todorov, tzvetan - o espírito das luzes
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Tzvetan Todorov
"Depois da morte de Deus e do de moronamentosobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa
vida comum? Para no s comportarm os como seres responsáveis,precisamos de um plano conceitual que possa fundamentar não
somente nossos discursos, o que é ficil, mas também nossos atos.Em busca desse plan o, fui atraído para uma corrente de pensa
m ento e de sensibilidade,
Duran te os três quartos de século que precedem 1789 produ ziu-se uma grande reviravolta qu e, mais do que qualquer outra,
é responsável por nossa presente identidade."
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BARCAROLLA

Copyright © 2006 Éditions Robert Laffont/Susanna Lca Associares
REVISÃO Roberto Alves e Marfísia Lancelotti
C A PA Marcelo Girard
iMAGEM DA CAPA Marcelo Girard, s/titulo, 2006
FOTO Gian Spina
COMPOSiÇÃO IMG3
1Jados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)
Todorov, TzvctanO espírito das Luzes / Tzvctan Todorov ;
tradução Mônica Cristina Corrêa. ~ São Paulo:Editora Barcarolla . 2()OH.
200S
Título original: L'esprit dcs Luruiêrcs.BibliografiaISBN 'J7H-H5-'!H2",,""31-4
índices para catálogo sistemático:t. Espírito das Luzes: Iluminismo ; Filosofia
1911
Todos os direitos reservados à
Editora Barcarolla Lrda.
Av" Pedroso de Moracs, (lJ 1/ 11"o andar
05419-000 Pinheiros Seio Paulo SI' Brasil
Telefone/fax (55 11) 3S 14-4('()O
www.editorabarcarolla.corn.br
1 O PROJETO 11
2 REJEIÇÕES E DESVIOS 31
3 AUTONOMIA 47
4 LAICIDADE 63
5 VERDADE 81
6 HUMANIDADE 101
7 UNIVERSALIDADE 115
8 As LUZES E A EUROPA 131
Aj?radecímentos 151
Notas 153
<:1 lJ) I'!o
1. Espírito das Luzes 2. f-ilosofia moderna
3. Iluminismo I. Título.
OH-041 H3

DEPOIS DA MORTE D E DEUS e do desmoronam ento das
utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos
co nstruir nossa vida co mum? Para nos co m po rtarmos
como seres responsáveis, precisamos de um plano conceituaI
qu e possa fundamentar não somente no ssos discur sos, o
que é facil, mas tamb ém nossos atos.Em busca desse plano,
fui atraído para uma corrente de pensamento e de sen
sibilidade, a vertente humanista das Luzes. Durante os três
quartos de século que precedem 1789 produziu-se uma
grande reviravolta que, mai s do que qu alquer outra, é
responsável por nossa presente identidade. Pela pr imeira
vez na História, os seres humanos decidem tomar nas mãos
seu destino e colocar o bem-estar da humanidade como
obj etivo principal de seus atos. Esse movimento emana
9

o E spi R IT O DA S L U Z E S
de toda a Europ a e não apenas de um país, exprime-se
através da filosofi a e da política, das ciências e das artes,
do romance e da autobiografia.
É claro que um simples retorno ao passado não é
nem possível nem desejável. O s aut ores do século XV III
não saberiam resolver os problemas surgidos desde então,
os quais, a cada dia, dilaceram o mundo. No entanto, com
preender melhor essa mutação radical pode nos ajudar a
viver melhor hoje. Eu qu is, assim, sem desviar o olhar de
nossa época, destacar as grandes linhas do pensam ento das
Luzes, num vaivém constante entre passado e presente.
10
I 1 I o PROJETO

T
o P R O JE T O
N ÃO É FÁCIL dizer em que consiste exatam ente o projeto
das Luzes e isso por du as razõ es. Primeiro, as Luzes são
um a época de conclusão, de recapitulação, de síntese - e
não de in ovação radi cal. As gran des idéias das Luzes
não têm origem no século XV IIl ; qu ando elas não vêm
da Antigüid ade, tr azem os traços da Idade M édia, do
R en ascimento e da época Cl ássica. As Luzes absorvem
e articulam opiniões que, no passado, estavam em conflito.
É por isso que os historiadores quase sempre observaram
qu e é preciso dissipar algumas imagens conven cion ais,
As Luzes são ao mesmo tempo racion alistas e empiristas,
herdeiras tanto de Descar tes como de Locke. Elas acolhem
os Antigos e os Modernos, os universalistas e os parti
cularis tas; possuem um forte apreço por história e eter-
13

o ESPÍRITO DAS LUZES
nidade, detalhes e abstrações, natureza e arte, liberdade e
igualdade. Os ingredientes são antigos, no entanto sua
combinação é nova: eles foram não somente combina
dos entre si,mas também - e isso é essencial- é no momen
to das Luzes que essas idéias saem dos livros para passar
ao mundo real.
O segundo obstáculo consiste no fato de o pensa
mento das Luzes ter sido conduzido por numerosos indi
víduos que, longe de estarem de acordo entre si, estão
constantemente engajados em ásperas discussões, de país
a país e também em cada país. O tempo que decorreu
desde então nos ajuda a fazer a triagem, é verdade, mas
só até certo ponto: os desacordos de outrora fizeram
nascer escolas de pensamento que se enfrentam ainda em
nossos dias.As Luzes foram uma época mais de debate do
que de consenso; de assustadora multiplicidade, aliás.
No entanto, é certo que reconhecemos sem muita difi
culdade a existência do que se pode chamar de projeto
das Luzes.
Três idéias se encontram na base desse projeto, as
quais nutrem também suas inumeráveis conseqüências:
a autonomia, a finalidade humana de nossos atos e, enfim,
a universalidade. O que se deve entender por isso?
O primeiro traço constitutivo do pensamento das
Luzes consiste em privilegiar o que escolhemos e deci
dimos por nós mesmos em detrimento daquilo que nos
é imposto por uma autoridade externa. Essa preferência
comporta então duas facetas, uma crítica e outra, cons-
14
1I
'\j
() PROJETO
trutiva: é preciso subtrair-se a toda tutela imposta aos
homens de fora e deixar-se guiar pelas leis, normas e regras
desejadas por aqueles a quem elas se dirigem. Emancipação
e autonomia são as palavras que designam os dois tempos,
igualmente indispensáveis, de um mesmo processo. Para
poder engajar-se nele, é preciso dispor da inteira liber
dade de examinar, de questionar, de criticar, de colocar
em dúvida: nenhum dogma ou instrução pode mais ser
considerado sagrado. Uma conseqüência indireta, porém
decisiva, dessa escolha é a restrição que incide sobre o
caráter de qualquer autoridade. Esta deve estar de acordo
com os homens, isto é, ser natural e não sobrenatural. É
nesse sentido que as Luzes produzem um mundo "desen
cantado", obedecendo de ponta a ponta às mesmas leis
tisicas,ou, no que diz respeito às sociedades humanas, reve
lando os mesmos mecanismos de comportamento.
A tutela sob a qual viviam os homens antes das Luzes
era, em primeiríssimo lugar, de natureza religiosa; sua ori
gem era então ao mesmo tempo anterior à sociedade pre
sente (fala-se nesse caso de "heteronomia") e sobrenatu
ral. É à religião que se dirigirá a maior parte das críticas,
visando tornar possível que a humanidade tome nas mãos
seu próprio destino.Trata-se, todavia, de uma crítica foca
da: o que se rejeita é a submissão da sociedade ou do
indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daqui
lo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais;
não é mais a autoridade do passado que deve orientar a
vida dos homens, mas seu projeto para o futuro. Ainda
15

o E S P Í R I T O DA S LU ZES
assim, nada se diz da própria exp eriência religiosa, nem
da idéia de trans cendência, nem de tal doutrina moral
sustentada por uma religião em particular; a crítica visa
à estrutura da sociedade, não ao conteúdo das crenças. A
religião sai do Estado sem, no entanto, abandonar o indiví
duo. A grande corrente das Luzes não pleiteia o ateísmo,
mas a religião natural, o deísmo, ou uma de suas nume
rosas variantes. A ob servação e a descrição das crenças
do mundo inteiro, às quais se consagram os homens das
Luzes, não têm por objetivo recusar as religiões, mas con
duzir a uma atitude de tolerância e à defesa da liberdade
de consciência.
Tendo rejeitado o antigo jugo, os homen s fixarão
suas novas leis e normas com a ajuda de m eios pura
mente humanos - já não há lugar, aqui, para a magia nem
para a revelação. À certeza da Luz descida do alto substi
ruir-se- à a pluralidade de luze s que se difundem de pes
soa para pessoa.A primeira autonomia conquistada é a do
conhecimento. Este parte do princípio de qu e nenhuma
autoridade, por mais bem estabelecida e prestigiosa que
seja, está livre de crítica. O conhecimento só tem duas
fontes, a razão e a experiência, e ambas são acessíveis a
todos.A razão é valorizada como ferramenta de conheci
mento, não como motor das condutas humanas; opõe-se
à fé, não às paixões. Estas, por sua vez, são ema ncipadas
das imposições externas.
A liberação do conhecim ento abre a via real ao desa
brochar da ciência.Todos queriam então se colocar sob
16
\
O PR OJ ETO
a proteção de um personagem que não fosse um filósofo,
mas um sábio: Newton tem, no século das Luzes, um papel
comparável ao de Darwin nos séculos seguintes.A tisica
obtém progressos espetaculares, seguida pelas outras ciên
cias: química, biologia e até sociologia ou psicologia. Os
promotores desse novo pensamento queriam levar luze s
a todos,pois estavam convencidos de que serviriam ao bem
de todos: o conhecimento é libertador, eis o postulado.
Favorecerão assim a educação em todas as suas formas,
desde a escola até as academias, e a difusão do saber, por
publicações especializadas ou por enciclopédias dirigidas
ao grande público.
O princípio de autonomia revoluciona tanto a vida
do indivíduo qu anto a das sociedades. O combate pela
liberdade de consciência, qu e deixa a cada um a escolh a
de sua religiã o, não é novo, mas deve ser perpetuamente
recomeçado ; ele se prolonga numa demanda de liberdade
de opinião, de expressão, de publicação . Aceitar que o
ser humano seja fonte de sua lei é também aceitá-lo por
inteiro, tal como é, e não tal como deveria ser. Ora, ele
é corpo e espírito, paixões e razão, sensualidade e medi
tação. Por menos que observemos os homens reais em vez
de no s atermos a uma imagem abstrata e idealizada , per
cebemos que eles são, também, infinitamente diversos, o
que se constata ao passar-se de um país a outro, mas
também de uma pessoa a outra. É o qu e saberão dizer,
melhor do que toda literatura erudita, os novos gêneros
que põem o indivíduo no centro de sua atenção: romance
17

o Es p í R I T O D A S L U Z E S
de um lado, autobiografia de outro. Gêneros que não
aspiram mais a revelar as leis eternas das condutas humanas ,
nem o caráter exemplar de cada gesto, mas que mostram
homens e mulheres singulares, envolvidos em situações
particulares. É o que diz também a pintura, que se desvia
dos grandes temas mitológicos e religiosos para mostrar
seres humanos nada excepcionais, apreendidos em suas
atividades comuns, em seus gestos mais cotidianos.
A autonom ia do indivíduo se perpetua no con
texto de sua vida e de suas ob ras. Leva à descob erta do
mei o natural, feito de florestas e de torrentes, de clareiras
e de colinas que não foram submetidas a exigências geo
métricas ou práticas. Paralelamente, concede um lugar
novo aos artistas e a suas práticas. Pintores e mú sicos,
atores e escritores não mais são simples animadores ou
decoradores, tampouco os servido res de D eu s, do rei
ou de um me stre, mas tornaram-se a enca rnação exem
plar de uma atividade apreciada: o artista cr iado r é qu em
decide por si suas próprias composições e as destina a um
prazer puramente humano. Essas duas atribuições de valor
atestam a nova dignidade con cedida ao mundo sensível.
A exigência de auto no mia transforma ainda mais
profundamente as sociedades polít icas; prol on ga e cum
pre a separaçã o do temporal e do espiritual. N o século
das Luzes, ela produz uma prim ei ra forma de ação: os
autores de pesqui sas livremente conduzidas se esforçavam
para co municar seus resultados aos soberanos benevo
lentes, para que estes inflectissem sua política. Isso é o que
lR
o P R OJET O
se espera de Frederico II em Berlim, de Catarin a II em
São Petersburgo ou de Jo sef II em Viena. Para além desse
despotismo esclarecido - que cultiva a autonomia da razão
no monarca, mas preserva a submissão do povo - essa exi
gêncía leva a dois princípios. O primeiro é o da soberania,
princípio já antigo que recebe aqui um novo conteúdo:
a fonte de todo poder está no povo, e nada é super ior à
vontade geral. O segundo é o da liberdade do indivídu o
em relação a tod o poder estatal, legítimo ou ilegítimo,
nos limites de uma esfera que lhe é própria; para assegurar
essa liberdade, vela-se pelo pluralismo e pelo equilíbrio
dos diferentes poderes. Em todos os casos está consumada
a separação do teológico e do político; este se organiza desde
então em fun ção de seus próprios cri térios.
Todos os seto res da sociedade tendem a se tornar
laicos, ainda qu e os indivídu os permaneçam crentes. Esse
programa concerne não some nte ao poder políti co, mas
também à justiça: o delito, dano causado à soc iedade, é
o único a ser reprimido, e deve ser diferen ciado do peca
do, falta moral para com uma tradição. Também a escola,
destina-se a ser subtraída ao poder eclesiást ico para se
tornar um lugar de propagação das Luzes, abe rta a tod os,
portanto gratuita, e ao m esmo tempo obr igatór ia para
todos. E assim a imprensa periódica, qu e passa a ser o
lugar do debate públi co.Também a econo mia deve ser
liberada das obrigações arbitrárias e permitir a livre cir
culação dos bens; deve fundar-se sobre o valor do tra
balh o e do esforço individual, em vez de encher-se de
1')

o Es p íR ITO DA S L U ZES
privilégios e de hierarquias vindos do passado. O lugar
mais apropriado para todas essas mutações é a cidade gran
de, que favorece a liberdade do s indivíduos e lhes dá ao
mesmo tempo a oportunidade de se en contrar e debater
em comum .
A vontade do indivíduo, como a das comunidades,
ema ncipou-se das antigas tutelas; isso quer dizer qu e ela
agora é inteiramente livre, que não conhece mais nenhum
limite? Não : o espír ito das Luzes não se reduz unica
mente à exigência de auto no mia, mas traz também seus
próprios meios de regulação. O primeiro diz respeito à
finalidade das ações humanas permitidas. Esta desce à terra:
não visa mais a Deus, mas aos homens. Nesse sentido, o
pensamento das Luzes é um humanismo ou, se preferir
mos, um antropocentrismo. N ão é mais necessário, como
pedi am os te ólogos, estar sem pre pronto a sacrifica r o
amor das criaturas ao do C riador; é possível co ntentar
se com amar outros seres humanos. Seja o qu e for a vida
no além , o homem deve dar um sentido à sua existênc ia
terrena. A busca de felicidade substitui a da salvação . O
próprio Estado não se coloca a serv iço de um intento
divin o, seu objetivo é o bem- estar de seus cidadãos . Estes,
por sua vez, não dão prova de um egoísmo culpável quan
do aspiram à felicidade no domínio que dep ende de sua
vontade, têm razão em embalar suas vidas particul ares,
procurar a intensidade dos sentim entos e do s prazeres,
cultivar afeição e amiz ade.
A segunda restrição imposta à livre ação tanto do s
20
o P RO J E T O
indivíduos como das comunidades consiste em afirmar
qu e todos os seres human os possuem, por sua própria
natureza humana, direitos inalienáveis.As Luzes absorvem
aqui a herança do pensamento do direito natural, tal como
formulada nos séculos XV II e XV III : ao lado dos direitos
de que os cidadãos gozam no âmbito de sua sociedade, eles
detêm outros, comuns a todos os habit antes do globo e,
portanto, a cada um; direitos não escritos, mas nem po r
isso menos im perativos.Todo ser humano tem direito à
vida; então a pena de morte é ilegítima, me smo quando
atinge um criminoso qu e matou: se o assassinato privado
é um crime, como o assassinato público deixaria de sê-lo?
Todo ser humano tem direito à integridade de seu corpo;
então a tortura é ilegítima, mesmo quando é praticada em
nome da razão de Estado. O pertencimento ao gêne ro
humano, à humanidade universal, é mais fundamental
ainda que o pertencim ento a determinada soc iedade. O
exercício da liberdade está contido então na exigência de
uni versalidade e o sagrado, que deixou os dogmas e as
relíquias, encarna-se doravante nesses "direitos do homem"
recém- reconhecidos .
Se todos os seres humanos po ssuem um co nj unto de
direitos idênticos, decorre qu e sejam iguais em direito: a
demanda de igualdade decorre da uni versalidade. Ela per
mite empreender co mbates que continuam em nossos
dias: as mulheres devem ser iguais aos homen s perante a
lei; a escravidão abo lida, a alienação da liberdade de um
ser humano não pode j am ais ser legítima; os pobres, os
21

o E s p íR I TO DA S L U Z E S
excluídos, os marginais, reconhecidos em sua dignidade,
e as cri anças, consideradas como indivíduos.
Essa afirmação da universalidade humana gera o inte
resse por sociedades diferentes daquela em que se nasceu .
Os viajantes e os sábios não conseguem , do dia para a
noite, deixar de julgar os povo s longínquos a partir de cri
térios provindos de suas próprias culturas;no entanto, sua
curiosidade é despertada, eles se to rnam con scientes da
multiplicidade de formas qu e a civilização pode assumir
e começam a acumular informações e análises qu e, com
o tempo, transformam-lhes a idéia de humanidade.Assim
é para a pluralidade no tempo: o passado deixa de ser a
encarnação de um ideal eterno ou um simples repertório
de exemplos para se torn ar uma sucessão de épocas his
tóricas, cada uma co m sua coerê ncia e seus pr óprios
valores. O conhecim ento de sociedades diferentes daqu e
la do obse rvador lhe permite ao mesmo tempo consi
derar a si me smo com um olhar menos ingênuo: ele não
confunde mais sua tr adição co m a ordem natural do
mundo. É assim qu e o francês Montesquieu po de criti
car os persas, mas tamb ém imagin ar os persas cri ticando
j udiciosamente os franceses.
Tal é, em linh as bem gerais,o generoso programa que
se formula no século das Luzes. Como devemos j ulgá- lo
hoj e, duzentos e cin qü en ta anos após seu surgimento?
Uma dupla constatação parece se impor. De um lado, na
Europ a e nas parte s do mundo influenciadas por ela, a
mentalidade das Luzes impôs incontestavelmente uma vit ó-
22
o P R O ) ET O
ria sobre o adversá r io qu e co mbatia. O co nhecimento
do universo progride livrem ente, sem se preocupar demais
com interdições ideológicas. Os indivíduos já não temem
tant o a autoridade da tradi ção e tentam gerar por si me s
mos seu espaço privado, gozando ao m esmo tempo de
um a grande liberdade de expressão.A democracia, na qual
a soberania po pular é exercida pel o respei to das liber
dades individuais, tornou-se um modelo querido ou dese
j ado em todo lugar. O s direitos univer sais do homem
são co nside rados co mo um idea l co mum; a igu aldade
diante da lei é a regra em todo Estado legítimo. Preocu
par-se com a felicidade pessoal ou com o bem-estar comum
é uma escolha de vida que não choca ninguém . Não qu e
os objetivos assim visados tenham sido atingi dos; mas o
ideal foi aceito e hoje ainda se critica a ordem existente
inspirando-se na mentalidade das Luzes. No entanto, por
ou tro lado, os benefícios esperados não estão tod os aí, as
pro messas formuladas outrora não for am cumpridas. O
século xx, em particular, qu e conheceu a carn ificina de
duas guerras mundiais, os regimes totalitários estabeleci
dos na Europa e alhures, as conseqüências mortífe ras das
invenções técnicas, pareceu trazer um desmentido defi
nitivo a todas as esperanças formuladas outro ra, a ponto
de termos deixado de reivindicar as Luzes, e as idéias
trazidas por palavras como humanismo, emancipação, pro
gresso, razão, livre arbítrio, caíram em descrédito.
A distância permanente entre o que podia ser lido
como uma promessa e as realidades do mundo de hoj e
23

o E spi R I T O D A S L U ZES
nos obriga a tirar uma primeira conclusão: toda leitura
rigidamente otimista da História pertence à ilusão. É ver
dade, porém, que tal fé no progresso linear e ilimitado
do gênero humano pôde tentar alguns pensadores das
Luzes. Um de seus importantes precursores, o poeta inglês
Milton, lamenta que a humanidade, curvando-se aos dita
mes da tradição, tenha ficado deliberadamente na infân
cia, tal como um estudante que não ousa avançar sem as
instruções de seu professor. Ele formula a esperança que,
graças ao livre exercício da razão, ela atinja, enfim, a idade
adulta. Na França, Turgot, em seu discurso intitulado
Quadro filoséifico dos progressos sucessivos do espírito humano
(1750), declara :"Os costumes amainam, o espírito huma
no se aclara, as nações isoladas se aproximam umas das
outras I...], a massa total do gênero humano [...] conti
nua marchando, ainda qu e a passos lentos, rumo a uma
perfeição maior'" (é verdade que no momento em que
escreveu esta frase tinha vinte e três anos!) . Outros,
Voltaire, d' Alembert, seguirão, com mais ou menos pre
cauções, essa mesma via. Lessing vai aderir à idéia do pro
gresso em sua Educação do gênero humano (1780) . Condor
cet, escrevendo seu testamento espiritual no fundo de seu
esconderijo, durante as perseguições perpetradas pelo
Terror (1793), vai lhe dar por título Esboço de um quadro
dos progressos do espírito humano,Todos esses autores crêem
que, apesar dos atrasos e lentidão, a humanidade poderá
atingir sua maioridade graças à difusão da cultura e do saber.
Essa visão da História como cumprimento de um objetivo
24
o PRO J E T O
será retomada e reforçada por Hegel, depois por Marx, e
passará, graças a este último, à doutrina comunista.
Erraríamos, entretanto, em atribuir essa crença ao
próprio pensamento das Luzes . Na realidade, a escolha de
Turgot ou de Lessing é questionável no próprio momen
to em que é formulada .Vários outros autores, tais como
Hume ou Mendelssohn, não compartilham a fé numa
marcha mecânica rumo à perfeição, a qual não é, de resto,
senão uma transposição no espaço profano da doutrina
cristã ligada às vias da Providência; eles se recusam a ler
a História como o cumprimento de um objetivo. É o mais
profundo pensador da língua francesa nos tempos das
Luzes, Jean-Jacques Rousseau, que se oporá a essa con
cepção de maneira frontal. Para ele, o traço distintivo da
espécie humana não é uma marcha para o progresso,
mas unicamente a perfectibilidade, isto é, uma capacidade
de se tornar melhor, bem como de melhorar o mundo,
mas cujos efeitos não são nem garantidos nem irreversí
veis. Essa qualidade justifica todos os esforços, porém não
assegura nenhum sucesso.
Além disso, Rousseau crê que cada progresso é infa
livelmente pago por uma regressão num outro domínio.
Seu Discurso sobre a origem da desioualdade (1755) é abun
dante em fórmulas desse gênero. Os acasos"puderam aper
feiçoar a razão humana deteriorando a espécie , tornar um
ser malvado ao torná-lo sociável". "Os progressos ulte
riores representaram, aparentemente, tantos passos rumo
à perfeição do indivíduo quanto à decrepitude da espé -
25

o E s pí R IT O D A S L U Z E S
cie". A necessidade de se distinguir é responsável pelo
"que há de melhor e pior entre os homens, nossas vir
tudes e nossos vícios". Rousseau não afirma, no entanto,
que a degradação é a única direção para a qual marcha
a humanidade, nem recomenda, como se crê às vezes, um
retorno. Chama a atenção precisamente para a solida
riedade dos efeitos positivos e negativos. A razão desse
duplo movimento reside na própria condição humana. É
próprio do homem ser dotado de uma certa liberdade
que lhe permite trocar-se e trocar de mundo e é essa liber
dade que o leva a fazer tanto o bem como o mal. É a per
fectibilidade, em si mesma a responsável por suas gran
des conquistas, que é também a fonte de seus infortúnios,
é ela que faz eclodir "suas luzes e seus erros, seus vícios
e virtudes". É próprio do homem tirar do olhar dos
outros o sentimento de sua existência, sem o qual não
consegue ficar; ora, essa necessidade se traduz tanto em
amor quanto em violência: os rapazes que aspergem gaso
lina e ateiam fogo às moças que recusaram suas investi
das agem unicamente por esse motivo. "O bem e o mal
jorram da mesma fonte'", conclui Rousseau.
Decorre que toda esperança num progresso linear
é vã. Os problemas ditos sociais não constituem dificul
dades provisórias, tais que um partido político ou um
governo possa, graças a reformas engenhosas, resolver para
sempre, mas são conseqüências de nossa condição huma
na. Podemos constatar hoje que Rousseau tinha razão e
que a aspiração à perfectibilidade não implica uma fé
26
o P R OJE T O
no progresso. Não somente os avanços tecnológicos e
científicos não trazem necessariamente uma melhora moral
e política, mas também esses avanços não têm nada de
linear e podem de repente se revelar nocivos. Empenhan
do-se em transformar o mundo a fim de torná-lo mais
conforme às suas necessidades e desejos, nossa espécie
evoca sempre o personagem do aprendiz de feiticeiro. Os
agentes dessas transformações podem prever seus efeitos
imediatos, mas não suas últimas conseqüências, as quais
sobrevêm décadas, até séculos mais tarde. O exemplo da
fissão do átomo é conhecido por todos, mas é quase
simples demais: os sábios que chegaram a essa descober
ta não podiam imaginar o horror de Hiroshima e de Naga
saki, mas tiveram de imediato preocupação com o uso
que se faria de seus trabalhos. No entanto, deve o bió
logo que está estabelecendo o código genético humano
cessar sua pesquisa porque há risco de amanhã abusa
rem de seus resultados? Tudo a nossa volta, os motores
aperfeiçoados de nossos carros, produzem gases tóxicos
que contribuem para perturbar o clima do planeta, as
máquinas graças às quais nos desincumbimos de tarefas
penosas consomem cada vez mais energia, fabricando
desemprego... Toda conquista tem um preço.
O espírito das Luzes faz o elogio do conhecimen
to que liberta os seres humanos das tutelas exteriores
opressoras. Mas ele não consiste em dizer que, estando
tudo determinado e portanto passível de conhecimento,
os humanos aprenderão a controlar integralmente o mundo

