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Potica da Prosa
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Tzvetan Todorov nasceu na Bulgria e vive na Frana desde 1963. Pesquisador do CNRS, autor de vrias obras sobre teoria literria, histria do pensamento e anlise da cultura.
Tzvetan Todorov Potica da Prosa
Traduo CLAUDIA BERLINER
Martins FontesSo Paulo 2003
Esta obra foi publicada originalmente em francs com o ttulo P0TIQUE DE LA PROSE por ditions du Seuil. Copyright ditions du Seuil, 1971. Copyright 2003, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, para a presente edio.
1 edio junho de 2003
Traduo CLAUDIA BERLINER Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Reviso grfica Maria Luiza Favret Margaret Presser Produo grfica Geraldo Alves Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Todorov, Tzvetan, 1939- . Potica da prosa / Tzvetan Todorov ; traduo Claudia Berliner. So Paulo : Martins Fontes, 2003. (Tpicos). Ttulo original: Potique de la prose. ISBN 85-336-1777-1 1. Crtica literria 2. Narrativa (Retrica) 3. Prosa Tcnica 1. Ttulo. II. Srie. 03-30005 ndices para catlogo sistemtico: 1. Literatura em prosa 808.888 2. Potica da prosa : Literatura 808.888 3. Prosa : Potica : Literatura 808.888Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867 e-mail: [email protected] http://www.rnartinsfontes.com.br
CDD 808.888
NDICE*
Nota introdutria............................ ...... 1. O legado metodolgico do formalismo 2. Linguagem e literatura ............... ...... 3. Potica e crtica .......................... ...... 4. Tipologia do romance policial .... ...... 5. A narrativa primitiva .................. ...... 6. Os homens-narrativas ................ ...... 7. Introduo ao verossmil ............ ...... 8. A fala segundo Constant ............ ...... 9. A gramtica da narrativa ............ ...... 10. A busca da narrativa ................ ...... 11. O segredo da narrativa ............. ...... 12. Os fantasmas de Henry James . ...... 13. O nmero, a letra, a palavra ..... ...... 14. A arte segundo Artaud ............. ...... 15. As transformaes narrativas ... ...... 16. Como ler? ................................. ......
VII 1 31 45 63 79 95 113 125 149 165 195 241 257 277 295 317
______________________________* Nota do digitalizador: A numerao de pginas aqui se refere edio original, que se encontra inserida entre colchetes no texto. Entende-se que o texto que est antes da numerao entre colchetes o que pertence quela pgina e o texto que est aps a numerao pertence pgina seguinte.
NOTA INTRODUTRIA
Os textos aqui reunidos foram escritos entre 1964 e 1969 e alguns so inditos. No os modifiquei; apenas atualizei as referncias e vez por outra corrigi pequenos detalhes de estilo. Uma correo profunda teria acarretado o desaparecimento do livro, pois, a meu ver, cada um destes estudos nada mais que uma nova verso do ou dos precedentes (no exploramos temas novos; sempre voltamos, como o assassino ao local do crime, s marcas j deixadas). Se os retomo nesta coletnea precisamente pelo que tm de incorrigveis. Conforme o adgio de Pascal, a concluso de uma investigao nos leva a conhecer seus fundamentos. Estes textos constituem uma srie de tentativas (a menos que haja duas) que eu no conseguiria substituir por uma exposio sistemtica, por uma sntese ordenadora. No nos arrependeremos se em qualquer pesquisa, portanto em potica, aceitarmos a lei que Schiller formulou para certa poesia: "a meta do poeta pico j se encontra em cada um dos pontos de seu movimento; por isso no corremos, impacientes, na direo de um objetivo, mas nos demoramos amorosamente em cada passo".
CAPTULO 1 O LEGADO METODOLGICO DO FORMALISMO
1.1. O mtodo estrutural, inicialmente desenvolvido em lingstica, encontra um nmero cada vez maior de adeptos em todas as cincias humanas, inclusive no estudo da literatura. Essa evoluo ainda mais justificada uma vez que, entre as relaes que a lngua mantm com as diferentes formas de expresso, as que a unem literatura so profundas e numerosas. Alis, esta no a primeira vez que tal associao se estabelece. A origem do Crculo Lingstico de Praga, uma das primeiras escolas de lingstica estrutural, no outra seno uma corrente de estudos literrios que se desenvolveu na Rssia durante os anos 1915-1930, e que conhecida pelo nome de "formalismo russo". A relao entre ambos incontestvel; estabeleceu-se tanto por intermdio daqueles que participaram dos dois grupos, simultnea ou sucessivamente (R. Jakobson, B. Tomachevski, P. Bogatyrev), como pelas publicaes dos formalistas, que o Crculo de Praga no ignorava. Seria um exagero afirmar que o estruturalismo lingstico foi buscar suas idias no formalismo,
pois os campos de estudo e os objetivos das duas escolas no so os mesmos; contudo, nos estruturalistas encontramos as marcas de uma influncia "formalista" tanto nos princpios gerais como em certas tcnicas de anlise. Por isso hoje, quando vemos nascer um interesse pelo estudo estrutural da literatura, natural e necessrio recordar as principais concepes metodolgicas devidas aos formalistas e compar-las s da lingstica contempornea1. 1.2.1. Antes de iniciar essa confrontao, devemos definir alguns princpios bsicos da doutrina formalista. Costuma-se falar de "mtodo formal", embora esta expresso seja imprecisa e seja possvel contestar tanto a escolha do substantivo como do adjetivo. O mtodo, longe de ser nico, engloba um conjunto de procedimentos e de tcnicas voltados para a descrio da obra literria, mas tambm para investigaes cientficas muito diferentes. Para resumir, poderamos simplesmente dizer que, antes de tudo, deve-se considerar a prpria obra, o texto literrio, como um sistema imanente, o que, evidentemente, apenas um ponto de partida e no a exposio detalhada de um mtodo. Quanto ao termo "formal", trata-se antes de um rtulo que se tornou cmodo do que de uma denominao precisa, e os prprios formalistas o evitam. Para eles, a forma abarca todos os aspectos, todas as partes da obra, mas s existe como relao dos elementos entre si, dos elementos com a obra toda, da obra com a literatura nacional etc., em suma, um conjunto de funes. O estudo propriamente literrio, que hoje chamamos de estrutural, caracteriza-se pelo ponto de vista escolhido pelo observador e no por seu objeto, objeto este que, de outro ponto de vista, poderia prestar-se a uma anlise [Pgina 2] ___________________1. Ver, no final do texto, uma lista das tradues recentes dos textos formalistas e das outras obras citadas.(nota de rodap)
psicolgica, psicanaltica, lingstica etc. A frmula de Jakobson: "o objeto da cincia literria no a literatura mas a literaridade (literaturnost), isto , o que faz de uma determinada obra uma obra literria"2, deve ser interpretada em termos da investigao e no do objeto. 1.2.2. Todo estudo que pretenda ser cientfico depara com problemas de terminologia. No entanto, a maioria dos pesquisadores nega aos estudos literrios o direito a uma terminologia bem definida e precisa, sob a alegao de que o recorte dos fenmenos literrios muda conforme as pocas e os pases. O fato de forma e funo, duas faces do signo, poderem variar independentemente uma da outra impede qualquer classificao absoluta. Toda classificao estvel tem de manter uma dessas faces idntica, sejam quais forem as variaes da outra. Segue-se disso que: a) cada termo tem de ser definido em relao aos outros e no em relao aos fenmenos (obras literrias) que ele designa; b) todo sistema de termos vale para um determinado corte sincrnico, cujos limites, postulados, so arbitrrios. J. Tynianov formula o problema no prefcio da coletnea La prose russe (1926) e ilustra-o com a classificao dos gneros em seus artigos "Le fait littraire" e "De l'volution littraire" (este ltimo traduzido em TL, pp. 120-37). Nas suas prprias palavras, "o estudo dos gneros isolados impossvel fora do sistema no qual e com o qual eles esto em correlao" (TL, p. 128). As definies estticas dos gneros, que empregamos correntemente, apenas levam em conta o significante. Um romance [Pgina 3]
_________________________________________________ (nota de rodap) 2. Citado conforme a coletnea Thorie de la littrature. Textes des formalistes russes, Paris, Seuil, 1965, p. 37. Todas as referncias a essa coletnea aparecero daqui em diante com a abreviao TL, seguida do nmero da pgina.
contemporneo, por exemplo, deveria ser relacionado, do ponto de vista de sua funo, com a antiga poesia pica; mas em geral o associamos ao romance grego devido forma prosaica que tm em comum. "Aquilo que foi o trao distintivo do 'poema' no sculo XVIII deixou de s-lo no sculo XIX. Da mesma maneira, j que a funo da literatura correlativa das outras sries culturais da mesma poca, o mesmo fenmeno pode ser fato literrio ou extraliterrio" (Russkaja proza, p. 10).
1.2.3. A finalidade da investigao a descrio do funcionamento do sistema literrio, a anlise de seus elementos constitutivos e a exposio de suas leis, ou, num sentido mais estrito, a descrio cientfica de um texto literrio e, a partir da, o estabelecimento de relaes entre seus elementos. A principal dificuldade decorre do carter heterogneo e estratificado da obra literria. Para descrever exaustivamente um poema, temos de nos situar sucessivamente em diferentes nveis fnico, fonolgico, mtrico, entonacional, morfolgico, sinttico, lexical, simblico... e levar em conta suas relaes de interdependncia. Por outro lado, o cdigo literrio, ao inverso do cdigo lingstico, no tem carter estritamente coercitivo e somos obrigados a deduzi-lo de cada texto em particular, ou pelo menos a corrigir a cada vez sua formulao anterior. Faz-se portanto necessrio operar certo nmero de transformaes para obter o nico modelo que ir se prestar a uma anlise estrutural. No entanto, em oposio ao estudo mitolgico, por exemplo, nossa ateno deve se voltar tanto para o carter dessas operaes quanto, se no mais, para seu resultado, pois nossas regras de decodificao so anlogas s regras de codificao de que o autor fez uso. Se no o fizssemos, correramos o risco de reduzir ao mesmo modelo obras totalmente diferentes que assim perderiam toda a sua especificidade. [Pgina 4]
1.3.1 O exame crtico dos mtodos utilizados exige explicitao de algumas proposies fundamentais, subentendidas nos trabalhos formalistas. Elas so aceitas a priori e sua discusso no pertence ao campo dos estudos literrios.
