educação jovens e adultos

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Educação Jovens e Adultos

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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POLÍTICAS E PRÁTICAS EDUCATIVAS

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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POLÍTICAS E PRÁTICAS EDUCATIVAS

OrganizadoresJosé dos Santos Souza

Sandra Regina Sales

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© EDUR- Editora da Universidade Federal Rural do Rio de JaneiroRodovia BR 465, Km 7, Centro - CEP 23890-000 - Seropédica, RJ

UFRRJ/DPPG/EDUR/Pav. Central /sala 102Fone: (21) 2682-1210 ramal 3302 - FAX: (21) 2682-1201

[email protected]/editora.htm

© NAU EditoraRua Nova Jerusalém, 320 - CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ

Fone: (21) [email protected]

www.naueditora.com.br

Editoras: Angela Moss e Simone RodriguesEditoração e projeto gráfico: Flávia Santos de Oliveira e Raquel Stransky Ferreira

Fotografia da capa: Simone RodriguesRevisão de texto: Lucia de Carli

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Educação de Jovens e Adultos : políticas e práticas educativas organizadores José dos Santos Souza, Sandra Regina Sales. - Rio de Janeiro : NAU Editora : EDUR, 2011.240p. (Docência.doc ; v. 3)

Inclui bibliografiaISBN 978-85-85936-64-9

1. Jovens - Educação. 2. Educação de adultos. 3. Educação -Política governamental 4. Programa de Educação de Jovens e Adultos. 5. Prática de ensino. I. Lopes, Alice Casimiro. II. Souza, José dos Santos. III. Sales, Sandra Regina IV. Título. V. Série.

10-6286. CDD: 374.012. CDU: 374.7

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita das Editoras.

1ª edição: 2011 - Tiragem: 500 exemplares

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A série Docência.doc é uma iniciativa de divulgação de trabalhos selecionados da produção acadêmica em torno da Educação e da Formação de Professores. Fruto de uma parceria entre a NAU Editora e professores da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro -, em conjunto com a editora universitária (EDUR), teve origem na publicação Pensando a Formação (2010), dedicada à atualidade da filosofia como disciplina no ensino médio. Através de artigos e pesquisas individuais e coletivas, a série Docência.doc tem como objetivo promover a reflexão e o debate a respeito das questões envolvidas na experiência docente contemporânea.

Os organizadores

Comissão Organizadora da SérieCélia Linhares (CAPES/UFRRJ/UFF)

Gabriela Rizo (UFRRJ)Márcia Denise Pletsch (UFRRJ)

Nídia Majerowicz (UFRRJ)Sandra Regina Sales (UFRRJ)

Conselho Editorial da SérieAdriana Hoffmann (Unirio)

Gustavo E. Fischman (Arizona State University/EUA)Inês Assunção de Castro Teixeira (UFMG/Brasil)

Jurjo Torres Santomé (Universidade da Coruña/Espanha)Manuel José Jacinto Sarmento (Universidade do Minho/Portugal)

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (UFMS/Brasil)Newton Brian (UNICAMP/Brasil)

Paolo Vittoria (UFRJ/Brasil)Siomara Borba Leite (UERJ/Brasil)

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PARTE I - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EJA NO BRASIL: PROMESSAS, AÇÕES E LIMITAÇÕES

José dos Santos Souza 15 A EJA no contexto das políticas públicas de inclusão de jovens no mercado de trabalho

Osmar Fávero 29 Políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasil

Gabriela Rizo 49 A educação de jovens e as heranças da década de 1990

Jaqueline Ventura 67 Considerações político-pedagógicas sobre as especificidades da Educação de Jovens e Adultos trabalhadores

Maria Margarida Machado 87 Diálogos necessários sobre gestão e financiamento da Educação de Jovens e Adultos

Jane Paiva 111 Educação de Jovens e Adultos emtempos de VI CONFINTEA: por

“uma didática da invenção”

PARTE II - DESAFIOS DAS AÇÕES PEDAGÓGICAS DA EJA

Wagner Nobrega Torres 133 O que dizem os estudos da EJA sobre políticas de currículo?

Enio Serra dos Santos 157 A produção de propostascurriculares nacionais de EJA e os desafios da prática docente

Marta Lima de Souza 177 Educação de Jovens e Adultos: da alfabetização à “aprendizagem ao longo da vida”?

Maria do Socorro Martins Calháu 195 Refletindo sobre nossa dificuldade em transformar os alunos jovens e adultos em “sujeitos da escrita”

Lana Fonseca 211 Possibilidades epistemológicas da construção compartilhada de conhecimento: reflexões sobre a Didática para a Educação de Jovens e Adultos

Sandra Regina Sales 223 Espaços, sujeitos e discursos: cinco desafios para repensar a EJA desde o legado freireano

Rosanne Evangelista DiasAlice Casimiro Lopes

Sônia Rummert

Gustavo E. Fischman

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APRESENTAÇÃO

Desde 2006, em função de uma política de expansão do Governo Federal, um número significativo de docentes, técnicos administra-tivos e estudantes de graduação se viram reunidos em uma insti-tuição de Ensino Superior em plena Baixada Fluminense – trata-se do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ. Ao mesmo tempo em que a Baixada Fluminense é economicamente uma das mais importan-tes regiões do Rio de Janeiro, suas condições sociais expressam o que há de mais perverso no processo de acumulação do capital, em especial a aviltante concentração de riqueza e suas consequências nefastas: pobreza extrema, violência urbana, abandono do poder público, corrupção e desigualdade de acesso aos serviços públicos, em especial à educação e à saúde. A despeito destas dificuldades ou justamente por conta delas, o compromisso político destes pro-fissionais logo se evidenciou a partir de inúmeros projetos de pes-quisa e extensão que tinham os problemas da Baixada Fluminense como foco.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) logo emergiu como uma das preocupações centrais dos docentes da área de educação do Instituto Multidisciplinar. Estas preocupações se converteram em ações concretas na comunidade local. Primeiramente, em forma de cursos de qualificação de “alfabetizadores” do programa Brasil Al-fabetizado, implementado pelo município de Nova Iguaçu (RJ), de-pois em forma de cursos de extensão para professores da EJA que atuavam nas redes municipais de educação de Nova Iguaçu (RJ) e de Mesquita (RJ) e, finalmente, em forma de curso de especializa-ção lato sensu para docentes da EJA da Rede Municipal de Educação de Mesquita. Tanto a ampliação destas atividades como a produção científica nesta área foi uma consequência natural deste esforço político-pedagógico.

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A preocupação em contribuir com a ampliação das oportunida-des educacionais (para aqueles que não as tiveram na considerada idade apropriada) e com a melhoria da qualidade desta modalidade de ensino conduziu à reflexão e ao debate sobre os problemas perti-nentes à EJA no Brasil e na América Latina, com o objetivo de enten-der como esses problemas se materializam na realidade da Baixada Fluminense. A interlocução com pesquisadores da área se tornou imprescindível para a interpretação das identidades e das especifi-cidades entre a realidade da EJA na Baixada Fluminense e a realida-de desta modalidade de ensino em contexto mais amplo. Isto se deu de inúmeras formas, seja pela parceria nas ações formativas, pelo diálogo travado em eventos técnico-científicos ou, simplesmente, pela manutenção de diversas relações preexistentes com colegas de outras instituições que partilham das mesmas preocupações.

Obviamente, esta partilha de opiniões, de estudos e de interpre-tações, não constitui um consenso, mas uma diversidade contraditó-ria e discordante de interpretações das políticas públicas para a EJA, de sua dinâmica, de sua metodologia. Esta pluralidade de visões, no entanto, nos unifica enquanto um coletivo mais do que nos fragmen-ta. Estamos convencidos de que esta pluralidade tem nos permitido avançar na compreensão da realidade da EJA na Baixada Fluminen-se e, ao mesmo tempo, nos permite a compreensão da totalidade da EJA no Brasil e na América Latina.

Este livro nasce como consequência desta interlocução, como um fruto do trabalho que desenvolvemos na Baixada Fluminense, mas que não se restringe a essa realidade específica. A propósito, sequer trata dela, mas de alguma forma contribui, significativamen-te, para sua compreensão. Nele procuramos expor diferentes leitu-ras da realidade da EJA reunindo abordagens sobre a política e as práticas educativas nessa modalidade de ensino. No campo político, um conjunto de artigos aborda as ações e contradições das ações públicas para a formação de jovens e adultos no Brasil. Enfoca, tam-bém, os limites e as possibilidades de diversos programas sociais que têm a EJA como foco, em busca de explicar o papel do Estado e da sociedade civil neste campo da educação pública e gratuita. Na área das práticas educativas, outro conjunto de artigos aborda as

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formulações curriculares, as metodologias e a didática da EJA. Com esta obra pretendemos oferecer uma oportunidade de reflexão so-bre as desigualdades educacionais, não só aos docentes da EJA da Baixada Fluminense, mas a todos aqueles que se preocupam com esta questão.

Trata-se de uma obra que não se propõe ao consenso, mas à di-versidade, embora a partir dessa diversidade seja possível inferir amplas possibilidades de consenso. A possibilidade mais evidente desse consenso consiste, justamente, no compromisso político dos autores com as classes menos favorecidas e suas preocupações em superar as desigualdades de acesso ao conhecimento por meio da escola. Isso, por si só, justifica nosso esforço. Este é o espírito com que desejamos o bom proveito da leitura.

Nova Iguaçu (RJ), inverno de 2010

José dos Santos SouzaSandra Regina Sales

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A EJA NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO DE JOVENS NO MERCADO DE TRABALHO

As reflexões aqui apresentadas tiveram suas origens na ocasião da análise dos dados de um projeto que investigava o perfil dos traba-lhadores desempregados atendidos pelo serviço de intermediação de mão-de-obra oferecido pela, hoje extinta, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Social (SEMDES) de Nova Iguaçu (RJ), Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nosso intento, naquela ocasião, era verificar a validade do argumento de que este serviço apresentava baixo êxito devido ao precário nível de qualificação dos trabalhadores que buscam o serviço. Para isto, analisamos o cadas-tro de trabalhadores desempregados (21.613 indivíduos) mantido por esse serviço, verificamos seu nível de qualificação e o relaciona-mos com o tipo de funções nas quais eles tinham experiência. Que-ríamos verificar se, de fato, os trabalhadores cadastrados nesse ser-viço eram desqualificados para os postos de trabalho que buscavam.

Sem nos aprofundarmos muito nos resultados gerais da inves-tigação mencionada, trataremos aqui tão somente do aspecto que nos chamou a atenção e nos remeteu às reflexões sob as políticas públicas para a inclusão de jovens. Trata-se do fato de a faixa etária mais representativa do conjunto de 21.613 desempregados cadas-trados ser entre 18 e 24 anos (15,5%). Além disto, se somássemos o número de trabalhadores dessa faixa etária com os da faixa entre 25 e 30 anos, chegaríamos a 28,6% do total, o que equivale à faixa etária mais representativa do universo dos trabalhadores.

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GRÁFICO 01Trabalhadores cadastrados no banco de empregos da SEMDES por faixa etária - 2008

Outro dado que merece destaque se refere ao nível de formação geral dos 21.613 trabalhadores: cerca de 70% não estavam estudando no mo-mento, entretanto, 41% já haviam completado o Ensino Médio e 32,1%, o Ensino Fundamental. Esses dados nos levam a considerar que mais de 73% dos trabalhadores haviam concluído o Ensino Fundamental. Por outro lado, as ocupações procuradas, em sua maioria, não exigiam mais do que o Ensino Fundamental: auxiliar de serviços gerais, serviço do-méstico, balconista, vendedor, auxiliar de produção, servente, atendente e operador de caixa, dentre outras. Isto nos levou à percepção de que o problema do baixo êxito do serviço de intermediação de mão-de-obra investigado não estava ligado à falta de qualificação, mas sim à falta de postos de trabalho no município suficientes para atender à demanda.

GRÁFICO 02 Trabalhadores cadastrados no banco de empregos da SEMDES por nível de escolaridade - 2008

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A EJA no contexto das políticas públicas de inclusão de jovens no mercado de trabalho

Esse problema, que por si já era preocupante, acrescida do fato de a faixa etária mais representativa dos que vivem tal problema ser de 18 a 29 anos nos chamou a atenção, a ponto de nos mobilizar para uma reflexão mais cuidadosa das políticas públicas de inclu-são social de jovens. Entender a relação entre a política pública de trabalho e renda e essas mesmas políticas para a Educação Básica e profissional direcionadas à população entre 18 e 29 anos passou a ser o nosso objeto de estudo. Nossa questão central é: por que o poder público se esforça para justificar o desemprego pela falta de qualificação dos trabalhadores? Por que as políticas de inclusão de jovens buscam integrar a Educação Básica com a Educação Profis-sional? A formação para o trabalho contida nas políticas de inclu-são de jovens, de fato, garante-lhes a aquisição e permanência no emprego? Em que aspecto a ampliação das oportunidades educa-cionais para aqueles que não tiveram oportunidade na idade apro-priada se articula com as políticas de inclusão de jovens? A reflexão sobre estas questões é o que apresentamos neste texto.

Não muito diferente de épocas anteriores, a juventude hoje ain-da é vista como um problema. Em função disto, tanto a sociedade como os governos buscam implantar medidas de combate a este

“risco social” (IPEA, 2008, p. 07). Mas é inegável que a dificuldade de se inserir no mercado de trabalho é o que mais tem prejudica-do a população jovem nas últimas décadas. As estatísticas apontam alto índice de jovens desempregados à procura do primeiro empre-go. Outro problema é o grande número de casais jovens que moram com os pais, em virtude das dificuldades financeiras (IPEA, 2008, p. 09). Os principais problemas que a sociedade enfrenta, tais como: saúde, educação, desemprego e violência, atingem principalmente a população jovem. A faixa etária entre 15 e 29 anos é a que tem maior risco de mortalidade, quando deveria ser a que menos sofre com esse tipo de problema. Em torno de 30% das pessoas que têm AIDS estão na faixa entre 15 e 29 anos. A população entre 18 e 24 anos é a que apresenta o maior número de viciados em álcool (IPEA, 2008, p. 12). Ao tratar da questão educacional, constata-se alto índice de jo-vens que estão atrasados no ano escolar. O índice de evasão escolar, também pode ser considerado alto nessa faixa etária, além da baixa

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frequência dos alunos na escola (IPEA, 2008, p. 14). Pesquisas mos-tram que os principais fatores que levam o jovem a sair da escola é, entre os homens, a oportunidade de emprego (42,2%), enquanto que, para as mulheres, é a gravidez (21%) que implica o aumento da responsabilidade dessas pessoas.

Outro aspecto que merece destaque é o alto índice de jovens in-fratores na faixa etária entre 18 e 24 anos. Pesquisas constatam que o maior número de homicídios dolosos, lesões corporais, tentativas de homicídios, extorsão mediante sequestro, roubo de veículo, es-tupros, uso e porte de drogas estão nessa mesma faixa etária (IPEA, 2008, p. 20). Hoje, o que se percebe é que os jovens estão mais en-volvidos com a violência e/ou vitimizados por ela, de modo que a condição da juventude se torna cada vez mais vulnerável. Diversos estudiosos têm se esforçado para apontar alguns aspectos que ex-plicam o fato dos jovens se envolverem na criminalidade.

Há várias dimensões socioeconômicas que podem ser eviden-ciadas a partir da análise dos indicadores sociais dos jovens brasi-leiros. Em relação à renda, estudos apontam que 31,3% dos jovens podem ser considerados pobres, pois vivem em famílias com renda domiciliar per capita de até ½ salário mínimo. Um aspecto relevante que merece atenção é o fato de que há desigualdade entre jovens brancos e negros, o que reflete na vida social deles, configurando menores oportunidades sociais para a juventude negra (IPEA, 2008, p. 23). No que tange à questão da violência, os jovens negros são as maiores vítimas (IPEA, 2008, p. 24).

De modo geral, os jovens entre 18 e 24 anos já assumem as res-ponsabilidades ligadas à provisão do seu próprio domicílio e en-frentam dificuldades de se inserirem no mercado de trabalho de modo a garantir-lhes rendimento suficiente para suas necessidades financeiras. Por outro lado, observamos que 84,4% dos jovens entre 15 e 17 anos permanecem na condição de filho (IPEA, 2008, p.25).

A partir de uma investigação sobre as políticas públicas destina-das aos jovens no Brasil, Spósito & Carrano (2003, p. 01) apontam que, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da Re-pública em 2002, além das expectativas de mudanças propostas para seu governo, é preciso considerar o conjunto de iniciativas preexis-

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tentes a ele. Além disto, percebe-se, claramente, significativos avan-ços na sociedade no que concerne à percepções em torno dos direitos da juventude com base em uma concepção democrática de realização da política e de uma clara defesa dos jovens como sujeitos de direito.

Spósito & Carrano (2003, p. 17) ressaltam também que no Brasil os jovens são assistidos pelas políticas sociais destinadas a todas as demais faixas etárias, não objetivando a ideia de uma perspectiva de formação de valores ou atitudes na nova geração. Entretanto, nas ações para a juventude é preciso observar que qualquer ação expri-me parte das representações normativas correntes sobre a idade e os atores jovens que uma determinada sociedade constrói, ou seja, práticas sociais que exprimem uma imagem do ciclo de vida e seus sujeitos (SPÓSITO & CARRANO, 2003, p. 18).

A evolução da história das políticas para juventude foi determi-nada pela exclusão dos jovens da sociedade e os desafios de como facilitar-lhes processos de transição e integração ao mundo adul-to. Ao sintetizar a periodicidade dessa discussão com a ajuda de di-versos autores, Spósito & Carrano (2003, p. 18) apontam distintos modelos de políticas de juventude aplicados nos últimos tempos: a) a ampliação da educação e o uso do tempo livre (1950-1980), b) o controle social de setores juvenis mobilizados (1970-1985), c) o enfrentamento da pobreza e a prevenção do delito (1985-2000) e d) a inserção laboral de jovens excluídos (a partir de 2000).

Não obstante, a literatura sobre juventude e trabalho aponta a articulação de diferentes questões condicionantes da empregabili-dade e desemprego na juventude. Dentre elas, podemos destacar o prolongamento da juventude e seus novos padrões comportamen-tais que têm contribuído na extensão da moratória social para in-gresso no mercado de trabalho, o que configura um novo cenário social. Verificamos que as discussões sobre o ingresso do jovem no mundo do trabalho apontam a população entre 18 e 24 anos como aquela mais penalizada pelo desemprego, pela precarização do tra-balho e pela violência passiva e ativa. Por esta razão, a preocupação com a empregabilidade deste segmento da população se tornou o principal foco das políticas públicas voltadas para a juventude no Brasil nos últimos tempos. Tais políticas têm apontado a Educa-

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ção Profissional como fator de empregabilidade e de geração de renda. Em função disso, surgem novas estratégias do governo pa-ra reformulação da Educação Profissional, com vista na adequação do jovem excluído ao mercado de trabalho flexível, marcado pela terceirização, o contrato temporário e a informalidade que, juntos, configuram o que muitos teóricos da sociologia do trabalho vêm chamando de precariedade do trabalho na atualidade (Cf. ANTUNES, 2000; ALVES, 2000). Decorrem desta realidade diversos programas nacionais de integração e qualificação dos jovens como alternativa de inclusão dos mesmos no mercado de trabalho.

Entretanto, deve-se considerar que a atual recomposição do capi-talismo tem desencadeado profundas mudanças no trabalho, na pro-dução e nas relações de poder. Essas transformações situam-se nos limites do receituário neoliberal. No bojo delas, situa-se a reforma da política de Educação Profissional básica, de nível técnico e tecnológi-co. Tais reformas têm o propósito de formar um novo tipo de traba-lhador para atender novas demandas de produtividade e qualidade das empresas, permitindo-lhes melhores condições de competitivi-dade no mercado internacional. Mas o desemprego é uma realidade inerente a este processo, o que lhe confere o status de uma caracte-rística estrutural no atual estágio do desenvolvimento do capital.

A população jovem, em especial aquela na faixa etária entre 18 e 24 anos, se tornou o segmento da população mais penalizado pelos efeitos perversos do desemprego estrutural, do trabalho precário e da desregulamentação dos direitos trabalhistas. Neste contexto, as políticas públicas de qualificação profissional para a população jo-vem se inserem no conjunto de políticas de conformação das cama-das subalternas com a finalidade de mediar os conflitos de classe e manter a hegemonia do projeto neoliberal. Mais precisamente, tais políticas carregam em si uma pedagogia que inculca nos sujeitos por ela atendidos uma espécie de conformação ética e moral que os tornam sujeitos ativos na construção do consenso em torno do projeto dominante de sociedade. A este fenômeno chamamos de pedagogia da hegemonia. Esta seria, em princípio, a explicação do surgimento de programas federais de inclusão de jovens, apesar das contradições que tal prática social possa comportar.

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Belluzzo & Victorino (2004) ressaltam a importância da traje-tória da constituição dos direitos civis e os limites decorrentes de práticas sociais de segregação da pobreza no encaminhamento das demandas da juventude. Para eles, as políticas públicas caracteri-zam-se por processos decisórios voltados para a formulação, imple-mentação e avaliação de ações ou programas destinados ao aten-dimento das demandas sociais (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 08). Esses autores argumentam que poderíamos considerar que os problemas relacionados à juventude se reconfiguram perversamen-te influenciados por questões sociais profundas e complexas, mas, sobretudo, amargam a ausência do reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direito.

A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) materializou a expectativa de segmentos sociais organizados de que se garantissem aos jovens, além dos direitos básicos à cidadania, di-reitos específicos associados ao reconhecimento das necessidades de seu ciclo vital (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 12).

As conquistas formais representam a possibilidade de novo tratamento às demandas de crianças e adolescentes, de sua valo-rização como sujeito social, rompendo com a tradição histórica de tutela sobre esse segmento. A despeito de tais conquistas, Belluzzo & Victorino ponderam que, se por um lado o Brasil possui um ar-cabouço legal de garantias de diretos à população jovem, por ou-tro, apresenta permanência de situações e comportamentos sociais que negligenciam ou ferem os direitos da infância e adolescência (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 12).

Esses autores ratificam a compreensão de que o desafio é reo-rientar as políticas de juventude na direção de um modelo de jovens cidadãos e sujeitos de direito, que deixe paulatinamente para trás enfoques como o do jovem como problema que ameaça a segurança pública (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 13). Defendem, portanto, que uma ação pública com viés social deve ter como premissa o co-nhecimento prévio do público alvo da política implantada. Tomando a realidade de São Paulo como referência empírica, também apontam a dificuldade de ingresso no mercado de trabalho como um agravante ao expressivo conjunto de carências sociais vividas pelos jovens.

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As respostas governamentais a esta realidade têm se dado, de um lado, por meio da ampliação de oportunidades de escolarização básica e, por outro, por meio de programas sociais destinados à ini-ciação da formação profissional que se dá pela vivência de experiên-cias no mundo do trabalho (BELLUZZO & VICTORINO, 2004, p. 14).

Apesar da universalização do acesso ao sistema educacional, a escola não parece estar preparada para lidar com a diversidade dos alunos. Por isso, os resultados não se mostram positivos, o que au-menta a desigualdade social e de aprendizado (IPEA, 2008, p.15). Ao tratar da ampliação do acesso à escola para o jovem trabalhador percebe-se, da parte deles, o interesse de enriquecer seus conhe-cimentos para se inserirem ou se assegurarem no mercado de tra-balho. Por isso sonham com uma formação básica mais sólida que lhes permita melhores oportunidades (IPEA, 2008, p.16). Entretan-to, os principais programas sociais voltados para a escolarização de jovens amargam altas taxas de evasão, evidenciando sua fragilidade em materializar, na prática, o que propaga em seus discursos.

Mas não se pode negar que o número de analfabetos da popu-lação jovem é alto e isto se agrava na medida em que a faixa etária é mais elevada (IPEA, 2008, p.107). Por outro lado, vários fatores têm contribuído para os altos índices de analfabetismo, entre eles podemos destacar as poucas “oportunidades de acesso a cursos de alfabetização, as deficiências de qualidade e os problemas que difi-cultam tanto a permanência nos cursos quanto a continuidade de es-tudos por parte de jovens e adultos”. Isto serviu de justificativa para o Programa Brasil Alfabetizado e Educação de Jovens e Adultos (IPEA, 2008, p.108). Hoje o programa tem prioridade em atender jovens en-tre 15 e 29 anos. Apesar disso, a EJA apresenta insuficiência na oferta de vagas, de modo que não consegue suprir as demandas. “Um forte indicativo da oferta insuficiente da EJA pode ser encontrado nos da-dos do Censo Escolar de 2006, que revelou mais de 1 milhão de jo-vens entre 18 e 29 anos matriculados no Ensino Fundamental regu-lar, sendo 60% residentes na Região Nordeste” (IPEA, 2008, p.109).

Um aspecto relevante na atual situação educacional dos jovens brasileiros ocorre em virtude do acesso restrito à Educação Infantil e da baixa efetividade no Ensino Fundamental, o que mais tarde faz

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com que parte dessas crianças, quando se torna jovem, apresente dificuldades. As condições socioeconômicas também são fatores que contribuem para o baixo rendimento dos estudantes e aumento da evasão escolar. Não se pode negar, também, a falta de qualifica-ção docente para a Educação de Jovens e Adultos, bem como a per-manência de uma visão assistencialista de caráter compensatório destas políticas. Não obstante, observamos que a “análise das ações voltadas à população jovem que integram a política educacional en-campada pelo MEC nos últimos anos permite identificar que esse segmento populacional vem assumindo a condição de prioridade no atual governo” (IPEA, 2008, p.118).

Mas a dinâmica do conjunto de transformações vividas no tra-balho e na produção tem limitado substancialmente estes esforços. Esses limites, inclusive, nos levam a refletir se o real papel dessas políticas numa sociedade de classes seria, de fato, garantir à popu-lação jovem condições de ingresso e permanência no mercado de trabalho ou se seria uma estratégia de conformação dessa popula-ção às novas condições do capitalismo no mundo contemporâneo marcado pelo desemprego, pela precarização do trabalho e pela vulnerabilidade daqueles que não são absorvidos pelo mercado de trabalho: crianças, jovens, idosos, deficientes físicos etc.

Ao refletirem sobre o desemprego juvenil e as formas como o Estado tem reagido a ele por meio de políticas de trabalho e renda, Cardoso & González, em função de uma investigação sobre a expe-riência dos Consórcios Sociais da Juventude, descrevem os jovens que compõem os grupos mais atingidos pelo desemprego no Brasil:

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), para o grupo entre 15 e 19 anos, a taxa de desemprego passou de 13% para 23% entre 1995 e 2004, enquanto, para os jovens entre 20 e 24 anos saltou de 10% para perto de 16% (CARDOSO & GONZÁLEZ, 2007, p. 30).

Deve-se ressaltar que esta taxa de desemprego só não está ainda maior porque, entre outras razões, os jovens têm progressiva-mente adiado a sua entrada no mercado de trabalho, em particu-lar aqueles entre 15 e19 anos. Isto é expresso pelo fato de a taxa de participação dos jovens estar caindo e caindo mais do que a de outras faixas etárias: para a faixa entre 15 e 19 anos, a queda

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foi de 57% para 49% entre 1995 e 2004 e, para o grupo entre 20 e 24 anos, permaneceu praticamente estável (em torno de 76%). (...) Em alguma medida, isso é consequência do mercado ter fi-cado mais exigente do ponto de vista da qualificação, o que faz com que os jovens busquem se qualificar mais, mesmo quando já estão trabalhando (CARDOSO & GONZÁLEZ, 2007, p. 31).

Esses autores também constatam aumento na escolarização en-tre jovens, independentemente de estarem ocupados, desemprega-dos ou inativos. De forma semelhante a Spósito & Carrano (Op. Cit.), apontam a década de oitenta como o momento em que começa a to-mar corpo uma preocupação com a “juventude marginalizada”, o iní-cio dos anos noventa como o momento em que “essas ações passam a ganhar feições menos emergenciais, eventualmente incorporando uma visão mais positiva do jovem” e a segunda metade da década de noventa como o momento em que começam a surgir políticas que enfocam problemas considerados próprios da juventude. Mas ressal-tam que, até 2003, ainda não havia uma referência normativa clara para políticas dirigidas a jovens com mais de 18 anos e apontam o

“Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego para Juven-tude” (PNPE) como pioneiro nesse sentido (CARDOSO & GONZÁLEZ, 2007, p. 33). Mas de lá para cá, as políticas públicas para a juven-tude não apenas se proliferaram, como também se sofisticaram em sua engenharia institucional, especialmente no que concerne à par-ceria entre instituições públicas e privadas. Praticamente todos os programas desenvolvidos a partir desta data procuram articular a compensação da carência ou precariedade da formação geral com a preparação para o trabalho.

Esses programas emergem como uma ação pública sobre o pro-blema do desemprego na juventude. Uma dúvida que tem nos mobi-lizado a investigá-los é a seguinte: será que o foco deles é a população jovem e seus problemas, ou será que é a construção de condições favoráveis ao consenso em torno do modelo de desenvolvimento proposto sob a hegemonia do capital para superação da crise de acu-mulação na atualidade? Afinal, quem está sendo socorrido é o jovem ou a ordem social capitalista? No sentido de direcionar a busca de respostas a esta questão, temos que considerar algumas referências teóricas sobre como a formação e a qualificação do trabalhador, no

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atual estágio de desenvolvimento do capital tem se constituído em um campo privilegiado de disputa da hegemonia na sociedade capi-talista. A esse respeito, teceremos algumas reflexões a seguir.

Nas últimas décadas, temos vivenciado grandes mudanças na formação para o trabalho em todo o mundo. Tais mudanças coadu-nam com a hegemonia do receituário neoliberal como paradigma regulatório da ordem capitalista de produção e reprodução social da vida material no mundo globalizado, como alternativa para re-compor as bases de acumulação de capital corroídas pela crise do modelo de desenvolvimento implementado no pós II Guerra Mun-dial, pautado pelo modelo de Estado de Bem-Estar Social e pelo re-gime de acumulação taylorista-fordista.

No campo estrutural, essas mudanças se materializam em de-vastadora reestruturação do trabalho e da gestão da produção em busca de maior racionalidade dos processos e dos produtos visando maior flexibilidade dos sistemas produtivos para garantir melhores condições de competitividade nos mercados globalizados.

A principal consequência desta reestruturação foi a adoção dos princípios gerenciais da Clean-Prodution ou “Produção Enxuta”, combinando elementos do taylorismo-fordismo e do toyotismo, o que levou a maior racionalidade da produção e consequente dimi-nuição do trabalho vivo, provocando desemprego, flexibilização de direitos trabalhistas, intensificação da precariedade do trabalho e exclusão social. Além disso, verifica-se neste processo a intensifi-cação do trabalho por meio da inserção cada vez mais veemente de ciência e tecnologia nos processos produtivos, aumento do controle do trabalhador beneficiado pelo avanço da informática e da micro-eletrônica, a reformulação dos mecanismos de conformação psico-física do trabalhador, a ampliação de relações informais de trabalho, do trabalho em tempo parcial, do subemprego etc. (Cf.: MÉSZÁROS, 2002; ANTUNES, 2000 e 2006; ALVES, 2000).

No campo superestrutural, as mudanças visam redimensionar a relação entre o Estado e a sociedade civil e reeducar os sujeitos para uma nova dinâmica da sociabilidade do capital. O propósito é garan-tir o controle da classe dominante sobre as relações estabelecidas na sociedade em um contexto de ampliação da participação social

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nas decisões estatais. Trata-se, de fato, do acirramento das contradi-ções da sociabilidade do capital gerado justamente pela necessidade dos proprietários dos meios de produção de manter sua hegemonia em um contexto marcado pelo avanço das conquistas trabalhistas. Isso, é claro, provoca maior complexificação das relações de poder, na medida em que, para alcançar seus objetivos, a classe dominante é obrigada a apresentar maior maleabilidade e disposição para o convencimento e a persuasão, em lugar do uso frequente da coerção através dos aparelhos repressivos do Estado. Trata-se, na realidade, da necessidade de ampliação dos limites de liberdade por parte do Estado para a manutenção do consenso em torno da concepção de mundo burguesa. É esta contradição que explica o conjunto de mu-danças na relação entre o Estado e a sociedade civil, em especial a nova pedagogia da hegemonia acionada pelo Estado para educar os sujeitos para o consenso, em um contexto complexo de relações de poder inaugurado nesses tempos de crise do capital e, desse modo, garantir formas renovadas de mediação do conflito de classes (Cf.: NEVES, 2010).

Diversos teóricos da área da sociologia e da educação têm apontado estreitas relações entre as mudanças estruturais e supe-restruturais e as reformas educativas ocorridas nos últimos anos. Mencionam o surgimento de novas demandas de qualificação do trabalhador em decorrência das mudanças promovidas no trabalho e na produção. Mas também, há aqueles que relacionam o conjunto de reformas na educação aos esforços dos dirigentes do capital pa-ra assegurar uma nova divisão do trabalho educacional em busca de garantias para a manutenção da velha dualidade que distingue a educação das elites da educação das massas.

No caso brasileiro, anteriormente, essa dualidade consistia na seletividade para o acesso às oportunidades educacionais onde uma parcela da população era atendida pelo sistema educacional para alcançar os mais elevados níveis de escolaridade, outra era atendida para ser formada para o trabalho técnico especializado e uma terceira parcela, destinada a exercer o trabalho simples, era ex-cluída do sistema escolar, até mesmo antes da conclusão dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Atualmente, com o avanço das for-

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ças produtivas e a complexificação da política, as oportunidades de acesso à escolarização foram expandidas. O Ensino Fundamental foi universalizado, deu-se início ao processo de generalização do Ensi-no Médio, a Educação Profissional foi ampliada em todos os níveis e modalidades e o Ensino Superior passa por abrangente processo de crescimento. Não obstante, ao mesmo tempo em que ocorre signi-ficativo desenvolvimento das oportunidades educacionais, verifica-se flagrante desigualdade de condições de acesso ao conhecimento cientifico e tecnológico, de modo que a dualidade do sistema escolar, hoje, poderia ser caracterizada não mais pela desigualdade de con-dições de acesso à escola, mas pela desigualdade de condições de acesso ao conhecimento cientifico e tecnológico aplicado no traba-lho, na produção e na vida cotidiana.

Essa nova parceria, onde muitos serão certificados, mas nem todos serão formados, configura um novo mecanismo de mediação do conflito de classes na concepção e na política de formação para o trabalho e para a vida em sociedade. Afinal, ela expressa a mais atual configuração de um sistema educacional que ratifica, em con-dições renovadas, o real sentido da produtividade da escola impro-dutiva mencionado por Frigoto (1989). Isto significa que, em plena sociedade do conhecimento, a desigualdade de acesso ao conheci-mento passa a ser garantida pelo próprio ingresso ao sistema esco-lar e paraescolar, diversificado, flexibilizado e racionalizado. Seria, enfim, uma inclusão excludente?

Talvez a consideração desta questão possa mobilizar muitos profissionais e pesquisadores da EJA para a reflexão acerca do real sentido dos programas sociais do governo federal que visam à ace-leração da escolaridade integrada à formação inicial e continuada de trabalhadores jovens que não tiveram oportunidade de estudos na idade considerada regular, tais como, por exemplo, o Programa Nacional de Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) e o Progra-ma Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM). Somente uma re-flexão neste sentido poderá explorar, em favor dos trabalhadores, as contradições que esse tipo de ação política pode oferecer.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a nega-ção do trabalho. 3ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2000. 258 p.

_______ (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. 527 p.

BELLUZZO, Lilia, VICTORINO, Rita de Cássia. A juventude nos caminhos da ação pública. São Paulo em perspectiva. São Paulo, v.18, n.4 p.8-19. 2004.

CARDOSO, José Celso, GONZÁLEZ, Roberto. Desemprego Juvenil e políticas de trabalho e renda no Brasil: a experiência recente dos Consórcios Sociais da Juventude. Inclusão Social. Brasília, v.2 n.1 p.30-46, outubro/2006-março/2007.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A Produtividade da Escola Produtiva: um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-social e capitalista. 3ª Edição. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989a. 235 p.

IPEA. Políticas sociais: acompanhamento e análise. Brasília: IPEA, 2008. 310 p.

MÉZÁROS, Istvan. Para Além do Capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo César Castanheira & Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo: Campinas: Edunicamp, 2002. 1103 p.

NEVES, Lúcia M. Wanderley (org.). Direita para o social e esquerda para o ca-pital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. 223 p.

SPOSITO, Marília Pontes; CARRANO, Paulo César Rodrigues. Juventude e políti-cas públicas no Brasil. In: Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: Editora Autores Associados, nº 24, p. 16-39, set./out./nov./dez., 2003.

SOBRE O AUTOR

José dos Santos Souza é Doutor em Sociologia pela UNICAMP. Atua como docen-te do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola (PPGEA) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc), ambos desta Universidade. É líder do Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS), atuando nas linhas de pesquisa “Trabalho e Educação” e “Sociologia do Trabalho”, com ênfase na relação entre Trabalho, Juventude e Qualificação Profissional.

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL1

PRESSUPOSTOS

Precisamos, inicialmente, chegar a um consenso sobre o que devemos entender por política pública e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Normalmente políticas públicas são compreendidas como ações realizadas pelo Estado através de mecanismos diversos que podem variar desde planos, programas e projetos, até incentivos ou inibi-ções. Desta perspectiva, o que melhor expressa esses mecanismos é o aparato jurídico, representado por leis e normas. É mais correto, no entanto, entender políticas públicas como uma junção das ini-ciativas do Estado ou melhor, da sociedade política com as ações e pressões da sociedade civil organizada, que se dirigem ao Estado para exigir a garantia de direitos ou implementá-los por meio de outras alternativas. No caso das políticas de Educação de Jovens e Adultos, em particular, é muito importante ter em vista, simultânea ou comparativamente, essa dialética entre poderes, ou seja, entre a sociedade política e a sociedade civil organizada.

Ilustra bem este ponto, as dificuldades vividas durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002) em que o governo federal não só desprezou a participação das diferentes or-ganizações que trabalhavam com jovens e adultos na elaboração do documento brasileiro a ser apresentado na V Confintea (Hamburgo, Alemanha, 1977), como lançou a campanha Alfabetização Solidária, em moldes tradicionais, inicialmente através da Presidência da Re-pública, depois articulada a uma organização não-governamental, sob a coordenação da primeira-dama, Ruth Cardoso.

1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada oralmente no XXV Simpósio da ANPAE, realizado em Vitória/ES, em agosto de 2009.

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A reação da sociedade civil gerou a organização dos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos, atualmente existentes em todos os estados e em vários municípios. Reunindo participantes de diver-sos segmentos: universidades, secretarias de educação, Sistema S (SENAI, SESI, SENAC, SESC), organizações não governamentais etc., os fóruns são, hoje, os principais interlocutores do Ministério da Educação, sobretudo, por intermédio da SECAD – Secretaria de Edu-cação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Cf.: PAIVA, 2009).

Por sua vez, aplica-se, usualmente, na Educação de Jovens e Adultos, pelo menos em trabalhos acadêmicos, a definição acordada na V CONFINTEA, entendendo-a como uma educação continuada ao longo da vida. Em decorrência, a aprendizagem é considerada não só um fator de desenvolvimento pessoal e um direito de cidadania, mas também uma condição de participação dos indivíduos na cons-trução de sociedades mais democráticas.

Elaborada nessa conferência como produto de discussão entre diversos países com realidades extremamente diferenciadas, essa definição apresenta um importante “vir a ser”. No caso brasileiro, todavia, nos debatemos com uma realidade bem menos auspiciosa: milhares de jovens e adultos ainda sem dominar os rudimentos da leitura, da escrita e das primeiras operações matemáticas; outros milhares com o Ensino Fundamental ainda incompleto e, mesmo quando completo, com sérias limitações naqueles mesmos instru-mentos; sérias restrições para a integração do Ensino Médio e do Ensino Fundamental, completando a Educação Básica de doze anos e a discrepância entre as ações de educação geral e formação profis-sional. Aliam-se a essas limitações a grande pobreza de bibliotecas e centros de cultura, sobretudo nas áreas periféricas das grandes cidades, nas localidades do interior e nas zonas rurais, assim como a programação pobre nas emissoras de rádio e televisão e o acesso limitado aos meios informatizados.

Esses fatores, até certo ponto, têm obrigado o Estado a propor como EJA, em primeiro lugar, em termos da alfabetização e da oferta tardia ou da complementação do Ensino Fundamental; em segundo, oferecendo a formação profissional inicial, o aperfeiçoamento ou a especialização em caráter complementar. Apenas recentemente foram gerados pro-

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gramas articulando a oferta da educação geral e da formação profissio-nal, como será visto inicialmente, em termos dos princípios legais e nor-mativos, depois apresentando os principais programas em execução.

Em outra vertente, experiências mais promissoras da EJA nas redes de ensino ou em instituições da sociedade civil apresentam diferente linha de pressupostos provenientes da educação popular, cujas matrizes encontram-se nos movimentos do início dos anos sessenta e que se generalizaram pela influência de Paulo Freire, so-bretudo pelo livro Pedagogia do Oprimido, cuja primeira edição, feita pela Paz e Terra, é de 1975. Suas categorias essenciais são libertação e emancipação das classes populares e seu princípio metodológico mais conhecido é o diálogo entre educadores e educandos. Sua in-fluência nas classes da EJA se faz sentir, por exemplo, em rupturas e avanços importantes em relação às práticas consolidadas, tra-dicionalmente, pelo sistema escolar: respeito ao perfil dos alunos com vistas ao agrupamento dos mesmos, matrícula ao longo do ano e frequência flexível ao invés de evasão e abandono, introdução do conceito de interrupções; momentos de encontro e de reunião dos professores para planejamento, revisão da prática e replanejamen-to, valorização de novos espaços educativos dentro e fora da esco-la, avaliação flexível em momentos variados, como o diagnóstico no início e a avaliação qualitativa processual durante o ano, utilizando diversos recursos.