() E S p i Il I T () !l AS L U / . E '
e a moldá-lo segundo seus desejos. A complexidade da
matér ia é tam anha qu e mesmo as hipóteses científicas
mais ambiciosas não deveriam nunca se destacar de uma
certa humildade. "A maioria dos efeitos chega por vias
tão singulares, e dependendo de razões tão imperceptí
veis ou tão afastadas, que não se pode prev ê-los" - escre
ve Montesquieu em seu Tratado do s deveres. Isso é ainda
mais verdadeiro no estudo da sociedade,pela simples razão
de que é essa a própria liberdade dos sere s humanos:
eles podem se opor a sua própria natureza e assim agir de
maneira imprevisível."O homem como ser fisico é, assim
como os outros corpos , governado por leis invariáveis.
Como ser inteli gente, ele viola sem parar as leis qu e Deus
estabeleceu e muda aquelas qu e ele pr óprio estabele
ce' ". O co nheci mento das socie dades humanas dep ara-se
com a impossibilidade de prever e controlar todas as von
tades; a vontade do indivíduo, po r sua vez, depara-se co m
sua incapacidade de conhecer as razões de seus próprios
atos. O qu e há de m ais importante na vida de um ser
humano do qu e a escolha de seu objeto de amor? Ora,
nem a vontade nem a ciência conseguem perscrutar até o
fim o segredo dessa escolha. Eis por que todo ut opismo,
seja ele político ou técnico, é fadado ao fracasso.
Se quisermos hoje en contrar um apoio no pensa
m ento das Luzes para enfrentar nossas dificuldades pre
sentes, não podemos acolhe r tod as as propostas formu
ladas no século XVIII - não somente porque o mundo
mudou , mas tamb ém porque esse pensamento é múltiplo,
28
o P R OJ E T O
não uno. É antes de tudo de uma refundação das Luze s
que precisamos: preservar a herança do passado, mas sub
metendo-o a um exame crítico , confrontando - o lucida
ment e co m suas co nseqüênc ias desej áveis e indesejáveis .
Fazendo isso, não arr iscamos trair as Luzes; ao contrário:
a verdade é que as criticando, continuamos fiéis a elas, e
coloca mos em prática seu ensiname nto.
2')

I 2 I REJEIÇÕES E DESVIOS

REJEIÇÕES E DESVIOS
DESDE A ÉPOCA em que foi formulado, no século XVIII,
o pensamento das Luzes já foi objeto de numerosas crí
ticas; foi até recusado em seu princípio. No próprio
momento em que suas idéias vieram a público, suscitaram
a condenação previsível daqueles que elas combatiam, a
saber, as autoridades eclesiásticas e civis. Essa reação redo
bra em força no final do século, em conseqüência dos
acontecimentos políticos advindos naquele Ínterim. Uma
dupla equação se coloca: Luzes igual a Revolução, Revo
lução igual aTerror; ela leva a uma condenação sem apelo
das Luzes. "A revolução começou pela declaração dos
direitos do homem", afirma Louis de Bonald", um de seus
adversários mais obstinados, é por isso mesmo que ela aca
bou em sangue. O erro das Luzes teria sido o de colocar
33

o ESPÍRITO DAS LUZES
o homem no lugar de Deus como fonte de seus ideais,
a razão de que cada indivíduo queria se servir livremente
em vez das tradições coletivas, a igualdade em vez da hie
rarquia, o culto da diversidade em vez da unidade.
A imagem que Bonald ou outros conservadores do
tempo da Restauração dão das Luzes é, em linhas gerais,
exata: é fato que esse pensamento valoriza o homem, a
liberdade ou a igualdade. O que nos diz respeito é um
conflito frontal, um desacordo fundamental sobre os prin
cípios e os ideais da sociedade; é legítimo falar neste
caso de uma rejeição das Luzes. Mas freqüentemente a
situação é diferente. As críticas que lhe são dirigidas pare
cem então passar ao largo do espírito das Luzes; ou, mais
precisamente, dirigir-se a uma de suas caricaturas. Ora,
essas caricaturas ou, para usar um termo ruais neutro, esses
desvios (no século XVIII dizia-se antes "corrupções") real
mente existem. Também aí se pode remontar ao pró
prio momento das primeiras formulações: as Luzes são
acusadas por alguns de exagerar, por outros, de pouco
fazer. Um Montesquieu estava bem consciente de que
os próprios princípios pelos quais se batia podiam se
tornar nefastos, estava alerta contra os excessos da razão
e os prejuízos da liberdade. Ele se comparava, por con
seguinte, aos habitantes do segundo andar de uma casa,
que, dizia, "são incomodados pelo barulho de cima e pela
fumaça de baixo". Rousseau, por sua vez, sabia muito bem
que, assim que acabasse seu debate contra os devotos, seria
necessário engatilhar um outro contra "o materialismo
34
REJEIÇÕES E DESVIOS
moderno'". São esses desvios, e não as Luzes em si, que
se tornam muitas vezes objeto de rejeição.
Acabamos de observar o seguinte caso: está no espí
rito das Luzes afirmar a perfectibilidade dos homens e
de suas sociedades. Esta idéia é rejeitada por aqueles
que pensam, ao contrário, que, em razão do pecado ori
ginal, o ser humano se tornou irremediavelmente cor
rompido. Mas a idéia pode também ser desviada de seu
sentido na afirmação de um progresso mecânico pró
prio da história humana: ela está ali simplificada, cnr i
jecida, e, simultaneamente, levada ao extremo. Quan
do, num segundo momento, rejeita-se por sua vez a dou
trina do progresso, acumulando exemplos que provam
o contrário, crê-se estar rejeitando as próprias Luzes; na
realidade, refutou-se um de seus adversários. O pensa
mento das Luzes é um caminho com altos e baixos
ou, se preferirmos, uma peça que sempre se encenou
a três.
Uma das recriminações habituais que se dirigem âs
Luzes é que elas forneceram os fundamentos ideológicos
do colonialismo europeu do século XIX. O raciocínio l' o
seguinte: as Luzes afirmam a unidade do gênero humano,
portanto a universalidade dos valores. Os Estados euro
peus, convencidos de serem portadores de valores supe
riores, acreditaram-se autorizados a levar sua civilização
aos menos favorecidos do que eles; para assegurarem-se
do sucesso de sua empreitada, precisaram ocupar terri
tórios que essas populações habitavam...
35

o ES PÍR I TO DAS L UZ E S
Um olhar um pouco superficial sobre a história das
idéias poderia, com efeito, nos fazer crer que o pensamen
to das Luzes preparou as futuras invasões. Condorcet
estava convencido de que uma nação civilizada tem uma
missão: a de levar a luz a todos. "N ão deveria a popula
ção européia [...] civilizar ou fazer desaparecer , m esmo
sem co nquista, as na çõ es selva gens que ocupam ainda
vastas áreas'? " Condorcet sonha com a instauração de um
Estado universal homog éneo ao qual a interven ção dos
europeus poderia levar. É verdade também que uma cen
tena de anos m ais tarde os ideólogos da colonização
francesa farão apelo a esse tipo de argumento para legi
timá-la: assim como temos a obrigação de criar nossos
filhos , temos a de ajudar os povos ainda pouco desenvol
vidos. "A colonização - esc reve, em 1874, um de seus
partidários, Paul Leroy-Beauli eu , economista e soc ió lo
go, professor no Collêg« de France - é, na ordem social,
o que, na ordem da família é, não digo a ge ração ape
nas, mas a educação". É a respo sta a uma pergunta pre
m ente, acresce nta ele alguns anos mais tarde (em 1891 ):
"Começava-se a perceber qu e cerca da metade do mundo,
em estado selvagem o u bárbaro , solicitava ação m et ódi
ca e perseverante dos povos civilizados?". N ão é por acaso
que Jules Ferry, partidár io da educação gratuita e obri
gatória na França, se torna, nesses mesmos anos, o grande
promotor das conquistas coloniais, na Indochina ou na
África do Norte. As raças superiores, tais como os fran
ceses ou os ingleses, têm, diz ele, um dever de ingerên cia
36
RE J E I Ç () E S E DES VIOS
para co m os outros:" Elas têm o de ver de civilizar as raças
inferiores'?' .
No entanto, não é certo que se de va tomar esses
propósito s como m oeda corren te. O que eles provam é
que os ideais das Luzes gozam de um grande prestígi o e
qu e, quando nos lançam numa perigosa empresa, fazemos
questão de tê-los ao nosso lado. Os colonizad ores espa
nhói s e portugueses do séc ulo XV I não agiam de ou tro
m odo quando, para justificar suas conquistas, invocavam
a necessidade de ex pandir a religião cristã. M as, quando
se viram obrigados a defender suas ações passo a passo,
deixaram rapidamente cair os argumentos humanitá
rios. O marechal Bugeaud, conquistador da Argélia no
meio do século X IX, não estava tentando bancar o bon
zinho quando se viu obriga do, diante da Câmara Francesa
dos D eputados, a assum ir os massacres co ntra argel inos.
" Eu preferiria sem pre os interesses franceses a uma absur
da filantropia para co m estrangeiros qu e cortam a cabe
ça de nossos soldados prisioneiros ou ferid os?" . Numa
intervenção diante da mesma Câm ara,Tocqueville, então
deputado, envereda pelo m esmo cam inho : eu não acho,
di z ele, que " o m érito dominante do senhor mare chal
13ugeaud sej a precisam ente o de ser um filantropo : lião,
eu não creio ni sso ; m as ac h o que o se nhor M ar echal
Bugeaud prestou , na terra da África, um grande serviço
a seu país lO" •
Quando Jules Ferry, por sua vez, vê-se acuado pelas
objeções de seus contraditares na Câmara, acu sand o-o de
37

o ESPÍRITO DAS LUZES
trair os princípios das Luzes, bate em retirada; tais argu
mentos, afirma, "não são política nem história: isso é meta
fisica políticaII". A política de colonização se camufla atrás
dos ideais das Luzes, mas ela é na realidade conduzida
em nome de um simples interesse nacional. Ora, o nacio
nalismo não é um produto das Luzes; é, no melhor dos
casos, um desvio dele: o que não reconhece nenhum
limite imposto à soberania popular. Os movimentos anti
colonialistas são, nesse sentido, muito rnais diretamente
inspirados pelos princípios das Luzes; principalmente
quando reivindicam a universalidade humana, a igualdade
entre os povos e a liberdade dos indivíduos. A coloniza
ção européia dos séculos XIX e XX tem então essa carac
terística surpreendente e potencialmente autodestrutiva:
arrasta em sua trilha as idéias das Luzes que inspirarão seus
mmllgos.
Outra recriminação particularmente grave ao espí
rito das Luzes é a de ter produzido, ainda que involunta
riamente, os totalitarismos do século xx, com seu cortejo
de extermínios, prisões, sofrimentos infligidos a milhões
de pessoas. O argumento se formula aqui mais ou menos
nesses termos: tendo rejeitado Deus, os homens escolhem
eles mesmos os critérios do bem e do mal. Embriagados
por sua capacidade de compreender o mundo, eles ten
tam remodelá-lo para torná-lo conforme a seu ideal; assim
fazendo, não hesitam em eliminar ou reduzir à escravidão
porções importantes da população do globo. Essa crítica
às Luzes através das devastações dos totalitarismos foi
38
REJEiÇÕES E DESVIOS
conduzida especialmente por alguns autores cristãos que
pertenciam, no entanto, a diferentes Igrejas. Encontra-se
tanto num anglicano como o poeta T. S. Eliot, autor em
1939 de um ensaio intitulado A idéia de uma sociedade
cristã, quanto num ortodoxo russo como o dissidente
Alexandre Soljénitsyn, que a expõe no seu discurso de
Harvard em 1978, ou ainda nas obras do papa João Paulo
II (cito aqui seu último livro, terminado pouco antes de
sua morte: Memória e identidade).
Eliot, que escreveu no momento em que estourava
a Segunda Guerra mundial, e mais especificamente entre
a Alemanha e a Grã-Bretanha, procura mostrar que a única
verdadeira oposição ao totalitarismo viria de uma socie
dade autenticamente cristã: não há outra solução. "Se vocês
não querem ter um Deus (e Ele é um Deus invejoso) será
preciso submeter-se a Hitler ou a Stalin?". Ora, a rejei
ção de Deus é obra das Luzes, que permitiram fundar
Estados modernos sobre bases puramente humanas. A
recriminação se faz mais incisiva em Soljénitsyn: na ori
gem do totalitarismo, diz este, "encontra-se a concepção
do mundo que domina no Ocidente, nascida do Renas
cimento, moldada nos moldes políticos a partir da era das
Luzes, fundamento de todas as ciências do Estado e da
sociedade: poder-se-ia chamá-la 'humanismo racionalista',
que proclama e realiza a autonomia humana com relação
a qualquer força colocada acima dele. Ou ainda - e de
outro modo - 'antropocentrismo': idéia do homem como
centro do que existe." Mas se um conduz automatica-
3'J

o z s r í n r r o D A S L U ZE S
mente ao outro, não está na hora de mudar de ideal? "Agar
rar-se hoje às fórmulas fixas da era das Luzes, conclui
Soljénitsyn, é mostrar-se retrógrado '?",
A genealogia esboçada porJoão Paulo II não é muito
diferente. As "ideologias do mal" em prática nos totali
tarismos provêm da história do pensamento europeu:
do Renascimento, do cartesianismo, das Luzes. O erro
desse pensamento foi ter colocado a busca da felicidade
no lugar daquela da salvação. "O homem ficara só : só
como criador de sua própria hi stória e de sua própria
civilização;só como aquele que decide sobre o que é bom
e o qu e é ruim". Daí às câmaras de gás não há mais que
um passo: "S e o homem pode decidir por si mesmo,
sem D eus, sobre o qu e é bom ou ruim, ele pode tam
bém resolver que um grupo de homens seja aniquilado".
O "drama das Luzes européias" é que elas rejeitaram o
Cristo; com isto "abriu-se a via para as experiências devas
tadoras do mal que devia vir mais tarde 14" •
Em tal visão da História, escamoteia-se a diferença
entre Estados totalitários e Estados democráticos, pois
ambos encontram sua origem comum no pensamento das
Luzes. Para Eliot, essa diferença é de importância secu n
dária , uns e outros participam do mesmo ateísm o, do
mesmo individualismo, do mesmo apreço pelos bens mate
riai s. Segundo Soljénitsyn , são variantes de um m esmo
modelo: "No Leste, é a feira do Partido que piso teia nossa
vida interior, no Oeste, a feira do comércio: o que é assus
tador, não é nem mesmo o fato do mundo desp edaçado ,
40
R E J EI Ç Õ E S E D E SV IOS
é que os principais pedaços sejam atingidos por uma doen
ça análoga'?". A permissividade moral , característica das
soci edades ocidentais, parece a João Paulo II "uma outra
forma de totalitarismo, sorrateiramente escondida sob as
aparências da democracia". O marxismo totalitário e o
liberalismo ocidental são variantes mal distintas da mesma
ideologia, produto da aspiração exclusiva ao sucesso mate
rial. E quando "um parlamento autoriza a interrupção de
gravidez, admitindo a supressão da criança a nascer '?" , ele
não age muito diferentemente desse outro parlamento
qu e deu plenos poderes a Hitler e abriu por aí uma via
à "solução final".
É preciso aqui fazer a triagem entre as diferentes
acusações dirigidas às Luzes. D eve-se , primeiro, como para
o colonialismo, destacar que uma id eologia prestigiosa
pode servir de camuflagem. O comunismo, diferentemen
te do nazismo, efetivamente reivindicou essa gloriosa
herança; mas,observando-se a prática das sociedades comu
nistas mais do que seus programas grandiloqüentes, pena
mos em descobrir-lhe tais traços.A autonom ia do s indi
víduos é neles reduzida a nada, o princípio da igualdade
é vilipendiado pela onipresença de hierarquias imutá
veis no seio do poder, a busca de conhecimentos está sub
metida a dogmas ideológicos (a genética e a teoria da rela
tividade são doutrinas burguesas, a serem reprimidas), e o
" humanism o" do s manifestos é uma miragem: antes de
se consagrar à busca de sua felicidade pessoal, os indivíduos
são obr igados a se sacrificar no altar de uma longínqua
41

o E s pi RIT O DAS L U Z E S
salvaçã o coletiva. O s valores materiais estão longe de
triunfar: o comunismo tem a maior dificuldade em pro
duzir uma sociedade de abundância. N a realidade, é mais
ou menos uma religi ão política, o qu e é bem diferente
do espír ito das Luzes e da democracia.
Ao lado desse emprego puram ente decorativo das
Luz es, o comunismo introduziu outros, que se aparentam
antes a desvios; condená- los é, desta vez, bastante legíti
mo, mas esse julgamento não é realmente dirigido con
tra as Luzes.A exigência de autonomia per mitia subtrair
o conhecime nto da tutela da moral, a busca da verdade
dos imperativos do bem. Levada ao extrem o, essa exigên
cia aumenta desmesuradamente seu ape tite: é agora o
conhec ime nto que pretende ditar os valores de um a socie
dade. Tal cientificismo será efetivamente ut ilizado pelos
reg imes totalitários do século xx para j ustificar sua vio
lên cia. Sob pretexto de qu e as leis da história, reveladas
pela ciênci a, anunciam a extinção da bu rguesia, o comu
nismo não hesitará em exterminar os m embros dessa clas
se. Sob pretexto de qu e as leis da biologia reveladas pela
ciênc ia demonstram a infer ioridade de certas "raças" , os
nazistas levarão à morte aqueles qu e identificam como
seus membros. N os Estados democráticos, tais vio lências
são inconceb íveis; mas não se invoca m enos autoridade
da ciência para legiti mar tal ou qu al escolha , co mo se
os valores de uma sociedade pudessem decorrer automa
ticamente do conhe cim ento. O cientificismo é perigoso,
decerto; no enta nto não se pode deduzi-lo do espí ri to
42
R EJEI Ç ÓE S E DE SV I O S
das Luzes já qu e estas, acabamos de ver, recusam-se a crer
na tran sparên cia total do mundo diante do olh ar do sábio
e, ao m esmo tempo, a ver o ideal dec orrer da sim ples
observação do mundo (o que deve ser, do que é). Desvio
das Luzes, o cientificismo é seu inimigo, não seu avatar.
H á enfim algumas caracte rísticas do espí r ito das, ' ~
Luzes reveladas por Eliot, Soljénitsyn , João Paulo II ou
outros críticos, que correspondem efetivamente à sua iden
tid ade: autonomia, antropocentr ismo, fundamento pura
mente humano da política e da moral, a pre ferência por
argume ntos de razão em detrimento dos argume ntos de
autoridade. D esta vez, o obj eto da rejeição é bastante real;
mas essa rejeição ser ia, no entan to, fundada? João Paulo
II acusa a moral oriunda das Luzes de ser pu ram ente sub
j etiva, de depender então unicamente da vo ntade, de ser
suscetível, de se dobrar às pressões dos detentores do poder,
à diferen ça da moral cristã, imutável porque funda da obje
tivamente na palavra de Deus. Pode-se perguntar, todavia,
se essa últ ima objetividade é real, já qu e ninguém pod e
se prevalecer de um cantata di reto com Deu s e que os
homens são obr igados a se reportar a intermediári os. cre
ditad os por instâncias puramente humanas, profetas e teó
logos, que dizem conhecer a intenção divina.A or todoxia
de uma religiã o depe nd e de um gr upo de homens qu e
nos legou uma tradição. A moral das Luzes não é subje
tiva, mas inte rsubje tiva: os pri ncípi os do bem e do mal
constitue m o obj eto de um cons enso, que é potencial
mente aquele de toda a humanidade, e que se estabelece
43

o ESPÍRITO DAS LUZES
trocando-se argumentos racionais, também fundados numa
característica humana universal. A moral das Luzes decorre
não do amor egoísta por si mesmo, mas do respeito pela
humanidade.
Lamentemos ou não, a concepção da justiça própria
às Luzes é menos revolucionária do que sugerem suas crí
ticas. A lei é, decerto, a expressão da vontade autónoma
do povo; mas essa vontade se encontra contida por limi
tes. Fiel ao pensamento dos Antigos, Montesquieu declara
que a justiça é anterior e superior às leis. "A justiça não
é dependente das leis humanas - escreve no Tratado dos
deveres - ela é fundada na existência e na sociabilidade dos
seres racionais e não sobre as disposições ou vontades par
ticulares desses seres". E no Espírito das leis: "Dizer que
não há nada de justo nem de injusto senão o que orde
nam ou defendem as leis positivas, é dizer que antes que
fosse traçado o círculo, nem todos os raios eram iguais17".
As leis que perseguem os burgueses ou os cúlaques, na
Rússia, os judeus ou os ciganos, na Alemanha, contravêm
aos princípios de justiça. Os princípios não apenas cons
tituem o objeto de um largo consenso (qualquer um hesi
ta em admitir que é preciso exterminar uma parte da
população para favorecer uma outra), eles se encontram,
além disso, inscritos, na maioria dos países democráticos
na Constituição ou em seus preâmbulos. A vontade do
povo é autónoma, não é arbitrária. Rejeições e desvios
das Luzes não se confundem então entre si, e não se con
vocam, para combatê-los, os mesmos argumentos. O que
44
REJEIÇÕES E DESVIOS
evolui é sua relativa importância: o adversário que se apóia
nas aquisições das Luzes era ontem menos ameaçador
do que aquele que os atacava de fora; é o contrário que é
verdadeiro hoje. No entanto, os dois perigos permane
cem sempre presentes, e não é um acaso se estes que,
em nossos dias, atribuem-se o espírito das Luzes, se vejam
obrigados a se defender em dois flancos. É assim que uma
associação de defesa das mulheres escolheu definir-se por
uma dupla negação, "Nem putas nem submissas": sub
meter as mulheres é uma rejeição das Luzes, reduzi-las
à prostituição é um desvio da liberdade que pedem. E
não é verdade que sejamos obrigados a abraçar uma das
vias se recusamos a outra: fica aberta também aquela da
autonomia, do humanismo, da universalidade.
Retomemos agora alguns desses debates para obser
vá-los um pouco mais de perto.
45

