo 10,conclusão) I.

Precisemos, em primeiro lugar, alguns pontos daterminologia. Ao sentido moral também se chama tro­palógico - termo que mais vale evitar aqui, para nãoo confundirmos com «tropa». «Alegoria» designa, umasvezes, o conjunto dos três sentidos e, outras, um deentre eles; para evitar, mais uma vez, as confusões, fa­laremos de sentido espiritual no primeiro caso e desentido tipológico ou, mais simplesmente, de tipologiano segundo caso - embora este último termo não sejausado nos textos antigos.

Eis agora o exemplo de uma interpretação segundoos quatro sentidos, praticada por Dante na famosa- ainda que talvez inautêntica - carta a Cangrande:

Para que esse modo de os usar seja mais claro,podemos aplicá-lo nestes versículos: Quando Is­rael saiu do Egipto e a casa de Jacob de entre umpovo bárbaro, Judá tornou-se para ele um san­tuário e Israel o seu domínio (Ps. 113). Pois senos limitarmos a entender à letra, o sentido é asaída dos filhos de Israel do Egipto, no tempo deMoisés. Se entendermos a alegoria, o sentido é anossa redenção operada por Cristo. No sentidomoral, é a conversão da alma, da dor e da mi­séria do pecado ao estado de graça. No sentidoanagógico, é a passagem da alma santa, da ser·vidão da corrupção presente à liberdade da glóriaeterna.

Vemos aqui que uma das formas de distinguir os'três sentidos espirituais é relacioná-los com o tempo:passado (tipológico), presente (moral), futuro (anagó­gico).

I A exposição clássica sobre a questão dos quatro sentidos é ade E. von Dobschütz, «Von vierfachen Schrifsinn. Di,e Geschiche einerTheorie», in Harnak Ehrung. Beitriige zur Kirchengeschichte, Leipzig,1921. Os quatro volumes da Exégese médiévale de H. Lubac exa­minam a questão sob todos os ângulos, mas não são de fácil con·sulta. Pode ler-se em francês a exposição mais sucinta de A. Pézard,Dante sous la pluie de feu, Paris, 1943, 'apêndice VIII, 'l'p. 372-400:«Les quatre sens de I'Ecriture».

Alegoria cristã?

Ainda hoje se oontinua a debater um problema: é oda originalidade da alegoria cristã em relação à ale­goria pagã, contemporânea ou anterior, tal como erapraticada, especialmente na Grécia antiga. Adivinham­-se as duas teses opostas: segundo certos autores, adiferença é puramente substancial, uma forma já exis­tente (a alegoria pagã) foi aplicada a uma matérianova (a ideologia cristã); segundo outros autores, entreos quais muitos homens da Igreja, a alegoria cristã é'Completamente diferente da alegoria pagã, e isso aténas suas formas.

Sem entrar ainda em pormenores, podemos obser­var que os três sentidos espirituais são tirados deasserções que se mantêm: por outras palavras, tra­ta-se de um simbolismo proposicional. Habitualmente,esta observação formula-se assim: é obrigatório man­ter o sentido literal. E muitas vezes é no facto demanter o sentido literal que se vê a especificidade daalegoria cristã: com efeito, a alegoria pagã reclama aa abolição desse sentido.

Assim, escreve Aeurbach:

No caso da alegoria ou do simbolismo, pelo me­nos um dos dois elementos que se combinam épuro signo; ao passo que, na relação tipológica,os factos significante e significado são ambosacontecimentos históricos reais e concretos. Nu­ma alegoria do amor ou num símbolo religioso,pelo menos um dos dois termos não pertence àhistória humana; é uma abstracção ou um signo.Em oontrapartida, no sacrifício de Isaac. quandoconsiderado como a figura do sacrifício de Cristo,nem o acontecimento prefigurante nem o aconte­cimento prefigurado perdem, pela forca do sen­tido e da relação figurativa. a sua realidade lite­ral e histórica. Este ponto é essencial e foi muitasvezes acentuado, com bastante insistência, pelomenos na tradição ocidental I.

Ou de Lubac:

Dois sentidos que [como na alegoria cristã] seadicionem, ou dois sentidos em que o primeiro,

I «Typological symbolism in medieval literature», in Gesam­melte Aufsiitze zur romanischen Philologie, Berna, 1967, p. 111. Cf.também o seu estudo «Fugura», ibid., pp. 55-92. 105

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muito real em si próprio embora exterior, devaapenas apagar-se perante o outro ou transfor­mar-se no outro a partir de um acontecimentocriador ou transfigurador, não são dois sentidosque [como na alegoria grega] se excluem comose excluem a aparência e a realidade, ou a «men­tira» e a verdade. Aliás, a aparência ou «a men­tira» de que fala o mitólogo grego não corres­ponde à «letra» ou à «história» da exegese cristã:a verdade do primeiro não corresponde, mesmode um ponto de vista comoletamente formal, àverdade do segundo (...). Portanto, muito longede constituir o aná'logo, mesmo aproximativo, dospares gregos a que podemos ser tentados a assi­milá-los, os pares cristãos constituem a sua antí­tese (op. cit., 1. II, p. 517; o sublinhado é meu).

É verdade que a alegoria pagã se apoia no simbo­lismo lexical. Mas isso não prova de modo algum a'Originalidade da alegoria cristã: ela não é a única quedepende do simbolismo proposicional, o qual é perfei­tamente famHiar ao mundo antigo e não apenas naprática, o que é óbvio, mas também em teoria (assimacontece na teoria do signo de Aristóteles e dos Estói­cos, ou em certas figuras de pensamento, como oiexemplo, nos textos dos retóricos). A diferença, seexiste, deve ser procurada a um nível mais específico.

Tipologia

Para cernar a questão, voltemos rapidamente à sub­divisão do sentido espiritual em três espécies.

O sentido moral é aquele que levanta menos pro­blemas (quanto à sua identificação). Assemelha-se, aponto de se confundk, à forma de pensamento queAristóteles descreve com o nome de exemplo 1_ e atéaos próprios exemplos dados por ele: determinadaacção do passado {da História Santa) deve ser postaem paralelo com acções presentes e servir de guia aoscontemporâneos no seu trabalho de interpretação. Aris-

1 Mas que não tem o sentido que, na parte precedente, eu davaa esta palavra, p. 69, pois, seguindo Lessing, eu qualificava assima passagem do particular ao geral, ao passo que Aristóteles visa, noexemplo, a evocação de um tlarticu1ar por um outro, para o que eureservaria o nome de alegoria... J! impossível escapar às acrobaciasterminológicas neste domínio. de tal modo os mesmos termos foramutilizados em sentidos diferentes.

tóteles distingue duas espeCIes: exemplos históricos eexemplos não históricos (atemporais), que por sua vezpodem ser parábolas ou fábulas. Aqui está um exemplohistórico: a guerra de Tebas contra a Fócida foi ummal; segue-seque os Atenienses não deveriam declararguerra aos Tebanos se quisessem evitar o mal; estesdois casos particulares estão ligados por uma proprie­dade geral: Tebas e Fócida são vizinhas, assim comoTebas e Atenas (Primeiros Analíticos, 69 a). E agoraum exemulo não histórico: «Não se devem escolheros magistrados à sorte: com efeito, seria como se seescolhessem os atletas que devem concorrer não pelassuas aptidões físicas, mas à sorte» (Retórica, II, 1393b). Não existe aqui quaTquer diferença formal entre aAntiguidade e o Cristianismo: do ponto de vista dateoria alegórica, a guerra de Tebas do exemplo deAristóteles equivale ao exemplo dos filhos de Israel.

Mas falta-nos caracterizar a tipologia; pois é defacto nela que habitualmente se pensa quando se falade alegoria cristã. Eis como a tipologia está descritapor Santo Agostinho, cuja obra contéJ? ~:n; g~rme. adoutrina dos quatro sentIdos. O seu prmcIpIO e aSSImenunciado na Catequese, III, 6:

Tudo o que lemos nas Sagradas Escrituras foiescrito antes da vinda do Senhor apenas parailuminar essa vinda e prefigurar a Igreja, isto é,o povo de Deus através de todas as nações.

O mesmo texto apresenta alguns aspectos de exe-gese tipológica.

Neste novo [o de Abraão] foi seguramente figu­rada, ~om uma clareza muito maior, a Igreia dofuturo (XIX, 33). [Ou ainda:] Tudo isto [tudoo que acontece a este povo] também era a figurade mistérios espirituais relativos a Cristo e à suaIgreja de que estes justos eram os membros,embora tivessem vivido antes do nascimento car­nal de Cristo, Nosso Senhor (ibid.). [E também:]Pelo símbolo do dilúvio, ao qual escaparam osjustos graças à madeira da arca, era previamenteanunciada a Igreja futura, mantida sobre as va­gas inundantes deste mundo pelo seu rei, Cristo,Deus e Senhor (XIX, 32).

O povo iudeu prefigura a Igreja, assim como odilúvio anuncia o seu advento: aqui estão interpreta- 107

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lOS

ções tipológicas características. Notemos que, tantoaqui com noutros textos, Agostinho não inventa nada:a tipologia já é praticada por São Paulo e todos osseus exemplos são apenas retomados.

Em que consiste exactamente a tipologia? Podere­mos enumerar assim as suas características, segundoos historiadores da teologia, indo do mais gerarl parao mais específico:

1. Depende do simbolismo proposicional.2. Participa da intersecção de propriedades e não

da exclusão ou da inclusão; neste sentido, faz parte doexemplo aristotélico (daquilo a que eu chamaria ale­goria).

3. Os dois factos que a constituem pertencem aopassado, são dois factos históricos. No entanto, istonão é suficiente para caracterizar a tipologia; comefeito, cita-se nas histórias da exegese uma frase dePlutarco (De Fortuna Alexandri, 10), segundo a qualo verso de Homero «ao 'mesmo tempo bom rei e guer­reiro excelente» não louva apenas Agamémnon, mastambém prevê a grandeza de Alexandre 1; ora, isto éum exemplo histórico, semelhante aos de Aristóteles,mas não uma tipologia, pois os acontecimentos repe­tem-se sem que um seja a completa realização dooutro.

4. Apenas uma relação particular entre os doisfactos permite falar de tipologia no seio dos exemploshistóricos; e esta relação não figura nas listas retóri­cas: é a de cumprimento. ~ necessário haver uma gra­dação entre os dois factos em favor do segundo: oprimeiro anuncia o segundo. o segundo cumpre o pri­meiro. Como já vimos, pÔ-llos no mesmo plano seriauma heresia segundo a óptica cristã.

5. A seguinte restrição seria de puro conteúdo:conviremos em chamar tipologia cristã àquela que serealiza no âmbito dessa ideologia particular. Esta res­trição é imposta pelo facto de existir uma tipologianão cristã, como muito bem demonstrou Goppelt.

6. Finalmente, no seio da tipologia cristã, isolare­mos a tipologia testamentária, segundo a qual os acon­tecimentos do Antigo Testamento anunciam os que sãorelatados pelo Novo Testamento. A isto se refere o«segundo» sentido (na teoria dos quatro sentidos), quedesignámos como «tipologia». Esta nova restrição é

1 Citado por L. Goppelt, Typos. Die typologische Deutung desAlten Testaments in Neuen, Gütersloh, 1939, p. 20. Este livro con­tém uma brilhante 'exposição dos problemas da tipologia.

necessana pelo facto de o quarto sentido, anagoglco,partilhar algumas das propriedades da tipologia, semser uma tipologia testamentária. O sentido anagógicodiz respeito à escatologia: a partir de uma série emque se contundem Antigo e Novo Testamento, deduz-seuma outra, tutura (o tim do mundo). A diferença édupla; trata-se de uma profecia e não de uma inter­pretação do passado; e nenhum texto desempenha aquio 'papel que o Novo Testamento tem em relação aoAntigo na tipologia testamentária.

Se déssemos uma definição de «tipologia» que nãoa ligasse apenas à doutrina cristã, podenamos obser­var noutros textos o mesmo «exemplo histórico decumprimento». Sem procurar continuar a seguir estavia, sugeriria que há muito de «tipologia» nessa grandeestratégia interpretativa do nosso tempo que é a psi­canálise. Os dois acontecimentos já não se situam nahistória da humanidade mas na do indivíduo; aconteceque o facto recente (por exemplo, os sintomas neuró­ticos) é apercebido como o «cumprimento» de um actoantigo (o traumatismo infantil), o qual, por sua vez,«anuncia» o outro,

FUNçõES CARACTER[STICAS DO SIMBOLISMO

Depois de descoberta a expressão simbólica, e emseguida delimitada e <ligada a um sentido segundo,tendo sido esta última operação apoiada em provas,resta-nos perguntar: por que se teria necessidade deuma outra eX'pressão para além da expressão directa(por signos)? Quais as funções que a expressão simbó­lica será capaz de assumir, além daquelas que a ex­pressão não simbólica já assume?