1.3.2 A literatura um sistema de signos, um cdigo, anlogo aos outros sistemas significativos, como a lngua natural, as artes, a mitologia, as representaes onricas etc. Por outro lado, e nisso se distingue das outras artes, ela se constri com a ajuda de uma estrutura, ou seja, a lngua; ela , portanto, um sistema significativo de segundo grau, em outras palavras, um sistema conotativo. Ao mesmo tempo, a lngua, que serve de matria para a formao das unidades do sistema literrio, e que portanto pertence, conforme a terminologia hjelmsleviana, ao plano da expresso, no perde sua significao prpria, seu contedo. Deve-se, ademais, levar em considerao as diferentes funes possveis de uma mensagem e no reduzir seu sentido a suas funes referencial e emotiva. A noo de funo potica, ou esttica, que incide sobre a prpria mensagem, introduzida por Jakubinski, desenvolvida por Jakobson (1921,1923) e Mukaovsky, e integrada ao sistema nocional da lingstica por Jakobson (1963), intervm igualmente no sistema da literatura e no da lngua, e cria um equilbrio complexo entre as funes. Notemos que os dois sistemas, muitas vezes anlogos, nem por isso so idnticos; alm disso, a literatura utiliza cdigos sociais cuja anlise foge ao mbito de um estudo literrio. 1.3.3 Todo elemento presente na obra tem uma significao que pode ser interpretada de acordo com o cdigo literrio. Para Chklovski, "a obra totalmente construda. Toda a sua matria organizada" (1926, p. 99). A organizao interna ao sistema literrio e no se relaciona [Pgina 5]
com o referente. Assim, Eikhenbaum escreve: "Nem uma frase sequer da obra literria pode ser, em si, 'expresso' direta dos sentimentos pessoais do autor, mas ela sempre construo e jogo..." (TL, p. 228). Deve-se tambm levar em conta as diferentes funes da mensagem, pois a "organizao" pode se manifestar em vrios planos diferentes. Essa observao permite distinguir claramente literatura e folclore; o folclore admite uma independncia bem maior dos elementos. O carter sistemtico das relaes entre os elementos decorre da prpria essncia da linguagem. So elas que constituem o objeto da investigao literria propriamente dita. Tynianov (1929) formulou da seguinte maneira essas idias, fundamentais em lingstica estrutural: "A obra representa um sistema de fatores correlativos. A correlao de cada fator com os outros sua funo em relao ao sistema" (TL, p. 49). "O sistema no uma cooperao baseada na igualdade de todos os elementos; ele supe o destaque de um grupo de elementos ('dominante') e a deformao dos outros" (TL, p. 130). Uma observao de Eikhenbaum nos fornece um exemplo: quando as descries so substitudas pelas intervenes do autor, " principalmente o dilogo que torna manifestos o argumento e o estilo" (1927, p. 192). Isolar um elemento durante a anlise no , portanto, apenas um procedimento operacional: sua significao est em suas relaes com os outros. 1.3.4. A desigualdade dos elementos constitutivos impe uma outra regra: um elemento no se liga diretamente a outro qualquer, a relao se estabelece em funo de uma hierarquia de planos (ou estratos) e de nveis (ou categorias hierrquicas [rangs]), segundo o eixo das substituies e o eixo dos encadeamentos. Como bem notou [Pgina 6]
Tynianov (1929), "o elemento entra simultaneamente em relao: com a srie dos elementos semelhantes pertencentes a outras obras-sistemas, ou at a outras sries, e, por outro lado, com os outros elementos do mesmo sistema (funo autnoma e funo snoma)" (TL, p. 123). Os diferentes nveis definem-se pelas dimenses de suas partes. O problema da menor unidade significativa ser discutido adiante; quanto maior, ela , no mbito dos estudos literrios, toda a literatura. A quantidade desses nveis teoricamente ilimitada, mas, na prtica, so considerados trs: o dos elementos constitutivos, o da obra, o de uma literatura nacional. Isso no impede, em certos casos, de colocar em primeiro plano um nvel intermedirio, por exemplo um ciclo de poemas, ou as obras de um gnero ou de um determinado perodo. A distino de diferentes planos exige mais rigor lgico e esta nossa primeira tarefa. O trabalho dos formalistas teve como objeto essencialmente a anlise de poemas em que distinguiram os planos fnico e fonolgico, mtrico, entonacional e prosdico, morfolgico e sinttico etc. Para a classificao deles, a distino hjelmsleviana entre forma e substncia pode ser muito til. Chklovski mostrou a propsito de textos em prosa que essa distino igualmente vlida no plano da narrativa, em que os procedimentos de composio podem ser separados do contedo factual. evidente que a ordem de sucesso dos nveis e dos planos no texto no coincide obrigatoriamente com a da anlise; por isso que esta se volta muitas vezes para a obra como um todo: a que as relaes estruturais se manifestam mais claramente. 2.1.1. Examinemos primeiro alguns mtodos, j sugeridos pelos trabalhos dos formalistas, mas depois amplamente aperfeioados pelos lingistas. Por exemplo, a [Pgina 7]
anlise por traos distintivos: ela aparece bem claramente em fontica nos escritos inaugurais dos formalistas, os de Jakubinski e Brik. Mais tarde, alguns formalistas juntaram-se aos esforos dos estruturalistas de Praga na tentativa de definir a noo de fonema, de trao distintivo, de trao redundante etc. (ver, entre outros, os estudos de Bernstein). A importncia dessas noes para a anlise literria foi indicada por Brik a propsito da descrio de um poema, em que a distribuio dos fonemas e dos traos distintivos serviria para formar ou para reforar sua estrutura. Brik define o par de repetio mais simples como "aquele em que no distinguimos o carter palatalizado ou no-palatalizado das consoantes, mas em que as surdas e as sonoras esto representadas como sons diferentes" (p. 60). 2.1.2. A validade desse tipo de anlise confirma-se tanto por seu sucesso na fonologia atual como por sua fundamentao terica, que reside nos princpios anteriormente mencionados: a definio relacionai a nica vlida, pois as noes no se definem com relao a uma matria que lhes estranha. Como bem observou Tynianov, "a funo de cada obra encontra-se em sua correlao com as outras... Ela um signo diferencial" (Russkaja proza, p. 9). Mas a aplicao desse mtodo pode ser bastante ampliada se partirmos da hiptese da profunda analogia entre as faces do signo. por isso que o mesmo Tynianov (1924) tentou analisar a significao de uma "palavra", da mesma maneira que se analisa sua face significante ("a noo de trao fundamental em semntica anloga noo de fonema em fontica", p. 134), decompondo-a em elementos constitutivos: "No se deve partir da palavra como se fosse um elemento indivisvel da arte literria, trat-la como se fosse o tijolo com que se constri [Pgina 8]
o edifcio. Ela fracionvel em 'elementos verbais' bem menores" (p. 35). Na poca, essa analogia no foi desenvolvida e matizada devido definio psicolgica do fenmeno ento predominante. Mas atualmente esse princpio aplicado com uma freqncia cada vez maior nos estudos de semntica estrutural. 2.1.3. Por fim, possvel aplicar esse mtodo anlise das unidades significativas do sistema literrio, isto , ao contedo do sistema conotativo. O primeiro passo nessa direo consistiria em estudar as personagens de uma narrativa e as relaes entre elas. As inmeras indicaes dos autores, ou mesmo um olhar superficial sobre qualquer narrativa, mostram que certo personagem ope-se a determinado outro. No entanto, uma oposio imediata das personagens simplificaria essas relaes e nos afastaria de nosso objetivo. Melhor seria decompor cada imagem em traos distintivos e colocar estes em relao de oposio ou de identidade com os traos distintivos das outras personagens da mesma narrativa. Obteramos assim um nmero reduzido de eixos de oposio cujas diversas combinaes reagrupariam esses traos em feixes representativos das personagens. O mesmo procedimento definiria o campo semntico caracterstico da obra em questo. No comeo, a denominao desses eixos dependeria essencialmente da intuio pessoal do investigador, mas a confrontao de vrias anlises anlogas permitiria estabelecer quadros mais ou menos "objetivos" para um autor ou mesmo para um determinado perodo de uma literatura nacional. 2.2. Esse mesmo princpio engendra outro procedimento, de grande aplicao em lingstica descritiva: a definio de um elemento pelas possibilidades de sua distribuio. Tomachevski (1929) utilizou esse mtodo para [Pgina 9]
caracterizar os diferentes tipos de esquema mtrico, e via nele uma definio por substituio: "deve-se chamar de iambo de quatro medidas qualquer combinao que possa substituir num poema qualquer verso imbico de quatro medidas" (TL, p. 164). O mesmo procedimento utilizado por Propp numa anlise semntica do enunciado. 2.3. O mtodo de anlise em constituintes imediatos tambm pode ser encontrado em lingstica descritiva. Foi freqentemente aplicado pelos formalistas. Tomachevski (1925) discute-o a propsito da noo de "tema": "A obra como um todo pode ter seu tema e ao mesmo tempo cada parte da obra possui seu tema... Com a ajuda dessa decomposio da obra em unidades temticas, conseguimos finalmente chegar nas partes indecomponveis, nas menores partculas do material temtico... O tema dessa parte indecomponvel da obra chama-se motivo. No fundo, cada frase possui seu prprio motivo" (TL, p. 268). Embora a utilidade de tal princpio parea evidente, sua aplicao concreta coloca problemas. Primeiro, devemos nos abster de identificar motivo e frase, pois as duas categorias provm de sries nocionais diferentes. A semntica contempornea elude a dificuldade introduzindo duas noes distintas: lexema (ou morfema) e semema. Como Propp notou com muita propriedade, uma frase pode conter mais de um motivo (seu exemplo contm quatro); igualmente fcil encontrar exemplos do caso contrrio. O prprio Propp expressa uma atitude mais prudente e nuanada. Cada motivo comporta vrias funes. Estas existem no nvel constitutivo e sua significao no imediata na obra; seu sentido depende antes da possibilidade de serem integradas ao nvel superior. "Por funo entendemos a ao de um personagem, definida do ponto de vista de sua significao para o desenrolar da trama" (trad. fr., p. 31). [Pgina 10]
A exigncia de significao funcional importante tambm aqui, pois os mesmos atos tm muitas vezes um papel diferente nas diferentes narrativas. Para Propp, essas funes so constantes, em nmero limitado (trinta e uma para os contos de fadas russos) e podem ser definidas a priori. Sem entrarmos aqui na discusso de sua validade para sua anlise do material folclrico, podemos dizer que uma definio a priori no parece til para a anlise literria. Tudo leva a crer que para esta, bem como para a lingstica, o sucesso dessa decomposio depende da ordem aceita no processo. Mas sua formalizao coloca para a anlise literria problemas ainda mais complexos, pois a correspondncia entre significante e significado mais difcil de estabelecer que em lingstica. As dimenses verbais de um "motivo" no definem o nvel no qual ele est ligado aos outros motivos. por isso que um captulo pode estar constitudo tanto por vrias pginas como por uma nica frase. Por conseguinte, a delimitao de nveis semnticos em que aparecem as significaes dos motivos constitui a premissa indispensvel dessa anlise. Por outro lado, fica claro que essa unidade mnima pode ser analisada em seus constituintes3, mas estes no fazem mais parte do cdigo conotativo: a dupla articulao evidente, tanto aqui como em lingstica.