I 3 I AUTONOMIA

AUTONOMIA
NO PONTO DE PARTIDA da revolução realizada pelo
pensamento das Luzes encontra-se um duplo movimento,
negativo e positivo, de liberação com relação às normas
impostas de fora e de construção das novas normas,
escolhidas por nós mesmos. O bom cidadão - escreve
Rousseau - é aquele que sabe "agir segundo as máxi
mas de seu próprio julgamento". Num artigo coetâneo
da Encíclopédía, Diderot esboça assim o retrato de seu herói
ideal: é "um filósofo que, pisoteando os preconceitos, a
tradição, a Antigüidade, o consenso universal, a autori
dade, numa palavra, tudo o que subjuga a multidão das
mentes, ousa pensar por si mesmo'?". Este filósofo não
quer se submeter sem discussão a nenhum mestre, ele pre
fere sempre se fundar sobre o que é acessível a todos: o
49

o E sp íR IT O DA S L UZE S
testem unho dos sentidos, a capacidade de raciocinar. No
final do século, Kant confirmará que o princípio primor
dial das Luzes reside nessa adesão à auto nomia."Tenha cora
gem de servir- te de teu próprio entendime nto! Eis o lem a
das Luzes"."A máxima de pensar por si mesmo é as Luzes'?".
Todos os fatos - acrescenta D idero t - "são também
sujeitos à crítica" . Em matéria de ciências morais e polí
ticas, insiste Condo rcet, "é preciso ousar examinar tudo,
discutir tudo, até mesmo tudo ensina r". Kant co nclui:
" Nossa época é a época da crítica, à qu al tudo te m de
submeter-se'?". Isso não significa qu e um ser human o
possa passar ao largo da tradição, isto é, de toda a herança
transmitida por seus ancestrais: viver numa cultura é seu
estado natural; pois bem, a cultura, a começar pela língua,
é transmitida a cada um por aquel es qu e o precede m.
Imaginar qu e se possa raciocinar sem preconceitos é o
pior dos preconceitos. A tradição é co nstitutiva do ser
humano, mas não é suficiente para tornar um princíp io
legítimo, nem uma proposta verdadeira.
Uma escolha dessas te m co nseqüê nc ias políti cas
óbvias: um povo é feito de indivídu os; se estes começa
rem a pensar por si mesmos, o povo inteiro quere rá tomar
nas mãos seu próprio destino. A qu estão da origem e da
legitimidade do po der político não é nova; duas grandes
interpre tações se enfrenta m no séc ulo X VIII. Segundo
alguns, o rei recebeu sua coroa de D eus, qualquer que seja
o número de intermediários que se deva im aginar entre
essa fonte e o destinatário final; monarca de direito divino,
50
A UT O N O MI A
ele não tem contas a prestar a ninguém na Terra. Segundo
outros, qu e fazem apelo à razão, à natu reza ou a um con
trato original, a fonte do poder está no povo, num direito
comum e no interesse geral; Deus criou os homens livres
e os proveu de razão. "Todo homem qu e supostame nte
tem uma alma livre deve ser gove rnado por si mesmo' !"
- escreve M ontesquieu . Isso não quer dizer que é preciso
derrubar os reis: a opinião predominante à época sugere
qu e o povo, impedido de se governar devid o à sua pró
pria mul tiplicidade, dê o poder a um príncipe. Este gover
na soberana mente, no en tan to não é irrespo nsável: é
preciso que seu reino aja de acordo com o interesse de
seu país.
É neste contexto que intervirá R ousseau, cujas idéias
radica is se encontram expos tas em Do contrato social. Ele
não só opta resolutamen te pela orige m humana e não
divina de todo poder, mas também declara que esse poder
não pode ser transmiti do, some nte confiado, como a um
servidor: tal poder é, como dirá Rousseau, inalienável.
Aquilo qu e o povo emprestou durante algum tempo a
um governo, poderá sempre tomar de volta. O interesse
comum, única fon te de legitimidade, se exprime no que
R ousseau chama de a vo ntade geral. Esta, por sua vez,
se traduz em leis."O poder legislativo perten ce ao povo,
e só a ele pode pertencer" . Se chamarmos de " república"
um Estado regido por leis, en tão "qualqu er governo legí
tim o é republicano'?". A crer-se em R ousseau, ° povo
esqueceu que o po der, mesmo exercido pelo rei, lhe per-
51

o E s p íR IT O D A S L UZES
tence naturalmente, e que pode retomá-lo a qualquer
momento. Alguns anos mais tarde, numa colônia britâ
nica , um grupo de homens tirará desses raciocínios as
conseqüências que se impõem e declarará seu direito de
escolher livremente por si mesmos o seu governo: assim
nascerá a primeira república moderna, no sentido de Rous
seau , e ela se chama Estados Unidos da América . Ainda
alguns anos mais tarde, as mesmas idéias serão reivindi
cadas pelos agentes da Revolução Francesa.
Paralelamente à liberação do povo, o indivíduo
adquire também sua autonomia. Ele se engaja no conhe
cim ento do mundo sem se inclinar diante das autoridades
precedentes, escolhe livremente sua religião, tem o direito
de exprimir seu pensamento no espaço público e orga
nizar sua vida privada como bem entende. Não é preciso
crer que, ao atribuir-se à experiência e à razão um papel
privilegiado com relação às tradições, os pensadores das
Luzes prolonguem essa exigência como uma hipótese
sobre a natureza dos homens: eles sabem muito bem
que nossa espécie não é racional. "A razão é, e deve ser
apenas, a escrava das paixões" - afirma Hume, antes de
constatar que essa razão não é sempre utilizada de maneira
consciente: "Não é contrário à razão preferir a destrui
ção do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo'?".
É que a razão é um instrumento que pode servir indi
ferentemente ao bem e ao mal; para cometer um grande
crime, o malfeitor deve desenvolver grandes capacidades
de raciocinar! Os homens são conduzidos por sua von-
52
A U T O N O M I A
tade e seus desejos, por suas afeições e suas consciências,
e também por forças sobre as quais eles não têm nenhum
domínio; não obstante, a razão pode aclará-los quando
se engajam na busca do verdadeiro e do justo.
A autonomia é desejável, mas autonomia não sig
nifica auto-suficiência. Os homens nascem, vivem e mor
rem em sociedade; sem ela, eles não seriam humanos. É
o olhar sobre a criança que está na origem de sua cons
ciência, é o chamado dos outros que a desperta para a
linguagem. O próprio sentimento de existir, ao qual nin
guém pode subtrair-se, provém da interação com os
outros. Todo ser humano é acometido de uma insuficiên
cia congénita, de uma incompletude, à qual busca preen
cher afeiçoando-se a seres que o cercam e solicitando o
afeto deles. É ainda R ousseau que exprimiu mais forte
mente essa necessidade. Seu testemunho é particularmente
precioso, pois , enquanto indivíduo, fica constrangido entre
os outros e prefere fugir deles. Mas a solidão é ainda
uma forma dessa vida comum que não é nem possível
nem desejável abandonar. " N ossa mais doce existência é
relativa e coletiva, e no sso verdadeiro eu não está intei
ramente em nós. Enfim, tal é a constituição do homem
nesta vida, de modo qu e não conseguimos nunca gozá
la totalmente sem a colaboração de outrem'!". Isso não sig
nifica que toda a vida em sociedade seja boa ; Rousseau
não cessa de nos advertir contra uma alienação de si sob
a pressão da moda, da opinião pública, do que vão dizer
os outros. Os homens que vivem apenas em função de
53

o E S P Í R I TO DAS L UZE S
outrem, negligenciando o ser, preocupam-se apenas com
o parecer, fazem da exposição em público seu único obje
tivo. O "desejo de reputação " , o "ardor de fazer falar de
si", o "furor de distinguir-se? " se tornaram os principai s
motes de seu s atos, qu e ganharam em conformidade e
perderam em sentido.
Um desvio desse pensamento começa no próprio
momento em qu e ele se formula. E o encontramos na
obra de Sade, qu e procl ama que a solidão diz a verdade
do ser humano. " Não nascemos todos isolados? E digo
mais, todos inimigos uns dos outros, todos num estado de
perpétua guerra recíp roca?":" Desse estado inicial Sade
conclui sobre a necessidade de erigir-se a auto-suficiência
como regra de vid a: tudo o que conta é no sso prazer, não
devo levar em consideração os outros, senão para me pro
teger de suas intrusões. Como não ver qu e essas fórrnu
las sadianas são contrárias não ape nas ao espírito das Luzes,
mas também ao simples senso comum? Onde já se viu
uma criança nascer isolada (sem sua mãe) e, sobretudo,
sobreviver sozinha no mundo? O s humanos são, aliás, a
espécie anima l cuja cria é mais lenta em adq uiri r uma
independência mínima: a cria nça abando nada morre sem
cuidado s, não por efeito de uma " perpé tua guerra recí
proca". Essa longa vulnerabilidade poderi a, ao co ntrá
rio, encontrar-se na origem do sentimento de compaixão
familiar a todos os seres humanos.
Apesar de sua total inverosimilhança, essas procl a
mações de Sade tiveram um grande sucesso, durante os
54
A U T ON OM IA
séculos seguintes, nos autores que afirmam em coro que
o ser humano é fundamental e essencialme nte ún ico (será
qu e nunca viram crianças nascerem e crescerem?) . Para
dar apenas um exemplo, Mauri ce Blanch ot, em Lautréamont
e Sade e Georges BatailIe, em O erotismo, viram nesses
argumentos o grande mérito de Sade. Tudo nele é fun
dado, a crer-se em Blanch ot, "sobre o fato pr imeiro da
solidão absoluta. Sade o disse e repetiu sob todas as fo r
mas: a natureza nos faz nascer sozinhos, não há ne nhum
tipo de relação de um homem com outro [... 1. O homem
verdadeiro sabe qu e está sozinho, e ele aceit a estar assim " .
Bataille, que cita essas páginas de Blanchot, aqui esce:"O
homem solitário de qu e Sade é porta-voz não leva em
conta de modo algum seus sem elhantes" . Por essa razão,
acrescenta Bataille, seria preciso ser grato a esse autor:
"Foi-nos dada uma imagem fiel do homem diante do
qual outrem deixar ia de co ntar?" .
A sobe rania do indivíduo, segundo Sade, interpre
tada por Bataille, ser ia ex pressa precisamente 11:1 nega
ção de qualquer sujeito além de si."A solidarieda de com
relaçã o a todos os outros impede um homem de ter
uma atitude soberana" . Preocupar-se com os outros só
pode resultar de um medo de assumir a si mesmo ple
na me nte. Segundo Blanch ot, "tudo o qu e é nele [no
homem verdadeiro] herança de dezessete séculos de covar
dia, tudo que se refere a outros que não ele, ele o nega" .
A autonomia do indivíduo é levada aqui a um ex tremo
em que destrói a si mesma, confundindo-se com a nega-
55

o Es p íR ITO D A S L U Z ES
ção dos outros seres em torno de si mesmo, e então com
uma autonegação.
No momento em qu e se formulam duas reivindi
cações de autonomia , coletiva e individual, seus autores
não imaginam que um conflito possa surgir entre elas: a
soberania do povo é pensada sobre o modelo da liber
dade individual, a relação é então de continuidade. Con
dorcet é o primeiro a assinalar o perigo. É pre ciso dizer
que, eleito na Assembléia legislativa, ele está em condi
ções de observar eventuais desvios do poder do qual é
representante. É se deb ruçando sobre os problemas da
educação pública qu e ele formula suas prevenções con
tra uma usurpação abusiva da autoridade coletiva sobre
a liberdade individual.A escola, segundo Condorcet, deve
abster-se de toda doutrinação ideológica. "A liberdade
dessas opiniões não seria mais do que ilusória se a socie
dade se apoderasse das gerações nascentes para lhe s ditar
em que devem crer" .Tal ensinamento, que o aluno seria
inc apaz de avaliar por si m esmo e de contestar , in cul
par-lhe-ia "preconceitos" qu e, por serem provenientes da
vontade popular, não ser iam menos tirânicos; ele repre
sentaria então um "atentado contra uma das part es mais
preciosas da liberdade natural" . Por isso é necessário sub
trair- se à ação do poder público um território, e preser
var assim a capacidade crítica dos indivíduos."O objetivo
da instrução não é fazer com que os homens admirem
uma legislação completamente acabada, mas torná-los
capazes de apreciá-la e corrigi- la'?",
56
AU T O NOM IA
Estamos hoj e em condições de fazer justiça à lucidez
de Condorcet,já que ele descreveu nessas linh as a manei
ra com que os poderes totalitários puderam oprimir suas
populações durante o século xx (voltarei a isto) . Desde
a queda desses regimes, percebemos que um desvio das
Luzes em sentido contrário era igualmente possível, e que
seus efeitos eram po r sua vez preocupantes. Não é ape
nas o Estado que pode privar os habitantes do país de
sua liberdade; são também alguns indivíduos particular
mente poderosos que são capazes de restringir a soberania
popular. O perigo vem aqui, não dos ditadores, mas de
algumas pessoas com alto poder aquisitivo.
Tomemos doi s exemplos dessa decadência da sobe
rania popular, ligados às relações internacionais. O pri
meiro vem da glob alização econômica. Hoje, os Estados
podem defender suas fronteiras pelas armas, se preciso for,
mas não são mais capazes de conter a circulação dos capi
tais. Por isso, um indivíduo ou um grupo de indivíduos,
que, no entanto não se beneficiam de nenhuma legitimi
dade política, são capazes, clicando em seus computadores,
de manter seus capitais onde estão ou transferi-los para
outro lugar e, por aí, mergulhar um país no desemprego
o u evitar a catástrofe im in ente. Eles podem provoc ar
transtornos sociais ou ajudar a afast á-los. O s suce ssivos
governos de um país como a França teriam ficado muito
contentes em diminuir o desemprego; não é cer to que já
tenham os meios para fazê-lo. O controle da economia
não pertence à soberania popular: gostemos ou deplore-
57

o ESPÍRITO DAS LUZES
mos, é preciso constatar os limites impostos à autonomia
política.
O segundo exemplo vem de um domínio totalmente
diferente: o do terrorismo internacional. Os atentados
perpetrados recentemente aqui ou ali não são fatos de
Estado adotando uma política agressiva, mas de indiví
duos ou grupos de indivíduos. Antes, só um Estado e, mais
ainda, um entre os mais poderosos, podia organizar uma
ação tão complexa como as explosões de Nova York ou
Istambul, de Madri ou Londres; desta vez, ela foi obra
de algumas dezenas de pessoas. Hoje, os progressos tec
nológicos tornam a fabricação de armas perigosas aces
sível a grupos particulares. Ao mesmo tempo, essas armas
custam cada vez menos; a miniaturização permite trans
portá-las mais facilmente. Um telefone celular basta para
desencadear uma explosão - eis que o objeto mais comum
se torna uma arma assustadora! Os malfeitores podem
então se esconder sem muito sacrificio e escapar a toda
resposta militar: um indivíduo não tem território. Eles
provêm de vários países, mas não se identificam com nen
hum deles; são apátridas. Os Estados modernos se reve
lam mal armados contra esta outra forma de globalização
igualmente destruidora de sua soberania.
Os habitantes desses Estados sofrem também uma
erosão da autonomia vinda do interior; sua fonte não é
mais o poder estático, mas outras forças difusas, sobre as
quais é mais dificil colocar uma etiqueta. Passemos pela
opressão exercida pela máquina económica que toma a
58
AUTONOMIA
forma impessoal da fatalidade e que impede o indivíduo
de usar sua vontade (como poderia, sozinho, frear o desem
prego?). Outras forças não são menos paralisantes.Acha
mos que vamos tomar nossas decisões sozinhos; mas se
todas as grandes mídias, da manhã até a noite e dia após
dia, martelam-nos a mesma mensagem, dispomos de pouca
liberdade para formar nossas opiniões. As mídias de massa
são onipresentes: imprensa, rádio e, sobretudo, televisão;
ora, nossas decisões são fundadas sobre as informações
de que dispomos. Essas informações, supondo-se até que
não sejam falsas, foram selecionadas, triadas, reagrupadas
para nos levar a uma certa conclusão mais do que a qual
quer outra. No entanto, os órgãos de informação não
exprimem a vontade coletiva e não se pode lamentar: o
indivíduo deve poder julgar por si mesmo, e não sob a
pressão de decisões vindas do Estado; infelizmente, nada
garante a imparcialidade dessas informações.
Em alguns países, é possível hoje - tendo bastante
dinheiro! - comprar um canal de televisão, ou cinco, ou
dez, mais estações de rádio, mais jornais, e fazer-lhes dizer
o que se deseja, para que os consumidores, leitores, ouvin
tes e espectadores pensem por sua vez o que se quer. Nesse
caso, não se trata mais de uma democracia, mas de uma
plutocracia: não é o povo que tem o poder, é simples
mente o dinheiro.
Aliás, não é uma questão de dinheiro, mas de uma
pressão da moda, do espírito do tempo e do lugar: os jor
nalistas não estão mais submetidos ao Estado nem são
59

o Es p íR ITO UAS LUZ ES
comprados pelo capital, no entan to, são muitos a agirem
desse modo, imitando o mais prestigioso entre eles, recean
do parecer fora do contex to, sentindo-se encarregados de
uma missão idêntica. O fen ômen o não é novo, mas em
nosso mundo submetido à informação contínua, sua força
é multiplicada por dez. O espec tador, ou ouvi nte, ou
leito r que acredita escolher livremente suas opiniões
está forçosame nte condicionado pelo que recebe.A espe
rança suscitada pela in ternet , essa informação emitida po r
indivíduos não controlados e acessível a todos, arrisca-se
igualm ente a ser em vão: não é somente a in formação
que escapa ao controle, é tamb ém a manipulação, e nada
permite ao internauta distinguir uma da outra.
Quando é muito poderosa, a opinião públi ca restr in
ge a liberdade do indivíd uo, que acaba por subme ter-se.
Rousseau estava muito sensível a essa dimensão das socie
dades modernas e recomendava por essa razão cr iar as
crianças numa relativa solidão, lon ge das pressões da moda
e das idéias pront as; pela mesma razão, ele preferi a fugir
das grandes cidades.Já em seu tempo, essa solução podia
parecer ut óp ica. O ra, o mu ndo foi desde então na dire
ção oposta: as mídias de massa, e em part icular a televi
são, foram introduzidas no espaço individual, na cidade
como no campo; as crianças, mais especificame nte, pas
sam várias horas por dia diante da telinha. A te levisão
não é subm etida à tutela do Estado, mas ela precisa de
dinheiro para funcionar, e o encontra na publicidade, ou
seja, nos vendedores de bens de consumo. At ravés da
60
A U T O NOM IA
publicidade, mas também através do s modos de vida que
mostra em suas reportagens ou em suas ficções , a tel e
visão nos dá um modelo a imitar, sem, no entanto,jamais
formulá-lo de man eira explíc ita - o qu e nos permiti
ria ao m en os qu estioná-l o.
O pensamento das Luzes leva a cultivar o espí rito
crítico. Esse princípio deve sempre ser defendido, especial
mente co ntra aqueles que reagem a tal ou qual crí tica que
lhes desag rada, levando imediatam ente o problem a aos
tribunais. A lib erdade de opi nião , incluindo-se o que
nos incomoda, deve ser preservada. Isso não sign ifica
que toda postura crítica sej a, em si mesma, admirá vel.
Se, beneficiando-se da liberdade de expressão qu e tem
curso no espaço público democrático, ado ra-se um a ati
tu de de aviltamento generalizado, a crítica se torna um
jogo gratuito que não produz nada, exceto a subve nção
de seu próprio ponto de partida . C rítica demais mata a
crítica . N a tradição das Luzes, esta represen tava, num pri
meiro tempo, apenas um movimento dupl o, de crí tica e
de reco nstrução. Em suas Mcmàrias, R aym ond Aron conta
um episódio marcante de sua juventude. Assustado co m
o avanço do nazismo nos anos 1930 na Alemanha, ele
mantém discursos mu ito crí ticos sobre a atitude do gover
no francês . Um ministro, na França, o escuta atentame nte
e se propõe relatar suas idéias ao presidente do Conselho.
M as ele pede a Aron que dê mais um passo, e responda
primeiro a esta qu estão : "O que o senhor far ia se esti
vesse no lugar dele"? " Por ter aprendido esta lição, Aron
61

o E SPÍ RI TO DA S L U ZE S
se tornou um intelectual à parte. Sem sua contrapartida
positiva , o discurso crítico cai no vazio. O cetici smo gene
ralizado e a derrisão sistemática só têm aparência de sabe
doria; desviando o espírito das Luzes, criam um sólido
obstáculo à sua ação.
62
I 4 I LAICIDADE

LAICIDADE
NÃO É APENAS O PODER real estabelecido por direito
divino que ameaça a autonomia da sociedade. Esta repre
senta um conjunto complexo no qual se enfrentam várias
forças. Desde o início da história européia, criamos o
hábito de distinguir entre poder temporal e poder espi
ritual. Quando cada um deles dispõe da autonomia em
seu domínio e se vê protegido contra as intrusões do
outro, fala-se de uma sociedade laica ou, como se diz tam
bém, secular.
Poderíamos crer que, na parte do mundo marcada pela
tradição cristã, essa relação em torno da questão da auto
nomia já estaria prontamente organizada, pois o Cristo
anunciou que seu reino não era deste mundo, que a
submissão a Deus não interferia em nada na submissão
65

o Esp í R ITO DAS L UZE S
a César. No entanto, a partir do momento em qu e o
imperador Constantino impôs o cristianismo como reli
gião de Estado, no século IV, a tentação de apoderar-se
de todos os poderes de uma vez revelou-se. É fácil enten
der a razão desse movimento. Dir-se-á que a ord em tem
poral reina sobre os co rpos, a ordem espiritual sobre as
almas. Ma s alma e corpo não são entidades simplesme n
te justapostas, no interior de cada ser eles formam ine
vitavelmente uma hierarquia. Para a religião cristã, a alma
deve comandar o corpo ; por isso cabe às instituições reli
giosas, isto é, à Igreja, não somente dominar diretamen
te as almas, mas também, indiretamente, controlar os cor
po s e, portanto, a ord em temporal. Por sua vez, o poder
temporal procurará defender suas prerrogativas e exigirá a
manutenção do controle sobre todos os negócios terres
tres, inclusive sobre uma instituição como a Igreja. Para
proteger sua autono mia , cada um dos doi s adversários fica
então tentado a invadir o território do outro.
A fim de justificar suas ambições, os partidários do
poder espiritual ilimitado fabricam (em 754) um falso
documento, destin ado a ter um papel de primeiro plan o
nesse conflito : é a Doação de Constantino, um pseudo-docu
menta segundo o qual o primeiro imperador cristão teria
confiado ao papa não some nte o cuidado das almas dos
fiéis, mas também a soberania sobre os territór ios de toda
a Europa Ocidental. N a segunda metade do século XVII,
sob o papa Alexandre III , essas pretensões serão co difi
cadas na doutrina dita plcnitudo potestatis, plenitude da
66
L AI CIDADE
potência. Segundo essadoutrina, o Papa detém dois gládios
simbó licos, o espiritual e o temporal, enquanto o impe
rador só det ém o último; o Pap a é então seu superior
hierárquico.
Pode-se falar aqui no projeto de uma teo cracia,
primeira forma da plenitude de potên cia: o poder tem
poral é sim plesmente posto a serv iço do projet o reli
gioso. Em op osição a ele se desenvolve ao me smo tempo
uma forma com pletamente diferente; a qu e tende a fazer
da Igreja um instrumento, entre outros, a serviço do poder
temporal. Os imperadores mais vigorosos en carnam essa
atitude (que era já a do próprio Constantino); chamam
na às vezes de cesaripopismo, Suas diversas var iantes se
opõ em à teocracia, mas não à aspiração a uma pleni tude
de poder: qu er o Estado fosse posto a serviço da Igreja
ou o inverso, cada um qu eria possuir o pod er em sua inte
gralidade. Somente a impossibilidade de trazer uma vitó
ria de cisiva in trodu z a limitação de uma força por sua
rival. Poder civil e poder eclesiástico coexistem ao lon go
daquele período que chama mos de Idade M édia, sendo
sua fronteira simplesme nte a linha na qu al parou a últi
ma batalha. N o interior de seu território, cada um reina
sem com partilhamento; qu anto aos indivíduos, eles não
dispõem de ne nh uma liberdade de escolha .
Os termos do debate serão modificados a partir da
Reforma, graças ao lugar que esta reserva ao indivíduo.
Um mero camponês, se soube falar a Deus, pod e ter razão
contra o papa - o qu al, afinal de contas, não escapa a
67