PRINCÍPIOS LEGAIS E NORMATIVOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Em termos da ação do Estado, os fundamentos legais das políticas atuais de Educação de Jovens e Adultos encontram-se nos seguintes dispositivos legais:

• Constituição Federal de 1988 que, no Art. 208, afirma o direi-to à educação como direito público subjetivo, inclusive para jovens e adultos que não tiveram acesso à educação regular

“na idade apropriada”, constituindo-se no marco mais impor-tante e decisivo.

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• Emenda Constitucional 14/96 que, numa atitude autoritária da sociedade política, suspendeu o compromisso de erradi-car o analfabetismo em dez anos, constante nas Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, assim como, a obrigatoriedade da expansão da oferta do Ensino Médio.

• Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/96) que, entre outros dispositivos, reafirmam o direito à escolaridade, oficializam a Educação de Jovens e Adultos como modalidade da formação básica, preveem a validação dos aprendizados fora da escola, estabelecem a articulação entre o ensinamen-to básico e a formação profissional (Cf.: SAVIANI, 1997; 2007).

• FUNDEF – Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fun-damental e Valorização do Magistério (Lei n. 9424/96) pelo qual, por veto da Presidência da República, ficou impedida a contagem das matrículas da EJA para o repasse de recursos do fundo. Em 2006, o FUNDEF foi substituído pelo FUNDEB – Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Magistério, criado pela Emenda Constitucional 53/06 e re-gulamentado pela Medida Provisória 339/06, transformada na Lei n. 11.494/07, pelo qual estão previstos novos critérios para a distribuição dos recursos, já considerando as matrículas de Educação de Jovens e Adultos, Educação Infantil e Ensino Médio.

• Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Parecer CNE/CEB 11/2000). O parecer elaborado pelo conselheiro Carlos Roberto Jamil Cury constitui-se no mais importante documento normativo para a Educação de Jovens e Adultos. Após o histórico da educação de adultos no Brasil, em especial quando entendida como ensino supleti-vo, após a Lei n. 5692/71, propõe para a Educação de Jovens e Adultos as seguintes funções: reparadora - significando o ingresso no circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado; equalizadora - proporcionando maiores oportunidades de acesso e permanência na escola aos até en-tão desfavorecidos qualificadora - prevendo a atualização e aprendizagem contínua ao longo da vida (Cf.: SOARES, 2002).

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Esse parecer colocou a discussão da EJA no Brasil em excelen-te patamar teórico, embora não incorpore as discussões so-bre formação profissional e a Resolução CNE/CNE n. 1/2000, dele decorrente, mantenha a EJA referida ao ensino regular e ainda reforce a ideia de cursos e exames supletivos. Por sua vez, como foi dito anteriormente, na realidade brasilei-ra ainda estamos fortemente presos à função reparadora, e apenas recentemente, por meio de programas do governo federal, tem-se procurado associar a alfabetização ao Ensino Fundamental e o Ensino Médio à formação profissional. Resta ainda a ser discutida outra expressão da Educação de Jovens e Adultos entendida como educação popular, cujas caracte-rísticas principais são o compromisso fundamental com as classes mais pobres e a dimensão expressamente política de suas ações.

• Plano de Desenvolvimento da Educação, proposto pelo MEC em 2007, tendo em vista superar as indefinições e os impas-ses na execução do Plano Nacional de Educação promulgado em 20001 pela Lei n. 10.172. No que diz respeito à Educação de Jovens e Adultos, além de sua incorporação no sistema de financiamento previsto pelo FUNDEB, o Plano propõe corri-gir oposições criadas pela política educacional do governo de Fernando Henrique Cardoso. São elas: dissociação da alfabe-tização e da Educação de Jovens e Adultos e afastamento en-tre o Ensino Médio e a formação profissional. Dessa proposta decorre o incentivo ao encaminhamento dos adolescentes, jovens e adultos recém-alfabetizados às classes do Ensino Fundamental, principalmente nas regiões nas quais o índice de analfabetismo é mais agudo, e as Agendas Territoriais de Desenvolvimento Integrado de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos. Incorpora também dois programas que já es-tavam em execução: o PROJOVEM – Programa Nacional de In-clusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária e o PROEJA - Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com Educação Básica na Modalidade Educação de Jovens e Adultos, que serão apresentados posteriormente.

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Conforme o conceito de política pública assumido, é importante lembrar a presença de instituições da sociedade civil em discussões na Constituinte de 1987-1988, apresentando propostas que garan-tiam e ampliavam esse direito, por exemplo, prevendo, no capítulo referente aos direitos do trabalhador, facilidades para a comple-mentação da escolaridade ou o aperfeiçoamento da formação pro-fissional durante a jornada de trabalho e de preferência na própria empresa. Essas propostas, no entanto, foram recusados na segunda fase das discussões, pelo rolo compressor conhecido como “Centrão”, formado pelos congressistas conservadores (HADDAD e DI PIERRO, 2000). Também, no longo período de tramitação dos projetos da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, na Câmara dos Deputa-dos, foi importante e, em alguns momentos decisiva, a participação das diversas associações nos debates, confrontando-se os defenso-res da escola pública e do ensino leigo, com os representantes do ensino privado e do ensino religioso nas escolas públicas. No final desse processo, como é conhecido, o senador Darcy Ribeiro, arti-culado com o MEC e pressionado pelos lobbies da Igreja Católica e dos empresários da educação, abandonou o projeto da Câmara dos Deputados e fez aprovar uma lei de diretrizes e bases da educação extremamente conciliatória.

A praticamente nenhuma audiência na aprovação da Emenda Cons-titucional 14/96 e na proposta da lei que criou o FUNDEF, contrapôs-se à efetiva participação quando foi elaborado o parecer sobre as diretri-zes da Educação de Jovens e Adultos. Sob a coordenação de seu relator, Carlos Roberto Jamil Cury, foram realizadas amplas consultas nas dife-rentes regiões e vários contatos com especialistas. Esse mesmo proce-dimento foi repetido, recentemente, pelo Conselho Nacional de Educa-ção, para discutir as questões relativas à idade mínima para ingresso nos cursos de Educação de Jovens e Adultos e para a certificação dos exames, à duração dos cursos e o desenvolvimento dessa modalidade por meio da educação à distância.2

Há ainda outro componente, de natureza político-administrati-va, que interfere nas políticas de Educação de Jovens e Adultos: a

2 A proposta de resolução sobre estes pontos, apresentada pelo CNE em 2008, não foi referendada pelo ministro da Educação.

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descentralização do Ensino Fundamental, inclusive nessa modali-dade, para a esfera municipal. Essa política passou a acontecer em 1990, quando a Fundação Educar foi extinta no governo de Fernan-do Collor de Mello (1990-1992). Nessa ocasião, os municípios não estavam preparados para assumir as ações relativas aos cursos de Educação de Jovens e Adultos, normalmente coordenados pelo go-verno federal e estruturados na esfera estadual, e ainda não estão, embora as capitais e os municípios das regiões metropolitanas es-tejam demonstrando avanços nesse sentido. Mais ainda, em 1996, com a criação do FUNDEF, como foi dito, foram-lhes negados os re-cursos para o financiamento da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Infantil, também sob sua responsabilidade. A alternativa encontrada por muitos municípios foi transformar o antigo ensino supletivo em ensino regular noturno, normalmente atendendo ape-nas à primeira fase do Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries), masca-rando as estatísticas e deixando a 2ª fase (5ª a 8ª séries) sob respon-sabilidade das secretarias estaduais.

Essa política de descentralização foi aguçada nos dois períodos do governo de Fernando Henrique Cardoso, com a prioridade dada à escolarização de crianças de 7 a 14 anos no Ensino Fundamental. Influenciada pelas políticas definidas em âmbito continental pelas agências internacionais (Banco Interamericano de Desenvolvimen-to, Banco Mundial etc.), essa prioridade era justificada por critérios economicistas e apresentada como estratégia para, a longo prazo,

“secar as fontes do analfabetismo”. No bojo da ideologia neoliberal vigente ocorreu ainda, a focalização das políticas e a redefinição das funções das esferas públicas e privadas, através da adoção das

“parcerias” com instituições privadas, além da desconcentração das ações do Estado.

Em decorrência de tais concepções, nesse período, como única política nacional de Educação de Jovens e Adultos sob sua coorde-nação, o governo federal desenvolveu a Alfabetização Solidária, uma campanha nos moldes tradicionais prevendo um período curto pa-ra a alfabetização a ser realizada em “parceria” com instituições da sociedade civil e empresas. Iniciou, também, a implantação do Pro-grama Recomeço (transformado no governo de “Luiz Inácio da Silva”

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em Fazendo Escola e atualmente absorvido pelo FUNDEB), apoian-do a matrícula no Ensino Fundamental, inicialmente priorizando a região norte e nordeste e, depois, se estendendo a todos os estados e municípios com matrícula em Educação de Jovens e Adultos.3

Também nesse período, por pressão, sobretudo do MST (Movi-mento dos Trabalhadores Sem Terra) e articulação dos movimentos sociais do campo e algumas universidades, foi criado o PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), sob a res-ponsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, hoje um dos programas mais amplos de educação no campo, oferecendo desde a alfabeti-zação até cursos superiores. E foram delegadas ao Ministério do Trabalho e Emprego todas as ações de Formação Profissional, equa-cionadas no PLANFOR (Plano Nacional de Formação) com apoio fi-nanceiro do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador, também reali-zadas em parceria com organizações sindicais e empresariais, assim como organizações não governamentais.

Tanto no caso do PRONERA quanto do PLANFOR, alguns projetos foram importantes, principalmente os realizados com assessoria de universidades, inclusive com a produção de materiais didáticos inovadores (por exemplo, os Projetos Integrar e Integração, da CUT (Central Única dos Trabalhadores). Foi mantido, no entanto, o pa-ralelismo entre a Educação Básica e a formação profissional, mes-mo quando esses projetos visavam à certificação no nível do Ensino Médio, o que, no caso dos programas da CUT citados, foi consegui-do por meio de convênio com alguns CEFET’s (Centros Federais de Educação Tecnológica), hoje IFET’s (Institutos Federais de Educa-ção, Ciência e Tecnologia).

Essas ações ocorreram com pouco diálogo entre o Estado e as associações que lutavam pela garantia do direito à educação para os jovens e adultos e com a relativa omissão do MEC. Embora, como diz Maria Clara Di Pierro:

3 Em 2004, com apoio da UNESCO, a SECAD realizou uma Avaliação Diagnóstica da EJA, analisando a continuidade entre os programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola. A pesquisa foi realizada em 10 municípios de 6 estados (Alagoas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Piauí e Rio de Janeiro), tendo sido entrevistados gestores locais, responsáveis pelos programas, alfabetizadores e professores. Realizaram-se também como observação nas escolas e grupos focais com alunos.

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Ainda que tenha renunciado à coordenação interministerial dos programas de jovens e adultos, o MEC não abriu mão de instru-mentos de controle e regulação nacionalmente centralizados: regularizou a coleta e a divulgação de estatísticas educacionais, criou exames de certificação (Exame Nacional de Certificação de Competências para Jovens e Adultos), instituiu referenciais curri-culares, formulou programas de formação (Parâmetros em Ação) e subsidiou a produção de materiais didáticos (Coleção Viver e Aprender). Só tiveram acesso aos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimentos da Educação os estados e municípios que ade-riram a essa proposta político pedagógica (DI PIERRO, 2005, ).

POLÍTICAS PÚBLICAS ATUAIS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Devem-se entender as políticas atuais abrangendo dois grandes campos: o dos sistemas de ensino estaduais e municipais e o da ofer-ta de programas pela Presidência da República e pelos ministérios.

No caso dos sistemas de ensino, os programas inovadores ainda são poucos e normalmente de pequena duração, não raro limitados a uma gestão do governador ou do prefeito eleito, e continua muito forte a tradição do ensino supletivo.4 São poucos os municípios que apresentam experiências consolidadas da oferta de um ensino mais adequado às necessidades e condições de acesso e permanência dos jovens e adultos.5 Alguns sistemas municipais, em particular, desde a vigência da lei n. 5692/71, têm sido obrigados a alargar o atendi-mento nas escolas de jovens e adultos, de um lado, para adolescen-tes que são “expulsos” do ensino regular por serem maiores de 14 anos, limite da obrigatoriedade do atendimento no Ensino Funda-mental, de outro, para idosos que procuram a escola para completar sua formação escolar ou até para iniciá-la, algumas vezes.

4 Os próprios censos publicados pelo INEP tomam ensino supletivo e Educação de Jo-vens e Adultos como sinônimos.5 Sob coordenação de Sérgio Haddad e Marília Sposito e contando com financiamento do CNPq, da FAPESP e da FAPERJ, de 2003 a 2006 foi realizada ampla pesquisa intitulada

“Juventude, Escolarização e Poder Local”, em municípios de seis regiões metropolitanas. Numa primeira fase, foi feito um balanço quantitativo das ações desenvolvidas, numa segunda, foram realizados estudos de caso sobre as experiências mais significativas. Os resultados dessa segunda fase da pesquisa foram publicados em dois livros editados, em 2007, por “Ação Educativa e Global”: Haddad (2007) e Sposito (2007).

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Principalmente no segundo governo de Luiz Inácio da Silva, aconteceram mudanças significativas com relação às políticas de Educação de Jovens e Adultos, dentro de um plano mais abrangente assumido pelo SECAD que engloba também a educação indígena, a educação no campo, a educação nas prisões e a educação nos qui-lombos. Após dificuldades iniciais, redefiniu-se, em parte, o Brasil Alfabetizado, aumentando o tempo de alfabetização e priorizando a transferência de recursos para os entes federados (estados e muni-cípios); reviu-se o Programa Recomeço, transformando-o no Fazen-do Escola, absorvido atualmente pelo FUNDEB. Passou-se a apoiar seminários de formação de formadores6 e a investir também na produção de material didático para a Educação de Jovens e Adultos, especialmente as coleções Cadernos de EJA e Literatura para Todos.

Em termos de “postura” em relação à Educação de Jovens e Adultos, pode-se dizer que houve uma mudança significativa em relação aos governos Fernando Henrique Cardoso. No entanto, o modo de ação pouco mudou. A política continua a ser realizada por meio de programas de ação. Embora o conjunto desses programas procure atender dimensões importantes da EJA, a análise indivi-dual deles indica propostas emergenciais com pequeno grau de impacto frente à amplitude da demanda (metas de milhares, para necessidades de milhões) e pouca efetividade (dispersão de esfor-ços, desconhecimento das reais potencialidades municipais, falta de entrosamento entre e de coordenação dos programas, sobretu-do quando vinculados a diferentes ministérios, descontinuidade administrativa etc.). Mais profundamente, não se supera o caráter assistencialista representado por ações para mitigar a pobreza ou prevenir delitos juvenis, não raro revelando um caráter moralizan-te. Também não se constituem em ações duradouras que superem as “políticas de governo” em direção a “políticas de Estado”, ou se-ja: que não se limitem ao tempo de um governo e se firmem como ações permanentes.

Os programas mais importantes atualmente em execução, além do PRONERA, já citado, são:

6 Aconteceram dois seminários nacionais, em Belo Horizonte (2006) e Goiânia (2007). Os trabalhos e as conclusões do primeiro estão em Soares (2006) e em Machado (2008).

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Na esfera da Presidência da República/Secretaria Nacional e Conselho Nacional de Juventude.

PROJOVEM (Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária): criado em 2005, quando o gover-no federal lançou a Política Nacional de Juventude, com a criação da Secretaria Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Ju-ventude. Destinava-se aos jovens na faixa etária entre 18 e 24 anos, oferecendo a conclusão do Ensino Fundamental com iniciação pro-fissional. Oferecia uma bolsa de cem reais mensais exigindo, como contrapartida, o compromisso dos “beneficiários” na realização de ações sociais orientadas.

Em 2007, vários programas do governo anterior foram reformu-lados e reunidos em um programa amplo e diversificado de inclusão social dos jovens brasileiros: o PROJOVEM Integrado, que compre-ende atualmente quatro modalidades:

• PROJOVEM: reformulação do programa anterior que tem co-mo finalidade elevar o grau de escolaridade visando ao de-senvolvimento humano e ao exercício da cidadania, por meio da conclusão do Ensino Fundamental, de qualificação profis-sional e do desenvolvimento de experiências de participação cidadã.

• PROJOVEM Adolescente: reestruturação do programa Agen-te Jovem, destinado a jovens entre 15 e 17 anos, objetivando complementar a proteção social básica à família, oferecendo mecanismos para garantir a convivência familiar e comunitá-ria e criar condições para a inserção, reinserção e permanên-cia do jovem no sistema educacional.

• PROJOVEM Campo: reorganizou o programa Saberes da Ter-ra e, valendo-se do regime de alternância dos ciclos agríco-las, busca fortalecer e ampliar o acesso e a permanência dos jovens agricultores familiares no sistema educacional, pro-movendo a conclusão do Ensino Fundamental e a formação profissional como via para o desenvolvimento humano e o exercício da cidadania.

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• PROJOVEM Trabalhador: unificou os programas Consórcio Social da Juventude, Juventude Cidadã e Escola de Fábrica, vi-sando à preparação dos jovens para o mercado de trabalho e ocupações alternativas geradoras de renda.

Na esfera do MEC, coordenado pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica.

PROEJA (Programa Nacional de Integração da Educação Profissio-nal com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos): lançado em meados de 2006 pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, para a realização dos seguintes cursos, para maiores de 18 anos:

• Educação Profissional técnica de nível médio com Ensino Mé-dio, destinado a quem já concluiu o Ensino Fundamental e ainda não possui o Ensino Médio e pretende adquirir o título de técnico;

• Formação inicial e continuada com o Ensino Médio, destinado a quem já concluiu o Ensino Fundamental e ainda não possui o Ensino Médio e pretende adquirir uma formação profissio-nal mais rápida;

• Formação inicial e continuada com Ensino Fundamental (5ª a 8ª série ou 6º a 9º ano), para aqueles que já concluíram a primeira fase do Ensino Fundamental;

• Formação inicial e continuada com o Ensino Médio, dependen-do das necessidades regionais de formação profissional.

Com bases teórico-metodológicas mais firmes que o PROJOVEM e execução sob a responsabilidade dos atuais Institutos Federais de Educação, Ciências e Tecnologia, das escolas técnicas ligadas às uni-versidades federais e do Colégio Pedro II, esse programa parece ter condições de obter sucesso. Essas instituições tradicionais de ensino, com excelente infraestrutura e quadros profissionais competentes, fo-ram desafiadas a definir uma proposta pedagógica adequada a uma

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clientela diferente daquela atendida tradicionalmente. Esta não é, de modo algum, uma tarefa tranquila, considerando-se a prática arraiga-da dos antigos CEFET’s na educação tecnológica e a relativa pouca ex-periência na abordagem da educação geral a ela associada, traduzida em currículos que atendam jovens e adultos já inseridos no mercado ou em busca de trabalho. A parceria com algumas universidades com experiência em Educação de Jovens e Adultos tem facilitado essa tare-fa. Vale destacar também, a indução que o MEC está fazendo para que estados e municípios assumam a oferta de Educação de Jovens e Adul-tos, especialmente pela Agenda Territorial, que será abordada a seguir.

Na esfera do MEC, coordenados pela SECAD.7

Resultante da transformação no Governo Luiz Inácio da Silva, da Alfa-betização Solidária, em 2003 foi assumido pelo governo federal como prioridade. No seu início, foram previstos seis meses para o processo de alfabetização, posteriormente, por pressão dos educadores orga-nizados em fóruns e da própria Comissão Nacional de Alfabetização, esse período foi ampliado para oito meses. Também foram aumenta-dos em 50% os recursos para formação de alfabetizadores, embora a bolsa do alfabetizador mantivesse a lógica há muito rejeitada de um valor fixo e outro variável por aluno matriculado. As críticas a esse modelo e os problemas esperados aconteceram, mudando-se, então, para uma bolsa fixa, no entanto menor do que a composição anterior admitia. Outra característica inicial, modificada no Programa Brasil Alfabetizado, foi relativo à partição de recursos federais, apropriados pelo Sistema S e por entidades não governamentais em cerca de 70% no primeiro ano. Essa relação foi sendo transformada a cada ano, che-gando, em 2006, a praticamente o inverso.

Em 2007, houve novas mudanças, atribuindo ao poder público municipal e estadual a maior responsabilidade na condução do pro-cesso de alfabetização em convênio com o programa federal bus-cando, por força da Resolução FNDE/CD n. 12, de abril de 2007 e

7 A SECAD encarrega-se também da a coordenação do Brasil Alfabetizado, do PROJOVEM no Campo, da educação indígena, de programas de atendimento aos negros, educação ambiental etc.

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outras que a desdobraram, a tão desejada inserção orgânica da EJA nos sistemas de ensino, mas criando, na prática, problemas sérios com os entes federativos por força da inflexibilidade do texto legal que admite um desenho de difícil cumprimento, especialmente nos municípios onde os salários de professores estão acima do salário mínimo. Desse modo, a responsabilidade maior não só passou a caber a estados e municípios como também a tarefa alfabetizadora a professores da própria rede agraciados com uma bolsa de valor muito pouco atraente para quem já tem estado fazendo regimes de

“dobra” ou de duas matrículas em redes públicas. Também foi au-mentada a quantidade de turmas em regiões com baixa densidade populacional e em comunidades populares de periferias urbanas, chegando, em 2007, a um desenho de prioridades para áreas com mais de 30% de analfabetismo, como o Nordeste e a região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

Um sistema integrado de monitoramento e avaliação do Progra-ma foi implantado em sequência ao cadastramento de alfabetiza-dores e alunos, cujas identidades passaram a constituir o perfil das pessoas atendidas, antes consideradas apenas números por todos os programas de massa anteriormente desenvolvidos. Foram ainda ofe-recidas maiores oportunidades de continuidade da escolarização de jovens e adultos, a partir da transformação do Programa Recomeço em Fazendo Escola, abrindo a possibilidade de apoio à EJA para to-dos os municípios e estados e não apenas para as áreas situadas no âmbito do Projeto Alvorada, voltado para municípios com IDH até 0,5. No entanto, observa-se não exatamente uma inclusão dos recém-alfabetizados em classes do ensino regular já pelas idades superiores às postuladas para o atendimento obrigatório no Ensino Fundamen-tal, mas a (re)implantação de classes paralelas ainda na tradição do anterior ensino supletivo e pelo frequente descompasso das propos-tas curriculares das escolas com o público que recebem.

Agenda Territorial da EJA

Desenvolvida mais recentemente, a Agenda Territorial de Desenvol-vimento Integrado de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos tem o objetivo de firmar um pacto social para melhorar e fortalecer

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esta modalidade educativa. A proposta é reunir periodicamente re-presentantes de diversos segmentos da sociedade de cada estado bra-sileiro para trabalhar em conjunto seguindo a filosofia do compro-misso assumido pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). A intenção é estabelecer uma agenda de atividades para cada ano, em que cada estado trace metas para a Educação de Jovens e Adultos.

As ações das agendas estaduais comprometem os seguintes ato-res: em plano nacional, a Comissão Nacional de Alfabetização e Edu-cação de Jovens e Adultos, o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvi-mento de Educação) e a SECAD, que é responsável por acompanhar a implementação dos trabalhos em cada localidade e, em plano esta-dual, as secretarias de educação. Em cada estado, devem ser forma-dos comitês encarregados dos trabalhos técnicos e comissões que reúnam representantes das diversas associações e entidades que trabalham com a Educação de Jovens e Adultos.

Programa Nacional do Livro Didático para Jovens e Adultos

A SECAD deu continuidade ao Projeto Leituração, criado em 2003 pela então Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetis-mo, retomando os projetos Agentes de Leitura e Ler também é uma paixão, ambos apoiados pela UNESCO. Estas ações buscavam imple-mentar uma política de acesso à leitura para os recém-alfabetizados pelo Programa Brasil Alfabetizado, uma vez que muitos não conti-nuam seus estudos na EJA, perdendo suas habilidades de escrita e leitura ao longo do tempo. A partir daí, foi formulada uma série de estratégias, incluindo: diagnóstico do perfil de alfabetizados/alfa-betizandos assim como de alfabetizadores, mapeamento de espaços de leitura, articulação e criação de redes de acesso e disponibilidade entre as três esferas de governo, seleção de publicações e concurso de novos textos específicos para jovens e adultos neo leitores, e ain-da a distribuição das publicações por agentes de leitura.

Nesse sentido, a SECAD vem promovendo o Concurso Literatu-ra para Todos, que visa favorecer o acesso de neo leitores a obras literárias de qualidade e, em especial, contribuir para a formação de uma comunidade leitora capaz de compreender a função de ser e estar no mundo sem desprezar ou minimizar a importância de ou-

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tros bens culturais e de comunicação social encontrados na socieda-de. Foram realizadas três edições do concurso (2007, 2008 e 2009) com os candidatos concorrendo nas categorias prosa (conto, novela ou crônica), poesia, texto de tradição oral (em prosa ou em verso), perfil biográfico e dramaturgia. Na última edição, concorreram tam-bém autores dos países africanos de língua portuguesa (Angola, Ca-bo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), que terão uma obra selecionada em cada categoria. As obras vencedoras são publicadas e distribuídas às entidades parceiras do Programa Brasil Alfabetizado, às escolas públicas que oferecem a modalidade EJA, às universidades da Rede de Formação de Alfabetização de Jo-vens e Adultos, aos núcleos de EJA das instituições de Ensino Supe-rior e às unidades prisionais.

No Ministério da Justiça/Representação da Unesco no Brasil/ MEC-SECAD

Educação nas Prisões é um programa relativamente recente, pro-movido pela UNESCO para os países da América Latina. Além de dois seminários para definição do programa realizados em 2003 e 2004, é pequena a produção de pesquisas a respeito ou de avaliação das ações realizadas. No entanto, a tarefa apresenta-se em grandes dimensões: segundo o Censo Penitenciário Nacional (Brasil, 2008), o Brasil tem atualmente 423 mil pessoas cumprindo pena de encar-ceramento, dos quais, mais de 70% não possuem o Ensino Funda-mental completo.

Em sua execução prevê-se que cada estado elabore projeto espe-cífico contemplando as diferentes dimensões da educação: escolari-zação, cultura, esporte, e, particularmente, a formação profissional. Esses projetos devem apresentar, também, currículos próprios, con-siderando o tempo e o espaço dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos inseridos nesse contexto e buscando equacionar os desafios que serão enfrentados por eles na sua reintegração social.

É um programa sem dúvida importante, mas que apresenta de-safios ainda não bem equacionados, tanto pelo Ministério da Justiça quanto pelo Ministério da Educação. A parceria com a UNESCO tem permitido o conhecimento de experiências realizadas em outros pa-

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íses e o intercâmbio com especialistas, mas ainda pouco tem chega-do efetivamente às prisões.8

UMA PAUTA PARA A POLÍTICA PÚBLICA DE EJA, DEFENDIDA PELOS FÓRUNS DE EJA

• Ampliação do conceito de alfabetização para o de letramen-to, considerando o problema da cultura local, que não exige a prática da alfabetização ou do letramento e a falta de qua-lidade da escola pública, que fabrica ”analfabetos funcionais”.

• Articulação efetiva entre os programas de alfabetização/le-tramento e o Ensino Fundamental com a inserção da modali-dade EJA nos sistemas de ensino, superando o paradigma do ensino supletivo.

• Revisão do financiamento da educação pública e da política dos fundos, em particular para a EJA.

• Manutenção do incentivo à produção, disseminação e avalia-ção de materiais didáticos apropriados e suficientes para to-dos os jovens e adultos.

• Em especial e prioritariamente, formação inicial e continuada dos formadores de jovens e adultos.

Entre os problemas e política não resolvidos para a Educação de Jovens e Adultos , destacam-se:

a) A questão das idades mínimas para o ingresso e conclusão da Educação de Jovens e Adultos e para a realização de exa-mes supletivos, um tema basicamente normativo. Essas idades foram fixadas pela Lei de Diretrizes e Bases em quinze anos para o Ensino Fundamental e dezoito para o Ensino Médio. Po-rém, esses limites têm sido questionados, de um lado, pelo te-mor da certificação fácil por “cursinhos” comerciais, a maioria deles de duvidosa seriedade e, por outro, pela “expulsão” dos maiores de quatorze anos das escolas de Ensino Fundamental. Essa prática foi introduzida a partir da Lei n. 5692/71 e tem

8 Uma referência interessante é o artigo de Rangel (2007).

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se agravado em alguns estados, provocando a incorporação de adolescentes nas classes de Educação de Jovens e Adultos ou do ensino regular noturno, nas quais a maioria do alunado é composta de jovens com mais de dezoito anos, adultos e idosos.

b) Articulação da Educação de Jovens e Adultos com o Ensino Médio e a formação profissional. Além da tradicional separa-ção entre o educativo stricto sensu no MEC e a formação pro-fissional para os trabalhadores no MTE (inclusive no caso do Sistema S), existe um problema teórico jamais equacionado: a relação entre a formação geral, educativa e a formação especí-fica, profissional. Os educadores progressistas defenderam na Constituinte de 1987-1988, e defendem até hoje, a formação integral, omnilateral, não contemplada até então, nem nos sis-temas de ensino, nem nos programas da EJA ou de formação profissional, debate enfrentado permanentemente pelos cole-gas vinculados aos grupos de trabalho e formação profissional.

c) Revisão da proposta do ENCCEJA (Exame Nacional para Certificação da Competência de Jovens e Adultos), proposto em 2002 e redefinido em 2006 pelo INEP, com base numa matriz de competências e habilidades calcadas exclusivamen-te no ensino escolar tradicional. Sua realização é implemen-tada por meio de convênios do INEP com as secretarias de educação dos estados e municípios que recebem material di-dático e apoio financeiro para realizar os exames. O ENCCEJA configura-se como uma retomada dos antigos ”exames suple-tivos” e representa, ao mesmo tempo, um retrocesso nas po-líticas governamentais e um total desconhecimento de todas as experiências inovadoras que são feitas na EJA, sobretudo influenciadas pelo paradigma da educação popular.

d) Discussão sobre o problema de diminuição das matrículas na EJA: o Censo Escolar realizado pelo INEP em 2007, indicou uma queda de quinhentas mil matriculas em relação a 2006, obser-vada em todas as regiões. Essa queda pode estar revelando uma

“competição” dos programas focais e de curta duração,como o PROJOVEM, sobretudo pela oferta da bolsa de estudos com ações

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regulares da modalidade EJA. Essa discussão envolve ainda a re-visão do percentual de 0,8, previsto no FUNDEB para financia-mento das matrículas da EJA, quando é atribuído 1,0 às matrícu-las nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental urbano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SAVIANI, Dermeval. Da nova LDB ao Fundeb: por uma outra política de educa-ção. Campinas: Autores Associados, 2007.

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SOARES, Leôncio (org.). Formação de educadores de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

SOARES, Leôncio. Educação de jovens e adultos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

SPOSITO, MARÍLIA (coord). Espaços públicos e tempos juvenis: um estudo de ações do poder público em regiões de cidades metropolitanas brasileiras. São Paulo: Global, Ação Educativa, Fapesp, 2007.

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SOBRE O AUTOR

Osmar Fávero é Doutor pela PUC-SP. Na condição de professor titular aposen-tado da Faculdade de Educação da UFF, atua no Programa de Pós-Graduação em Educação desta Universidade, no qual se vincula ao Grupo de Pesquisa Juventude e Educação de Jovens e Adultos.

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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E AS HERANÇAS DA DÉCADA DE 1990

Todos aqueles ligados a políticas públicas do setor educativo re-conhecem o impacto da proposta formulada em 1990, em Jomtien (Tailândia) na Conferência Educação para Todos. Lá foram definidas importantes diretrizes e estratégias para que as nações, em cola-boração, pudessem superar o desolador quadro mundial no que se referia à Educação Básica. Na época, havia cem milhões de crianças fora da escola e novecentos e sessenta milhões de jovens e adultos analfabetos em todo o mundo. Então, a Conferência, tendo em vista a educação como arma na luta contra a pobreza, estabeleceu uma perspectiva de educação ao valorizar as chamadas NEBA’s (Neces-sidades Básicas de Aprendizagem). Essas, apesar de encerrarem um conceito ambíguo e que depende do contexto onde é aplicado compreenderiam, segundo a conferência, tudo o que pode se apren-der para a sobrevivência no cultivo das capacidades pessoais que levam cada indivíduo à vida e trabalho dignos, participação cidadã e melhora na qualidade de vida, bem como à continuidade da apren-dizagem por toda sua existência. Para desenvolvê-las, os sistemas nacionais de ensino deveriam ampliar sua visão de educação e me-lhorar as condições de aprendizagem e de acesso ao conhecimento de todos: crianças, jovens e adultos. As ações deveriam ter em vista, sobretudo, os grupos desamparados, valorizando a aprendizagem no lugar do conteúdo, além de dar condições materiais para que es-sa se desenvolvesse em ambientes saudáveis. Para tudo isso, a coo-peração internacional deveria ser fator imprescindível. Com a ajuda dos organismos multilaterais e das economias desenvolvidas, os países em desenvolvimento poderiam aproximar-se cada vez mais das metas de Jomtien e tornarem seus sistemas educacionais aptos

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o suficiente para que os indicativos de EFA/EPT (Education for All/Educação para Todos) fossem elevados.

No entanto, ao longo dos anos que seguiram o encontro de Jomtien, como nos diz claramente Rosa María Torres (2001), as propostas de Educação para Todos “encolheram”. Na busca dos indicadores, nações em desenvolvimento se submeteram a parâmetros internacionais de órgãos financiadores, como os do Banco Mundial, buscando atingir índices no sentido quantitativo para demonstrar que os objetivos de Jomtien estavam sendo cumpridos em seu território. Uma das conse-quências desse processo foi a transformação do item educação para todos em educação para as crianças, como nos diz Torres, deixando em segundo plano os jovens e adultos. As metas de universalização do Ensino Fundamental, de diminuição da distorção idade/série e eliminação do abandono eram vistas como passos para a Educação de Jovens e Adultos... do futuro!!! Evidentemente, tendo em vista a si-tuação de muitos países em desenvolvimento, tais como os da Amé-rica Latina, cujos sistemas educacionais apresentavam problemas de eficiência, esta era uma estratégia de melhora dentro do contexto educacional. Ainda mais que com a globalização e a reestruturação do Estado, a pressão no sentido de otimizar o montante destinado ao setor educativo aumentava, uma vez que não se contava realmente com a tão sonhada colaboração internacional. Mais uma vez, retor-nando a Rosa María Torres, essa responsabilização do país foi um dos encolhimentos do Educação para Todos.

Na América Latina, as reformas dos sistemas educacionais na década de noventa objetivaram a educação fundamental, além da reestruturação das normas e leis de nosso sistema de ensino e sua descentralização, que junto à criação do FUNDEF ajudaram os mu-nicípios brasileiros a se voltarem para o Ensino Fundamental, mais precisamente para atender a meninos e meninas até quatorze anos, que deveriam permanecer na escola. Assim, dentro do quadro que levou as intenções do Educação para Todos a estarem mais volta-das para seus índices que para o desenvolvimento pleno do que o documento dizia, uma análise geral do sistema educacional brasi-leiro demonstra sucesso. Esse se manifestou, primeiramente, nos percentuais de cobertura da população em idade escolar que pro-

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A educação de jovens e as heranças da década de 1990

grediram. Levando-se em conta que a reforma do sistema escolar brasileiro ocorreu em 1996, segundo dados do INEP, na publicação Geografia da Educação Brasileira (2001), o Ensino Básico alcançou 96,4% das crianças entre sete e quatorze anos, sendo que 91% das crianças estudavam na rede pública. Números importantes também são apresentados na relação de alunos por turma. Para a Educação Infantil havia uma média de 20,6 alunos por turma, para o funda-mental 28,3 e para o nível médio 37,6. Esses, tendo carga horária de cerca de 5,1 horas para a Educação Infantil e 4,3 para o Ensino Fun-damental regular e o Ensino Médio. Essa carga horária tem se apre-sentado praticamente a mesma desde 1996, o que demonstra certa estabilidade no funcionamento das escolas brasileiras (INEP, 2007).

No Ensino Fundamental, a repetência nacional é de 24% (UNESCO, 2010). Segundo o INEP (opus cit., 2001), esse número em 2000 era de 21,7%, não diferindo muito da pesquisa citada. Já no Ensino Médio vem a ser de 18,6%. Além disso, segundo o INEP, a taxa de abandono era de 12% no Ensino Fundamental e 16,7 % no Ensino Médio. So-mam-se a isto as distorções na idade média para cada série. Estes ín-dices são heranças de um sistema de Ensino Fundamental implantado nos anos noventa e que não garantiu sua permanência. Assim, caso as políticas para a Educação de Jovens e Adultos nos anos seguintes fos-sem consideradas como uma forma de alterar estas distorções atra-vés da escola, ela deveria ampliar-se, sendo dedicada à recuperação daqueles que abandonaram o estudo na infância e adolescência. Além de, evidentemente, tentar eliminar os problemas de continuidade e permanência no Ensino Fundamental que existem ainda hoje quan-do já entramos na segunda década do século XXI. Caso nos voltemos para índices que visam apontar a qualidade do sistema de ensino, ain-da que de forma quantitativa, a análise de 2010 sobre os percentuais de repetência e abandono coloca os brasileiros em último lugar na América Latina1, de acordo com o Relatório da UNESCO de Índices de Educação para Todos divulgado em 2010 (UNESCO, 2010).

1 Devemos lembrar que isto também se deve ao fato de termos ampliado o sistema edu-cativo em direção às camadas das classes pobres. Países de nosso continente que ain-da não contam com um sistema educativo universal têm menor índice de repetência e abandono, justamente por não conviverem com todos os problemas oriundos da pobreza dentro de suas escolas.

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Neste sentido, devemos observar que, segundo dados do IPEA, em 2007 a frequência escolar de pessoas entre quinze e dezessete anos no 2º grau ou com mais de oito anos de estudo era de somen-te 52,2%. Porém, verificam-se progressos se considerarmos o mes-mo índice dez anos antes, quando era de 28%. Entretanto, em 2007 tais resultados relacionam-se com as taxas de frequência escolar dos anos anteriores, justamente anos em que se considerou a uni-versalização do ensino. Mesmo com a entrada de mais de 90% das crianças na escola, a partir de 1998, a evasão foi fragrante, apesar do aumento percentual de pessoas com mais de oito anos de estudo. O que é demonstrado pelos dados abaixo:

Ano Frequência escolar - pessoas 7 a 14 anos

Frequência escolar - pessoas 15 a 17 anos

Frequência escolar - pessoas 15 a 17 anos - frequentando 2º grau ou

com mais de 8 anos de estudo2007 96,88885 82,22256 52,175012006 95,84631 82,21111 50,583792005 95,28166 81,7633 49,014982004 94,73885 81,94033 47,752422003 94,73855 82,41555 46,074182002 94,55139 81,58593 42,678722001 93,9479 81,22302 39,559751999 93,02193 78,6914 34,934511998 91,52555 76,68194 31,666891997 89,06957 73,49211 28,088671996 87,10252 69,73265 26,068661995 85,90062 66,90167 23,83531

Tabela extraída do IPEADATA em 25 de maio de 2010 (http://www.ipeadata.gov.br)

Estes dados devem ser considerados à luz das necessidades de ampliação da cobertura na entrada do Ensino Básico na década de noventa, sem sólidas políticas para conter a evasão. Acima verifica-se que a metade de nossa população de jovens não chegou aos oi-to anos de estudos até 2007. É relevante também colocar que, no mesmo ano, havia 3% de analfabetos entre dez e quatorze anos e 2,2% entre quatrorze e vinte e quatro anos. O mesmo é confirmado no relatório da UNESCO de 2010, já citado. É relevante notar que o

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número percentual de jovens com mais de oito anos de ensino ou no nível médio dobrou em dez anos, mas isto, comparado às preten-sões de Jomtien, deixa claro que temos muitos caminhos a trilhar para atingir suas metas (mesmo as quantitativas).

A problemática do jovem coloca-se neste ponto. O deslocamen-to dos princípios de Jomtien em direção a meninos e meninas fez o Brasil direcionar seus esforços para os índices, deixando em se-gundo plano a qualidade em prol da quantidade. Neste sentido, não houve sérias lacunas para políticas contra a evasão ou repetência, apesar dos esforços para aprovação automática. Também essa apro-vação, quando ocorrida, não trouxe consigo programas que supris-sem as deficiências daqueles com déficits durante sua formação (em momentos consistentes de acompanhamento individual ou em gru-pos), fazendo-os terminar os oito anos obrigatórios do Ensino Fun-damental sem condições de ingresso no Ensino Médio. Ou, em mui-tos casos, quando ingressando, logo se evadiam dadas as lacunas do Ensino Fundamental. Assim, grande parte de nossas políticas da educação priorizando as crianças na década de noventa não resul-tou em jovens que tivessem suprido suas NEBA’s em uma infância assistida pela escola. Muitos desses jovens que lograram terminar os oito anos de estudos do Ensino Fundamental são oriundos de um sistema em adaptação, com promoções automáticas para diminuir índices de repetência, classes de aceleração para compatibilizar sua idade com a série cursada etc.