2.4.1. A diversidade do material pode ser consideravelmente reduzida graas a operaes de transformao. Propp introduz a noo de transformao por meio da [Pgina 11]________________________________3. o que prope, por exemplo, Ch. Hockett: "Deve-se admitir que o conjunto de um romance possui uma espcie de estrutura determinada de constituintes imediatos; esses constituintes imediatos consistem, por sua vez, em constituintes menores e assim por diante, at chegarmos a cada morfema" (p. 557).(nota de rodap)
comparao das classes paradigmticas. Depois de decompor os contos em partes e funes, fica claro que as partes que desempenham um mesmo papel sinttico podem ser consideradas derivadas de um mesmo prottipo, por intermdio de uma regra de transformao aplicada forma primria. Essa comparao paradigmtica (ou por "rubricas verticais") mostra que sua funo comum permite aproximar formas aparentemente muito diversas. "Tomam-se muitas vezes formaes secundrias por objetos novos, embora tais temas descendam dos antigos e sejam o resultado de uma certa transformao, de certa metamorfose... Ao agrupar os dados de cada rubrica, podemos determinar todos os tipos, ou, mais precisamente, todas as espcies da transformao... No so s os elementos atributivos que esto submetidos s leis da transformao; as funes tambm esto..." (p. 108). Dessa forma, Propp supe que se possa remontar o conto primrio, do qual os outros se originam.Duas observaes preliminares se impem. Ao aplicar literatura as tcnicas de Propp, preciso levar em conta as diferenas entre criao folclrica e criao individual (cf. a esse respeito o artigo de P. Bogatyrev e R. Jakobson). A especificidade do material literrio exige que a ateno se volte para as regras de transformao e para a ordem de sua aplicao, e no para o resultado obtido. Por outro lado, em anlise literria, a busca de um esquema gentico primrio no se justifica. A forma mais simples, tanto no eixo dos encadeamentos como no das substituies, fornece comparao a medida que permite descreve o carter da transformao. 2.4.2. Propp explicitou essa idia e props uma classificao das transformaes num artigo intitulado "As transformaes dos contos maravilhosos". As transformaes
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so divididas em trs grandes grupos: mudanas, substituies e assimilaes, estas ltimas definidas como "uma substituio incompleta de uma forma por outra, de modo tal que se produz uma fuso das duas formas numa s" (p. 193). Para agrupar essas transformaes no interior de cada um dos grandes tipos, Propp procede de duas maneiras diferentes. No primeiro grupo, segue algumas figuras retricas e enumera as seguintes mudanas:
1) Reduo, 2) Amplificao, 3) Deturpao, 4) Inverso (substituio pelo inverso), 5) Intensificao, 6) Enfraquecimento.Os dois ltimos modos de mudana concernem sobretudo s aes. Nos dois outros grupos, a origem do elemento novo fornece o critrio de classificao. Assim, as assimilaes podem ser:
15) Internas (ao conto), 16) Derivadas da vida (conto + realidade), 17) Confessionais (acompanham as modificaes da religio), 18) Decorrentes de supersties, 19) Literrias, 20) Arcaicas. Propp limita a quantidade total de transformaes a vinte. Elas so aplicveis a qualquer nvel da narrativa. "O que concerne aos elementos particulares do conto concerne aos contos em geral. Se acrescentarmos um elemento [Pgina 13]
suprfluo, teremos uma amplificao; no caso contrrio, uma reduo" etc. (p. 195).Assim, o problema da transformao, crucial tanto para a lingstica contempornea como para os outros ramos da antropologia social, tambm se coloca na anlise literria; claro que a analogia fica incompleta. Como a tentativa de Propp no foi seguida de outros ensaios do mesmo gnero, no possvel discutir as regras de transformao, sua definio, sua quantidade, sua utilidade; tudo indica, no entanto, que um agrupamento em figuras retricas, cuja definio deveria ser retomada de um ponto de vista lgico, daria os melhores resultados.
3.1.1.0 problema da classificao tipolgica das obras literrias suscita por sua vez dificuldades, tambm encontradas em lingstica. Uma anlise elementar de vrias obras literrias revela imediatamente um grande nmero de semelhanas e de traos comuns. Foi uma constatao anloga que deu origem ao estudo cientfico das lnguas; ela tambm que est na origem do estudo formal da literatura, como demonstram os trabalhos de A. N. Veselovski, o eminente predecessor dos formalistas. Tambm na Alemanha, a tipologia de Wlflin em histria da arte sugeriu a idia de uma tipologia das formas literrias (cf., por exemplo, os trabalhos de O. Walzel, F. Strich, Th. Spoerri). Mas ningum se deu conta do valor e do alcance da descoberta. Os formalistas abordam esse problema a partir de dois princpios diferentes, nada fceis de coordenar. Por um lado, eles encontram os mesmos elementos, os mesmos procedimentos ao longo de toda a histria literria universal, e vem nessa recorrncia uma confirmao de sua tese de que a literatura uma "pura forma", no tem nenhuma (ou quase nenhuma) relao com a realidade extraliterria, e pode, portanto, ser considerada uma "srie" [Pgina 14]
que vai buscar suas formas nela mesma. Por outro lado, os formalistas sabem que a significao de cada forma funcional, que uma mesma forma pode ter funes diversas a nica coisa que importa para a compreenso das obras , e que, portanto, discernir a semelhana entre as formas, longe de fazer progredir o conhecimento da obra literria, poderia at atrapalhar. A coexistncia desses dois princpios nos formalistas decorre por um lado da ausncia de uma terminologia nica e precisa e, por outro, do fato de eles no serem utilizados simultaneamente pelos mesmos autores: o primeiro princpio desenvolvido e defendido sobretudo por Chklovski, ao passo que o segundo surgiu nos trabalhos de Tynianov e de Vinogradov. Estes se dedicam bem mais a descobrir a motivao, a justificao interna de um determinado elemento numa obra, do que a observar sua recorrncia em outra parte. Por isso, Tynianov escreve: "Rejeito categoricamente o mtodo de comparao por citaes, que nos leva a crer numa tradio que passaria de um escritor para outro. Segundo esse mtodo, os termos constitutivos so abstrados de suas funes e o que acaba sendo confrontado so unidades incomensurveis. A coincidncia, as convergncias sem dvida existem em literatura, mas elas concernem s funes dos elementos, s relaes funcionais de um elemento dado" (Russkaja proza, pp. 10-1). Com efeito, evidente que as semelhanas estruturais devem ser buscadas no nvel das funes; no entanto, em literatura, o vnculo entre forma e funo no fortuito nem arbitrrio, j que a forma igualmente significativa num outro sistema, o da lngua. Por conseguinte, o estudo das formas permite conhecer as relaes funcionais. 3.1.2. Ao mesmo tempo, o estudo das obras isoladas, consideradas como sistemas fechados, no suficiente. [Pgina 15]
As mudanas que o cdigo literrio sofre de uma obra para outra no significam que todo texto literrio tenha um cdigo prprio. Devemos evitar as duas posies extremas: acreditar que exista um cdigo comum a toda a literatura, afirmar que cada obra engendra um cdigo diferente. A descrio exaustiva de um fenmeno, sem recorrer ao sistema geral em que est integrado, impossvel. A lingstica contempornea percebe isso claramente: " igualmente contraditrio descrever sistemas isolados sem fazer sua taxinomia e elaborar uma taxinomia na ausncia de descries de sistemas particulares: ambas as tarefas pressupem uma outra" (Jakobson, 1963, p. 70). Apenas a incluso do sistema das relaes internas que caracterizam uma obra no sistema mais geral do gnero ou da poca, no contexto de uma literatura nacional, permite estabelecer os diferentes nveis de abstrao desse cdigo (os diferentes nveis de "forma" e "substncia", segundo a terminologia hjelmsleviana). Geralmente, seu deciframento depende diretamente de fatores externos: assim, as novelas "sem concluso" de Maupassant s ganham sentido no contexto da literatura da poca, observa Chklovski. Tal confrontao tambm permite descrever melhor o funcionamento do cdigo em suas diferentes manifestaes. Isso no impede que a descrio precisa de uma obra particular seja uma premissa necessria. Como bem observou Vinogradov: "Conhecer o estilo individual do escritor independentemente de toda tradio, de toda outra obra contempornea e em sua totalidade enquanto sistema lingstico, conhecer a organizao esttica, esta uma tarefa que deve preceder qualquer investigao histrica" (TL, p. 109). 3.1.3. A experincia das tentativas de classificaes em lingstica e em histria literria leva a formular alguns [Pgina 16]
princpios bsicos. Em primeiro lugar, a classificao tem de ser tipolgica e no gentica, as semelhanas estruturais no devem ser procuradas na "influncia" direta de uma obra sobre uma outra. Esse princpio, diga-se de passagem, foi discutido por Vinogradov em seu artigo "Sobre os ciclos literrios" (1929). Em seguida, deve-se considerar o carter estratificado da obra literria. O principal defeito das tipologias propostas em histria literria sob a influncia da histria da arte que, construdas partir de um nico e mesmo plano, so contudo aplicadas a obras e mesmo a perodos inteiros4. Em contraposio, a tipologia lingstica confronta os sistemas fonolgico, morfolgico ou sinttico sem que os diferentes recortes coincidam necessariamente. A classificao deve portanto seguir a estratificao do sistema em planos e no em nveis (obras). Por fim, a estrutura pode se evidenciar tanto nas relaes entre os personagens como nos diferentes estilos de narrativa, ou no ritmo... assim que, em O capote de Gogol, a oposio se d pelo jogo entre dois pontos de vista diferentes, adotados sucessivamente pelo autor, que se refletem em diferenas lexicais, sintticas etc. (Eikhenbaum, in TL, pp. 212-33). O estado contemporneo dos estudos lingsticos sobre a classificao traz grande nmero de sugestes sobre esse procedimento de comparao e de generalizao.3.2.1. Consideremos agora a tipologia das formas narrativas simples, tal como foi esboada por Chklovski e, em parte, por Eikhenbaum. Estas formas esto representadas [Pgina 17]_________________________ (nota de rodap) 4. As excees aparentes, como a de Petersen, que prope dez oposies binrias sobre sete estratos superpostos, perdem valor por causa do carter intuitivo dessas oposies por exemplo, objetivo-subjetivo, claro-vago, plstico-musical etc.