() F. \ I' I 1\ I T ( ) I) A \ I II / . F. \
heresia. O soberano temporal, pensa Lutero num primeiro
momento, é considerado em relação ao domínio invio
lável do que os teólogos chamam de " os atos imanentes",
isto é, a relação com Deus, com a vida interior, com a
consciência. O príncipe não tem rival no exercício do poder,
no entanto este encontra um limite: não o poder da Igre
ja, mas a consciência do indivíduo, pela qu al este último
só presta contas a Deus. Uma terceira força surge aqui,
embaralhando a oposição anterior entre poder temporal
e poder espiritual; é aquela do indivíduo qu e controla
sozinho sua comunicação com Deus - e que poderia,
num segundo momento, apoderar-se do controle de out
ros territórios, subtraídos à influ ência dos antigos pode
res. Inicialmente, então, "indivíduo " é apenas o nome
do qu adro qu e permite salvaguardar a experiência reli
giosa das intrusões do poder político. No entanto, esse
qu adro individual pode enriquecer-se; deve então ser
defendido tanto contra o Estado quanto contra os pode
res eclesiásticos. Tal é o sentido da laicidade moderna.
A história européia moderna, do Renascimento até
as Luzes, de Erasm o a Rousseau, é a da con solidação da
separação entre instituições públicas e tradi ções religio sas,
e a do aumento da liberdade individual. C om efeito, o
poder temporal da Igreja é abalado sem ser abo lido, como
testemunham os vários passos dados em favor da tolerân
cia religiosa. Um testemunho entre tantos outros: "Estou
indignado, como o senhor - escreve Rousseau a Voltaire
em 1756 - que a fé de cada um não esteja na mais pura
68
L AI C I D A D E
liberdade, e que um homem ou se controlar o interior das
consciências nas qu ais não sabe ria penetrar'?" .
Uns após outros,segmentos inteiros da sociedade recla
mam a retirada da tutela religiosa e o direito à autonomia.
Uma das reivindicações mais significativas é a de Cesare
Beccari a, autor do tratado Dos delitos e das penas (publica
do quando ele estava então com vinte e seis anos), no
qual formula com clareza a distinção entre pecado e deli
to, que permite subtrair a ação dos tribunais do contexto
religioso. As leis só dizem respeito às relações humanas na
cidade; suas transgressões não têm nada a ver com a dou
trina religiosa. Os pecados, por sua vez, não caem sob os
golpes da lei: direito e teologia deixam de confundir-se.
Beccaria destaca também uma outra amea ça para a
liberdade do indivíduo, qu e já não vem da Igreja (que não
deve deter o pod er temporal), nem do Estado (que não
deve se meter co m o espiritual), mas da famíli a. Nesta, o
chefe pode exercer uma tirania sobre seus outros mem
bro s e então pr ivá-los da independência adquirida com
relação às estruturas sociais. Assim como todo indivíduo
tendo atingido a idade da razão tem o direito de se diri
gir diretamente a D eus, ele pode também recorrer dire
tarnente à República, da qu al é membro, para ben efi
ciar-se do s direitos que esta lhe assegura. Então, o "espí
rito de liberdade soprará não somente nos lugares públi
cos e nas assembléias da nação, mas também no interior
das casas, onde reside, numa boa parte dos casos, a feli
cidade ou o infortúnio do s indivíduos'!".
(,9

o ESPÍRITO DAS LUZES
Numa democracia liberal moderna, a conduta do
indivíduo se reparte então, mais do que entre ordem tem
poral e ordem espiritual, entre três esferas. Num dos pólos
se situa a esfera privada e pessoal que só o indivíduo
gerencia, sem que ninguém possa nada recriminar: desde
a Reforma, a liberdade de consciência se expandiu como
liberdade de todas as condutas particulares. No pólo
oposto se situa a esfera legal, na qual são impostas nor
mas estritas ao indivíduo, garantidas pelo Estado, as quais
ele não pode transgredir sem se tornar um criminoso.
Entre as duas se encontra uma vasta terceira zona, públi
ca ou social, impregnada de normas e de valores, mas que
não possuem um caráter obrigatório. Enquanto as leis for
mulam ordens e impõem penas, esta terceira zona con
tenta-se em dar conselhos ou exprimir reprovações, no
contexto de um debate público e isto funciona para as
regras morais, para as pressões exercidas pela moda ou
pelo espírito do tempo, como também para as prescrições
religiosas (ocupando, dessa maneira, o lugar do antigo poder
espiritual) .
O mapa dessas três zonas varia de país para país e
de um momento histórico para outro, mas a necessidade
de distingui-los e de fixar seus limites é reconhecida
por todos. Para nossos contemporâneos, a laicidade con
siste no fato de cada um perm.anecer dono de si sem piso
tear a liberdade dos outros: o Estado controla a esfera legal,
mas não pode ditar sua vontade à sociedade civil; esta
ocupa a esfera pública, mas sua ação pára diante de uma
70
LAICIDADE
fronteira que protege a liberdade do indivíduo.Além disso,
o Estado garante a liberdade e a proteção do indivíduo
com relação à sociedade civil. Esse equilíbrio entre esfe
ras é frágil (como mostra, por exemplo, o debate sobre
o direito ao aborto), mas indispensável ao bom funcio
namento da comunidade; sua manutenção faz parte dos
deveres do Estado.
É preciso voltar agora a um ponto já evocado: à des
coberta que faz Condorcet, quando da Revolução Fran
cesa, de um novo perigo para a autonomia do indiví
duo e, conseqüentemente, para a laicidade da sociedade.
Esse perigo consiste em que os detentores do poder tem
poral aspirem, não como no cesaripapismo, a sujeitar-se
a uma religião existente, mas a fundar um novo culto, que
tem por objeto o próprio Estado, suas instituições ou seus
súditos. Se Condorcet o descobre naquele momento, é
porque não existia nos tempos passados: a presença de
uma religião oficial impedia que o poder temporal se tor
nasse uma delas. Foi o descarte da Igreja cristã que tornou
possível esta nova religião. Aqueles mesmos que quiseram
libertar os homens do jugo da religião correm o risco
de se tornar os servidores de um culto não menos opres
sor. Quando é o poder que diz ao povo aquilo em que
é preciso crer, está se referindo a uma "espécie de religião
política", raramente preferível à precedente. Condorcet
acrescenta: "Robespierre é um padre, ele só será isto?".
Encontra-se aqui a primeira ocorrência de que se tem
notícia da expressão "religião política", muito diferente
71

o Esp i R ITO D AS L U Z E S
da "religião civil" de Rousseau, a qual só implica um
reconhecimento dos princípios de uma vida comum .
Ao fim e ao cabo,o conteúdo específico do novo dogma
importa pouco. Pode tratar-se de um moralismo cívico,
como nos sonhos de alguns revolucionários de recons
truir a antiga Esparta ou, ao contrário do elogio do espí
rito m ercantil , da pura busca do lucro, que torna, por
exemplo, lícitos o comércio e a exploração dos escravos
ou a submissã o das populações estrangeiras. O essencial
é a nova "plenitude de poder",já que o poder temporal
impõe também as crenças que lhe convêm. Controlando
a escola, ele transforma a instrução, que supostamente
deveria trazer a liberação, em ferramenta de uma submis
são ainda maior; ele apresenta como dogmas imutáveis
ou, pior, verdades científicas, as últ imas decisões políticas.
Controlando a informação, ele age de modo a que " os
cidadãos nunca aprendam nada que não lhes po ssa ser
confirmado pelas opiniões que seus mestres lhes querem
inspirar? ", Os indivíduos, assim manipulados, acreditan
do agir por si mesmos, executam o programa concebido
pelos detentores do poder.
Condorcet desenrola aos olhos do leitor um verda
deiro cenário catastrófico. Imaginemos, diz ele, que "um
bando de audaciosos hipócritas" se apodere do poder cen
traI e qu e se garantam revezamentos loc ais no conj unto
do país. Eles poderiam meter a mão nas principais fon
tes de informação; em conseqüência, acreditaria nela
um "povo cuja falta de instrução deixa sem defesa con-
72
LAI CIDA DE
tra os fantasmas do medo". Alternando então sedução e
ameaças, esse grupo no poder "exercerá, sob a máscara da
liberdade '!" , uma tirania que não perde em eficácia para
nenhuma daquelas que a precederam.
Tal plenitude de poderes seria até pior que seus
precedentes, pois o campo da nova religião política se
confu nde com toda a existência terrestre dos homens.
A religião tradicional queria controlar a consciência do
indivíduo, fosse exercendo ela mesma o poder temporal ,
ou delegando a este a tarefa de reprimir. A religião polí
tica , por sua vez, poderá vigiar e orientar diretamente
tudo. Por conseguinte, a liberdade pela qual pleiteia agora
Condorcet não é apenas uma liberdade de consciência;
é, como dirá quinze anos mais tarde Benjamin Constant ,
leito r atento das Memórias de Condorcet , toda a liberdade
dos Modernos. Os Antigos, com efeito, não pensam a
liberdade nesses termos, eles não imaginam que o indi
víduo deva ser defendido contra seus próprios represen
tantes. O território da nova religião ultrapassa de longe
o do antigo ; em conseqüê ncia aumenta também aquele
que o indivíduo terá de defender.
O terror jacobino encarna j á uma primeira " reli
gião política". M as cento e trinta anos mais tarde, no
início do século x x , é que as piores apreensões de Con
dorcet se realizarão. Ao fim da Primeira Guerra mundial
nascerão na Europa vários regimes políticos de um novo
gênero, mas que correspondem justamente a essa ima
gem premonitória: eles se chamarão comunismo, fascismo,
73

o E sp iRIT O DA S L U Z E S
nazismo. As fórmulas de Condorcet são provavelmente
esquecidas nessa época, mas, já nos anos 1920, os obser
vadores atentos revelam as características do que chamam,
por sua vez , de uma religião política. Entre esses teste
munhos, que vão de jornalistas católicos italianos e ale
mães aos autores de obras de referên cia como Eric Voe
gelin ou de artigos brilhantes como o de Raymond Aron,
uma menção particular deve ser feita a Waldemar Gur ian,
judeu russo convertido ao catolicismo, que morou na Ale
manha antes de emigrar para a Suíça e mais tarde aos Esta
dos Unidos, e qu e escreve, desde os anos 1920, estudos
comparativos sobre os totalitarismos europeus.
Como esses outros obser vadores, Guria n revela o
paradoxo que há em chamar de " religião " uma doutrina
que se distingue claramente das confissões tradici onais e
qu e, no caso do comunismo, op õe-se-lhe com viru lên
cia; ele sugere, por essa razão, tomar emprestado ao mo vi
mento contemporâneo do s eurasianos, ru ssos emigrados
anima dos de um espír ito an tieurope u , o termo "i deo
cracia" , para incluir aí como qu e duas subespécies de reli
giõ es tradi cionais e as novas religiõ es políticas. Essa dis
tinção não o impede, no entanto, de ver qu e as doutri
nas totalitárias compartilham algumas características dos
cultos religiosos e, coisa relevante aqui, qu e elas exigem
uma abolição da laicidade lentamente conquistada duran
te os séculos precedentes. Este novo ataque, conforme
previra C ondorcet, é diferente tanto da teocracia quan
to do cesaripapismo, pois essas duas formas de confusão
74
Ll\ lC l llA lJE
entre espir itual e temporal mant inham ao mesmo tempo
a distinção do s doi s qu adro s e exigi am apen as a submis
são de uma à outra; enquanto as novas religiõ es políti cas
eliminam a distinção e impõem uma sacralização do pró
prio poder político, sob a forma do Estado, do Povo ou
do Partido, ou ainda do regime qu e ele impõe, fascis
mo, nazismo ou comunismo. A religião tradicional é com
batida e eliminada (no comunismo), ou subme tida e mar
ginalizada (no fascismo e no nazismo); em nenhum caso
ela continua sendo a m ediadora privilegi ada do sagrado,
papel atribuído doravant e ao pod er político.
Se tivesse podido evitar uma eliminação definitiva,
o poder espiritual vencido po deria ter exercido uma ação
mod eradora, ainda qu e mod esta. N ada disso é mais pos
sível aqui, pois não se trata de um a submissão, mas de uma
substitu ição. C omo obse rva Gurian, "as ene rgias e as
força s qu e en contravam outrora seu escape e expre ssão
na religião e que limitavam o pod er do velho sobe rano
despóti co constitue m doravante forças mot ri zes funcio
nando atrás e no seio de novos regimes despóticos do
século xx. As ideologias totalitárias substituem e suplan
tam a religião}'''. O s regimes totalitários, podem os acres
centar com a lucidez que no s dá o de correr do tempo,
passam uma primeira fase " teocrática" , du rante a qu al
o Partido controla o Estado, uma segunda fase "cesaripa
pista" , ficando o partido a serviço do Estado. N esses dois
casos, confirmando os receios de Condorcet, esse novo tipo
de fusão entre poder temporal e poder espiri tual elimin a
75

o ESP Í R IT O DAS L U Z E S
mais radicalmente do que nunca a liberdade individual
garantida pela laicidade, em função justamente de sua dominação totalitária.
O s inimigos da sociedade secular são numerosos. N a
época das Luzes, são os representantes da Igreja institu
cional que se inspiram na frase emblemática de Bossuet:
"Eu tenho o direito de perseguir-vos porque tenho razão
e vós estais errados", frase esta que estabelece uma forte
continuidade entre o mundo espiritual (no qu al pode
riam eventualmente se en contrar as razões e os erros) e
o mundo temporal (no qual podem ser empreendidas per
seguições). A tolerância só convém às co isas indiferen
tes, pleiteia também Bonald no dia seguinte à Revolu
ção ; para tud o o qu e tem realmente importância, é pre
ciso submeter-se à verdade do dogma. N os reg imes tota
litários, a laicidade também é rejeitada: a sociedad e é intei
ram ente subme tida ao Estado.
Todas as sociedades ocidentais contemporâneas pra
ticam diversas formas de laicidade; mas esta última foi ree
xaminada a partir dos anos 1990 do século xx, em vir
tude da expansão do islami smo . A propagação de uma
versão fundamentalista da religião muçulmana teve sobre
a vida de numeroso s países duas conseqüências maiores,
estreitamente ligadas entre si: os atas terroristas que não
visam especificamente à laicidade, e a submissão das mulh e
res, que o faz. Esta última prática não é exclusivamente
islâmica,j á que se en contra num vasto território incluin
do o M editerrân eo e o Oriente M édio, onde são pra-
76
L A I C I D ADE
ticadas diversas religiões. Também é verdade que, na
Europa contemporânea, a desigualdade das mulheres é
reivindicada principalmente por certos representantes
do islã. No caso deles, uma interpretação literal dos tex
tos sagrados leva a justificar a dominação dos homens
- pai irmão ou m arido - sobre as mulheres maiores, ,de idade , e privá-l as das liberdades individuais de qu e
gozam todas as outras mulheres, cidadãs do mesmo país.
A ameaça denunciada por Be ccaria se torna novamente
uma realidade.
Uma interpretação desse tipo tem por efeito erigir
um culto à virgindade e à fidelidad e e assim privar as
mo ças do controle de seu próprio corpo, bem como proi
bi-Ias de trabalhar fora ou até de simplesmente sair de suas
casas e serem olhadas por desconhecidos. Mais grave ainda:
as mulheres são espancadas a cada transgressão dessas regras,
de acordo com as prescri ções religi osas, como reivindi
cam publicamente alguns representantes do islã fundamen
talista. Lembramo-nos das declaraçõe s de H ani R arnadan ,
então diretor do C entro Islâmico de Genebra, qu e expli
cava que a lei religiosa era na verdade bem clemente:
"A lapidação prevista em caso de adultério só é co nce
bível se quatro pessoas forem testemunhas oculares do
delito":". Quantos outros pensam assim sem ousar dizê-lo
em público?
Várias vozes de mulheres muçulmanas se levantaram
para denunciar essa situação. Na França, a associação "Nem
putas nem submissas" engajou-se nesse combate especí-
77

o E sp í R IT O DA S L U Z E S
fico; organizou uma marcha nacional e publicou em 2002, ,um manifesto no qual se podia ler:"Nem putas, nem sub
missas, simplesmente mulheres que querem viver sua liber
dade para afirmar seu desejo de justi ça? ". São as famí
lias, não os imames, que querem submeter as mulheres ,
mas é nos textos sagrados que elas en contram a legiti
mação de suas proibições. O resultado é que a liberdade
dessas mulheres se enc ontra restrita, e assim , finalmente,
a igualdade de todos os membros da mesma soc iedade.
Ayaan Hirsi Ali , hoje deputada holandesa e atéia, mas de
origem soma liana e de educação muçulmana, também
milita há vários anos para proteger e ajudar as mulheres
espancadas, violentadas e mutiladas em nome do s prin
cípios tirados do islã. O filme qu e ela assinou o roteiro,
S ubmission , provocou, em 2004, o assassinato de seu rea
lizador T heo Van Gogh . Hirsi Ali recusa a submissão do
indivíduo às prescrições de um grupo como o dos mu çul
manos fundamentalistas e reivindica, ao contrário, a sub
mi ssão de todos os cidadãos às mesmas leis. C onform e
afirma,"a liberdade individual e a igualdade entre homem
e mulher" não são escolhas facultativas, mas "va lores uni
versais " , inscritos nas leis do país" . N uma democracia
liberal, submeter à força as mulheres aos homens e impe
di-las de agir segu ndo sua própria cabeça não é coisa qu e
se insere no cam po do tolerável.
Ao lado dessas rejeições da laicidade, pode-se também
observar seu desvio por simplifica ção e sistem atiza ção
abusivas. Seria o caso se a sociedade secular se to rn asse
7H
L AI CIDADE
um sin ônimo de uma sociedade da qu al foi ban ido todo
o sagrado. N a sociedade tradicional, o sagrado é defini
do pelo dogma religioso e pode estender-se às institui
ções co m o aos obj etos. A R evolução Francesa tentou
sacralizar a nação ; o amor pel a pátri a devia supos tamen
te fazer o pap el atr ibuído antes ao amor a Deus. O s
regimes totalitários quiseram, por sua vez, sacralizar subs
titutos terrestr es do divino, tais como o povo, o parti
do, ou a classe operár ia. As democracias liberais co n
temporân eas não suprimem todos os deveres do s cid a
dãos, tampouco o sacralizam. Elas não impedem os indi
víduos de encontrar o sagrado no interior de sua esfera
privada: para um, é seu trabalho que é sagrado, para outro,
suas férias, para um terceiro, seus filhos, para um outro,
sua religião. M as nenhuma instituição, nenhum obj eto é
sagrado : tudo pode ser criticado. Até os aco ntecimentos
que suscitam na sociedade francesa um julgamento de
valor unânime, como o genocídio do sj udeus ou a Resis
tência, não possuem, na esfera pública, um cará te r sagra
do: para qu e progrida, o conhecimento não deve dep a
rar-se com zonas proibidas, en tretanto, o sagrado é aqui
lo que não se tem o direito de tocar.
Não é verdade, no entanto, que nossas soc iedades
sec ulares seja m inteiramente de sprovidas de sag rado;
este apenas j á não se encontra nos dogmas nem nas relí
quias, mas nos direitos dos seres humanos. E sag rado
para nós é uma certa liberdade do indivíduo: seu direito
de praticar (ou não) a religião de sua escolha, de criticar as
79

o E SP ÍR IT O D A S L U Z E S
instituições, de buscar por si mesmo a verdade . É sagrada
a vida humana, por isso aos Estados é desautorizado o
direito de atingi-la com a pena de morte. É sagrada a inte
gridade do corpo humano, por isso foi banida a tortura,
mesmo quando a razão de Estado a recomenda, ou é proi
bida a excisão, prati cada em menininhas que não dispõem
ainda da autonomia de suas vontades.
O sagrado não está ausente nem da esfera pessoal
de uma sociedade secular nem de sua esfera legal. Quanto
à esfera pública, não está nem dominada por um sagrado,
nem condenada ao caos das opiniões contraditórias; ela
pode ser regulada por máximas que pertencem ao con
senso geral. Condorcet escrevia: " O que, a cada época,
marca o verdadeiro limite das Luzes, não é a razão par
ticular de certo homem de talento, mas a razão comum
dos homens esclarecidos'?" . N em todas as opiniões são
iguais, e não se deve confundir a eloqu ência de uma pala
vra com a justeza de um pensamento. Tem-se acesso às
luzes, não se fiando à iluminação de um único, mas reu
nindo- se duas condições: primeiro, escolher "homens
esclarecidos", isto é, indivíduos bem infor mados e capazes
de raciocinar; em seguida, levar a buscar "a razão comum",
colocando-os em situação de diálogo argume ntado. Pode
ser, todavia, que com rela ção a isso, o ideal das Luzes
esteja ainda longe de nós.
80
5 VERDADE

VER D A DE
PAR A MELHOR C IR CU NSCR EVER O lugar da autonomia,
pode ser cômodo partir de uma distinção entre dois tipos
de ação, e também de discurso, aquele cuja finalidade é
promover o bem e aquele que aspira a estabelecer o ver
dadeiro. Os pensadores das Luzes sentem a necessidade
dessa distinção para subtrair à influência religiosa o conhe
cimento do homem e do mundo. É a razão pela qu al
Voltaire atrai nossa atenção para o fato de qu e as religiões
são múltiplas (ele fala de "seitas") , enquanto a ciên cia é
um a. Ninguém, com efeito, ou viu falar de seitas de alge
br istas! Essa diferença fácil de se ob servar tem implica
ções múltiplas; ela significa especialm ente que os deten
tores do poder, sejam eles de origem divina ou humana,
não devem ter nenhuma ação sobre o discurso que busca
83

o E S PÍR I T O DAS L U Z E S
conhecer o verdadeiro: não pertencem ao mesmo espaço.
Hume escreveu em 1742: "Mesmo que o gênero humano
inteiro concluísse de maneira definitiva que o sol se move
e que aTerra permanece em repouso, apesar desses racio
cínios, o sol não mexeria uma polegada de seu lugar e. f: 1 A 40"essas conclusões seriam a sas e erroneas para sempre .
A verdade não perten ce a um desejo.
É Condorcet qu e vai explorar as con seqüências dessa
escolha durante os últimos anos do século XVIII, em suas
reflexõ es sobre o ensino. Ele se aproxima ra desse tem a
algumas décadas antes de se dedicar às suas Mem érias, quan
do defendia a tolerância religiosa e mais particularmente
os direitos dos protestantes de instruir tanto quanto os pro
fessores católicos. Sobre o qu e podia se fund ar essa reivin
dicação? Sobre o fato que a religião do professor é indi
ferente quando a matéria ensinada pertence, não à fé, mas
à ciência. "Tant o quanto é respeitável tentar só confiar a
homens de uma ortodoxia irrepreensível uma dignida
de ecle siástica, será ridículo ocupar-se da ortodoxia de
um professor de fisica e de anato m ia' !" . Para fazer enten
der as teorias de Newton , o qu e importa se o professor
é católi co ou protestante! Mas se estamos de aco rdo
com ele neste ponto, uma conclusão se impõe: uma fron
teira nítida separa dois tipos de matérias suscetíveis de
serem ensinadas. De um lado as religiões, ou mais geral
mente ainda as opiniões e os valores, tod os perten centes
à crença ou à vontade do indivíduo; do outro, os obje
tos de conhecimento, atividade cujo horizonte último é,
VE RD A D E
não mais o bem, mas a verdade . Ensinar umas ou outras
corresponde a duas atividades bem distintas.
Em 1791, quando redige suas Memórias, Condorcet
encontrará duas apelações para essas formas de ensino: ele
opõe agora a instrução pública à educação nacional, e pleiteia
em favor da primeira, a única qu e pert ence, em sua opi
nião, às competênc ias republicanas. A educação "abrange
todas as opiniões políticas, morais ou religi osas"; a edu
cação nacional dará a todos os alunos o m esmo espírito
patriótico. Em cont rapartida, a instru ção não se ocupará
mais de "con sagrar opiniões estabelecidas" , de "fazer os
homens admirarem uma legislação completamente aca
bada" , mas lhes ensinará a "subme ter ao livre exame" suas
próp rias convicçõ es, a fazer um julgamento sobre elas e,
eventualmente, corrigi- las.A edu cação visa a propagar seus
valores, a promover o que ela estima ser útil : a instrução
ensina "verdades de fato e de cálculo" , abre o acesso às
informaçõ es obj etivas e oferece aos homens ferram entas
que permitem fazer bom uso de sua razão, a fim de que
"possam se decidir por si mesmos?". A finalidade é a auto
nomia do indivídu o, a capacidade de examinar de manei
ra crítica as normas existentes c escolhe r por si mesmo
suas regras de conduta ou suas leis;o meio, o domínio das
competências intelectuai s fund amentais e o conhecimen
to do mundo. É nisso qu e consiste a passagem da infância
à idade adulta. Defender a liberdade do indivíduo implica
reconhecer a diferença entre fato e interpretação, entre
ciência e op inião, verdade e ideologia; é fazendo apelo ao
85