Poremos a questão em termos de pergunta: sejacomo for, quais podem ser as funções da expressãosimbólica? Em primeiro lugar distinguiremos duas fun­ções a que chamaremos, um pouco para faciHtar, «in­terna» e «externa». Primeiro caso: a razão do simbó­lico reside na própria relação entre simbolizante esimbolizado; a expressão simbólica está presente por­que não podia deixar de estar. Segundo caso: a razãodo simbólico reside na relação entre o sím:bollo e osseus utentes, produtores ou consumidores; podendoescolher entre servir-se dele ou não, eles preferiram-nopor causa das vantagens suplementares que ele oferece:a razão do símbolo reside, então, nos seus efeitos. 109

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Funções internas

A primeira análise é pouco frequente na Antigui­~ade; no entanto, encontramos sobre ela formulaçõesIsoladas. ~sa-se. o ~ím:bolo, dir-se-ia então, porque sef~l~ de COIsas mefavels a partir dos signos, como adIVmd.ade. Po.r ~x~mplo, ~trabon, Geographica, X, 39:«,C?bnr d~ I!llsteno as. co;sas sagradas é servir o pres­tl:glO da dIVmd~de, pOIS, e imitar a. sua natureza, quee?cap~ ao~ se.r:tldos.» Ongenes: «ExIstem matérias cujaslglllfIcaçao nao pode ser exposta como convém, abso­lutamente por nenhuma palavra da rlínguagem huma­na» (IV, 3, 5). Ou Clemente, Stromates, V, 4, 21, 4:«Todos aqueles que tentaram descrever a divindadet~~to os bár~aros como o~ SJregos, esconderam os prin~ClJ~lOS das cOI~as e transmItIram a verdade por meio deelllgmas, de sImbolos e depois de alegorias metáforase <;lUtros processos anáüogos; assim aconte~eu com osoraculos do~ Gregos, e ~polo de, Alexandria foi apeli­dado, e mUlto bem, de oblíquo.» Encontram-se fór­:nulas semelhantes em Máximo de Tiro, nos textos doln;p.erador Julião ou, muito mais tarde, em Dante (cE.Pepm, Myt~e et Allégorie, pp. 268-271). Santo Agosti­nho, em c~Jos texto~ p~den~~os encontrar frases quec~ncedem a expressao sImbohca toda a espécie de fun­ç?es, mas que t~m, apesar de tudo, as suas preferên­CIas, evoc~ ~traves de uma alegoria a diferença entre asduas espeCles de expressão e, logo, a necessidade des­s~s .narrativas de conteúdo simbólico que enchem aBlbha (a comparação será muitas vezes retomada eeXJ?Hcit~da depois, nomeadamente por Hugues deSamt-Vlctor no seu Didascalion):

Como numa cítara ou nos instrumentos da mes­ma espécie, nada daqui1lo em que tocamos dásom a não ser as cordas, e, no entanto, as outraspaJ1tes foram fabricadas e agenciadas com o fimde apertar e esticar essas cordas de que o mú­sico tirará, ao tocar-lhes, uma doce harmonia- assim, nas narrativas proféticas, tudo o queo espírito do profeta escolheu entre as acçõeshumanas tem alguma relação com o futuro ouencontra-se introduzido no texto com o fim deligar ou, de certa maneira, tornar sonoras as par­tes que encerram o anúncio dos acontecimentosfuturos (C. Faust., 22, 94).

Vemos que, até mesmo aqui, há uma contiguidadeimediata entre narração alegórica e ensino directo,entre recurso aos símbolos e aos signos. Santo Agos­tinho tem dificuldade em reservar para os símbolosuma função irredutível, inacessível aos signos - comoo exigirá a ortodoxia moderna.

Funções externas

Portanto, na Antiguidade, a atitude corrente con­sistia em atribuir à expressão simbólica aquilo a quese chamou uma função externa e justificar a suapresença apenas pelos efeitos que ela produz nos uten­tes. Esta função global foi, depois, atenuada e subdi­vivida, segundo as diferentes escolas e tendências exe­géticas.

A variante mais próxima da função interna é a queMaimónides apresenta no Guia dos Perdidos. A natu­reza da revelação contida nos livros santos é tal quenão pode ser dita directamente aos homens: ela cegá­-los-ia e eles não a compreenderiam.

o objectivo divino ... fez com que as verdades,que, particularmente, têm por objecto fazer com­preender Deus, fossem furtadas ao comum doshomens. (...) Por causa da gravidade e da impor­tância dessa coisa, e porque a nossa faculdade éinsuficiente para compreender o mais grave dosassuntos em toda a sua realidade, foram esco­lhidos para nos falar dos assuntos profundos,que a sabedoria divina julgava necessário trans­mitir-nos, as alegorias, os enigmas e palavrasextremamente obscuras 1.

A expressão alegórica é determinada por isto: oshomens não podem compreender de outro modo asrevelações de tamanha gravidade: a função interna éaqui como que encaixada na função externa.

Santo Agostinho enumera várias variedades da fun­ção externa: os autores dos livros santos «exprimi­ram-secom uma úül e salutar obscuridade com o fimde exercerem e, de certo modo, limarem o espírito dosleitores, para interromperem o aborrecimento e espi­caçarem o zelo daqueles que desejam estudá-los, e para

1 Le Guide des égarés, Paris, 1960, Introduction, pp. 10-12. 111

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esconderem essas passagens ao espírito dos ímpios ... »(DC, IV, VIII, 22). Podemos aqui distinguir três razões.A primeira (que não é muito frequente nos textos deAgostinho) é que a expressão simbólica protege a pa­lavra divina do contaoto com os ímpios; a obscuridadedesempenha aqui um papel selectivo, permitindo afas­tar e neutralizar os não iniciados. As outras duas ra­zões, invocadas mais frequentemente, vão, em certosaspectos, em sentidos opostos.

Uma pretende que a expressão simbólica seja maisdifícil que a não simbólica, e que acrescente assim umtrabalho educativo à sua mensagem cognitiva. Era oque já escrevia Clemente de A'lexandria:

Por muitas razões, a Sagrada Escritura esconde,pois, o verdadeiro sentido daquilo que diz, emprimeiro llugar para que sejamos zelosos e hábeisna procura e estejamos sempre alerta para encon­trarmos as palavras do Senhor (Stromates, VI,15, 126, 1).

Santo Agostinho falará muito neste sentido:

A própria obsouridade das palavras divinas e sa­lutares estava destinada a ser penetrada por umatal eloquência. Porque a nossa inteligência deviatirar proveito dela, não somente pelas suas des­cobertas felizes mas também pelos exercícios queconstitui (DC, IV, VI, 9).

E:

Com o fim de nos exercitar, a palavra divinaapresentou-nos, não ideias imediatamente aces­síveis, mas mistérios para pesquisar em segredoe descobrir o segredo; ela obriga-nos assim auma pesquisa mais zelosa (De Trin., XV, 17, 27).

Esta dificuldade, longe de ser causa de desprazer,atrai os espíritos mais fortes e sél!lva-os do aborreci­mento da explicação direota; o orgulho é simultanea­mente logrado e lisonjeado. «Tudo isto, não tenhodúvidas, foi divina e antecipadamente disposto paralograr o orgulho pelo tratbalho, e salIvar do tédio ainteligência daqueles para quem as pesquisas fáceisnão têm, frequentemente, qualquer interesse» (DC, II,VI, 7). Pelo que somos imperceptivelmente conduzidosa uma razão aparentemente oposta à precedente: a

expressão simbólica é preferível porque é mais agra­dável. Para Santo Agostinho, a dificuldade é fonte deprazer:

Ninguém contesta que todas as coisas se apren­dem de melhor vontade com o auxílio de compa­rações e se descobrem com mais prazer as coisasquando as procuramos com uma certa dificul­dade. Com efeito, os homens que não encontrami,mediatamente o que proouram são agitados pelafome; aqueles que, pelo contrário, o encontramfacilmente, enlanguescem muitas vezes de tédio(DC, II, VI, 8).

Qual é a razão exacta desta solidariedade entreobstáculos e prazer, que lembra as satisfações de um,espectador de strip-tease I? Santo Agostinho declaranão saber; mas o seu prazer é evidente na manipula­ção de enunciados cuja natureza alegórica, essa, nemsempre é evidente para nós. Que se julgue por esteexemplo um pouco longo:

Como é possível, pergunto eu, dizer-se: «Existemhomens santos e perfeitos. Graças à sua vida eaos seus costumes, a Igreja de Cristo afasta detodas as superstições aqueles que para ela vême nela se incorporam, de uma oerta maneira, seimitarem os bons. Aliviando-se estes justos­como fiéis e verdadeiros servidores de Deus - dofardo do século, vieram ao sagrado banho doBaptismo e, elevando-se sob a acção fecundantedo Espírito Santo, produzem o fruto do duploamor, isto é, do amor de Deus e do amor dopróximo.» Sim, como é possível dizer-se ]5tO eencantar menos o auditor do que se lhe expusés­semos, exprimindo exactamente as mesmas ideias,esta passagem do Cântico dos Cânticos onde foidito à Igreja, louvando-a como a uma bela mu­lher:«Os teus dentes assemelham-se a um reba­nho de ovelhas tosquiadas que chega do banho;todas elas trazem dois gémeos e nenhuma delasé estéril» (Cant. IV, 2)? O homem aprenderá aquialgo de diferente daquilo que ouvira anterior­mente, exprimido em termos muito simples, semo apoio desta comparação? E no entanto, não seicomo, contemplo os santos com mais agrado

1 Cf. Teorias do Símbolo, Edições 70, Lisboa, 1979, cap. 2. 113

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quando os vejo arrancar - como os dentes daIgreja - os homens aos seus erros, e transpor­tá~los para o seu corpo. Também me é muitoagradável reconhecer as orvelhas tosquiadas. Ali­viaram-se dos fardos do século como do seutosão e, voltando do banho, todas elas deram à,luz dois gémeos, quer dizer, os dois preceitos doamor. E não vejo entre elas nenhuma infecunda,neste santo fruto (DC, II, VI, 7).

Seja qual for a articulação da dificuldade com °prazer, é este tipo de razões que justifica, aos olhosde Santo A<gostinho assim como de toda a exegesepatrística, a expressão simbólica e, logo, também o tra­balho de interpretação. Falando por meio de símbo­los, diz-se a mesma coisa do que na ausência deles;a vantagem situa-se na acção que se exerce sobre °espírito do receptor.

JUIZOS DE VALaR SOBRE O SIMBÓLICO

Ambiguidade do juízo de valor

Sendo a actividade simbólica e interpretativa o queé, que apreciações se fazem dela? Acabamos de verque, por razões que lhe são difíceis de nomear, Agos­tinho está ligado ao próprio traba1ho de interpretação;mas 'pode observar-se uma certa ambiguidade nos juí­zos de valor que ele faz sobre os respectivos resultadosda interpretação (sentido alegórico) e da compreensão(sentido <literal). Ambiguidade que tenta dominar, sal­vaguardando simetricamente os excessos a que podelevar cada uma das duas direcções: «Do mesmo modoque seguir a letra e tomar os signos pelas realidadesque eles significam é efeito de uma fraqueza servil,assim também interpretar signos inutilmente é efeitode um erro deploravelmente inconstante» (De, III,IX, 13).

Se existe ambiguidade (mas não contradição) é por­que os princípios que ditam os juízos de valor respei­tantes a um e a outro sentido têm fontes diferentes.

Por um lado, por razões inerentes à concepçãotradicional da linguagem tal como a encarna nomeada­mente a retórica desde Cícero, preferem-se as ideias(as coisas) às palavras e, portanto, entre as palavras,preferem-se as mais transparentes, aquelas que maisdirectamente dão acesso ao pensamento. Ora, as metá-

foras e as alegorias atraem os olhares; por isso sãocondenáveis. «Por vezes, o escrupuloso desejo de serolaro leva as pessoas a fazerem pouco caso das pala­Ivras mais e!egantes e a desprezarem as frases harmo­niosas e a preocuparem-se sobretudo com esclarecerbem e dar a conhecer a verdade que se pretende mos­trar» (DC, IV, X, 24). A elegância das expressões indi­rectas pesa pouco face à transparência dos signosdirectos; também é por isso que instruir é superior aimpressionar, e ainda mais a agradar; logo, o estilosimples (desprovido de metáforas e de outras expres­sões indirectas) é preferível aos outros (d. DC, IV,XII, 28 e XXV, 55).

Preterir o signiticado ao signficante leva, por outrolado, a colocar o sentido espIritual acima do sentidoliteral. As razões gerais que ditam esta preferênciaacrescentam-se consideraçoes puramente cristãs, por­que o sentido espiritual- o seu nome já o diz - temuma parte ligada ao espírito, ao passo que o sentidoliteral está voltado para o lado da carne, do materiala que se deve renunciar. O que muito explicitamentediz Santo Agostinho:

Entender um termo figurado como se ele tivessesido dito no sentido próprio é pensar carnal­mente. Ora, não há para a alma morte mais jus­tamente nomeada do que submeter à carne, se­guindo a letra, exactamente aquilo que a afastados animais, quer dizer, a inteligência. Comefeito, o homem que segue a letra toma comopróprias as expressões figuradas e não relacionao sentido de um termo próprio com uma outrasignificação (DC, III, V, 9).

Como vemos, entre os dois juízos de valor há maisuma disparidade do que uma contradição. A expressãoliteral de um sentido espiritual está no cume da hierar­quia; em seguida aparece o sentido espiritual da ex­pressão alegórica e, por fim, apenas no fim, o sen~ido

~iteral (e carnal) dessa mesma expressão.

Limitar a profusão dos Bentidos

Um rápido olhar sobre a tradição cristã da ,=xegesebíblica permitirá aumentar e precisar a significaçãodesta ambiguidade; com efeito, nem todos partilhamo entusiasmo de Santo Agostinho pela interpretação. 115

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Defrontam-se duas tendências - sem que, mais umavez, se contradigam directamente.

A primeira é característica de toda a estratégiainterpretativa e consiste em frear a profusão dos sen­tidos, em procurar um sentido preferírvel aos outros.A própria natureza da produção simbólica e o movi­mento contrário, a interpretação, explicam esta pri­meira tendência. Porque simbolizar não é senão asso­ciar sentidos; ora, para associar duas entidades, bastaque as prediquemos com uma propriedade comum (eteremos uma metáfora) ou que as prediquemos a ummesmo sujeito (como na metonímia); mas, haverá ape­nas duas entidades para as quais uma ou outra destasoperações não seja praticável? Nada mais fácil quesimbolizar e interpretar, e nada mais arbitrário queuma motivação. Uma estratégia interpretativa nuncaprocura, portanto, abrir caminhos que, sem ela, o espí­rito não poderia praticar, mas procura sempre e ape­nas impor restrições, valorizar certas associações se­mânticas excluindo outras. A estratégia interpretativaprocede por subtracção e não por adição ou, parafalar como Leonardo, per via di levare e não per viadi porre: seja por meio dos índices obrigatórios quedesencadeiam, sozinhos, a interpretação, ou pelas coac­ções que pesam quer sobre os segmentos interpreta­IÍÍvos, quer sobre a motivação, quer sobre a naturezado novo sentido, etc.