sobretudo na novela, de que o romance s se distingue por sua maior complexidade. No entanto, as dimenses do romance (seu aspecto sintagmtico) relacionam-se com os procedimentos que ele utiliza (seu aspecto paradigmtico). Eikhenbaum observa que o desfecho do romance e o da novela seguem leis diferentes. "O fim do romance um momento de enfraquecimento e no de reforo; o ponto culminante da ao principal tem de estar em algum lugar antes do fim... Por isso natural que um fim inesperado seja um fenmeno muito raro no romance... ao passo que a novela tende precisamente para o inesperado do final em que culmina o que o precede. No romance, ao ponto culminante deve se seguir certo declnio, ao passo que na novela mais natural parar no pico que se atingiu" (TL, p. 203). Essas consideraes concernem evidentemente apenas ao "tema", seqncia de acontecimentos tal como apresentada na obra. Chklovski supe que todo tema responde a certas condies gerais, fora das quais uma narrativa no tem tema propriamente dito. "No basta uma simples imagem, um simples paralelo, nem mesmo a simples descrio de um acontecimento para que tenhamos a impresso de estar diante de um conto" (TL, p. 170). "Se no deparamos com um desfecho no temos a impresso de estar perante um tema" (TL, p. 174). Para construir um tema preciso que o fim se apresente nos mesmos termos que o comeo, embora numa relao modificada. Todas essas anlises, que visam definir a relao estrutural, examinam apenas, no o esqueamos, o modelo construdo e no a narrativa enquanto tal. 3.2.2. As observaes de Chklovski sobre as diferentes maneiras de construir o tema de uma novela levam a distinguir duas formas que, na verdade, coexistem na maioria das narrativas: a construo em patamares e a [Pgina 18]
construo em anel, ou em crculo. A construo em patamares uma forma aberta (A1 + A2 + A3 + ... An), em que os termos enumerados apresentam sempre um trao comum; por exemplo, as atitudes anlogas de trs irmos nos contos, ou ento a sucesso de aventuras de um mesmo personagem. A construo em anel uma forma fechada (A1 R1 A2) ... (A1 R2 A2)5 que repousa sobre uma oposio. Por exemplo, a narrativa comea com uma predio, que no fim se realiza apesar dos esforos dos personagens. Ou ento, o pai anseia pelo amor da filha, mas s se d conta disso no fim da narrativa. Essas duas formas encaixam-se uma na outra segundo vrias combinaes; geralmente, a novela como um todo apresenta uma forma fechada, da a sensao de completude que ela suscita nos leitores. A forma aberta se realiza segundo dois tipos principais, um dos quais encontrado nas novelas e romances de mistrio (Dickens), nos romances policiais. O outro consiste no desenvolvimento de um paralelismo como, por exemplo, em Tolsti. A narrativa de mistrio e a narrativa com desenvolvimentos paralelos so, em certo sentido, opostas, embora possam coexistir na mesma narrativa: a primeira desmascara as semelhanas ilusrias, mostra a diferena entre dois fenmenos aparentemente semelhantes. A segunda, ao contrrio, descobre a semelhana entre dois fenmenos diferentes e primeira vista independentes. Essa esquematizao sem dvida empobrece as finas observaes de Chklovski, que nunca se preocupou nem em sistematiz-las nem em evitar contradies. O material que reuniu para embasar suas teses considervel, tomado tanto da literatura clssica [Pgina 19]______________________________ (nota de rodap) 5. Al A2... designam as unidades paradigmticas; R1 R2..., as relaes entre elas.
como da literatura moderna; no entanto, o nvel de abstrao tamanho que difcil convencer-se. Um trabalho como esse deveria ser empreendido, pelo menos no comeo, dentro dos limites de uma nica literatura nacional e de um determinado perodo. mais um campo de investigao que continua virgem.
4.1.1. Um problema que sempre preocupou os tericos da literatura o das relaes entre a realidade literria e a realidade qual a literatura se refere. Os formalistas fizeram um esforo considervel para elucid-las. Esse problema, que se coloca em todos os campos do conhecimento, fundamental para o estudo semiolgico, pois coloca em primeiro plano as questes de sentido. Lembremos sua formulao em lingstica, em que ele o prprio objeto da semntica. De acordo com a definio de Peirce, o sentido de um smbolo sua traduo em outros smbolos. Essa traduo pode se dar em trs estgios diferentes. Pode permanecer intralingstica, quando o sentido de um termo formulado com a ajuda de outros termos da mesma lngua; nesse caso deve-se estudar o eixo das substituies de uma lngua (cf. a esse respeito as reflexes de Jakobson, 1963, pp. 41-2, 78-9). Pode ser interlingstica; Hjelmslev nos fornece exemplos quando compara os termos designativos dos sistemas de parentesco ou de cores em diferentes lnguas. Por fim, pode ser intersemitica, quando o recorte lingstico comparado com o recorte efetuado por um dos outros sistemas de signos (em sentido amplo). "A descrio semntica deve portanto consistir, antes de qualquer coisa, em aproximar a lngua das outras instituies sociais, e garantir o contato entre a lingstica e os outros ramos da antropologia social" (Hjelmslev, p. 109). Em nenhum desses trs nveis intervm as "coisas" designadas. Para tomar um exemplo, a significao lingstica [Pgina 20]
da palavra "jaune" no se estabelece por referncia aos objetos amarelos, mas por oposio s palavras "rouge", "vert", "blanc" etc., no sistema lingstico francs; ou ento por referncia s palavras "yellow", "gelb", "zholtyj" etc., ou ainda por referncia escala dos comprimentos de onda da luz, definida pela fsica, que tambm um sistema de signos convencionais. 4.1.2. A sintaxe, conforme a definio dos lgicos, deveria tratar das relaes entre os signos. Na verdade, ela limitou seu campo ao eixo sintagmtico (eixo dos encadeamentos) da linguagem. Geralmente, a semntica estuda as relaes entre a lngua e os sistemas de signos no-lingsticos. O estudo da paradigmtica, ou do eixo das substituies, foi negligenciado. Por outro lado, a existncia de signos cuja principal funo sinttica vem obscurecer o problema. Na lngua natural estes servem para estabelecer relaes entre outros signos, por exemplo, certas preposies, os pronomes possessivos, relativos, a cpula6. Evidentemente, eles tambm existem em literatura; garantem a harmonia, o vnculo entre os diferentes episdios ou fragmentos. Essa distino de ordem lgica no deve ser confundida com a distino lingstica entre significao gramatical e significao lexical, entre forma e substncia do contedo, embora as duas muitas vezes coincidam. Na lngua, por exemplo, a flexo de nmero muitas vezes depende da "significao gramatical", mas sua funo semntica. Assim, em literatura os signos com funo sinttica no dependem necessariamente das regras de composio, que correspondem gramtica ( forma do contedo) de uma lngua natural. A exposio de [Pgina 21]__________________________________
6. Distino formulada por E. Benveniste em seu curso no Collge de France, 1963-1964.
(nota de rodap)
uma narrativa no se encontra necessariamente no comeo, nem o desfecho, no fim. 4.2.1. As distines entre relaes e funes so bastante complexas. Os formalistas observaram-nas sobretudo nas transies, em que seu papel aparece mais claramente. Para eles, um dos principais fatores da evoluo literria reside no fato de que certos procedimentos ou certas situaes passam a aparecer automaticamente, perdendo assim seu papel "semntico" e vindo a desempenhar apenas um papel de ligao. Numa substituio fenmeno freqente no folclore , o novo signo pode desempenhar o mesmo papel sinttico, sem ter mais nenhuma relao com a "verossimilhana" da narrativa; assim se explica a presena, nas canes populares por exemplo, de certos elementos cujo "sentido" totalmente estranho ao resto. Inversamente, os elementos com funo dominante semntica podem ser modificados sem que mudem os signos sintticos da narrativa. Skaftymov, que se preocupou com esse problema em seu estudo sobre as bylines (as canes picas russas), d exemplos convincentes: "Mesmo ali onde, em razo das mudanas ocorridas nas outras partes da cano pica, o disfarce deixa de ter qualquer necessidade e chega at a contradizer a situao criada, ele conservado a despeito de todos os inconvenientes e absurdidades que engendra" (p. 77).4.2.2. O problema que mais chamou a ateno dos formalistas concerne relao entre as coeres impostas narrativa por suas necessidades internas (paradigmticas) e aquelas que decorrem da necessria harmonia com o que os outros sistemas de signos nos dizem sobre o mesmo tema. A presena de tal ou qual elemento na obra se justifica pelo que eles chamam de sua "motivao". Tomachevski distingue trs tipos de motivao: [Pgina 22]
compositiva, que corresponde aos signos essencialmente sintticos; realista, que remete s relaes com as outras linguagens; e, por fim, esttica, que torna manifesto o pertencimento de todos os elementos ao mesmo sistema paradigmtico. As duas primeiras motivaes so geralmente incompatveis, ao passo que a terceira concerne a todos os signos da obra. A relao entre as duas ltimas ainda mais interessante porque suas exigncias no so do mesmo nvel e no se contradizem. Skaftymov prope caracterizar esse fenmeno da seguinte maneira: "Mesmo no caso de uma orientao direta para a realidade, o campo de realidade considerado, ainda que limitado a um fato, possui um contexto e um foco dos quais recebe sua organizao... A realidade efetiva exposta em grandes linhas, o acontecimento inscreve-se exclusivamente na trama da urdidura principal e apenas na medida em que seja necessrio para a reproduo da situao psicolgica fundamental. Embora a realidade efetiva seja retransmitida de modo grosseiramente aproximado, ela que representa o objeto imediato e direto do interesse esttico, ou seja, da expresso, da reproduo e da interpretao; e a conscincia do cantor est a ela subordinada. As substituies concretas no corpo da narrativa no lhe so indiferentes, pois so regidas no s pela expressividade emocional geral, como tambm pelas exigncias do objeto da cano, ou seja, por critrios de reproduo e de semelhana" (p. 101). Tomachevski v as relaes entre as duas motivaes numa perspectiva quase estatstica. "Exigimos de cada obra uma iluso elementar... Nesse sentido, cada motivo deve ser introduzido como um motivo provvel para aquela situao. Mas como as leis de composio do tema nada tm a ver com a probabilidade, cada introduo de motivos um compromisso entre essa probabilidade objetiva e a tradio literria" (TL, pp. 284-5). [Pgina 23]
4.2.3. Os formalistas procuraram analisar essencialmente a motivao esttica, sem no entanto ignorar a motivao "realista". O estudo da primeira justifica-se ainda mais pelo fato de que geralmente no temos condies de estabelecer a segunda. Nossa atitude habitual de restabelecer a realidade de acordo com a obra e tentar uma explicao da obra por essa realidade restituda constitui, na verdade, um crculo vicioso. Com efeito, o recorte literrio pode s vezes ser comparado com outros recortes fornecidos seja pelo prprio autor, seja por outros documentos relativos mesma poca ou aos mesmos personagens, em se tratando de personagens histricos. o caso das canes picas russas que refletem uma realidade histrica conhecida; os personagens so freqentemente prncipes ou senhores russos. Ao estudar essas relaes, Skaftymov escreve: "O fim trgico da cano pica provavelmente sugerido por sua fonte histrica ou lendria, mas a motivao da desgraa de Soukhomanti... no se justifica por nenhuma realidade histrica. Tampouco alguma tendncia moral responsvel por ela. Resta to-somente a orientao esttica, apenas ela d sentido origem desse quadro e o justifica" (p. 108). Ao comparar os diferentes personagens das canes com os personagens reais, Skaftymov chega seguinte concluso: "O grau de realismo dos diferentes elementos da cano pica varia conforme sua importncia na organizao geral do conjunto... A relao entre os personagens da cano pica e seus prottipos histricos determinada por sua funo na concepo geral da narrativa" (p. 127).5.1. Numa poca em que os lingistas utilizam cada vez mais os procedimentos matemticos, convm lembrar que os formalistas foram os primeiros a tentar faz-lo: Tomachevski aplica a teoria das cadeias de Markoff ao estudo [Pgina 24]
da prosdia. um esforo que merece ateno no momento em que as matemticas "qualitativas" tm tido grande aplicao em lingstica. Tomachevski nos deixou no s um estudo precioso sobre o ritmo de Pushkin, como tambm foi capaz de perceber que o ponto de vista quantitativo no deve ser abandonado quando a natureza dos fatos o justifica, sobretudo quando ela na verdade depende de leis estatsticas. Em resposta s inmeras objees suscitadas por seu estudo, Tomachevski escreve (1929): "No se deve proibir cincia a utilizao de um mtodo, seja ele qual for... O nmero, a frmula, a curva so smbolos do pensamento tanto quanto as palavras e s so compreensveis para aqueles que dominam esse sistema de smbolos... O nmero no decide nada, ele no interpreta, apenas uma maneira de estabelecer e descrever os fatos. Se se abusou de nmeros e grficos, nem por isso o mtodo se tornou vicioso: o culpado quem abusa, no o objeto desse abuso" (pp. 275-6). Os abusos so bem mais freqentes que as tentativas bem sucedidas, e Tomachevski no cessa de alertar-nos contra as simplificaes prematuras. "Os clculos tm muitas vezes por finalidade estabelecer um coeficiente capaz de autorizar imediatamente um juzo sobre a qualidade do fato submetido prova... Todos esses 'coeficientes' so extremamente nefastos por causa de uma 'estatstica' filolgica... No se deve esquecer que, mesmo no caso de um clculo correto, o nmero obtido caracteriza to-somente a freqncia de aparecimento de um fenmeno, mas nada nos esclarece sobre sua qualidade" (pp. 35-6).5.2. Tomachevski aplica os procedimentos estatsticos ao estudo do verso de Pushkin. Em suas prprias palavras, "toda estatstica deve ser precedida de um estudo que investigue a diferenciao real dos fenmenos" (p. 36). Esse estudo o leva a distinguir trs nveis diferentes no estudo [Pgina 25]
do metro; por um lado, um esquema de carter obrigatrio, que no entanto no especifica as qualidades do verso, por exemplo, o verso imbico de cinco ps; por outro, o "uso", ou seja, o verso particular. Entre os dois situa-se o padro rtmico, ou norma (o "modelo de execuo", na terminologia de Jakobson, 1963, p. 232). Essa norma pode ser estabelecida para uma obra ou para um autor, e o mtodo estatstico aplicado ao conjunto escolhido. Assim, o ltimo tempo forte em Pushkin acentuado em 100% dos casos, o primeiro, em 85%, o penltimo, em 40% etc. Vemos mais uma vez as noes da anlise literria aproximarem-se das da lingstica. Lembremos, com efeito, que para Hjelmslev, que estabelece uma distino entre uso, norma e esquema na linguagem, "a norma apenas uma abstrao extrada do uso por um artifcio de mtodo. Ela constitui, no mximo, um corolrio conveniente para poder formular os quadros da descrio do uso" (p. 80). Para Tomachevski, o estudo da norma se resume " observao das variantes tpicas dentro dos limites das obras unidas pela identidade da forma rtmica (por exemplo: o troqueu de Pushkin em seus contos dos anos 30); ao estabelecimento do seu grau de freqncia; observao dos desvios do tipo; observao do sistema de organizao dos diferentes aspectos sonoros do fenmeno estudado (os supostos traos secundrios do verso7); definio das funes construtivas desses desvios (as figuras rtmicas) e interpretao das observaes" (p. 58). Esse vasto programa ilustrado por anlises exaustivas do iambo de quatro e cinco ps de Pushkin, confrontado ao mesmo tempo com as normas de outros poetas ou de outras obras de Pushkin. [Pgina 26] ____________________(nota de rodap)