o E sp íR IT O DA S L U ZE S
primeiro termo dessas oposições, termo que escapa a toda
vontade, portanto a todo poder, que esse co mbate tem
chance de ser concluído.
O raciocínio de Condorcet pressupõe nossa grande
dicotomia, aquela entre o domínio da vontade, cuj o hori
zonte é o bem, e o domínio do conhecime nto, orientado
para o verdadeiro. A primeira encarna-se exemplarmente
na ação política; a segunda, na ciên cia. As du as segue m
lógicas diferentes e Condorce t chega até a escrever:"Em
geral, todo poder, de qualquer natureza que seja, em quais
quer mãos que tenha sido posto, de qualquer maneira qu e
tenha sido conferido, é naturalmente inimigo das luzes".
A razão desse co nflito lhe parece simples: qu anto m ais
esclarecidos fore m os indivíduos, mais eles serão capazes
de decidir por si mesmos - e terão men os tendência a
se subme ter cegamente ao poder."A verdade é então a ini
miga tanto do poder co mo daqueles qu e o exerc em?".
N o en tanto, nem todos os pod eres se equivalem. O bom
governo é aquel e que, preocupado com o bem-estar de
seus súditos mais do que com seu próprio triunfo, favo
rece o progresso das luzes, portanto da instru ção pública;
o que aj uda seus súditos a adquirir auto nomia facilitan
do-lhes o acesso à verdade.É um governo paradoxal o que
dá a seus cidadãos, senão varas para bater nele, ao men os
meios para emanciparem-se dele. N este ponto ele é com
parável aos pais que procuram dar autonomia a seus fi
lhos, mesmo sabendo que o suces so destes traz o risco
de torná-los inúteis enquanto pais e afastá-l os deles.
86
VERDADE
Um governo sábio não se opõe ao crescimento e à
propagação dos co nhecimentos. Ma s seu papel pára aí;
em nenhum caso ele deve levar o zelo até contr ibui r
ele próprio à progressão da verdade, pois não é uma ques
tão de vontade. O poder público não deve ensinar suas
escolhas camuflando -as em verdades."Seu dever é armar
co ntra o erro, que é sempre um mal público, toda a força
da ve rda de; mas ele não tem direito de decidir onde
reside a verdade, onde se enc ontra o erroH" . O pod er
públi co deve tornar materialmente possível o avan ço do
co nhecimento, não estabel ecê-lo ele mesmo. Não cabe
ao povo se pronunciar sobre o que é verdadeiro ou falso,
não cabe ao parlamento deliberar sobre o significado
dos fatos hi stóricos do passad o, não cabe ao governo
decidir o qu e é preciso ensinar na escola.A vontade co le
tiva, ou soberania do povo, depara-se aqui com uma limi
tação, qu e é a da verdade, sobre a qual não tem ascendên
cia; essa indep en dên cia da verdade protege ao me smo
tempo a autonomia do indivíduo que pod e, face ao pod er,
atribuir-se o verdadeiro. A verdade está acima das leis.
R ecip rocamente, as leis do país não decorr em de lima
verdade estabe leci da : elas são a expressão da vontade
pública, sempre sujeitas à variação. A busca da verdade
não pertence à esfera da deliberação pública, nem esta
àquela. O s Estados modernos segui ram esse princípio,
separando o domínio do legislativo, qu e só pertence ~l
vontade popular, do domínio regulamentar, em qlle inte r
vêm outros fatores.
X7

o ESPÍRITO DAS LUZES
o bom desempenho da vida política numa república
como também a autonomia de seus cidadãos estão amea
çados por dois perigos simétricos e inversos: o moralismo
e o cientificismo. O moralismo reina quando o bem domi
na o verdadeiro e, sob pressão da vontade, os fatos se tor
nam uma matéria maleável. O cientificismo se lhe impõe
quando os valores parecem decorrer do conhecimento
e as escolhas políticas se travestem em deduções cientí
ficas. Condorcet se põe eficazmente de sobreaviso con
tra a tentação moralista. Assustado com o entusiasmo
dos revolucionários que imaginam a França contempo
rânea uma nova Esparta, ele afirma a independência da
ciência e da busca das luzes. O Terror, no qual a exigên
cia da virtude não deixa nenhum lugar para uma verdade
independente, é uma forma extrema de moralismo e jus
tifica a resistência de Condorcet que perecerá sob seus
golpes. Ele mesmo, por outro lado, não escapa sempre à
ilusão cientificista, ao esperar que o progresso dos conhe
cimentos gere sozinho a melhor ordem política e a feli
cidade dos homens.
O cientificismo é uma doutrina filosófica e política,
nascida com a modernidade, que parte da premissa de que
o mundo é inteiramente passível de conhecimento; então
passível de transformação de acordo com os objetivos que
nos colocamos, objetivos deduzidos eles próprios dire
tamente desse conhecimento do mundo. É nesse sentido
que o bem decorre do verdadeiro. As Luzes já conhe
cem bem a tentação científica. Esta se manifesta, por exern-
88
VERDADE
pIo, na reflexão moral de Diderot, que queria que as leis
da "natureza" fossem as únicas às quais nossa conduta
tivesse de obedecer. "A lei civil não deve ser senão a enun
ciação da lei da natureza. [... ] O que constitui o homem,
o que ele é, [... ] deve fundar a moral que lhe convém?",
Ora, quem melhor do que a ciência poderia nos ajudar
a conhecer a natureza? Do que é deduziremos automa
ticamente o que deve ser. Alguns anos mais tarde, Sade
aproveitará desse raciocínio para legitimar seu desvio
do espírito das Luzes. "A destruição sendo uma das pri
meiras leis da natureza, nada do que destrói poderia ser
um crime". "Não tenham outro freio senão aquele de
vossas inclinações, outras leis senão as de vossos dese
jos, outra moral senão a de vossa natureza":". Diderot e
Sade supõem que o homem vive sozinho, como se seus
atos não tivessem nenhuma incidência sobre outros seres
humanos; isso lhes permite considerar toda a lei civil
ou moral como supérflua.
O mesmo raciocínio se aplica à ordem política.
Para d'Holbach, o homem é infeliz porque não conhece
a natureza. Pode-se deduzir daí que um tal conheci
mento seria necessário e suficiente à sua felicidade, que
bastaria saber para viver bem. De seu lado, Condorcet afir
ma: "Conhecer a verdade para conformá-la à ordem da
sociedade, eis a única fonte da felicidade pública?". Sen
sível à ascendência do bem sobre o verdadeiro, Condorcet
não vê inconveniente em que a verdade seja "a única
fonte" do bem; a ação exercida sobre a sociedade lhe pare-
89

o E SPÍR IT O DAS L U ZE S
ce não comportar nenhuma escolha de valores nem de
objetivos, é o próprio conhecimento que se encarrega de
produzi-los.
Esse cientificismo em germe desde a época das Luzes
é, no entanto, combatido por outros representantes de seu
espírito. Já vimos já que, para Montesquieu, toda ambi
ção de domínio total do mundo é vã, em razão ao mesmo
tempo de sua extrema complexidade e do caráter sin
gular de um de seus habitantes, o ser humano,jamais intei
ramente previsível, pois está prestes a escapar a todos os
determinismos - sempre capaz de "aquiescer ou de resis
tir", segundo a fórmula de Rousseau. Dissipar a ilusão
de uma continuidade automática entre acúmulo de conhe
cimentos e aperfeiçoam ento moral e político é inclusi
ve o ponto de partida da reflexão de Rousseau , qu e se
oporá a bom número de seus contemporâneos, enc iclo
pedistas e " filósofos" . Para tornar a humanidade melhor,
repete incansavelmente R ousseau, não basta "expandi r
as luzes". "N ós podemos ser homens sem sermos sábios?",
Certas formas de cientificismo, gravemente co mpro
metidas nas aventuras totalitárias do século xx, são hoj e
rejeitadas por todos: não se defende mais a eliminação das
raças inferiores nem a das classes reacion àrias. Isso não
quer dizer que as democracias contemporâneas estejam
livres de todo traço de cien tifi cismo ; simplesmente este
toma outras formas . D aí a tentação de confiar a elabo
ração das normas morais ou dos objetivos políticos a
"experts", como se a defini ção do bem pertencesse ao
tJo
VERDADE
conhec im en to. Ou ainda o projeto "s ócio- bio lóg ico"
de absorver o conhecimento do homem no da natureza
e fundar nossa moral como nossa política nas leis da tisica
e da biologia. Pode-se perguntar assim por qu e os bió
logo s ser iam os mais bem qualificados para figurar no s
diver sos comitês éticos cr iados pelos países ocidentais.
Esses comitês estão, co m efeito, habitualmente compostos
por duas categorias de pessoas, os cientistas e os religiosos,
co mo se nenhuma instância política, nenhuma auto ri
dade moral existisse entre os dois.
Tais escolhas implicam uma concepção segundo a
qual bastaria ter as informações certas para tomar as boas
decisões. Ora, as próprias informações estã o longe de
serem hornogêneas, e nenhuma abordagem puramente
qu antitativa é satisfatória: multiplicando-as indefinida
mente, não somente não nos tornamos mai s virtuosos,
co mo j á previa Rousseau , mas também não nos torna
mos nem mesmo mais sábios. O crescim ento ver tigi no
so do s meios de esto cagem e de transmissão de infor
mação revelou um novo perigo: informação demais mata
a informação. Basta fazer uma pergunta na internet para
receber imediatamente cem mil respostas; co mo sabe r qual
é a mais digna de co nfia nça e a mais esclarecedora? Uma
enciclopédia composta livremente pelos usuár ios (aW iki
pedia) é preferível àquela redigida por cientistas compe
tentes? Somente se apagarmos o limite entre querer e saber.
Além do mais, o co nhecimento não pe ga ne cessa
riamente a via da ciênc ia: para penetrar nos arcanos das
tJ]

o ESPÍRITO DAS LUZES
condutas humanas, a leitura de um grande romance pode
se revelar mais esclarecedora do que a de um estudo socio
lógico.Alguns pensadores das Luzes o tinhamjá compreen
dido - tais como Vico, que afirmava que o conhecimento
pelo mito e pela poesia convinha mais a algumas matérias
do que aquele que se apóia na razão abstrata. Essa hete
rogeneidade das vias do conhecimento, da qualidade das
informações, das formas de intervenção social compro
mete por sua vez as ambições do cientificismo.
O moralismo, neste caso uma submissão da busca
do verdadeiro às necessidades do bem, é muito mais anti
go que as Luzes, e diretamente oposto a seu espírito;
ele lhe sobreviveu, no entanto. Poderíamos ilustrar essa
tenacidade por um debate que ressurge periodicamen
te na sociedade francesa há uns quinze anos e que diz
respeito à escritura da história do século xx. Seu últi
mo episódio data de 2005. Um grupo de deputados intro
duziu uma proposta de lei com relação à interpretação
que é preciso dar à empreitada colonial francesa e mais
particularmente à ocupação da Argélia. Um artigo dessa
nova lei diz: "Os programas escolares reconhecem em
particular o papel positivo da presença francesa além
mar, especialmente na África do norte". A lei foi vota
da em 23 de fevereiro de 2005, e reconfirmada por uma
maioria de deputados no dia 29 de novembro do mesmo
ano. Uma interpretação do passado foi então submetida
ao voto e adquiriu força de lei; quem se opuser pode ser
condenado. Assim como a Igreja no século XVII proibindo
92
VERDADE
Galileu de pesquisar livremente a verdade, os deputados
franceses, no século XXI, prescrevem aos historiadores
e àqueles que se beneficiam de suas pesquisas, professores
e alunos - o conteúdo de seus estudos. As advertências
de Hume são esquecidas; a verdade resulta aqui de um
desejo.
Poderíamos notar, com relação ao texto dessa lei, que
é chocante mencionar o único "papel positivo" da coloni
zação,chamado de modo pudico "a presença francesa além
mar". A invasão de um país estrangeiro sob pretextos fala
ciosos, a manutenção de sua população em estado de
inferioridade legal, o desprezo de princípios republica
nos que a metrópole reivindica durante esse tempo, a
repressão das veleidades de independência pelos massa
cres e pela tortura são aí fatos estabelecidos há muito
tempo, cujo lado positivo - assim que deixamos a ótica
etnocêntrica e nacionalista - é difícil de ver. E talvez ainda
mais lamentável, é reduzir, meio século depois do fim das
colónias, a complexidade da História a adjetivos de puro
julgamento moral como "positivo" ou "negativo", impon
do uma visão"otimista" ou "pessimista". Tal simplifica
ção maniqueísta só pode trair a experiência de milhões
de pessoas, durante mais de um século. O estudo da his
tória nunca pode abstrair inteiramente valores dos quais
está impregnada a existência humana, mas ela não leva a
tais etiquetas lapidares. Para avançar na compreensão, para
recolher o máximo de fatos e formular as interpreta
ções mais finas, o historiador não deve decidir antes sobre
93

o ESPÍRITO DAS LUZES
a "moralidade" à qual deve chegar. A história comporta
poucas páginas escritas apenas em preto e branco.
O que há de particularmente perturbador para quem
preza o espírito das Luzes é o próprio fato de que o Par
lamento engaje um voto sobre uma interpretação da
história, como se bastasse uma maioria política para pro
clamar verdadeira uma proposta; como se esse voto, em
vez de proteger uma afirmação, não a tornasse mais vul
nerável (uma outra maioria poderia rejeitá-la). Diante
da ciência, as seitas desapareciam, dizia Voltaire; face à
verdade, os partidos se calavam. Pois não são os repre
sentantes do povo os mais bem armados para buscar a ver
dade: esta não é uma questão de vontade. Em que a
eleição de um deputado o torna competente para julgar
a história? É este o papel de um parlamento, decidir a inter
pretação a ser dada aos acontecimentos do passado ou
até aos fatos que o constituem? O fato de ser necessário
fazer-se tais perguntas dá a medida do escândalo anacró
nico que representa a votação de uma lei como esta.
É preciso reconhecer que os deputados franceses
não estavam em sua primeira tentativa. Alguns anos antes,
eles haviam decidido que a Turquia era culpada pelo
genocídio armênio e que a escravidão fora um crime
contra a humanidade. Alguns anos ainda antes, votaram
uma lei, ao que parece a primeira do gênero, punindo
qualquer negação do genocídio dos judeus durante a
Segunda Guerra mundial. Os eventos em questão ser
vem menos a controvérsia do que a colonização do
')4
VERDADE
Magrebe, mas a questão de princípio permanece a mesma.
O poder público não tem o direito de decidir onde resi
de a verdade, dizia Condorcet; esse princípio elementar
parece esquecido pelo Parlamento francês. Ora, subtrair
uma proposta ao campo da pesquisa de verdade para
incluí-la num catecismo e enchê-la de sanções penais
não a consolida, mas a rebaixa.
A verdade não pode ditar o bem; mas ela não deve
ficar-lhe submetida. Cientificismo e moralismo são, tanto
um quanto outro, estranhos ao verdadeiro espírito das Luzes.
Um terceiro perigo existe: que a própria noção de verda
de seja tida por não pertinente. Num estudo consagrado
ao romance 1984, o filósofo Leszek Kolakowski elogia
Orwell por ter reconhecido a importância que toma
nos regimes totalitários o questionamento da verdade.
Não é somente que nele os homens políticos recorram
ocasionalmente à mentira - eles o fazem em todo lugar.
É antes a própria distinção entre verdade e mentira, ver
dade e ficção que se torna supérflua, face às exigências
puramente pragmáticas de utilidade e de conveniência. É
por isso que nesses regimes a ciência não é invulnerável
aos ataques ideológicos e a noção de informação obje
tiva perde seu sentido. A história é reescrita em função
das necessidades do momento, mas as descobertas da bio
logia ou da fisica podem também ser negadas se forem
julgadas inapropriadas. "É o grande triunfo cognitivo
do totalitarismo: não se pode mais acusá-lo e mentir já
que ele conseguiu prescrever a própria idéia de verdade",
')5

o E S P Í R I T O DA S L U Z E S
conclui Kolakowski" . Os detentores do poder, desta vez,
se livram definitivamente da impertinente verdade.
Poderíamos crer que esse perigo ameace apenas os
países totalitários, e não as democracias.No entanto, vários
episódios recentes da vida pública nos Estados Unidos
ilustram uma nova fragilidade da verdade.
Um primeiro fato dessa natureza é a decisão de ensi
nar, em de algumas escolas, a teoria da evolução oriunda
dos trabalhos de Darwin e o mito bíblico da criação
(ou como se diz hoje, o "plano inteligente") como duas
"hipóteses" igualmente dignas de respeito. Num país onde,
como nos mostram as sondagens, 73% dos habitantes
crêem na vida depois da morte e 39% pensam que a Bíblia
foi ditada diretamente por Deus e deve ser tomada ao
pé da letra", não é surpreendente que muitas pessoas pre
firam a versão bíblica à da biologia; mas cada uma dessas
pessoas só compromete a si mesma, essa opinião só vale
então em sua zona privada, o que permanece de acordo
com o espírito e a letra da Constituição americana. A
decisão que se refere ao programa de ensino numa dada
escola, ao contrário, engaja a comunidade local e é esta
que recusa ver uma diferença qu alitativa entre os dis
cursos da ciência e aquele da ficção, entre logos e muthos.
Os autores dessa deci são permanecem, no entanto, pru
dentes e não tiram toda s as conclusões que se impõem:
eles não tocam, por exemplo, no s cuidados médicos pro
digalizados nos hospitais fundados sobre essa mesma bio
logia que questiona a "teoria" criacionista.
96
V ERD A D E
Um segundo exemplo de mudança no estatuto da
verdade, aparentemente sem nenhuma relação com o pri
meiro, é fornecido por um acontecimento político recen
te: a justificativa da guerra contra o Iraque pelas armas
de destruição em massa que possuiria aquele país. Sabe
se que essas armas se revelaram inexistentes, mas o pro
blema não está aí: sua presença era possível.Todavia, vários
elementos desse episódio continuam perturbadores. Fica
se sabendo, com efeito, que os homens de Estado tinham
feito tudo para convencer a população americana da pre
sença dessas armas , exibindo especialmente provas de cuja
fragilidade sabiam muito bem, ou tentando comprometer
os indivíduos que traziam informações em sentido inver
so. Noutras palavras, esses homens de Estado sabiam que
o que afirmavam não era verdadeiro, mas o apresenta
vam ao menos como tal, pois acreditavam - sem dúvida
- que tal informação fosse útil para seu país. Esse des
prezo pelo verdadeiro era de resto confirmado por um
de seus responsáveis, Paul Wolfowitz, segundo o qu al o
argumento das armas de destruição em massa fora esco
lhido porque era o que podia levar mais facilmente à
adesão do maior número de pe ssoas. A questão da ver
dade desse argumento não era simplesmente evocada por
Wolfowitz; ela era considerada como não pertinente
como o foi , antes, pelos ideólogos totalitários.
A mentira ofi cial ordinária, assim co m o qu ando
um homem político nega estar enganando sua mulher,
é uma homenagem disfarçada de verdade, poi s tudo se faz
97

o ESPÍRITO DAS LUZES
para simulá-la. É completamente diferente no presente
exemplo, o de uma indiferença à verdade de uma infor
mação. Esse exemplo é ainda mais preocupante porque não
é isolado. Outras tomadas de posição atestam igualmente
essa modificação do estatuto da verdade, bem como a afir
mação segundo a qual o campo de detenção de Guantá
namo está conforme o espírito das convenções interna
cionais com relação aos prisioneiros de guerra; ou essa
outra, segundo a qual o Iraque dá todo dia um grande passo
rumo à paz e à democracia. Ou ainda, para citar um fato
pertencente a uma área completamente diferente: ficou-se
sabendo recentemente que a administração federal ame
ricana havia modificado de propósito os dados de um certo
número de relatórios científicos sobre o aquecimento glo
bal do planeta, pois tais relatórios não iam na direção dese
jada, ou seja, uma rejeição do protocolo de Kyoto. Ora,
se tocarmos o estatuto da verdade, não se vive mais numa
democracia liberal. Como explicar tal atentado aos seus
fundamentos? Uma parte desses enunciados liberados de
qualquer relação com a verdade se tornou aceitável por
que eles foram proferidos numa situação de crise, exi
gindo consenso nacional e então suspendendo o julga
mento crítico daqueles cujo trabalho é fornecer uma infor
mação confiável, isto é, os jornalistas. Essa crise dura desde
o 11 de setembro de 2001. O aumento do espírito patrió
tico e o despertar dos "fantasmas do medo", para falar como
Condorcet, bastam para afastar a preocupação com a ver
dade, a qual, no entanto, constitui o espaço democrático.
9H
VERDADE
Não é só nos Estados Unidos que o governo prefere
a vitória à verdade; no entanto, é legítimo escolher esse
exemplo mais do que um outro. É que os Estados Unidos
representam, neste começo de século XXI, uma potência
militar e política superior a todas as outras. O grande
poder gera grandes perigos, pois dá àquele que o possui
o sentimento de que sempre teve razão e de que não é
necessário levar em conta a opinião dos outros. Para se
proteger do abismo que traz o risco da vertigem do poder,
para evitar que este não carregue igualmente o resto do
mundo, até mesmo o país mais poderoso deve reconhe
cer que não se deve brincar com a verdade.
99