Hoje, não só o Brasil, mas outros países convivem com a realida-de de uma primeira geração de jovens saídos de sistemas de ensino que procuraram seguir cartilhas pós-Jomtien rumo a uma infância assistida pela escolaridade básica. Esses, porém, necessitam urgen-temente de modelos formativos através dos quais possam dar con-tinuidade a seus estudos e desenvolverem sua capacidade de apren-dizagem, preparando-se para um país com tantos problemas sociais. Devemos colocar aqui que, se em 1990 houve a Conferência de Edu-cação para Todos, somente em 1996 o Brasil iniciou a aplicação das reformas que vinham sendo projetadas para seu sistema de ensino, no Plano Nacional de Educação, com a nova LDB e os PCN’s. Por-tanto, uma criança que em 1997 entrava com sete anos no primeiro

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ano de escolaridade e passou seus oito anos2 obrigatórios na escola sem repetir nenhum ano, estaria terminando o Ensino Fundamen-tal em 2004, com quatorze anos, esperando que o Ensino Médio a recebesse e que outros espaços de aprendizagem, além da escola, pudessem acolhê-la. Pela tabela acima, podemos notar que somente 47% de nossos jovens conseguiam o objetivo de finalizar a formação fundamental naquele ano.

Por outro lado, em nosso país, durante esse período, a política de educação dos jovens não foi prioridade, pois nos preocupávamos em vivenciar de forma prática o que estava traçado, principalmente para o Ensino Fundamental. Na realidade, a educação dos jovens e adultos continuou a ser vista sim como suplência e alfabetização. A EJA, em sua função reparadora (de acordo com o parecer da EJA de Jamil Curie), ou seja, dar oportunidade aos que não tinham acesso à escola fundamental em sua idade apropriada, foi o foco de aten-ção do Estado brasileiro neste processo. Principalmente no início do primeiro governo Luiz Inácio da Silva a luta contra o analfabetismo tomou espaço. Mas isso também representou sintomas do quadro educativo internacional pós-Jomtien. Em 1997, a UNESCO promoveu a V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, em Ham-burgo, da qual resultou a chamada Declaração de Hamburgo. Nessa conferência ficou claro que as demandas estabelecidas em 1990 não estavam atingindo os adultos. No entanto, esses eram a chave para que uma sociedade melhor pudesse se erguer, sobretudo no que tan-ge ao desenvolvimento sustentável. Em Hamburgo a postura da Edu-cação de Adultos foi fazer frente, mais uma vez, à pobreza, e observar no adulto a chave para a criação de novos conhecimentos que pudes-sem dar suporte a países que necessitassem recriar suas economias em tempos de rápida transformação tecnológica. Porém, a visão da EJA em Hamburgo foi ampliada em uma série de características que a responsabilizavam por uma construção sólida da continuidade educacional por toda a vida e não somente suplência.

No entanto, a declaração deixa claro que os Estados não teriam condições de arcar com uma educação ao longo de toda a vida, ten-

2 Lembrando que a partir de 2008 passamos para nove anos de educação obrigatória, sendo que a idade de entrada da criança na escola é de seis anos.

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do em vista o que se chamava na época de sua “nova função”, ou seja, o Estado gestor e encolhido. Logicamente, nos últimos anos da pri-meira década do século XXI, esta noção de Estado esvaziado tem si-do substituída pelo fortalecimento das estruturas estatais no mun-do, sobretudo devido às múltiplas crises econômicas. Porém, hoje somos devedores desta percepção e de algumas políticas oriundas da época. Como tais, ainda que se defendesse o papel do Estado co-mo principal ator organizativo da Educação de Todos, o documento reconhecia que a Educação de Jovens e Adultos só será possível ten-do em vista parcerias com os diversos setores sociais. Em termos de financiamento, indiretamente o documento de Hamburgo reconhe-cia que será impossível, para este novo modelo de Estado, arcar com os índices da EFA no quadro de uma educação por toda a vida.

No caso brasileiro, como demonstra o relatório de 2003 da UNESCO sobre a EJA, ao longo dos anos noventa, o gasto público com esta modalidade da educação foi reduzido e representava me-nos de 1% do total da despesa das três esferas de poder com edu-cação e cultura (UNESCO, 2003). Entre 1994 e 1998, a EJA recebeu menos de 0,5% do gasto federal total com educação. Somente em 2000 este quadro reverteu-se e continuou crescendo até 2003, com o inicio de programas como o Recomeço e Alfabetização Solidária. Segundo Abrahão:

O esforço público na área de educação pode ser compreendido segundo uma ordem de importância de gasto. Inicialmente, en-contra-se o Ensino Fundamental, para qual foi destinada grande parte dos recursos, cerca de 60% e que apresentou crescimen-to de quase 0,22 pontos porcentuais (p.p.) do PIB, refletindo as prioridades que lhe foram atribuídas pela política pública de-senvolvida no período. Em seguida, a educação superior, que ab-sorveu 20% dos gastos na área e que também teve crescimento (0,11 p.p. do PIB). No caso da educação infantil, percebeu-se um quadro de deslocamento que apresentou sua perda - passou de 11% para 9% do gasto em educação -, o que significou uma per-da de recursos (0,04 p.p. do PIB). Enquanto isso, o Ensino Médio vê crescer sua importância, de 9% para 11%, além da ampliação dos recursos (0,11 p.p. do PIB). (ABRAHÃO, 2005)

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Ou seja, a EJA - caso se queira compreendê-la como uma moda-lidade específica dos níveis de ensino que não era foco do FUNDEF3

- não é sequer citada, dada a lógica de importância atribuída aos ní-veis pelo autor, que estudou o gasto público com educação via dados entre 1998 e 2002 (idem).

Certamente, na época, houve impactos perante as decisões toma-das na Conferência de Dakar, ocorrida em 2000, que tinha como obje-tivo verificar os relatórios dos países sobre as metas da EFA, dez anos depois de Jomtien. Lá, se concluiu que os planos traçados quanto à Educação de Jovens e Adultos analfabetos foram fracassados (apesar de se ter verificado o relativo sucesso do crescimento do Ensino Fun-damental entre as crianças na região da América Latina e Caribe).

Entretanto, devemos sublinhar que, no final do século passado, os programas apontados acima, além de outros realizados em níveis municipal e estadual, só foram impulsionados por compreenderem, em seu projeto, a participação da iniciativa privada e da sociedade civil. Ainda que se tenha verificado o crescimento do gasto do Esta-do, o percentual de analfabetos de sua população não teria passado de 20,1 % em 1991 e para 12,9 % em 2000, sem a participação de empresas, voluntários, instituições religiosas e associações de mo-radores. Da mesma forma, o percentual de pessoas com menos de oito anos de escolaridade passou de 72,1% em 1991, para 63,7% em 2000. No entanto, mesmo com esta perspectiva de apoio à Educação de Jovens e Adultos, os índices de alfabetização dão continuidade a uma lógica quantitativa para a construção da imagem educativa do Brasil frente ao quadro mundial, desta vez contando com apoio de capitais privados ao lado de públicos. No entanto, esta visão da EJA não atende a uma educação por toda a vida, tampouco às necessida-des de nossos jovens que deixam o Ensino Fundamental, ou mesmo aqueles que deixam o Ensino Médio tendo em vista a universidade ou o mercado de trabalho. Neste sentido, devido às próprias debi-lidades da EJA no Brasil e a derrota de nosso país contra o analfa-

3 Espera-se hoje, já se passando para a segunda década do século XXI que o FUNDEB provoque a isonomia entre o financiamento da EJA e do Ensino Fundamental que atende à criança brasileira. Quanto ao Ensino Médio, coloca-se também que foi desestimulado pela política do FUNDEF, dada a priorização deste fundo para o Ensino Fundamental e os municípios.

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betismo, a imagem da entrada de jovens na EJA não é vista natural-mente. Uma política na qual o jovem evadido ou com distorção da idade apropriada venha a completar seus estudos nesta modalidade, parece destoar dos programas até agora empreendidos. Do mesmo modo, o exíguo financiamento não é capaz de dar conta de todos aqueles na faixa etária de quinze anos em diante, com menos de oito anos de estudos. A própria debilidade da EJA nas escolas de nosso país e como ela é percebida, não nos permite dizer que suas propos-tas poderiam ser indutoras de novas políticas para que a juventude complete seus anos de estudo. Em todo caso, é importante dizer que jovens passaram a utilizar a EJA, modificando parcialmente seu per-fil nos dias atuais.

A Organização das Nações Unida (ONU) determina a juventude entre os quinze e vinte e quatro anos. No Brasil, em 2000, 34 mi-lhões correspondiam a esta faixa etária, ou seja, um quinto de nossa população. Segundo o Censo Escolar de 2001, o INEP divulgou que:

A população com mais de quinze anos de idade, que abandonou ou não teve a oportunidade de frequentar a escola, está cada vez mais presente no sistema de ensino. A educação de jovens e adultos (antigo supletivo), que atende grande parte desses estu-dantes, teve um crescimento de 12% em 2001, com o retorno de cerca de quarocentas e dez mil pessoas às salas de aula.

Na educação de jovens e adultos de Ensino Médio, a matrícula cresceu 14,6%, passando de 873.224 para 1.000.769. Esse au-mento ocorreu em todas as regiões... .

Nas classes de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental do supletivo, a matrícula teve um salto de 37,4%. Nos últimos quatro anos, o crescimento médio anual era de 3,8%. Nas turmas de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental, o Censo mostrou um aumento na matrícula de 5,2%, índice acima da média anual no período an-terior, que era de 4,9%.

No Nordeste, a expansão nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental da educação de jovens e adultos chegou a 79%. Na região, o número de alunos nessa modalidade educacional subiu de 342 mil para 612 mil. Nas séries finais, o crescimento maior ocorreu na Região Norte, 25,2%, seguido pela Nordeste, 11,6%.

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Nas demais regiões, a taxa de expansão foi pequena ou negativa. Da 1ª a 4ª série, a Região Sudeste teve um aumento de 5,4% e a Sul apresentou índice negativo de 21,2%. Na matrícula das sé-ries seguintes, o Sul tem crescimento de 1,6% e o Sudeste, queda de 1,5% (INEP, 2001).

Ao mesmo tempo, naquele mesmo ano, acumulava-se o número de jovens entre quinze e dezessete anos fora da escola, já que aque-les no Ensino Médio ou com mais de oito anos de estudo correspon-diam a 39,6% da população na idade referida (vide tabela acima). Ou seja, o crescimento do atendimento não correspondia à deman-da existente, havendo um vácuo para a construção de uma política de introdução desses jovens no ensino escolar, embora ocorressem vários programas para atendê-los, tal como nos explicitam Di Piero e Graciano (2003, p.17), na forma de programas.

Na segunda metade dos anos 90, a participação do governo fe-deral na escolarização de jovens e adultos caracterizou-se por intervenções focalizadas ou de caráter compensatório, destina-das a atender prioritariamente as regiões mais pobres do País. Entre essas iniciativas ,destacam-se o Programa Alfabetização Solidária, o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (Planfor), o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e o Programa Recomeço, que analisaremos no tópico seguinte. O governo federal, por meio do Ministério da Educação, também reteve para si funções de regulação e controle das ações descentralizadas de educação de jovens e adultos, mediante a fixação de diretrizes e referenciais curriculares nacionais, a ins-tituição de exames nacionais para certificação, bem como pela criação de programas de formação de educadores (...). O vácuo deixado pela ausência de políticas públicas nacionais de escola-rização de jovens e adultos tendeu a ser ocupado por iniciativas locais, em geral concretizadas por meio de parcerias entre go-vernos municipais e organizações da sociedade civil.

No que tange ao quadro internacional, no mês de setembro do ano de 2004, entre os dias oito e onze, em Genebra, ocorreu a 47a. Conferência Internacional de Educação, cujo tema é Uma educação de qualidade para todos os jovens: Desafios, tendência e prioridades. Estavam presentes cento e trinta e sete estados membros, quatorze organizações intragovernamentais e vinte e uma ONG’s. Essa confe-

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rência colocava a questão emergencial do tema da juventude e abor-dava que se medidas educativas não fossem tomadas, no sentido de reconhecer a importância desta faixa etária nos próximos anos, as possibilidades dos países em desenvolvimento se defenderem dos males da globalização estariam cada vez menores.

Hoje, essa faixa etária compreende mais de 100 milhões de pes-soas e, em 2020, 87 % dos jovens viverão em países em desenvol-vimento. Metade da população mundial tem menos de 25 anos. Da-do os compromissos de Dakar, a UNESCO compreendia que houve sucesso na universalização do Ensino Básico em termos mundiais, mas que era urgente se tratar da faixa etária que se seguia à infância. Como as idades de Educação Fundamental nos sistemas educacio-nais pelo mundo são diferentes, a faixa etária a qual se dedicou o congresso foi entre doze e dezoito/vinte anos.

No caso da conferência de 2004, seu relatório (UNESCO, 2004) apontou alguns itens que foram expostos como problemas relevan-tes da política educacional para a juventude. Primeiramente, lem-brava que 77,5 % dos adolescentes do mundo estavam no Ensino Médio, mas que este número escondia as diferenças regionais entre norte e sul. No caso do sul, a conferência expôs que se verificam sistemas educativos insuficientemente adaptados às necessidades dos jovens, sendo que alguns transferiam conceitos que davam cer-to em países desenvolvidos, o que acaba por construir experiências fracassadas e distorcidas em contextos específicos. Além disso, hou-ve o aumento da exclusão de algumas populações, tendo em vista o crescimento da pobreza, e consequente aumento do abandono dos estudos devido à busca dos jovens por formas de sustento pa-ra si e sua família. Ao mesmo tempo, observa-se um Estado cada vez mais incapaz de dar conta do atendimento, o que é reconhe-cido indiretamente no documento, ao se colocar a necessidade de estratégias que tornem possíveis as parcerias para que a educação dos jovens se desenvolva. Todos estes aspectos se aplicavam ao que ocorria no Brasil.

Nosso país, como signatário do documento, demonstrava-se consciente da temática abordada. No que tange ao Ensino Médio, considerado uma prioridade em nossa região, apesar dos números

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de crescimento apontados pelo INEP, estávamos longe de atingir as metas de universalidade. Embora se tenha ampliado sua cobertu-ra, sobretudo no campo, os problemas de abandono e carência de classes noturnas são, até 2010, muito grandes. Em 2000, 15,9 mi-lhões de jovens cursavam algum nível formal de Educação Básica ou superior. Ou seja, menos da metade. Na faixa etária entre quinze e dezessete anos, 8,3 milhões (77,7%) estavam na sala de aula e, en-tre dezoito e vinte e quatro anos,7,6 milhões (32,7%). Percebe-se uma drástica redução da frequência aos espaços formais de ensi-no depois dos dezoito anos. Para 2008, com aproximadamente 10 milhões de pessoas entre quinze e dezessete anos, temos 82% que frequentam alguma modalidade de ensino, porém somente 55% terminaram o Ensino Fundamental (Sampaio, 2009).

Voltando a 2004, quando deveríamos assistir uma geração in-gressando no Ensino Médio, segundo indicativo do INEP (INEP, 2004), vemos que, de 1999 a 2003, o número de alunos no Ensino Médio havia crescido em 87% (de 89,6 mil para 167,5 mil) e a matrí-cula no Ensino Médio noturno diminuído, pois o número de alunos que estudam à noite, em relação ao total, passou de 54,5%, em 1999 para 43,8%, em 2003. Nos cinco anos analisados naquele período, o índice de matrícula no noturno da rede privada caiu de 21,5% para 9,5% e da rede pública, de 60,7% para 48,6%. No entanto, entre os 4,8 milhões de alunos do Ensino Médio que estudavam no período diurno, 350 mil deixaram a escola em 2002. No período noturno, esse número é mais que o dobro: 785 mil estudantes abandonaram os estudos, de um total de 4,3 milhões de jovens. Um milhão e cem mil abandoaram seus estudos!!!! Estes valores demonstram o que foi apontado pelo documento de Genebra, ou seja, a incapacidade de nosso sistema educativo em absorver os jovens. Ao mesmo tem-po, o abandono expõe o fato de que nosso país não teria políticas de juventude para manter este jovem no ensino formal que daria bases para a educação por toda a vida (pressuposta na Declaração de Hamburgo).

Na verdade, a inexistência de verbas dedicadas exclusivamente ao ensino de jovens faz com que nem mesmo índices quantitativos possam ser aumentados no que tange ao Ensino Médio. Tanto que,

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entre agosto de 2003 e maio de 2004, as pesquisas sobre a juven-tude brasileira foram desenvolvidas por uma ONG, o Instituto de Cidadania, em parceria com o SEBRAE e outra ONG, chamada Ins-tituto Hospitalidade. O instituto tinha como objetivo dar bases à formulação de políticas públicas para o país. Suas conclusões estão em confluência com os parâmetros da Educação Para Todos e ates-tam que a educação dos jovens é essencial para o desenvolvimento sustentável. Nas recomendações propostas, o instituto coloca que é necessário recontextualizar o quadro da educação de jovens com temas transversais, flexibilização e interdisciplinaridade. Algo já mencionado em Hamburgo e Dakar. No entanto, estabelece que a municipalização deve, realmente, ser um marco colaborativo en-tre os entes da federação, no sentido de atender a todos os níveis de ensino e assegurar a continuidade do ensino juvenil através do apoio de programas externos à escola que forneçam bases financei-ras para que os jovens tenham autonomia econômica. Logicamente, esses são programas financiados pelo capital privado e pela ação da sociedade civil, ou seja, são propostas voltadas para a construção de programas e não para políticas escolares estáveis, por pelo menos alguns anos.

Neste sentido, continua uma política de programas paraescola-res (tais como o PROJOVEM e o PROEJA, por exemplo) que não se constituem numa política pública que possa atrair os jovens para a formação regular. Infelizmente, a enormidade do número de jovens fora da escola não tornará possível seu atendimento exclusivamente por programas. Apesar de haver um clamor de que os jovens com desvio idade/série estão inchando as classes da EJA nas escolas, o número desses é irrisório frente aos que estão sem frequentar algu-ma atividade formativa. Na idade relativa ao Ensino Médio (15 a 17 anos), são 18% dos brasileiros fora da escola ou programas. A taxa de escolarização líquida do Ensino Médio, em 2007, foi de 48 %4 (Sampaio, 2009). As prospecções não são muito animadoras, segun-do o quadro abaixo, elaborado em 2006 e que representa a proje-ção do fluxo de alunos no Brasil, se mantiver constantes as taxas de transição de fluxo registradas até aquele ano.

4 A bruta foi de 82,6%, observando-se a distorção de idade dos formandos.

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Taxas de transição fixas (em relação aos valores de 2002-2003) - Brasil 2005-2017

Taxa Ano Fundamental Médio1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 1ª 2ª 3ª

PROM

OÇÃO

2005 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72006 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72007 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72008 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72009 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72010 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72011 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72012 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72013 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72014 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72015 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72016 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,72017 68,9 77,1 80,0 79,2 68,3 72,4 75,2 73,1 63,0 73,6 83,7

REPE

TÊNC

IA

2005 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92006 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92007 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92008 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92009 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92010 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92011 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92012 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92013 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92014 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92015 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92016 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,92017 30,1 19,8 15,9 13,6 23,6 17,9 16,6 15,1 25,5 17,7 11,9

EVAS

ÃO

2005 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42006 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42007 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42008 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42009 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42010 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42011 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42012 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42013 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42014 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42015 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42016 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,42017 1,0 3,1 4,1 7,2 8,1 9,7 8,2 11,8 11,5 8,7 4,4

Fonte: GOULART, SAMPAIO e NESPOLI, 2006, p.15.

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A educação de jovens e as heranças da década de 1990

Projeção de matrícula usando taxas fixas no tempo (em relação aos valores de 2002-2003) - Brasil 2005-2017

Ano Ensino FundamentalTotal 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª

2005 32.865.297 4.966.922 4.406.876 4.253.755 4.088.465 4.519.982 3.886.063 3.542.501 3.200.7332006 32.307.567 4.888.322 4.339.299 4.125.941 3.998.554 4.438.082 3.838.560 3.458.919 3.219.8902007 31.812.062 4.919.182 4.271.063 4.052.594 3.882.932 4.344.740 3.773.168 3.409.838 3.158.5452008 31.448.307 4.985.184 4.278.895 3.987.503 3.807.788 4.227.621 3.696.597 3.353.411 3.111.3082009 31.204.853 5.063.034 4.326.409 3.983.138 3.744.873 4.137.768 3.601.517 3.287.515 3.060.5992010 31.082.751 5.145.439 4.390.109 4.019.534 3.732.704 4.064.535 3.521.971 3.206.392 3.002.0672011 31.084.214 5.230.126 4.460.218 4.075.133 3.760.441 4.036.780 3.456.766 3.134.137 2.930.6132012 31.154.166 5.256.683 4.533.198 4.138.829 3.809.174 4.052.675 3.425.686 3.073.936 2.863.9852013 31.280.360 5.265.012 4.566.286 4.206.069 3.867.333 4.096.334 3.431.057 3.040.893 2.807.3762014 31.447.924 5.267.624 4.578.703 4.242.732 3.929.651 4.154.445 3.462.291 3.039.269 2.773.2092015 31.633.994 5.268.443 4.583.005 4.258.332 3.967.834 4.219.468 3.508.240 3.061.990 2.766.6822016 31.824.455 5.273.024 4.587.805 4.265.930 3.985.969 4.264.903 3.562.495 3.100.310 2.784.0192017 31.990.049 5.274.591 4.591.965 4.270.938 3.994.965 4.291.352 3.604.053 3.146.603 2.815.852

Ano Ensino MédioTotal 1ª 2ª 3ª

2005 9.116.321 3.660.811 2.984.313 2.471.1972006 8.970.818 3.531.433 2.900.414 2.538.9712007 8.797.007 3.510.948 2.801.817 2.484.2422008 8.631.310 3.456.932 2.770.754 2.403.6242009 8.505.660 3.404.817 2.730.307 2.370.5362010 8.376.047 3.350.487 2.689.386 2.336.1742011 8.237.632 3.289.379 2.646.951 2.301.3022012 8.081.319 3.216.214 2.599.873 2.265.2322013 7.913.253 3.143.539 2.544.181 2.225.5332014 7.745.074 3.078.899 2.487.245 2.178.9302015 7.599.990 3.034.170 2.435.264 2.130.5562016 7.504.734 3.017.652 2.398.580 2.088.5022017 7.461.402 3.024.908 2.380.837 2.055.657

Fonte: GOULART, SAMPAIO e NESPOLI, 2006, p.16.

Diante dos dados acima, colocamos a forte realidade de que as políticas para infância da década de noventa não chegaram sequer a sua proposta quantitativa, uma vez que o contingente de jovens para os quais o país deve construir uma política de educação (para nível médio ou EJA) pertence à geração que deveria ter passado dos 7 aos 14 anos na escola priorizada pelo Brasil como Ensino Funda-mental. Este artigo, de forma geral descritivo, se coloca no sentido de trazer à tona, a grande necessidade de propostas elaboradas no sentido de transcender os programas para a juventude fortalecen-

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do a EJA e o Ensino Médio (profissional ou não), de modo a garan-tir o direito ao Ensino Básico destes cidadãos. Os jovens, frutos de Jomtien (e dos desvios ocasionados pelas formas como os Estados compreenderam o que se indicou para a infância naquela conferên-cia) devem contar com políticas de Estado, para que daqui a dez anos não estejamos observando o mesmo quadro de Dakar - quan-to a alfabetização e escolarização de adultos, que também era uma prioridade na passagem do século passado para este, não fizeram frente às reformas dos ensinos fundamentais. Ou mesmo, para que não vivenciemos as prospecções pessimistas feitas em Genebra em 2004. Esperamos que os números acima abordados nos deem clare-za de que há grande desvios a serem enfrentados para que os jovens brasileiros e adultos do século XXI evitem a exclusão dos guetos oriundos do aprofundamento da pobreza. Esperamos que, pelo con-trário, através do direito realizado na educação, participem e impul-sionem o desenvolvimento social.

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Base de dados consultada diretamente: IPEADATA - www.ipeadata.gov.br/ (da-dos extraídos em maio de 2010).

SOBRE A AUTORA

Gabriela Rizo é doutora em Psicologia Social pela UERJ. Atua como docente do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ na área de Política e Planejamento Educacional. Tem experiência na área Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: formação de professo-res, políticas públicas, avaliação e sistemas educacionais.

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Jaqueline VenturaSônia Rummert

CONSIDERAÇÕES POLÍTICO-PEDAGÓGICAS SOBRE AS ESPECIFICIDADES DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES1

INTRODUÇÃO

No Brasil, as políticas compensatórias e emergenciais, as práticas aligeiradas e de cunho assistencialista marcaram, historicamente, a construção da Educação de Jovens e Adultos (EJA), ampliando, co-mo dizia o geógrafo Milton Santos (1997), a lista de “cidadanias mu-tiladas” construídas, na realidade, como expressões dos diferentes processos de negação de direitos – entre eles, o direito à educação

– que marcam a vida da classe trabalhadora.O país chega assim, ao século XXI, muito distante da universaliza-

ção da Educação Básica, sobretudo no que se refere à garantia de con-dições de permanência e de oferta igualitária de educação qualitati-va socialmente referenciada para todos. Tal afirmação é evidenciada ao considerar, por exemplo, que atualmente, no cenário educacional brasileiro, segundo dados da PNAD de 20082, temos ainda uma ta-xa de analfabetismo de 10% entre a população com quinze anos de idade ou mais. O que significa cerca de 14,2 milhões de pessoas. Há, ainda, uma taxa de analfabetismo funcional3 estimada, em 2008, em

1 Este artigo é baseado na palestra proferida pela Prof.ª Dr ª. Jaqueline P. Ventura em 14/05/2009, na abertura do I Seminário de Educação de Jovens e Adultos de Mesquita, (UFRRJ e SME/Mesquita) e em pesquisa apoiada pelo CNPq, empreendida pela Prof.ª Dra. Sonia Maria Rummert.2 Um resumo com as principais informações da PNAD, de 2008, encontra-se disponível em: [http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia =1455&id_pagina=1].3 Considera-se analfabetos funcionais as pessoas de 15 anos ou mais de idade com menos de 4 anos de estudos completos.

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21%, o que significa um universo de 30 milhões de analfabetos fun-cionais entre as pessoas na faixa etária acima citada. Podemos acres-centar a esses indicadores o elevado número de pessoas que, apesar de terem a certificação referente ao Ensino Fundamental completo apresentam um conhecimento meramente instrumental da língua escrita, visto que, mesmo conhecendo técnicas de ler e escrever, não possuem condições de fazer pleno uso social da língua.

São muitas as questões que se entrecruzam neste cenário, sendo agravado pelo não reconhecimento da particularidade da EJA como um campo de conhecimento específico4. Entre elas, serão aborda-das, particularmente, nesse trabalho: o lugar marginal ocupado pela EJA no âmbito das políticas educacionais mesmo quando a oferta de programas e demais ações se ampliam e a incipiente formação até hoje disponibilizada aos docentes, bem como a necessidade de que essa formação se estruture a partir das especificidades dos alunos e, também, dos docentes, sendo compatível com os desafios e a com-plexidade inerentes a essa modalidade de ensino.

Concluiremos o texto apresentando reflexões sobre aspectos teórico-metodológicos, o que demanda, como pressuposto, o reco-nhecimento da EJA como campo pedagógico marcado por especifi-cidades que requerem propostas curriculares compreendidas como o conjunto de conhecimentos, de valores e de procedimentos que permeiam a ação educativa adequadas às características dos edu-candos jovens e adultos da classe trabalhadora.

A EJA NO ÂMBITO DAS DEMAIS POLÍTICAS EDUCACIONAIS

Ao longo da história da EJA, as políticas de âmbito nacional foram, na maioria das vezes, caracterizadas pela ausência de continuidade, seja sob o aspecto da escolarização, seja sob o aspecto da educação conti-nuada. Assim, sob a forma de campanhas, movimentos, programas ou projetos, em geral marcados pela visão de uma ação rápida e de baixo custo, a EJA caracterizou-se, predominantemente, pela ênfase na alfa-betização de massa, perspectiva consoante com as necessidades mais

4 A esse respeito ver, por exemplo, Canário (1999).

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imediatas do sistema produtivo. Pretendia-se, assim, “extirpar” o analfabetismo apontado como uma “chaga social” e propiciar à maior parte da classe trabalhadora a formação profissional para o trabalho simples (MARX, 1983). Generalizando, pode-se afirmar, por um lado, que com diferenças de intensidade, variações e formatos, convivemos com a lógica das campanhas e das ações emergenciais desde a década de quarenta até os dias atuais. Por outro, pode-se constatar, ainda, que o modelo de convênios firmados entre o Governo Federal e os estados, ou entre os estados e municípios, inaugurado na década de quarenta com a criação do Fundo Nacional do Ensino Primário, é utilizado até hoje. Pode-se destacar, como exemplos, a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos – CEAA (1947), a Campanha Nacional de Edu-cação Rural – CNEA (1952), o Movimento Brasileiro de Alfabetização

– MOBRAL (1967), Programa Alfabetização Solidária – PAS (1996) e, também, o atual Programa Brasil Alfabetizado – BA (2003)5.

Todos os casos acima referidos apresentaram, em maior ou menor grau, concepções que expressam o caráter desqualificador atribuído à educação da classe trabalhadora, tais como: a ênfase no quantitati-vo do atendimento, o curto tempo de duração dos cursos, a aceitação do trabalho voluntário, a prática das parcerias, a visão estigmatizada do analfabeto, a concepção redentora da alfabetização e a baixa ins-titucionalidade, evidenciada na frágil ou nenhuma vinculação com redes públicas municipais ou estaduais, visando dar continuidade ao processo educativo. Vê-se, pois, ao longo da história da EJA, uma sé-rie de equívocos que se repetem por desconsideração dos problemas já vividos e exaustivamente criticados na literatura acadêmica crítica que ressalta, por exemplo, o fato de que a alfabetização de jovens e adultos precisa ser compreendida como parte da Educação Básica, evitando tratá-la de forma isolada, fragmentada e sem continuidade.

Atualmente, a Educação de Jovens e Adultos configura-se de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB

- Lei n° 9.394/96) e com o Parecer CNE/CEB 11/2000 – instrumen-tos legais que constituem expressão do contexto sócio histórico em que foram produzidos –, como uma modalidade da Educação Básica nas etapas do Ensino Fundamental e Médio. Essa formulação legal

5 Ver sobre o assunto, Ventura (2201) .

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confere à EJA um caráter e uma dimensão de ordem diversa àquela que marcou a tradição das políticas de “alfabetização de adultos”, cabendo aos sistemas de ensino assegurar oportunidades educacio-nais apropriadas, consideradas as características do alunado.

Por outro lado, não se pode esquecer que a atual LDB, incorpo-rando o discurso da adequação da educação ao novo cenário políti-co e econômico da década de noventa, destacou a Educação Básica como prioritária para a inserção do país no cenário competitivo in-ternacional e, complementarmente, vinculou o campo educacional às supostas exigências do mundo produtivo6. Assim, essa lei e ou-tros instrumentos legais7 imprimiram às políticas educacionais, ao longo da década denoventa, a lógica da descentralização e da frag-mentação8, colocando em curso uma redefinição das atribuições da Educação de Jovens e Adultos, transferidas da União para os Estados e, principalmente, para os Municípios, com grande ênfase no fato de que as organizações não governamentais e outras agências da socie-dade civil também deveriam se responsabilizar pela sua execução.

A LDB não significou uma ruptura com a diretriz predominante na EJA ao longo de sua história. Nesse sentido, em que pese o fato de terem sido alterados a nomenclatura e o conceito, sua existência continuava mediante a forma de “cursos e exames supletivos”, o que, sem dúvida, perpetua a concepção de suplência, de compensação e de correção de fluxo escolar. Como destacado no Parecer nº 05/97 do Conselho Nacional de Educação, “a conclusão evidente é que a expressão da lei anterior não foi revogada. Foi mantida como forma alternativa para nomear uma mesma modalidade (art. 38)”9. Porém,

6 Para uma síntese das disputas políticas travadas durante os oito anos de tramitação até a promulgação da nova LDB, ver Saviani (1997).7 Além da alteração na questão do financiamento expresso no FUNDEF (Lei 9.424/96), o programa de reforma educacional baseava-se, principalmente, na reformulação curri-cular da Educação Básica, expressa sob a forma de Diretrizes e Parâmetros Curriculares Nacionais. No que tange especificamente à reforma da Educação Profissional na década de 90, as bases legais foram: o Decreto 2.208/97, a Portaria MEC nº 646/97, a Portaria MEC n º 1.005/97, o Parecer CNE/CEB nº 16/99, a Resolução CNE/CEB 04/99. 8 Sobre esta questão, Leher chama a atenção para o fato de que “Usualmente, o Executivo Federal se desobriga total ou parcialmente dos custeios dessas políticas. [...] O passo se-guinte, observado em países como o Chile, é a completa transferência do ‘serviço’ para a

‘comunidade’” (LEHER, 2001: 165) 9 Disponível em: [http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB0597.pdf] Acesso em: 6 mar. 2008.

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a incorporação da mudança conceitual, ao substituir a denomina-ção, foi avaliada de forma positiva por profissionais da área, como Soares (2002), que afirma: “Houve um alargamento do conceito ao mudar a expressão de ensino para educação. Enquanto o termo en-sino se restringe à mera instrução, o termo educação é muito mais amplo, compreendendo os diversos processos de formação” (p. 12).

Em relação ao texto da LDB, a principal mudança em relação à legislação anterior residiu na “abolição da distinção de subsistemas de ensino regular e supletivo, integrando organicamente a Educação de Jovens e Adultos ao Ensino Básico comum” (HADDAD; DI PIERRO, 2000: 122). Outra mudança que acarretou expressivas perdas para a juventude da classe trabalhadora consistiu na redução das idades mínimas para a realização de exames supletivos: de dezoito para quinze anos no Ensino Fundamental e de vinte e um para dezoito anos, no Ensino Médio. Essa mudança que priorizou a idade mínima para a certificação, secundarizando os processos pedagógicos10.

Além da seção diretamente referente à EJA, destacam-se na LDB outras referências indiretas, como, por exemplo, a menção à oferta de “ensino noturno regular, adequado às condições do educando” e de “educação escolar regular para jovens e adultos, com caracterís-ticas e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibi-lidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola” (Art. 4º, incisos VI e VII). Em síntese, cabe destacar que a LDB de 1996 trata a Educação de Jo-vens e Adultos de forma bastante contraditória. Ao mesmo tempo em que prevê “oportunidades educacionais apropriadas” (Art. 37, §1º), o instrumento legal identifica a EJA com a reposição da esco-laridade com referência no Ensino Fundamental e médio regulares, mantém a ênfase nos exames supletivos e rebaixa a idade mínima para o acesso à certificação (Arts. 37 e 38).

Sabemos que a problemática da EJA é muito mais abrangente do que aquela abrigada pelas questões referentes à escolarização.

10 Observa-se sobre essa questão que “A legislação ratificou, assim, tanto a subordinação da educação dos trabalhadores aos interesses do capital em sua atual fase de acumulação, quanto a valorização de medidas que alteram os indicadores estatísticos de baixa escola-ridade da população, sem que se verifique efetivo compromisso com a oferta de educação de qualidade para a maioria da classe trabalhadora (RUMMERT, 2007: 64).

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Contudo, a dívida social não reparada e a frágil institucionalidade das ações propostas, bem como o reduzido número de matrículas na EJA11, reafirmam a necessidade de efetiva construção dessa mo-dalidade como política pública, o que não pode prescindir da inten-sa mobilização dos movimentos sociais populares. Infelizmente, a área ainda é profundamente marcada pela lógica do supletivo, como pode ser constatado ao analisarmos as proposições e práticas de grande parte das secretarias de educação do país. Essa constatação empírica revela ainda que, na maioria das vezes, os processos polí-tico-pedagógicos destinados aos jovens e adultos não se distanciam dos fazeres tradicionais da escola, deixando, por isso, de responder à realidade e características desses alunos.

Verifica-se, assim, que parte expressiva das secretarias de educa-ção pouco tem avançado no debate e na formulação de “Diretrizes Curriculares para Educação de Jovens e Adultos” que (re)definam a estrutura, a duração, a organização, o currículo, enfim, a identida-de dos cursos da EJA, tendo em vista a proposição de um modelo pedagógico próprio no sistema de ensino, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais. Dessa forma, pode-se afirmar que é relativamente recente o reconhecimento por parte das redes públicas de ensino da necessidade de elaborar propostas político-pedagógicas voltadas especialmente para os cursos da EJA. Esse re-conhecimento, ainda incipiente, deriva, embora de forma tardia, das alterações ocorridas na legislação, em que pesem seus limites, como

11 Em dezembro de 2008, no encontro “Semana de EJA: compromisso de todos pela EJA”, organizado pelo MEC, em Natal/RN, foi apresentado o cenário educacional da oferta de EJA. Naquela ocasião, a própria SECAD/MEC evidenciou os tímidos níveis de matrícula na modalidade diante da grandiosidade da demanda potencial. Mesmo considerando o pú-blico atendido pelos programas do Governo Federal como o Programa Brasil Alfabetizado, o ProJovem Urbano, o ProJovem Campo, o PROEJA e pelas redes de ensino (municipal, estadual e privada) presencial e semipresencial, a cobertura é ínfima. É significativo, por exemplo, que a demanda potencial para a alfabetização fosse, em 2008, da ordem de 14 milhões e o número total de matriculados no Programa Brasil Alfabetizado tenha sido de 1.300.000. No Ensino Fundamental, estimou-se uma demanda para o 1° segmento em torno de 15 milhões, sendo o número de matrículas reduzido a apenas 1.404.840. No 2° segmento/EJA, a taxa de atendimento foi ainda menor, ou seja, para uma demanda em torno de 33 milhões de alunos, o público total atendido foi de apenas de 2.265,979. No Ensino Médio, em que pese uma demanda potencial da ordem de 20 milhões de brasi-leiros, a matricula total não ultrapassou 1.620.559 alunos. Fonte: Apresentação (slide) Agenda Territorial de Desenvolvimento Integrado de Alfabetização e EJA. MEC/SECAD, 2008. Disponível em: <http://forumeja. org.br/files/agenda.ppt#263,7,Slide7>

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já referimos anteriormente. É a partir dessas alterações introduzidas pelos instrumentos legais que a EJA passa a se configurar como uma modalidade da Educação Básica. Isto significa situá-la na estrutura da educação nacional, todavia, com finalidade e funções específicas. Em outros termos, apesar de referir-se ao Ensino Fundamental e médio, o termo modalidade atribui-lhe a exigência de ser de outro modo, , enfim, trata-se de um “modo de existir com característica própria” (BRASIL. Parecer CNE/CEB 11/2000).

Em que pesem os indicativos legais, na prática, além de algumas iniciativas pontuais, não se tem verificado uma alteração substanti-va no trabalho pedagógico com jovens e adultos capaz de responder, com qualidade (RUMMERT, 2000), à variedade de situações trazidas para o âmbito escolar pela diversidade que caracteriza os jovens e adultos da classe trabalhadora que acorrem a esse espaço-tempo pedagógico formal. Assim, apesar de quase uma década após a apro-vação das DCN para a EJA, o que ainda prevalece é o fato de que, seja na organização curricular ou nas propostas político-pedagógicas em grande parte das redes públicas do país, a problemática e a riqueza potencial dessa modalidade de ensino continua, em geral, ignorada ou relegada ao plano secundário pela maioria dos gestores públicos.

Esse quadro, aqui brevemente delineado, constitui expressiva manifestação do caráter marginal da EJA. Aos aspectos referidos, somam-se outros, numa intrincada rede de desqualificações à qual se acresce, significantemente, a ausência de uma efetiva política pú-blica que crie as necessárias condições de atendimento universal à expressiva demanda relativa a essa modalidade de ensino12.

A percepção da desqualificação da EJA se revela, na atualidade, mais difícil de ser apreendida, visto verificarem-se, na presente dé-cada, significativas mudanças na forma e no conteúdo da dualidade educacional, coadunadas com a prevalência do padrão de acumula-ção flexível, hoje hegemônico em nível internacional.

12 Além da necessidade de ampliação da oferta, tratada em nota anterior, há ainda a ques-tão das condições da oferta na EJA. Em recente documento publicado pelo MEC apontam-se graves problemas que interferem na qualidade como, por exemplo, o fato de que “Em 2006, apenas 27% das escolas que possuíam matrículas na EJA contavam com biblioteca e em somente 12% dessas escolas os educandos tinham acesso a computador.” (BRASIL, 2009: 18) Disponível em: [http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/confitea_docfinal.pdf] - acesso outubro de 2009.

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O conjunto de iniciativas voltadas para a educação dos jovens e adultos trabalhadores é marcado, hoje, por heterogeneidades com-patíveis com as demandas e as mudanças características da socie-dade do conhecimento ou da informação, como é correntemente no-meada a atual fase do processo de acumulação. Para compreender tal heterogeneidade é, ainda, necessário ressaltar que a base dos regimes de acumulação ancora-se na distribuição desigual dos bens materiais e simbólicos. No caso aqui abordado, as diferentes ofer-tas da EJA13 constituem claros exemplos da distribuição desigual de condições de acesso ao conhecimento científico e tecnológico, pa-radoxalmente apresentado como essencial para assegurar a todos condições de usufruir dos supostos benefícios dos novos paradig-mas da atual organização societária.