7. Como a sonoridade, o lxico, a sintaxe etc.
Esse mtodo aplica-se ainda melhor a campos em que o quadro obrigatrio no definido com preciso. o caso do verso livre e sobretudo da prosa, em que no existe nenhum esquema. Por isso, para o verso livre, "construdo como uma violao da tradio, intil procurar uma lei rigorosa que no admita excees. Deve-se procurar apenas a norma mdia, e estudar a amplitude dos desvios em relao a ela" (p. 61). Para a prosa tambm "a forma mdia e a amplitude das oscilaes so os nicos objetos de investigao... O ritmo da prosa deve, por princpio, ser estudado com a ajuda de um mtodo estatstico" (p. 275). 5.3.1. A concluso que esses mtodos no devem ser aplicados nem ao estudo de um exemplo em particular, ou seja, interpretao de uma obra, nem ao estudo das leis e das regularidades que regem as grandes unidades do sistema literrio. Disso se pode deduzir que a distribuio das unidades literrias (do sistema conotativo) no segue nenhuma lei estatstica, mas que a distribuio dos elementos lingsticos (do sistema denotativo) no interior dessas unidades obedece a uma norma de probabilidade. Assim se justificariam os numerosos e brilhantes estudos estilsticos dos formalistas (por exemplo, Skaftymov, Vinogradov, 1929) que observam a acumulao de certas formas sintticas ou de diferentes estratos do lxico em torno das unidades paradigmticas (por exemplo, os personagens) ou sintagmticas (os episdios) do sistema literrio. Trata-se evidentemente aqui de norma e no de regra obrigatria. As relaes entre essas grandes unidades continuam sendo puramente "qualitativas", e engendram uma estrutura cujo estudo inacessvel por mtodos estatsticos, o que explica o maior ou menor sucesso desses mtodos quando eles so aplicados ao estudo do estilo, [Pgina 27]
isto , distribuio das formas lingsticas numa obra. O defeito fundamental desses estudos ignorar a existncia de dois sistemas diferentes de significao (denotativo e conotativo) e tentar interpretar a obra diretamente a partir do sistema lingstico. 5.3.2. Esta concluso poderia sem dvida ser estendida a sistemas literrios de maiores dimenses. A evoluo formal de uma literatura nacional, por exemplo, obedece a leis no-mecnicas. Ela passa, segundo Tynianov (1929), pelas seguintes etapas: "1) o princpio de construo automatizada evoca dialeticamente o princpio de construo oposto; 2) este encontra sua aplicao sob sua forma mais fcil; 3) ele se estende maior parte dos fenmenos; 4) ele se automatiza e evoca por sua vez princpios de construo opostos" (p. 17). Essas etapas s podero ser delimitadas e definidas em termos de acumulao estatstica, o que corresponde s exigncias gerais da epistemologia, que nos ensina que apenas os estados temporrios dos fenmenos obedecem s leis da probabilidade. Desta maneira se fundamentaria, melhor do que o foi at agora, a aplicao de certos procedimentos matemticos aos estudos literrios. 1964.
Bibliografia I. Textos dos formalistas russos em traduo francesa Thorie de Ia littrature. Textes des formalistes russes (col. "Telquel"), Paris, Seuil, 1965. [Teoria da literatura II Textos dos formalistas russos, Lisboa, Edies 70,1989] [Pgina 28]
M. Bakhtine, La potique de Dostoievski (col. "Pierres Vives"), Paris, Seuil, 1970. [Problemas da potica de Dostoievski, Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1997] O. Brik, "Nous autres futuristes", "La commande sociale", "Sur Khlebnikov", La mode, Vinvention (col. "Change", 4), Paris, Seuil, 1969, pp. 183-202. B. Eikhenbaum, "Problmes de Ia cin-stylistique", Cahiers du Cinema, 220-1, 1970, pp. 70-8. B. Eikhenbaum, "La vie littraire", Manteia, 9-10,1970, pp. 91-100 (curiosamente traduzido do alemo). V. Propp, Morphologie du conte (col. "Potique/Points"), Paris, Seuil, 1970. [Morfologia do conto maravilhoso, Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1984] J. Tynianov, "Destruction, parodie", La destruction (col. "Change", 2), Paris, Seuil, 1969, pp. 67-76. J. Tynianov, "Des fondements du cinema", Cahiers du Cinema, 220-1,1970, pp. 59-68. J. Tynianov, "Le fait littraire", Manteia, 9-10, 1970, pp. 67-87 (tambm traduzido do alemo). Entre as tradues para outras lnguas ocidentais, destacamos Texte der russischen Formalisten, 1.1, Munique, 1969 (edio bi-lnge). J. Tynianov, II problema dei lnguaggio potico, Milo, 1968.
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O. Brik, "Zvukovye povtory", Poetika, Petrogrado, 1919. V. Chklovski, Tretjafabrika, Moscou, 1926. B. Eikhenbaum, Literatura, Leningrado, 1927. R. Jakobson, Novejshaja russkaja poezija, Praga, 1921. [Pgina 29]
R. Jakobson, O cheshskom stikhe, Berlim, 1923. L. Jakubinski, "O zvukakh stikhotvornogo jazyka", Sborniki po teorii poeticheskogo jazyka, I, Petersburgo, 1916. Russkaja proza, Leningrado, 1926. A. Skaftymov, Poetika i genezis bylin, Moscou-Saratov, 1924. B. Tomachevski, O stikhe, Leningrado, 1929.J. Tynianov, Problema stikhotvornogo jazyka, Leningrado, 1924.
, Arkhaisty i novatory, Leningrado, 1929. V. Vinogradov, Evoljucija russkogo naturalizma, Leningrado, 1929. III. Outras obras citadas L. Hjelmslev, Essais linguistiques, Copenhague, 1959.Ch. Hockett, A Course n Modem Linguistics, Nova York, 1958.