Por esta razão, encontraremos, tanto no seio datradição cristã como não importa em que tipo deexegese, defensores do sentido único e literal, fan­farrões da polivalência simbólica. Temos disso umtestemunho antigo em Tertuliano, que se opõe à inter­pretação alegórica em nome do princípio de identi­dade: «Qua'l é, pergunto eu, a razão dessa transposiçãodo sentido? (... ) Porque tu não podes estabelecer [parauma coisa] duas naturezas, corporal e incorpórea, emconjunto» {Ad. nationes, II, 12). Ou ainda, em Lac­tance:

Tudo o que efectivamente se realizou, tudo o queé estabelecido por um testemunho claro e mate­rial, não pode ser convertido em alegoria; o quefoi feito não pode não ter sido feito, nem a coisafeita pode renegar a sua natureza para assumiruma natureza que lhe é estranha. (...) O que acon­teceu não pode ser, como disse, outra coisa senãoo que aconteceu, nem o que se fixou de uma vezpara sempre na sua natureza própria, nos carac-

teres que só a ele pertencem, pode evadir-se parauma essência estranha (Ad. nati., V, 38).

Encontramos este apego ao literalismo ao longode toda a história da exegese cristã, embora não setorne dominante senão com a Reforma. «Depois de1517 e da sua ruptura definitiva com a Igreja romana,Lutero deixou de se servir da alegoria e acentuou bema necessidade 'de um único sentido simples e sólido'» ...(Grant, op. cit., p. 112). Um outro exegeta do séculoXVI, John Colet, chegava ao ponto de escrever:

Nos escritos do Novo Testamento, excepto nospontos em que agradou ao Senhor e aos seusApóstolos falarem por parábolas - como Cristofaz muitas vezes nos Evangelhos e São João, deforma sistemática, no Apocalipse - , todo o restodo texto, seja quando o Senhor ensina aberta­mente aos seus discípulos seja quando os Após­tolos instruem as suas Igrejas, tem como signifi­cação o sentido que nos aparece à primeira vista,e nunca se diz uma coisa para significar outradiferente, e a coisa significada é exactamente amesma que foi dita, e o sentido é absolutamenteliteral. .. (ibid., p. 122).

De facto, esta afirmação não corta inteiramentecom a atitude tradicional!, pois se restringe ao NovoTestamento, o qual nunca foi o campo favorito daexegese alegórica.

o inesgotável sentido da Escritura

Temos de observar em seguida que, no próprioseio da tradição cristã, existem numerosas excepçõesa esta regra. Um São João da Cruz, por exemplo,afirmará o carácter sempre inesgotável do texto bí­blico: «Os santos doutores, apesar de todos os seuscomentários e de todos aqueles que lhes poderiamacrescentar, nunca interpretaram a fundo a Escritura:p~lavras humanas não podem englobar aquilo que oEspírito de Deus revela» (Cant. espir., prefácio). O ar­gumento, aqui, é tirado da natureza inefável da reve­lação divina; com um espírito completamente dife­rente, esse argumento será tirado da combinatóriaaritmética, na obra de um São Boaventura. 117

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A Escritura tem, naturalmente, os seus quatrosentidos, mas cada um desses quatro sentidostem, do mesmo modo, como o Livro de Ezequiel,as suas quatro faces, entre as quais se reparteo conteúdo variado dos seus objectos, de tal ma­neira que se chega a contar ao todo dezasseisespécies de sentidos. C... ) Por outro lado, se di­'Vidirmos em quatro tempos toda a história dasaliVação (Natureza, Lei, Profetas, Evangelho),observamos em cada um desses tempos três mis­térios, o que soma doze mistérios es'senciais, cor­respondendo às dozes árvores do paraíso. Emcada um desses doze luminosos lares de inteli­gência, todos os astros se reflectem, o que per­mite ainda que se multiplique doze por doze ese obtenha assim o número 144, que é o númeroda Jerusalém c~leste... (Lubac, op. cit., t. IV,p. 268).

Superioridade do espiritual

Mas não são tais excepções, místicas ou escolás­ticas, ao princípio do literalismo ,que realmente im­portam. De forma muito mais fundamental, esse prin­cíuio é combatido e finalmente dominado uor umoutro, segundo o qual o espírito é superior à carne.Por transposicão, deve afirmar-se a existência de umsentido espiritual para se poder impor a sua superio­ridade em relação ao sentido carnal ou literaL Nãoexiste pensamento mais renetido na hermenêuticacristã aue a frase de São Paulo: «A letra mata, o espÍ­rito vivifica.» Nesse sentido, pode dizer-se aue o cris­tianismo tem uma necessidae constitutiva do métodode internretacão alegórica: se não existisse ailegoria,não existia Deus (pois seria impossível afirmar a exis­tência de uma realidade espiritual inacessível aos senotidos e, portanto e sempre, obra de interpretação).

Nada revela melhor a superioridade concedida aosentido espiritual em relação ao sentido literal do queas comparações que os caracterizam. «Jesus transformaa água da letra em vinho do espírito» (Lubac, op. cit.,t. I, p. 344). Richard de Saint-Victor compara «a his­tória à madeira e a alegoria ou sentido místico aooiro» (ibid., t. II, p. 512). Segundo Santo Agostinho, aEscritura é como «uma charrua de que podemos dizerque toda ela lavra o solo, ainda que, falando com pro­priedade, só o ferro é que penetre o campo» (ibid.,

t. IV, p. 97); e este «ferro» corresponde ao sentidoespiritual.

Mais frequentemente, estas comparações não se li­mitam a afirmar a superioridade do espírito sobre aletra, mas também procuram baseá-la na oposição en­tre interior e exterior. A alegoria é o leite que é neces­sário mungir da letra (ibid., t. IV, p. 183). A exegese«descobre o espírito como o Sol sob a nuvem negra,como a medula sob a casca das árvores, como o grãosob a palha» (ibid., t. I, p. 308). Ou ainda o mel nacera, a noz na casca Cibid., t. II, p. 603). «Para SãoCirilo de Alexandria, a Escritura era um jardim cheiode flores delicadas: a essas flores do sentido espiritualera necessário o invólucro protector das folhas» (ibid.,t. IV, p. 97). Não estamos longe da metáfora do ves­tuário e do corpo que domina as teorias da própriametáfora ao longo de toda a história ocidental 1. O senotido literal é um invólucro: o sentido espiritual é acoisa propriamente dita.

Para resumir: apesar de uma tendência - naturalem toda a estratégia - para a restrição, a egexesepatrística deve postular a existência de um sentidoalém do sentido literal. Mas este ultrapassar do lítemlé imediatamente recuperado e canalizado na doutrinados quatro sentidos que, no fundo, se reduz, como jádizia São Tomás, a uma afirmação da superioridadedo sentido espiritual. If, o que exprime, usando a líto­tes, uma fórmula de H. de Lubac, evocando «a poliva­lência orientada do símbolo» (t. IV, p. 180) na herme­nêutica cristã.

1 Cf. Teorias do Símbolo, Edições 70, Lisboa, 1979, cap. II. 119

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UMA INTERPRETAÇÃO OPERACIONAL:A EXEGESE FILOLóGICA

o meu segundo exemplo de estratégia interpreta­tiva está simultaneamente próximo e afastado do pre­cedente. Afastado, porque se trata de uma ciência res­peitáv~l e moderna, a filologia, e não de um ponto devista exegético que hoje parece dever-se inteiramentea uma ideologia limitada no tempo. Mas também pró­ximo, mesmo que não fosse senão materialmente, poisvamos poder procurar apreender esta nova estratégiano momento em que ela vem ainda influenciar, e demaneira decisiva, a interpretação da Bíblia. Com efeito,observaremos os princípios da nova ciência filológicanum autor revolucionário em matéria de exegese bí­blica: Espinosa, no Tratado Teológico-Político 1.

A ALTERNATIVA: FÉ OU RAZÃO

o novo método de interpretação preconizado porEspinosa baseia-se numa separação entre fé e razão,que ele qualifica de «objectivo principal para quetende qualquer obra» (XIV, p. 240). Mais explicita­mente, ~le pretende provar que

a Escritura deixa a razão inteiramente livre e nadatem de comum com a filosofia, mas tanto umacomo outra se mantêm devido a uma força pró­pria a cada uma delas. (...) Estes dois conheci-

1 Traité théologique-politique, Paris, Garnier-Flammarion, 1965,trad. eh. Ap'Putin. A primeira 'edição data de 1670. Indico com letraromana o capítulo e com algarismos árabes a páginas da edição 121francesa.

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mentos nada têm em comum, mas podem, um eoutro, ocupar o seu domínio próprio sem se com­baterem de maneira alguma e sem que nenhumadas duas tenha de ser serva da outra (Prefácio,pp. 25-26).

Como esta separação se tornou a base do norvométodo, devo fazer dela uma breve apresentação.

Dois tipos de discurso

A argumentação de Espinosa desenrvolve-se poucoImais ou menos como se segue. Pode ensinar-se umaideia de duas maneiras: dirigindo-nos unicamente àrazão, ou apelando para a experiência. Mas a primeiraforma só é praticável quando nos dirigimos a pessoasaltamente cultas e de espírito claro. Estas são raras;logo, se temos de nos dirigir à multidão, é preferívelrecorrer à experiência (V, pp. 109-110). Ora, a Escrituradirige-se, justamente, a toda a gente e «todo o seuconteúdo foi adaptado à compreensão e às opiniõespreconcebidas do vulgo» (XV, p. 249). Mas em queconsiste esse recurso à «experiência»? É que a Escri­tura expõe a doutrina sob a forma de narrativa e nãode definições e deduções. «A Escritura estabelece estesensinamentos apenas pela experiência, quero dizer, pormeio das histórias que conta» (V, p. 110).

Existem, portanto, duas espécies de discurso, quediferem simultaneamente na sua estrutura (um é de­dutivo, o outro narratirvo) e na sua função: um servepara dar a conhecer a verdade. o outro para agir (jáque a primeira função dessas histórias não pode sertransmitir a verdade: elas fazem-no de forma indirectae imprecisa). Quanto à Escritura, é construída apenascom esse segundo disourso; de aí o seu conteúdo no­cional ser fraco, mas grande a sua força de persuasão.«De tudo isto resulta que a doutrina da Escritura nãoé uma filosofia, não contém altas especulações. masapenas verdades muito simples e que facilmente sãopercebidas pelo espírito mais preguiçoso» (XIII, p.230). Mais um passo e dir-se-ia que um dos discursosnão sai dos limites de uma função representativa, aopasso que o outro (o da Bíblia) se apoia na acçãoque exerce:

Portanto, considera-se que o vulgo conhece ape­nas as histórias que mais podem comover as al-

mas e dispô~las para a obediência e devoção (V,p. 111). O objecto da Escritura não foi ensinaras ciências; porque dela podemos facilmente con­cluir que dos homens exige somente obediência, eapenas condena a insubmissão e não a ignorância(XIII, p. 230).

Um dos discursos relaciona·se com o par ignorância­-conhecimento, o outro com a díade submissão-insub­missão.

Já talvez tenham notado o deslizar graças ao qualEspinosa chega a esta conclusão. Para estabelecer asua distinção inicial, admitira que ambos os discursospodiam servir para transmitir a verdae, mas que umconvinha apenas aos espíritos cultos, ao passo que ooutro era bom para os incultos. Porém, agora sóadmite que um dos discursos possa transmitir a ver­dae, reservando o outro para a acção sobre o destina­tário, pretextando que não se poderia inculcar a ciên­cia nos incultos. Tratar-se-á de dois modos de formu­lação da verdade, ou da oposição entre verdade e fé?Talvez seia a prudência de Espinosa que o impeça deassumir de uma ponta à outra a segunda interpretaçãoda sua dicotomia. No entanto, se a aceitarmos. aperce­bemo-nos de que nela se encontram elaboradas duasséries homogéneas e que a sua articulação está longeda do nosso discurso de hoje: de um lado, a verdade,o conhecimento, a razão, a fBosofia, as ciências; dooutro, a fé, a acção sobre o destinatário e, como agorase diz, a ideologia. Esses dois discursos recebem, decerto modo, definições formais: é científico o discursoem que a função representativa domina a função «im­pressiva» (se assim podemos chamar à que se liga como destinatário); inversamente, é ideológico aquele emque a função «impressiva» é que é a dominante.

Os perigos da confusão

Para Espinosa, o que conta é a separação dos doisdomínios e a sua aparente simetria:

Consideramos solidamente estabelecido que nema Teologia deve ser a serva da Razão, nem a Ra­zão a da Teologia, mas que tanto uma como ou­tra têm o seu reino próprio: a Razão, comodissemos, o da verdae e da sabedoria; a Teologia,o da Piedade e da obediência (XV, p. 254). 123

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Passa-se directamente deste ponto para a interpre­tação das Escrituras, e deduz-se um primeiro princípioque é apenas uma aplkação da dicotomia de base: jánão se deve submeter a Escritura à razão, nem, inver­samente, submeter a razão à Escritura.

Um personagem histórico ilustra cada um dos peri­gos simétricos.

O que submetia a Razão à Escritura chamava-seAlfakar (ou Alpakhar) e foi um dos adversários deMaimónides. «Sustenta ele que a Razão devia incli­nar-se diante da Escritura e sedhe inteiramente sub­missa» (XV, p. 250). Mais exactamente, se uma passa­gem da Bíblia contradiz uma outra, mais clara, issobasta para decidir que a primeira é metafórica e que,portanto, deve ser submetida a uma interpretação,mesmo que a Razão não aperceba qu~lquer índicedessa metaforicidade. Assim acontece com as passagensem que se fala de Deus no plural: «Por esta razão, istoé, não porque essa pluralidade contradiga a Razão,mas porque a Escritura afirma directamente a unici­d~de, tem cabimento entender essas passagens comometáJforas» (ibid.). O que Espinosa censura a Alfakarnão é o facto de ele confrontar as duas passagens daBíblia, mas que, uma vez terminada a sua leitura, serecuse a servir-se da sua razão para formular iuízos;que, mesmo num domínio que depende da Razão e jánão da Escritura, se continue a manter o lugar domi­nante desta. «Sem dúvida é verdade que se deve exnli­car a Escritura com a Escritura, pois se trabalhaduramente para descobrir o sentido dos textos e o pen­samento dos Profetas, mas logo que, finalmente, encon­trámos o verdadeiro sentido, devemos usar necessaria­mente o .iuízo e a Razão para dar a este pensamentoo nosso assentimento» (XV, p. 251).