A ESCASSA ATENÇÃO DADA À FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A EJA

Sob o aspecto legal, a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece a necessidade de uma formação docente ade-quada à EJA, destacando-se a referência à “formação de profissionais da educação de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e as características de cada fase do desenvol-vimento do educando” (Art. 61). As Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, por sua vez, defendem como fundamental a formulação de projetos pedagógicos próprios e específicos, nos quais o perfil do aluno da EJA e suas situações reais constituam o núcleo da organiza-ção do projeto pedagógico dos cursos nos sistemas de ensino.

Entretanto, o reconhecimento dos educandos e de suas experi-ências como eixo de organização da modalidade não é ainda uma realidade na maior parte das experiências da EJA no país, como já vimos. Os currículos propostos pelas escolas, principalmente no se-gundo segmento do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, em ge-ral, pouco se diferenciam das características daqueles voltados aos

13 Referimo-nos, aqui, por exemplo, aos diversos programas abrigados pelos quatro agru-pamentos políticos do ProJovem, bem como às diferentes ofertas do Proeja, que vão desde cursos com razoável vinculação político-pedagógica com uma formação de caráter tecno-lógico até as suas ofertas mais elementares articuladas à Formação Inicial e Continuada.

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outros níveis e modalidades de ensino. Prevalece, na grande maioria dos casos, o currículo pautado em uma abordagem disciplinar, na or-ganização seriada do tempo com caráter acelerativo e em padrões de avaliação classificatórios, predominando, assim, as concepções pres-critivas, acríticas e vinculadas à lógica da educação bancária, confor-me, e, predominantemente, comprometidas com a certificação.

É nesse quadro que se inscreve a discussão sobre a necessida-de de formação docente compatível com a especificidade da EJA no Brasil, a qual se relaciona diretamente com a problemática mais am-pla do reconhecimento dessa modalidade de ensino como direito inalienável dos que não tiveram assegurado o acesso à educação ou a garantia de condições de permanência na escola. Compreender a EJA – aqui abordada em sua vertente destinada à elevação da es-colaridade – como direito também requer que seja rompida a ló-gica, que ainda prevalece, de sua oferta como mera ação de caráter burocrático.

Os jovens e adultos que buscam a escola têm o direito de serem acolhidos em um espaço-tempo escolar que seja plenamente ade-quado às suas características e necessidades. Assim sendo, a forma-ção apropriada à atuação dos profissionais da educação, no âmbi-to da EJA, também constitui um direito, tanto desses profissionais quanto dos alunos. Ou seja, a EJA, socialmente qualificada, é um di-reito dos alunos que só pode ser efetivamente atendido por profis-sionais qualificados para tal. Por outro lado, esses profissionais são portadores do direito à formação inicial e continuada necessárias ao exercício pleno e rico de suas funções docentes14.

Essa perspectiva, porém, está longe de adquirir a necessária materialidade, por razões cuja gênese reside, em boa parte, na pro-blemática referida no item anterior. No que tange, por exemplo, à produção de conhecimento sobre a formação docente, diversos tra-balhos apontam para o fato de que, apesar de crescente, é ainda pe-queno o número de pesquisas específicas sobre essa formação para

14 Não ignoramos, por exemplo, as iniciativas relativas a cursos de especialização para docentes no âmbito do Proeja ou do PEJA, no Município do Rio de Janeiro. Tais iniciativas, entretanto, além de serem recentes e não tendo, ainda, constituído objeto da necessária avaliação, atingem um universo pouco expressivo se comparado ao quantitativo de pro-fissionais que atuam nessa modalidade de ensino.

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a EJA15. A carência de estudos afeta, principalmente, a formação aca-dêmica inicial desse tipo de profissional que o capacitaria para atuar em toda a Educação Básica, visto que os estudos existentes tratam, sobretudo, de práticas de alfabetização e formação em serviço dos alfabetizadores. Em que pese tal lacuna, nas pesquisas disponíveis são recorrentes as denúncias quanto à falta de formação adequada (inicial e continuada), ao mesmo tempo em que é, comumente, cons-tatada a necessidade de preparação específica.

Tal quadro se agrava pelo fato de que as iniciativas das universi-dades em relação à formação do educador de jovens e adultos ainda são tímidas. Um dos dados reveladores da pouca importância confe-rida à EJA nos cursos de Ensino Superior é a existência, até o ano de 2006, de apenas 27 cursos de Pedagogia com habilitação na moda-lidade, entre os 1.698 existentes no país. (SOARES, 2008: 65). Outro aspecto que não podemos deixar de mencionar refere-se à quase absoluta ausência da discussão sobre a complexidade do universo da EJA nas diferentes licenciaturas responsáveis pela formação de futuros docentes que irão, muitas vezes, atuar na EJA, no segundo segmento do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

Por outro lado, a questão da formação docente tem constituído objeto de preocupação por parte de grupos de pesquisadores, bem como por parte de diferentes esferas de poder estatal de âmbito federal, estadual e municipal. Ações de caráter formativo são im-plementadas e trazem, lamentavelmente, na maioria das vezes, as mesmas marcas da Educação de Jovens e Adultos, entre as quais se destacam o aligeiramento e o atendimento burocrático a uma

15 Ver, por exemplo, o levantamento feito por Machado (2002) a respeito da produção acadêmica discente da pós-graduação em educação sobre o professor na EJA. Verificou-se, com base na elaboração de um “estado da arte” da Educação de Jovens e Adultos no Brasil que, no período entre 1986 e 1998, de 183 trabalhos defendidos sobre a EJA, 32 abor-davam assuntos de alguma forma relacionados ao professor. Deste total (32), apenas 11 pesquisas (3 teses e 8 dissertações) abordavam, especificamente, a formação de profes-sores para atuar na Educação de Jovens e Adultos. Em 2009, por sua vez, um levantamen-to preliminar divulgado pelo Grupo de Estudos: Políticas de Educação de Jovens e Adultos trabalhadores sobre a produção acadêmica relativa à Educação de Jovens e Adultos, no período entre 2000 e 2006, a partir do banco de dados disponibilizado no site da CAPES e do CEREJA, identificou que: entre as 518 dissertações de mestrado sobre a EJA, apenas 44 abordavam o tema da formação docente; de um número total de 77 teses de doutorado, somente 5 se debruçaram sobre a questão da formação docente na EJA, confirmando que este não tem sido um tema privilegiado nas pesquisas da área. Ver: link Teses e Disserta-ções na página eletrônica http://www.uff.br/ejatrabalhadores/

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necessidade que se impõe e não é contemplada de forma plena, alinhando-se aos muitos simulacros que constituem característica recorrente da educação oferecida aos trabalhadores.

Tais processos (ou momentos) de formação costumam constituir expressão de concepções centradas na valorização de procedimen-tos tecnocráticos “geradores de muitas e justificadas reações nega-tivas dos profissionais da educação às propostas pedagógicas que lhes negam a condição de autoria e lhes apresentam planos, tarefas e regras pré-definidas, formuladas e estabelecidas, na maioria das vezes, em espaços externos à realidade escolar” (RUMMERT, 2009)16.

O que se verifica, assim, de forma recorrente, é um conjunto de variações em torno de um mesmo processo que nega, também, aos profissionais da educação, a condição de autoria e o direito de acesso ao conhecimento. Tal processo, sob diferentes formatos, des-qualifica os saberes docentes e se apresenta como reprodutor dos múltiplos mecanismos de desqualificação que os sistemas de ensino perpetram sobre os saberes dos trabalhadores.

Assim, tanto professores quanto alunos são transformados, de modos diferenciados porém similares, em receptáculos de uma cul-tura pedagógica assentada na valorização do saber enciclopédico, dos procedimentos salvacionistas e destituída das vivas e necessá-rias vinculações com o real. Superar tal característica requer que to-memos como bases das propostas de formação docente – e, também, de formação dos jovens e adultos da EJA – a advertência de Gramsci, formulada em 1916, onde ressaltava:

É preciso perder o hábito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual o homem é visto, apenas, sob a for-ma de um recipiente a encher e entupir de dados empíricos, de fatos brutos e desconexos, que ele depois deverá classificar em seu cérebro como as colunas de um dicionário, para poder em se-guida, em uma ocasião concreta, responder aos vários estímulos do mundo exterior (2004: 57 – grifos nossos).

16 Essa formação centra-se, na maioria das vezes, de forma acrítica em conceitos – como o de educação ao longo da vida, educação para a empregabilidade, competências etc – e no fetiche de procedimentos didáticos mais em voga em cada momento sócio-histórico – como, atualmente, a pedagogia da invenção, as estratégias para aprender a aprender ou a elaboração de portfólios, além da utilização das tecnologias da informação, anunciadas, mas muito distantes da realidade das salas de aula da EJA.

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A advertência de Gramsci não perdeu a atualidade nem a per-tinência, embora tenha sido apropriada e difundida por muitos autores. Tal permanência decorre do fato de que, na realidade, ao nos debruçarmos sobre a problemática da educação da classe traba-lhadora, estamos diante de um claro exemplo das prisões de longa duração às quais se referia Fernand Braudel (1972) ao analisar as mentalidades hegemônicas em dados períodos históricos. Impõe-se, assim, ainda, a tarefa de superar a formação docente para a Educa-ção de Jovens e Adultos como uma das faces de um processo que está arraigado numa cultura de tutela sobre os trabalhadores e que ainda prevalece por ser expressão de um modelo societário assen-tado sobre fortes assimetrias de poder.

Trata-se, portanto, de compreender que, para além da formação centrada no trabalho prescrito, o que se impõe é a viabilização de processos de formação integral também para os profissionais da EJA. Tal imposição adquire particular sentido quando compreende-mos que só a formação integral dos docentes pode ensejar concep-ções e práticas político-pedagógicas efetivamente comprometidas com a educação omnilateral da fração da classe trabalhadora cons-tituída pelos alunos da EJA.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA EJA

O Parecer CNE/CEB 11/2000 tem contribuído para ainda tímidos, mas importantes, avanços na área. No que se refere aos componen-tes curriculares dos cursos da EJA, tais avanços, conforme relatado pelo professor Jamil Cury, encontram respaldo no fato de que, apesar de valerem as mesmas diretrizes curriculares nacionais das etapas da Educação Básica, não se deve aplicar a essa modalidade de ensi-no uma igualdade direta ou uma reprodução descontextualizada e linear. Ao contrário, conforme ressalta o documento, torna-se funda-mental uma formulação de projetos pedagógicos específicos, em que o perfil do aluno da EJA e suas situações reais de produção individual e social da existência constituam o núcleo da organização do projeto político-pedagógico. Ao avançar nessa perspectiva, faz-se necessário

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partir da premissa de que as bases teórico-metodológicas orienta-doras da prática educativa na EJA devem ser estruturadas tomando como eixos da organização o educando como sujeito da história e a concepção de trabalho enquanto produção da existência.

Considerar os saberes social e coletivamente construídos por aqueles que, historicamente, foram excluídos dos processos formais de educação na construção de propostas curriculares e metodoló-gicas para esses sujeitos, exige a superação de antigas concepções, num processo que ultrapasse tanto a visão da EJA enquanto repo-sição de escolaridade, na lógica do ensino supletivo e/ou como o aligeiramento da prática pedagógica, na lógica da certificação. Essas perspectivas revestem a EJA de um caráter meramente instrumen-tal que, quando muito, logra elevar índices de escolaridade, sem que a isso corresponda a efetiva apropriação de conhecimentos e a construção da autonomia intelectual que não se esgota na máxima

“aprender a aprender”. Para tanto, será necessário superar represen-tações arraigadas na cultura educacional, que constituem expressão de traços de longa duração, de uma concepção de mundo autoritária e escravocrata, especialmente as que situam o aluno dessa modali-dade, isto é, o jovem e o adulto destituídos de seu direito à educação, como aqueles que fracassaram por deficiências próprias, fragilizan-do as possibilidades da EJA.

Do mesmo modo, é necessário abandonar a concepção da EJA como uma ação de caráter voluntário, marcada por um cunho de do-ação e movida pela solidariedade caridosa para com os mais pobres. Tais concepções, fornecendo a base para as práticas infantilizadoras e assistencialistas, além de desqualificarem o educador, distanciam a EJA de um estatuto teórico-metodológico próprio, que subsidie a formulação de propostas compatíveis com as necessidades, interes-ses e características daqueles aos quais se destina.

Ao pensarmos sobre a Educação de Jovens e Adultos trabalha-dores, podemos buscar construir seus paradigmas teórico-meto-dológicos a partir de uma aproximação efetiva dos modos como esses trabalhadores constroem seu cotidiano, tecem suas redes de saberes, criam estratégias de conquista da sobrevivência, produzem conhecimentos em seu universo laboral, produzem cultura. Isso sig-

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nifica chamar os trabalhadores para participarem da formulação dos eixos norteadores das propostas educativas, concorrendo, com seus saberes, para a construção de uma ação educativa que trans-cenda os limites postos pelas propostas para eles formuladas pelos representantes diretos e indiretos das estruturas de poder material e simbólico. Tal procedimento implica também, necessariamente, uma mudança da atitude, ainda recorrente no campo acadêmico, que, com frequência e de forma tutelar, considera-se plenamente apta a definir qual educação e quais procedimentos metodológicos são mais adequados àqueles jovens e adultos a que essa proposta educativa se destina, do mesmo modo como são definidos de forma exógena os conteúdos dos trabalhos de formação docente. Isso im-plica, portanto, reconhecer o trabalhador como produtor de conhe-cimentos, de história e cultura e superar os preconceitos abrigados, até mesmo, em diversas iniciativas de caráter progressista.

A EJA exige um novo olhar sobre as ações pedagógicas. A flexi-bilidade na organização curricular não deve significar, como já afir-mamos, o aligeiramento, a banalização ou simplificação do conheci-mento, mas sim uma opção metodológica que tenha como referência a valorização crítica das experiências diversas que esses alunos tra-zem para o espaço-tempo escolar. Dessa forma, é importante que os processos de ensino-aprendizagem valorizem os conhecimentos adquiridos nas mais diversas situações de vida (sob o aspecto his-tórico, político, cultural e social), rompendo o distanciamento entre os conhecimentos escolares e os saberes vivenciais. Trata-se, por-tanto, de integrar na escola o saber popular com o saber científi-co, construindo coletivamente as bases necessárias ao processo de passagem do senso comum à consciência filosófica (SAVIANI, 1980). Nessa concepção, as situações concretas de existência – e sobre-vivência – são reconhecidas e assumidas como um rico e fecundo desafio pedagógico, o que impõe trabalhar o “saber de experiência feito” (FREIRE, 2003: 71), de forma dialógica e, também, dialética.

As reflexões sobre a organização e o funcionamento da EJA, bem como sobre sua estrutura curricular, exigem definições acerca dos tempos e espaços escolares coadunadas com as especificidades dos jovens e adultos da classe trabalhadora. Tal revisão envolve um

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amplo arco de questões que abarca desde os fundamentos teórico-metodológicos até as formas como eles se expressam no cotidiano escolar, como por exemplo, a definição de horários e a forma de exi-gência de frequência, os tipos de tarefas extra escolares, o desenho da organização curricular, entre outros aspectos. Pontos como os aqui mencionados revestem-se de grande relevância, visto serem decisivos no que se refere à entrada e à permanência dos alunos na escola. Trata-se, portanto, de forjar, a partir da construção coletiva, todo um complexo teórico-prático que expresse, na escola, as bases de uma relação que “precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais”, como nos ensinou Thompson (1987, p.10).

Nos limites desse trabalho, mencionamos, a título de exemplo, alguns aspectos do que aqui denominamos como questões teórico-práticas, que não podem ser ignoradas em um plano de ação para a EJA, comprometidas com os valores aqui expressos, tais como:

1. A definição de estruturas curriculares articuladas e flexí-veis, que contem com o desenvolvimento de metodologias diferenciadas e adequadas à realidade e aos interesses dos jovens e adultos;

2. O reconhecimento dos diferentes ritmos de aprendizagem que exigem tempos diferenciados e não um tempo único para todos, sem que isso represente o isolamento e a negação das ricas possibilidades do trabalho coletivo;

3. A superação do ensino centrado na perspectiva do acúmulo enciclopédico, fragmentado e desconexo de informações, co-mo referido por Gramsci, anteriormente citado, e que Paulo Freire veio a denominar, com propriedade, como “educação bancária”;

4. Abusca permanente de um processo integrador dos dife-rentes saberes, a partir da contribuição das diversas áreas do conhecimento e tendo como base o aporte teórico-metodoló-gico que nos é oferecido pela categoria totalidade;17

17 Para superar a aparência e compreender o real é imprescindível a busca das conexões para reconstituir a realidade concreta como um todo estruturado. Conforme esclarece

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5. A reorganização teórico-prática e didático-pedagógica dos processos dialógicos e dialéticos de ensino-aprendizagem, referenciada na centralidade das experiências dos alunos, re-conhecendo a importância das relações pedagógicas ocorri-das nos mais ricos e diversos espaços-tempos exteriores ao âmbito escolar;

6. A busca de realização, na escola, de ricas e importantes me-diações entre as experiências de vida, o conhecimento social-mente produzido e a dimensão sócio-histórica de ambos, que se articula com o mundo do trabalho enquanto produtor da existência;

7. Não menos importante é o estabelecimento de horários de atendimento dinâmicos que, a par de exigirem compromis-sos necessários à vida no ambiente escolar, não se pautem na rigidez incompatível com a vida concreta daqueles que são subsumidos às condições precárias de produção da existên-cia que caracterizam a vida da maioria da classe trabalhadora.

A partir do que foi assinalado nesse trabalho, consideramos que uma proposta pedagógica emancipadora requer que tenhamos co-mo horizonte um processo formativo comprometido com alunos e professores concretos da EJA, em que se busque as raízes das ques-tões a serem superadas. Como assinalava Freire (2008: 130), trata-se de compreender a “educação como um ewsforço de libertação do homem e não como um instrumento a mais de sua dominação”. Essa perspectiva torna imperativo que se ultrapassem concepções e práticas conformadoras à ordem, observadas nas ações derivadas de perspectivas pautadas na minimização das consequências das desigualdades e expropriações, articulando a EJA à luta por trans-formações estruturais na sociedade (VENTURA, 2008).

Kosik (1995:36) “Da vital, caótica, imediata representação do todo, o pensamento chega aos conceitos, às abstratas determinações conceituais, mediante cuja formação se opera o retorno ao ponto de partida; desta vez, porém, não mais como ao vivo, mas incompre-endido todo da percepção imediata, mas ao conceito do todo, ricamente articulado e com-preendido. O caminho entre a ‘caótica representação do todo’ e a ‘rica totalidade da mul-tiplicidade das determinações e das relações’ coincide com a compreensão da realidade”.

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É importante ressaltar que as reflexões aqui apresentadas não derivam de uma visão idealista ou romântica dos saberes ou da pró-pria classe trabalhadora. Do mesmo modo, não ignoramos a “exis-tência de muitos problemas e dificuldades inerentes à consecução dessas orientações pedagógicas” (RUMMERT, 2009). Ao contrário, reconhecemos as dificuldades existentes, mas também reconhe-cemos que, na dinâmica do processo histórico, o que se apresenta incompleto, permeado de lacunas e dificuldades, também está re-pleto de desafios e, por isso, “pode impulsionar o novo, se todos os envolvidos no processo, colocando-se na condição de construtores coletivos do caminho a ser percorrido, assumirem o compromisso ético-político de forjar” (idem) a já referida nova concepção teórico-prática de Educação de Jovens e Adultos.

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SOBRE AS AUTORAS

Jaqueline Ventura é Doutora em Educação pela UFF. Atua como docente do Departamento Sociedade, Educação e Conhecimento da Faculdade de Educação da UFF. Está vinculada ao Grupo de Pesquisa Trabalho e Educação, na linha de pesquisa O mundo do trabalho e a formação humana e é membro do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação – NEDDATE/UFF, onde investiga sobre o mundo do trabalho e a Educação Básica e profissional de jovens e adultos trabalhadores.

Sonia Maria Rummert é Doutora em Ciências Humanas – Educação, pela PUC-RJ, com pós-doutorado em Formação de Adultos pela Universidade de Lisboa. Atua como docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. É pesquisadora do CNPq, membro do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação – NEDDATE/UFF e integra o Grupo de Pesquisa Trabalho e Educação, linha de pesquisa O mundo do trabalho e a formação humana, onde investiga sobre Educação Básica e Profissional de Jovens e Adultos Trabalhadores e sobre Trabalho e Educação.

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DIÁLOGOS NECESSÁRIOS SOBRE GESTÃO E FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS1

No âmbito federal, qual sentido tem para um(a) professor(a) que está atuando em sala de aula conhecer como funciona a gestão e o financiamento da política pública para Educação de Jovens e Adul-tos (EJA)? Como se dá a interferência dessas políticas no cotidiano da sala de aula? Ou ainda, é possível a ação do(a) professor(a) da EJA interferir na definição de tais políticas implementadas na esfera dos governos federal, estadual e municipal? Essas questões visam despertar o interesse do nosso leitor, na certeza de que os temas a serem tratados neste artigo, embora pareçam distantes dos inúme-ros desafios que enfrentamos na sala de aula, influenciam a prática pedagógica dos sujeitos da modalidade EJA.

As reflexões apresentadas visam elucidar aspectos da trajetó-ria de construção coletiva da política da EJA no Brasil, a partir de 2004, que se dá por meio da implementação de processos mais par-ticipativos no âmbito da gestão e do financiamento da educação no governo federal, alterando, por consequência, sua relação com governos estaduais, municipais e com a sociedade civil organiza-da. Para tanto, parto da concepção de Estado ampliado (GRAMSCI, 2001), que se expressa na relação, sempre tencionada, entre socie-dade política e sociedade civil, para refletir gestão e financiamento da EJA, da experiência vivida no âmbito da atuação no governo fe-deral, no período de 2004 a 20062, do diálogo com as informações

1 Parte das reflexões aqui apresentadas foram debatidas no XXIV Simpósio Brasileiro e no III Congresso Interamericano de Política e Administração da Educação, ocorrido na UFES, em agosto de 2009 e promovido pela ANPAE. Esse texto contou com a valiosa revisão de Janaina Cristina de Jesus e Claudia Borges Costa, companheiras do Fórum Goiano da EJA, e também de João Batista do Nascimento, mestrando em educação pela FE/UFG.2 Nesse período trabalhei na SECAD/MEC como Coordenadora Pedagógica do Departa-mento de Educação de Jovens e Adultos.

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disponíveis no portal do Ministério da Educação, das publicações desse ministério e dos relatórios disponíveis no portal dos Fóruns da EJA do Brasil.

Para início dessa reflexão sobre construção de política pública faz-se necessário compreender a matriz que funda a organização do estado nacional brasileiro que não se alterou com o tempo histórico e, até mesmo, para que se perceba os limites presentes na atualida-de nas diversas propostas de participação democrática. A tradição nacional de estado patrimonialista3, em parte, explica a difícil re-lação que estabeleceram entre si, ao longo da história da república brasileira, o governo federal, os governos estaduais e os governos municipais, bem como entre esses e a sociedade civil. Se, por um lado, é inegável o movimento de modernização e burocratização do Estado na tentativa de superar as relações de compadrio e tutela que dominaram durante mais de quatro séculos a história nacional, por outro, é preciso reconhecer que esse esforço não anulou total-mente aquelas influências que rondam ainda o fazer político e, por-tanto, a gestão dos entes federados, resultando num modelo hibrido de burocracia patrimonial.

No que concerne à educação, Mendonça (2000) reafirma essa perspectiva de uma burocracia patrimonial, quando analisa com propriedade a questão da gestão na escola, o que, em grande medi-da, também se evidencia nas relações que se estabelecem no inte-rior das secretarias de educação estadual ou municipal e nas secre-tarias do Ministério da Educação.

Se no Estado brasileiro, em geral, a presença dos valores patri-moniais é marcante, no campo educacional, em particular, essa presença se dá também pela característica acentuadamente do-méstica das relações sociais que se travam no ambiente escolar.(...) O arcabouço legal que regula o sistema e o conjunto dos seus órgãos administrativos aproximam-se da característica burocrá-tica, mas os sujeitos concretos que os sustentam e lhes dão vida continuam regidos por valores tradicionalistas (p. 441).

3 O termo “Estado patrimonial” ou “patrimonialismo”, aqui colocado, corrobora com a visão de Weber (1991) de que o mesmo na sua forma pura jamais existiu. A análise dessa perspectiva de Estado no caso brasileiro, mesmo com perspectivas diferenciadas, já foi exaustivamente feita por Faoro(1993) e Holanda (1971), entre outros.

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Considerando essa perspectiva, o que se propõe nessa reflexão é apontar limites e possibilidades da construção de uma política pú-blica de educação voltada para jovens e adultos, dentro de uma es-trutura contraditória de Estado burocrático e patrimonialista. Como expressão da materialidade dessa política serão analisados três es-paços constituídos por indução do Ministério da Educação que, des-de 2004, reúne periodicamente um conjunto de atores envolvidos com a EJA, num processo de escuta e discussão sobre as prioridades que deveriam nortear uma agenda para a modalidade.

O contexto de origem dessa dinâmica de reuniões e consultas es-tá no primeiro ano de governo do atual Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 2003, que foi cercado de expectativas e cobranças, sobretu-do no que dizia respeito à postura do governo frente, especialmente, às políticas sociais, tão defendidas em suas campanhas. Cobranças não apenas externas ao seu partido e aos partidos aliados, mas tam-bém internas, pois o conjunto de forças sociais que levara o Parti-do dos Trabalhadores à presidência, não se calou diante da posse, mas pelo contrário, exigiu dos novos governantes que assumissem os compromissos firmados, entre eles, o de abrir espaço de diálogo permanente com os movimentos sociais que contribuíram para a chegada desses ao Planalto.

No Ministério da Educação essa pressão se fez visível desde que o primeiro ministro empossado começou a nomear seus assessores, alguns com nenhuma trajetória na educação, e a lançar programas e projetos que contrariavam a luta histórica de várias associações e grupos envolvidos com diferentes níveis e modalidades de ensino. A saída desse ministro em 2004 é, em parte, uma resposta a essa insatisfação geral. É nessa conjuntura política, de substituição do pri-meiro ministro da educação, que ocorre, em 2004, a criação da Secre-taria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD. Segundo publicação oficial do MEC que apresenta a nova secretaria,

Na reestruturação do MEC, o fortalecimento de políticas e a criação de instrumentos de gestão para a afirmação cidadã tornaram-se uma prioridade, valorizando a riqueza de nossa di-versidade étnica e cultural. A constituição da SECAD traduz uma inovação institucional. Pela primeira vez estão reunidos os pro-gramas de alfabetização e de educação de jovens e adultos, as

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coordenações de educação indígena, educação no campo e edu-cação ambiental. Essa estrutura permite a articulação de progra-mas de combate à discriminação racial e sexual com projetos de valorização da diversidade étnica (BRASIL, 2004).

A SECAD, portanto, foi constituída em resposta às pressões fei-tas pelos diversos segmentos excluídos da estrutura burocrática do Estado e do Ministério da Educação, que não existiam ou que ocu-pavam lugares marginais nas secretarias e departamentos já com trajetórias históricas consolidadas, como a educação superior, Ensi-no Fundamental, Educação Profissional e educação à distância, por exemplo. Esse “novo lugar” tinha uma tarefa clara que também foi explicitada no prospecto divulgado pelo ministério,

Para democratizar a educação é preciso mobilizar toda a so-ciedade. O MEC, por intermédio da SECAD, tem uma missão de promover a união de esforços com os Governos Estaduais e Municipais, ONG´s, sindicatos, associações profissionais e de moradores, contando com a cooperação de organismos interna-cionais para ampliar o acesso, garantir a permanência e contri-buir para o aprimoramento de práticas e valores dos sistemas de ensino. (BRASIL, 2004)

É nesse contexto de criação da SECAD que também se constitui o Departamento de Educação de jovens e Adultos, atualmente com o nome de Departamento de Políticas de Educação de Jovens e Adul-tos - DPEJA. Esse departamento passa a assumir a responsabilida-de pela indução da política de alfabetização e Educação de Jovens e Adultos em diálogo com os demais departamentos da SECAD, numa articulação intraministerial e interministerial. Para além dessa atu-ação intragoverno, o departamento instituiu três espaços formais de diálogo sobre a política de Educação de Jovens e Adultos, sobre os quais detalharemos no corpo desse artigo: o primeiro, estabe-lecendo reuniões trimestrais com a Comissão Nacional de Alfabe-tização e Educação de Jovens e Adultos - CNAEJA; o segundo, com reuniões semestrais com os coordenadores estaduais de Educação de Jovens e Adultos e o terceiro, com reuniões também semestrais com os representantes dos Fóruns da EJA do Brasil.

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Algo que o acompanhamento a essas reuniões periódicas reve-la é o quanto desafiadora é a tentativa de implementação de uma gestão colegiada e de construção coletiva da política da EJA como direito público subjetivo. Isso porque estão em cena interesses e limites que, ainda que não antagônicos, vão exigir um esforço na busca da convergência para o mesmo fim de instâncias e sujeitos coletivos com trajetórias e funções diferenciadas na política educa-cional. Desse modo, concorrem a necessidade de o governo federal publicizar o que vem fazendo para o campo, a busca permanente dos governos estaduais e municipais pela garantia do acesso aos re-cursos disponibilizados pelo governo federal e o desafio posto aos representantes dos fóruns da EJA de se firmarem enquanto inter-locutores do governo federal na definição das políticas para a EJA; bem como, de os diversos movimentos sociais, organizações não go-vernamentais e setores ligados ao setor empresarial em garantirem uma parcela de intervenção na definição dessas políticas.

COMISSÃO NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – CNAEJA: O DIÁLOGO NECESSÁRIO COM A DIVERSIDADE

A Comissão Nacional de caráter consultivo para o campo da Educa-ção de Jovens e Adultos, a CNAEJA existe desde o final da década de oitenta, quando a Fundação Educar coordenava as ações da EJA. Foi retomada pelo Governo Fernando Collor de Melo, em 1990, para acompanhar as ações do Programa Nacional de Alfabetização e Cida-dania, todavia, sem uma condição efetiva de intervenção na política que se estabelecera por aquele governo. Nos anos que se seguiram, de 1992 a 2003, a atuação dessa comissão também não representou grande impulso na construção da EJA como política pública.

Quando a comissão é retomada pelo Governo Luiz Inácio da Silva, em setembro de 2003, há uma intencionalidade de acompanhamen-to externo ao Programa Brasil Alfabetizado4. Sua reconstituição inicia, em 2004, após a criação da SECAD, que retoma o caráter abrangente de discussão e análise das políticas do governo voltadas para alfa-

4 Para maiores informações sobre o Programa consulte o site www.mec.gov.br

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betização e Educação de Jovens e Adultos, daí seu nome Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos - CNAEJA.

CAPÍTULO VI - DA COMISSÃO NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Art. 14. A Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), instituída pelo Decreto nº 4.834, de 2003, tem caráter consultivo, de forma a assegurar a participa-ção da sociedade no Programa, assessorando na formulação e implementação das políticas nacionais e no acompanhamento das ações de alfabetização e de educação de jovens e adultos.

(...)

§ 2o A CNAEJA será composta por personalidades reconhecidas nacionalmente e por pessoas indicadas por instituições e entida-des representativas da área educacional, de âmbito nacional, até o limite de dezesseis membros titulares e respectivos suplentes, designados pelo Ministro de Estado da Educação. (BRASIL 2007)

Uma questão embaraçosa presente nesse decreto referente à com-posição da CNAEJA e que cabe destacar, é a menção à “personalidades reconhecidas nacionalmente e por pessoas indicadas por instituições e entidades representativas da área educacional”. Pelo acompanha-mento e a presença a essas reuniões, o que se percebe é que prevale-ceu o critério de pessoas indicadas por instituições e entidades, o que demonstra uma preocupação mais republicana e menos personalista, além de mais coerente com os propósitos de existência da própria SE-CAD. Todavia, essa prevalência no critério da representação não ga-rante que, de fato, as pessoas mantenham a interlocução necessária com seus pares, para que sua presença não seja a voz de um, mas de um coletivo que quer intervir na construção da política da EJA.

A CNAEJA conta com a presidência do secretário da SECAD, re-presentando o Ministério da Educação, a representação da Secreta-ria de Educação Básica e da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica como membros de governo federal. Representação do Conselho de Secretários Estaduais de Educação - CONSED, Fórum de Conselhos Estaduais de Educação, União dos Dirigentes Municipais de Educação - UNDIME, Confederação Nacional dos Trabalhadores

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em Educação - CNTE, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, Fóruns da EJA do Brasil, Fórum Nacional de Economia Solidária; uma representação de movimentos com experiência em alfabetização e outra de ONG´s com experiência em EJA; represen-tação dos segmentos étnico-raciais, indígena e juventude; segmento das universidades, atualmente representada pela Associação Nacio-nal de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação ANPED.

Observando essa composição, deve-se questionar como os pro-fessores e professoras da EJA têm acesso ao que vem sendo discuti-do nessa comissão. Um primeiro representante que deveria, em al-guma medida, dar esse retorno, seria o dessa categoria profissional, ou seja, a CNTE. A confederação, no contato com os sindicatos de professores ou, ainda, através de seus mecanismos de comunicação, deveria divulgar os temas pautados e os encaminhamentos, avalian-do o impacto desses para a categoria. Isso tem sido feito? Como?

O acesso às memórias elaboradas pelos representantes dos Fó-runs da EJA do Brasil e da ANPED5 revela uma pauta de discussão intensa e que se reitera em vários pontos. À primeira vista, percebe-se uma lista imensa de comunicados da SECAD, prestando contas do que está sendo feito pelo governo federal. Na sequência dos informes e da apresentação dos pontos de pauta, abre-se o espaço para o de-bate dos principais temas que são recorrentes: Programa Brasil Alfa-betizado, Programa Fazendo Escola, Programa Literatura Para Todos, Diretrizes Operacionais para EJA em debate com o Conselho Nacio-nal de Educação, processo preparatório do Brasil para a VI Confe-rência Internacional de Educação de Adultos - CONFINTEA, Rede de Formação de Alfabetizadores, Agenda Territorial, entre outros.

Os resultados mais concretos que se evidenciam nessas discus-sões da CNAEJA estão expressos em resoluções que são o instrumen-to legal de repasse de recursos financeiros do governo federal para as secretarias estaduais e municipais executarem os programas da EJA. Após o debate com os membros da comissão, as propostas de resolu-

5 No portal dos Fóruns da EJA do Brasil: www.forumeja.org.br podem ser encontradas memórias elaboradas pelo seu representante na CNAEJA. O mesmo ocorrendo no endere-ço www.forumeja.org.br/gt18 onde estão as memórias elaboradas pela representante da ANPED, que coordena o Grupo de Trabalho 18 – Educação de Jovens e Adultos.

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ções, principalmente no caso do Programa Brasil Alfabetizado e do Programa Fazendo Escola6, que representavam mais de 90% dos re-cursos disponibilizados pelo MEC, através da SECAD/DPEJA, sofrem as alterações acordadas, nem sempre consensuais, e são publicadas. Há um limite explícito nessa intervenção da CNAEJA, no que concerne às decisões apresentadas nas resoluções, primeiro, o fato das minutas nem sempre serem enviadas previamente para um estudo minucioso por parte dos membros da comissão em debate com seus pares; se-gundo, quando isso ocorria havia também por parte de membros da comissão um silenciamento, talvez por desconhecimento das ques-tões específicas que envolviam a pauta de alfabetização e da EJA.

Nessa relação de consulta, diálogo, consenso e dissenso que po-de ser observada nas reuniões da CNAEJA, chama a atenção do pon-to de vista da gestão das políticas para a EJA, a legitimidade que es-sa comissão vai adquirindo. Todavia, legitimidade não significa um alinhamento com todos os encaminhamentos levados a cabo pelo DPEJA e pela SECAD. Um exemplo claro disso pode ser evidenciado no processo de discussão nacional que fora desencadeado pela SE-CAD, em 2007, em ação conjunta com a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação - CNE, que resultou em debate público a partir de três textos encomendados a especialistas da área, cujos temas em questão eram: idade de ingresso na EJA, certificação e educação a distância para essa modalidade7. A disponibilização dos textos on line foi seguida de três audiências regionais com par-ticipação dos representantes da CNAEJA desde o processo de elabo-ração dos textos às audiências. O maior ponto de divergência nesse processo se deu em relação à idade para o ingresso na EJA, cujo tex-to gerador do debate fora escrito por uma representante da CNAEJA que defendia que a matrícula na EJA deveria ser na idade mínima de dezoito anos, em respeito a outros preceitos legais que afirmam que o adolescente deve ser atendido na modalidade “regular” de ensino.

Esse debate da idade de entrada na EJA voltou por várias vezes à discussão na reunião da CNAEJA. No parecer da Câmara de Educa-

6 Para conhecer como funcionam esses programas, acesse o portal do MEC, www.mec.gov.br ou ainda, o portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, www.fnde.gov.br .7 Os textos mencionados podem ser encontrados no portal dos fóruns www.forumeja.org.br.

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ção Básica do CNE, a conselheira relatora acompanha a posição de defesa da matrícula após os dezoito anos para a EJA.

Define-se que a idade mínima para os Cursos da EJA deve ser de dezoito anos completos, tanto para o Ensino Fundamental como para o Ensino Médio e que, para tanto, dada a complexi-dade que essa mudança trará aos sistemas de ensino, torna-se indispensável:

(...)

- Proporcionar tempo de transição necessário para a adequação gradativa dos sistemas a essa definição, no sentido de estabele-cerem política própria para o atendimento dos estudantes ado-lescentes de quinze a dezessete anos nas escolas de ensino se-quencial regular, consignada nos projetos político-pedagógicos.

(...)

- Estabelecer o ano de 2013 como data para finalização do perí-odo de transição, quando todos os sistemas de ensino, de forma progressiva e escalonada, atenderão, na EJA, apenas os estudan-tes com dezoito anos completos.

- Incentivar a oferta da EJA em todos os turnos escolares: matu-tino, vespertino e noturno, com avaliação em processo, para os estudantes com dezoito anos completos (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2008).

Esse parecer da conselheira, seguido da minuta de resolução, foi aprovado no CNE e encaminhado para o Ministro da Educação que não o homologou até o presente momento. Quando questionado, em reunião da CNAEJA, pelo motivo da não homologação do Parecer, o secretário da SECAD informou à comissão que o Ministro não ho-mologaria sem antes ter as garantias de que os adolescentes entre quinze e dezessete anos seriam atendidos pelos sistemas estaduais e municipais no seu direito à educação. Essa posição do secretário e do ministro causou estranhamento entre vários membros da CNA-EJA, em especial, à especialista que elaborou o texto gerador do de-bate quanto à idade. Os relatos acessados dessas reuniões revelam que há uma falta de respeito do próprio ministério ao processo de debate nacional que acompanhou a discussão e as audiências, quan-

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do protela a homologação desse parecer, ao invés de chamar para si a responsabilidade de coordenar uma ação propositiva entre Se-cretaria de Educação Básica, CONSED e UNDIME no enfrentamento da garantia do direito dos adolescentes a uma educação que seja condizente com suas especificidades.

Em relação a esse tema, o que pensa o professor e a professora da EJA? Faz sentido defender que a modalidade da EJA deva definir melhor quem é seu público alvo, tendo como uma das referências o recorte etário? Como tem sido lidar com adolescentes de quatorze, quinze, e dezesseis anos de idade em classes onde convivem os jo-vens de até vinte e nove, os adultos de até cinquenta e também os idosos? Será uma política coerente facilitar a conclusão da Educação Básica, por meio do acesso a exames supletivos para adolescentes de quinze anos e jovens de dezoito? Por outro lado, como enfrentar a situação do fracasso da escola diurna que “empurra” os adolescen-tes para o noturno como uma forma de se “livrar daqueles que dão trabalho”? Essas são questões polêmicas e têm uma relação direta com o que se faz ou não se faz nas salas de aula da EJA.

Uma última questão que chama a atenção quando do acesso às poucas fontes de informações sobre as discussões realizadas na CNAEJA e que interessam a uma perspectiva de gestão democrática para a modalidade EJA, são as poucas vozes da “diversidade”. Não se observa concretamente, nas pautas apresentadas ou nos seus des-dobramentos, grandes intervenções que venham, por exemplo, do segmento indígena, juventude, economia solidária, ambiental, ou ainda, da CNTE, CONTAG ou MST. Há uma forte intervenção de CON-SED e UNDIME em parte do representante dos fóruns, movimentos de alfabetização, ONG´s com atuação em EJA e universidades, nas discussões das resoluções, em especial de alfabetização e EJA, pela óbvia responsabilidade daqueles atores com os programas. Há uma voz que se soma a CONSED e UNDIME, na questão da formação de professores e que vem do segmento universidade. Esse é um desa-fio para essa comissão. Como ter uma participação mais equilibrada em termos de influência na definição da política da EJA? Como ga-rantir, de fato, o perfil intersetorial dessa modalidade?