R. Jakobson, Essais de linguistique gnrale, Paris, 1963. J. Mukaovsky, "Littrature et smiologie ", Potique, 1 (1970), 3. J. Petersen, Die Wissenschaft von derDichtung, 1.1, Berlin, 1939. [Pgina 30]
CAPTULO 2 LINGUAGEM E LITERATURA
O que me proponho a desenvolver pode ser resumido por esta frase de Valry, frase que ele tentou a um s tempo explicitar e ilustrar: "A Literatura , e nada mais pode ser seno uma espcie de extenso e de aplicao de certas propriedades da linguagem." O que nos permite afirmar a existncia desse vnculo? O prprio fato de a obra literria ser uma "obra de arte verbal" vem h muito tempo incitando os estudiosos a falar da "importante funo" da linguagem na literatura; toda uma disciplina, a estilstica, foi criada numa zona intermediria entre os estudos literrios e a lingstica; inmeras teses foram escritas sobre a "lngua" de tal ou qual escritor. Define-se linguagem aqui como a matria do poeta ou da obra. Essa associao, bvia demais, de forma nenhuma esgota a enorme quantidade de relaes entre linguagem e literatura. Na frase de Valry, talvez no se trate da linguagem enquanto matria, mas sim enquanto modelo. A linguagem cumpre essa funo em muitos casos estranhos literatura. O homem se constituiu a partir da linguagem [Pgina 31]
os filsofos de nosso sculo j o disseram tantas vezes e encontramos seu esquema em toda atividade social. Ou, para retomar as palavras de Benveniste, "a configurao da linguagem determina todos os sistemas semiticos". Como a arte um desses sistemas semiticos, certamente descobriremos nela a marca das formas abstratas da linguagem. A literatura goza evidentemente de uma posio particularmente privilegiada entre as atividades semiticas. Ela tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; esta lhe fornece tanto sua configurao abstrata quanto sua matria perceptvel, ao mesmo tempo mediadora e mediada. Por isso, a literatura no s o primeiro campo a ser estudado a partir da linguagem, mas tambm o primeiro cujo conhecimento pode lanar nova luz sobre as propriedades da prpria linguagem. Essa posio particular da literatura determina nossa relao com a lingstica. claro que, ao lidar com a linguagem, no temos o direito de ignorar o saber acumulado por essa cincia, e, alis, por nenhuma outra investigao sobre a linguagem. No entanto, como toda cincia, a lingstica procede muitas vezes por reduo e por simplificao de seu objeto para poder manej-lo com mais facilidade; afasta ou ignora temporariamente alguns aspectos da linguagem a fim de estabelecer a homogeneidade dos outros e fazer transparecer sua lgica. E um procedimento sem dvida justificado na evoluo interna dessa cincia, mas contra o qual devem-se precaver aqueles que extrapolam seus resultados e seus mtodos: os aspectos desconsiderados talvez sejam precisamente aqueles que tm maior importncia num outro "sistema semitico". A unidade das cincias humanas reside menos nos [Pgina 32]
mtodos elaborados em lingstica e que comeam a ser utilizados em outras reas do conhecimento que no objeto comum a todas e que precisamente a linguagem. A imagem que hoje fazemos dela e que deriva de certos estudos dos lingistas s tem a ganhar dos ensinamentos oriundos dessas outras cincias. Se adotarmos essa perspectiva, fica evidente que todo conhecimento da literatura seguir uma via paralela do conhecimento da linguagem, ou at mais: essas duas vias tendero a se confundir. Abre-se um campo imenso para essa investigao; apenas uma parte relativamente pequena foi explorada at agora nos trabalhos cujo brilhante pioneiro Roman Jakobson. Esses estudos dedicaram-se poesia e tentam demonstrar a existncia de uma estrutura formada pela distribuio dos elementos lingsticos no interior de um poema. Proponho-me a indicar aqui, dessa vez a propsito da prosa literria, alguns pontos em que a associao entre linguagem e literatura parece particularmente fcil. Nem preciso dizer que, devido ao estado atual de nossos conhecimentos nesse terreno, limitar-me-ei a comentrios de carter geral, sem nenhuma pretenso de "esgotar o tema".Na verdade, j se tentou uma vez realizar essa associao e dela tirar proveito. Os formalistas russos, pioneiros em mais de um terreno, j tinham tentado explorar essa analogia. Situavam-na, mais precisamente, entre os procedimentos estilsticos e os procedimentos de organizao da narrativa; um dos primeiros artigos de Chklovski intitulava-se: "A relao entre os procedimentos de composio e os procedimentos estilsticos gerais". Nele o autor observava que "a construo em patamares se encontrava na mesma srie das repeties dos sons, da tautologia, do paralelismo tautolgico, das repeties" (TL, p. 48). [Pgina 33]
Os trs golpes dados por Rolando na pedra eram para ele da mesma natureza que as repeties ternrias lexicais na poesia folclrica. No pretendo fazer um estudo histrico e me contentarei em evocar brevemente alguns outros resultados das investigaes formalistas, dando-lhes a forma que possa nos ser til aqui. Em seus estudos sobre a tipologia das narrativas, Chklovski distinguiu dois grandes tipos de combinaes entre as histrias: por um lado, existe uma forma aberta qual sempre se podem acrescentar novas peripcias no fim, por exemplo, as aventuras de um heri qualquer, como Rocambole; e por outro, uma forma fechada que comea e termina com o mesmo motivo e no interior da qual nos so contadas outras histrias, por exemplo a histria de dipo: no comeo uma predio, no fim sua realizao, entre os dois as tentativas de evit-la. Chklovski, contudo, no se deu conta de que essas duas formas representam a projeo rigorosa das duas figuras sintticas fundamentais que servem para combinar duas proposies entre si, a coordenao e a subordinao. Notemos que hoje, em lingstica, essa segunda operao denominada com um termo tomado da antiga potica: engaste [enchssement].Na passagem citada acima, falava-se de paralelismo; esse procedimento apenas um dos destacados por Chklovski. Ao analisar Guerra e paz, ele descobre por exemplo a anttese formada pelos pares de personagens: "1. Napoleo-Kutusov; 2. Pierre Bezhukov-Andr Bolkonski e ao mesmo tempo Nicolau Rostov, que serve de eixo de referncia para ambos" (TL, p. 187). Encontramos tambm a gradao: vrios membros de uma famlia apresentam os mesmos traos de carter mas em diferentes graus. Assim, em Anna Karenina, "Stiva situa-se num patamar inferior em relao sua irm" (TL, p. 188). [Pgina 34]
Mas o paralelismo, a anttese, a gradao, a repetio so todas figuras retricas. Pode-se portanto formular assim a tese subjacente aos comentrios de Chklovski: existem figuras da narrativa que so projees das figuras retricas. A partir dessa suposio poderamos examinar quais as formas adotadas por outras figuras de retrica, menos conhecidas, no nvel da narrativa. Tomemos, por exemplo, a associao, figura relacionada com o emprego de uma pessoa inadequada do verbo. Eis um exemplo lingstico, uma frase que um professor poderia dirigir a seus alunos: "O que temos para hoje?" Todos se lembram sem dvida da demonstrao sobre os empregos dessa figura em literatura, feita por Michel Butor a propsito de Descartes. Lembram-se tambm do emprego dela que ele mesmo faz em seu livro La modification. Eis outra figura que poderia ser tida por uma definio do romance policial, se no a tivssemos tomado da retrica de Fontanier, escrita em princpios do sculo XIX. E a sustentao; ela "consiste em manter o leitor ou ouvinte por muito tempo em suspense, e em surpreend-lo em seguida com algo que ele absolutamente no esperava". A figura pode portanto se transformar num gnero literrio.M. M. Bakhtin, o grande crtico literrio sovitico, demonstrou a utilizao singular feita por Dostoivski de uma outra figura, a ocupao, assim definida por Fontanier: "ela consiste em prevenir ou rejeitar de antemo uma objeo de que poderamos ser alvo". Toda fala dos personagens de Dostoivski engloba, implicitamente, a de seu interlocutor, imaginrio ou real. O monlogo sempre um dilogo dissimulado, o que determina, precisamente, a profunda ambigidade das personagens de Dostoivski. Evocarei, por ltimo, algumas figuras baseadas em uma das propriedades essenciais da linguagem: a ausncia [Pgina 35]
de relao biunvoca entre os sons e o sentido; ela d lugar a dois fenmenos lingsticos bem conhecidos, a sinonmia e a polissemia. A sinonmia, base dos jogos de palavra no uso lingstico, adota a forma de um procedimento literrio que chamamos de "reconhecimento". O fato de o mesmo personagem poder ter duas aparncias, ou, se quisermos, a existncia de duas formas para o mesmo contedo, lembra o fenmeno resultante da associao de dois sinnimos. A polissemia d lugar a vrias figuras retricas das quais apenas mencionarei uma: a silepse. Um exemplo notrio de silepse aparece neste verso de Racine: "Brl de plus de feux que je n'en arrumai*". Do que decorre a figura? Do fato de a palavra feux, que faz parte de ambas as oraes, ser tomada, em cada uma, em dois sentidos diferentes. Os feux da primeira orao so imaginrios, queimam a alma do personagem, ao passo que os feux da segunda correspondem a incndios bem reais.Essa figura difundiu-se muito na narrativa; podemos observ-la, por exemplo, numa novela de Bocaccio. Ali nos contam que um padre fora casa de sua amante, a mulher de um burgus da cidade. Subitamente, o marido chega: o que fazer? O padre e a mulher, que tinham se fechado no quarto do beb, fingem cuidar deste ltimo, que, dizem eles, est doente. O marido reconfortado agradece-lhes calorosamente. O movimento da narrativa segue, como se v, exatamente a mesma forma da silepse. Um mesmo fato, o padre e a mulher no quarto de dormir, recebe uma interpretao na parte da narrativa que o precede e outra naquela que o sucede; de acordo com a parte [Pgina 36] _______________________________(Nota de rodap)
* Literalmente: "Queimado por mais fogos do que os que
ateei. [N.daT.]
precedente, um encontro entre amantes; de acordo com a seguinte, tratam da criana doente. Essa figura muito freqente em Boccaccio: pensemos nas histrias do rouxinol, do barril etc. At aqui nossa comparao, em conformidade com o mtodo dos formalistas dos quais partimos, justapunha manifestaes da linguagem a manifestaes literrias; em outras palavras, apenas observamos formas. Gostaria de esboar aqui uma outra abordagem possvel que interrogasse as categorias subjacentes a estes dois universos, o universo da fala e o universo da literatura. Para isso temos de abandonar o nvel das formas e atingir o das estruturas. Isso nos levar a nos afastarmos da literatura e nos aproximarmos desse discurso sobre a literatura que a crtica. Os problemas de significao puderam ser abordados de maneira se no feliz, pelo menos promissora a partir do momento em que se definiu melhor a noo de sentido. Durante muito tempo a lingstica negligenciou esse fenmeno, por isso no ser nela que encontraremos nossas categorias, e sim entre os lgicos. Podemos tomar como ponto de partida a diviso tripartite de Frege: um signo teria uma referncia, um sentido e uma imagem associada (Bedeutung, Sinn, Vorstellung). Somente o sentido se deixa apreender com a ajuda dos mtodos lingsticos rigorosos, pois s ele depende apenas da linguagem e controlado exclusivamente pela fora do uso, dos hbitos lingsticos. O que o sentido? , nos diz Benveniste, a capacidade que uma unidade lingstica tem de integrar uma unidade de nvel superior. O sentido de uma palavra delimitado pelas combinaes nas quais pode cumprir sua funo lingstica. O sentido de uma palavra o conjunto de suas relaes possveis com outras palavras. [Pgina 37]
Isolar o sentido no conjunto das significaes um procedimento que poderia ser de grande ajuda para o trabalho de descrio em estudos literrios. No discurso literrio, assim como no discurso cotidiano, o sentido se deixa isolar de um conjunto de outras significaes, s quais se poderia dar o nome de interpretaes. Todavia, aqui o problema do sentido mais complexo: se na fala a integrao das unidades no ultrapassa o nvel da frase, em literatura as frases se integram de novo em enunciados, e os enunciados, por sua vez, em unidades de dimenses maiores, at a obra toda. O sentido de um monlogo ou de uma descrio apreendido e comprovado por suas relaes com os outros elementos da obra, que podem ser a caracterizao de um personagem, a preparao de uma reviravolta na trama, um adiamento. Em contrapartida, as interpretaes de cada unidade so inmeras, pois dependem do sistema em que ela ser includa para ser compreendida. Conforme o tipo de discurso no qual se projeta o elemento da obra, teremos uma crtica sociolgica, psicanaltica ou filosfica. Mas ser sempre uma interpretao da literatura num outro tipo de discurso, ao passo que a busca do sentido no nos leva para fora do prprio discurso literrio. Talvez fosse a que se devesse traar a fronteira entre essas duas atividades aparentadas e no entanto distintas que so potica e crtica. Passemos agora para um outro par de categorias fundamentais. Elas foram formuladas por mile Benveniste em suas pesquisas sobre os tempos do verbo. Benveniste mostrou a existncia, na linguagem, de dois planos distintos de enunciao: o da fala e o da histria. Esses planos de enunciao se referem integrao do sujeito da enunciao no enunciado. No caso da histria, nos diz ele, "trata-se da apresentao dos fatos ocorridos num [Pgina 38]
certo momento do tempo sem nenhuma interveno do locutor na narrativa". A fala, em contraposio, definida como "toda enunciao que supe um locutor e um ouvinte, e no primeiro a inteno de influenciar o outro de alguma maneira". Cada lngua possui certo nmero de elementos destinados a nos informar unicamente sobre o ato e sobre o sujeito da enunciao e que realizam a converso da linguagem em fala; os outros destinam-se unicamente "apresentao dos fatos ocorridos". Teremos, portanto, de fazer uma primeira diviso na matria literria de acordo com o plano de enunciao que nela se manifesta. Tomemos as seguintes frases de Proust: "Prodigou-me uma amabilidade que era to superior de Saint-Loup, como esta afabilidade de um pequeno-burgus. Ao lado da de um grande artista, a amabilidade de um gro-senhor, por mais encantadora que seja, tem o ar de um desempenho de ator, de uma simulao." Nesse texto, apenas a primeira orao (at "amabilidade") concerne ao plano da histria. A comparao que se segue bem como a reflexo geral contida na segunda frase pertencem ao plano da fala, o que marcado por ndices lingsticos precisos (por exemplo, a mudana de tempo). Mas tambm a primeira orao est ligada fala, pois o sujeito da enunciao nela est indicado pelo pronome pessoal. H portanto uma interseo de meios para indicar o pertencimento da fala: eles podem ser ou externos (estilo direto ou indireto), ou internos, ou seja, o caso em que as palavras no remetem a uma realidade exterior. A dosagem dos dois planos de enunciao determina o grau de opacidade da linguagem literria: todo enunciado pertencente fala tem uma autonomia superior, pois ganha toda sua significao a partir de si mesmo, sem a intermediao de uma referncia imaginria. O fato de que Elstir [Pgina 39]
tenha prodigado sua amabilidade remete a uma representao exterior, a dos dois personagens e de um ato; mas a comparao e a reflexo que se seguem so representaes em si mesmas, remetem apenas ao sujeito da enunciao, afirmando assim a presena da prpria linguagem.A interpenetrao dessas duas categorias , constata-se, grande, e por si s j coloca inmeros problemas que ainda no foram abordados. A situao se complica ainda mais se nos dermos conta de que esta no a nica forma pela qual essas categorias ganham corpo em literatura. A possibilidade de considerar toda fala como sendo, acima de tudo, uma exposio sobre a realidade ou ento como enunciao subjetiva nos leva a outra constatao importante. Podemos ver a no s as caractersticas de dois tipos de falas, mas tambm dois aspectos complementares de toda fala, literria ou no. Em todo enunciado possvel separar provisoriamente esses dois aspectos: trata-se, por um lado, de um ato do locutor, de um agenciamento lingstico; por outro, da evocao de uma certa realidade; e esta, no caso da literatura, no tem nenhuma outra existncia seno aquela conferida pelo prprio enunciado.