Os dois domínios devem conservar-se rigorosa­mente separados. Podemos perguntar se o próprio Es­pinosa consegue isso perfeitamente, ele que escreve:«Assim acontece com um grande número de afiJ1ma­ções conformes com as opiniões dos Profetas e dovulgo, e que só a Razão e a FHosofia, mas nunca aEscritura, dão a conhecer a sua falsidade; no entanto,todas elas se deveriam supor verdadeiras segundo aopinião deste autor, iá que nesta matéria não se deveconsultar a Razão» (XV, p. 253). O próprio Espinosanão exagera um pouco a sua «consulta à Razão»? Masacontece que ele mudou de domínio: a questão dosentido de um texto deve ser estritamente separada dada sua verdade (cOimo veremos); esta última compete

apenas à Razão, por conseguinte não há ? _direito denos servirmos dela para estabelecer o sentIdo. Alfakarestabelecia uma falsidade, deduzia dela a existência deuma metáfora e transformava o sentido do enunciadoexaminado; é nesta transição que reside o seu erro.

O representante do perigo oposto é o próprio Mai­mónides. «Segundo ele... não podemos saber qual é overdadeiro sentido de nenhuma passagem na medidaem que sabemos que ela nada contém - tal COimo nósa interpretamos - que esteja de acordo com a Razãoou que a contradiga. Se acontecer que ela, tomada noseu senüdo literal, contradiga a Razão, por mais olaraque pareça, deve ser interpretada de outra forma»(VII, p. 154). Maimónides procede, portanto, exacta­mente como fazia a exegese patrística; a única dife­rença é que em lugar da «doutrina cristã» encontra­mos «a Razão»; a «inverosimilhança doutrinal» é, tantonum caso como noutro, índice de alegoria e, portanto,o que desencadeia a interpretação. O pressuposto in­formulado desta prática é que as Escrituras não po­dem não dizer a verdade.

As objecções de Espinosa são paralelas às quedirigia a Alfakar, reduzindo-se de facto os dois errosa um só, existindo a confusão daquilo que deveriaestar separ~do; mas a sua argumentação é mais por­menorizada. Ao submeter a Escritura à Razão, Maimó­nides admite implicitamente que o objecto da Escri­tura é a verdade e, por conseguinte, que ela se dirigeapenas aos espíritos cultos. «Se a maneira de ver deMaimónides era a verdadeira, o vulgo, que frequente­mente ignora as demonstrações ou é incapaz de asexaminar, não deveria poder admitir nada que se refe­risse à Escritura a não ser sob a autoridade ou pelotestemunho dos homens que filosofam» (VII, p. 155).Ora, todos estarão de acordo para dizer que a Escri­tura se dirige ao comum e que, por consequência, es­capa ao controlo da Razão. «O que não se pode de­monstrar, e é a maior parte da Escritura, não poderáchegar a ser conhecido pela Razão» (VII, pp. 156-157).Não será então absurdo arrastar a Razão para um ter­reno que não é o seu?

o sentido, não a verdade

A distinção exegética em que estas separações sebaseiam é a do sentido e da verdade; e Espinosa for­mula-a com muita clareza. 125

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Ocupamo-nos aqui do sentido dos textos e não dasua verdade. Devemos mesmo, antes de mais, to­mar cuidado quando procuramos o sentido daEscritura, para não termos o espírito preocupadocom raciocmios baseados em princípios do conhe­cimento natural (para não falar dos preconcei­tos); para que não se confunda o sentido de umdiscurso com a verdade das coisas, deveremos de­dicar-nos a procurar o sentido apoiando-nos uni­camente no uso da .língua ou em raciocínios quetenham o seu fundamento apenas na Escritura{VII, pp. 140-141).

o objectivo da interpretação é o único sentido dostextos, e ela deve atingi-lo sem ° auxílio de uma qual­quer doutrina, verdadeira ou falsa.

O que Espinosa exige é uma interpretação sem pres­supostos, uma interpretação que apenas seja dirigidapelo texto analisado, e não por preconceitos; o que eleexige é, pois, uma interpretação científica e não ideo­lógica. O seu «método não exige outra luz a não ser aNatural. A Natureza e a virtude desta luz consistem nofacto de ela deduzir e concluir, por via de legítimaconsequência, as coisas obscuras das que são conhe­cidas ou das que são dadas como conhecidas; o nossométodo nada mais exige» (VII, p. 153). A antiga her­menêutica postulava a existência de duas espécies detextos: aqueles em que o sentido coincide necessaria­mente com a verdade (ao lado dos textos sagrados po­demos citar Homero) e aqueles que têm um sentidoque não é forçosamente verdadeiro. Toda a atençãodos teóricos se dirigiu à primeira classe de textos, asegunda apenas suscitou técnicas práticas que nuncase transformaram numa doutrina. A inovação de Espi­nosa é, aparentemente, mínima: ele vai abolir a sepa­ração entre essas duas classes e declara que não exis­tem textos em que o sentido seja necessariamenteverdadeiro. Este deslocamento da fronteira tem, noentanto, consequências capitais: não só se trata aBíblia como qualquer outro texto, mas também setoma consciência das técnicas tradicionalmente utili­zadas na interpretação dos textos não sagrados, e con­sideram-se como um programa, assumindo as suasimplicações ideológicas. Cento e cinquenta anos maistarde, um teórico do romantismo, A. M. Schlegel, veri­ficará: «É permitido aplicar à Génese as mesmas re-

gras de interpretação que se adoptaram para tantosoutros monumentos de uma Antiguidade remota 1.»

Só nos resta perguntar se a separação é sempre tãofácil, como parece admitir Espinosa, entre a razão uni­versal reduzida a uma pura lógica e as razões parti­culares que ameaçam macular com ideologia a inter­pretação; entre a razão como método e a razão comoconteúdo: será sempre tão fácil conservar uma fazendodesaparecer a outra?

o PROJECTO FILOLÓGICO: A CIENCIA DOS SENTIDOS

O ponto de partida da interpretação, tal como Es­pinosa a concebe, é uma exacta inversão do princípiofundamental da exegese patrística. Para esta última, oresultado da interpretação era antecipadamente dado(era o texto da doutrina cristã) e a única liberdadeconsistia no caminho que se percorresse entre essesdois pontos fixos: o sentido dado e o novo sentido.Espinosa, animado com a separação que fizera entrerazão e fé e, logo, entre verdade (ainda que religiosa)e sentido (dos livros santos), começa por denunciaresta divisão:

A maioria [dos intérpretes] parte do princípio(para a entender claramente e lhe adivinhar osentido) que a Escritura é sempre verdadeira edivina, mas isso deveria ser a conolusão de umexame severo que nela não deixasse subsistirqualquer ponto obscuro; o que o seu estudo nosdemonstraria muito melhor sem a ajuda dequalquer ficção humana, eles postulam-no de iní­cio como regra de interpretação (Prefácio, p. 24).

A crítica de Espinosa, tanto aqui como anterior­mente, é de estrutura e não de conteúdo: trata-se demudar, não a natureza da verdade mas o seu lugar;longe de poder servir como princípio condutor da in­terpretação, o sentido novo deve ser o resultado dessainterpretação; não se pode procurar um objecto com aajuda desse mesmo objecto. O estabelecimento do sen­tido de um texto deve realizar-se independentementede qualquer referência à verdade desse texto.

1 «De l'étymologie en général», (Euvres écrites en trançais,It. II, Leipzig, 1846, p. 120. 127

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Mesmo o sentido literal está em contradição coma ,luz natural, se ele não se opuser nitidamenteaos princípios e aos dados fundamentais tiradosda história crítica da Escritura, d~emos man­tê-lo; pelo contrário, se essas palavras contra­disserem, pela sua interpretação literal, os prin­cipios tirados da Escritura, mesmo que elas este­jam completamente de acordo com a Razão de­verá admitir-se uma outra interpretação (q~erodizer uma interpretação metafórica) (VII, p. 141).

Novas coacções

Esta liberdade em relação ao sentido a encontrarserá compensada por coacções destinadas a recairpr~cisamente, sobre esta parte do trabalho interpre~tatIvo que a exegese patrística deixava livre: isto é,sobre o percurso entre os dois sentidos, sobre as ope­rações que permitem passar de um para o outro.

Para aJbreviar, resumirei este método dizendo queele em nada difere daquele que se segue na inter­pretação da Natureza, mas está sempre de acordocom ele. Com efeito, do mesmo modo que o Mé­todo na interpretação da Natureza consiste essen­cia'lmente em considerar, primeiro, a Natureza noseu aspecto histórico e, depois de assim obterdados certos, deles concluir as definições das coi­sas naturais, também para interpretar a Escri­tura é necessário ter dela um exacto conheci­mento histórico e, uma vez em posse desse co­nhecimento, isto é, de dados e de princípioscertos, poder concluir-se deles, por via de legí­tima consequência, o pensamento dos autores daEscritura (VII, pp. 138-139).

A ciência dos textos assimilar-se-á, pelo seu métodoà ciência natural; tanto uma como outra 'procederão:na ausência de qualquer ideia preconcebida, à aplica­ção de operações rigorosas de verificação e de dedu­ção, chegando-se assim à única verdade que interessao intérprete - a do sentido.

Gramaticais

Mais precisamente, a busca obedecerá a coacçõesde três espécies. «Em primeiro lugar ela deve com-

preender a natureza e as propriedades da língua emque foram escritos os livros da Escritura e que os seusautores estavam habituados a falar» (VII, p. 140).Portanto, a primeira exigência é de tipo linguístico:para compreender um texto é preciso conhecer a lín­gua da época. Nenhuma contradição com a «verdade»isto é, com? dogma, nos autorizará a atribuir à pala~vra um sentido que a língua não tivesse testemunhadonoutros textos. «Se o uso da língua não permitisseque se lhe atribuísse um outro sentido, não haveriaqualquer meio de interpretar a frase de outra forma»(VII, p. 141). Isto implica que as palavras têm emprincípio, Ul~ único sentido, ou que, pelo menos, todosos seus sentidos pertencem ao léxico; quer dizer nãohá possibilidade de produzir metáforas, de utiliz~r aspalavras num sentido que não é o seu.

Estruturais

A segunda eXIgencia recai sobre a coerência dotexto. O princípio de que Espinosa parte é exactamenteaquele que reconhecemos estar na base da exegese pa­trística: um texto não se pode contradizer, todas assuas partes afirmaJm a mesma coisa. Espinosa, por seuturno, encara este estudo como a constituição de umasérie de classes temáticas (paradigmáticas) em que sãoreunidos os ~eg.:nentos .semelhantes. «É preciso agru­par as enunClaçoes contrdas em cada livro e reduzi-lasa um certo número de chaves principais, de modo areencontrar facirlmente todas as que se relacionam como mesmo objecto; anotar em seguida todas as que sãoambiguas ou obscuras ou estão em contradição umascom as outras» (VII, p. 140). Uma vez estaJbelecidas asverdades principais, descer-se-á aos pormenores, dei­xando-nos guiar pelo princípio de que o texto continuasempre coerente consigo próprio. O índice de sentidosegundo, motivador da interpretação, será, por conse­quência, não a. inverosimilhança doutrinal, como naegexese patrístIca, mas a contradição in praesentia.«Para saber se Moisés acreditou verdadeiramente ounão que Deus era um fogo, não se deverá tirar a con­clusão do facto de ,esta opinião concordar com a Razãoou a contradizer, mas sim e apenas das outras pala­vras de Moisés» (VII, p. 141). Esta exigência de coerên­cia afirma, mais uma vez, o princípio acima enunciado:

Se se estabeleceu o sentido de uma frase, «na inter­pretação de todas as outras frases, mesmo que elas se

9

129

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conciliem com a Razão, deveríamos ter sempre emconta o sentido da primeira» (ibid.).

Históricas

o terceiro grupo de coacções recai sobre o conhe­cimento do contexto histórico.

Em terceiro lugar, este inquérito histórico deveacrescentar ao assunto dos livros dos Profetastodas as circunstâncias particulares cuja recor­dação nos foi transmitida: interpreto a vida e oscostumes do autor de cada livro; qual o objectivoque ele se propunha, em que ocasião, em quetempo, para quem e, finalmente, em que línguaele escreveu. [O inquérito] deve acrescentar tam­bém os bons ou os maus destinos de cada livro:como foi acolhido na origem, em que mãos caiu,quantas lições dHerentes se conhecem do seutexto, que homens decidiram admiti-lo no cânonee, enfim, como foi que todos os livros reconhe­cidos unmümemente como canónicos foram reu­nidos num corpo (VII, p. 142).

As «circunstâncias», ou evidência externa quanto aosentido de um livro, parecem repetir-se aqui sob trêschaves: o objecto livro, o autor e o leitor. O destinodo livro decidirá do grau de segurança que podemoster quanto ao estabelecimento do texto. Se é precisoconhecer a vida e os costumes do autor é porque existeum determinismo que vai do homem à obra, e o conhe­cimento de um facilita o conhecimento do outro. «Po­demos explicar mais facilmente as palavras de umhomem quando conhecemos o seu génio próprio e asua compleição espiritual» (VII, p. 142). Também éimportante o conhecimento que se tem do leitor, poisdecide o género do <livro, escolhido em função da per­gunta: para quem se escreve?, e proporciona assimmais uma chave que ajudará a decifrá-lo.