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COORDENAÇÕES ESTADUAIS DA EJA - OCUPANDO ESPAÇOS NO LOCAL PELA INDUÇÃO NACIONAL

A existência de coordenações específicas para EJA nas secretarias es-taduais de educação remonta do contexto do antigo Departamento de Ensino Supletivo (DESU), fortalecido a partir da Lei 5692/71, que em grande medida, num Estado burocrático e patrimonial como já referido, acabava por reproduzir a estrutura que estava na instância federal nos estados. A atribuição de oferta de educação para jovens e adultos era, até o início da década de noventa, exclusiva das redes estaduais, sendo que os municípios dependiam de autorização dos conselhos estaduais para a abertura de cursos supletivos. Essa mo-dalidade de ensino só passou a ser ofertada de forma autônoma pelos municípios a partir da constituição desses como sistemas próprios.

Essa predominância da matrícula da EJA nas redes estaduais já não faz parte da realidade atual, como pode ser observado na Tabela abaixo.

Matrícula de EJA no Ensino Fundamental em cursos presenciais com avaliação no processo por dependência administrativa 1997 – 2006

1ª a 4ª séries 5ª a 8ª sériesTotal Fed. Estad. Mun. Priv. Total Fed. Estad. Min. Priv

1997 899.072 282 512.598 361.538 24.654 1.311.253 562 942.089 221.383 147.219

1999 817.081 259 371.087 414.744 30.991 1.295.133 431 909.548 282.012 103.142

2001 1.151.429 181 315.377 817.009 18.862 1.485.459 4.704 923.612 450.731 106.412

2003 1.551.018 98 352.490 1.180.243 18.187 1.764.869 811 1.035.015 666.721 62.322

2005 1.488.574 149 282.562 1.183.618 22.245 1.906.976 297 1.017.609 843.518 45.552

2006 1.487.072 159 282.467 1.189.562 14.884 2.029.153 230 1.098.482 891.236 39.205

Fonte: Censo Escolar do INEP

Os dados demonstram o crescimento da matrícula municipal em EJA, principalmente no primeiro segmento ou nos primeiros anos do Ensino Fundamental, seguido da redução dessa matrícula nos estados, com uma presença muito próxima da rede municipal à da rede estadual no que concerne à matrícula no segundo segmento do Ensino Fundamental. É importante destacar que essa matrícula que vinha se mantendo contida até 2001, sofre um impulso do governo federal com a criação do Programa Recomeço que repassa recursos

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para apoiar a matrícula em EJA, principalmente nos estados das re-giões Norte e Nordeste, tentando amenizar os efeitos negativos da exclusão da contagem dos alunos da EJA na implantação do Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e valorização do Magistério

– FUNDEF, aprovado em 1996.Esse aspecto do financiamento da EJA pela via indireta do Pro-

grama Recomeço, que a partir de 2003 passa a ser denominado de Programa Fazendo Escola, é decisivo para a articulação nacional dos coordenadores da EJA. Isso se deu pelo fato das resoluções que libe-ravam os recursos dos programas do governo federal para estados e municípios induzirem a indicação de uma pessoa e posteriormente, de uma equipe coordenadora da EJA, que se responsabilizaria pelos dados da aplicação dos recursos em cada localidade.

Art. 3º - Participam do(sic) EJA:

(...)

IV - Equipe Coordenadora do EJA - responsável pela comunica-ção direta entre os Oex e os demais participantes do Programa, pelo assessoramento aos Oex na gestão financeira, técnica e operacional do Programa, e para exercer outras atribuições que lhes forem conferidas pelos participantes do Programa. (...)

Art. 21 São competências da equipe coordenadora do EJA:

I - servir de canal direto de comunicação do Oex com os demais participantes do Programa;

II - assessorar os Oex na gestão financeira, técnica e operacional do Programa;

III - exercer outras atribuições que lhes forem conferidas pelos participantes do Programa. (BRASIL, 2003)

Essas atribuições da equipe coordenadora demandam do MEC um acompanhamento maior no cumprimento desses dispositivos. Isso vai acontecer por parte do órgão de monitoramento do repasse financeiro, que é o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação

- FNDE, mas principalmente, a partir de 2004, pelo Departamento de Políticas de EJA da SECAD. Até a implantação do novo fundo - Fundo

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de Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, em 2007, os recursos do Fazendo Escola estavam sendo repassados como apoio complementar para estados e municípios com matrícula em EJA. A resolução a seguir orientava como gastar os recursos que ainda se encontravam em posse de es-tados e municípios e que eram do exercício anterior. Nela aparece novamente a menção, não só a uma equipe coordenadora do pro-grama na localidade, mas já identifica um de seus membros como sendo da coordenação pedagógica da EJA no sistema.

Art. 15. Continuará vigente, até 29 de fevereiro de 2008, a Equipe Coordenadora do Programa designada pela Eex e cadastrada em 2006, por meio eletrônico, no endereço www.mec.gov.br/monieja.

§ 1º Em caso de alteração dos membros da Equipe Coordenadora do Programa, em 2007, ou da necessidade de sua constituição, a Eex deverá designá-la formalmente, mediante ato do Poder Executivo, observando os seguintes requisitos:

I - ser composta por, no mínimo, 2 (dois) membros;

II - um dos membros deverá compor a Coordenação Pedagógica da Educação de Jovens e Adultos dos sistemas municipais ou es-taduais de ensino. (BRASIL, 2007b)

Os exemplos citados anteriormente são para ilustrar a relação que o DPEJA estabeleceu com os coordenadores estaduais da EJA, a partir de 2004, quando passou a promover reuniões semestrais com esses gestores para discutir os encaminhamentos das políticas da EJA. As questões concernentes ao andamento da modalidade nos sistemas de ensino eram pautas, tendo como um dos temas priori-tários o Programa Brasil Alfabetizado e sua necessária articulação com a EJA para garantir a continuidade de estudos aos que iniciavam o processo nas classes de alfabetização. A indicação em uma resolu-ção de âmbito federal acerca da necessidade de existência de uma coordenação pedagógica da EJA foi fundamental para a conquista desse espaço no âmbito dos sistemas estaduais e municipais, o que não significa dizer que essa constituição esteve livre das indicações políticas que permeiam as composições dos cargos de gestão pública.

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Além da possibilidade de intervir na elaboração das resoluções dos principais programas de financiamento para alfabetização e EJA, entraram na pauta das reuniões com coordenadores outros temas como os que foram para as reuniões da CNAEJA, tais como a discus-são das diretrizes operacionais para EJA, o movimento preparatório à VI CONFINTEA, a inclusão das matrículas da EJA no FUNDEB, que resultou no fim do Programa Fazendo Escola, a produção de mate-rial didático específico para EJA, entre outros. Certamente de todas as outras temáticas que foram objeto dessas reuniões, duas expres-saram as divergências claras entre a posição do MEC e a posição dos coordenadores da EJA: a primeira, no que concerne ao Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos - ENCEJA, a segunda, quanto a forma como as matrículas da EJA são consideradas no FUNDEB.

O ENCEJA foi criado pelo MEC em 2002, por meio do Instituto Na-cional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, partindo de uma demanda de brasileiros que residiam no exterior terem um compro-vante de conclusão de escolaridade para ocupar postos de trabalho, como era o caso explícito de trabalhadores brasileiros no Japão. A certificação por exame tem uma longa história de existência no Bra-sil, pela via dos exames supletivos que são de responsabilidade dos sistemas estaduais desde a década de setenta. O Ministério da Edu-cação não tem atribuição de certificar por meio de exames, por isso lança a proposta de adesão dos Estados ao ENCEJA, para que esses, sim, certifiquem os que forem aprovados nas avaliações. O ponto de divergência nessa questão fica evidenciado numa carta aberta.

Carta sobre o ENCCEJA, elaborada pelos Coordenadores Estaduais de EJA, nos dias 07 e 08 de março de 2006, em Brasília.

Os Coordenadores Estaduais de Educação de Jovens e Adultos, reunidos em Brasília nos dias 07 e 08 de março de 2006, a res-peito da proposta de reedição do ENCCEJA – Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos, manifestam as seguintes considerações e preocupações:

Todos os Estados brasileiros já ofertam na modalidade EJA, con-forme determina o artigo 38 da LDB, cursos e exames. Há, porém, carência de pesquisas na área;

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1. A Educação de Jovens e Adultos, neste Governo, tem sido trata-da como modalidade da Educação Básica que atende a demanda social de um público historicamente excluído e não como corre-ção de fluxo ou aligeiramento da escolarização;

2. A EJA com a reedição em nível nacional do ENCCEJA estará re-cebendo do MEC/INEP tratamento discriminatório, incoerente com as suas políticas, pois diferentemente de outras avaliações nacionais fará, com este Exame, a certificação;

3. A EJA, hoje nos estados, vem priorizando a inclusão do público jovem, adulto e idoso em cursos, tendo em vista a adequação às demandas destes. Portanto, transformar os Exames em uma po-lítica centralizada do Governo Federal, com divulgação nas mí-dias, poderá significar a migração de adolescentes entre 15 e 18 anos do Ensino Regular, bem como dos alunos jovens, adultos e idosos dos cursos de EJA para os exames supletivos. (Disponível na integra em: http://www.forumeja.org.br/node/723)

O texto segue com as ponderações dos coordenadores sobre o que julgam ser a grande contribuição do INEP para a EJA, não com a reedição do ENCEJA, mas com a “criação e aplicação de instrumen-tos para o diagnóstico da EJA no que se refere, principalmente, à situação sócio-econômica e educacional do público ingresso ou po-tencial desta modalidade, bem como a análise em conjunto de seus resultados”. Posicionamento idêntico foi assumido no Parecer do CNE, anteriormente referido. Tanto INEP quanto a SECAD ignoram essa posição e mantém a aplicação do exame até os dias atuais sem fazer o enfrentamento com os argumentos postos nessa carta aber-ta. É sem dúvida mais uma demonstração dos limites de uma gestão democrática e participativa, que avança nas convergências, mas não enfrenta as diferenças.

Quanto ao FUNDEB, os Coordenadores Estaduais da EJA reco-nhecem a importância da inclusão das matrículas da EJA na com-posição do fundo, todavia acompanham a reivindicação dos Fóruns de EJA, no que concerne a não discriminação desses alunos, quando comparados com os demais alunos do Ensino Fundamental e médio, com a indicação de um valor aluno/ano menor para essa modali-dade. Esta é uma decisão que infelizmente ainda está presente no FUNDEB, enquanto o valor referência para a definição do custo alu-

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no é 1, para os alunos matriculados nos primeiros anos do Ensino Fundamental urbano, o valor do aluno da EJA equivale a 80% desse valor referência. Outro limite que a EJA possui é a criação de uma trava no gasto dos recursos do FUNDEB, que representa dizer que os gatos com as matrículas da EJA só poderão atingir o limite de 15% do que for recebido do fundo. Por que essa visão discriminató-ria com os alunos da EJA, no interior do mecanismo mais expressivo de financiamento da Educação Básica, o FUNDEB?

Parte dessa resposta está na constatação de que a EJA esteve muito mal representada na discussão do FUNDEB, internamente no ministério e externamente nas ruas. Não houve um forte movimen-to defendendo a inclusão da EJA no fundo (como o movimento das fraldas pintadas no caso da Educação Infantil); não houve um lobby expressivo em defesa da EJA em condições de igualdade com as ma-trículas do Ensino Fundamental, que ganhasse um espaço efetivo na imprensa; não houve unidade na defesa da EJA junto ao CONSED e à UNDIME. Tudo isso coloca a modalidade numa situação de inferiori-dade em relação às demais modalidades da Educação Básica. Quais serão para a EJA os efeitos do peso de 80% do valor de referência do fundo nas diferentes regiões do país? O que significa o fato da apro-priação dos recursos em função das matrículas na EJA não poder ultrapassar 15% do total de recursos do FUNDEB em cada sistema, conforme o expresso no art. 11, da Lei N. 11.494/2007? Quanto ca-da professor e professora da EJA, esteja ele em sala de aula ou na coordenação pedagógica, sabe sobre a lógica do financiamento da EJA e da Educação Básica?8

Algumas questões já podem ser respondidas. Havia uma pergun-ta no interior do MEC em 2006: a entrada da EJA no FUNDEB repre-sentaria ou não uma explosão de matrículas nessa modalidade? O Censo Escolar de 2007 a 2009 demonstra que não há nenhuma con-dição de explosão, ao contrário, há uma queda nessas matrículas. Isto, tanto pode ser interpretado como o desestímulo do gestor em impulsionar o incremento de uma matrícula de valor menor, quan-to pode revelar a difícil tarefa que é atrair para as escolas jovens e

8 Para maior compreensão sobre o tema, sugerimos a leitura do artigo do Professor José Marcelino de Rezende Pinto, USP/Ribeirão Preto, publicado na Revista Brasileira de Polí-tica e Administração da Educação, v. 25, nº 2, mai/ago 2009 (p. 323-340).

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adultos que já passaram por elas e não têm mais estímulo para re-tornar, em outras palavras, não veem sentido na escolarização.

A questão colocada por gestores municipais e estaduais, quando da vigência do FUNDEF, era como ampliar a oferta da EJA sabendo-se que as suas matriculas não seriam contempladas com os recur-sos vinculados ao fundo? Ela já estava respondida naquele contexto, quando o FUNDEF contemplava 15%, dos 25% das receitas vincu-ladas à manutenção e desenvolvimento do ensino - MDE, portanto, havia ainda uma margem de 10% dos recursos, não vinculados ao FUNDEF, que poderiam incluir as demandas da EJA. O mesmo ocor-re hoje com o FUNDEB, mesmo que a margem que sobre fora do fundo seja menor, pois 20% dos recursos vinculados à MDE com-põem o novo fundo, também cabe ao gestor público ainda utilizar os 5% restante. A situação dentro do novo fundo acaba sendo mais favorável, pois hoje as matrículas da EJA são contabilizadas na sua integralidade para a composição dos recursos do fundo. Isto signifi-ca que não cabe o argumento da falta de recursos para o gestor abrir turmas da EJA e mantê-las com quadro efetivo de professores. Esta é uma decisão política do gestor público que os próprios coordena-dores da EJA precisam compreender.

FÓRUNS DA EJA – A CONQUISTA DE UM ESPAÇO DE INTERLOCUÇÃO

Retomando os espaços coletivos de construção da política da EJA, partindo do olhar da gestão e do financiamento, é preciso reconhe-cer a interlocução hoje feita pelo MEC com os Fóruns da EJA do Bra-sil. Para compreender o significado que hoje possuem esses Fóruns é preciso que se compreenda a sua origem. Aqueles que atuam com EJA no Brasil, pelo menos há quinze anos, certamente recordam o que significou, para esse campo, a mobilização vivida em preparação à V Conferência Internacional de Educação de Adultos, organizada pela UNESCO, em 1997, na cidade de Hamburgo, Alemanha. Um sig-nificado, não tanto pelos efeitos concretos da Agenda elaborada em Hamburgo para cada país, mas pelo que representou para o Brasil aquele momento histórico que resultou na constituição dos fóruns.

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Em 1996, o MEC convocou e organizou uma série de encontros pelo país, envolvendo diversos segmentos que atuavam na Educa-ção de Jovens e Adultos: secretarias estaduais e municipais, univer-sidades, movimentos populares, sindicatos, representantes da área empresarial, organizações não governamentais, enfim, aqueles que de forma direta ou indiretamente estavam envolvidos com a EJA. O objetivo desses encontros era o de elaborar um diagnóstico da realidade de atendimento da EJA no país, que o ministério, àquela ocasião, não possuía. Ao mesmo tempo, indicar proposições para a política nacional da EJA.

O atendimento ao chamado do ministério foi imediato. Foram realizados encontros estaduais, regionais e o encontro nacional em setembro de 1996, de onde se retirou, na plenária final, o que se julgava na época ser o documento representativo da realidade na-cional que seria levado para o Encontro Regional Latino America-no e Caribe, preparatório à V CONFINTEA, pelos delegados eleitos nessa mesma plenária. Os debates travados nesses encontros não foram tranquilos, havia a cada etapa de discussão uma preocupação do MEC em amenizar o tom de crítica à política da EJA existente no país, todavia, sem poder encobrir a realidade dos fatos. O resultado desse processo coletivo foi um documento que demonstrava a baixa escolaridade da população jovem e adulta no país e a ineficiência de várias ações descontínuas dos governos, que dificultavam a consoli-dação da EJA como política pública.

Finalizada a etapa de preparação nacional à V CONFINTEA, os delegados retirados por segmento na plenária do encontro brasilei-ro participaram do Encontro Regional da América Latina e Caribe, que ocorreu em janeiro de 1997 em Brasília, quando lá se surpreen-deram com os representantes do MEC entregando outro documento aos representantes das demais delegações que não aquele elabora-do no processo de construção coletiva que se dera no país. Frente a essa atitude, os delegados brasileiros optaram por reproduzir o documento retirado do encontro nacional de 1996 e distribuí-lo no encontro regional, denunciando a atitude desrespeitosa do governo brasileiro para com o processo de construção coletiva que havia se dado no país.

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Esses fatos revelavam um contexto de relação Estado/Sociedade Civil, bastante desgastado, pois a convocação feita aos segmentos pa-ra elaborar um diagnóstico da realidade e proposições, no momen-to em que representou uma cobrança de postura efetiva do Estado, já não interessava mais a esse. Por outro lado, a estratégia política de mobilizar os segmentos, acabou por representar um momento importante na consolidação de uma rede de instituições, entidades e pessoas que, ao se perceberem juntas viram a condição de uma intervenção mais orgânica na tentativa da construção da política da EJA; o que resultou no surgimento dos Fóruns da EJA do Brasil que podem ser conhecidos pelo portal www.forumeja.org.br/. A presen-ça desses diversos segmentos atuando na EJA: sistemas de ensino, universidades, setor empresarial, movimentos sociais e populares, organizações não-governamentais, educadores e educandos, expli-cita que a temática da EJA é produto de questões estruturais da so-ciedade brasileira, o que demanda uma ação articulada entre esses.

A dinâmica estabelecida pela SECAD, através do DPEJA, para a discussão e o encaminhamento da pauta da EJA no Brasil, envolveu a retomada e a criação de espaços coletivos, onde se insere a rea-lização de reuniões semestrais com representantes dos Fóruns da EJA de todos os estados e uma representação dos regionais de cada estado. Há ainda a participação, desde 2004, efetiva e ininterrupta da SECAD nos Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adul-tos -ENEJA, organizados pelos Fóruns da EJA, que ocorrem todos os anos desde 1999, cujos relatórios podem também serem acessados no sítio www.forumeja.org.br, um portal construído coletiva e per-manentemente e que contou com financiamento inicial da SECAD e coordenação nacional da Universidade de Brasília.

Com essa nova configuração da relação Estado e sociedade civil, o Brasil se candidatou a sediar a VI CONFINTEA, organizada pela UNESCO9. Fazer a memória do que mudou entre o processo prepa-ratório à V CONFINTEA e o processo preparatória à VI CONFINTEA é fundamental para registrar que, de fato, o Brasil está noutro mo-

9 O aceite do Brasil como sede dessa importante conferência que ocorrerá em dezembro, em Belém, capital do Estado do Pará, representa um momento histórico não apenas para nosso país, mas para os países do Hemisfério Sul, onde se encontram os maiores índices de pobreza, analfabetismo e baixa escolaridade da população no planeta.

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mento da construção da política pública da EJA e não pode perder isso de vista. Compreende-se ser isso resultado também do proces-so de escuta e debate que vem ocorrendo nas reuniões técnicas com os representantes de fóruns desde 2004.

A realização dos encontros estaduais (Março/2008) e regionais (Abril/2008) preparatórios à VI CONFINTEA, contou com a coorde-nação dos Fóruns da EJA dos Estados e das secretarias de estado da educação. Nesses momentos, o documento base nacional foi ampla-mente debatido, tendo sido feitas várias sugestões de mudança e acréscimo. Buscou-se, ainda, realizar uma reflexão conjunta, a par-tir do levantamento e apresentação de dados estatísticos que au-xiliassem na compreensão da realidade estadual, regional e nacio-nal de atendimento e demanda da EJA. Em maio de 2008, a SECAD promoveu o Encontro Nacional Preparatório à VI CONFINTEA, em Brasília, com a presença de trezentos participantes, dentre os quais dez delegados eleitos em cada estado brasileiro, respeitando-se os segmentos representados nos Fóruns da EJA. Há uma intensa parti-cipação dos delegados nos debates e na confluência de ideias para a consolidação do documento final desse encontro, que está organiza-do em quatro partes: apresentação, diagnóstico da realidade da EJA no Brasil, desafios da EJA no Brasil e recomendações, igualmente disponibilizado no Portal dos Fóruns da EJA.

As memórias disponibilizadas pelos representantes dos fóruns na CNAEJA e pelos relatórios dos ENEJA´s revelam o quanto é tensa essa relação entre os fóruns e a SECAD. Não há consenso em pau-tas como as já citadas nas reuniões da CNAEJA e das coordenações estaduais da EJA. Todavia, num olhar histórico sobre o que ocorreu entre 1996 e 2009, pode-se afirmar que há um espaço de interlocu-ção importante criado entre o governo federal e os representantes de Fóruns da EJA que já resultou em proposições importantes para essa modalidade, entretanto, a realidade ainda exige abertura dos dois lados para o aprendizado da gestão democrática e da constru-ção coletiva.

É perceptível no movimento dos fóruns a preocupação com um maior envolvimento do segmento de educadores. Dessa preocupa-ção resultou a organização conjunta da SECAD de dois seminários

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nacionais de formação de educadores para EJA: o primeiro reali-zado no ano de 2006, em Belo Horizonte, MG, o segundo em 2007, em Goiânia,GO. A destinação de vagas para educadores nos ENEJAs também indica essa compreensão de que a construção da política da EJA não pode ser para os educadores, mas feita por – e com esses educadores. Os relatórios dos encontros nacionais, também dispo-níveis no portal dos fóruns, apontam para a compreensão de que os gestores e formadores precisam ter experiência de sala de aula da EJA, para que possibilite a tão propagada indissociabilidade teo-ria/prática, seja nos atos administrativos, seja na perspectiva peda-gógica. Cabe perguntar aos professores leitores desse artigo: você conhece o Fórum da EJA do seu Estado? Há algum fórum regional mais próximo da sua atuação? O que você pode fazer para que as suas reivindicações cheguem até os fóruns e possam ser levadas as diversas instâncias nacionais aqui apresentadas? A rede pública de ensino, da qual você faz parte, considera o Portal dos Fóruns como um espaço formativo?

UM PONTO FINAL PROVISÓRIO

Há muito ainda o que refletir sobre o momento que vive a EJA no Brasil. O que vimos nesse texto foi que a tentativa de discussão do financiamento e da gestão compartilhada em exercício aponta os di-versos desafios e possibilidades que já se apresentam nesse proces-so. Houve a constituição de espaços de consulta e assessoria, reve-lando a possibilidade da instituir uma nova forma de gestão pública, efetivamente democrática, demarcando os seus deveres e as suas potencialidades para assegurar o direito constitucional à educação para jovens e adultos.

Considero que estamos, de fato, num outro momento da história da construção da EJA no Brasil, no que concerne à relação Estado e sociedade civil. Há, sem dúvida, muito o que fazer ainda, não sendo possível negar quantos desafios precisam ser enfrentados por todos na EJA. Nesse sentido, o próprio documento brasileiro preparatório à VI CONFINTEA é claro quanto a esses desafios, quando apresenta

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mais de uma centena de recomendações aos responsáveis diretos do Estado pela garantia de acesso, permanência e qualidade na ofer-ta da educação aos jovens e adultos, mas também pelas inúmeras recomendações à sociedade civil no que tange ao seu papel mobili-zador, fiscalizador e crítico nas proposições para esse campo.

Para registro nessa trajetória histórica da EJA no Brasil, cabe en-tão destacar que o fato de o governo brasileiro ter desencadeado um processo de construção coletiva com a sociedade civil do diagnós-tico da realidade, dos desafios e das recomendações que envolvem o campo da EJA e que precisam ser considerados na construção da política pública, resultou na produção de um documento que é re-ferência nacional hoje para essa política. Portanto, o grande desafio está por vir, na retomada desse documento para orientar a formu-lação das políticas públicas para EJA que, de fato, venham a se con-solidar como políticas de Estado e não mais de governos, efetivando a perspectiva da Educação como Direito para jovens e adultos e sua inserção, inconteste, no sistema nacional de educação.

Aos professores e professoras da EJA fica o desafio de se pergunta-rem como estão a gestão e o financiamento da EJA em seu município ou na rede estadual onde atuam. Ao mesmo tempo, com as informa-ções aqui apresentadas, é necessário buscar acompanhar o que fazem seus representantes em cada instância das que foram analisadas: a CNAEJA, os coordenadores da EJA e os Fóruns da EJA do Brasil, para interferir nas proposições e caminhos que vêm sendo traçados para essa modalidade de ensino. Se, em última instância, tudo o que foi aqui colocado ainda parece muito distante da sua realidade de sala de aula, cabe perguntar a si mesmo como é possível entender melhor a modalidade da EJA e sua complexa lógica de construção coletiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Todos juntos para democratizar a educação. Brasília, 2004.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 6.093, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a reorganização do Programa Brasil Alfabetizado, visando a uni-versalização da alfabetização de jovens e adultos de quinze anos ou mais, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6093.htm >. Acesso em: 4 abr. 2009.

BRASIL, MEC, FNDE . Resolução/CD/FNDE Nº 42 de 30 de agosto de 2007b. Estabelece as normas de execução do saldo de recursos financeiros repas-sados, em 2006, à conta do Programa de Apoio aos Sistemas de Ensino para Atendimento à Educação de Jovens e Adultos – Fazendo Escola e altera dispo-sitivos da Resolução/CD/FNDE nº 23, de 24 de abril de 2006. Disponível em:

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FAORO, Raymundo. A aventura liberal numa ordem patrimonialista. Revista da USP. São Paulo: 17:14-29, mar./mai.1993.

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SOBRE A AUTORA

Maria Margarida Machado é Doutora em Educação pela PUC-SP. Atua como docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação desta universidade. É membro do Grupo de Pesquisa “Estado e Políticas Educacionais”, onde investi-ga sobre Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional, política de edu-cação municipal.

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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM TEMPOS DE VI CONFINTEA: POR “UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO”

Uma didática da invenção

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) que o esplendor da manhã não se abre com faca

(...) g) qual o lado da noite que umedece primeiro. Etc. etc. etc. Desaprender oito horas por dia ensina os princípios (...)

Repetir repetir — até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo. (Manoel de Barros, 1993, p. 9; 11).

POR UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO: NOVO TEMPO POLÍTICO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

A metáfora, uma didática da invenção do poeta Manoel de Barros (1993) expressa parcialmente nesse excerto, parece-me bastan-te adequada para pensar o tema deste artigo. Poetizar a realidade da luta política pelo direito à educação para todos põe em cena as ferramentas dessa luta sem faca, quando o poeta, ao abrir a manhã, descortina o mundo em seu esplendor e reaviva o desejo de, inven-cionando (qual o lado da noite que umedece primeiro?), refazer as recorrências (repetir é um dom do estilo), mudar as lógicas e... dida-ticamente assumir que é possível fazer diferente (repetir, repetir...) e avançar no entendimento da lição poética: desaprender oito horas por dia ensina os princípios.

Penso que uma didática da invenção andou em curso no campo da Educação de Jovens e Adultos (EJA) quando o país mirou, no hori-zonte de 2009, a VI Conferência Internacional de Educação de Adul-tos (VI CONFINTEA). Desta feita, com esperanças renovadas, pois, pela primeira vez, ocorreria no hemisfério Sul e mais ainda, no Bra-sil. Adiada de maio para dezembro desse mesmo ano por questões

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de segurança epidemiológica1, inscreveu, em Belém do Pará, a possi-bilidade de consolidar, internacionalmente, o processo preparatório que o país viveu e para o qual os Fóruns de EJA do Brasil foram de-cisivos na organização e articulação política em defesa do direito à EJA e à diversidade. Os resultados de todo o processo vivido no país ultrapassam, indubitavelmente, a realização do evento internacio-nal, pela possibilidade de consolidar e fortalecer concepções sobre a necessária política nacional de EJA2. Animados pela perspectiva de ampliação da compreensão do que é a EJA para o tempo presente e do que deverá vir a ser, em breve futuro, os Fóruns contribuíram na formulação dessas novas possibilidades e necessidades da ação educativa visando à consolidação do direito à educação – proclama-do —, expandindo seus sentidos para assegurar o direito à escola para todos, assim como projetar no horizonte próximo, para além da escola devida aos brasileiros, perspectivas do aprender por toda a vida, como condição primeira da formação humana, do fazer-se humano. A exigência de transformações nessas concepções e práti-cas postas em acordo, entretanto, não pode prescindir da dimensão solidária e intercultural.

O novo cenário brasileiro no campo da Educação de Jovens e Adultos, o desafio de pensar direito e democracia para segmentos desfavorecidos – direitos que se superpõem a outros muitos direitos negados, em um mundo de exclusões crescentes – tem sido, no atual contexto histórico, inventado pela sociedade e Governo Luiz Inácio Lula da Silva como prioridade. Uma prioridade que se deve adjetivar, mas prioridade. A disposição dos Fóruns de construir em parceria compromissos políticos efetivos, sobretudo guardando sua autono-mia, tem sido o elemento novo adicionado nos últimos tempos às for-mas de fazer política pública no país, com a participação de setores/movimentos organizados da sociedade. Condições de realização da EJA, portanto, no âmbito da ação local, regional e nacional adicio-nam-se à rede de pessoas, afetos e subjetividades postos em relação.

1 O anúncio de uma gripe suína originária do México fez com que a OMS recomendasse cautela com reuniões internacionais que favorecessem a propagação da doença, o que levou o Brasil e a UNESCO a adiarem a VI CONFINTEA.2 O Documento-Base Nacional preparatório à VI CONFINTEA pode ser acessado no sítio do MEC: www.mec.gov.br/secad .

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Educação de Jovens e Adultos em tempos de VI CONFINTEA: por “uma didática da invenção”

Os presentes compromissos políticos nacionais, assumidos no jogo de forças estabelecido entre esses novos atores, foram feitos diante da consciência de que práticas cotidianas são capazes de al-terar as lógicas do jogo político, se assumidas como estratégias de resistência, de negociação e de transformação, o que Santos (2002, passim) denomina de democratizar a democracia, sem o que a injus-tiça e a desigualdade não dão trégua às populações.

Externamente, a disputa com êxito para que o Brasil sediasse a VI CONFINTEA pareceu indicar, também, que havia mais do que

“políticas compensatórias em uso”, pela ousadia de o país assumir, diante do mundo, compromissos com rumos planetários, expondo suas próprias escolhas.

Tratar de prospectar os desdobramentos dos acordos significa realizar um certo exercício divinatório com peças chaves, cujas fa-ces reflexas, entretanto, nem sempre deixam ver o interior, porque opaciadas. Conferências, do tipo que esta representou, não cabem nas mãos de técnicos, se não de interesses políticos em nível de po-líticas de ministérios que transcendem a realidade do hemisfério Sul, de países emergentes, de continentes explorados e ainda, “(re)colonizados”.

É desse exercício de leitura de dados (reais e metaforicamente), que intentará esse artigo, trazendo argumentações e interrogações ao já posto, para em um esforço de visão futura, “empurrar” a linha do horizonte mais para diante, possibilitando ampliar o campo de mirada e, quem sabe, aportar elementos substantivos de observação e crítica prévia ao que está (no) por vir, o que estou denominando, de empréstimo tomado a Manoel de Barros, uma didática da invenção.

Vivem-se outros tempos na EJA e, passados alguns meses da VI Conferência Internacional, pode-se afirmar que a produção nacional brasileira, seja de parte dos pesquisadores do campo, seja de parte da sociedade organizada, seja por parte das políticas públicas, reve-lam um conjunto amadurecido e crítico, capaz de contribuir, agir e transformar a realidade ainda persistente na interdição ao direito de todos os jovens e adultos, para que estes usufruam a condição cidadã de participação no mundo da cultura escrita, em condição de igual-dade com aqueles que dispuseram do mesmo direito, na infância.

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“REPETIR É UM DOM DO ESTILO”...

Doze anos se passaram entre a V e a VI CONFINTEA. Entre elas, um balanço de Meio Termo, em 2003 e um mundo rigorosamente em mudança conceitual, experiencial e paradigmática. No contexto das nações, o Brasil intentou um novo projeto político – um país de to-dos – na aposta que a sociedade brasileira fez, pela primeira vez na história, de eleger como presidente um trabalhador do povo, um in-tegrante das classes populares e, com ele, apostar em um país que acolhe todos os seus cidadãos. De frente para os desafios internos de confrontar os interesses hegemônicos com os da maioria da po-pulação, não era possível dar as costas ao mundo. O mundo, como atento observador dos passos políticos do governo que se instalava, experimentava novos momentos críticos da situação econômica in-ternacional. Consequentemente, as respostas possíveis do governo instalado também exigiam conciliar projetos nacionais e perspecti-vas externas, sem desviar-se dos rumos traçados, sem desequilibrar

– e corresponder – as expectativas e apostas da oposição no “fracas-so” da opção política democraticamente eleita.

A Educação de Jovens e Adultos, como uma das prioridades para tornar o país de todos, acumulava desafios históricos que remonta-vam a um tempo cujo enfrentamento não se faria em um mandato. Mas enfrentá-los passava a ser prioridade ética inadiável. Inicial-mente, posta no fazer ler a toda gente, como direito, diante do con-tingente de pessoas que se integravam à sociedade, mas que não dominavam os códigos básicos pelos quais ela se estrutura. Mais: saber, no confronto com os movimentos que essa urgente ação, sozi-nha, era insuficiente e exigia, por isso mesmo, políticas complemen-tares de elevação de escolaridade e de consolidação da condição de leitores e de escritores aos recém-alfabetizados, sem o que o esforço seria quase nulo.

Havia ainda a enfrentar o legado da V CONFINTEA, traduzido por alguns marcos estabelecidos, mas fragilmente assumidos, pela po-lítica internacional da UNESCO. Pela produção de conhecimento de pesquisadores nacionais, havia que fazer valer, na prática, a condi-ção de sujeitos jovens como público da EJA, no fenômeno conhecido

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como de juvenilização, especialmente nos países do Sul. Essa condi-ção tomava em conta perspectivas de populações não escolarizadas e eminentemente jovens nesses países, fazendo com que se direcio-nassem a elas, distintivamente, alternativas próprias, conferindo-lhes mais que o estigma de um conjunto populacional violento ou alvo do exacerbado índice de mortalidade por assassinatos.

Reafirmada a concepção do aprender por toda a vida cabia, tam-bém, ressignificá-la, para que a distinção da concepção de educação permanente, da década de setenta, não tivesse de novo seu lugar — pensar o crescimento econômico como determinante para formar trabalhadores “capazes” de responder, sempre, às mudanças do mercado produtivo — mas, sim, o pensar a educação que responda por toda a vida a necessidades de sujeitos de direito — estes como centro da educação — cuja formação humana se faz pelos múltiplos e ininterruptos processos de aprendizado.

A escolha política de 2003, restrita à alfabetização, pelo lança-mento do Programa Brasil Alfabetizado (PBA), como é de supor, encontrou críticos vorazes de muitas inflexões políticas e teóricas.

“Repetir é um dom do estilo”?, parecia a melhor pergunta a ser nova-mente feita. Havia um embate a realizar e, desde 1996, com a força organizada da sociedade em rede, pelos fóruns de EJA que alcan-çavam, em 2003, cerca de 16 fóruns estaduais, além dos nascentes regionais, ampliando o espectro de defesa do direito à EJA pelo país.

A bandeira desses fóruns, nascidos no processo de preparação à V CONFINTEA, tinha, como inscrição mais forte, a defesa do direi-to à educação assegurado a todos em 1988 pela Constituição Fede-ral e que só em 2003 passava a estar presente na agenda do Brasil. Até então, não havia diálogo no país, mas os fóruns em crescente organização pressionavam o MEC de Paulo Renato Souza quanto à ampliação da universalização do Ensino Fundamental para todos os sujeitos de direito e não apenas para alguns: as crianças, confirman-do o estereótipo de que “estancar a fonte de analfabetismo” previne o país da “reprodução do mal”.

Era impossível imaginar que a ausência de diálogo dos oito anos do mandato anterior se perpetuasse com o novo governo. Era con-traditório aceitar que o PBA, cujo argumento era o direito de todos a

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ler e a escrever e, nesse todos, definir que não havia escolhas, eram efetivamente todos, por ser a opção ética da política que não podia assumir uns e não outros, pudesse delimitar a EJA a tão pouco, com tantas lições dolorosamente aprendidas com a história recente e passada.

Havia, no modelo do PBA, traços inconfundíveis: o quase volun-tariado dos primeiros tempos e alfabetizadores; bolsas baseadas em número de alunos em classe, arregimentados pelo alfabetizador, em lugar de remunerações dignas pelo trabalho da alfabetização; turmas cujo êxodo e êxito gratificavam ou não o alfabetizador etc., todos elementos conformadores de um modelo que a história tinha sobejamente exemplos de como não repetir. Repetiam-se as fórmu-las, os desenhos, as crenças, a escuta voltava as costas para as ex-periências da educação popular, de movimentos da sociedade, da ação organizada do MOBRAL do tempo da ditadura e da sucedânea Educar, mais alarde da Nova República do que disposição de enrai-zar a Educação de Jovens e Adultos nos sistemas públicos. Todos com muitas lições para desafiar o poder político de como não fazer programas com face de campanhas, pela certeza do fracasso.

Mas, um ano depois de resistência do MEC a rediscutir o modelo, chegava-se, no contexto de crise do Partido dos Trabalhadores (PT) que abalou seriamente o governo, a uma nova concepção de unida-de gestora da EJA, marcada pela alfabetização mas, também, pela educação continuada e pela diversidade3.

Havia mais no contexto de repetições da história: acordos na América Latina e Caribe tentavam vender assessoria cubana para um programa de alfabetização — Yo, si, puedo, — que, ainda mais perversamente, retrocedia na concepção de aprender a ler e es-

3 No início do governo Lula, a Secretaria responsável pelo PBA era a Secretaria Extraor-dinária de Erradicação do Analfabetismo (SEEA), que enfatizava, em primeiro lugar, um conceito rejeitado de erradicação, por exortar um mal a ser curado, em segundo lugar, na ideia de extraordinária, vinha essa confirmação atestando sua existência apenas enquan-to durasse o mal, que passaria, e então esta secretaria, provavelmente, deixaria de existir, confirmando uma segunda falsa acepção: a de que a EJA é apenas alfabetização, jogando por terra o conceito de aprender por toda a vida. Com a mudança, a Secretaria de Edu-cação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) toma lugar, contribuindo para recolocar o lugar da alfabetização (mantida até os dias atuais) no contexto mais amplo da educação continuada, que pressupõe o aprender ao longo da vida e incorporando a diversidade como a marca número um dos princípios que devem reger a EJA.

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crever academicamente produzida no país e na luta pelo direito ao Ensino Fundamental, como dever do Estado, tal como disposto na Constituição Federal.

Tal como previsto e antecipado no IV Encontro Nacional de EJA de 2002, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais, havia cenários em mudança e era preciso compreender seus significados e adivi-nhar suas inflexões para repactuar formas de pensar politicamente a Educação de Jovens e Adultos, segundo as condições democráticas ainda incipientes da sociedade brasileira. Era ali, naquele momento, que novas esperanças se faziam, e era impossível perdê-las no hori-zonte próximo.

Os aprendizados dos últimos sete anos sobre participação polí-tica na formulação de caminhos para a Educação de Jovens e Adul-tos, indicam que temos sido discípulos estudiosos, argutos, com acuidade, mas que há muito a aprender na “novidade” da relação estabelecida fortemente com o poder público, como interlocutores privilegiados. Se por um lado, faz-se a interlocução, considera-se oportuno que assim seja, por outro, essa escuta e diálogo, resultan-do em ações, é, também, alvo de parte do movimento que critica a disposição de parceria decorrente, a negociação exigente de proces-sos democráticos em que, não apenas se ganha, mas se cede, recua, avança, reformula.

Um halo de esperança, entretanto, uniu a todos nós, organizados, com a vinda da VI CONFINTEA para o hemisfério Sul, para Belém, cujo símbolo da Amazônia e da floresta, do homem e suas origens parece ter sido o pano de fundo mais vigoroso a sustentar a escolha do local. Mas... o que virá após Belém?

A EJA tem ensinado, a cada um de nós, que a diversidade é o ponto de partida para pensar qualquer ação e, como alerta Santos (2002), não apenas o pensar da diversidade, mas o vivê-la no coti-diano. Tem-se, diante da experiência desses sete anos de luta ímpar de reformulação de concepções, de formulação de propostas, de ar-ticulação de políticas, ainda muito por fazer, uma espécie de “tornar possível o impossível” (HARNECKER, 2000) – reduzir a desigualda-de, ampliar a equidade e fazer prática o direito à educação, descolo-nizando o saber e o conhecimento (Lander, 2000).

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“REPETIR, REPETIR — ATÉ FICAR DIFERENTE”

Com Manoel de Barros, novamente sou convocada a invocar uma didática da invenção para compreender os movimentos da política que se assemelham tanto no que diz respeito à vida nacional, quan-to à internacional. O movimento da vida cotidiana, em que se dão as micro possibilidades de mudar a existência exige invencionar a cada dia, recriando os modos e procedimentos pelos quais mudamos a nós e o mundo, complexamente... até ficar diferente!