Tambm nesse caso, os formalistas russos tinham destacado a oposio sem no entanto conseguir mostrar suas bases lingsticas. Em toda narrativa distinguiam a fbula, isto , a seqncia dos acontecimentos representados da mesma maneira como teriam transcorrido na vida, do tema, agenciamento particular dado a esses acontecimentos pelo autor. As inverses temporais eram seu exemplo predileto: evidente que o relato de um acontecimento posterior a outro antes deste trai a interveno do autor, ou seja, do sujeito da enunciao. Atualmente entendemos que essa oposio no corresponde a uma [Pgina 40]
dicotomia entre o livro e a vida representada, mas a dois aspectos, sempre presentes, de um enunciado, sua natureza dupla de enunciado e de enunciao. Esses dois aspectos do vida a duas realidades, lingsticas tanto uma ramo a outra: a dos personagens e a do par narrador-leitor. A distino entre fala e histria permite fundamentar melhor um outro problema da teoria literria, o das "vises" ou "pontos de vista". Na verdade, trata-se das transformaes que a noo de pessoa sofreu na narrativa literria. Esse problema, outrora levantado por Henry James, foi depois dele muitas vezes estudado; na Frana, sobretudo por Jean Pouillon, Claude-Edmonde Magny, Georges Blin. Esses estudos, que no levavam em conta a natureza lingstica do fenmeno, no conseguiram explicitar por completo sua natureza, embora tenham descrito seus aspectos mais importantes.A narrativa literria, que uma fala mediada e no imediata e que ademais est submetida s restries da fico, conhece uma nica categoria "pessoal", que a terceira pessoa: ou seja, a impessoalidade. Aquele que diz eu no romance no o eu da fala, ou seja, o sujeito da enunciao; apenas um personagem, e o status de suas palavras (o estilo direto) lhes d uma objetividade mxima, em vez de aproxim-las do verdadeiro sujeito da enunciao. Mas existe um outro eu, um eu a maior parte do tempo invisvel, que se refere ao narrador, essa "personalidade potica" que apreendemos atravs da fala. H portanto uma dialtica entre a pessoalidade e a impessoalidade, entre o eu do narrador (implcito) e o ele do personagem (que pode ser um eu explcito), entre a fala e a histria. Todo o problema das "vises" concentra-se no grau de transparncia dos eles impessoais da histria em relao ao eu da fala. [Pgina 41]
fcil ver, nessa perspectiva, qual a classificao das "vises" que podemos adotar; ela corresponde aproximadamente que Jean Pouillon props em seu livro Temps et roman: ou o eu do narrador aparece constantemente atravs do ele do heri, como no caso da narrativa clssica, com um narrador onisciente; a fala suplanta a histria; ou o eu do narrador fica totalmente apagado por trs do ele do heri; temos ento a famosa "narrao objetiva", tipo de narrativa praticada sobretudo pelos autores americanos entre as duas guerras: nesse caso, o narrador ignora tudo sobre seu personagem, de quem apenas v os movimentos, os gestos, de quem escuta as palavras; a histria suplanta a fala; ou ento o eu do narrador est em p de igualdade com o ele do heri, ambos esto informados da mesma maneira sobre o desenvolvimento da ao; o tipo de narrativa que, tendo surgido no sculo XVIII, atualmente predomina na produo literria; o narrador vincula-se a uma das personagens e observa tudo atravs de seus olhos; obtm-se assim, nesse tipo de narrativa precisamente, a fuso do eu e do ele num eu contador, o que torna a presena do verdadeiro eu, o do narrador, ainda mais difcil de apreender. Temos a apenas uma primeira diviso grosseira; toda narrativa combina vrias "vises" ao mesmo tempo; existem, por outro lado, inmeras formas intermedirias. O personagem pode trapacear consigo mesmo ao contar, assim como pode confessar tudo o que sabe sobre a histria; pode analis-la nos mnimos detalhes ou satisfazer-se com a aparncia das coisas; pode nos apresentar uma dissecao de sua conscincia (o "monlogo interior") ou um discurso articulado: todas essas variedades fazem parte da viso que coloca em p de igualdade narrador [Pgina 42]
e personagem. Anlises baseadas em categorias lingsticas podero captar melhor essas nuanas. Tentei delimitar as manifestaes mais evidentes de uma categoria lingstica na narrativa literria. Outras categorias aguardam a sua vez: um dia ser necessrio descobrir o que aconteceu com o tempo, a pessoa, o aspecto, a voz em literatura, pois eles certamente estaro presentes se a literatura nada mais for, como acreditava Valry, seno uma "extenso e aplicao de certas propriedades da linguagem". [Pgina 43] 1966.
CAPTULO 3 POTICA E CRTICA1
Eis aqui dois livros cujo confronto promete ser instrutivo. Possuem uma quantidade suficiente de traos em comum para que a oposio perfeita formada por seus outros aspectos no seja arbitrria, mas carregada de um sentido que exige ser revelado. Essa oposio concerne a diferentes aspectos de ambos os livros. Primeiro o tema: Structure du langage potique um estudo das propriedades comuns a todas as obras literrias; Figures dedica-se descrio de sistemas poticos singulares: o de tienne Binet, o de Proust, o de lAstre. O objetivo do primeiro formular os fundamentos da potica; o do segundo, reconstituir poticas. Um visa a poesia, o outro, a obra potica. A oposio se estende s propriedades formais. A escrita de Cohen sinttica e seu livro pretende ser transparente. Os textos de Genette so, ao contrrio, analticos, descritivos e, por assim dizer, opacos: no remetem a um [Pgina 45]_________________________1. Escrito a propsito de dois livros: Grard Genette, Figures, Seuil, 1966; Jean Cohen, Structure du langage potique, Flammarion, 1966.(nota de rodap)
sentido independente, a forma escolhida a nica possvel. No por acaso que exposio coerente de Cohen se oponha uma coletnea de artigos cuja unidade de difcil apreenso. E at mesmo o singular de a Structure se ope significativamente ao plural das Figures.No entanto, no teramos motivo para nos dedicarmos a destacar essas oposies se os dois livros no revelassem ao mesmo tempo uma unidade igualmente significativa. Digamos que essa unidade reside na abordagem imanente da literatura, praticada por ambos os autores. A explicao imanente dos fatos um slogan que hoje se tornou banal; mas, no que concerne reflexo sobre a literatura, acreditamos estar aqui diante das duas primeiras tentativas srias (na Frana) de tratar da literatura a partir dela mesma e por ela mesma. Esse princpio seria suficiente para fazer uma aproximao entre o mtodo deles e uma corrente de idias atual; outra particularidade vem se somar a esta e reforar a primeira impresso: o objetivo preciso de ambos os livros descrever estruturas literrias. A anlise estrutural da literatura teria finalmente nascido? Em caso afirmativo, como que ela pode se encarnar ao mesmo tempo em dois livros to diferentes? Para responder a essas questes, podemos partir de um dos artigos de Genette, intitulado precisamente "Estruturalismo e crtica literria". Ao problema colocado por esse ttulo, Genette d quatro respostas sucessivas: todo crtico , independentemente de suas intenes, "estruturalista", porque, como um bricoleur, faz uso dos elementos das estruturas existentes (as obras literrias) para forjar novas (a prpria obra crtica); os aspectos da obra pertencentes simultaneamente aos campos da anlise literria e da lingstica devem ser estudados com a ajuda dos mtodos elaborados pela lingstica estrutural; o estruturalista [Pgina 46]
impotente diante da obra singular, sobretudo se o crtico a investe com um sentido, o que sempre o caso se esta obra nos for suficientemente prxima; a histria literria, em contrapartida, pode e deve se tornar estrutural, estudando os gneros e sua evoluo. Para resumir, pode-se dizer que, na concepo de Genette, o campo da literatura deveria ser dividido em dois, sendo que cada uma das partes se presta a um tipo diferente de anlise: o estudo da obra singular no pode ser feito com a ajuda de mtodos estruturais, mas estes continuam pertinentes no que concerne outra parte do campo.Podemos nos perguntar se o vocabulrio da diviso territorial o mais apropriado para caracterizar essa diferena essencial. Preferiramos antes falar de um grau de generalizao. A anlise estrutural, no se deve esquecer, foi criada no interior de uma cincia; destinava-se a descrever o sistema fonolgico de uma lngua, no um som, o sistema de parentesco numa sociedade, no um parente. um mtodo cientfico e ao aplic-lo fazemos cincia. Ora, o que pode a cincia diante do objeto singular que um livro? No mximo, pode tentar descrev-lo; mas a descrio em si mesma no cincia e s se torna cincia a partir do momento em que tende a se inscrever numa teoria geral. Por isso, a descrio da obra s pode ser da ordem da cincia (e portanto admitir a aplicao dos mtodos estruturais) com a condio de que nos faa descobrir propriedades de todo o sistema de expresso literria ou ento de suas variedades sincrnicas e diacrnicas.