A pesquisa das circunstâncias nunca se torna umobjectivo em si própria; está submetida a um objectivosuperior que é a compreensão do texto, o estabeleci­mento do seu sentido. Não é o texto que serve paraconhecermos o seu autor, mas o conhecimento do au­tor que facilita a compreensão do texto. Este conheci­mento é indispensável no caso de a intenção do autorpoder mudar por completo o sentido do texto; é o que

se passa num escrito irónico ou que trate do sobre­natural. «Acontece frequentemente lermos históriasmuito semelhantes em livros diferentes e deles fazer­mos juízos muito diversos, em consequência da diver­sidade de opiniões que temos sobre os autores.» O Ro­lando de Ariosto, o Perseu de Ovídio e o Sansão daBíblia massacram, sozinhos, multidões de adversários'Rolando e Elias voam pelos ares: mas os seus acto~adquirem significações diferentes pelo facto de a inten­ção de cada um dos autores, distinto dos outros nosobrigar a uma interpretação particular; a intençã~ age?omo uma indicação da tonalidade em que se devemterpretar um novo trecho musical. «Só nos conven­cemos disso por causa da opinião que temos sobre osautores» (VII, p. 151).

o verdadeiro sentido

. Se.gundo Espinosa, todas estas técnicas -linguís­tlca, mtratextual (ou estrutural) e histórica - são ne­cessárias para atingir o ambicioso objectivo da inter­pretação: o estabelecimento do sentido verdadeiro (oque, como vimos, é completamente diferente de: con­forme com a verdade). Ê certo que ele toma algumasprecauções: o sentido de uma passagem pode ser in­decidível se trata de coisas «não perceptíveis» que 1

«ultrapassam os limites da verosimilhança humana»(VII, p. 152, e notas marginais, p. 341) e, portantoimpossíveis de controlar pela razão; ou se as palavra~forem expressamente utÍ'lizadas para dizer uma coisadifer,ente da que significam habitualmente (<<isto pode­mos nós conjecturar e não deduzi-lo com segurançados dados fundamentais da Escritura» (VII, p. 145).

Mas, regra geral- é a recompensa que se temdepois de tantas coacções, por oposição ao deixar­-andar operacional da exegese patrística-, o sentidoque a interpretação produz é o único e o verdadeiro:«Expusemos assim uma maneira de interpretar a Escri­tura e demonstrámos ao mesmo tempo que ela é aúnica via -e uma via segura - para chegarmos a co­nhecer o seu verdadeiro sentido» (VII, pp. 145-146).

SOBRE A EVOLUÇÃO DA FILOLOGIA

O nome de filologia liga-se habitualmente a actirvi-dades semelhantes, pelo seu projecto, à de Espinosa, 131

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mas que só mais tarde se institucionalizaram. A con­tinuidade dos dois processos é, no entanto, manifestae explica o meu uso anacrónico do termo, na condiçãode se entender por «filologia» uma abreviatura deexegese (ou interpretação) filológica. Continuidade quese estabelece talvez por transmissão real (sendo inter­mediário Richard Simon), mas também e sobretudopor uma analogia profunda das posições de princípios.Continuidade não quer dizer identidade. No entanto, ométodo filológico evoluiu ao mesmo tempo que os seuspressupostos. É o que poderemos perceber se exami­narmos rapida1mente alguns textos representativos doperíodo que conquistou a filologia (isto é, o séculoXIX) 1.

Como no tempo de Espinosa, a filologia define-sepela recusa do princípio em que se baseia a exegesepatrística - a saber: o sentido é dado antecipada­mente - e por coacções que só recaem sobre as ope­rações. Tendo a polémica levantada por Espinosasaído vitoriosa, o debate perdeu muito da sua actuali­dade. No entanto, Boeckh acha que ainda é necessáriodizer:

É completamente a-histórico prescrever, na inter­pretação da Sagrada Escritura, que tudo deveser explicado segundo a analogia fidei et doctri­nae; aqui, o meio de comparação que deve guiara explicação não está firmemente estabelecido,pois a doutrina religiosa nascida da explicaçãoda Escritura tomou formas muito diferentes.A interpretação histórica deve unicamente esta­belecer o que querem diz'er as obras de lingua-

I Cito os seguintes textos: F. A. Wolf, «Darstellung der Alte·ru:mwiss,enchaft nach Begriff, Umfang, Aweck und W,ert», in F. A.Wolf e ?h. Buttmann (Hrsg.), Museum der Altertumswissenchaft,Bd. 1. Leipzig, 1807; F. A. Wolf, Vorlesungen über die Altertumswis­senchaft, Bd. 1. Leipzig, 1831; F. Ast, Grundriss der Philologie,Landshut, 1808; F. Ast, Grundlinien der Grammatik, Hermeneutikund Kritik, Landshut, 1808; A. W. Boeckh, Encyclopiidie und Me­thodologie der Philologischen Wissenschaften, Leipzig, 2.·, 1886; G.Lanson, Méthodes de l'histoire littéraire, 1925; G. Lanson, Essaisde méthode, de critique et d'histoire littéraire, 1965 (<<La méthodede l'histoire littéraire»). A história de J. Wach, Das Verstehen t. I1926, !1ão é muito .útil quando se po?e !er acesso aos próprios textos:Geschlchte der Phllologle (1921), LeipZig, 1959, de Wilamowitz-Moe­l1endorff é uma história do conhecimento da Antiguidade e não domé~odo filológico. ~m contrapartida, ~ reoente Einführung in die lite­ransche Hermeneut1k de Peter Szondl (Frandort, 1975) é, em muitosaspectos, paralela à pesquisa aqui levada a efeito.

gem, importando pouco que seja verdadeiro oufalso (pp. 120-121).

o sentido e não a verdade: eis o que está no espí­rito de Espinosa.

o sentido único

Ufana c.om esta renúncia ao sentido, ditada poruma doutnna de referência, a filologia reivindica aobje~tividade do sentido que estabelece; já não é osentIdo p~la verdade, mas a verdade pelo sentido.Desde Esplnosa, esta reivindicação nunca deixou de seamplificar; mas não mudou de natureza. Wolf revol­ta-se .'explicitamente contra a tradição religiosa quev~lonza uma certa pluralidade dos sentidos, a fecun­dttas sensus (parece ter em vista opiniões como as deSão João da Cruz), e afirma:

Duas explicações que diriam respeito à mesmapassagem, ou dois sensus, nunca são possíveis.Cada frase, cada sequência de frases tem apenasum sentido, mesmo que possamos discutir essesentido. Ele pode ser incerto; apesar disso, paraaquele que pesquisa, apenas existe um único sen­tido (...). Pressupõe-se um certo sentido paratodo e qualquer discurso (ibid., p. 295).

Cem anos mais tarde, ao transpor o método filo­lógico para a história das lit'eraturas modernas (elenão é, por certo, o primeiro a fazê-lo), Lanson voltaa encontrar pontos semelhantes: «Existe em todas asobras de literatura, e mesmo na poesia, um sentidopermanente e comum que todos os leitores devem sercapazes de atingir, e que, em primeiro lugar, eles de­vem propor-se atingir. ( ...) Existe uma verdade aces­shrel no estudo literário e isto é o que a torna nobree sã» (Méthodes, pp. 41-42, 43).

Se os textos e as frases têm apenas um sentido osentido das palavras também tenderá para a unicidade.Assim, diz Ast: «Cada palavra tem uma significaçãooriginal de onde provêm as outras ... » (Grundriss, p.14). Boeckh: «De modo natural, um único sentido estána base de qualquer forma linguística e é dele que sedevem deduzir todas as suas diferentes significacôes»(p. 94). o 133

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o verdadeiro sentido

Se apenas existe um sentido, deve ser possível esta­belecê-lo com segurança, e a diferença entre os que fra­cassam e os que têm êxito é de tudo ou nada. De aíuma certa ênfase, sensível sobretudo em Lanson, nãosó seguro de ter acesso à verdade, mas também deque os outros a não possuem. Numa página escrita énecessário encontrar «o que lá está, tudo o que lá estáe nada mais do que aquilo que lá está» (Méthodes,p. 40). Acumulando certezas, a história da literaturaesgota progressivamente o seu campo de estudo:

É preciso ter seguido muito pouco o movimentodos estudos literários nos últimos anos para nãonotar que o campo das disputas se restringe, queo domínio da ciência feita e do conhecimentoincontestado se vai estendendo e deixa assim me­nos liberdade - a menos que eles se escapempelo caminho da ignorância - aos jogos dos dile­tantes e aos preconceitos dos fanáticos, de talmodo que podemos prever, sem ilusões, que umdia virá em que, estando de acordo sobre as defi·nições, o conteúdo e o sentido das obras, apenasse discutirá a sua bondade ou malícia, isto é, osqualificativos sentimentais (Méthodes, p. 36).

Por oposição à história da literatura, o crítico in­venta as suas interpretações - forçosamente falsas. jáque apenas existe uma verdadeira. Feito isto, ele subs­titui o pensamento do escritor pelas suas própriasdivagações. O credo dos historiadores da literaturaestá do lado oposto: «Nós queremos ser esquecidos. eQue apenas Se veja Montaigne e ~ousseau. como elesforam, tal como cada um os vera se aohcar leal epacientemente o seu espírito aos textos» (Essais, p. 47).E que não se oponha o crítico que tem ideias ao em­preiteiro..filólogo: ,Lans?n replica com. ur~a frase em­blemática: «Tambem nos queremos as IdeiaS. Mas que­remo-Ias verdadeiras» {Essais, p. 53). Teríamos vontadede dizer, perante este credo, que querer as ideias ver­dadeiras é não as querer (ou, utilizando os termos deNietzsche: «renunciar aos falsos juízos seria renunciarà própria vida, equivaleria a negar a vida»).

Esse sentido único e cientificamente garantido coin­cide com a intenção do autor. Assim, diz Wolf: «A her­menêutica é á arte de apreender um escritor; por con­sequência, os pensamentos de outrem, escritos ou

mesmo apenas oralmente expressos, são entendidosexactamente da mesma forma que ele próprio osapreendeu» (Vorlesungen, p. 271). Lanson é menos ca­tegórico neste ponto: mesmo que não exista sentidoobjectivo de um texto (suposição que ele adianta nosseus últimos escritos), nem todos os sentidos sub.iecti­vos se situam no mesmo plano: «Talvez não fosseexagero pensar que o sentido do autor é, apesar detudo, um sentido privilegiado ao qual posso dedicarespecial atenção» (Méthodes, p. 42).

A interpretação ao serviço de

Até agora, as diferenças entre Espinosa e os fi,ló­logos são apenas quantitativas; mas o próprio lugardas técnicas filológicas marca, tanto num caso comonoutro, uma transformação mais profunda. Lembremo­·nos da hierarquia estabelecida por Espinosa: o seuobjectivo primeiro, que se inscreve numa tradição deexegetas bíblicos, é o estabelecimento do sentido dotexto; para este efeito, ele utiliza técnicas auxi~iares

(rlinguísticas, estruturais e históricas). É esta hIerar­quia que será destruída na tradição posterior: o objec­tivo principal passa a ser o conhecimento histórico deuma cultura e esta poderá servir-se de auxiliares taiscomo a interpretação dos textos. De serva da herme·nêutica, a filologia passa, pouco a pouco, a ser suasenhora.

É interessante observar os diferentes estádios destasubstituição. Podemos situar o ponto de transicão emAst, cujo texto continua ambíguo a este respeito; elesubmete a interpretação das obras ao conheCImento doespírito; mas esse espírito, por sua vez, revela-se comoconstituído pelas próprias dbras!

A filologia é o estudo do mundo clássico na tota­lidade da sua vida - artística e científica, públicae privada. O centro (Mittelpunkt) deste estudo éo espírito da Antiguidade, que se reflecte, da ma­neira mais pura, nas obras dos escritores antigos,mas que também deixa as suas marcas na vidaexterior e particular dos povos clássicos; e osdois elementos deste centro são as artes, as ciên­cias e a vida exterior ou o conteúdo, e a repre­sentação e a linguagem ou a forma do mundoclássico (Grundriss, p. 1). 135

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As obras não passam de reflexos e marcas do espí­rito, mas o espírito, por sua vez, é constituído porobras: o rdlexo não é mais do que o próprio objectoque se reflecte.

Em Wolf, a ambiguidade desaparece, o obje'cto e oseu reHexo já não são idênticos.

As aquisições separadas a que nos referimos nãopassam, no fundo, de preparações tendo em vistaa aquisição presente, e todas as ideias expostasaté aqui concorrem para esse objectivo principalcomo para um centro. Mas esse objectivo não ésenão o conhecimento da própria humanidadeantiga através da observação de uma formaçãonacional organicamente desenvolvida e significa­tiva, observação que é condicionada pelo estudodos vestígios antigos (Darstellung, pp. 124-125).

O conhecimento das obras (dos «vestígios») estásubmetido ao da formação naciona-1, a qual, por suavez, é apenas um meio de conhecer a humanidadeantiga.

Também Lanson, quando formula o objectivo dahi'Stória literária, pode deixar de mencionar o facto deela visar a interpretação das obras (essa actividade'Confiada a uma técnica subalterna - a explicação dostextos).

A nossa profissão consiste ( ...) em reter, filtrar,avaliar tudo o que possa contribuir para formaruma exacta representação do género de um es­critor ou da alma de uma época (Méthodes, p. 34).A nossa função superior é conduzir os que lêema reconheoer, numa página de Montaigne, numapeça de Corneille e até num soneto de Voltaire,momentos da cultura humana europeia ou fran­cesa (Essais, p. 33).

A leitura filológica de uma páginaiá não visa esta­belecer o sentido; essa página é apenas um meio deacesso a um indivíduo, a um tempo, a um lugar. A in­terpretação dos textos é simplesmente um dos intru­mentos postos ao serviço da história das mentali­dades 1.

1 Poderemos contrapor que o objecto daquilo a que se chama afilologia foi sempre o conhecimento hist6rico global e não a inter·pretacão dos textos; e. logo, que a filologia como tal não mudou. Mastal objecção apenas deslocaria o problema: por que é que é preci­samente a filologia e não a hermenêutica que, nesta época, se cons·titui ,como disciplina aut6noma e influente?