I 6 I HUMANIDADE

,
H U M A NI D A DE
A AUTON O M IA SOZIN H A não basta para descrever a maneira
como as Luze s concebem o ideal da conduta humana.
É melhor ser dirigido por sua própria vontade do que
por uma regra vinda de fora, decerto, mas para ir aonde?
N em todas as vontades e açôes são equivalentes. Ora , não
se pode mais apelar ao céu para decidir quais são as boas
e quai s são as más, é preciso ater-se âs realidades terres
tres. Da finalid ade longínqua - Deus - deve-se passar a
uma finalidade mais próxima. Esta, proclama o pensamen
to das Luzes, é a própria humanidade. É bom o que serve
para aumentar o bem-estar dos homen s.
Tal afirmação repres enta uma flexibilização da dou
trina cristã mais do que sua rejeição. Esta colocou de fato
a equivalência dos dois amores, a Deus e ao próximo. São
103

o E s p í RI T O I.> A S L U Z E S
Paulo proclama diversas vezes que "aquele qu e ama o
próximo cumpriu a Lei". Simplesmente, os pensadores
das Luze s declaram se satisfazer com um só termo dessa
equação. "Basta que os homens se apeguem ao amor cris
tão ; pouco importa o que aconteça à religião cristã"
escreve Lessing em 1777: o quadro doutrinal e institu
cional é afastado, não o conteúdo que ele valorizava. É
o mesmo espírito deísta que Franklin ilustra dez anos
mais tarde, afirmando: "O culto mais agradável a Deus
é fazer o bem aos homens". O amor pelos seres huma
nos não tem necessidade de uma justificativa divina ; ima
ginando um ato de hospitalidade, Franklin comenta: "Não
é pelo amor do Cristo, que lhes ofereço minha casa, mas
por amor de vocês"!".
Daí o ser human o se tornar o horizonte de nossa
atividade, o ponto focal para o qual tudo converge. Quan
do Diderot se interroga sobre o princípio que unifica seu
projeto enciclopédico, ele só vê um: o homem. E assim
é para o universo que essa Enciclop édia tenta apreender e
representar. "Por que não introduzimos o homem em
nossa obra com o ele está colocad o no universo? Por
que não faríamos dele um centro comum" ?" É ao mesmo
tempo um direito e um dever: o homem se torna o cen
tro da obra porque ele é o centro do mundo - ou me
lhor, é o que lhe dá sentido. Por isso sua existênc ia deixa
de ser um simples meio posto a serviço de um objetivo
mais elevado, a salvação de sua alma ou advento da cidade
de Deus; sua finalidade deve ser encontrada em si mesmo.
104
H U M A N I D A D E
Pela voz de sua heroína Julie, Rousseau enuncia esse prin
cípio: "O homem é um ser nobre demais para ter de
servir simplesmente de instrumento para outros? " . Este
novo lugar do homem, opondo-o, agora, enquanto abso
luto às coisas, que são apenas relativas, conduzirá Kant a
sua célebre formulação do princípio da moral humanis
ta. "Age de tal maneira que uses a humanidade tanto na
tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente
como um meio":".
Uma palavra designa o bem-estar humano ne sta
Terra: é f elicidade. Sua busca se torna legítima e substi
tui a da salvação. " O h felicidade! Fim e fin alid ade de
nossa era! - exclama Alexander Pope em seu Ensaio sobre
(1 homem. O que choca na leitura das obras européias
da época, apesar de sua diversidade quanto ao gênero
literário, aos países de origem ou às co nvicções de seus
autores, é que elas apresentam um mundo natural no
qu al os seres humanos são dominados por forç as hostis
puramente humanas e tentam realizar-se plenamente no
seio de sua existência terrestre. O melhor cidadão é aque
le que "contribui para a felicidade do mundo" - decla
raVoltaire",Tratados filosóficos, romances, poemas, peç as
de teatro con tam as difi culdades de um mundo pura
mente humano. O s quadros do s pintores repres entam os
encantos da vida campestre, as diversões da vida privada,
a felicidade citadina, a felicidade doméstica, os prazeres
e as alegrias dos homens.
105

o E s p í R I TO lJ A S L U ZE S
Onde é preci so procurar as chaves da felicidade? A
maioria dos filósofos e escritores não se contenta em enco
rajar as reformas sociais, mas valoriza as exp eriências indi
viduais. E entre estas, o primeiro lugar é ocupado pelas
afeições que ligam cada um aos seres que o cercam. "Façam
desaparecer o amor e a amizade, o que sobra do mundo
para que valha a pena aceitá- lo?" - escreve H ume" . Uma
vida bela é uma vida rica em amor. O qu e conta não é
a qu antidade: Hume imagina o rei Salomão, cercado de
suas setece n tas mulheres e trezentas conc ubinas, como
um ser profundamente infeliz ;um a ún ica mulher ou uma
só amante, alguns amigos bem escolhidos ter-lh e-iam per
mitido viver melhor sua humanidade em tod a a pleni
tude. R ou sseau é proli xo no mesmo sen tido: "Eu não
creio que aquele qu e não ama nada possa ser feliz". A feli
cidade é então acessível a todos, basta amar e ser amado;
mas, por isso mesmo, ela é frágil.A afeição dos outros no s
é necessári a para vive r, entretanto nada pode garan tir
sua perenidade. Quanto mais um homem é rico de afe
tos, mais ele fica vulnerável. "Quanto mais aume nta seus
apegos, mais ele multiplica seus sofrimenros'?", Esta é a
natureza da felicidade humana, e não há nenhum meio
de garanti-la.
Por volta do fim do século XV II, pretende- se ergue r
a felicidade como finalidade, não ape nas da existência
individual, mas tamb ém do governo e do Estado.A "busca
da felicidade" figurará nos Estados Unidos na Declara
ção da independên cia; na Fran ça, Lavoisi er, ao mesmo
106
H U M A NI D A lJ E
tempo químico notável e homem pol ítico, escreveu uma
tese em 1787 : "A verdadeira finalidade de um governo
deve ser aume nta r a soma dos prazeres, a soma da felici
dade e do bem-estar de todos os indivíduos". Dois anos
mais tarde, ele dirige essas palavras aos Estados gerais:"A
finalidade de toda instituição soc ial é tornar o mais feliz
possível aqueles que vive m sob suas leis. A feli cidad e
não deve ser reservada a um pequeno número de homens,
ela pertence a todos 59" . A R evolução, da qual será víti
ma Lavoisier, mostrará que é po uco recomendável deixar
a totalidade de uma existência humana aos cuidados do
governo. R esta, no entanto, o princípio segundo o qu al
as instituições sociais de um país devem estar a serviço
dos homens e das mulheres que nelas vivem.
Desde então, a situação mudou de novo. O s regimes
totalitári os do século xx nos mostraram largam ente o
quanto era perigoso confiar ao Estado a responsabilidade
pela felicidade individual. N o entanto, a última vitó ria das
democracias teve um efeito surpreendente: na medida em
que esse regim e político não pretende ser uma encar
nação do bem soberano, deixa-se de pôr a esperança da
felicidade terrestre ou de realização pessoal numa estru
tura política, qu alqu er qu e seja ela. Como a dem ocracia
vence u, não suscita mais a paixão. A auto no mia indi vi
dual saiu revigorada dessas provações, e pede-se do ravan
te ao Estado apenas qu e afaste os obstáculos à felicidade
dos indivíduos, não que a garanta; o Estado não é por
tador de esperança, ele é simplesmente o fornec edor de
107

o ESPÍRITO DAS LUZES
serviços. Não dispondo de um quadro religioso comum,
não crendo na revolução que traria a felicidade a todos,
os homens não renunciam, entretanto, ao desejo de tornar
suas vidas mais belas e mais ricas de sentido; mas eles
seguem agora vias que escolheram individualmente.
Essa inversão de perspectiva na finalidade de nos
sos atos, essa passagem do divino ao humano, não pode
ser comparada em sua radicalidade senão à revolução
copernicana,que colocou o Sol no lugar da Terra - exce
to pelo fato de que aqui o homem mais se aproxima
do centro do que se afasta. Como era de se esperar, essa
inversão provocou a viva rejeição daqueles que defen
diam a hierarquia precedente, de Bonald a João Paulo II.
Esses adversários temiam que, sem a referência central
a Deus, a sociedade arriscaria degringolar: "se Deus está
morto, tudo é permitido. Para que reine a ordem, os direi
tos de Deus devem substituir os do homem. A ideolo
gia totalitária, por sua vez, rejeita o humanismo das Luzes:
a finalidade da sociedade não é mais "a felicidade de todos
os indivíduos", mas uma abstração, o povo regenerado,
o Estado comunista, o futuro radioso.
Os desvios do espírito humanista das Luzes tomam
formas ainda mais variadas. Eles estão também presentes
desde o século XVIII; é Sade, novamente, que lhe forne
ce as formulações mais extremas. Partindo do princípio
de que o homem é um fim legítimo de sua atividade,
ele procede a uma dupla redução: primeiro, a felicidade
é essencialmente trazida ao prazer sexual; depois, a huma-
lOS
HUMANIDADE
nidade é reduzida ao indivíduo isolado, ao sujeito que
deseja. "Nenhum limite a vossos prazeres senão de vos
sas forças ou de vossas vontades'?". Nada limita então a
autonomia individual, que aspira unicamente à intensi
dade da experiência no momento em que se produz: o
mundo se restringe ao aqui e ao agora. Sob uma forma
menos hiperbólica, esse raciocínio é compartilhado por
numerosos libertinos da época. Rousseau, ao contrário,
se lhe opõe formalmente. Primeiro porque ele não con
segue imaginar que uma sociedade possa escapar de toda
regulação das forças e das vontades de seus membros: "Ensi
na-me então em qual crime pára aquele que não tem por
leis senão os desejos de seu coração, e não consegue resis
tir a nada que deseje?" Principalmente, Rousseau não
ignora que a auto-suficiência do indivíduo é uma arma
dilha. "Todos sentirão que a felicidade não está neles mes
mos, mas depende de tudo que os cerca"!". As doutrinas
sensualistas e egocêntricas falham não tanto por serem
imorais, mas porque são falsas. É verdade que as socieda
des ocidentais dão freqüentemente a impressão de parecer
caricaturas que desenham delas seus adversários religiosos
do Ocidente e do Oriente: seus membros parecem preo
cupados unicamente com o sucesso material, o dinheiro
e os prazeres que este pode comprar. Mas para deplorar
essa atitude, não é necessário invocar Deus: basta lem
brar o quanto as necessidades humanas são na realidade
diversas e múltiplas.
O espírito das Luzes consiste, aqui, em diminuir a
109

o Es p i R I T O DAS L U ZE S
distância entre ação e a finalidade da ação: esta desce do
céu para a Terra e se encarna na humanidade, não em
Deus; ora, a ação em si é humana e terrestre. O desvio
desse espírito leva a desembaraçar-se não somente da fina
lidade divina, mas de toda finalidade, qualquer que seja
ela, para só cultivar o movimento pelo movimento, a força
pela força, a vontade pela vontade. Nosso tempo se tor
nou, em muitos sentidos, o do esquecimento dos fins e
o da sacralização dos meios. O exemplo talvez mais claro
dessa radicalização nos é fornecido pelo desenvolvimen
to da ciência. Não é porque tal trabalho científico serve,
direta ou indiretamente, a finalidades especificamente
humanas - a felicidade, a emancipação ou a paz - que ele
será incentivado e financiado; é porque ele prova a vir
tuosidade do sábio. Dir-se-ia que, se uma coisa é possí
vel, deve tornar-se real. Caso contrário, por que ir a Marte?
A economia, por sua vez, funciona segundo o mesmo
princípio : o desenvolvimento pelo desenvolvimento, o
crescimento pelo crescimento. A instância política deve
se contentar em ratificar essa estratégia? Há várias déca
das já, ela produziu resultados contestáveis nos países do
Terceiro Mundo; há anos, suas conseqüências se fazem
também sentir nos países industrializados do Ocidente.
Deve-se aceitar o triunfo do capitalismo financeiro, com
suas conseqüências, a globalização e as implantações de
filiais, porque elas são de nosso interesse ou porque tal é
a direção atual de um movimento embriagado de simesmo?
110 " 1,
H U M A N I D A D E
Semelhante desaparecimento de toda finalidade
externa parece abalar às vezes a vida política das demo
cracias liberais, e começamos a duvidar: os homens (e
mulheres) fazem uma carreira política para colocar o poder
a serviço de certos ideais ou aspiram apenas ao poder
em si mesmo, sendo seu único horizonte o de mantê-lo
pelo maior tempo possível? O dilema é, claro, antigo, mas
adquire uma acuidade particular em nossos países. Um
exemplo desse desvio é fornecido por um episódio recen
te da vida política francesa, o referendum sobre a Consti
tuição Européia, no dia 29 de maio de 2005. As posi
ções assumidas pelos dirigentes dos dois campos, o do
"sim" e o do "não" não eram óbvias . A própria decisão
de fazer um rejerendum, tomada pelo chefe de Estado fran
cês, tinha alguma coisa de surpreendente. Jacques Chirac
sabia bem que seu partido tinha perdido as duas pesqui
sas eleitorais precedentes e que ele corria então o risco
de se ver infligir mais uma derrota; sabia também que um
voto dos parlamentares, via completamente aceitável para
a aprovação do texto,já lhe era dado, pois, uma vez que
todos os partidos representados no Parlamento fossem
favoráveis ao projeto de Constituição, este seria aprova
do por cerca de 90% dos votos. O presidente francês pre
feriu mesmo assim correr o risco da derrota. Por quê?
Tudo leva a crer que tenha feito uma escolha puramen
te tática: submeter a questão ao referendum lhe permitia
dividir o eleitorado de esquerda e com isso enfraquecê
lo, almejando a eleição presidencial seguinte, em 2007.
111

o E SP ÍRI T O DAS L U ZE S
A Constituição européia, da qual o presidente Chirac
é provavelmente um sincero partidário, foi sacrificada no
altar de sua ambição pessoal, do desejo de garantir que
o poder ficasse em suas mãos e nas de seus fiéis. Na outra
ponta, Laurent Fabius, membro do Partido Socialista em
desacordo com sua direção c único personagem políti
co de primeiro plano a se engajar na campanha pelo
não, não agiu diferentemente. Conhecido até aí por seus
engajamentos pró-europeus, surpreendeu ao se lançar
numa campanha pelo não, dando a impressão de que
ele também não conseguia tirar o olho da eleição pre si
dencial de 2007. Seu primeiro objetivo, nessa ótica, era o
de impor-se como candidato incontornável da esquerda
inteira. Para isso, era-lhe necessário apostar alto, espe
cialmente na esquerda de seu partido; ainda que provavel
mente ligado à construção européia, ele escolheu por essa
razão favorecer o "não" ("de esqu erda") . Chirac, tanto
qu anto Fabius, parecem ter agido visando à conquista
do poder, mais do que para colocar tal poder a serviço de
uma idéia mais elevada.
O movimento que consi ste em aproximar progres
sivamente uma finalidade do que devia ser o meio para
atingi-la, noutras palavras, para transformar o meio em
fim, esboça-se desde o século XVIII , mas fica curiosa
mente limitado a um domínio particular, o da arte , e mais
especificamente da pintura. O pensamento que esta traz
através de seu modo de repre sentação do mundo parec e,
de fato, sempre preceder em um século ou mais o pen-
112
H U M A N I D A D E
samento que se exprime nos discursos. O interesse pela
análise do indivíduo em razão de sua própria singulari
dade, independentemente das qualidades de que pode
ria ser provido, afirma-se no século XVI com Montaigne
e seus contemporâneos, enquanto que na pintura já entra
ra desde meados do século XV , com os retratos e auto
retratos das pinturas hol andesas, depois as italiana s. No
século XVII , o discurso oficial em países protestantes elo
gia as virtudes domésticas enquanto meio de se confor
mar às ordens divinas; os quadro s dos pintores holande
ses da mesma época mostram uma sublimação do huma
no sem qu e este remeta a nenhuma realidade superior:
eles exaltam o gesto da mãe debruçada sobre seu filho, a
preocupação em seus olhos qu ando ele está doente.
N o século XVIII, a interpretação da pintura muda
de natureza; descobre-se nela, não um elogio de Deus,
nem mesmo do homem , mas da arte. O s afrescos de
Michelangelo, a C apela Sistina, produzidos, no entanto,
num espírito impregnado de religiosidade, dão ao pin
tor inglês Reynolds, que os admira, "uma idéia da dig
nidade da arte" ; a finalidade da arte é doravante encar
nar a beleza, não a virtude. Goethe, diante dos me smos
afrescos, só tem olhos para a performance do artista, deixa
de lado a mensagem doutrinal. " É preciso ter visto a cape
la Sistina para se ter uma id éia concreta do poder de
um homem'?" . O s próprios pintores produzem quadros
cuja justificativa parece ser, antes de tudo, a de tomar a
identidade secreta do que mostram , noutros termos, de
113

o ES I' Í R I T O DA S L U ZE S
produzir a beleza - é o que testemunham os sonhadores
de Watteau ou as naturezas mortas de Chardin, as paisa
gens de Gainsbourough ou os retratos imaginários de
Fragonard.
Assim fazendo, os pintores, bem como os especta
dores de seus qu adros, se contentam em destacar uma
dimensão da pintura que estava presente desde sempre,
mas tinha passado em silêncio durante os séculos prece
dentes, a saber, a própria art e de pintar. Essa descoberta
conduz às vezes ao que se chama "a arte pela arte". M as,
o que quer que seja da evolução artística, a política ou a
economia não devem obedecer às mesmas exigências:
pode-se admirar o estilo do político ou a habilidade do
empreendedor; deve- se, não obstante,julgar um e outro
a partir dos resultados de sua ação. Uma arte consciente
das leis que lhe são próprias não se opõe ao espírito das
Luzes. Ao contrário, quando a ciência ou a política dei
xam perecer as finalidades humanas das ações que enga
jam, põem em perigo esse espírito e as benfeitorias qu e
dele esperamos.
114
l
,~•l1,
1. ,
I 7 I UNIVERSALIDADE

U NI VE R S ALI D ADE
A LIBERDADE DAS AÇ ÕES é limitada por sua finalidade
necessariamente humana, mas também pela tomada de
consciência desse fato : todos os homens pertencem à
mesma espécie e têm, por conseguinte, direito à mesma
dignidade. Essa exigência toma um sentido diferente
segundo se pensa nos cidadãos de um país ou nos habi
tantes do globo terrestre.
Quando Rousseau observa a sociedade que o cerca ,
ele não encontra nem igualdade de direito nem igu al
dade de fato. É o que o motiva a escrever sua primeira
reflexão de conjunto sobre a condição humana , o Dis
curso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens, que termina com a severa constatação: "É mani
festamente contra a Lei da Natureza [...] qu e um punha-
117

o E spí R IT O D A S LU ZE S
do de gente esbanje superfluidade, enquanto à multidão
faminta falte o ne cessário" . Só para imaginar um come
ço de redistribuição das riquezas, é preciso colocar-se
no contexto de um Estado j usto, o que não é mais o
caso dos países onde viveu R ousseau. Ele se propõe então
refletir sobre com o deveria ser organizado tal Estado, e
apo nta, no Contrato social, para a exigên cia de uma igual
dade rigorosa diante da lei . " O pacto soc ial estabelece
entre os cidadãos uma tal igualdad e que eles se engajam
todos sob as mesm as co ndições e devem go zar todos
dos mesmos direitos63" .A vontade que governa o país não
é realm ente geral senão sob a condição de não excluir
nenhuma voz .
A França do meio do século XV Ill está longe de satis
fazer a essa exigência. Sua população está dividida em
castas qu e não gozam dos mesmo s privilégios, as mulhe
res não têm os mesmos direitos que os homens e os escra
vos não têm nenhum direito. Rousseau estabeleceu um
princípio; sua realização levará tempo. A idéia de igual
dade do s cidadãos será adorada parcialmente em 1789,
mais completamente em 1848.A escravidão será abolida
no me smo ano.As mulheres só obterão o direito de voto
em 1944. Essa igualdade diant e da lei não basta, de resto,
para eliminar todas as discrimin ações, e a exigência de igual
dade permanece atual em nossos dias. Nossos co mbates
se inspiram ainda nos programas das Luzes, eles prolon
gam aqueles que foram entabulados dois ou três séculos
antes. Daniel Defoe j á afirmava qu e a inferio ridade das
I I!'!
U N I V ER S ALI D A D E
mulheres era devida unicamente à impossibilidade de
terem acesso à educação. H elvétius estava convencido
de que as mulheres eram, por natureza, iguais aos homens.
Condorcet pedia que os rapazes e mo ças fizessem os mes
mo s estudos, nos mesmos lugares, formados pelos mesmos
professores, indiferentemente homens ou mulheres; que
a lei não afastasse as mulheres de nenhuma carreira.
O s pensadores das Luz es condenam a escravidão,mesmo qu e não se engajem numa luta eficaz contra ela.
"A escravidão é tão oposta ao direito civil quanto ao direi
to natural" , declara M ontesquieu. Rousseau varre de uma
só vez todas as constantesjustificativas à manutenção dessa
prática. "Essas palavras, escravidão e direito, são contraditó
rias; elas se excluem mutuam ente" . Condorcet entabula
suas Rejlexões sobre a escravidão dos m;\!ros (que ele assina sob
o pseud ónimo "M . Schwa rtz") por essas palavras:" R edu
zir um homem à escravidão, comprá-lo, vendê- lo, mantê
lo na servidão são verdadeiros cr im es, e cr imes piores
do que o roubo"' " . No momento da Revolução, ü lympe
de Gouges se propõe fazer um duplo com bate - pel a
abolição da escravidão, pela igualdade dos direitos da mu
lher - escrevendo uma peça de teatro, A escravidão dos
Ilej(ros e lançando a Declaração dos direito s da mulher e
da cidadã; ela própria terá direito ao cadafalso...
Além das fronteiras do país, a un iversalidade ganh a
um outro sentido. Todos os habitantes de um país deve
riam ser seus cidadãos; todos os habitantes do globo são,
de pronto, seres humanos. O que os homens têm em
119

o ESPÍRITO DAS LUZES
comum é mais essencial do que aquilo que os diferencia.
"Sou necessariamente homem e só sou francês por acaso"
- declara Montesquieu. Os que se sentem impregnados
pelo espírito das Luzes apreciam mais seu pertencimento
ao gênero humano do que a seus países. Denis Diderot
escreve a David Hume, em 22 de fevereiro de 1768:"Meu
caro David, o senhor é de todas as nações e nunca pedi
rá ao infeliz seu atestado de batismo. Eu me vanglorio de
ser,como o senhor, cidadão da grande cidade do mundo'?".
A universalidade não é apenas responsável pela imagem
que se pode fazer de si mesmo; neste mundo, onde bem
e mal não podem mais ser fundados na palavra de Deus
nem nas lições da tradição, ela fornece uma legitimação
possível. A adesão à humanidade valida a escolha do bem.
"O que o senhor chama de justo e injusto?" - pergunta
Voltaire num de seus Diálo,CSosfilosqficos, e ele responde: "O
que parece com o universo inteiro". Rousseau interpre
ta também o justo e o injusto como um efeito de altruís
mo e de egoísmo. "Quanto menos o objeto de nossos
cuidados se liga a nós mesmos, menos a ilusão de inte
resse particular deve ser temida; quanto mais se genera
liza esse interesse, mais ele se torna justo, e o amor do
gênero humano não é outra coisa em nós senão o amor
pela justiça?"; sabe-se que Kant formulará nesse espírito
seu imperativo categórico: uma ação é boa se corres
ponde a uma máxima que pode ser universalizada.
A igualdade está então na base dos direitos dos cida
dãos e da moral dos homens. Estes possuem ainda direi-
120
UNIVERSALIDADE
tos que decorreriam de sua simples qualidade de seres
humanos? É o que pensam alguns autores, ligados à esco
la do direito natural moderno, que procuram a origem
desses direitos, não numa ordem cósmica, nem na palavra
de Deus, mas no próprio fato de que nós pertencemos
todos à mesma espécie e somos providos da mesma dig
nidade. Existe um Direito Universal, escreve no meio
do século XVIII Christian Wolff, um dos mais influentes
entre esses autores, é "aquele que pertence a cada homem
enquanto homem". Obviamente, esses direitos naturais
não têm o mesmo estatuto daqueles de que gozam enquan
to cidadão, já que na ausência de um Estado provido de
seu aparelho de justiça nada garante que se possa usufruí
los. Desse ponto de vista, esses direitos universais se apro
ximam dos princípios morais, que, sem ter uma força res
tritiva, são sentidos como desejáveis. Nada impede, no
entanto, um Estado de tomar para si os direitos ditos do
homem e de integrá-los à sua constituição. A partir desse
momento, mesmo se beneficiando de um reconhecimen
to universal, eles adquirem a força de lei no interior do
país. É assim que procedem as Declarações dos direitos
dos Estados americanos, já em 1776, ou a Declaração
dos direitos do homem e do cidadão, na França, em 1789.
Hoje os direitos do homem gozam de um imenso pres
tígio e quase todos os governos gostariam de se apresentar
como seus defensores. Isso não impede que os governos,
mesmo os mais eloqüentes nessa reivindicação, os rejei
tem na prática quando as circunstâncias parecem exigi-lo.
121

o E SPÍ R I TO D A S L U Z E S
Tal é o caso, por exemplo, da pena de morte. É
Beccaria que, em seu tratado, Dos delitos e das penas, expri
me melhor o pensamento das Luzes sobre esse assunto.
Todo ser humano, como membro da espécie e não por
que é cidadão deste ou daquele país, tem direito à vida,
e esse direito é inalienável: eu renuncio à minha liber
dade natural para me beneficiar de uma liberdade (e de
uma proteção) civil, mas nunca concedi à comunidade,
nem explícita nem tacitamente, um direito de vida e de
morte sobre mim. O que poderia justificar essa supres
são total da vontade individual pela vontade coletiva? Não
é a necessidade de impedir o criminoso de prejudicar j á
que, para matá-lo, teve-se de antes prendê-lo e ele já se
encontra na prisão. Expiar sua falta? Essa punição só teria
sent ido se acreditássemos numa forma de vida depois da
morte: no além, a pessoa executada poderia medir a gra
vidade de sua falta graças à severidade da punição. Se a
pessoa não está lá, a lição é necessariamente inútil para ela.
Resta outra justificativa freqüentemente aferida, o
valor dissuasivo do castigo supremo junto aos sobrevi
ventes: a punição como exemplo. No entanto, nenhu
ma observação jamais veio confirmar a regularidade desse
efeito e o país ocidental que ainda pratica a pena de
morte, os Estados Unidos, é também aquele que detém
a maior taxa de criminalidade. Beccaria duvida, por sua
vez, que tal efeito seja possível já que, longe de se opor
ao assassinato que ela supostamente pune, a pena de morte
o imita. "O espírito feroz que guiava a mão do legisla-
122
U N IVER S AL IDADE
dor conduzia também aquela do parricida e do assassino".
El e pensa até que essa pena corre o risco de levar a
imitações. "A pena de morte é prejudicial pelo exemplo
de cru eldade que dá". É verdade que em tempos de guer
ra cada governo autoriza e até encoraja seus represen
tantes a matar o máximo de inimigos. M as, justamente,
a guerra é declarada porque nenhuma regra negociada pôde
ser atingida. O resto do tempo, os cidadãos de um país
vivem segundo a lei, e é comprometer a própria idéia de
lei imitar legalmente a ação militar. "Parece-me absurdo
qu e as leis, qu e são a expressão da vontade geral, que
reprovam e punem o homicídio, o cometam elas me s
mas, e, para desviar os cidadã os do assassinato, ordenem
o assassinato p úblico'?" .
Outra tran sgressão dos direitos do homem, prati ca
da esporadicamente pelos governos, é con stituída pela tor
tura.Todo ser humano tem direito à integridade de seu
corpo; ele some nte pode renunciar a este, infligindo-se
mutilações ou suicidando-se. Então, assim como o homi
cídio, a tortura não pode ser legalizada. O s governos a
praticam , não por sadismo, mas para obter informações
qu e julgam indispensáveis - eles queriam, escreve Becca
ria, "que a dor se tornasse o cadinho da verdade"?". Esse
resultado tem um alto preço, já que, para ex trair con
fissões cujo valo r permanece duvidoso (confessar-s e-ia
qualquer cois a para que a dor cessasse) , não somente
se inflige um sofrimento intolerável a uma pessoa tor
turada que será marcada por toda a vida, mas também se
123