Entretanto, o movimento de repetir, repetir pode ser observado ao longo dos 60 anos passados, desde que a I Conferência Internacio-nal de Educação de Adultos ocorreu, em 1949, em Elsinore, na Dina-marca e, repetidamente, não destoam dos acontecidos nacionalmente, nesse movimento de onda — fluxo e refluxo — em que ideias sobre a educação de adultos (e mais tarde de jovens e adultos) vêm e voltam. Para compreendê-los, o corte histórico sobre as conferências interna-cionais, cujos objetivos cruzam-se com a educação de adultos, faz-se indispensável, observando-se suas repetições, avanços, recuos...

A Europa do pós-guerra ressentia-se da necessidade de sustentar a educação dos adultos — todos novamente aprendizes de um mundo que se modificava, dramaticamente, desafiando a educação de adultos e trazendo à tona, com intensidade, os marcos dos direitos humanos de 10 de dezembro de 1948, firmados na Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, assumida pela Assembleia Geral das Nações Unidas:

(...) como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos, tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colo-cados sob a sua jurisdição.

Essa Declaração tornou-se, ao longo dos anos, um padrão de referência por meio do qual se avalia o grau de respeito e cumpri-mento das normas internacionais de direitos humanos. As forças

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internacionais protagonizadas pela UNESCO, mesmo atuando con-traditoriamente, em muitos casos porque eivadas dos interesses do capital, atuam para tornar de todos o direito à educação, o que implica considerar, também, iguais no direito, jovens e adultos que demandam alfabetização e cuja chave — a leitura e a escrita — lhes autoriza, diferenciadamente, o acesso e as oportunidades aos bens da cultura escrita.

A II Conferência acontece em 1960, em Montreal, no Canadá, marcando os intervalos em que essas conferências se dariam: 11 anos depois de Elsinore, os países, convocados novamente pela UNESCO, reuniam-se por dez dias para discutir, dentre vários temas conexos, o papel e o conteúdo da educação de adultos. Atribuía-se à ideia de progresso um conteúdo realista e científico ligado à vida, para formar o que era então denominado de homem moderno, pos-sibilitando o conhecimento e a estima recíproca dos povos e de seus valores culturais. Rejeitava-se qualquer discriminação de raça (e o ódio decorrente, explicitamente apontado), de sexo (compreendido aqui como gênero), nacionalidade, religião, com a atribuição, ainda, de contribuir para a igualdade em direitos de mulheres e de homens em todos os setores da vida social, reduzindo o desequilíbrio entre educação rural e urbana e com reforço à paz, preocupação manti-da presente onze anos depois de Elsinore, talvez pela insegurança sucedânea à memória recente da guerra. Destacava-se o papel de-sempenhado pela linguagem da arte e intelectuais e artistas eram convocados para participarem da educação de adultos.

O modo de conceber a formação educacional dos sujeitos incluía o desenvolvimento da capacidade intelectual, de julgamento e de re-flexão e o senso estético dos cidadãos que se elevariam, assim, como indivíduos e em respeito a seus pares e a seu trabalho. Valorizavam-se as formas tradicionais de manifestação da arte popular, como pa-trimônio a ser preservado para que não se perdesse e destacava-se que a educação de adultos deveria integrar o sistema educacional, não devendo existir como um apêndice.

A III Conferência Internacional de Educação de Adultos, doze anos depois, 1972, ocorre em Tóquio, no Japão. As principais conclu-sões foram agrupadas nos seguintes itens: educação e necessidades

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humanas, participação, utilização dos meios de informação, admi-nistração, organização e financiamento, cooperação internacional. Temas recorrentes (repetir, repetir...), e a associação, pela primeira vez, da educação às necessidades humanas, mais tarde traduzidas por necessidades básicas de aprendizagem, recortando a abrangên-cia da proposição nesse momento.

A educação funcional era uma ideia cara à Conferência, entendida como aquela pela qual o homem se realiza no quadro de uma socie-dade em que a estrutura e os elementos de superestrutura facilitam o pleno desenvolvimento da personalidade humana e contribuiria para a formação de um homem criador de bens materiais e espiri-tuais, ao mesmo tempo em que lhe permitiria usufruir, sem restri-ções, de sua obra criativa. Mas a educação de adultos tinha ainda objetivos mais amplos: favorecer um sistema funcional de educação permanente, em que os estabelecimentos escolares se envolveriam com toda a comunidade, atuando como agentes de instrução, entre muitos outros, por ter papel precípuo de ensinar os alunos a apren-der. Novamente os estreitos laços entre os objetivos da educação de adultos e a causa da paz mundial estão presentes.

A Conferência Geral de Nairóbi, entre 26 e 30 de novembro de 1976, ocorre quatro anos após. Surge nesse conjunto compreensivo pela importância que lhe é atribuída tanto na posterior V CONFIN-TEA, quanto na última, a VI. O conceito de educação permanente tem abordagem enfática no documento final, entendido como o que se expressa por um projeto global de reestruturação do sistema educa-tivo existente, assim como para desenvolver todas as possibilidades de formação fora do sistema educativo. Ainda, longe de limitar-se ao período de escolaridade — a chamada educação formal —, abarca todas as dimensões da vida, áreas do saber e conhecimentos práti-cos adquiridos por todos os meios, contribuindo para o desenvolvi-mento da personalidade. Processos educativos, de qualquer forma, de crianças, jovens e adultos se fazem ao longo da vida, devendo ser considerados como um todo (UNESCO, 1976, p. 2).

Em Nairóbi, a educação de adultos se insere nesse projeto glo-bal de educação permanente, como subconjunto integrado, sendo entendida pela totalidade dos processos organizados de educação,

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com qualquer conteúdo, de qualquer nível ou método, formais ou não formais, que prolonguem ou recoloquem a educação inicial ofe-recida nas escolas e universidades; também sob a forma de aprendi-zagem profissional, graças às quais as pessoas consideradas adultas pela sociedade a que pertencem desenvolvem atitudes, enriquecem conhecimentos, melhoram competências técnicas ou profissionais, ou as reorientam, fazendo evoluir atitudes ou comportamentos, na dupla perspectiva de enriquecimento integral do homem e de parti-cipação no desenvolvimento socioeconômico e cultural, equilibrado e independente (UNESCO, 1976, p. 2). Nas muitas funções atribu-ídas à educação de adultos, observa-se sua vinculação, precipua-mente, à ideia de desenvolvimento, cara para a década de setenta. Vivia-se um tempo de renovação da teoria do capital humano e era preciso estabelecer o papel da educação de adultos para o sistema capitalista.

A IV Conferência, em Paris, em março de 1985, traz marca di-ferenciada das anteriores, fruto do estado do conhecimento levado a termo desde Tóquio, na década anterior. Nesta Conferência, as ideias da educação de adultos integrando um sistema de educação permanente, vinculando educação e desenvolvimento econômico, somam-se à que toma força nesta década, a andragogia, uma “ci-ência” equivalente à pedagogia, só que proposta para sujeitos adul-tos, com especificidades e requerimentos relativos ao mundo adul-to, respondidas com conhecimento adequado sobre as formas de ensinar e educar adultos. A formação de educadores sofre a maior crítica, apontando-se a necessidade de pesquisas que produzam co-nhecimentos específicos sobre o campo e o mundo adulto e seus processos de aprendizagem. Só esta Conferência faz alusão a este

“conceito”, equivocado em sua proposição e epistemologia4.

4 O conceito, de curta existência, “não pegou”, por vários motivos. O primeiro, e mais sig-nificativo, em meu entendimento, é porque a etimologia da palavra não se refere (andros) a homem, com o sentido de humanidade, portanto incluindo homens e mulheres adultos, mas a masculino, havendo uma total identificação desse prefixo no campo da biologia, em que a diferenciação sexual se faz entre homem (andros) e mulher (gino), determinando, por exemplo, palavras como androceu (relativa às estruturas masculinas nas flores) e gineceu (relativa às estruturas femininas); andrologia (estudo dos aspectos masculinos na diferenciação sexual) e ginecologia (aspectos femininos) etc. O segundo motivo, é que, se a origem é esta e ainda que se quisesse estender o significado para as mulheres, se es-taria, uma vez mais, lidando com a lógica masculina como generalizante (os professores,

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A Conferência, por fim, declara o direito de aprender como desa-fio capital da humanidade, traduzindo-o por: direito de saber ler e escrever; direito de fazer perguntas e de reflexionar; direito à ima-ginação e à criação; direito de interpretar o meio circundante e ser protagonista da história; direito de ter acesso aos recursos educa-tivos; direito de desenvolver competências individuais e coletivas.

A Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtiem, Tai-lândia, 1990, inaugura a década marcada por inúmeras conferências protagonizadas pela ONU, o chamado ciclo social. Havia mais de 40 anos que as nações do mundo afirmaram que “toda pessoa tem di-reito à educação”, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, em 1990, a Declaração de Educação para Todos constatava a presença de mais de 100 milhões de crianças sem acesso ao ensino primário, das quais pelo menos 60 milhões eram meninas, de mais de 960 milhões de adultos analfabetos, dos quais dois terços eram mu-lheres, somados ao analfabetismo funcional — problema em todos os países industrializados ou em desenvolvimento, de mais de um terço de adultos do mundo sem acesso ao conhecimento impresso e a tec-nologias, de mais de 100 milhões de crianças e de largo contingente de adultos que não concluíram o ciclo básico e de outros milhões para os quais o fato de o terem concluído não possibilitou a aquisição de novos conhecimentos, nem de habilidades essenciais à vida.

para designar a maioria de professoras, os trabalhadores, idem, todos os presentes etc.) e indo contra a denúncia de muitos autores adeptos da explicitação dos sujeitos homens e mulheres na enunciação dos textos, por não caber mais as formas dominantes de pensar e nomear o mundo pela lógica estritamente masculina, coerente com as lutas dos grupos de mulheres em todo o mundo, pelo apagamento de suas presenças em diversas culturas, anuladoras do lugar social das mulheres. Um terceiro motivo, consequente a estes, faz-se pelo fato de que a imprecisão/precisão (na oposição pedagogia/andragogia), justamente, não se coloca sobre os sujeitos, quando se explicita Educação Infantil, ensino regular de crianças, educação de adultos, porque nesses termos os sujeitos são bastante nítidos e visíveis. Também quando se usa pedagogia para se referir a crianças e a adultos, não se põe o problema. A questão está, justamente, na imprecisão de concepções sobre o que é ensinar crianças e o que é ensinar adultos, assim como sobre como se faz isto, para uns e para outros. O grande problema que a educação de adultos compartilha com a pedagogia (se se quiser tomá-la restritivamente aos sujeitos crianças) é a falta de conhecimento dos que fazem a educação sobre os modos e meios de intervir para produzir situações de aprendizagem que levem em conta a diversidade de sujeitos, suas origens, culturas, experiências, saberes prévios etc. Talvez, por isso, o esforço de introduzir um novo termo tenha se esvanecido, no labirinto de problemas com o qual se defronta a educação de adultos, para desfocar e debater, inocuamente, um novo termo, facilmente demolido pe-los estudiosos da área, pelos limites e ardis que contém.

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A Declaração afirmava, também, que durante a década de oitenta, problemas ligados à dívida externa, ao empobrecimento, à devasta-ção ambiental, guerra, ocupações, lutas civis, rápido aumento popu-lacional e decadência econômica, haviam dificultado os avanços da Educação Básica em muitos países menos desenvolvidos. Nos que o crescimento econômico permitira financiar a expansão da educação, assistia-se ao aprofundamento da desigualdade, com cada vez mais populações pobres privadas de escolaridade ou analfabetas, além de que, mesmo em muitos países industrializados, os cortes nos gastos públicos contribuíram para a deterioração do ensino. Reafirmava a esperança no novo século, pelas imensas conquistas científicas e tecnológicas que revolucionavam o conhecimento e poderiam con-tribuir para melhor qualidade de vida, de maior cooperação entre as nações, como aposta nas soluções pacíficas, com a queda do muro de Berlim e a mudança política na antiga União Soviética, do mesmo modo que no reconhecimento dos direitos essenciais das mulheres, em franca desigualdade em relação aos homens no aspecto educati-vo e, principalmente, cultural. O volume das informações é saudado também como possibilidade de compartilhamento, pelos recursos disponíveis de disseminação, em ritmo crescente e aceleração cons-tante, assim como a combinação da experiência acumulada de re-formas, inovações, pesquisas e o progresso em educação registrado em muitos países. Os conferencistas se encantavam e assumiam que, pela primeira vez na história, a educação para todos passava a ser uma meta viável.

A V CONFINTEA, em 1997, realizada em Hamburgo, na Alema-nha, se configurou como uma das conferências do ciclo social e de-clarou a educação de adultos mais que um direito — a chave para o século XXI, entendendo que “apenas o desenvolvimento centrado no ser humano e a existência de uma sociedade participativa, base-ada no respeito integral aos direitos humanos, levarão a um desen-volvimento justo e sustentável”. Ao reconhecê-la mais que um direi-to, afirmava ser, também, um dever e uma responsabilidade para com os outros e com toda a sociedade. Reconhecidas as profundas transformações que a educação de adultos sofrera durante a década, passa a incorporar o conjunto etário jovem, como sujeito da edu-

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cação de adultos e reconceitualiza o conceito da década de setenta para assumir o aprender por toda a vida como educação continua-da que, junto à educação de adultos, conformam uma necessidade, tanto nas comunidades como nos locais de trabalho, traduzidas por: direito de ler e de escrever, de questionar e de analisar, de ter acesso a recursos e de desenvolver e praticar habilidades e competências individuais e coletivas.

Belém do Pará, no Norte do Brasil, passa a abrigar a VI Confe-rência, finalmente em dezembro de 2009, depois do percalço do adiamento causado pela epidemia de gripe H1N1 cujo alarde, segu-ramente, fez mais estragos do que a própria epidemia, proclamando pelo tema aprendizagem e educação de adultos os imperativos para o alcance da equidade e da inclusão social, para a redução da pobre-za e para a construção de sociedades justas, solidárias, sustentáveis e baseadas no conhecimento, expressos nos marcos de ação a serem cumpridos pelos países membros.

O documento final da Conferência, expresso como Marco de Ação de Belém, diferentemente da Declaração anterior, é mais um desdo-bramento de estratégias para atingimento de metas não alcançadas até então, do que um documento conceitual que avança em relação ao estabelecido como referência teórica do campo, fazendo-o ape-nas pela reiteração de Nairóbi e de Hamburgo nas suas enunciações sobre o que a educação de adultos significa. Reconhecida como componente essencial do direito à educação, afirma-se ser necessá-rio “traçar um novo curso de ação urgente para que todos os jovens e adultos possam exercer esse direito”.

Entre os sujeitos de atenção, as mulheres continuam sendo des-tacadas, não apenas para o enfrentamento das múltiplas crises so-ciais, econômicas e políticas, mas também das mudanças climáticas. Aprendizagem ao longo da vida — tema da Conferência — ganha lugar por se atribuir a ela a resolução de questões globais e desafios educacionais. Pensada como continuum que passa da aprendizagem formal para a não formal e para a informal — “do berço ao túmulo”

— traduz-se como “uma filosofia, um marco conceitual e um princí-pio organizador de todas as formas de educação” em uma sociedade do conhecimento.

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Apesar do largo entendimento, a Conferência não pode ocultar o contingente analfabeto do mundo, da ordem de 774 milhões de adultos (dois terços dos quais são mulheres — continuamente re-petindo, como em 1990!), nem a grande parte da população mun-dial que vive na pobreza, com 43,5% sobrevivendo com menos de dois dólares por dia, cuja maior parte pobre vive em áreas rurais. A demografia aponta uma população jovem crescente nos países do hemisfério Sul em oposição ao envelhecimento da população do hemisfério Norte e a migração produzindo deslocamentos em lar-ga escala de áreas pobres para áreas ricas, dentro e entre os países. O hemisfério Sul ainda detém um número alto de países em que a grande maioria da população não atingiu o nível de escola primária e dados de 2006 demonstraram que cerca de 75 milhões de crian-ças (a maioria meninas... de novo repetindo ampliadamente o dado que em 1990 era de 60 milhões, com maioria de meninas) haviam deixado a escola precocemente ou nunca chegaram a frequentá-la.

Esses dados fundamentais, assim como outras constatações do contexto histórico em que a Conferência se dá, não se encontram, entretanto, no texto base denominado de Marco de Ação, mas no Anexo, nomeado como Declaração de Evidência, um termo, no mí-nimo, esvaziado de sentido em língua portuguesa, já que traduzido ao pé da letra do inglês (haverá também sentido nessa língua?), que melhor teria sido identificado como o contexto histórico em que a Conferência acontece, suas determinantes e possibilidades. Com sete páginas, no último parágrafo, a Declaração afirma fornecer os princípios subjacentes às recomendações e estratégias apresenta-das no Marco de Ação de Belém, justificativa suficiente que deveria tê-la feito introdutória ao documento final da VI CONFINTEA.

Organizada em três partes, a Declaração faz, na primeira, a abor-dagem de problemas e desafios mundiais educacionais globais, na segunda, apresenta os avanços na aprendizagem e educação de adultos desde a CONFINTEA V e, por fim, na última, a terceira, os desafios para a aprendizagem e educação de adultos.

É, entretanto, no parágrafo abaixo, que cito na íntegra, que a De-claração de Evidência parece pôr a mão na ferida exposta dos siste-mas que governos alimentam ininterruptamente:

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A falta de relevância social dos currículos educacionais, o núme-ro inadequado e, em alguns casos, a formação insuficiente dos educadores, a escassez de materiais e métodos inovadores e bar-reiras de todo tipo acabam por prejudicar a capacidade de os sis-temas educacionais existentes oferecerem aprendizagem de qua-lidade, capaz de abordar as disparidades de nossas sociedades.

Mantendo o padrão das muitas repetições verificadas ao longo dos 60 anos e de seis conferências, a alfabetização continua sendo o “pilar indispensável que permite que jovens e adultos participem de oportunidades de aprendizagem em todas as fases do continuum da aprendizagem”, parte do direito à educação e “pré-requisito para o desenvolvimento do empoderamento pessoal, social, econômico e político”.

A questão da governança se estrutura pelo reconhecimento de que “políticas e medidas legislativas para a educação de adultos precisam ser abrangentes, inclusivas e integradas na perspectiva de aprendizagem ao longo da vida, com base em abordagens setoriais e intersetoriais”, realizadas de “forma eficaz, transparente, responsá-vel e justa” e com investimento financeiro significativo para garantir a oferta de aprendizagem e educação de adultos de qualidade.

Também a perspectiva de pensar sujeitos da diversidade pela óti-ca da educação inclusiva reafirma (repetindo!) a necessidade de não excluir por idade, gênero, etnia, condição de imigrante, língua, reli-gião, deficiência, ruralidade, identidade ou orientação sexual, pobre-za, deslocamento ou encarceramento — todas condições produzidas pela desigualdade, expressão mais forte da diversidade nas socieda-des capitalistas e hierarquizadas, dos que têm e não têm. Tanto assim, que esse não ter é identificado como carências, associadas ao sujeito como responsável pela condição carenciada (recomenda-se tomar medidas para aumentar a motivação e o acesso de todos), cujo efeito cumulativo, para a Conferência, deve ser combatido.

No tocante à qualidade na aprendizagem e educação, o texto é impreciso e pouco rigoroso conceitualmente, invocando “um con-ceito e uma prática holística, multidimensional e que exige atenção constante e contínuo desenvolvimento”, e na continuidade deixa ainda menos claro o que quer que essa qualidade venha a significar.

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... ATÉ FICAR DIFERENTE. DESAPRENDER OITO HORAS POR DIA ENSINA OS PRINCÍPIOS

Politicamente pode-se dizer que a Educação de Jovens e Adultos tem, na contemporaneidade, um conjunto robusto de formulações, de compreensões e princípios (des)aprendidos nas oito e muitas horas pelas quais seus militantes, pesquisadores e sujeitos têm dis-pensado à luta pelo direito à educação para todos.

Nacional e internacionalmente, as sequentes repetições da his-tória demonstram que, a despeito das intenções renovadas, são in-suficientes as ações no campo da educação se estas não cercarem/articularem as ações intersetoriais que contribuem para a mudança da vida de forma global e não de parte dela porque sozinha nenhu-ma parte é capaz de mudar o todo.

Acordos internacionais, do porte dos que estão em jogo, são pe-ças chave para os países e, no exemplo brasileiro, se encaminhados ao Congresso podem ter força de lei, contribuindo para que mais uma ordenação legal se estabeleça e se ponha no rol das invenções possíveis do fazer político.

Esta disposição o Brasil não teve pós CONFINTEA V, mas a socie-dade, que tomou nas mãos a Declaração de Hamburgo, fê-la mais conhecida e vigorosa, talvez, do que o faria o governo da ocasião. No momento presente, no entanto, este dispositivo é esperado do governo brasileiro, pela atuação que demonstrou em todo o proces-so preparatório e no acolhimento e recepção à Conferência Interna-cional. Coroar este processo, com a láurea da chancela parlamen-tar do Congresso Nacional, é desejável, indica maturidade política, consequência nas ações empreendidas, saber concluir etapas... para seguir acertando. A sociedade organizada em fóruns de EJA confia nos passos até então percorridos, mas não arrefecerá desta espera-da disposição, que pode fazer com que o repetir, repetir possa até ficar diferente.

Se as expressões da compreensão do direito de todos conseguem chegar às formulações, entretanto, as práticas vêm ainda demons-trando um distanciamento largo na forma como as expressam, co-mo as realizam e como fazem cumprir esse direito, não condizendo

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com o nível de compreensão teoricamente acumulado e eticamente assumido como política federal.

Didaticamente tem sido possível aprender que política se inven-ta a cada dia, mas se por um lado podem-se celebrar essas invenções, imediatamente precisa-se estar de atalaia e vigilante para que, no fazer cotidiano, práticas não corroam avanços, nem os interpretem como renúncia a princípios democráticos, nem denunciem formu-lações que, defendendo o direito, sobrepujam concepções pessoais, não hegemônicas, que se colocam como contrariedades.

Para que o direito seja, de fato, de todos — homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos —, como o define o preceito cons-titucional, não há como estabelecer idades próprias, limites, arbitra-riedades que esvaziam os sentidos pelos quais se constituiu como tal. Como princípio (des)aprendido nas práticas excludentes, pre-conceituosas e discriminadoras, cabe, a uma didática da invenção, fazer-lhe justiça, reinstituindo pela diversidade que lhe é própria a condição de ficar diferente e se fazer efetivamente de todos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1993. Coleção Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa.

BRASIL. MEC. Documento-Base Nacional preparatório à VI CONFINTEA. Brasília: MEC, 2008.

HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível. A esquerda no limiar do sécu-lo XXI. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

LANDER, Edgardo (compilador). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires, Argentina, 2000.

PAIVA, Jane. Os sentidos do direito à educação para jovens e adultos. Rio de Janeiro: DP et alii, 2009.

SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

UNESCO. Marco de Ação de Belém. VI Conferência Internacional de Educação de Adultos. Brasília: Unesco: MEC, abr. 2010.

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SOBRE A AUTORA

Jane Paiva é Doutora em Educação pela UFF. Atua como docente do Departamento de Estudos da Educação Inclusiva e Continuada da Faculdade de Educação da UERJ e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) desta universidade, na Linha de Pesquisa Educação Inclusiva e Processos Educacionais. É líder do Grupo de Pesquisa Aprendizados ao longo da vida: sujeitos, políticas e processos educativos, investigando aspectos relacionados à educação em prisões e iniciando pesquisa sobre qualidade do ensino na Educação de Jovens e Adultos em redes públicas no Rio de Janeiro, pelo Observatório da Educação.

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Wagner Nobrega Torres Rosanne Evangelista Dias Alice Casimiro Lopes

O QUE DIZEM OS ESTUDOS DA EJA SOBRE POLÍTICAS DE CURRÍCULO?

INTRODUÇÃO

Em uma interpretação discursiva das políticas de currículo, os senti-dos fixados provisoriamente nas lutas por hegemonizar determina-das identidades educacionais – currículo, professor, aluno, compe-tências, saberes, avaliação – são produções de múltiplos contextos sociais que se interpenetram. Dada essa interpenetração, não só os textos das políticas são sujeitos a diferentes leituras, contingentes e provisórias, como são passíveis de ressignificação, na medida em que são inseridos em outras cadeias de significantes e em novos con-textos. Não há um único sentido a ser lido nos textos, mas a leitura implica uma negociação conflituosa de sentidos que só são fixados em uma cadeia expressiva em função de uma dada articulação hege-mônica capaz de garantir essa significação (Laclau, 1993). Toda lei-tura é, por si própria, a admissão de que o leitor – a quem se destina o texto político – é participante do processo de produção do texto, pois só posso endereçar sentidos a alguém, apresentando a representa-ção textual de uma dada política, se considero esse alguém passível de entrar na negociação de sentidos dessa mesma política.

Dentre os destinatários e igualmente produtores de sentidos das políticas de currículo, encontram-se os pesquisadores em Edu-cação que não apenas participam como consultores de propostas curriculares e projetos governamentais, mas, sobretudo, produzem conhecimento no campo curricular sobre as diversas modalidades de ensino e, assim, produzem sentidos sobre o que é educar, qual

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o conhecimento válido, como deve ser a organização curricular, a quais finalidades sociais o currículo deve atender e quais identida-des deve buscar projetar para o aluno e a sociedade.

Tendo em vista essa compreensão e inserindo tal discussão em um projeto mais amplo de pesquisa1, focalizamos neste trabalho, de forma ainda inicial, a produção sobre políticas de currículo para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nossa intenção é procurar compreender, a partir da produção textual na área da EJA, como diferentes sentidos curriculares são postos em circulação e, dessa forma, tentam hegemonizar determinadas identidades curriculares.

Em uma análise como essa, discurso é compreendido na acepção de Laclau (2005): totalidade de diferenças que produzem uma sig-nificação continuamente renegociada. No âmbito da discursividade, há sempre um vir a ser dos sentidos, uma possibilidade infinita de significação, a qual torna o fechamento final da estrutura de signi-ficação impossível. Ainda assim, esse fechamento, provisório e con-tingente, é necessário para que as pessoas possam se comunicar e lutar politicamente por determinadas posições a partir de determi-nadas significações supostas como estáveis. Os discursos são cons-truídos como decorrência de uma articulação de significantes em que se mesclam processos metafóricos – condensação de sentidos diferentes – e metonímicos – sentidos particulares realizando a ope-ração hegemônica ao atuarem como universais. Nessa perspectiva, discurso não é apenas linguagem e nem desconsidera a dimensão material, mas abarca toda significação dos fenômenos sociais, si-multaneamente simbólica e material.

Não se coaduna com essa perspectiva, portanto, uma concepção de política verticalizada, centrada no Estado como conjunto de relações que determinam, a partir de uma estrutura econômica, a significação da política. O Estado é, também ele, discursivamente compreendido e se insere nos processos hegemônicos de luta pela significação da política. Por isso, nos trabalhos de pesquisa que desenvolvemos, te-mos buscado desenvolver a crítica à concepção verticalizada de polí-tica por intermédio do ciclo de políticas de Stephen Ball (1998; 2001;

1 Projeto Articulação nas políticas de currículo, coordenado por Alice Casimiro Lopes e com financiamento do CNPq e da FAPERJ.

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BALL e BOWE, 1998). A abordagem do ciclo contínuo de políticas, já abordado em vários trabalhos do grupo (DIAS, 2009; LOPES, 2004, 2008), identifica três contextos primários de produção da política, tratados, no âmbito de nossa interpretação, como não-hierarqui-zados, inter-relacionados e não-fixados: 1) o contexto de influência como importante centro produtor de ideias políticas (redes políticas, comunidades epistêmicas, organizações multilaterais, publicações di-versas, consultorias, palestras etc.); 2) o contexto de definição e disse-minação de textos das políticas curriculares, centro produtor de tex-tos das políticas (instâncias de governo, neste caso); 3) o contexto da prática, constituído pelas escolas e por aqueles que nela trabalham. Em cada contexto existem arenas de embates e negociações em que grupos estão constantemente em disputas hegemônicas.

Este trabalho tem como foco a pesquisa sobre políticas de currí-culo na EJA, a partir da análise das principais concepções oriundas dessas investigações e do destaque às principais tendências que po-dem constituir demandas para o campo em pauta. Na primeira seção, procuramos desenvolver, teoricamente, como uma dada comunidade epistêmica no campo educacional – no caso, a comunidade da EJA no Brasil – atua na produção de políticas de currículo. Na segunda se-ção, ressaltamos as principais concepções que a análise dos estudos nos suscita. Em seguida, abordamos as lacunas nesses trabalhos que podem ser preenchidas, parcialmente, por meio de nossa pesquisa e concluímos, procurando entender que sentidos são projetados para as políticas curriculares na EJA, bem como, que aspectos ainda podem ser investigados no andamento e desdobramento de nossa pesquisa.

AS COMUNIDADES EPISTÊMICAS NO CICLO DE POLÍTICAS

A fixação de sentidos das políticas curriculares resulta de proposições e negociações envolvendo não apenas as ideias de determinada políti-ca como também os grupos e sujeitos que as produzem, as defendem e as disseminam. Envolvendo poder e conhecimento, esses protago-nistas que atuam na produção de políticas públicas em comunida-des epistêmicas, têm uma grande influência exercida em diferentes escalas: local e global, na formação de agendas políticas a partir das

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demandas sociais e na definição dos textos que tentam definir o cur-rículo. Nesse âmbito, especialistas em políticas nas diferentes áreas da educação participam de ações que contribuem para afirmar as de-mandas expressas nos discursos difundidos em diferentes textos que circulam influenciando o debate em torno da política curricular. Essa circulação e disseminação dos diferentes textos expressam demandas de sujeitos e grupos em diferentes níveis de produção da política. Em-bora esse aspecto seja de grande relevância, tem sido pouco conside-rado nas pesquisas de políticas no Brasil (DIAS, 2009; FARIA, 2003).

Na perspectiva discursiva aqui focalizada, nos propomos a contri-buir para superar essas lacunas, considerando que as comunidades epistêmicas não são definidas previamente à pesquisa, pela identi-ficação dos protagonistas da ação política. Partimos, diferentemente, do foco nas demandas para, então, analisar como tais demandas cons-tituem sujeitos que assumem o protagonismo da política pela possi-bilidade de se articularem e tornarem hegemônicas suas demandas.

Propomos, assim, a inclusão na análise das políticas de atuação das comunidades epistêmicas, reconhecendo seu papel nos processos de legitimação dos textos políticos, assim como na influência e difu-são das ideias sobre determinada política nas análises sobre políticas curriculares. Consideramos que essa vertente analítica nos permite entender melhor como os grupos e sujeitos se organizam, a partir das demandas que formulam e disputam nas diferentes arenas políticas pela legitimação de proposições aglutinadoras de concepções que es-peram tornar hegemônicas. São essas dinâmicas que nos traduzem as articulações políticas desenhadas nos diferentes contextos de pro-dução das políticas e nos colocam diante da importante questão de como as forças argumentativas de determinados sujeitos e grupos definem as comunidades autorizadas a falar de determinada política.

As comunidades epistêmicas focalizam, desse modo, o conheci-mento como pedra angular da produção de políticas (CARVALHEI-RO, 1999), não se restringindo à ação na política apenas pelo inte-resse, como é a dinâmica de outras vertentes analíticas. Assim, não apenas os textos e discursos que são produzidos e difundidos com as ideias sobre políticas são aspectos importantes da análise, mas também as lideranças, os sujeitos que se constituem pela defesa de

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determinados sentidos para as políticas e suas atuações em articu-lações para que os sentidos expressos nas proposições pelas quais empreendem as lutas sejam hegemônicos no processo de definição da política. Ainda que não estejamos analisando primeiramente o papel desses sujeitos, importa ressaltar a(s) autoria(s) que as po-líticas têm para além de terem sido definidas por um determinado governo. Destacamos a complexidade que marca esses processos de negociação, envolvendo consensos conflituosos (MOUFFE, 2006) sobre os diferentes sentidos que são disputados na arena de lutas em torno de determinada política.

As comunidades epistêmicas, atuando em redes e expandindo-se em diferentes escalas, acabam por legitimar “o estreitamento da relação política/conhecimento” (DIAS & LÓPEZ, 2006). Possuem um papel muito importante nos contextos de influência e de defini-ção de textos curriculares, muitas das vezes com a atuação de seus membros sendo reconhecidas em comissões, audiências públicas, assessorias, publicações etc., disseminando as ideias postuladas por essas comunidades. Desse modo, ao analisarmos os textos e os discursos produzidos em torno das políticas curriculares da EJA, estaremos também voltados para a compreensão das articulações que se constroem em torno dessa política e os sentidos que são pro-duzidos e difundidos pelos diferentes sujeitos e grupos que se or-ganizam em torno dessas comunidades epistêmicas em diferentes espaços. Destacamos, ainda, que, nesse processo, nos interessa per-ceber as diferentes proposições em disputa, a partir das demandas que são formuladas e apresentadas pelas comunidades epistêmicas na EJA, partindo dos textos apresentados em Reuniões Anuais da ANPED e em artigos focalizando políticas curriculares na EJA.

DISCURSOS SOBRE POLÍTICAS CURRICULARES NAS PESQUISAS EM EJA

Alguns autores (HADDAD e DI PIERRO, 2000; VIEIRA, 2000; SOA-RES, 2004) têm se debruçado nessa análise de cunho historiográfico, no sentido de traçar um panorama correspondente à EJA no Brasil. Esses estudos têm elucidado que, inicialmente, a EJA é confundida como obra assistencial, no intuito de conduzir as pessoas adultas à

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alfabetização. Durante a ditadura militar (1964 – 1985), o governo instituiu o Movimento Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL - com o objetivo de combater o analfabetismo, num ensino compensató-rio. Não logrou êxito, dentre outros motivos, pelo próprio caráter autoritário do governo. Esse programa foi substituído pela Funda-ção Educar que financiava movimentos com objetivo de combater o analfabetismo. Fracassou na sua finalidade, sendo descontinuado em 1990, no governo Collor. Nos anos noventa, com a consolidação da redemocratização, a EJA angariou tímidos avanços no que diz respeito ao reconhecimento por parte da esfera federal, pois no que tange aos investimentos, a EJA permaneceu marginalmente no ce-nário das políticas educacionais (RIBEIRO e SOARES, 2004).

A partir de 1995, segundo Haddad e Di Pierro (2000)2, outros Mi-nistérios ingressaram no campo da EJA, diante do recuo do Ministé-rio da Educação. Com o Programa de Alfabetização Solidária (PAS)3, em 1997, a EJA foi revestida e reduzida à luta contra o analfabetismo. Mais recentemente, em 2005, o governo Luiz Inácio da Silva lançou o programa “Brasil Alfabetizado”. Este e os demais programas tendem a conferir a especificidade das políticas destinadas à EJA, na maioria das vezes, alusivas a processos de alfabetização com financiamentos reduzidos diante de um suposto compromisso solidário.

Nos últimos anos, a partir de diferentes demandas – que care-cem ainda de uma investigação mais aprofundada – a EJA tem passa-do por mudanças que incluem a produção de políticas públicas, com foco em ações circunscritas à busca de financiamentos e menos às discussões no âmbito do currículo para essa modalidade de ensino. Não obstante, as Propostas Curriculares para EJA do 1º e do 2º seg-mentos do Ensino Fundamental, em 1997 e 2001, respectivamente, o parecer CEB 11/2000 que estabelece as diretrizes curriculares pa-ra EJA; o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA), criado em 2002; a coleção Viver, Aprender vol-

2 Para saber mais sobre esse momento, ver: HADDAD, Sérgio e DI PIERRO, Maria Clara. Aprendizagem de jovens e adultos: avaliação da década da educação para todos. São Paulo Perspectiva. 2000, v.14, n.1, p. 29-40, p. 37.3 Para saber mais sobre o PAS ver: BARREYRO, Gladys Beatriz. “O Programa Alfabetiza-ção Solidária: terceirização no contexto da reforma do estado”. Trabalho apresentado na 29ª RA da ANPED, 2006. Disponível em: <http://www.anped.org.br>.

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tada para o primeiro segmento do Ensino Fundamental, em 2001; o Programa Nacional de Inclusão de Jovens: educação, qualificação e ação comunitária (PROJOVEM); o Programa Nacional de Integra-ção da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalida-de de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), criado em 2005 e redefinido em 2006; o Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA), elaborado em 2007 e a coleção Cadernos de EJA, também em 2007. Isso tende a corroborar discursos que enunciam as demandas à produção e disseminação das políticas curriculares na EJA, como, também, as pesquisas de-senvolvidas nesse campo.

Esse destaque conferido às políticas da EJA tem levado a que o foco na discussão curricular se estabeleça no campo, justificando ainda mais a análise das políticas de currículo aqui proposta. Para examinarmos as concepções e tendências das políticas curriculares em EJA nas Reuniões Anuais da ANPED, nosso foco é o GT 18 (Edu-cação de Pessoas Jovens e Adultas), criado em 20004 por pesquisa-dores inseridos nesta temática que, até o momento, se encontravam inscritos em dois outros GTs: o de Educação Popular e o de Movi-mentos Sociais. Os trabalhos do GT 18 apresentados nas reuniões anuais, desde então, estão organizados em sete seções, intituladas do seguinte modo: Alfabetização, Escolarização, Mundo do Traba-lho, Currículo e práticas pedagógicas, Sujeitos da EJA, Formação de Professores e EJA como Políticas Públicas. No que diz respeito a essa base de trabalhos, foram selecionados trinta e seis trabalhos, apre-sentados entre os anos de 1999 e 2008, de duas seções considera-das como as mais voltadas para a discussão em pauta, a saber: Eja como políticas públicas e Currículo e práticas pedagógicas. Na base de dados de artigo do SCIELO Brasil, foram usadas como critério em assunto as expressões “Educação de Jovens e Adultos” e a sigla “EJA”.

4 O “GT 18” da “ANPED” foi criado na “23ª reunião anual da ANPED”, em 2000, aprovado em assembleia após dois anos de atividades, 1998 e 1999, como “Grupo de Estudos – GE”. Neste estudo, analisamos os trabalhos de 1999. Ademais, esse “GT 18”, até o momen-to, teve as seguintes coordenações: Sérgio Haddad, da “PUC/SP” e membro fundador da

“ONG Ação Educativa” (1998-1999), Leôncio Soares, da “UFMG” (2000 a 2002), Timothy Ireland, da “UFPB” e ex-diretor de “Educação de Jovens e Adultos da SECAD/MEC” (2003-2004), Tânia Maria Melo Moura, da “UFAL” (2005-2006), Maria Margarida Machado, da

“UFG” e ex-coordenadora pedagógica do “Departamento da EJA da SECAD/MEC” (2007-2008) e Jane Paiva, da “UERJ” (2009 – 2010).

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Nessas bases, foram considerados treze artigos que fazem referên-cia a currículo, políticas de currículo, propostas curriculares, práti-cas curriculares e/ou políticas educacionais. A escolha dos marcos temporais pode ser justificada pela aprovação em definitivo do GT 18 da ANPED, EJA, em 1999, como também o início dos fóruns dos ENEJA’s. Esses fóruns anuais5 influenciam e incentivam a elabora-ção de pesquisas e trabalhos sobre essa temática de modo acentua-do, dando visibilidade e potência para determinadas questões que podem interferir na formulação de novas políticas para a EJA. Ainda que esses veículos e os quarenta e nove textos selecionados não se-jam as únicas produções em EJA no Brasil, destacam-se por congre-gar interpretações de importantes lideranças da área, fato que justi-fica a escolha dos mesmos para esta investigação. Ademais, há uma estreita vinculação entre o ENEJA e o GT 18, no tocante às lideranças e à organização desses eventos. Nesses espaços estão reunidas sig-nificativas lideranças – em alguns casos coincidem – que buscam, por meio destes, difundir suas propostas concernentes à EJA.

Salientamos que as pesquisas investigadas dialogam com diver-sas abordagens teórico-metodológicas, principalmente a partir de autores como Bakhtin, Bourdieu, Foucault e Gramsci, no intuito de sustentarem suas argumentações, possuindo em comum a temática da EJA. Há concepções que podem ser distanciadas e outras aproxi-madas, como também apontam tendências que podem ser pensadas como demandas à produção de políticas curriculares em EJA. Ainda, os atores sociais, pesquisadores/autores dessa área compreendidos como sujeitos, participam ativamente no processo de tessitura das pesquisas e, portanto, constituem-se como sujeitos que enunciam posicionamentos – provisórios – na formulação de proposições e articulações em torno da EJA. Partindo dessas compreensões é que analisamos as pesquisas.

Pesquisas que investigam as políticas públicas, não raramente, têm como enfoque um estudo historiográfico e ressaltam ,pelo me-

5 Tais encontros foram realizados nos seguintes locais: o primeiro, no Rio de Janeiro, em 1999, seguido por Campina Grande, na Paraíba, em 2000 o terceiro, em São Paulo, em 2001, o quarto, em Belo Horizonte, Minas Gerais – 2002, o quinto, em Cuiabá, Mato Gros-so, em 2003, o sexto, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 2004, o sétimo, em Brasília, 2005, o oitavo, em Recife, Pernambuco, em 2006, o nono, em Pinhão, no Paraná, em 2007 e o décimo, em Rio das Ostras, em 2008.