Métodos de interpretação

As formas de pesquisa filológica também evoluí­ram. Wolf assinala, como que entre parênteses, que ainterpretação pode ser «gramatical, retórica e histó­rica» (Darstellung, p. 37); nos Vorlesungen, propõeuma outra divisão: «interpretatio grammatica, histo­rica, philosophica» Cp. 274). As espécies constantes são,portanto, a interpretação gramatical e histórica; a pri­meira estabelece o sentido das frases em si mesmas;a segunda, o dos enunciados no seu contexto (é a dife­rença entre língua e discurso); a diferença é ilustradacom o exemplo de uma carta encontrada: «Se umapessoa encontrar na rua uma carta escrita em termosmuito claros, mesmo assim não poderá compreendê-lapor 'Completo porque não conhece as circunstânciasimediatas respeitantes a quem escreveu a carta ou aquem ela é dirigida» (ibid., p. 294). A pessoa com­preenderá o sentido gramatical (o das frases) mas nãoo sentido histórico (o dos enunciados). Quanto à inter­pretação filosófica, parece ser uma concessão feita porWolf às interpretações do tipo da exegese patrística.«Depois de o sentido ter sido desenvolvido gramaticale historicamente, posso perguntar: como é que estaideia está conforme com a verdade?» (ibid., p. 275). Asduas primeiras interpertações procuram o sentido dotexto, a terceira iulga da sua veracidade; é por issoque, acrescenta Wolf, «ela é importante para os escri­tos religiosos» (ibid.).

Ast, discípulo de Schelling e de F. Schlegel, fazparte dos teóricos que pensam tudo através da tríade:isto, o contrário e a sua síntese. No que diz respeitoaos textos, estes têm uma forma (linguística) e umconteúdo ou ser; a síntese dos dois dá o espírito.«Toda a vida e toda a verdade consistem na unidadeespiritual do ser e da forma (...). Ser e forma são apluralidade em que o espírito se revela, o próprioespírito é a sua unidade» (Grundriss, p. 3). «Chamamosespírito à unidade original de qua,lquer ser» (Grundli­nien, p. 174).

Por 'Consequência, existem três - e apenas três­tipos de interpretação.

];: por isso que a compreensão dos antigos escri­tores é tripla:1. histórica, em relação ao conteúdo das suasobras, que pode ser artístico e científico, ou an­tigo - no sentido mais lato da palavra; 137

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2. gramatical, no que respeita à sua forma oulíngua, e à sua exposiçã~; ,. . ..3. espiritual, em re'laçao com o eSpIrIto mdIVI­dual do autor e de toda a Antiguidade. A terceiracompreensão, a espiritual, é a verdadeira e asuperior, aquela em que se interpenetram a his­tórica e a gramatical, para uma vida unificada.A 'compreensão histórica reconhece o que (was)o espírito formou; a gramatical, como (wie) oformou; a espiritual reconduz o que e o como(was und wie) , a matéria e a forma, à sua vidaoriginal e unificada no espírito (Grundlinien, p.177).

A interpretação espiritual não tem nada de inde­pendente, é sobretudo a unificação e, logo, a conolusãodos dois métodos precedentes.

A aproximação dos termos que aqui designam asformas da compreensão e dos que designavam, na es­tratégia patrística, os sentidos da Escritura poderialevar-nos a ver nas primeiras uma simples metamor­fose das segundas. A subdivisão em forma, conteúdoe espírito não lembrará uma das ma'is antigas formu­lações, a de Orígenes no Tratado dos Princípios I, ondeescrevia: «Do mesmo modo que o homem é composto,como ,se costuma dizer, de um corpo, de uma alma ede um espírito, o mesmo acontece com a Sagrada Es­critura, que foi dada para salvação dos homens pelagenerosidade de Deus» (IV, 2, 4)? Mas ao examinarmoso conteúdo dessas distinções num Ast, por exemplo,apercebemo-nos da grande distância que as separa. Naexegese patrística, o sentido é que era histórico; nafilologia, histórico é o método que nos conduz à des­coberta do sentido. Num caso codificam-se os resul­tados da interpretação, no outro os seus processos.

-e. em Boeckh que essas subdivisões serão estabele­cidas com o máximo de pormenores e com o maiorcuidado na sua articulação. Temos de citar aqui umlongo extracto dessa exposição:

O que é essencial para a compreensão e para asua manifestação, a exegese (Auslegung), é a cons­ciência daquilo que condiciona e determina osentido e a significação do que é comunicado outransmitido. Primeiro, encontramos aqui a signi­ficação objectiva dos meios de comunicação, isto

I Traité des principes, Paris, 1976.

é, dentro dos nossos limites, a língua. A significa­ção daquilo que é comunrcado será, primeira­mente, determinada pelo sentido das palavras emsi mesmas, e portanto não pode ser compreen­dida senão quando se compreende a totalidadedas expressões comuns. Mas quem quer que faleouescr,eva emprega a língua de maneira parti­cular e especial, modifica-a segundo a sua indi­vidualidade. Por isso, para compreendermos al­guém, devemos ter em conta a sua subjectividade.Chamamos à explicação linguística do ponto devista objectivo e gemI, gramatical, e à do pontode vista da subjectividade, individual. Entretanto,o sentido da comunicação ainda é condicionadopelas circunstâncias reais, ao longo das quais elase reproduziu e que se supõe serem conhecidaspor aquele a quem ela se destina. Para compreen­der uma comunicação, devemos imaginar-nos nolugar de quem a transmite, nas mesmas circuns­tâncias. Uma obra escrita, por exemplo, só recebea sua verdadeira significação quando posta emrelação com as ideias correntes na época em quefoi criada. Chamamos a essa explicação pelo en­volvimento (Ungebung) real, interpretação histó­rica (...). A interpretação histórica está estreita­tamente ligada com a gramática pelo facto depesquisar como o sentido das pa~avras é modifi­cado !pelas circunstâncias objectivas. Mas o as­pecto individual da comunicação também é modi­ficado pelas circunstâncias subjectivas, sob a in­fluência das quais ela se produz. Estas deter­minam a direcção e o objectivo do comunicante.Existem obiec1ivos da comunicação que são co­muns a vários suieitos; de aí aparecerem certosgéneros na Hnguàgem, os géneros do discurso.O carácter da poesia e da prosa reside, para alémdas suas formas diferentes, na direcção subjec­tiva e na finaIidade da representação. Os objecti­vos individuais dos autores particulares colo­cam-se no interior dessas distinções gerais: for­mam subdivisões dos géneros gerais. O obJectivoé a unidade superior ideal daquilo que é corou:nicado, objectivo que, postulado como norma, euma regra da arte e, como tal, aparece sempreimprimido numa forma particular, um género.A exegese da comunicação baseada neste aspectoserá, por essa razão, designada, o ~elhor po~­sível, como uma interpretação genenca; ela h- 139

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ga-se à interpretação individual da mesma ma­neira que a interpretação histórica se liga à gra­matical C, ..).A hermenêutica é:1. Compreender a partir das condições objecti­vas daquilo que é comunicado:a) a partir do sentido das próprias palavras­interpretação gramatical...b) a partir do sentido das palavras em relaçãocom as circunstâncias reais - interpretação his­tórica.2. Compreender a partir das condições subjecti­vas daquilo que é comunicado:a) a partir o próprio sujeito - interpretação in­dividual;b) a partir do sujeito em relação com as cir­cunstâncias subjectivas que residem na finalidadee na direcção - interpretação genérica CEncyclo­piidie, pp. 81-83).

As quatro formas de interpretação, segundo Boeckh,provêm de uma matriz baseada em duas oposições:entre subjectivo e objectivo, e entre «isolado» e «emrelação com um 'contexto»; poderíamos reescrevê-lasda seguinte forma:

ISOLADO EM CONTEXTO

II OBJECTIVO gramatical histórico

I SUBJECTIVO individual genérico

A interpretação filosófica de Wolf desapareceu,como se pertencesse a um princípio exegético dife­rente; em contrapartida, podemos supor que a inter­pretação genérica retoma aquilo que Wolf designavacom o termo «retórica» (embora ele seja pouco explí­cito sobre este ponto). A interpretação espiritual deAst está igualmente ausente, sem dúvida porque nãose situa no mesmo iplano que as outras, mas engloba-as.Notaram com certeza como as sugestões de Boeckhcontinuam actuais, no que respeita, por exemplo, àinterpretação dos géneros como contratos de comuni­cação, ou à inclusão do contexto histórico no sentidodo texto, etc.

Lanson concede muito menos atenção à articulaçãodas diferentes técnicas filológicas mas, apesar de tudo,

1

encontramos nos seus textos uma sugestão nesse sen­tido: «[Estabelecer-se-á] o sentido das palavras e dosdesiVios pela história da língua, gramática e sintaxehistórica. O sentido das frases, pelo esclarecimento dasrelações obscuras, das alusões históricas ou biográfi­cas» CEssais, p. 44). As interpretações gramatical e his­tórica decalcam as dimensões sintagmáticas dos seg­mentos interpretados, palavras ou frases (em vez delíngua e discurso). E igualmente a esses dois tipos deinterpretação que reenviam os processos enumeradosnesta lista um tanto irónica:

Estudo dos manuscritos, cotejo de edições, dis­cussão da autenticidade e da atribuição, crono­logia, bibliografia, biografia, pesquisa das fon­tes, delinear de influências, história das reputa­ções e dos livros, exame de catálogos e dossiers,estatísticas de versificação, listas metódicas deobservações de gramática, de gosto e de estilo,que sei eu? (Méthodes, pp. 34-35).

Para apreender, com uma visão de conjunto, aevolução das subdirvisões filológicas e, portanto, dasconcepções relacionadas com a variedade dos sentidos,podemos tentar reunir num único quadro as diferentesdivisões aqui resumidas. Isto não se fará sem certosriscos: as mesmas palavras não recobrem as mesmas

ESPINOSA WOLF AST BOECKH LANSON----

gramatical gramatioal gramatical gramatical gramatical----

estrutural----

Mstórica histórica histórica histórica histórica--------

individual

------------retórica genérica

--------espiritual

realidades, e estas podem ser, em contrapartida, evo­cadas por nomes diferentes; além disso, como vimos,as articulações entre os conceitos variam e, logo, opróprio sentido dos conceitos. No entanto arrisquemos 141

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este quadro dos métodos de interpretação, que nospermitirá uma visão sobre a evolução da filologia.

Mes~o que certas aproximações sejam forçadas,sobressai claramente uma conclusão: a forma de inter­pretação que desapareceu depois de Espinosa é aquelaa que êhamei estrutural ou intratextual, isto é, o es­tudo da coerência do texto. A única forma posteriorque se lhe pode comparar é a interpretação espiritualproposta por Ast. Mas os pouoos traços comuns nãopermitem a assimilação. Em Espinosa trata-se de umarelacionação dos diferentes segmentos do texto, de umapesquisa das contradições e das convergências. ParaAst, a interpretação espiritual é a cúpula das outrasd~Ias, combina num todo o resultado das interpreta­çoes que se levaram a cabo separadamente; não setrata, de modo algum, de uma confrontação de segmen­tos do texto com outros segmentos do texto. Ast, aquem se deve a mais popwlar das formulações do «CÍr­culo hermenêutico», não é indiferente ao problema dacoerência; mas pensa apenas na relação entre parte etodo, e não na outra, teorizada por Espinosa, entreparte e parte. Portanto, não haverá em Ast marcas dastécnicas sugeridas por Espinosa.

A evolução daquilo a que chamo filologia, de Espi­nosa até Lanson, é bastante clara: as diferentes mu­danças seguem todas no mesmo sentido. A inversãohierárquica da exegese pelas suas servas é paralela aodesaparecimento da interpretação «estrutural». A gran­de vítima desta evolução é a análise intratextual: des­tronada, primeiramente, da sua posição dominante erelegada a um Ipapel de auxiliar, a pesquisa do sentidodo texto já não beneficia de grande atenção e, aomesmo tempo, o seu encadeamento é abandonado aoempirismo (à «explicação dos textos»), sem que a teo­ria se encarregue da elaboração das suas técnicas.

Ora - e é uma das lições um tanto surpreendentesdesta digressão histórica -, nenhuma razão internaobrigava a filologia a exoluir a análise textual: a coa­bitação das diferentes técnicas em Espinosa provava-o,se isso fosse necessário. Exigências «gramaticais», «his­tóricas» e «estruturais» pertencem todas à mesma fa­mília: são coacções exercidas sobre as operações aque submetemos o texto ao procurar o seu sentido;nenhuma dessas coacções determina antecipadamente,como o fazia o prindpio da exegese patrística, a di­recção em que a própria pesquisa deve ser orientada.

UMA CRITICA DA FILOLOGIA: SCHLEIERMACHER

Não poderíamos a!bandonar este capítulo da his­tória 'sem dar testemunho de uma crítica a que foramsubmetidos vários dos princípios filológicos que acaba­mos de resumir, exactamente na época da sua pri­meira formulação: trata-se da doutrina de Schleierma­cher, que, historicamente, pertenoe ao período exami­nado (seguira os cursos de Wolf, e Boeckh assistiraaos do próprio Schleiermacher), mas que o transcendeconceptualmente e, mais do que ilustrar uma estra­tégia particular de interpretação, se inscreve entre ascontribuições para uma teoria geral da interpretaçãoe do simbólico; a isto fiz várias vezes referência aolongo da primeira parte 1.

Homogeneidade dos sentidos

Schleiermacher já critica a própria ideia de umasubdivisão da intevpretação em gramatical e histórica(ou qualquer outra subdivisão do género). Porque, se­gundo ele, na melhor das hipóteses isso são fontesdiferentes que contribuem para estabelecer um sen­tido; mas de modo algum vários sentidos diferentes.A crença na existência de sentidos separados, um lite­ral, o outro histórico e um teroeiro filosófico, é umaindesejável herança desta estratégia particular da in­terpretação que foi a exegese patrística. Quaisquer quesejam os meios para estabelecer o sentido, este con­tinua a ser sempre da mesma espécie e não há razãopara introduzir na hermenêutica categorias baseadasna diferença das técnicas utilizadas.