o E SP ÍRIT O D A S L U Z E S
destrói interiormente o torturador, que perde o sentido
da comunidade humana universal, e envia-se a toda a popu
lação uma mensagem autorizando a transgressão dos
limites colocados pela lei.
O exército francês praticou sistematicamente a tor
tura durante a guerra da Argélia, em particular a partir de
1957, quando se confiou as funções de polícia, com a jus
tificativa de que, numa guerra civil como aquela, o ini
migo permanece invisível e a extração de informações
é necessária para identificá-lo. Acrescentava-se, muitas
vezes, o argumento de que "a bomba vai explodir daqui
a pouco"; caso, na realidade, excepcional, enquanto a tor
tura envolvia milhares de pessoas e continuaria por muito
tempo depois da hora presumida do atentado. Germaine
Tillion, que procurava então impedir essas práticas, escre
via ao arcebispo de Paris (7 de dezembro de 1957):"Duran
te os últimos seis meses, numerosas moças muçulmanas
e cristãs foram torturadas por motivos fútei s ou sem moti
vo: despidas, suplício da banheira, suplício da eletricidade
às vezes com eletrodos colocados sobre as partes geni
tais, as mãos amarradas atrás e suspensas pelos pulso s, o que
é um suplício análogo ao da cruz, pois provoca asfixia":".
Foi dessa maneira que morreu também, em novem
bro de 2003, o prisioneiro iraquiano Manadel al-Jama
di , torturado na prisão de Abou Ghraib em Bagdá pelos
agentes da CIA. D epois de ter tido seis costelas quebradas
e a cabeça enrolada num saco plástico, ele foi suspenso
pelos punhos algemados atrás das costas; menos de uma
124
U N I VE R S A LI D AD E
hora depois de sua admissão na prisão, ele morreu por
asfixia.Alguns sobrevivem à suspensão, como Jean Améry,
prisioneiro da Gestapo durante a Segunda Guerra mun
dial , na Bélgica, que deixou um relato detalhado de sua
experiência em Além do crime e do castigo. Outros ex-deten
tos, saídos do campo de Guantánamo, contam que foram
espancados, colocados nus numa jaula, obrigados a engo
lir medicamentos e ver filmes pornográficos, alem de
serem ameaçados de perto por cães mantidos em coleiras:
longínqua reminiscência dos ratos que esbarram nos
rosto s dos prisioneiros em 1984.
Os serviços secretos americanos não são provavel
mente os únicos a submeter seus prisioneiros à tortura;
no entanto, o governo dos Estados Unidos tomou uma
posição excepcional tentando legalizá-la . No dia seguin
te aos atentados de 11 de setembro de 200 1, o vice-pre
sidente Cheney prometeu utilizar todos os meios à sua
disposição para combater o terrorismo. Um memorando
do departamento de Justiça, datado de primeiro de agos
to de 2002, enumera alguns desses meios: fazer sufocar os
indivíduos sem provocar a morte, privá-los de medicamen
tos para suas feridas, impedi-los de dormir, ensurdecê-los
e cegá-los Trata-se freqü entemente de uma tortura psíqui
ca mais do que física, mas que conduz os detentos à beira
da loucura e deixa traumatismos indeléveis. O governo
am ericano recusa sistematicam ente tratar esses terroris
tas de acordo com a convenção de G enebra sobre os
prrsioneiros de guerra. Um sen ador americano, John
125

o EspíRITO DAS LUZES
McCain, antigo prisioneiro que sofreu tortura no Vietnã,
introduziu um projeto de lei impondo às prisões da elA
as mesmas regras das outras prisões americanas; noutros
termos, tornou a tortura ilegal. O projeto, que o Sena
do finalmente votou, foi asperamente combatido pela Casa
Branca. Esses atas de tortura continuam se produzindo
anos depois dos atentados terroristas e das intervenções
militares. O que é chocante, aqui, é que a tortura não é
somente tolerada, mas é reivindicada em nome da luta
pela segurança interna e pelos direitos do homem
esses mesmos direitos que ela ultraja.
Pena de morte e tortura constituem, então, uma rejei
ção da universalidade que reivindicam as Luzes. Os des
vios de que ela mesma é objeto consistem numa ruptura
do equilíbrio entre universal e particular, entre unifica
ção e tolerância. As Luzes pedem as duas, o que faz supor
que a fronteira que as separa não pode ser fixada de uma
vez por todas. Se quaisquer meios servem para impor a
unidade, a liberdade de cada um fica ameaçada. Se os direi
tos do homem permanecem a única referência incon
testável no espaço público e se transformam em medida
de ortodoxia dos discursos e dos atas, entra-se no espaço
do "politicamente correto" e do linchamento midiático,
versão democrática da caça às bruxas: uma espécie de
leilão virtuoso que tem por efeito reprimir qualquer pala
vra que lhe escape.
Essa chantagem moral aparecendo em segundo plano
de todos os debates é nefasta para a vida democrática.Traz
126
UNIVERSALIDADE
uma dominação excessiva do bem sobre o verdadeiro e
dá, por isso, uma aparência de mentira a tudo aquilo
que ruidosamente proclama-se como do bem, uma apa
rência de verdade a tudo o que se opõe ao discurso
dominante. É assim que prosperam, na França, as teses
de extrema direita, a qual se vangloria de ser a única a
ousar "falar a verdade", enquanto afirma simplesmente o
contrário do politicamente correto. Por aí adquire direito
de cidadania o que se poderia chamar de "politicamente
abjeto".
O direito não deve ser confundido com a moral,
nem os autores de teorias que nos desagradam levados
diante de um tribunal. Segundo Beccaria: "A tarefa dos
juízes é de fazer respeitar, não os sentimentos dos home
ns, mas os muitos pactos que os ligam entre si7 I" , Pela
mesma razão, a justiça internacional não deve aspirar ao
papel de moral universal, mas apoiar-se sobre os pactos
e contratos realmente existentes, como aqueles que ligam
entre si os países membros da União Européia. Um direi
to que não garante nenhuma força e com cujo uso teriam
consentido todos os partidos contratantes compromete
a própria idéia de direito.
Não é admitido que um país faça uso da violência
a fim de restaurar a legalidade ou os direitos do homem
em seu vizinho, o que se chama às vezes, hoje, de direi
to de ingerência. O uso do termo "direito", nessa última
expressão, é dos mais singulares: de onde poderia vir esse
direito que me outorgo a mim mesmo para resolver os
127

o E spiR IT O DAS L UZE S
negócios de outrem, uma vez que ele jamais consentiu?
Se uma solidariedade nos liga a todos os habitantes da
Terra , ficamos encarregados , em caso de necessidade,
de ter um dever de assistência, não " direito" de invadir
militarmente o país onde pessoas sofrem. O problema,
aqui , é que o meio utilizado anula o fim buscado, como
no caso da tortura praticada pela c rx, Esse possível des
vio obriga a traçar um limite claro entre propor e impor,
influenciar e forçar, paz e guerra: o primeiro termo não
anula nossa compaixão pelo sofrimento dos outros, o
segundo o faz.
Pierre Bayle, um dos precursores imediatos das Luzes,
um protestante fugitivo da perseguição católica, soube
encontrar as palavras ne cessárias para advertir todos os
que fossem tentados a empregar a força para impor o bem.
Este, em seu caso, foi definido pelos católico s qu e que
rem salvar as almas dos protestantes, portanto torná-los
mais felizes; para fazê-lo, eles não hesitam em recorrer à
for ça: o bem é tão grande que se acomoda com alguns
sacrificios (dos outros). Eis o comentário que faz Bayle
desse preceito tirado do Evangelho," Impeça-os de entrar"
(Luc as, XIX, 23), utilizado para justificar as perseguições:
"Batam, chicoteiem, prendam, matem todos aqueles qu e
são teimosos; tirem-lhes suas mulheres e filho s: tudo isso
é bom quando se pratica em minha causa; noutras cir
cunstâncias, seriam crimes enormes?". Não se pode atin
gir um fim nobre pelos meios ignóbeis, pois a finalida
de será perdida no cam inho. É assim que proced eram
12H
~ I
\
U NI V E R SALIDA ll E
os colonizadores que submeteram populações inteiras
sob pretexto de trazer-lhes a igualdade.
É assim que agem hoje as forças armadas que, aqui
ou ali, pretendem levar a liberdade aos povos e, com
esse fim , lançam sobre eles bombas "humanitárias" .
A universalidade não justifica o uso da força, fora de
qualquer lei. Mas, ao contrário, o respeito de cada um não
significa que as normas comuns não tenham razão de ser.
Nem por estarem profundamente ancoradas nas tradições de
um país estrangeiro, algumas práticas são menos condená
veis.A extirpação de clitóris é um exemplo: transgressão
de um direito humano, ela não justifica uma intervenção
armada; mas esta não é o único meio de açâo disponível.
Nós esquecemos quanto, num passado não muito longín
quo, no ssas próprias práticas foram diferentes das de hoj e;
se mudaram, não é por causa de uma ocupação estran
geira, mas por ne cessidade interna. Quando, ao cont rá
rio, a extirpação é praticada no seio de países cuja lei a
proíbe, não há nenhuma razão para tolerá-la enquanto
especificidade cultural. O mesmo vale para violências infli
gidas às mulheres, outra "tradição" bem difundida ; ou
ainda maus tratos infligidos nas prisões, ou ate n tados
perpetrados contra a liberdade de expressão. Considerar
que todas as práticas se equivalem leva, por trás da másca
ra da tolerância, a renunciar à unidade da espéc ie e, afinal
de contas, a julgar os outros como incapazes ou indig
nos de se beneficiarem do mesmo tratamento qu e nos é
reservado. A igualdade dos direitos não é negociável.
129

o ES P Í R I TO DA S L U Z E S
A época das Luzes se caracteriza pela descob erta dos
outros em seu estrangeirismo, tenham eles vivido outrora
ou alhures: cessamos então de ver neles uma encarnação
de nosso ideal ou um anúncio longínquo de nossa per
feição presente, como se fazia nas épocas precedentes. Mas
esse reconhecimento da pluralidade no seio da espécie só
permanece fértil se escapar ao relativismo radical e não
no s faz renunciar à no ssa humanidade comum .
130
I 8 I As LUZES E A EUROPA

1A s L U Z E S E A EUROPA
o ESPÍR ITO DAS LUZES, tal como se pode descrevê-l o hoje,
levanta um probl ema curioso : encontram-se nele os ingre
dientes de épocas variadas, em todas as grandes civilizações
do mundo; e, no entan to, ele só conseguiu se impor a
partir de um momento preciso, no século XV III, e parti
cularm ente num lugar, a Europa ocidental. Examinemos
brevemente cada uma dessas propostas.
Ainda qu e não se possa ob servá-lo em todo lugar e
sem pre, o pensamento das Lu zes é universal: eis o qu e
somos obrigados a constatar antes de tudo. N ão se trata
apenas das práticas que o pressupõem, mas também de
uma tomada de co nsciência teórica. Encontram-se traços
desde o século III a.C, na Índia, nos preceitos dirigidos
aos imperadores ou nos editos que estes difundem. Encon-
133

o ESPÍRITO DAS LUZES
tram-se ainda nos "pensadores livres" do Islã dos séculos
VIII a x; ou durante a renovação do confucionismo sob
os Song, na China, nos séculos XI e XII; ou nos movimen
tos de oposição à escravidão, na África negra, no século
XVII e no início do XVIII. Enumeremos, um pouco ao
acaso, alguns desses elementos de doutrina provindos
dos condados mais diversos".
É o caso, por exemplo, das recomendações de tole
rância religiosa, ligadas à pluralidade das religiões prati
cadas num mesmo território bramaísta e budista na Índia,
confucionismo e budismo na China, presença de muçul
manos, judeus, cristãos, zoroastristas, maniqueístas do
Oriente Médio, ou ainda na África negra, co-presença do
islã e das tradições pagãs. Em todo lugar se constata
como se dirá freqüentemente na Europa no século XVIII
- que a tolerância é, para todos, preferível à guerra e às
perseguições. Outra exigência, provavelmente ligada à
precedente, diz respeito à laicidade, à necessidade de sepa
rar o político e o teológico, o poder do Estado e o da reli
gião. Deseja-se que a sociedade dos homens seja dirigi
dacom base em princípios puramente humanos - e, assim,
que o poder sobre a terra fique antes entre as mãos do
Príncipe do que de intermediários do além.
Autonomia do poder político, autonomia também
do conhecimento.Assim é a idéia, presente na Índia, de que
o rei não deve se submeter à tradição, aos presságios ou
às mensagens dos astros, mas deve confiar unicamente
na investigação racional. Ou ainda da defesa, pelo célebre
134
,
t
As LUZES E A EUROPA
médico árabe Razi, no século IX, do saber estritamente
humano, buscado na experiência e balizado apenas pela
razão. As muitas invenções técnicas que pululam na his
tória da China dão testemunho de uma atitude de livre
busca no domínio do saber; dá-se o mesmo nos pro
gressos atingidos no mundo islâmico por ciências como
a matemática, a astronomia, a ótica, a medicina.
Outro traço igualmente difundido diz respeito ao
próprio pensamento da universalidade, da igual digni
dade de todos os seres humanos, dos fundamentos uni
versais da moral, e então da unidade do gênero humano.
"Não há atividade superior capaz fazer bem ao mundo
inteiro", declara o imperador hindu Asoka no século III
a.C. É este pensamento da universalidade que se torna
também o ponto de partida do combate contra a escra
vidão na África: em 1615,Ahmed Baba escreve um tra
tado pleiteando a igualdade das raças e refutando então
qualquer legitimidade às práticas escravagistas.
Essas manifestações, que ajunto um pouco arbitraria
mente aqui em torno do que julgamos ser o espírito
das Luzes européias, desempenham um papel mais ou
menos forte, mais ou menos durável. Na Índia, a recomen
dação de privilegiar a investigação racional, em detrimen
to das crenças e das superstições, é reservada ao monar
ca, ela não será generalizada a toda a população. Por mais
proximidade que haja com as Luzes, ela diz respeito essen
cialmente ao que se chama "despotismo esclarecido". Os
"pensadores livres" muçulmanos são severamente reprimi-
135

o ES P Í R I T O DA S L U ZE S
dos a partir do século x. A aproximação mais significativa
permanece com o ensino confuciano na China, que con
cerne por princípio a um mundo natural e humano: colo
ca como objetivo o aperfeiçoamento da pessoa, e, como
meio, a educação e o trabalho. Não é um acaso se os
filósofos europeus do século XVIll sentem uma simpatia
particular pelo "modelo" chinês (do qual são, é preciso
admitir, uma idéia bastante aproximativa).
Esses desenvolvimentos múltiplos dão testemunho,
pois, da universalidade das idéias das Luzes, que não
são, de forma alguma, apanágio apenas dos Europeus.
Entretanto, é justamente na Europa que no século XVIII
se acelera e se reforça esse movimento, é ali que se for
mula a grande síntese do pensamento que se difunde em
seguida para todos os continentes: primeiro na América
do Norte, em seguida na própria Europa, na América
Latina, na Ásia e na África. Não se pode deix~r de fazer
a pergunta: por que na Europa mais do que alhures, na
China, por exemplo? Sem querer resolver esta dificil ques
tão (as mutações históricas são fenômenos infinitamen
te complexos, de múltiplas causas, e mesmo contradi
tórias), pode-se assinalar um traço presente na Europa
e ausente noutros lugares: é a autonomia política, a do
povo e do indivíduo. Esse indivíduo autônomo encon
tra aqui um lugar no próprio seio da sociedade, e não
fora dela (como podia ser o caso dos "renunciantes" na
Índia, dos místicos na terra do islã,dos monges na China).
O próprio às Luzes européias é ter preparado o aconte-
136
,I'fi1
A s L U ZE S E A EUROP A
cimento conjunto dessas noções: indivíduo, democracia.
Mas como explicar que essas idéias tenham podido pros
perar justamente na Europa?
Ainda aí, a resposta só pode ser complexa: no entan
to, um fato salta aos olhos: o de a Europa ser ao mesmo
tempo una e múltipla. Os homens das Luzes tinham obser
vado bem isso: as potências européias formam entre si
uma espécie de sistema, elas estão ligadas tanto pelo comér
cio como pela política, e elas se referem aos mesmos prin
cípios gerais.
Esse sistema está fundado, de um lado, sobre a uni
dade da ciência e a possibilidade de entender-se sobre o
que constitui um progresso em matéria de conhecimen
to; e de outro lado sobre a comunidade de um ideal,
que se deve tanto ao ensino cristão quanto às tradições
do direito natural. Rousseau constata a contragosto:"Não
existem mais hoje franceses, alemães, espanhóis, ingleses
ou o que quer que seja; só há europeus74" . Ao mesmo
tempo, os europeus são bem sensíveis às diferenças que
separam os países, e por isso mesmo: dessas diferenças, eles
tiram proveito.Viagens e estadias no exterior se tornaram,
mais do que comuns, indispensáveis. Antes de se dedicar
a sua grande obra O espírito das leis, Montesquieu julga
necessário percorrer a Europa e estudar os costumes dos
diferentes povos que ali se encontram. ))0 mesmo modo,
para aperfeiçoar sua educação, Boswell se lança numa gran
de viagem pela Europa. Quanto ao príncipe de Ligne,
marechal-de-campo austríaco, embaixador na Rússia,
137

o ESPÍRITO DAS LUZES
escritor de língua francesa, ele calculou ter feito trinta e
quatro vezes a viagem entre Bruxelas e Viena e ter pas
sado mais de três anos de sua vida num carro. Ele con
clui: "Gosto do meu estado de estrangeiro em todo lugar:
francês na Áustria, austríaco na França, ambos na Rússia;
é o meio de se comprazer em todos os lugares e não ser
dependente de nenhum lugar75" .
O país estrangeiro pode ser tanto o lugar onde se
aprende, quanto aquele onde se escapa das perseguições ou
aquele em que se aguilhoa sua própria busca. Na França,
Lavoisier não teria sabido perscrutar o segredo do ar e da
água se não tivesse sido estimulado pelas descobertas para
lelas de Priestley na Inglaterra. Definitivamente, nen
hum país é melhor do que os outros: Prévost, Voltaire,
Rousseau passam temporadas na Inglaterra, Hume Boling
broke, Sterne na França, Winckelmann e Goethe irão à
Itália, Beccaria virá à França. De seu lado,Voltaire, Mau
pertuis e La Mettrie abandonam a França para se colo
carem sob a proteção de Frederico II em Berlim, Diderot
vai aconselhar Catarina II na Rússia. A pluralidade é, em
si mesma, fonte de beneficios; depois de ter comparado
ingleses, franceses e italianos, Voltaire conclui: "Eu não
sei a qual das três nações seria preciso dar preferência,
mas feliz daquele que sabe sentir seus diferentes méritos7" " .
Ele não nos revela, no entanto, a razão dessa felicidade.
É preciso dizer que, com relação às outras partes
do mundo, a Europa se distingue efetivamente pela mul
tiplicidade dos Estados estabelecidos sobre seu território.
138
It,
I
As LUZES E A EUROPA
Se comparada à China, cuja superficie é mais ou menos
semelhante, pode-se ficar chocado com o contraste: um
só Estado opõe-se hoje a uns quarenta Estados inde
pendentes. É nessa multiplicidade, que parece ser uma
desvantagem, que os homens das Luzes viram a vanta
gem da Europa; e a comparação com a China que lhes
parece,justamente, a mais esclarecedora. Hume declara:
"Na China parece existir um fundo considerável de cor
tesia e de ciência do qual poderíamos esperar que, em
tantos séculos tivesse eclodido alguma coisa mais perfei
ta e mais acabada do que aquilo que realmente já surgiu.
Mas a China é um vasto império falando uma única
língua, regido por uma lei única, unido pela mesma
maneira de viver?". Um fundo de origem inventiva e
criador foi sufocado pela existência de um imenso impé
rio unificado onde o reinado incontestado da autorida
de, das tradições, das reputações estabelecidas provocou
a estagnação dos espíritos. Contrariamente ao que afirma
o adágio antigo, aqui é a divisão que faz a força! Hume
é talvez o primeiro pensador que vê a identidade da Euro
pa, mais do que um traço compartilhado por todos (a
herança do Império romano, a religião cristã), em sua pró
pria pluralidade: não a dos indivíduos, mas dos países
que a formam. Resta compreender por qual operação
alquímica consegue-se converter, não a lama em ouro,
mas uma característica em si mesma negativa (a diferen
ça) em qualidade positiva; e como a pluralidade pode gerar
a unidade.
139

o ESPÍRITO DAS LUZES
Os pensadores do século XVIII quiseram saber em
que podiam consistir os beneficios da diversidade e for
mularam várias respostas, talvez porque tenham sido con
frontados com essa questão em diferentes áreas. Para
começar, a pluralidade mais problemática, a das religiões:
em viagem a Haia, Voltaire alegra-se com a tolerância
que ali reina: todas as religiões parecem boas, mas nenhu
ma busca eliminar as outras. Dez anos mais tarde, durante
sua estada na Inglaterra, ele observa os mesmos benefi
cios da pluralidade, e conclui: "Se só houvesse na Ingla
terra uma religião, seria de temer-se o despotismo; se
houvesse duas, elas cortariam a garganta uma da outra;
mas há trinta, e elas vivem em paz e felizes":". Advi
nham-se as razões dessa preferência: se uma religião
ocupasse uma posição hegemónica, seus zeladores seri
am inevitavelmente tentados a oprimir os outros, até
fazê-los desaparecer. Por outro lado, a presença de ape
nas duas religiões alimentaria excessivamente a rivali
dade: a lembrança das guerras de religião, guerras civis
que ensangüentaram a França está ainda fresca em todas
as memórias. A pluralidade começa a partir da cifra três,
e implica que uma instância exterior, portanto não reli
giosa, garante a paz entre elas: é melhor separar poder
espiritual e poder temporal. Montesquieu, por sua vez,
não condena as religiões, mas deseja que sejam nume
rosas: cada uma delas busca inculcar em seus fiéis boas
regras de conduta, "ora, o que haveria de mais capaz
de animar esse zelo do que sua multiplicidadej"'" A
140
As LUZES E A EUROPA
pluralidade favorece a emulação e toda boa vontade
nunca é demais.
Num ensaio publicado em 1742 e intitulado Do
nascimento e do progresso das artes e das ciências, Hume se
interroga sobre o que favorece o desabrochar cultural, e
constata: a pluralidade de Estados compondo o espaço euro
peu é aparentemente um elemento favorável. Sua vantagem
é dupla: esses países não são inteiramente estrangeiros uns
aos outros, eles são "ligados pelo comércio e pela políti
ca"; ao mesmo tempo, sua pluralidade cria um espaço de
liberdade. Hume descobre, com efeito, que ela favorece o
espírito crítico - sufocado, ao contrário, pela unidade. Não
somente porque o grande território unificado exige um
poder forte e torna seus dirigentes tão afastados do cida
dão ordinário quanto este tem a tendência a sacralizá-los
e a imaginá-los como se estivessem acima de qualquer
crítica; mas também porque, num espaço unificado, uma
reputação superestimada nunca é objeto de críticas e corre
o risco de se manter por muito tempo. Esse destino funes
to é ilustrado, como acabamos de ver, pelo caso da China,
mas também pelo do cristianismo: a dominação uniforme
("católica") dessa religião "trouxe a degenerescência de todo
tipo de saber".Ao contrário, desde a Reforma e o reconhe
cimento de várias formas de cristianismo, uma nova dire
ção é tomada, as artes e as ciências podem reflorescer.
O espaço europeu contemporâneo de Hume ofe
rece a vantagem da pluralidade que nutre a vigilância para
com toda afirmação e toda reputação. "Onde numero-
141