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nos no universo dessas pesquisas investigadas , possíveis razões da exclusão dos jovens e adultos em políticas públicas elaboradas pe-las diferentes instâncias de governo, principalmente a esfera federal. Esses estudos destacam que as políticas públicas não têm, ao longo dos anos, no Brasil, contemplado o princípio do direito à educação para todos. Argumentam que o Estado, por não assumir o papel de indução das políticas públicas para EJA, incentiva e estabelece par-cerias com a sociedade civil. Segundo esses trabalhos, tais parcerias são manifestadas em acordos com ONGs e movimentos sociais, com a finalidade de delegar, a essas organizações e movimentos, a res-ponsabilidade que caberia ao Estado. Alguns autores criticam o Es-tado por atender – por meio dessas políticas – interesses do capital nacional e internacional e caracterizam a EJA como historicamente negligenciada pelo Estado em suas políticas públicas (DI PIERRO, 2000). Uma autora conclui que “a questão do financiamento para a EJA tem sido a pedra de toque para se garantir (...), o direito à Edu-cação de Jovens e Adultos” (ALVARENGA, 2005, p. 9).

Dos quarenta e nove títulos analisados, vinte acentuam a neces-sidade de o Estado ampliar o financiamento, além de elaborar uma política que não seja efêmera e, sim, sistêmica, no sentido de abran-ger todo o território nacional. Os autores defendem que não haja a atual pulverização das políticas, principalmente quando os municí-pios desenvolvem projetos e ações isoladas, frequentemente des-continuadas. Sobre isso, conferem diagnósticos às políticas em EJA, tendo como pressuposto que a intervenção e o dirigismo do mercado caracterizam as ações dos governos como ineficientes e submissas. Procuram explicitar a ineficiência, a partir da ideia de que:

(...) sob o pretexto de uma crise político-econômica do Estado de Bem-Estar Social (...) a educação, destacadamente a de Jovens e Adultos, irá amargurar recursos cada vez mais diminutos (VOLPE, 2004, p. 5).

O que se observa, (...) é que a política pública de “EJA” é sempre uma política de migalha, (...), para a qual não se preveem nem metas compatíveis com o dever do Estado com o direito da cida-dania; nem recursos orçamentários dignamente; (...) (ANDRADE e PAIVA, 2004, p. 17).

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Também são dirigidas críticas às iniciativas esporádicas do gover-no federal com a EJA, caracterizando-as como tentativas fracassadas e pontuais de erradicar o analfabetismo no Brasil. Essas críticas são mais contundentes, com significativa abordagem teórica marxista, so-bretudo, nos trabalhos analisados na seção Eja como políticas públicas. Inicialmente as críticas são direcionadas ao governo federal de um modo geral. Depois essas críticas tornam-se mais localizadas, ou seja, os autores especificam e analisam determinados programas criados e desenvolvidos pelas instâncias governamentais – federal, estadual ou municipal. A constatação da exclusão social e o desrespeito à garan-tia do direito à educação dessa parcela considerável da população por parte do Estado – numa perspectiva “estadocêntrica” – são recorrentes nesses trabalhos. A afirmação da necessidade de uma institucionaliza-ção da EJA, como meio de ampliação da democracia e de condução do educando à cidadania, é característica dessas pesquisas. A cidadania, em alguns desses trabalhos, aparece como sendo o direito à educação, garantido pela modalidade EJA, ou ainda como inclusão dos historica-mente excluídos da educação, nesse caso, aqueles que não tiveram seu tempo escolar respeitado. Podemos identificar essas defesas, em pro-posições, expressas em asseverações que visam a ressaltar o direito inalienável de todos à educação, sobretudo, daqueles que não tiveram seu tempo escolar respeitado e garantido. Para isso, asseguram que:

Especificamente na educação de jovens e adultos (EJA), a his-tória não só registra os movimentos de negação e de exclusão que atingem esses sujeitos, mas se produz a partir de um direito conspurcado muito antes, durante a infância, esta negada como tempo escolar e como tempo de ser criança a milhões de brasi-leiros (PAIVA, 2006a, p. 1).

Os dados destacados no debate denunciam a exclusão social co-mo uma marca comum dos sujeitos que procuram a EJA (...) de uma imensa maioria da população historicamente excluídas dos direitos de cidadania e que tem na EJA uma das dimensões de efetivação dos seus direitos (ALVARENGA, 2005, p. 11).

Por conseguinte, outro aspecto destacável nesses trabalhos é a defesa em prol de uma educação que valorize o saber do “outro”. Do total analisado, vinte e nove trabalhos apresentam tal preocupação.

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Esse “outro” – identificado como sendo o educando – é considerado como aquele que tem conhecimentos prévios e concepções próprias acerca de determinado assunto. É entendido também como aquele que tem voz própria e que precisa ser ouvido no processo de ensino-aprendizagem. Assim sendo, esses estudos tratam de questões alu-sivas à construção de um currículo que valorize as habilidades e as experiências dos alunos da EJA, a partir de um currículo flexível. Dis-cutem metodologias, formação de professores e materiais didáticos que podem ser elaborados a partir dos saberes dos alunos. Nesse sentido, defendem que haja um respeito em relação às vivências dos alunos na concepção desses materiais e na utilização das metodo-logias (ARAÚJO, 2002) e que os alunos de EJA sejam encarados co-mo sujeitos legítimos. A essa flexibilidade é atribuída uma educação mais humanizada, derivada de relações mais próximas entre educa-dor e educando (GIOVANETTI, 2003). Também é defendida uma edu-cação emancipatória, capaz de respeitar as raças e as etnias, numa compreensão ancorada em uma linha habermasiana que defende a ação comunicativa entre os sujeitos como condição fundamental ao processo de emancipação (DELUIZ, et al, 2005).

Com efeito, os autores (ANCASSUERD, 2005; ROCHA, 2005; TRA-VERSINI, 2005; BARREYRO, 2006) tendem a assumir uma crítica em relação aos programas produzidos pelas políticas públicas ao defini-rem o currículo institucional como oficial e prescritivo sobre a práti-ca. Posicionam-se, na maioria dos trabalhos, radicalmente contrários às propostas curriculares nacionais. Essas críticas são forjadas, en-trelaçando, principalmente, programas ou leis criadas pelo governo federal à escassa distribuição de recursos. Um dos trabalhos subme-tido à análise (INNOCÊNCIO, 2006), no entanto, concebe os PCN de língua portuguesa como um avanço, principalmente no que tange a abordagem do documento em relação à compreensão da linguagem.

São menos frequentes nos trabalhos, questões como a valorização do educador e a defesa da formação específica desse professor para atuar em EJA (LEITÃO, 2004; SOARES, 2008). Esses textos deixam em relevo que os professores no processo de formação continuada ne-cessitam de uma capacitação específica para atuarem no ensino de EJA, pois a não-formação específica corrobora o fracasso das políticas.

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Além disso, surgem nesses trabalhos possibilidades de novas organizações curriculares direcionadas à EJA, propostas pelos au-tores como alternativas às atuais. Esse é considerado como um dos modos de garantir que haja resultados significativos no processo de ensino/aprendizagem em EJA, alinhando-se ao que já foi apontado por Lopes (2004, 2008, et. al. 2008) como primazia do foco na or-ganização curricular como expressão de mudança e inovação. Nesse universo de trabalhos, são estabelecidos, por meio de diagnósticos, os problemas enfrentados pelo currículo em EJA, como também, prováveis soluções. São discutidos alguns dos principais problemas das práticas curriculares desenvolvidas na EJA, como a infantiliza-ção dos educandos ou inadequação de conteúdos e modos de abor-dá-los, bem como de linguagem (OLIVEIRA, 2007). Outra argumen-tação sugere a superação desses problemas a partir de um currículo essencialmente oriundo da prática (PAIVA, 2002). Essa discussão pode ser pertinente à questão da produção e difusão de políticas curriculares em EJA, uma vez que define critérios e estratégias de propostas curriculares possíveis.

Alguns estudos, como o de Nührich (2005), que se concentram em propor uma elaboração curricular, buscam fundamentar essa nova proposta por meio de um estudo de caso. Tais trabalhos, de cunho etnográfico, estabelecem a valorização dos saberes do edu-cando como a essência dessas propostas. Debruçam sobre reali-dades sociais e experiências curriculares que lograram êxito local-mente, segundo o que entendem como currículo bem sucedido e as sugerem como paradigmas curriculares. Os relatos das experiências são acompanhados de descrições de métodos didáticos utilizados pelos professores nos espaços investigados, entendidos como tendo sido capazes de contribuir para que fossem alcançados resultados significativos em termos de aprendizagem (SOARES e VENANCIO, 2007). Acentuam, ainda, que as propostas oficiais atuais não abar-cam os saberes do educando e, portanto, são ineficazes. Com efeito, são problematizados aspectos que devem integrar uma proposta curricular, tais como as experiências e a realidade de vida dos edu-candos, o trabalho como eixo temático e o respeito à diversidade. Souza e Mota (2007) apresentam novas perspectivas sobre a peda-

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gogia da oralidade em EJA. Enfocam o diálogo, a interação verbal e a competência comunicativa como componentes essenciais da educa-ção linguística. Fonseca (2001) ressalta a importância fundamental das reminiscências – consideradas como efeitos da memória que permeiam a produção de sentido – no processo de ensino-aprendi-zagem da matemática.

A maioria dos trabalhos que analisa as políticas curriculares em EJA concebe a construção do currículo como estando fora de uma realidade somente percebida na prática, ou seja, na escola. Defende que as propostas curriculares não são aplicadas, porque não abor-dam temas capazes de interessar aos sujeitos diretamente envolvi-dos com a educação. Um desses estudos (CALDEIRA e GORNI, 2008) analisa a relação estabelecida entre a perspectiva da EJA dos docu-mentos oficiais e a perspectiva que emana da vivência escolar. Ar-gumenta que as políticas precisam se aproximar das práticas. Outro trabalho que também implica uma dicotomização entre proposta e prática é o de Eugênio (2005), que argumenta serem os professo-res capazes de conferir materialidade, ou não, às propostas oficiais. Também há caracterização de um distanciamento entre a proposta e a prática em Di Pierro e Andrade (2008).

A participação dos atores e dos sujeitos sociais, influenciando e interferindo nas propostas curriculares, é considerada quando a análise enfoca a escola, num estudo de caso. Nessas pesquisas, apa-recem professores, diretores, alunos e outros pertencentes à comu-nidade escolar. Diante da análise das concepções desses atores, é percebido como o currículo se dá na prática. O entendimento das ações, perpetradas por tais sujeitos, fica circunscrito ao espaço es-colar e não é problematizada a relação que esses atores possuem e constroem com outros âmbitos societários. O professor é analisado como aquele que aplica ou resiste ao currículo oficial, aquele que

“deve” e “tem” que assumir determinados posicionamentos para fa-cilitar o processo de ensino e aprendizagem (INNOCÊNCIO, 2006).

Por outro lado, estudos que fazem referência ao envolvimento de agências internacionais no processo de políticas curriculares, não raro, argumentam que o resultado dessas políticas visa atender in-teresses do mercado capitalista neoliberal e globalizado. Os Estados

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estão fadados – na perspectiva privilegiada nesses estudos – a assu-mir as prescrições definidas pelos organismos internacionais e mul-tilaterais. Isso é possível de ser percebido, por exemplo, em Deluiz et al. (2005), quando analisam as reformas educacionais como res-postas positivas do Estado às novas exigências do sistema produti-vo. Similarmente, o trabalho de Barreyro (2006) acentua o papel do Estado como defensor dos interesses capitalistas, na medida em que estabelece políticas de cunho social – como as direcionadas à EJA – com o intuito de escamotear as reais intenções do mercado capita-lista. Barreyro argumenta que, a partir da constante rotatividade dos educadores, prevista nas propostas, o Estado garante salários baixos e não permite o estabelecimento de vínculo empregatício dentro da lógica de diminuição de gastos com a educação. Conclui que as ações relacionadas à EJA têm o caráter de filantropia. Com isso, há uma tendência de compreensão determinista acerca das políticas. Ou se-ja, atribui as limitações às políticas em EJA às condições econômicas, como se a condição assistencialista na qual a EJA foi submetida no governo de Fernando Henrique Cardoso – assim identificada pela autora – fosse resultado da sujeição incondicional desse governo a uma agenda econômica que prevê diminuição de gastos públicos com educação estabelecida, por exemplo, por agências multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

CONCLUSÕES: TENSÕES, PERSPECTIVAS E LACUNAS NOS ESTUDOS EM QUESTÃO

Ao trabalharmos com o ciclo contínuo de políticas de Ball (1998), é possível compreendermos que, nos variados contextos, circulam discursos capazes de constituir consensos conflituosos em relação às ações governamentais e ao currículo de forma geral, com vista à legitimação da ideia de reforma. Em torno das demandas da políti-ca, organizam-se sujeitos e grupos sociais, disputando a significação das proposições políticas da EJA. As articulações discursivas das de-mandas sociais a serem hegemonizadas nos currículos permitem a constituição de comunidades epistêmicas que atuam nas complexas negociações em diferentes contextos de produção das políticas.

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Neste texto, não focalizamos todas as comunidades epistêmicas globais e locais que atuam no processo das políticas curriculares em EJA, mas nos limitamos àquelas que expressam suas demandas em trabalhos do GT 18 da ANPEd e em artigos publicados na base Scielo Brasil. Mas entendemos que esses veículos evidenciam sen-tidos circulantes em vários contextos das políticas, sempre ressig-nificados. Dentre essas demandas, encontram-se supostas soluções para o currículo em EJA, as quais promovem explicações capazes de interferir na produção das políticas de currículo no campo. Mesmo porque, conferem legitimidade a determinadas propostas, já forja-das, ou reivindicam autoridade política para formulação de novas propostas.

No que tange as políticas curriculares para o Ensino Médio, Lopes (2006a) já analisou como a legitimidade das definições no contexto de produção das políticas é também buscada por meio do apoio e da interlocução com as comunidades de ensino das disciplinas escola-res. Analogamente, defendemos que, nas políticas de currículo da EJA, atuam comunidades que produzem um conhecimento específi-co no campo e constituem relações de poder em nome desse saber. Nessa perspectiva, situamos os trabalhos analisados como enuncia-dores de demandas que influenciam e interferem na produção de políticas curriculares e constituem sujeitos e grupos sociais que atu-am na difusão e circulação dessas políticas. Ao nos inscrevermos no debate, então, propomos um novo enfoque sobre o tema, ao mesmo tempo em que analisamos os sentidos que produzem.

Alguns trabalhos analisados discutem as reformas educacionais e as propostas para EJA oriundas delas, a partir do debate que outros autores fizeram acerca de reformas realizadas em outros países. Lo-pes (2006a), ao discutir as políticas curriculares analisando os PCN do Ensino Médio, afirma que há significativos trabalhos que citam Apple e Sacristán como referenciais na argumentação de críticas acerca do currículo nacional e na defesa de um currículo emancipa-tório. Nos trabalhos analisados, também é possível identificarmos tais referenciais. A perspectiva emancipatória de currículo nacional é ressaltada como possibilidade para uma educação mais adequada à realidade dos educandos da EJA. Esses trabalhos discordam das

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propostas curriculares do governo, mas não deixam de defender a existência de um currículo nacional com outras finalidades sociais.

Malgrado exista um princípio comum – o ensino emancipatório – os fundamentos defendidos para forjar uma nova proposta curri-cular são diferentes e permanecem ancorados em aspectos que de-pendem dos sujeitos e dos grupos sociais que os enunciam. Depen-dendo de quem argumenta e do lugar social que esses atores sociais asseveram, são conferidas legitimidades a determinados saberes em detrimento de outros. Em outras palavras, o que é considerado imprescindível nesse ensino emancipatório, constituinte da pro-posta curricular, pode mudar em consonância com quem defende e em quais articulações se insere. É nesse âmbito que se inscrevem, também, as discordâncias em relação a determinadas finalidades do currículo. A relevância de uma proposta pode não ser questio-nada, mas sim a finalidade específica que talvez não contemple, no momento, determinados sujeitos e grupos sociais. Desse modo, no desenvolvimento das políticas há relações de saber-poder em que, dependendo das correlações de forças, são incluídas e excluídas – parcial ou integralmente – certas propostas.

Com isso, é possível considerar a emancipação como um signifi-cante no qual muitos sentidos deslizam sem que haja uma fixação definitiva de significados. Nos termos de Laclau (2005), poderíamos considerá-lo um significante flutuante. As atitudes de resistência ao sistema capitalista, a valorização dos saberes dos alunos, o empode-ramento desses alunos e mesmo a mudança na organização curricu-lar são alguns dos sentidos que podem ser, em articulações diversas, associados às finalidades emancipatórias.

Por serem complexas e multifacetadas, as disputas sinalizam di-ferentes interesses, em muitos casos aparentemente contraditórios e ambivalentes. Com isso, mesmo que exista um consenso em tor-no de determinada proposta, as diferenças associadas a essas con-tradições e ambivalências permanecem operando nas articulações desenvolvidas e podem contribuir para desfazer a articulação. Na organização de uma proposta, por exemplo, que tenha como pers-pectiva um ensino emancipatório, é provável que haja – em hipóte-se – discordâncias em relação a qual conjunto de saberes deve ser

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considerado. Com isso, ainda que possa existir uma articulação pro-visória de determinados grupos em favor de um currículo nacional, entendido como emancipatório, tal articulação pode se desfazer em função das diferentes lutas políticas em torno da significação dos saberes nessa proposta.

Outrossim, grande parte dos trabalhos que critica as atuais po-líticas de currículo e que intenta destacar a continuidade da EJA como política marginal, argumenta que isso se deve a interferência e influência do mercado capitalista nas ações dos Estados. O Esta-do é, então, pensado como disposto ou não a adotar a agenda do mercado econômico neoliberal. Nessas abordagens, os interesses do capital prevalecem sobre quaisquer iniciativas do governo e as políticas representam claramente a defesa de seus interesses. Isso tende a simplificar as análises, uma vez que outros elementos, co-mo a ação da sociedade civil e das comunidades epistêmicas, por exemplo, são desconsiderados e a política fica reduzida à expressão das exigências do modo de produção capitalista, via esfera governa-mental. Nessa perspectiva de análise, as agências multilaterais são encaradas como protagonistas das ações perpetradas pelo governo federal, no que tange a elaboração de políticas para EJA, e as mani-festações das políticas educacionais são entendidas como reflexos dos interesses dessas agências.

Apesar de não negarmos a interferência de aspectos da globali-zação do mundo produtivo capitalista – com implicações simultane-amente econômicas e culturais – no processo das políticas curricu-lares, compreendemos tais políticas em outro enfoque. Concebemos o processo de produção das propostas curriculares, como resultado de um hibridismo em que se articulam propostas curriculares glo-bais com projetos políticos locais (LOPES, 2006a). Embora admi-tamos que possam existir limites definidos por regras de mercado como, por exemplo, aquelas impressas nos sistemas de avaliação na-cional como o Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA), há espaços para outras leituras e rein-terpretações. Tais espaços são produzidos na política pela própria necessidade que essa representação tem de negociar sentidos com a esfera que busca ser representada (LACLAU, 1993). Essas outras

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possíveis leituras nos permitem encarar o processo das políticas de currículo como complexo e atravessado por diferentes relações de saberes e poderes.

Além disso, o enfoque nas políticas centradas no Estado, predomi-nante nos trabalhos analisados, pode contribuir, inclusive, para uma postura desmobilizadora das próprias ações políticas emancipató-rias desenvolvidas pela comunidade epistêmica em questão. Pois, se entendemos o capitalismo e sua capilarização social de tal forma capaz de saturar todos os contextos da política, não abrimos espa-ços para a própria significação da política de forma diferente. Con-sequentemente, não abrimos espaços para a própria valorização do contexto da prática, sinalizada por parte significativa dos trabalhos.

Talvez, um dos aspectos que possa acarretar tal dificuldade de li-dar com a possibilidade de ressignificação se faça presente no limite enunciado na concepção de política. Frequentemente, nos trabalhos analisados, as políticas tendem a ser consideradas como sinônimo de propostas, reforçando uma concepção verticalizada que também não parece se coadunar com um enfoque que visa a potencializar a ação política em diferentes contextos. Concordamos com Lopes (2006a, p. 132) quando afirma que “tais modelos de análise expres-sam uma dicotomia entre propostas e prática, deixando de investi-gar a recontextualização das práticas nas propostas e das propostas nas práticas”. Identificamos nos trabalhos argumentações sobre uma prática desvinculada ou subordinada às propostas, a busca de uma essência da prática, ou ainda a ideia de uma proposta curricu-lar elaborada de “cima para baixo”, sem considerar os interesses das escolas. Tais interpretações são desenvolvidas desconsiderando o currículo como constituído intrinsecamente dessas duas dimensões

– proposta e prática – com sentidos interconectados e, constante-mente, reelaborados (LOPES, 2006a, 2006b).

Em sintonia com essa interpretação, significativos estudos, apre-sentam a instância governamental como homogênea, portadora, qua-se sempre, da proposta que não ecoa nas escolas. Há silêncios nas investigações sobre os processos de produção das políticas: suas ten-sões, conflitos, ambiguidades, sua constante busca de legitimação jun-to a diferentes grupos sociais, dentre eles a própria comunidade epis-

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têmica da EJA. Diferentemente desses estudos, defendemos que, por mais que a institucionalização do currículo, no contexto da produção, implique uma tentativa mais acentuada de garantir a fixação de de-terminados sentidos para o mesmo, há nesse e nos demais contextos, atores sociais que se articulam para a manutenção ou substituição de um determinado currículo (LOPES, 2004, 2006a). Igualmente, há pro-duções de sentidos nas práticas que circulam socialmente e também se inserem nas propostas, tornando, mais uma vez, a separação entre proposta e prática pouco produtiva do ponto de vista analítico.

Com essas análises problematizadoras das políticas de currículo da EJA, não queremos nos colocar em um lugar externo à produção de sentidos das políticas, nem tampouco, de um ponto de vista teó-rico que visa ser definitivo. Consideramos que produzir tais análises também implica estar no jogo de produção de sentidos e, portan-to, também se inserir no terreno precário, contingente e provisório da significação. Não se trata da leitura correta ou definitiva, mesmo porque, tal leitura não existe enquanto outras leituras desses mes-mos textos e de outros são possíveis, introduzindo novos sentidos nesse mesmo jogo. Mas consideramos que, dessa forma, também podemos contribuir para produzir políticas de currículo para EJA que contribuam para ampliar as possibilidades de ação política de parcelas cada vez mais amplas da população.

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O que dizem os estudos da EJA sobre políticas de currículo?

23ª RA, 2000DI PIERRO, M. C. “O Financiamento Público da Educação Básica de Jovens e Adultos no Brasil no Período 1985/1999”.

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24ª RA, 2001FONSECA, Maria da Conceição F.R “Discurso, Memória e Inclusão: reminiscên-cias da Matemática Escolar de alunos Adultos do Ensino Fundamental”

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WANDERER, Fernanda. “Educação de Jovens e Adultos e produtos da mídia: possibilidades de um processo pedagógico etnomatemático”

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O que dizem os estudos da EJA sobre políticas de currículo?

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SOBRE OS AUTORES

Wagner Nobrega Torres é Mestrando em Educação pela UERJ. Atua como do-cente da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro. É membro do Grupo de Pesquisa Políticas de currículo e cultura, onde investiga sobre políticas de cur-rículo na Educação de Jovens e Adultos.

Rosanne Evangelista Dias é Doutora em Educação pela UERJ. Atua como do-cente do Setor Multidisciplinar do Colégio de Aplicação da UFRJ. É mem-bro do Grupo de Pesquisa Políticas de currículo e cultura, onde investiga sobre Currículo, desenvolvendo também na UFRJ pesquisa sobre Currículo e Formação de Professores.

Alice Casimiro Lopes é Doutora em Educação pela UFRJ. Atua como docente na Faculdade de Educação da UERJ e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação desta instituição. Coordenadora do Grupo de Pesquisas Políticas de Currículo e Cultura, onde investiga sobre currículo.

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A PRODUÇÃO DE PROPOSTAS CURRICULARES NACIONAIS DE EJA E OS DESAFIOS DA PRÁTICA DOCENTE

Não faz muito tempo, educadores que lecionam em cursos de Edu-cação de Jovens e Adultos (EJA) se ressentiam da falta de propostas curriculares e materiais didáticos voltados para esta modalidade de ensino. Era comum em encontros acadêmicos e cursos de formação continuada, por exemplo, a queixa de que não havia referências cur-riculares para que a ação educativa se desenvolvesse na perspectiva de atender as especificidades pedagógicas da escolarização de jo-vens e adultos trabalhadores. Atualmente, porém, têm-se verificado alterações significativas nesse panorama em função da ação mais efetiva do Estado, principalmente no âmbito da esfera federal, em produzir documentos e propostas curriculares direcionadas à EJA. Como resultado de tais alterações, novos e diferentes sentidos têm sido dados ao que se constitui como conhecimento escolar caracte-rístico desta modalidade, trazendo, junto à supressão da queixa de antes, outros desafios para a prática docente.

Vale lembrar que ao longo da trajetória da EJA, no contexto educa-cional brasileiro, diferentes políticas de currículo foram e continuam sendo implementadas por diferentes sujeitos. Além de secretarias municipais e estaduais de educação, escolas, movimentos sociais, ONGs e professores e professoras em sua prática cotidiana também fazem políticas de currículo, uma vez que políticas de currículo não são consideradas neste texto apenas como ações diretas do Estado sobre as instituições educativas, como se estas não passassem de ins-tâncias diretamente subordinadas de implementação dessas ações. Com base no conceito ampliado de Estado que, para Gramsci (2002), se integra à sociedade civil e redefine sua politização na direção do capital, o que faz com que não defina mais sozinho ou apenas com a

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burguesia e as políticas públicas, entendo as políticas de currículo, as-sim como Lopes (2006), como imersas no campo da política cultural e tanto sua abordagem “a partir da derivação dos processos econô-micos e de classe nos quais o Estado está inegavelmente engendrado, quanto seu deslocamento fetichizado dessas relações exclui dimen-sões importantes das lutas sociais para dar sentido a algumas dinâmi-cas da cultura e, particularmente, do conhecimento” (p. 37).

Assim, uma rica e diversificada história das políticas de currículo da EJA tem sido construída neste país. Contudo, a pouca visibilida-de que muitas delas tiveram, já que, em geral, estavam restritas a esferas locais, e a ausência da instância federal do poder público na produção de propostas curriculares, acarretaram a sensação de que pouca coisa se produzia em termos de currículo para a EJA.

Ao longo dos anos 2000, no entanto, o surgimento de propostas curriculares elaboradas pelo governo federal alterou, como já dito, o quadro até então predominante. Desde a construção da Propos-ta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos, em 2002, até o lançamento da Coleção Cadernos de EJA, em 2007, diferentes docu-mentos curriculares oficiais passaram a produzir discursos sobre o conhecimento escolar a ser ensinado nos Cursos de EJA. A diversi-dade desses discursos tem revelado concepções em disputa em pro-postas muitas vezes antagônicas no que se refere aos referenciais teórico-metodológicos e ao projeto de sociedade nelas contido. E como esses documentos são instituídos no âmbito federal, sua pro-dução ganha contornos de currículo oficial, uma vez que são dis-tribuídos e divulgados por todo o país, constituindo-se, assim, em referências nacionais na elaboração de propostas curriculares por parte das instâncias educativas que lidam com a EJA.

O presente artigo pretende examinar essas recentes políticas de currículo relativas à EJA produzidas no âmbito do Ministério da Educação (MEC) com o intuito de revelar os discursos que a cons-tituem, além de evidenciar possíveis contradições e antagonismos presentes em seus textos. Dessa forma, acredito ser possível reco-nhecer os processos de produção desses discursos originários de di-ferentes contextos, do âmbito global às esferas locais, essas somente compreensíveis em função da trajetória da educação brasileira. A

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partir de tal problematização, confere-se também especial destaque aos desafios da prática docente no que se refere à constituição do conhecimento escolar na modalidade EJA.

A PRODUÇÃO DE PROPOSTAS CURRICULARES NACIONAIS PARA A EJA: CONTRADIÇÕES E PERSPECTIVAS DO ATUAL GOVERNO

Michael Apple, ao desenvolver reflexões em torno da educação como política cultural (2000), questiona a pertinência e o sentido da produção de um currículo nacional como conhecimento oficial. Compreendendo o currículo como fruto de uma tradição seletiva, o autor não se coloca, a princípio, contra o currículo nacional, no entanto, alerta para seus fins e indaga sobre a quem ele interessa em determinados contextos históricos. Em relação à contempora-neidade, diz ele que “nos dias de hoje – dado o peso relativo das diversas forças sociais – há perigos muito reais dos quais devemos estar bastante conscientes” (p. 56). Referindo-se ao que ele chama de predomínio da modernização conservadora na educação em vá-rias regiões do planeta ou da educação à direita, tese desenvolvida em outra obra sua (APPLE, 2003), o autor chama a atenção para os novos compromissos ideológicos das políticas educacionais oficiais com os padrões, agora flexíveis, de acumulação do capital.

Como manifestação dessa empreitada, Apple fala de determina-ção de competências a serem construídas por alunos, professores e escolas, de conhecimentos curriculares básicos que vêm sendo testados por sistemas de avaliação estaduais e nacionais, de pres-são por tornar como fins da escola as necessidades do comércio e da indústria. Nesse contexto, o autor é categórico ao afirmar que “o currículo nacional é um mecanismo de controle político do conheci-mento (...) [que] uma vez estabelecido, indubitavelmente se solidi-ficará ao se ligar a um sistema nacional maciço de avaliação” (idem, p. 71). Vale ainda salientar que, para Apple, os reais beneficiários desse projeto de homogeneização curricular em nível nacional são aqueles que defendem as abordagens orientadas pelo mercado.

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Levanto essas discussões em função das características que mar-cam as recentes políticas oficiais de currículo da EJA no Brasil e que remontam às reflexões, considerações e alertas de Apple. Ao manter como referências nacionais determinadas propostas curriculares produzidas no governo de Fernando Henrique Cardoso, o governo Luiz Inácio da Silva optou por dar continuidade, de certa forma, à lógica que orienta a perspectiva mercadológica do projeto neolibe-ral de educação. Tal fato, somado às ações implementadas já nesse governo, demonstra certas contradições da política atual e revela um jogo de permanências e mudanças que precisam ser examina-das para que possamos compreender o cenário político-filosófico em que se encontra a produção oficial de referenciais curriculares para a EJA.

Comecemos pelo histórico das permanências. Seguindo os pas-sos dados na tentativa de implantação de referenciais curricula-res nacionais para a escolarização de crianças e adolescentes com a produção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e com a instituição do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) também criou mecanismos similares para os Cursos de EJA. Tais iniciativas redundaram na produção da Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos (PCEJA) em duas versões: primeiro segmento e segundo segmento (BRASIL, 2002d, 2002f) e na instauração do Exa-me Nacional de Certificação das Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) (BRASIL, 2002a, 2002b, 2002c).

Conforme se observou em relação aos PCN, tanto o ENCCEJA quanto a PCEJA, por se configurarem em documentos confecciona-dos e distribuídos pelo MEC, carregavam consigo a autoridade do órgão máximo da educação brasileira e introduziam na EJA a nova pedagogia da hegemonia1 na educação dos trabalhadores brasilei-ros. Essa avaliação procede a partir de um breve exame dos princí-pios e indicações gerais desses documentos.

1 A nova pedagogia da hegemonia diz respeito a um conjunto de políticas que exerce pa-pel fundamental na conformação do novo sujeito coletivo do neoliberalismo. Em conso-nância com as necessidades e interesses do capital de acumulação flexível, o aparelho educacional, através das reformas levadas a cabo a partir de meados dos anos noventa, tem sido levado a contribuir para a criação e difusão de uma nova cidadania política, ba-seada na colaboração de classes (NEVES, 2005).

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Ambas as propostas, por exemplo, possuem, como concepção bá-sica, os ditames do currículo por competências. Tal concepção, que, de acordo com Macedo (2002), tem como premissa a listagem de produtos desejados, herda das abordagens comportamentais a im-portância atribuída à definição precisa dos comportamentos espe-rados e dos produtos a serem medidos em uma clara referência ao pensamento tyleriano. Dessa forma, uma listagem de capacidades e competências é adaptada à estrutura disciplinar, uma vez que, ainda segundo a autora, “a concepção de currículo por competências traz embutida a ideia de que o currículo é um plano de atividades de ensino pelas quais a escola é responsável” (p. 127).

Na “PCEJA”, o conteúdo programático deve ser selecionado a par-tir de um conjunto de dez capacidades que se pretende desenvolver. No ENCCEJA, o conhecimento escolar é pautado nas matrizes que estruturam os exames, sendo que tais matrizes são compostas por um jogo de cruzamentos entre as competências gerais (eixos con-ceituais) e as competências das áreas específicas, resultando desses cruzamentos as habilidades (ou capacidades) que deverão ser con-sideradas na seleção de conteúdos a ser realizada pelos professores.

Na outra vertente de análise sobre o significado do currículo por competências, vê-se sua relação estreita com a nova pedagogia da hegemonia. Dentre os produtos desejados e os resultados espera-dos, a partir da aplicação de um rol de competências e habilidades, percebe-se claramente intencionalidades que se dirigem para a for-mação de um novo trabalhador, de uma nova cidadania na perspec-tiva da empregabilidade e do empoderamento.

Este último conceito representa o que há de mais refinado na apropriação neoliberal das possibilidades que se vislumbram como ações emancipatórias dos sujeitos. Para Petras e Veltmeyer (2005), a nova ênfase das agências internacionais na implementação de pro-jetos locais traz, como princípio, o enfoque programático nas ativi-dades individuais, o que resulta na minimização do interesse pelas causas estruturais – e, portanto, sociais e políticas – da pobreza. Tal perspectiva faz uso da noção neoliberal de empoderamento, na qual os trabalhadores são levados a encontrar uma solução “empresarial” para seus problemas.

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Portanto, ao manter a PCEJA e o ENCCEJA como referências cur-riculares nacionais, o atual governo corrobora e toma para si seus pressupostos e indicações gerais, assumindo-os como elementos de sua política. No caso do ENCCEJA, vê-se, claramente, que o estabe-lecimento de capacidades e competências é acompanhado da ins-tauração de uma política de avaliação nacional da EJA, para a qual o exame, mesmo não sendo obrigatório para todos os sistemas de ensino, constitui-se em principal mecanismo. Tais ações, como ve-mos, aproximam-se bastante da perspectiva mercadológica e homo-geneizadora apontada por Apple (2000) e por tantos outros autores que trabalham com a perspectiva crítica do currículo.

Contraditoriamente, em 2006, o MEC apresenta a coleção Tra-balhando com a Educação de Jovens e Adultos, publicação composta por cinco cadernos temáticos que abordam diferentes questões re-lacionadas ao trabalho pedagógico dos educadores na EJA. A partir de situações concretas e exemplos familiares aos professores do primeiro segmento do Ensino Fundamental, aos quais se dirige, a coleção adota, em parte, uma concepção que se alinha aos preceitos da pedagogia crítica com mais ênfase na perspectiva freireana.

No volume em que a coleção trata do processo de aprendizagem de alunos e professores, seus elaboradores indicam a concepção de-mocrática do conhecimento como base para o trabalho pedagógico e utilizam, como referencial conceitual para sustentar essa opção, a visão crítica sobre a produção do conhecimento. Ao afirmar, por exemplo, que o conhecimento nasce da relação dos seres humanos entre si e com o mundo e que ele se constrói nessa relação (Brasil, 2006c), a coleção se aproxima da ideia de que “o homem só conhece aquilo que é objeto de sua atividade”, conforme assegura Kuenzer (s/d) com base na Ideologia alemã, de Marx e Engels. Aparece, tam-bém, no material em questão, a concepção de que a transformação do mundo é o grande estímulo para a produção do conhecimento, pois “se as coisas não estão do jeito que queremos, o estímulo pa-ra mudar torna-se grande [acarretando] a necessidade de aprender novas coisas para enfrentar a situação e mudar o mundo que não está nos satisfazendo” (BRASIL, 2006c., p. 24).

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Com a afirmação de que “os homens, mulheres, jovens, adultos ou idosos que buscam a escola pertencem todos a uma mesma classe so-cial: [isto é] são pessoas com baixo poder aquisitivo, que consomem, de modo geral, apenas o básico à sua sobrevivência” (BRASIL, 2006a, p. 15), a coleção admite que são as frações mais destituídas de di-reitos da classe trabalhadora que formam o principal público da EJA. Contudo, em nenhum momento do volume dedicado ao perfil desse alunado, embora apareça a afirmação anterior, a questão de classe é aprofundada, tampouco a classe trabalhadora e suas características contemporâneas são analisadas como forma de auxiliar o professor da EJA na compreensão da complexa realidade vivida por seus alunos.

Como se vê, o próprio documento contém lacunas e incoerências. Usa referenciais da pedagogia crítica e conceitos oriundos do ma-terialismo histórico-dialético, lançando mão, inclusive, de autores clássicos do pensamento crítico ocidental, mas não os cita direta-mente, nem os relaciona ao conjunto de ideias que apresenta para defender a concepção democrática de conhecimento; reconhece a questão de classe como marca da escolarização de jovens e adul-tos, mas não assume a classe trabalhadora como categoria central na composição do público ao qual a EJA se dirige. De qualquer for-ma, as referências no campo crítico da teoria social demonstram uma visão mais questionadora do texto em relação às abordagens orientadas pelo mercado, bem como, às visões homogeneizantes do currículo, principalmente aquelas que defendem que os sistemas de ensino devem ser avaliados somente através da verificação dos co-nhecimentos escolares adquiridos pelos alunos.

Outra ação curricular de vertente crítica implementada pelo MEC nos remete à produção de materiais didáticos: o lançamento da Coleção Cadernos de EJA. Publicada em 2007, a coleção é resulta-do de uma parceria entre a SECAD/MEC e a Fundação Unitrabalho2. É composta por vinte e sete cadernos, dos quais, treze são dirigi-dos aos alunos, treze são para o uso do professor e um, o caderno

2 A Unitrabalho é uma rede universitária nacional constituída na forma de fundação de direito privado e sem fins lucrativos. Tendo experiência nas áreas de economia solidária, emprego e relações de trabalho, saúde do trabalhador e trabalho e educação. Tal funda-ção desenvolve projetos na área de formação profissional junto a diferentes parceiros, dentre os quais a Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM) e a Escola Sindical Sul, ambas ligadas à Central Única dos Trabalhadores (CUT).

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metodológico, é voltado para professores, coordenadores e direções das escolas. De acordo com as orientações metodológicas da cole-ção (BRASIL, 2007), os cadernos do aluno compreendem um livro de textos a ser utilizado no desenvolvimento dos conhecimentos referentes às disciplinas que compõem o quadro de componentes curriculares obrigatórios na educação nacional. Esses textos são oriundos de diferentes gêneros literários e são voltados para alunos do primeiro e do segundo segmentos do Ensino Fundamental.

Já os cadernos do professor trazem sugestões de atividades para as diferentes disciplinas, sempre relacionadas a cada um dos textos presentes nos cadernos do aluno. As atividades são apresentadas em forma de planos de aula que contêm objetivos, introdução, descrição da atividade, tempo e recursos indicados para a sua realização, bem como algumas sugestões de livros, endereços eletrônicos, músicas e filmes para a consulta do professor. O caderno metodológico possui orientações gerais da proposta, direcionadas aos profissionais envol-vidos com a EJA, com vista a esclarecer questões relativas à concepção que norteia o material, à organização dos temas, aos possíveis usos e à articulação das atividades sugeridas com o mundo do trabalho.

É importante frisar que a coleção se apresenta como um material de apoio aos professores e alunos em suas atividades diárias, não se constituindo, portanto, como livros didáticos convencionais a serem utilizados a partir de uma sequência predeterminada de assuntos e temas. Essa flexibilidade é garantida na medida em que os textos que compõem os cadernos do aluno devem ser trabalhados a partir da determinação de um coletivo de professores ou mesmo de pro-fessores isolados, cabendo assim a escolha de temas, textos, conte-údos e atividades, de acordo com as características dos estudantes.

Outra característica da coleção é o tratamento dos conteúdos dis-ciplinares a partir de eixos temáticos determinados para cada cader-no. Esses eixos, por sua vez, mantêm relação com o tema maior que norteia toda a coleção e articula as temáticas desenvolvidas pelos cadernos. Segundo os elaboradores, a escolha do tema trabalho, co-mo o norteador de todo o material, se deve tanto por sua presença no cotidiano dos alunos, posto que boa parte deles é inserida de alguma forma no mundo do trabalho, como por sua ausência enquanto con-teúdo e problemática para reflexão e debates nas salas de aula da EJA.

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Segundo a proposta curricular da coleção, o diálogo é um dos princípios pelos quais o material foi concebido. Orientando a esco-lha dos textos e a elaboração das atividades, o diálogo como princí-pio pedagógico perpassa também a relação entre os professores das diferentes áreas e níveis, a cooperação entre os alunos e a interação destes com o conhecimento sistematizado. Esse princípio encontra-se presente ainda na concepção de material didático adotada pela proposta, uma vez que ele é visto como “um elemento complemen-tar numa relação social que se estabelece entre professor e alunos” (BRASIL, 2007, p. 14). Até porque, como a proposta rompe com o paradigma da linearidade no ensino dos conteúdos e “os compo-nentes curriculares se interpenetram sem fronteiras estanques” (p. 15), o papel de mediação do professor se torna fundamental para o processo de aquisição de sentido do material por parte dos alunos.