Reconhecem-se nisso as diretrizes prescritas por Genette "crtica estrutural": a descrio das propriedades do discurso literrio e a histria literria. A obra singular fica fora do objeto de estudo dos estruturalistas, menos por causa do investimento de sentido que se d por [Pgina 47]
ocasio da leitura que pela fora de sua condio mesma de objeto singular. Se o "crtico estruturalista" s existe, j faz muito tempo, no modo optativo porque nesse rtulo h uma contradio: a cincia que pode ser estrutural, no a crtica. A histria literria estrutural tampouco existe, por enquanto. Em contrapartida, eis que o livro de Jean Cohen nos fornece uma imagem do que pode ser essa investigao das propriedades do discurso literrio, qual melhor convm, a nosso ver, o nome de potica. Desde sua "Introduo", Cohen faz deliberadamente uma escolha: por um lado, quer formular hipteses cientficas, verificveis e refutveis, sem temer o sacrilgio que falar de uma "cincia da poesia"; por outro, considera a poesia, acima de tudo, como uma forma particular da linguagem, e por isso limita seu trabalho ao estudo das "formas poticas da linguagem e apenas da linguagem" (p. 8). O objetivo a que se prope o seguinte: descobrir e descrever as formas da linguagem, prprias da poesia, por oposio prosa; pois "a diferena entre prosa e poesia de natureza lingstica, ou seja, formal" (p. 199). Eis que a potica ganha por fim o lugar que lhe cabe, do lado da lingstica. Estamos evidentemente longe do crtico cujo objetivo seria caracterizar especificamente uma obra: o que interessa a Cohen um "invariante que perdure ao longo das variaes individuais" e que exista "na linguagem de todos os poetas" (p. 14). Mas se a "crtica estruturalista" uma contradio, o que dizer do "estruturalismo" de Genette? Uma leitura atenta nos revelar que as estruturas literrias so de fato o objeto de seu estudo; mas no no mesmo sentido da palavra que para Cohen, que estuda a "estrutura da linguagem potica". A estrutura de Cohen uma relao [Pgina 48]
abstrata que se manifesta na obra singular sob formas muito variadas. Assemelha-se aqui lei, regra, e se encontra num nvel de generalizao diferente do das formas por meio das quais se realiza. No esse o caso das estruturas de Genette. Aqui, essa palavra deve ser entendida num sentido espacial, como se fala, por exemplo, das estruturas grficas num quadro. A estrutura a disposio particular de duas formas, uma em relao outra. Num de seus textos, "L'or tombe sous le fer", Genette deleitou-se at em desenhar, no sentido prprio do termo, a estrutura formada pelos "elementos", os metais, as pedras, no universo da poesia barroca. No se trata aqui de um princpio logicamente anterior s formas, mas do espao singular que separa e une duas ou mais formas.Isso nos leva ao prprio cerne da viso crtica de Genette. Poderamos dizer que o nico objetivo de suas investigaes preencher, caso aps caso, todos os cantos de um amplo espao abstrato; fica fascinado diante desse quadro imenso em que simetrias dissimuladas aguardam imveis que um olhar atento venha destac-las. Dar a ver as estruturas no passa de uma maneira de ter acesso a essa imagem que, a cada instante, se torna mais rica, mas cujo desenho de conjunto permanece sempre igualmente incerto.
Percebe-se que nenhum ponto doutrinai postula a existncia obrigatria dessas estruturas na obra literria. Sem declar-lo explicitamente, Genette d a entender que o escritor goza de certa liberdade que lhe permite submeter ou no o universo de seu livro s leis estruturais. Embora as preferncias pessoais de Genette recaiam precisamente nos autores que organizam esse universo segundo um desenho preestabelecido, nada nos diz que outros no teriam escrito ignorando esse modo de pensar. [Pgina 49]
Os autores que Genette escolhe so "tcnicos" os poetas barrocos, Robbe-Grillet e outros; na contramo, como se v, da crtica psicolgica, que se regozijava com os autores "espontneos" e "inspirados". Por isso ningum se surpreender ao ver metade da coletnea de Genette dedicada obra dos crticos: como ele mesmo explicou, a crtica uma vitrine de estruturas particularmente rica. E esse aspecto da crtica que o atrai, a crtica-objeto, e no a crtica enquanto mtodo; intil procurar nesse livro de crtica, dedicado em grande parte crtica, mais de dez linhas sobre o mtodo prprio do autor! Mesmo a propsito dos crticos, Genette se satisfaz com uma explicitao e no faz com que a ela se siga a construo de um sistema crtico transcendente: no Genette sobre Valry, Genette sobre Borges que lemos; Valry e Borges, eles mesmos, vm aqui nos apresentar, cada qual, um texto-sntese de todos os seus textos. Genette realiza a uma verdadeira proeza: lemos pginas que ao mesmo tempo lhe pertencem e fazem parte da obra de um outro. Qual ento esse mtodo fugidio de Genette? Pode-se dizer, de qualquer modo, que ele no adota o princpio do estruturalismo de que o mtodo tem de ser elaborado imagem de seu objeto (quando no o objeto que se conforma imagem do mtodo). A metodologia de Genette assemelha-se mais quele comentrio que esposa as formas do objeto para faz-las suas, que no abandona a obra exceto para reproduzi-la em outra parte. Voltemos nossa anttese inicial. Constata-se que o espao delimitado por essas duas metodologias, contrrias e vizinhas, aquele que separa a potica da crtica: pois a anlise de Genette merece plenamente o nome [Pgina 50]
de crtica literria. Ambos os livros encarnam, de maneira exemplar, as duas principais atitudes que a leitura provoca: crtica e cincia, crtica e potica. Tentemos agora precisar as possibilidades e os limites de cada uma. Primeiro a potica: o que ela estuda no a poesia ou a literatura, mas a "poeticidade" e a "literaridade". A obra singular no para ela um fim ltimo; quando se detm numa obra e no em outra, porque esta deixa transparecer de maneira mais clara as propriedades do discurso literrio. A potica ir estudar no as formas literrias j existentes, mas, partindo delas, um conjunto de formas virtuais: o que a literatura pode ser mais do que o que ela . A potica ao mesmo tempo menos e mais exigente que a crtica: no pretende nomear o sentido de uma obra, mas se considera bem mais rigorosa que a meditao crtica. Os defensores da idia de "analisar a obra pelo que ela , no pelo que ela exprime" nada tero, portanto, a ganhar com a potica. Com efeito, as pessoas sempre se queixam das interpretaes de uma crtica psicolgica ou sociolgica: ela analisa a obra no como um fim em si, mas como um meio de chegar a outra coisa, como o efeito de uma causa. Mas que a psicanlise ou a sociologia se consideram cincias; por isso, a crtica que nelas se inspira est condenada a no poder se ater obra em si mesma. A partir do momento em que os estudos literrios se constituem em cincia, como tem feito a potica hoje, volta-se a extrapolar a obra: esta considerada, outra vez, um efeito, mas agora ela o efeito de sua prpria forma. Portanto, a nica diferena mas uma diferena importante que em vez de transpor a obra para um outro tipo de discurso, estudam-se as propriedades subjacentes do prprio discurso literrio. [Pgina 51]
Essa impossibilidade de permanecer no particular escapa ateno de Cohen em suas declaraes explcitas. Por isso, ele acusa os crticos de se interessarem mais pelo poeta que pelo poema (p. 40) e diz, a propsito de seu trabalho, que "a anlise literria do poema enquanto tal nada mais pode fazer seno trazer luz esses mecanismos de transfigurao da linguagem pela interao entre as figuras" (p. 198). E claro que ao se dedicar a descrever esses "mecanismos de transfigurao" deixa completamente de analisar o "poema enquanto tal", pois isso impossvel; estuda precisamente um mecanismo geral; e em todo o livro no h nenhum poema, salvo a ttulo de exemplo.
Esta no uma confuso grave, pois se limita a algumas declaraes isoladas, e o conjunto do livro se situa na perspectiva da potica, que no estuda o poema enquanto tal, mas enquanto manifestao da poeticidade. Outra reduo, no entanto, ameaa pr em risco os resultados obtidos e mostra bem que tipos de perigos a potica ter de temer, por onde passa a fronteira que ela no deve transpor. Trata-se do excesso de generalizao que Cohen comete ao tomar ao p da letra um dos princpios do estruturalismo: estudar no os fenmenos, mas sua diferena. A nica tarefa da potica, nos diz ele, estudar em que a poesia difere da prosa. O nico aspecto destacado da figura em que a expresso potica difere da expresso "natural". Mas, para definir a poesia, no basta dizer em que ela diferente da prosa, pois ambas tm algo em comum, que a literatura. Da "linguagem potica" Cohen conserva apenas o adjetivo, esquecendo que tambm h um substantivo. A figura no s uma expresso diferente de outra, mas tambm uma expresso pura e simples. Esquecer disto, isolar as duas partes seria considerar a figura ou a poesia do ponto de vista [Pgina 52]
de outra coisa, e no em si mesmas. Novamente o princpio de imanncia, que em outros momentos Cohen proclama, se v infringido, mas dessa vez com conseqncias bem mais graves, pois o autor na verdade tende a tomar a poesia pelo que nela difere da prosa e no como fenmeno integral. O extremo que a potica deve evitar a generalizao excessiva, a excessiva reduo do objeto potico: a grade que ela utiliza corre o risco de deixar passar o fenmeno potico. Pela descrio que fizemos do mtodo de Genette, fica fcil adivinhar por onde passa a fronteira que ele, por sua vez, deve tomar todo o cuidado de no transpor. Sua crtica funde-se a tal ponto com a obra-objeto que corre o risco de desaparecer nela. A longa e freqente citao no aparece por acaso nos textos de Genette, um dos aspectos mais caractersticos de seu mtodo: o poeta pode exprimir seu pensamento to bem quanto ele, assim como ele fala como o poeta. Mais um passo e essa crtica deixar de ser uma explicao para se tornar apenas uma reprise, uma repetio. A melhor descrio e justamente de uma descrio que se trata nos textos de Genette aquela que no o at o fim, aquela que explicita reproduzindo. Portanto, seria muito vantajoso se ambas as atitudes conflussem. Um dos mais belos textos de Figures, "Silences de Flaubert", nos permite entrever, embora vagamente, as possibilidades que assim se abrem. Nesse texto, Genette procura apreender "a escrita de Flaubert no que ela tem de mais especfico" (p. 242); simplificando muito, poderamos dizer que se trata da funo singular que Flaubert atribui descrio, do papel to importante que ela desempenha em seus romances. Deparamos assim com noes da potica que parecem bem esclarecedoras; [Pgina 53]
trata-se, contudo, apenas de um tira-gosto que s faz aumentar o desejo. Pois fala-se da descrio como se ela fosse algo bvio; mas, na verdade, de que se trata? Por que ela se ope narrao, se ambas parecem pertencer ao discurso do narrador por oposio ao dos personagens? O que a ela se ope simplesmente a substituio de um movimento por uma parada? Sero estas as ni