Por mais correcta que possa ser a coi<;3, dese­jaria, apesar de tudo, protestar contra essa ex­pressão que cria sempre a ilusão de que a inter­pretação gramatical e histórÍ'Ca são, cada umadelas, uma coisa muito particular. (oo.) [O filó­sofo-intérprete] não pode ter pensado senãonuma única coisa: que numa interpretação cor-

1 Cito os textos de Schleiermacher segundo a edição de H.IGmmerle, Hermeneutik, Heidelberga, Carl Winter, 1959. Alguns delesestão traduzidos em francês no muito útil estudo de P. Szondi,«L'Herméneutique de Schleiermacher», Poétique, I (1970), 2, pp.141-155, retomado no seu livro Poésie et poétique de l'idéalismeallemand, Paris, 1975, pp. 291-315. 143

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recta todos os elementos diferentes devem con­cordar para um só e mesmo resultado (pp. 155­156).

C? sentido não varia segundo os meios de que nosserVImos para o estabelecer. Em contrapartida, há ra­zões para introduzir uma distinção que se baseia exac­tamente na ideia que Schleiermacher tem da naturezado seu objecto. O sentido, para ele, só existe numprocesso de integração; o acto de interpretar (tomadonum sentido mais lato que aquele que dou a estetermo) consiste em poder incluir uma significaçãoparticular num conjunto mais vasto. A palarvra isoladaainda não é o objecto de interpretação (mas somentede 'Compreensão, poderíamos talvez dizer); esta começa'Com a combinação de vários elementos significantes.Ora, um fragmento significante, uma frase, podem serincluídos em quadros dif.erentes; de aí uma nova sub­divisão cuja semelhança com a dos filólogos que lhesão contemporâneos é puramente superficial!.

Interpretações gramatical e técnica

Existem dois contextos principais aos quais pode­mos integrar um enunciado particular: por consequên­cia, há dua~ formas de interpretação de cada texto,a que SchleIermacher chama gramatical e técnica (ter-

!Pelo menos no que respeita aos textos anteriormente citados.l!m Ast terá, por vezes, ~doptado uma outra perspectiva que pre­fIgura de perto a de Schlelermacher. Ao lado da sua subdivisão emforma, conteúdo e espírito, ele propõe uma outra, entre a letra osentido e o espírito do texto. O espírito continua idêntico a si próprionas suas divisões; mas a letra tanto inclui a interpretação gramaticalcomo a interpretação histórica. A hermenêutica do sentido vem, por­tanto, acr'esoentar-se às 'anteriores e não é senão «a explicação dasignificação de um segmento nas suas l'elações» (Grundlinien, p. 195).Assim, o sentido de uma mesma frase será diferente consoante osconjuntos em que a integramos: «O sentido de uma obra e dossegmentos (Stelle) particulares provém particularmente do espírito eda ,tendência do ,seu autor; só quem os apreendeu e com eles sefa~i~iarizou está em condições de compreender cada segmento noeSpIrIto do seu autor (Verfasser) e de lhes descobrir o verdadeirosentido.»

Por exemplo, ~m segmento de Platão terá na maior parte doscasos um sentIdo dlferent,e do de um outro pertenoente a Aristótelescujo sentido e palavras seriam quase semelhantes (... ). Assim, nã~só uma mesma palavra mas também segmentos particulares seme­lhantes têm um ,sentido diferent,e se as suas conexões forem dife­rentes» ibid., pp. 195-196). É es'ta mesma ideia da importância dasconexões que domina o pensamento de Schleiermacher.

mos herdados, ao que parece, da tradição exegética- o Clavis de Flacius (l567) - , mas cujo sentido é des­viado por Schleiermacher). Não seria abusivo entendera primeira como inclusão baseada numa referência àmemória colectiva (o contexto paradigmático), e a se­gunda como uma inolusão baseada numa referênciaao contexto sintagmático. No primeiro caso, o enun­ciado explica-se recorrendo ao conhecimento global da.língua; no segundo, recorrendo ao discurso de que oenunciado faz parte, quaisquer que sejam as dimensõesdesse discurso. Eis a formulação mais clara desta dico­tomia: «O ponto principal da interpretação gramaticalreside nos elementos com que se designa o objecto'Central; o ponto principal da integração técnica, nagrande continuidade (Zusammenhange), e a sua compa­ração com as leis gerais da combinação» (p. 56). Porum lado, confrontam-se elementos isolados com o in­,ventário dos elementos ,disponíveis (a língua); poroutro, estudam-se esses elementos na sua combinação(discurso) e comparam-se com outros tipos de combi­nação. De aí as duas grandes regras da inteI1pretação:

Primeiro cânone: tudo o que, num dado discurso,deve ser mais exactamente determinado, devesê-lo apenas a partir do espaço linguístico comumao autor e ao seu público de origem (...). Se­gundo cânone: o sentido de uma palavra, numadada passagem, deve ser determinado a partir dasua inserção num envolvimento (pp. 90, 95).

Esta posição fundamental arrasta várias outras. A ins­crição num paradigma é essencialmente negativa: éa escolha de um sentido excluindo todos os outros.A inscrição num sintagma, pelo contrário, é positiva:trata-se de tomar posição no interior de uma combi­nação com outros elementos co-presentes.

Há duas espécies de determinação do sentido: aexclusão a partir do contexto global e a determi­nação de posição (thetísch) a partir do contextoimediato (p. 42). A determinação a partir do[envolvimento] lato é sobretudo exclusiva, a de­terminação a partir do envolvimento imediato é,sobretudo, de posição (p. 66).

O mais amplo dos contextos discursivos não é otexto particular mas sim a obra completa de umescritor; de aí a interpretação da oposição entre gra­

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matical e técnico por esses outros termos: língua eautor. É o que enunciam muitas das formulações deSchleiermacher.

P. 56: Compreender na fala e compreender nofa'lante (Sprache, Sprechenden) (...). Esquecer oescritor na gramatical e a língua na técnica. Atéao máximo. P. 80: Como este enunciado tem umadupla relação com a totalidade da língua e como pensamento total do seu autor, logo, toda acompreensão consiste em dois momentos: com­preender o enunciado como extracto da língua ecompreendê-lo como um facto naquele que pensa.P. 113: Gramatica:lmente. O homem desapareceperante a sua actividade e só aparece como órgãoda linguagem. Tecnicamente. A linguagem desa­parece perante o seu poder determinante e sóaparece como órgão do homem ao serviço da suaindividualidade, exactamente como a personali­dade só aparece ao sepviço da linguagem.

De onde se conclui, entre outras coisas, que osescritos anónimos, como o mito, não podem ser subme­tidos a uma interpretação técnica: não se sabe ondeintegrá"los:«Não existe interpretação técnica para omito, porque ele não pode dimanar de um indivíduo... »(p. 85).

Estaríamos completamente errados se acreditásse­mos que a interpretação técnica consiste na busca dohomem através da obra. O projecto global de Schleier­macher, como o de Espinosa, é subordinar todas astécnicas à pesquisa do sentido - estabelecendo estepela sua integração num quadro superior -; por­tanto, não se trata de utilizar o texto para conhecero seu autor, mas sim de utilizar o autor para conhecero texto. Além disso, o autor é identificado, precisa­mente, como um conjunto de textos (seja qual for anatureza destes): como um contexto sintagmático.Qualquer tentativa para explicar os textos pela via doseu autor é votada ao fracasso: «Tudo o que sabemosda vida e das relações de homens tão conhecidos comoPlatão e Aristóteles explicar-nas-ia - o mínimo quefosse - por que razão um franqueou determinadocampo da filosofia e o segundo um outro?» (p. 150).De aí resulta uma rejeição do papel privilegiado conce­dido (no quadro da interpretação filológica) à intençãodo autor, ao sentido que este pretenderia dar ao seutexto; o escritor está mesmo particularmente fascinado

(e enganado) sobre certos aspectos do seu trabalhode que é, necessariamente, inconsciente - a menos que,por sua vez, de se transforme em l~itor das s1:1as pr?­prias obras (mas neste caso a sua mterpretaçao senaapenas a de um leitor).

Pp. 87-8: Já que não temos qualquer conheci­mento imediato daquilo que está dentro dele, de­vemos procurar trazer até à consciência o que,para ele seria talvez inconsciente, a menos que,reiilectindo, de tivesse sido o seu próprio leitor.P. 91: Nós [compreendemos] melhor o criador doque ele próprio, porque muitas das coisas desta,espécie são para ele inconscientes e devem tor­nar-se conscientes para nós.

Nisto, Schleiermacher segue uma ideia do seu amigoFr. Sdhlegel, que escrevia: «Criticar significa com­preender um autor melhor do que de se compreendea si próprio» (Literary Notebooks, 983).

Sentido fundamental e sentidos particulares

o sentido intencional não é privilegiado; o que nãoquer dizer que um segmento tenha uma infinidade desentidos, ou que todas as interpretações sejam igual­mente henvindas. Sobre este assunto, a posição deSchleiermacher é um tanto ambígua. Só numa pers­pectiva paradigmática é que se pode falar d.e unidadeoriginal e ,essencial da palavra. Ora, o sentldo globaldetermina-se pela intersecção das duas perspectivas,paradigmática e sintagmática; ,e é excepcional, paranão dizer impossível, que a unidade original, o sentidofundamental, coincida com o sentido que se realizanum contexto particular.

Qualquer utilização é particular, e nela a unidadeessencial mistura-se com o que depende do acaso.Portanto, a unidade essencial nunca aparececomo tal. Logo, não podemos determinar umautilização particular, em determinado caso, a par­tir de uma outra utilização particular, por causado pressuposto que isso implica CP. 61). A uni­dade da palavra é um esquema, uma visão insen­sata. Não se deve confundir determinada utili­zação com a significação. Assim como a palavra 147

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é afectada pela modificação dos contextos, a suasignificação também o é (p. 47).

Este ataque vai directamente ao encontro de umdos axiomas da exegese patrística que voltamos a en­contrar nos filólogos: o da unidade do sentido e, por­tanto, da possibilidade de explicar o sentido de

A

ur~a

ocorrência da palavra pelo de uma outra ocorrenCla.O sentido fundamental da palavra é uma construção·do espírito, não se encontra mais num enunciado doque noutro. .

Mas se não devemos esperar observar o sentldofundamental no interior de um enunciado particular,isso não quer dizer que um enunciado tenha um únicosentido. Do mesmo modo que não se deve consideraro sentido sintagmático como paradigmático, tambémnão poderíamos projectar sobre o discurso as ;proprie­dades da língua. As palavras são polissémicas fora docontexto; mas, num enunciado particular, elas tomamum sentido preciso. :e por esta razão que Schleierma­cher recusa um estatuto particular para expressõesmetafóricas. A ilusão de um sentido metafórico, dife­rente dos outros, provém do facto de se examinar umacto discursivo com instrumentos próprios para ana­lisar a língua. No interior do enunciado, as palavrastêm um sentido determinado, que é sempre da mesmanatureza; o que acontece é que a confrontação dosentido do enunciado com o dos elementos que ocompõem-logo, do .sentido _discursivo com o sen~i~olinguístico - cria a lmpressao de uma transposlçaodos sentidos.

As palavras tomadas no sentido figurado conser­vam a sua significação própria e exacta e só exer­cem o seu efeito por uma associação de ideias100m a qual o escritor conta (p. 59). Observandomelhor, a oposição ,entre sentido próprio e sen­tido impróprio desaparece (p. 91).

O mesmo acontece com um texto completo: nãoexistem textos alegóricos, diferentes dos outros.

Se um segmento deve ser entendido alegorica­mente, o sentido alegórico é o sentido únioo esimples do segmento, porque nele não existe ou­tro; se alguém quisesse compreendê-lo historica­mente não reproduziria o sentido das palavras,pois não lhes concederia a significação que elas

têm na continuidade do segmento; exactamentecomo se interpretássemos alegoricamente umsegmento que deve ser entendido de outro modo(p. 155).

Encontrar o sentido literal de uma passagem ale­górica é encontrar o sentido dos elementos que a cons­tituem, sem nos apercebermos da combinação que elesformam. Ora, o sentido determina-se pela combinaçãode que faz parte; portanto, é erróneo considerá~lo

como incerto e arbitrário.Segue-se que as combinações de que um elemento

linguístico pode fazer parte são em número infinito;Ilogo, o próprio sentido é infinito; e a interpretação éuma arte (como já dizia Fr. Schlegel: «A filologia éarte e não ciência»):

A interpretação ré arte. Por toda a parte se cons­trói o que é finito e determinado a partir do queé infinito e indeterminado. A linguagem é infinitaporque cada elemento pode ser determinado pe­los outros de forma particular. O mesmo acon­tece com [a interpretação] psicológica. Porquecada visão (Anschauung) individual é infinitaCp. 82).

O rigor hermenêutico não se mascara aqui de cien­tismo positivista.

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ALGUMAS CONCLUSÕESHISTóRICAS E TIPOLóGICAS

Para concluir, gostaria de me interrogar sobre asignificação histórica da oposição que acabo de pro­por - entre exegese patrística e filologia. Esta con­frontação de duas práticas, escolhidas entre tantasoutras, não será arbitrária? Mas não se trata de quais­quer práticas: nenhuma outra se Ilhes pode comparar,quer seja em prestígio, na duração do seu reinado ouna influência que exerceram. Estes dois exemplos são,portanto, mais do que exemplos: são as duas maisimportantes estratégias interpretativas da história dacivilização ocidental.