o E S I' Í R I TO DA S L U Z E S
sos Estados vizin hos dese nvo lvem uma grande troca de
art e e de comércio, a invej a recíproca dissuade uns de aco
lher levianamen te a lei dos outro s em m atér ia de go sto
e raciocínio, e lhes f:1Z exa minar cada obra de arte com
o maior cuidado e a maio r exatid ão". Uma apreciação
passageira por talou qu al obra em Paris corre o r isco
de não ter muito impacto em Londres, Berlim ou Mi lão .
Se os gostos fianceses tivessem sido impostos pela força
a todo espaço europe u, ningu ém teria ousado criticar a
ciênc ia e a filosofia de D escartes. C omo não foi o caso,
estas foram subm etidas, fora das fronteiras francesas, a uma
crítica vigo rosa, e em seguida foram ex clu ídas pela fisi
ca de N ewton . Por sua vez, esta última foi o bjeto de
exa mes impied osos fora da Inglater ra, que permitiram
m elhorá-la . Assim , cada um pode aprove ita r da lu ci
dez de seu vizinho para cu rar suas própri as cegue iras.
Se uma o bra co nsegue im por-se alé m das fro n tei ras
nacionais, isso é justamente sina l de sua qua lidade supe
ri or: tal reputação não foi certamen te usu rpada.
A Europa não é a primeira a se ben eficiar da plu
ralidade interi or. Esta havia já sido responsável pelo apo
ge u da cultura grega antiga . A disposição geográfica das
cidades gregas, separadas por cade ias de montan has garan
tia- lhes a independênc ia; a língu a e os interesses co m uns
favorec iam ao mesm o te m po a co m unicação. R esultou
daí um bom equilíbrio entre pluralid ade e uni dade : era
uma "conste lação de pequenos principad os" o nde, no
entanto, "suas riva lidade e debates afinavam as in telig ên-
142
A s L U Z E S E A E U R OP A
cias". O contine nte onde viveu H ume foi co nstr uído no
mesmo modelo: "A Europa é agora uma rép lica em gra n
de escala do exem plo que foi a Gréci a em m ini atu ra" .
Daquilo qu e alguns conside ram como um en trave nasce
sua superioridade: "A Europa é, das quatro partes do mundo,
a mais despedaçada [...]. Eis por que as ciênc ias nasceram
na Grécia e por que a Europa foi a mai s perman ente
das terras de acolhida":". O s europe us dign os de Hume
seriam os qu e não se contentam em tolerar a diferen ça dos
o utros, mas qu e, dessa ausência de identidade, tiram um a
presen ça: a do espír ito crít ico vigi lan te que não pára
diante de nenhum tabu , qu e se permite exa minar impar
cialmente todas as tradições, fundando -se sobre o qu e todos
os homens compartilham, isto é, a razão. Nisso, ele se enco n
tra co m M ontesquieu , cuja grande idéia política é qu e,
para favo recer a liberdade, cujo direito à crí tica é uma
das principais fo rmas, é preciso qu e os poderes seja m
plurais, mais do qu e co ncentrados nas mesmas mãos.
R een contra-se então o probl ema da pluralidad e e de
seus eventuais benefícios no espaço politico.j á qu e as opi
ni ões e as escolhas dos cidadã os que o com põem são
em ge ral bem variadas; ora , a república qu e os un e deve,
para terminar, falar com uma só voz. Pode- se então obser
var aqui a man eira de levar em co nta a pluralidade dos
indi víduos para ver se ela pode nos servir de modelo para
a coexistênc ia das nações.
A so bera n ia popular encar na-se numa vo n tade
co m um, mas qu al relação esta tem co m a vontade de cada
143

o Es p í R I T O D A S L U Z E S
um? Para responder a essa qu estão, Rousseau introduz uma
distinção que não foi sempre bem co m preendida, en tre
vontade de todos e vontade geral. A vontade de todos é
a soma m ecân ica das vontades particulares. Seu ideal é a
unanimidade, porém sua realidad e é apenas a m aioria
das vozes. Quando as opiniões divergem, essa vontade não
, mais de todos; o u então, ela deve fazer de modo que eles
esteja m de acordo. A idéia de uma vontade de todos co n
tém em ger me o proj et o totalitário: todos os cidadãos
devem reivindicar o mesmo ideal, as opiniões dissiden tes
- qu ando as há - serão rep rimidas e elim ina das.
A vontad e ge ral no sentido de R ousseau, ao con
trári o, é uma co nside ração das diferen ças. Sua "gene rali
dad e" deve ser ente ndida como uma igu ald ad e di ante
da lei : nenhum cidadão é posto à parte, nem tido co m o
inferior aos outros."Toda exclusão forma l rompc a ge ne
ralidade". Em qu e sentido ela é com um a todos? Ela repre
senta , acrescenta R ousseau , a " so ma das diferen ças" das
vo ntades parti culares, " uma soma de pequ cn as diferen
ças"!" . R ousseau se serve aqui da lin gu agem do cálc ulo
infi nitesim al, tal co m o foi elaborado por Leibniz . A vo n
tade ge ral não é uma so ma de identidades, ela até se opõe
a cada id entidade individual e consis te em buscar uma
generalida de incluindo as diferenças . Leibniz ilustra essa
passagem do particu lar ao gera l por uma co mparação entre
a cidade, un a, e a visão qu e dela têm seus habi tantes:" U ma
m esma cidade vista de vár ios lados parece out ra, e ela é
co mo que multiplicada perspccti varn ente".
144
A s L U Z E S E A E U R O P A
Co nc re ta me n te, ca da cida dão tem se u p rópri o
in te resse; ora, o interesse diverge de um indiví duo a outro .
Se se renuncia a forçar as pessoas a se submeterem , a ún ica
solução é fazer de modo qu e cada um se torne co nscicn
te da parcialid ad e de seu ponto de vista, tal co mo o de
um habitante qu alqu er da cidade , que ele se des taq ue dela
(que aja " no silênc io das paixões" , seg undo uma expres
são de Diderot'"), e que se coloque no po n to de vista
do in teresse geral. É assim, afinal, que , numa democracia,
se supô e qu e os eleito s ajam no interesse de todos, mesmo
quc ten ham sido eleitos pelos votos de alguns ape nas. Para
conseguir isso, cada um deve se co locar provisoriam ente
no lu gar d e seu viz in ho, cuj a o pin ião difere da sua, e
tentar raciocin ar co mo este faria a fim de poder em segui
da adorar um ponto de vista que leve em conta a dife
ren ça en tre u m e ou tro. Kant, que persegue a refl exão
de R ousseau so bre esse assunto, não acha qu e se trate
de uma tarefa sobre-huma na:" N 30 há nada de mais natu
ral, afirma, qu e pen sar co loca ndo -se no lugar de qualque r
outro ser humano"!" . Proced er-se- á assim a uma integra
ção das di feren ças numa un idade de tip o superior.
A lição das Luzes co nsiste então em dizer que a plu
ralidade pode faze r nascer uma nova unidade, ao menos
de três m an eiras: ela inc ita à tolerân cia dentro da em u
laÇ30, dese nvo lve e protege o livre espírito crítico, facilita
o desligam en to de si, co nduzindo a um a integra ção supc
rior de si e de o utrem. Como não ver que a co nstrução
e uropé ia , hoj e, pode tirar proveito dessa lição? Para qu e
145

o ESPÍRITO DAS LUZES
essa construção dê certo, ela não deve ater-se unicamente
aos tratados sobre as tarifas alfandegárias, nem conten
tar-se unicamente em melhorar as estruturas burocráti
cas, mas assumir também um certo espírito europeu, do
qual os habitantes do continente possam se orgulhar. Con
tudo um problema se coloca aqui: o que todas as nações
européias possuem em comum - racionalidade científi
ca, defesa do Estado de direito e dos direitos do homem
- possui uma vocação universal, e não especificamente
européia. Ao mesmo tempo, esse substrato comum não
basta para organizar uma entidade política viável, ele deve
ser completado por escolhas particulares, enraizadas na
história e na cultura de cada nação. O exemplo da lín
gua é revelador: cada grupo humano fala a sua em vez
de adotar uma língua universal; a existência de uma lín
gua de comunicação internacional, como o inglês hoje,
não suprime de forma nenhuma as línguas particulares.
Além do mais, no decorrer de suas histórias, as nações
européias viram confrontar-se as opções ideológicas mais
diversas, e cada doutrina dominante suscitou doutrinas
que a combateram.A fé pertence à tradição européia - mas
o ateísmo também, a defesa da hierarquia e a da igual
dade, tanto a continuidade como a mudança, a extensão
do império como a luta antiimperialista, a revolução tanto
quanto a reforma ou o conservadorismo. As populações
européias são diversas demais para poder serem reduzi
das a alguns elementos comuns; além do mais, elas rece
beram a contribuição de outras populações migrantes, que
146
11 As LUZES E A EUROPA
trouxeram consigo sua religião, costumes, memória. A
"vontade de todos", para falar como Rousseau, não pode
ria se impor sem que uma parte dos europeus sofresse
uma pressão violenta dos outros; ou então ela não pas
saria de um falso semblante, uma máscara virtuosa com
a qual procuraríamos nos fantasiar.
Contudo, a identidade da Europa e, portanto, sua
"vontade geral", poderá se afirmar se nos apoiarmos nas
análises feitas na época das Luzes; se, em vez de isolar tal
qualidade para imputá-la a todos, tomássemos por base de
unidade o estatuto acordado de nossas diferenças e as
maneiras de delas tirar proveito: favorecendo a tolerância
e a emulação, o livre exercício do espírito crítico, o dis
tanciamento de si permitindo projetar-se em outrem e ter
acesso assim a um nível de generalidade que inclui o ponto
de vista de uns e outros. Se quiséssemos escrever uma
história idêntica para todos os europeus, seríamos obri
gados a suprimir toda fonte de desacordo; o resultado seria
uma história devota dissimulando tudo o que perturbas
se, de acordo com as exigências do "politicamente cor
reto" do mornento. Se, ao contrário, se tenta escrever uma
história "geral", os franceses não se contentariam em estu
dar sua história colocando-se exclusivamente em seu próprio
ponto de vista, mas levariam em conta o olhar dos alemães,
ingleses,espanhóis, ou argelinos e vietnamitas sobre essesmes
mos eventos. Eles descobririam, então, que seu povo nem
sempre desempenhou os papéis vantajosos do herói e
da vítima, e escapariam assim da tentação maniqueísta
147

o Es p i R I T O DA S L U ZE S
de ver bem e m al repartidos de cada lad o da fronteira.
É precisamente essa ati tude qu e os europeus de ama
nhã poderiam ter em co mum e estimar como sua maior
herança.
A capacidade de integrar as diferenças sem fazê-las
desaparecer distingue a Europa de outros grandes conjun
tos políticos mundiais: da Índia ou da China, da Rússia
ou dos Estados Unido s, onde os indivíduos são extre
m amente diversos, mas incluídos no seio de uma nação
única. A Europa reconhece não somente os direitos dos
indivíduos, mas também os das comunidades históricas,
culturais e polític as que são os Estados membros da União.
Essa sabedoria não é um dom do céu, ela custou muito
caro : antes de ser o cont inente qu e encarnava a tolerân
cia e o reconhec ime nto mútuo, a Europa foi o das dila
cera ções dolorosas, do s conflitos chacinantes, das guer
ras incessantes. Essa longa experiência de que guarda lem
brança, tant o nas narrativas qu anto em suas construções,
até em suas paisagens, é o tributo que foi necessário
para acertar suas contas e para pod er, séculos mais tarde,
beneficiar- se da paz.
As Luzes são a criação mais prestigiosa da Europa,
e elas não poderiam ter visto o dia sem a existência do
espaço europeu, ao mesmo tempo uno e múltiplo. Ma s
o inverso é igualmente verdadei ro: são as Luzes que estão
na origem da Europ a, tal como a concebemos hoje. D e
modo qu e se pode dizer sem exagero: sem a Europa, nada
de Luz es; mas também: sem as Luzes , nada de Europa.
148
AS LUZES PERTEN C EM ao passado.j á que existiu um século
das Luzes; no entanto, elas não podem " passar", poi s
chega ram a designar não ape nas mais um a doutrina his
toricamen te situada, mas uma atitude em relação ao
mundo. Continuamos então a evocá-las para, segundo o
caso e as disposições do autor cm questão, acusá- las de ser
a origem de nossos males antigos e atuais, colonialismo.
genocídio, rein ado do egoísmo; ou bem para pedir-lhes
que venham em nosso socorro e combatam no ssas fa
lhas presentes e futuras. Propomos então " reac ender as
Luzes" , ou ainda fazê- las br ilhar até os lugares remotos
e as culturas qu e ainda não as conhece m. A razão dessa
atualidade é dupla: nós somos todos filh os das Luzes,
mesmo quando as atacam os; ao mesmo tempo, os males
149

o ESPÍRITO DAS LUZES
combatidos pelo espírito se mostraram mais resistentes do
que imaginavam os homens do século XVIII; esses males
foram até multiplicados desde então. Os adversários tra
dicionais das Luzes, obscurantismo, autoridade arbitrária,
fanatismo, são como cabeças de hidra que renascem assim
que são cortadas, pois tiram sua força das características
dos homens e de suas sociedades tão desenraizáveis quanto
o desejo de autonomia e de diálogo. Os homens precisam
de segurança e de consolo tanto quanto de liberdade e
de verdade; eles preferem defender os membros de seus
grupos a aderir aos valores universais; e o desejo do poder,
levando ao uso da violência, não é menos característico
da espécie humana que a argumentação racional. A isso
se somaram os desvios modernos das aquisições das Luzes,
que têm por nome cientificismo, individualismo, dessacra
lização radical, perda de sentido, relativismo generalizado...
Pode-se recear que esses ataques nunca cessem; por
isso é ainda mais necessário manter vivo o espírito das
Luzes. A idade da maturidade, que os autores do passado
desejavam, não me parece fazer parte do destino da huma
nidade: ela está condenada a buscar a verdade mais do que
a possuí-la. Quando se perguntava a Kant se já se estava
na época das Luzes, uma época realmente esclarecida, ele
respondia: "Não, mas numa época de esclarecimento'?",
Tal seria a vocação de nossa espécie: recomeçar todos
dias esse labor, mesmo sabendo que ele é interminável.
150
Agradecimentos
Fui levado a redigir as páginas precedentes
atendendo ao pedido que mefez o diretor da
Biblioteca Nacional da Eronça.fean-Noêl
jeanneney, para que participasse da organiza
ção de uma exposição sobre as Luzes e seu
s((!,níficado para nós. Eu não sabia em que
aventura estava entrando! Dois anos e meio
depois, em março de 2006, a exposição
"Luzes! Uma herança para amanhã" abre
suas portas. Durante esse tempo aprendi
muito, com todo o pessoal da Biblioteca com
que tive contato, colaboradores externos, mas
também com as duzentos e cinqüenta peças
do século XVIII quefazem parte da exposição:
escritores, intelectuais, pintores e músicos me
permitiram conhecer melhor o espírito das
Luzes. A eles agradeço!
151

N otas
I. Ca lmann- Lévy, 1970, p. 12.
2. tEuvrcscompíites, t. 111 , C allimard, 1964, p. 162, 171. 18tJ, 142;" Lct
tre sur la vcrt u, l' indi vidu e t la socié té " (1757), A nnalcs de la soci é
té[ean-jacques Rousseau, XVI (1997), p. 325 .
3. Traité dcs devoirs ITratado dos del'eres] (1725), t .liuvrc« COlllplc1tes, Lc
Seuil, 1964, p. 182; De l'esprit dcs lois I() espírito das leisI (1748) ,
I , 1.
4. U,!!islatiol/ primitive, 1829 , t. I, p. 250.
5. Lertre au marquis de Stanv ille du 27 ma i1750, Cl iuvrcs cOlllplhes,
t. III , Nagel, 1955; Lettre à Beaumont (17ó2), (Euvres co mpletes,
r, IV, 1969, p. 996 .
6 . Esquisse, Édit ians sociales, 1971 , p. 255 -256.
7. De la colonisation chcz lcs pcuplcs modernos. 2 vo l., I')(J2, r. I, p.
X X I, p.VII.
8. (1885), Discours et opinions, 7 vo l., 1893-1898, t .V, p. 211.
9. Par l' épée et par la charrue, PUF, 1948, p. 68.
10. (1846) Cliuvres completes, t. 111 , vol. 1, C allimard, 1962 , p. 299.
153

o s s e t n rr o DAS L UZE S
11. Di scours et opinions, op. cit., p. 209 .
12. T!Je ldea <if Christian Society and Other Writi/l)?s, Londres, Faber
& Faber, 1982, p. 82 .
13. Le Décli/l du COHra)?e, Le Seuil, 1978 , p. 46, 55.
14. Mémoire et ldentiti, Flammarion, 2005, p. 23 , 65.
15. Le D éclin du COllra)?e, op. cit ., p. 53-54.
16. Mémoire et ldentit é ; op. cit., p. 64, 163.
17. De I'esprit des lois, op. cit., p. 18!.
18. Discours sur l' économie politique (1756), (Eu vres complêtcs. t . III , p.
248 ; " Eclectism e", CEuvres completes, Editions Assézat-Tourneu x,
t. XlV.
19. R éponse à la question .. qu'est-ce qHe les Lumi êres? [Resposta à per
gunta : o que é a ilust ração?] (1784), CEuvres philosophiqucs, t . II,
Gallimard, 1985, p. 20 9; QII'est-ce qlle s'orienter dans la pensée?
(1786), ibid., p. 545.
20. "Fait", ibid., t. XV; Cinq M émoiressur l'instruction puhliquc (1791),
Garnier- Plammarion , 1994 , p. 257; Critique de la raison pllre (1781),
Aubier, 1997 , p. 65.
21. De l'esprit des lois, XI , 6.
22 . DII contrai social [Do co ntrato social] (176 1), tIiuvres completes, t.
III, III, 1; II, 6.
23. Traité de la nature humaine [Tratado da natureza humana] (1737),
3 vol. , Flammarion, 1991-1 995 , II. III, 3.
24. Dialoçu cs (1772- 1776), CEIMes completes, t . 1,1 959, p. 8 13.
25 . Discours sur l'originc de I'illégalité [Discurso sobre a origem da desi
gualdade], p. 189 .
26. La Philosophie dans le boudoir (1795), CEuvres co m pletes, t . XXV,
J. -J. Pau vert, 1968 , p. 173.
27. L'Erotisme, Minuit, 1979, p. 187, 192,210.
28 . Cinq Mémoires, p. 85, 86, 93.
29. R. Aron, Mémoires, R ob ert LafTont, 2003, p. 59.
30. CEllvres completes, t. IV, p. 1072.
3 1. (1764), Genêve,Droz, 1965, p. 44.
154
N OTAS
32. Cinq Mémoires, op. cit., p. 93 ; cf. Rapport sur l'instruction publi-
que, Edilig, 198 9, p. 254.
33 . Ibid., p. 95.
34 . Ibid., p. 104-1 05 .
35. "Totalirar ianism as PoliticaI R eligion", in C.}, Fri edrich (éd .),
Totalitarianism, C ambridge, Harvard UP, 1953; tr. fr. in E. Tra
ver so (êd.), Le Totalitatisme. Le Seuil, 2001, p. 452.
36. Le Monde du 10 septern b re 2002.
37. Ni putes ni soumises, La D écouverte, 2004, p. 161.
38. lnsoumise,Robert LafTont, 2005 , p. 46.
39. Cinq Mémoires, op . cit., p. 9 1.
40. Le Sceptique [O cético ], in Essais moraux, politiques & litt érai-
res,Alive, 1999, p. 215 .
41. Cf. Rapport, p. 251 .
42. Cinq Mémoires, op. cit., p. 85- 87, 93-94.
43. Ibid., p. 261.
44 . Ibid., p. 88.
45. "Supplérnent au voyage de Bougainville " , in D. D iderot , Giuvres
philosophiques. Garnier, 1964, p. 505 .
46. La Philosophie dans le boudoir, p. 97, 243.
47. " Vie de Turgot" (1786), CElIvres, t. V, 1849, p. 203 .
48. Él1I ile [Emílio] (176 1), CEllvres completes, t. IV, p. 60 1.
49 . "Totalitar iani sm and th e Lie" , in I. Howe (éd.), 1984 Revisited,
N.Y. , Harper & R ow, 1983 ; tr. fr. in E. Traverso (éd.), Le 'J(,tali
tarismc , Le Seu iI, 200 1, p. 665.
50 . Citado por S. P. Huntingt on, H1J1O A re We?, Londres, T he Free
Press, 2004 , p. 86 -87.
51. Rom., XIII , 8;Testament j ohan is. Schriften, 1886-1 907, t. XIII ,
p. 15; M émoires, H ach ette, 1866, p. 181,205.
52, "Encyclop êdic". CEII!'res completes, t, XlV.
53.Julie ou la Nouvelle H éloisc Uúlia ou a nova Heloísa] (1761), CEuvres
completes, t. II, 1964, p. 536.
54. Fondements de la m étaphvsique des mceurs [Fundamentação meta-
155

o ESPÍRITO DAS LUZES
física dos costumes] (1785), (Euvres philosophiques, t. II, p. 295.
55. A. Pope, An Essay on Man (1734), Londres, Methuen, 1950, Ep.
IV
56. Lettres philosophiques (1734), Garnier-Flammarion, 1964, p. 67.
57. Essais, p. 236.
58. Emile, p. 503, 816.
59. Pages choisies, Editions sociales, 1974, p. 96, 103.
60. La Philosophie dans le boudoir, op. cit., p. 66.
61. Émile, op. cit., t. IV, p. 817; "Lettre sur la vertu, l'individu et la
société", p. 325.
62. Letters ofJoshua Reynolds, 1929, p. 18; Italienische Reise [Viagem
à Itália] (1787), Werke, Hambourg, Chr. Wegner, 1974, t. XI, p.
386.
63. Discours sur l'origine de l'inégalité, p. 194; Le Contrat social, II, 4.
64. De l'esprit des lois, Xv, 2; Ou contrat social, I, 4; Condorcet (1781),
(Euvres, t.VII, 1847, p.69.
65. Pensées, 10, (Euvres completes, p. 855; Correspondance, Minuit, t.VIII,
1962, p. 16.
66. L'A.B. C. (1768), Dialoyues et anecdotes philosophiques, Garnier,
1939, IV, p. 280; Émile, p. 547.
67. Principes du droit de la nature et des Rens (1750), Caen, Bibliothe-
que de philosophie politique et juridique, 1988, § 68.
68. Des délits et des peines, p. 46, 52.
69. Ibid., p. 30.
70. Les Ennemis complémentaires, Tirésias, 2005, p. 286.
71. Des délits et des peines, p. 55.
72. P. Bayle, De la tolérance. Commentaire philosophique sur ces paroles
deJésus-Christ "Contrains-les d'entrer", Presses Pocket, 1992.
73. CE. Lumiéresl Un héritage pour demain, Bibliothéque Nationale
de France, 2006.
74. Considérations sur le gouvernement de Pologne, (Euvres completes, t.
III, p. 960.
75. Lettres écrites de Russie, 1782, p. 68. 76. Lettres philosophiques, p. 145.
NOTAS
76. Lettres philosophiques [Cartas filosóficas], p.145.
77. Essais, p. 166-167.
78. Lettres philosophiques, p. 47.
79. Lettres persanes (1721), (Euvres completes, Le Seuil, lettre 85.
80. Essais, p. 164-167.
81. Du contrat social, II, 2 et 3.
82. La Monadologie [A monadologia] (1714), Gallimard, 1995, § 57.
83. "Oroit nature!" (1755), Giuores completes, t. XIV
84. Critiquede laJaculté deJURer [Crítica da faculdade do juízo] (1790),
(Euvres philosophiques, t. II, p. 1073.
85. Réponse à la question : qu'est-ce que les Lumiêresi, ibid., p. 215.
157