A substituição: quando e porquê

Então, poderá dizer-se que a estratégia filológicase constituiu apenas no período aqui examinado, entreEspinosa e Wolf, digamos, entre o fim do século XVIIe o princípio do século XIX? S3Ibe-se que são nume­rosos os testemunhos provando a existência de técnicasfilológicas desde a Alta Antiguidade e, mais particular­mente, desde a escola de Alexandria. Mas, na históriadas ideias, somos obrigados a distinguir entre a pri­meira formulação de uma tese e o seu advento nosentido propriamente histórico. Um longo percursosepara a enunciação marginal de uma ideia e a insti­tuição de uma doutrina ou, se preferirmos, o dia emque uma ideia é proferida e aquele em que ela é enten­dida; ora, a história das ideias coincide com a darecepção das ideias e não com a da sua produção.

O mesmo acontece com a história da hermenêutica. 151

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As regras e técnicas codificadas em programa porEspinosa existiram, em teoria e na prática, muito an­tes dele, na exegese cristã e na glosa rabínica. Masnunca se tornaram um programa de combate (não opodiam fazer); a melhor prova está no facto de, justa­mente, terem coexistido com a exegese patrística. Apartir do momento em que Espinosa formula o seuprograma, a coexistência deixa de ser possível: umadas duas práticas tem de desaparecer, pelo menosdesse terreno particular; e é o que acontece, tendo afilologia saído vitoriosa do combate. Há, pois, umfacto histórico, que é a substituição de uma estratégiapor uma outra; ambas podem existir desde sempre epor todo o sempre; mas nem por isso deixa de haverum conflito cUla inscrição histórica é suficientementeexacta. E se não se pretende explicar - o que na ver­dade é o meu caso - a história das ideias unicamentepelas relações das ideias entre si, devemos perguntar:que factos 'históricos tornaram possível a derrota daexegese patrística e a vitória da filologia, e em queépoca precisamente?

Entre todos os acontecimentos contemporâneos,quais escolher, para os pôr em correlação com a mu­dança verificada na história da hermenêutica? Paraencontrar uma resposta temos de começar por recon­duzir a oposição entre exegese patrística e filologia aosseus termos de base. A primeira baseia-se na possibi­1idade de dispor de uma verdade admitida por todos,a que chamamos, para simplificar, a doutrina cristã.A segunda aparece como uma reacção do homem pe­rante um mundo em que deixa de existir padrão uni­versal. Num mundo hierarquizado, dominado por umaverdade absoluta (e pelos seus detentores), basta con­frontar 'cada obiecto particular com uma única escalade valores imutável, para que a sua integracão Ce,logo, a 'Sua interpretação) esteia resolvida. Pelo con­trário, numa sociedade democrática, em que cada umpode - em teoria - reclamar a verdade como sua, têmde ser impostas coacções de método - e já não de con­teúdo - sabre o próprio desenrolar de cada operação;o relativismo dos valores deve ser compensado poruma codificação metodológica.

Ora, é precisamente essa substituição que se pro­duz na Europa na época que nos interessa. Para dizertudo numa só frase, e sem qualquer pretensão derigor histórico, o mundo fechado da sociedade feuda1e cristã dá lugar às novas sociedades burguesas queproclamam a igualdade dos indivíduos; nenhum dos

novos valores vem, por exemplo, desempenhar a fun­ção que a doutrina cristã tinha no antigo sistema:não se trata de uma redistribuição de papéis, mas simde um novo cenário. Melhor: aproximando dois elosafastados de uma cadeia de relações apesar de tudoúnica, diria que não é por acaso que a doutrina filo­lógica nasceu numa das primeiras cidades burguesasda Europa - Amsterdão. Era necessária a tolerânciada nova sociedade capitalista ,para que Espinosa pu­desse instituir como programa o que até então nãopassara de práticas ocultas.

Esta é, aliás, a argumentação desenvolvida pelopróprio Espinosa ,para justificar o seu novo métodono Tratado Teológico-Político. «Podemos demonstrarque o nosso método de interpretação da Escritura é omelhor. Já qrue, com efeito, a maior autoridade parainteI1pretar a Escritura é a de cada um, não deveexistir outra regra de interpretação senão a da LuzNatural comum a todos, nem nenhuma luz superiorà da natureza, nem nenhuma autoridade exterior» (VII,158). O seu método é o melhor porque permite quecada qual conduza o trabatho de interpretação semter por referência um valor comum e absoluto. A de­fesa do método filológico equivale aqui a uma procla­mação da liberdade e da igualdade dos homens. Oadvento da filologia tinha de se produzir nesta épocae não poderia ter lugar em qualquer outra.

Tipologi"a das estnatégias

Exegese patrística e filologia são dois tipos deestratégia interpretativa. Também se poderia pergun­tar se são os únicos tipos possíveis, 'e como se arti­culam entre si: iPassaríamos então da perspectiva his­tórica para a tipologia.

Interpretar consiste sempre em pôr em equivalên­Icia dois textos (em que o segundo pode não ser pro­ferido): o do autor e o do intérprete. O aoto de inter­pretação implica, portanto, necessariamente, duas es­colhas sucessivas: impor ou não coacções sobre aassociação dos dois t'extos; depois, ligá~las ao textode partida, ao texto de chegada ou ao percurso queos liga.

Não sofrer qualquer cOIacção no que respeita aoacto interpretativo significa colocarmo-nos no limiteda interpretação, naquHo a que se chama, por vez'escom iCondescendência, a «crítica impressionista». O 153

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mais característico dos ,exemplos desse comporta­mento são as palavras em associação livre - do pa­dente no idivã psicanalítico. Não é que não existamregras de associação; mas elas não são explicitadas, oque, neste caso, permite o aparecimento do «incons­dente». Habitualmente, haverá tendência para apreciaro próprio «texto de chegada» como objecto da inter­pretação, e não o considerar como uma interpretaçãodo «texto de partida».

As coacções podem recair apenas sobre a escolhado texto de partida sem outras regras que se impo­nham a outros pontos. Esta atitude dirige em parti­'cular a prática do simbolismo não verbal: assim acon­tece nessas práticas mânticas que escolhem estrita­'mente a matéria a interpretar, linhas da mão ou voosde pássaro, entranhas de animais ou posição dos as­tros. Mas também podemos observar esse tipo deestratégia na interpretação do simbolismo verbal:quando declaramos, por exemplo, que só as obrasHterárias merecem ser analisadas.

Nen1hum destes 'percursos, embora possíveis e atéfrequentes, desempenha um papel importante na his­tória da hermenêutica, sem dúvida porque deixamainda uma tal margem de liberdade na inter:pretaçãoque não nos podemos referir a eles como estratégiasno sentido restrito; não existe escola hermenêutica quese contente 'Com tão poucas exigências. Os dois tiposde interpretação que, em contrapartida, encontramosabundantemente na história da hermenêutica corres­pondem às duas possibiHdades restantes: impor coac­ções sobre as operações que ligam texto de partidae texto de chegada, ou sobre o próvrio texto de che­f!ada. Dois grandes tipos de interpretação: aqueles a'que dei precisamente o nome de interpretação onera­cional (como a filolo!!ia) e de internretação finalista{como a exegese patrística). Filologia e exegese pa­trística não são, portanto, apenas dois exemplos deestratégia interpretativa; elas representam os doisgrandes tinos de estratégia possíve1.

Naturalmente, cada um desses tipos possui outrosrepresentantes: para disso nos apercebermos bastamudar, num caso, a natureza das coacções ouerado­nais, no outro, a dos conteúdos a que obrigatoriamentese chega.

Para dar exemplos que estejam mais próximos denós no tempo, temos interpretações finalistas no caso;da crítica marxista ou da crítica freudiana. Tantonuma como noutra, o ponto de chegada é antecipada-

n;e~teC:0nihecido,e não pode ser modificado: são prin­CIP:OS tIrados da obra de Marx ou de Freud (é signifi­cativo o facto de estas espécies de crítica terem onome do seu inspirador; é impossível modificar o textode chegadél: sem trair a doutrina, isto é, sem a aban­donar). Seja qual for a obra analisada, no final dopercurso ela ilustrará os postulados. É óbvio que esteparentesco global é acompanhado de numerosas dife­r~nças que não são para desprezar: na óptica patrís­tIca, certos textos escolhidos (os textos sagrados) afir­mam a verdade cristã; na do marxismo, todos os tex­tos testemunham a verdade marxista., Vn: exemplo da moderna interpretação operacionale aqUIlo a que se ,chama a análise estrutuml tal comofoi praticada nos mitos por um Lévi-Strau~s ou por~m Detienne e na poesia por Jakobson e Ruwet. Já nãoe o resulta~o que é dado antecipadamente, é a formadas operaçoes a que se tem direito a submeter o textoanalis~do. Aliás, e~tas pouco diferem do programaenuncIado por Espmosa: filologia e anális,e estruturalrealizam .simplesmente partes diferentes desse pro­grama.. VImos q::xe ~ filologia omitira, pouco a pouco,a rubrIca «relaçoes mtratextuais»' a análise estruturalessa, põe muitas vez,esentre p~rênteses o context~histórico; a diferença, mais uma vez, não é de estru­tura, mas está naquilo a que se dá mais relevo e nainsistência sobre esse ponto.

Reformulação da oposição

~ntretanto,_pode~osperguntar se estas estratégiasde mterpretaçao serao realmente aquilo que preten­dem ser. A 'questão foi posta nomeadamente peloscomentadores de Espinosa, que quiseram saber se asua re.ivj.ndic~ção.de ur~a interpretação livre de qual­quer ~~eologIa tmha sido realizada na sua própriao~r~, .la que, ao lado das declarações de princípio, aspagmas do Tratado Teológico-Político contêm nume­rosas análises concretas da Bíblia. A resposta é unâ­nime. r. Husic escreve: «Espinosa tenta demonstrarque a Bíblia concorda com a sua filosofia exactamentecomo Maimónides tentava mostrar que 'a Bíblia con­corda com a filosofia de Aristóteles», e S. Zac: «Espi­nosa... lê a Escritura de tal maneira que se adivi­nham, em filigrana, as consequências da sua própriafilosofia. ( ... ) Ele... comete o mesmo pecado que cen­sura a Maimónides: explica os t,extos alegoricamente 155

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e repensa o cristianismo à luz d~ ~ua p~ópria f!loso­fia.» 1 Apesar das profissões de fe ~Ilo~oh~as, a mter­pretação de Espinosa é, portanto, tao f;nahsta como ados seus adversários: qualquer que seja, o texto .ana­lisado ilustra o espinosismo. Reciprocamente, amdaque Santo Agostinho afirmasse que só o ponto dedhegadaé importante - e não o percurso. a que serecorreu -, não há dúvida de que, conSCIentementeou não tanto ele como os outros fundadores da exe­gese pa'trística favoreceu: ouescamoteiam.oertos tiposde operações interpretatIvas; ~azem-no, aI~~a que se­jam apenas os outros que, maIS tarde, codIhquem ex-p1icitamenteessas práticas. . _

Isto não basta para que desapareça a OpOSIÇa:O dasduas estratégias interpretativas; mas coloca-a numoutro plano. Nenhuma interpretaç~oes~á~i~re de pres­supostos ideológicos, e nenh:-tma e arbIt~ana nas .sua.soperações. Entretanto, a dIferença reSIde na dIstn­buição da parte iluminada. e da 'l?arte obsc~ra daactividade. Aqueles que pratIcam a mterpretaçao ope­racional, quer seja a filologia oru a análise estrutural,movidos pela sua pretensão científica, esquecem a pre­sença de uma ideologia (que, por ser às vezes de poucaimportância, nem por isso deixa de existir) e concen­tram a sua atenção nas exigências de método; de aíruma inevitável proliferação de escritos metodológicos.Aqueles que praticam a interpretação fi?alista, porsua vez, desprezam a natureza das operaçoes a que sededicam e 'limitam-se a enunciar princípios que jul­gam ilustrados por todos os textos analisados. Divisãodesigual das zonas de sombra e de luz, de recalca­mento e de explicação, mais do que a exclusiva pre­sença de uma ou outra espécie de exigências. Apenasdesigualdade de insistência, responsável no entantopdas vicissitudes da história da hermenêutica.

A minha estratégiJa?

Desejaria fazer uma última pergunta antes de darpor terrrlinadoeste meu percurso: supondo que admi·timos a determinação histórica acima sugerida, comoexplicar a coexistência dos dois tipos de estratégia- o que acontece, nos nossos dias, com a análise estru-

1 I. Husic, Philosophical Essays, Oxford, 1952, «Maimonide andSpinoza on the interpretation of the Bible}), p. 158; S. Zac, Spinozaet l'interprétation de l'Ecriture, Paris, 1965, pp. 174, 193.

tural e a análise marxista? Que vale o determinismose as mesmas causas nem s'empre produzem os mes­mos efeitos? E, mais concretamente ainda: onde mehei-de colocar, nesta dicotomia de método e de con­teúdo, já que é evidente que, lendo os autores dopassado, eu estou deveras comprometido numa activi­dade interpretativa? Ou ainda: em que ,lugar nos deve­mos situar para estar em condições de descrever todasas estratégias interpretativas?

Deveríamos procurar a resposta para estas pergun­tas atenta e pacientemente, seguindo esta direcção: adeterminação entre estratégias da interpretação e his­'tória social passa por um dispositivo ,essencial que éa própria ideologia. Não é o comércio dos mercadoresde Amsterdão que faz nascer a filologia; é a ideologiada expansão capitalista que será uma condição decisivapara a renovação da hermenêutica. Do mesmo modo,é a coexistência das ideologias no mundo de hoje- quanto a nós e para resumir, uma ideologia indi­vidualista e uma ideologia colectivista - que é a con­dição necessária para a actua,l co-presença das estra­tégias interpretativas. E e o meu destino histórico, seassim ouso dizer, que me obriga a ficar numa duplaexterioridade, como se o «fora» tivesse deixado deimplicar um «dentro». Não é uma superioridade nemnecessariamente uma maldição, mas, muito pelo con­trário, um traço constitutivo do nosso tempo, precisa­mente: poder dar razão a cada um dos campos opostose não saber escolher entre os dois: como se a caracte­rística principal da nossa civilização fosse a suspensãoda escolha e a tendência para tudo compreender semnada fazer.

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