O trabalho, como princípio educativo, também marca a proposta curricular da coleção. Visto como atividade essencial para o ser hu-mano e meio pelo qual a sociedade se relaciona com a natureza, o trabalho também é encarado como uma contradição na sociedade moderna, pois, da forma com que é estruturado nesse modelo de sociedade, ele é, ao mesmo tempo, fonte de enriquecimento para uns e pobreza e sofrimento para a maioria. Em função disso, vale destacar, “os textos e atividades sugerem a educadores e educan-dos elementos para compreender a sociedade atual de forma crítica, compreendendo as causas das desigualdades e injustiças, e, ao mes-mo tempo, imaginando a possibilidade de construir novas relações humanas no trabalho e na vida” (BRASIL, 2007, p. 15).

Tendo, portanto, a emancipação dos trabalhadores como horizonte, a coleção se fundamenta, ainda, em alguns outros princípios. Dentre eles, se destacam a criticidade, vista como a busca pelo entendimento das causas dos problemas e pela não conformação “com as explica-ções simplistas e superficiais (quando não falsas) do senso comum e dos grandes veículos da mídia” (BRASIL, 2007, p. 17), e a criatividade, pois, para os autores da proposta, além de o ato criativo ser essencial para a realização do/no trabalho, é o seu desenvolvimento que provo-ca a percepção de que todo o produto da atividade humana pode ser transformado, seja ele um texto ou um sistema político e econômico.

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Enfim, vemos que, em linhas gerais, a proposta curricular da Co-leção Cadernos de EJA traz, como principais referenciais político-fi-losóficos, alguns elementos do pensamento pedagógico crítico, com destaque para a indicação do trabalho e do diálogo como princípios educativos. Toda sua estrutura organizacional baseia-se na flexibilida-de das ações pedagógicas e carrega, como pressuposto, a liberdade de escolha dos professores em relação à melhor forma de utilização dos textos e atividades sugeridas. Desse modo, pode-se considerá-la uma proposta inovadora, em termos de organização do conhecimento es-colar, em materiais didáticos, progressista em seus princípios e incen-tivadora do trabalho coletivo, reflexivo e autônomo dos professores.

As políticas curriculares para a EJA implementadas no atual go-verno, no entanto, não param por aí. Se considerarmos o Programa Nacional de Inclusão de Jovens, o PROJOVEM Urbano3, como perten-cente ao conjunto de políticas direcionadas à escolarização de jovens e adultos trabalhadores, sua proposta curricular e a coleção didática que a acompanha podem também servir como referências de abran-gência nacional para a EJA. Assim sendo, ampliam-se as ambiguidades, pois tal programa, além de se constituir como uma ação focal, se in-sere em perspectivas teórico-metodológicas advindas dos discursos veiculados por organismos internacionais de cooperação multilateral, principalmente no que diz respeito às ideias de qualificação para o trabalho e empregabilidade, no campo da formação profissional e de protagonismo juvenil, no campo das políticas de juventude.

Nesse sentido, não se pode deixar de perceber as incongruências existentes entre as propostas curriculares que o MEC considera e apresenta como referências curriculares nacionais para a EJA. Se parte delas evoca o pensamento pedagógico crítico, outras iniciativas condi-zem com outros pressupostos e intenções, como é o caso do ENCCEJA.

Tal situação nos remete ao hibridismo presente nas políticas de currículo, sobre o qual nos fala Lopes (2006). A autora adota um modelo teórico de interpretação de políticas de currículo levando

3 Em linhas gerais, o PROJOVEM Urbano prevê, em um período de dezoito meses, eleva-ção de escolaridade (término do Ensino Fundamental), qualificação para o trabalho com certificação inicial, ações de participação cidadã e inclusão digital para jovens entre de-zoito e vinte e nove anos sem vínculos formais de trabalho e residentes em cidades com mais de duzentos mil habitantes.

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em conta as reinterpretações que acontecem no momento em que propostas curriculares oficiais são produzidas e incorporam senti-dos e significados originados tanto no contexto de práticas locais quanto no contexto internacional de influência. Essas reinterpreta-ções produzem discursos híbridos, o que envolve a mistura de con-cepções em um mesmo documento ou em diferentes ações políticas de um mesmo governo. Para Lopes (ibid.):

(...) o hibridismo é caracterizado, sobretudo, pela negociação de sentidos nos diferentes momentos da produção de todos esses textos e discursos da reforma. Nessa negociação entram em jogo, particularmente, concepções de currículo e acordos a serem feitos entre os diferentes segmentos sociais, dentre eles, as comunidades disciplinares. O híbrido não resolve as tensões e contradições entre os múltiplos textos e discursos, mas produz ambiguidades, zonas de escape dos sentidos (p. 40).

São essas ambiguidades que garantem a legitimidade de boa par-te desses documentos perante um considerável número de atores envolvidos na formulação de políticas educacionais (pesquisadores, professores, dirigentes, alunos etc.), uma vez que são frutos de ne-gociações e acordos tácitos. No caso das políticas de currículo da EJA, por exemplo, os discursos híbridos que as dominam no atual governo podem ser resultado tanto da influência dos organismos internacionais, que vêm insistindo na adoção de propostas basea-das no currículo por competências, como do reconhecimento do le-gado que a educação popular e iniciativas oriundas de movimentos sindicais deixaram para os projetos político-pedagógicos relaciona-dos à alfabetização e escolarização de adultos. Se a manutenção do ENCCEJA se coaduna com o primeiro tipo de influência, os textos da coleção Trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos e dos Ca-dernos de EJA trazem elementos bastante vinculados às concepções de conhecimento e de seleção de conteúdos que marcam as experi-ências de caráter contra-hegemônico desenvolvidas por movimen-tos sociais ou mesmo por algumas redes oficiais de ensino.

Ainda segundo Lopes (2006, p. 41), a disseminação desses dis-cursos é realizada por comunidades epistêmicas com capacidade de influência nas políticas públicas. Por serem compostas por “grupos

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de especialistas que compartilham concepções, valores e regimes de verdade comuns entre si e que operam nas políticas pela posição que ocupam frente ao conhecimento, em relações de saber-poder”, tais comunidades contribuem com os discursos hegemônicos, po-rém, hibridizados em muitos casos. Para a autora, o questionamento desses discursos deve passar pela investigação sobre como as co-munidades epistêmicas, sejam elas específicas do campo educacio-nal, do ensino das disciplinas específicas, ou mesmo, do campo da economia e da administração, os mantêm e os produzem, “susten-tando argumentos favoráveis a eles e fazendo com que circulem em diferentes contextos” (LOPES, 2006, p. 49).

A PRODUÇÃO CURRICULAR OFICIAL E OS DESAFIOS DA PRÁTICA DOCENTE

Como vemos, a produção do que podemos chamar de conhecimento oficial, mediado por questões culturais, políticas e econômicas em sua constituição enquanto currículo escolar, passa por complexos processos que, ao fim e ao cabo, revelam as relações de poder pre-sentes nas políticas de currículo. Entretanto, a apropriação dessas políticas por parte das escolas não é homogênea e imediata. Perme-adas por fatores que vão desde a estrutura do sistema educacional à formação docente, a interpretação e a aplicação de diretrizes e ações presentes em documentos oficiais sofrem influências de instâncias não previstas pelo texto curricular. Nesse sentido, o conceito de re-contextualização, formulado por Bernstein (1996), ajuda na compre-ensão de outras dimensões da produção do saber a ser ensinado, isto é, do processo que as políticas curriculares engendram e percorrem.

Para além desse primeiro movimento de mediação didática, que é a própria produção de propostas curriculares oficiais, a recontex-tualização auxilia, também, na análise do segundo processo de me-diação: aquele situado entre o saber a ser ensinado e o saber escolar praticado, em ação. Segundo Lopes (2005), esse conceito contribui, justamente, para o entendimento das reinterpretações dadas a di-ferentes textos e documentos quando de sua circulação pelo meio educacional, uma vez que orientações curriculares nacionais são modificadas pela mediação de esferas governamentais intermediá-

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rias e das escolas ou, ainda, são alterados, no âmbito dos contextos disciplinares, os diversos textos de apoio ao trabalho docente.

Talvez isto explique as razões que levam boa parte dos Cursos da EJA a continuar ignorando qualquer tentativa de superação do modelo supletivo, apesar do movimento contraditório das políticas educacionais, que ora avançam no sentido da autonomia curricular como princípio, ora criam mecanismos regulatórios, como o ENC-CEJA. Em balanço da evolução recente da EJA no Brasil, Di Pierro (2004) atesta que “a concepção ainda predominante entre edu-cadores e gestores da educação brasileiros continua a ser a visão compensatória que atribuía à Educação de Jovens e Adultos a mera função de reposição de escolaridade não realizada na infância ou adolescência” (p. 14). Assim, embora seja múltiplo e contraditório, o atual panorama das orientações curriculares nacionais da EJA, é a concepção supletiva de currículo4 que continua a ser a referência mais comum para pensar a Educação de Jovens e Adultos no Brasil.

Obviamente, para a compreensão mais efetiva deste fenômeno, deve-se ter em mente a relação entre a construção curricular das es-colas e as precárias condições de trabalho que educadores enfren-tam cotidianamente. Com elevada carga horária diária de trabalho, sem tempo previsto para encontros de discussão coletiva sobre o trabalho pedagógico, sem políticas permanentes de formação con-tinuada em serviço e com baixos salários, muitos docentes da EJA acabam por desconhecer e, muitas vezes, desconsiderar propostas que exijam tempo para leitura e estudo. Ainda assim, muitos desses profissionais têm implementado políticas de currículo inovadoras, mobilizando saberes e práticas adquiridos através dos desafios co-tidianos a que são submetidos. Além disso, vale lembrar que muitos dos textos produzidos pelo MEC não lhes chegam às mãos, uma vez que, em geral, são encaminhados às secretarias estaduais e munici-pais de ensino e de lá raramente são distribuídos entre as escolas.

4 Nas propostas curriculares de concepção supletiva prevalece, na grande maioria dos ca-sos, o currículo prescritivo, pautado em uma listagem de conteúdos disciplinares baseada no ensino de crianças e adolescentes e com padrões de avaliação classificatórios, reve-lando abordagens teórico-metodológicas estreitamente vinculadas à chamada educação tradicional (SANTOS, 2008).

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A despeito dos problemas estruturais que dificultam a leitura e a análise dos documentos, a multiplicidade e as incongruências das propostas curriculares tornam mais desafiador ainda o conhecimen-to crítico sobre sua produção e seu conteúdo. Podendo trabalhar em uma rede de ensino que tem como premissa preparar os alunos para os exames do ENCCEJA, ao mesmo tempo em que pode estar inserido em uma escola que decide adotar os Cadernos da EJA, por exemplo, um determinado professor pode se ver obrigado a adotar duas dife-rentes e antagônicas orientações curriculares nacionais. E, se não há tempo para a reflexão crítica, corre, ainda, o risco de não perceber o quanto e em que perspectivas tais propostas se diferem.

Outro fato agravante é que, nas propostas curriculares aqui ana-lisadas, é comum se desconsiderar essa escola e esse professor real que insistem em existir. Em geral, os textos oficiais dificilmente fazem qualquer alusão às dificuldades estruturais enfrentadas nas unidades escolares, idealizando, assim, condições de trabalho muito distantes da realidade educacional brasileira. A proposta curricular dos Cader-nos da EJA, por exemplo, ao exigir a autonomia do professor no que se refere à seleção e organização dos conteúdos disciplinares, só pode ser plenamente desenvolvida em realidades onde essa independên-cia é possível e incentivada. Isso porque ela requer dos professores uma liberdade de ação que nem sempre é possibilitada em função das relações pouco democráticas encontradas no interior de muitas escolas ou redes de ensino. O trabalho coletivo é outro aspecto a ser ressaltado, uma vez que a escolha dos textos e atividades deve estar pautada no projeto político-pedagógico desenvolvido pela unidade escolar. Além disso, também, fica claro o caráter de complemento ao trabalho pedagógico que essa coleção possui, uma vez que a aborda-gem mais aprofundada de determinados conteúdos disciplinares exi-ge dos professores a procura por outras fontes de consulta.

Assim, o desafio da prática docente se recrudesce, enquanto a pres-são por uma idealizada mudança no trabalho pedagógico atinge sobre-maneira os profissionais educadores da EJA. Afinal, se o problema já não é mais a ausência de propostas e orientações curriculares oficiais, o risco de culpabilizar os professores e professoras pela predominância de uma concepção que já poderia estar ultrapassada se torna iminente.

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Todo esse panorama exige, portanto, ações políticas mais con-tundentes no que diz respeito à formação continuada dos profissio-nais da EJA, algo que os próprios professores devem cobrar de seus gestores. A luta pelas profundas alterações estruturais necessárias para as escolas da EJA deve ser simultânea à implantação de propos-tas curriculares inovadoras. Até porque se deve refletir criticamente sobre as razões e os sentidos da inovação.

Além disso, se é fato que professores produzem políticas de currí-culo cotidianamente, também é verdade que poucos registram, refle-tem e trocam experiências sobre suas ações. Nesse sentido, somente projetos de formação continuada que contemplem todos os aspectos aqui apontados e que sejam elaborados a partir do diálogo e das ne-cessidades de educadores e educandos da EJA podem, de fato, auxi-liar na execução de um fazer pedagógico mais crítico e emancipató-rio em processos de escolarização de jovens e adultos trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se, nesse artigo, explicitar a recente produção de propos-tas curriculares da EJA no âmbito do governo federal, analisando o sentido de currículo oficial que elas engendram. Se a revelação de contradições e antagonismos presentes nas políticas de currículo do atual governo para a modalidade de ensino em pauta podem ser analisadas à luz das categorias de recontextualização e hibridismo desenvolvidas por Lopes (2005), a constatação de sua existência nos leva a novos desafios analíticos. Dentre estes, pesquisas e estudos acadêmicos que tenham como objeto de análise as políticas de currí-culo em EJA em todas as suas instâncias, desde a esfera federal a pro-postas curriculares implementadas por escolas e movimentos so-ciais, por exemplo, podem contribuir sobremaneira para a produção de outras questões e para o aprofundamento da análise aqui exposta.

Em tais estudos, os sentidos de currículo e de conhecimento es-colar explicitados pelos elaboradores dos documentos curriculares podem se apresentar como bom caminho para se penetrar mais de-tidamente nos processos de recontextualização de discursos produ-zidos em outros contextos. Além disso, a análise das comunidades

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epistêmicas, de que fala Lopes (2006), as quais pertencem os ela-boradores dos textos curriculares pode revelar elementos até então negligenciados. Nesse caso, se encontram as comunidades discipli-nares, isto é, com esse procedimento, os sentidos produzidos sobre o conhecimento escolar a ser ensinado e aprendido na EJA, a partir das disciplinas escolares, pode auxiliar na compreensão e construção de novos contornos na seleção e organização de conteúdos disciplina-res, bem como contribuir para leituras e ações interdisciplinares.

Para além do currículo, como produto materializado nos documentos oficiais, pesquisas e estudos do currículo como processo podem eviden-ciar as reinterpretações tanto desses documentos quanto de discursos originados em outras instâncias. A curiosidade analítica pode se dirigir para indagações que tentam fazer emergir os hibridismos e as contradi-ções que aparecem na prática docente, revelando também sentidos so-bre o conhecimento escolar de EJA em ação nas escolas brasileiras.

A partir desse esforço, acredito que novas questões aparecem, aprofundando e problematizando ainda mais a análise sobre a produção de currículo na EJA, fato que se torna extremamente ne-cessário para que se possa avançar, não só em novas investigações acadêmicas, mas também, e principalmente, para contribuir com a prática docente. Ou seja, a importância da pesquisa é aqui associada ao processo de ensino e de aprendizagem que diariamente é desen-volvido nas escolas e cursos de EJA, o que evidencia o caráter e o compromisso social daqueles que se dedicam à produção de conhe-cimentos no campo educacional.

Quanto às questões e reflexões expostas ao longo deste artigo, fica a constatação da necessidade da leitura atenta e cuidadosa de textos curriculares. Reveladores de intencionalidades nem sempre explicitadas, sua produção não está alheia à visão de mundo e ao projeto de vida social que se quer construir. Quando se trata da esco-larização de jovens e adultos, a atenção deve ser redobrada em fun-ção dos projetos que disputam a direção política da formação escolar dos trabalhadores. E nesse aspecto, as evidentes contradições e am-biguidades presentes entre as atuais propostas curriculares nacio-nais de referência para a EJA revelam que tais disputas tomam corpo e recrudescem a luta de classes no interior do próprio atual governo.

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SOBRE O AUTOR

Enio Serra dos Santos é Doutor em Educação pela UFF. Atua como docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro do Laboratório de Investigação, Ensino e Extensão em Educação de Jovens e Adultos (LIEJA), onde investiga sobre Currículo e Ensino de Geografia na EJA.

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EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: DA ALFABETIZAÇÃO À “APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA”?

Esse artigo tem como objetivo discutir a alfabetização de jovens e adultos com base no programa Brasil Alfabetizado, período de 2003 a 2006, bem como o conceito de “aprendizagem ao longo da vida”. Na primeira parte, debatemos concepções e práticas que confor-mam a Educação de Jovens e Adultos - EJA. Na segunda, apresenta-mos conceitos de alfabetização e, em seguida, realizamos uma bre-ve reflexão sobre a “aprendizagem ao longo da vida”. Tratamos do programa no terceiro momento, em que apresentamos a história de Dona Luzia, alfabetizada na “experiência de Angicos”, em 1962, no Rio Grande do Norte, pelo “Método Paulo Freire de Alfabetização” (BEISIEGEL, 1974, p.169) e que continua participando de progra-mas de alfabetização. Em nossas reflexões finais, compreendemos que a lição sabemos de cor, só nos resta aprender.

CONCEPÇÕES E PRÁTICAS ATUAIS DE EJA: POLISSEMIA DE SENTIDOS

O uso da expressão “concepções”, no plural, dá a medida do quan-to a EJA configura-se como um campo em tensões e disputas, em que os sentidos são produzidos no embate de “correlação de for-ças emergentes na atual fase da expansão e consolidação do capital” (RUMMERT & VENTURA, 2007) no Brasil, que constituem a área da educação fortemente marcada por condicionantes estruturais e pe-las ações do governo.

A EJA é uma modalidade de ensino que expressa a dualidade ca-racterística do sistema educacional por meio de uma distribuição de-sigual do acesso ao conhecimento, que se configura em permanências

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e participações desiguais quanto à Educação Básica. As diferentes iniciativas referentes à EJA postas em prática expressam a desigual-dade de acesso aos bens materiais simbólicos, bem como reiteram a negação dos direitos fundamentais como, por exemplo, o direito ple-no à educação. Cabe ressaltar que expressam também as mudanças internas relativas à reestruturação produtiva, ao aprofundamento do processo de internacionalização do capital e à inserção dependente e subordinada do país ao capitalismo internacional (RUMMERT, 2007).

Entramos no século XXI com 14,1 milhões de pessoas (BRASIL, 20091), com idade superior a 15 anos, que não sabem ler e escrever. Esses números nos indicam o quanto ainda estamos distantes da universalização da Educação Básica.

Rummert (2007) assinala dois aspectos nesse quadro: no primeiro, a classe trabalhadora no Brasil não constitui força social expressiva na luta pelo direito ao acesso e à permanência no percurso formativo da Educação Básica, o que ainda se constitui em privilégio; e no segundo, de modo paradoxal ao primeiro, a educação é compreendida como via de superação de assimetrias de poder entre os países centrais e os que aspiram ingressar no bloco hegemônico. Esse valor absoluto atribuído à escola e à educação, em relação direta com a ascensão social, será compreendido, na visão crítica de Anísio Teixeira (apud RUMMERT, 2007), como a distância entre os valores proclamados e os valores reais que, ainda hoje, norteiam as políticas educacionais.

As ações relativas à EJA evidenciam, no período de 2003-2006 do governo Lula, apesar de quantitativamente mais expressivas que no governo anterior, a baixa efetivação quanto à universalização da Educação Básica no Brasil. Isso pode ser constatado quando ob-servamos o tempo de permanência do educando no Ensino Funda-mental e de acesso reduzido ao Ensino Médio, níveis de ensino que, segundo o próprio governo federal, ainda se constituem privilégios.

Diversas práticas2, isto é, iniciativas focais, foram implementa-das como possibilidades de elevação da escolaridade, entretanto, possuem caráter aligeirado e precário, ao mesmo tempo em que se pretendem inclusivas.

1 Ver Síntese dos Indicadores Sociais, Brasil (2009).2 PROJOVEM, PROEJA, Brasil Alfabetizado, entre outras.

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A EJA é, para Rummert (2007) e nós concordamos com ela, en-quanto modalidade de ensino, uma educação de classe, pois se confi-gura como oferta de possibilidades de elevação da escolaridade para aqueles que tiveram negado o direito à educação, na faixa etária le-galmente indicada (6 a 17 anos), e que, portanto, aguardam uma ação reparadora de uma dívida social do Estado para com eles. Por outro lado, configura-se também em uma educação para frações da classe trabalhadora, cujos papéis a serem desempenhados no cenário da produção não requerem maiores investimentos do Estado. Ou seja, é uma modalidade de ensino no limiar, na fronteira entre uma educação, porém de segunda classe e a efetivação do direito pleno à educação.

Direito esse reiterado nos documentos legais que também ex-pressam o grau de poder das forças sociais em disputa por hege-monia num determinado momento histórico, isto é, numa legislação que ratifica a expressão dessas correlações de força. São documen-tos, entretanto, fundamentais na formulação e execução de políticas públicas, ainda que, por si só, não alterem as práticas, posto que, segundo Rummert (2007), nem os jovens e adultos nem a sociedade assumiram para si a tarefa de lutar pelo direito à educação, deixan-do assim de criar, para as forças dominantes, problemas políticos que as constrangessem a assegurar a universalização das condições, não só de acesso, mas de permanência na escola, efetivando o direi-to à Educação Básica de qualidade para todos.

Nesse cenário, que reitera a educação como a alavanca para a as-censão social, a EJA configura-se como geradora de oportunidades diferenciadas de trabalho, à medida em que se amplia a escolariza-ção ou que se defende a “aprendizagem ao longo da vida”. Para Marx (1984), essas perspectivas são derivadas do entendimento de que a força de trabalho, tomada como mercadoria, é capaz, ela própria, de ampliar suas possibilidades de exploração pelo capital.

Observamos a existência de uma polissemia de sentidos quan-to às concepções e práticas de jovens e adultos, denotando, desde 2003, que a EJA tornou-se objeto de um número mais significativo de iniciativas do que nos períodos de governos anteriores, porém, tais iniciativas se apresentam como claras explicitações do quadro acima delineado.

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ALFABETIZAÇÃO E “APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA”: ARMADILHAS E REFÚGIOS

No mundo há muitas armadilhas e o que é armadilha pode ser refúgio e o que é refúgio pode ser armadilha.

(Ferreira Gullar, 1998)

Tratar a EJA, como um campo em tensões e disputas, fez-se neces-sário para a compreensão de continuidades, descontinuidades, du-alidades e subjetividades que vão configurando-se e configurando conceitos de alfabetização nesse período, que expressam disputas por hegemonia e revelam os lugares assumidos pelo termo, que não são intocáveis nem uniformes, pois delimitados pelos interesses históricos, sociais, políticos e econômicos que determinam o conhe-cimento em cada época.

A discussão, portanto, do conceito de alfabetização, está atraves-sada por outras dualidades, subjetividades e intersubjetividades, tais como: alfabetização/analfabetismo, alfabetizado/analfabeto, al-fabetização funcional/analfabetismo funcional, letrado/iletrado etc., que Graff (1995) denomina de “tiranias das dicotomias conceituais”, como se um fosse o contrário do outro, a normalidade ou a deficiên-cia, a cultura ou a ignorância, a polidez ou a estupidez, isto ou aquilo.

Discutir esses termos, implica fazê-lo na ótica da produção de discursos em que aqueles que não sabem ler e escrever são vistos como bárbaros, incivilizados e brutos. Implica compreender que tais termos, bem como os critérios e as medidas sobre o que é ser alfabetizado explicitam conflitos, tensões e complexidades, haja vista que ampliar o conceito de alfabetização amplia, também, o de analfabetismo. Um conceito de alfabetização, na perspectiva stricto sensu, muito utilizado é do recenseamento nacional da população que, mediante aspectos culturais, históricos e políticos, tem revisa-do o conceito de alfabetização.

Tomando os censos demográficos (FERRARO, 2002), até 1940 eram consideradas alfabetizadas as pessoas que declarassem saber ler e escrever, o que significava a capacidade de assinar seus pró-prios nomes. Importava menos se a pessoa, de fato, soubesse ler e

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escrever e sim que o declarasse saber. Saber ler e escrever, entretan-to, deveria ser mais do que assinar o próprio nome, ou seja, mais do que a redução do processo complexo de aprender a ler e escrever a uma assinatura. A autodeclaração tinha um aspecto positivo, apesar dessa redução, visto que era o próprio indivíduo que se definia al-fabetizado ou não, ainda que não se considerassem os sentidos e os usos da alfabetização que envolvem atitudes mais complexas do que responder a simples perguntas ou exames censitários. Cabe destacar a importância social e simbólica que observamos nos relatos de jo-vens e adultos quando aprendem a assinar o próprio nome e deixam para trás o estigma de “sujar o dedo” para expressar sua identidade.

A partir de 1950 e até os dias atuais, com base nos censos, to-ma-se como critério3 de alfabetizado, por meio da declaração de informantes, aquele que consegue escrever e ler um bilhete simples. Apesar de inserir a leitura naquilo que era considerado uma prática específica de escrita, mantém-se a limitação de uma prática comple-xa à leitura e escrita de um bilhete simples, ignorando o contexto de produção e as demandas específicas de uso da leitura e da escrita.

A UNESCO, a partir de 1965, iniciou campanhas (“educação das massas”) nos países colonizados para acabar com o analfabetismo, baseada no argumento de que isso reduziria a pobreza, a doença e o atraso generalizado, propiciando, por meio da alfabetização, o pro-gresso, a saúde e o bem-estar social e econômico. Essa perspectiva considera a alfabetização, no âmbito da leitura e da escrita, como requisito para desenvolvimento econômico, modernização, estabi-lidade política, padrões de vida, controle de natalidade, redução da criminalidade e da violência, melhoria da saúde etc. Cabe ressaltar que não temos a intenção de negar os benefícios que o processo de aprender a ler e a escrever em sociedades letradas pode trazer para os indivíduos, mas sim relativizar essas visões limitadoras que rela-cionam a alfabetização ao progresso, à civilização, à razão etc.

Na década de noventa a UNESCO recomendou ao IBGE4 que passasse a divulgar os índices de analfabetismo funcional, não mais

3 Recomendação da UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 4 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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com base na autoavaliação dos sujeitos, mas sim no número de sé-ries escolares concluídas. Portanto, passaram a ser consideradas analfabetas funcionais, pessoas com menos de quatro anos de es-colaridade. Essa orientação testemunhava uma tendência crescente, que consistia em distinguir uma pessoa alfabetizada de uma fun-cionalmente alfabetizada, definida pelo conhecimento e habilidades essenciais que a capacitasse a engajar-se em atividades nas quais a alfabetização era exigida para o funcionamento efetivo em seu gru-po e sua comunidade. Cunhava-se, portanto, mais um conceito de alfabetização: a funcional. Resta saber, para quem?

O conceito de analfabetismo funcional visa, ao nosso ver, enco-brir o fracasso da sociedade e da educação no seu projeto de civi-lização, o sonho da “grande cidade”, do “novo mundo” que não se concretizou para todos. Pois, à medida que não foi possível alfabeti-zar os “bárbaros”, tornou-se necessário cunhar outra expressão, que delimitasse esse universo de pessoas que tiveram acesso precário à escola e foram expulsas/excluídas dela. A responsabilidade com es-sa exclusão continua sendo do indivíduo, que era (é) culpabilizado por esse resultado.

A oferta da educação, restrita a determinados grupos e distribu-ída desigualmente, ampliou o universo de pessoas analfabetas, en-globando não somente aqueles que não dominavam o sistema alfa-bético, mas também os que tiveram acesso e permanência limitados à escolarização. A responsabilidade por essa situação é partilhada com a escola, com o professor e com os métodos de alfabetização, além do aluno e de sua família. Ora a culpa é de um, ora de outro. Entretanto, não podem ser encaradas como as únicas variáveis ex-plicativas para a exclusão, considerando as discussões anteriores.

Os ideais da cidade letrada ainda não se concretizaram nesse país e os sentidos que a alfabetização assumiu, ao longo da história da educação, denotam que seria mais coerente falarmos de alfabeti-zações, no plural. Percebemos, contudo, que os aspectos teóricos e práticos da alfabetização centram-se na perspectiva individual e não social, o que indica uma forma do Estado omitir-se e eximir-se de seus resultados. Essa perspectiva esteve sempre atrelada à dimensão técnica e tecnológica, desconsiderando o contexto de produção es-pecífico e as demandas. Então, será que a alfabetização já não basta?

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(MORTATTI, 2007). Haveria um esgotamento teórico e prático do con-ceito de alfabetização?

O conceito de alfabetização está atravessado por acesso, partici-pação e disponibilidade desiguais nas e às práticas de ler e escrever. Portanto, os usos, as funções, os significados de leitura e de escrita e as formas de produção, distribuição e utilização do material escrito e impresso, relacionam-se ao tipo de sociedade e aos projetos políticos, sociais e culturais em disputa em determinado momento histórico.

A Conferência Mundial de Educação para Todos (Jomtien, Tailân-dia, 1990) e a V Conferência Internacional de Educação de Adultos

– V CONFINTEA (Hamburgo, 1997) reafirmaram o direito de todos à “educação ao longo da vida”. Para a efetivação desse direito, con-siderou-se a alfabetização uma estratégia fundamental, porém não a única, para fazer frente à exclusão e à desigualdade social e, desse modo, garantir os direitos humanos, a participação cidadã, a valori-zação da diversidade cultural, da solidariedade entre os povos. Es-sas Conferências ampliaram, do ponto de vista legal, concepções de alfabetização e educação compreendendo-as como processos que se estendem ao longo da vida, considerando que as pessoas estão permanentemente se educando em diversos âmbitos sociais, não só na escola. Desse modo, a definição de alfabetização alcança um sentido para além do aprender a juntar letras, ou seja, visa ao de-senvolvimento de novas habilidades, criando novas motivações pa-ra transformar a si mesmos, interessar-se pelas questões públicas e intervir na realidade da qual faz parte.

Diante da pluralidade de sentidos e apropriações quanto à alfa-betização, observamos que a discussão não pode ser reduzida ao uso do termo, visto que há muitas implicações por trás disso. Mudar o conceito ou ampliá-lo não dá conta de saldar a dívida secular do Brasil com a educação do povo, principalmente, de indígenas, ne-gros, mestiços e mulheres, alijados por muitos anos desse processo, o que corrobora a afirmação de Gonçalves (2006, p.58):

(...) continua-se oferecendo modernidade para superar mazelas da modernização num ciclo vicioso que, mais do que como farsa, se reproduz ampliadamente como capital por meio de injustiças, devastações e tragédias nesse sistema mundo-moderno-colo-nial que nos governa.

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Aprender a ler e a escrever ou a “aprendizagem ao longo da vida”, contudo, são formas de se inserir nessa escrita oficial para combater as inúmeras injustiças, devastações e tragédias ou, nas palavras do poeta, “é armadilha que é refúgio e refúgio que é armadilha” (FER-REIRA GULLAR, 1998). Daí a importância de discutirmos o concei-to de “aprendizagem ao longo da vida”, sua hegemonia no discurso oficial, seu caráter multifacetado e suas contradições na realidade brasileira (VENTURA, 2008).

APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA

A dimensão de “educação ao longo da vida5” nos é muito cara ao compreendê-la como direito ontológico de todo ser humano de con-tinuar educando-se na e pela vida, sendo sua discussão crítica ainda muito recente no Brasil. Dando continuidade ao diálogo, portanto, nos apropriamos da análise crítica de Rui Canário (2003) sobre esse conceito e a política vinculada a ele. O autor argumenta que o alar-gamento da forma escolar a todos os tempos e espaços contribui pa-ra a desvalorização das aquisições humanas realizadas por via não escolar, a partir das vivências e experiências.

No conceito de “aprendizagem ao longo da vida” impera o con-senso, só se admite a discussão dos meios, negando-se qualquer pertinência à discussão dos fins, ou seja, a determinação pelos hu-manos do seu dever individual e coletivo. Esse conceito tem origem na Educação Permanente, nos anos setenta, contudo, para Canário (2003), significa uma ruptura e não uma continuidade, pois cria des-locamento redutor da educação para formação e da formação para aprendizagem. O conceito baseia-se em três grandes categorias: a primeira refere-se à evolução tecnológica que visa à adaptação do trabalhador à necessidade de aprender e adquirir novas compe-tências. O “aprender ao longo da vida” forneceria as condições para essa adaptação. Outra característica relaciona-se à eficácia da ati-vidade produtiva com base na produtividade, na competitividade e

5 Ver Ventura (2008) ao destacar, principalmente, os movimentos sociais do campo que trabalham numa perspectiva da educação ao longo da vida, por meio da ampliação do acesso à educação.

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empregabilidade, configurando-se como uma medida estratégica de emprego, com vistas a melhorar conhecimentos, aptidões, compe-tências e adaptabilidade da mão de obra. A terceira característica é da coesão social, que se traduz na preocupação de combater ou pre-venir formas de conflitualidade social que poderiam abalar a ordem econômica. Essa característica visa conciliar crescimento econômi-co dinâmico e reforçar ,ao mesmo tempo, a coesão social, buscando conter as classes perigosas e combater a exclusão social.

As três categorias reforçam a subordinação funcional das polí-ticas educacional e de formação à racionalidade econômica domi-nante, baseada na produção e acumulação de riqueza, sob a forma de “uma tendência inquieta e insaciável para acumulação do capital” (CANÁRIO, 2003).

Na perspectiva da “aprendizagem ao longo da vida”, cada indiví-duo é o responsável principal por sua formação, por meio dela se in-serirá no mercado de trabalho, ou seja, sua “empregabilidade” será resultado de uma formação bem sucedida. Cada pessoa torna-se um empresário de si mesmo e deve vender-se como produto e negociar o capital em que se tornou (CANÁRIO, 2003).

Nessa “nova” forma de acumulação do capital, a realidade é apre-sentada como imutável. O desemprego e a precarização do trabalho passam a justificar-se como imutáveis, restando-nos apenas uma ação adaptativa e paliativa, moderadora dos efeitos mais extremos, que garantam a coesão social. Então, o desemprego deixa de ser um problema e passa a ser uma solução, um mal necessário, que “novas” formas de assistencialismo procuram minorar. Semelhante perspec-tiva pode ser aplicada à questão da alfabetização/analfabetismo e às políticas focais que buscam, de forma reiterada e aligeirada, re-duzir as estatísticas, sem assegurar a efetivação do direito à Educa-ção Básica ou, nas palavras de Canário (2003, p.200):

(...) as políticas e as práticas de educação e formação que são propostas procuram induzir processos de conformidade social relativamente a um presente que é o resultado de um fatalismo e a um futuro que se antecipa como inexorável. Esta perspectiva da educação presente na “aprendizagem ao longo da vida”, está nos antípodas de uma concepção de educação permanente, en-carada como o trabalho que cada um realiza sobre si próprio (...).

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Nessa ótica, o pensamento educativo, que dá suporte à “apren-dizagem ao longo da vida”, desproblematiza o futuro, rompe com a natureza humana, social e histórica de constituição do homem. Ou, nas palavras de Freire, despotencializa o homem quando esse não compreende que “o futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo”. (2000, p.56)

PROGRAMA BRASIL ALFABETIZADO

O programa Brasil Alfabetizado6 foi implantado em 2003, pelo Mi-nistério da Educação, com o intuito de reduzir o analfabetismo no Brasil e alfabetizar cidadãos com 15 anos ou mais que não tiveram oportunidade ou foram excluídos da escola antes de aprender a ler e a escrever. O programa é modelado e financiado pelo governo fede-ral, com execução descentralizada por estados, municípios, institui-ções de Ensino Superior e organizações sociais, responsáveis pelos aspectos didático-pedagógicos, pelas instalações físicas, pela mobi-lização dos alfabetizandos, recrutamento e capacitação dos alfabeti-zadores. A estrutura do Brasil Alfabetizado não é original e remete a outros programas e campanhas desenvolvidos no país ao longo da segunda metade do século XX.

Depois de seu lançamento, em 2003, e após intensa mobilização dos fóruns de EJA e da sociedade civil organizada, o desenho do programa sofreu algumas modificações: ampliação do período de alfabetização de seis para oito meses, previsão de repasses financei-ros para merenda, transporte, aquisição de livros didáticos e óculos; priorização e redirecionamento dos recursos para as redes públi-cas de ensino, avaliação sistemática e contínua, desenvolvimento de subprogramas para atender às especificidades de grupos como quilombolas e pescadores, entre outras medidas.

O Brasil Alfabetizado, até 2008, já havia cadastrado mais da me-tade dos analfabetos do país, contudo, pesquisas vêm apontando

6 Vinculado à Diretoria de Educação de Jovens e Adultos (DEJA), na Secretaria de Educa-ção Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) que coordena, induz e apoia ações de alfabetização em articulação com políticas de assistência social, formação para o tra-balho e geração de renda.

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impacto tímido do programa na redução dos índices de analfabe-tismo. Os resultados expressos na síntese dos indicadores sociais (BRASIL, 2009), por exemplo, demonstram que houve uma redução de 0,1 percentual, ou seja, de 14,2 milhões passamos a 14,1 milhões de pessoas, com mais de 15 anos, que não sabem ler e escrever. Se-gundo os pesquisadores (DI PIERRO et al, 2008), os fatores que in-terferem nessa baixa redução são vários:

I. Dificuldades, como a distância entre o cadastro inicial de fre-quência efetiva dos educandos às salas de aula, as precárias con-dições de vida e trabalho e diversas formas de exclusão social. Há outros aspectos, como a demora entre o cadastramento e a liberação dos recursos, que acaba por desmobilizar os alfabe-tizandos, as causas extra escolares (mudanças, enfermidades e exigências de trabalho) que levam a evasão e a frequência inter-mitente, além do cadastro superestimado, de pessoas que não se inserem no grupo de alfabetizandos, visando à formação de turmas com os quantitativos exigidos para o recebimento do au-xílio financeiro pelo governo federal.

II. Outra causa, apontada pelos pesquisadores, é a de que um percentual expressivo dos inscritos não seja de analfabetos ab-solutos; outra, de que as aprendizagens esperadas não se reali-zem devido à precariedade das condições de ensino e à insufi-ciente formação dos alfabetizadores mobilizados pelo Programa.

As avaliações do programa têm confirmado essas hipóteses, de acordo com Di Pierro et al (2008). Ou seja, grande parte daqueles que procuram o Brasil Alfabetizado busca aperfeiçoar conheci-mentos de leitura, escrita e cálculos adquiridos em escolarização anterior muito breve ou de má qualidade. A aplicação de testes de aprendizagem vem demonstrando que os que não sabem ler e es-crever adquirem noções das primeiras letras, mas não alcançam as habilidades requeridas de uma pessoa alfabetizada, para os que já possuem conhecimentos rudimentares de leitura, escrita e matemá-tica, também não são evidenciadas aprendizagens significativas.

Estudos preliminares reiteram que as condições desfavoráveis de ensino e aprendizagem (ausência de óculos, merenda, transporte

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e iluminação), a formação pedagógica dos alfabetizadores e o perí-odo de tempo para os cursos são insuficientes para proporcionar uma alfabetização de qualidade.

Di Pierro et al (2008) apontam que as lições apreendidas dessa experiência são fáceis de extrair e difíceis de realizar, pois indicam a necessidade de atuar em cinco direções simultaneamente: 1) ar-ticular a alfabetização com outras políticas sociais (saúde, assistên-cias, trabalho e renda) que favoreçam a mobilização e a permanên-cia dos educandos no processo; 2) aperfeiçoar a gestão, agilizando processos e controles; 3) criar condições de ensino e aprendizagem apropriadas, incluindo assistência aos estudantes (merendas, ócu-los e transporte); 4) desenvolvimento profissional dos educadores; 5) continuidade do processo de alfabetização, assegurando oportu-nidades para ampliar e consolidar as habilidades de leitura, escrita.

Apresentamos no próximo tópico o exemplo de Dona Luzia que ratifica algumas dessas dificuldades apontadas pelos estudos acima.

DISCUTINDO UM EXEMPLO: DA ALFABETIZAÇÃO À “APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA”?

Dona Luzia7 participou do Brasil Alfabetizado, em 2006, realizado em parceria com o governo do Estado do Rio Grande do Norte e uma fundação bancária de grande porte no país, por meio do Programa Lendo e Aprendendo. Essa ação visava à alfabetização de jovens e adultos, no município de Angicos, no período de cinco a oito meses de curso. O desenvolvimento da proposta pedagógica contava, além dos recursos financeiros federais e estaduais, com a implementação, o acompanhamento e a formação do alfabetizador, realizadas pela fundação. Dona Luzia produz um pequeno texto em que conta como foi alfabetizada no “Método Paulo Freire de Alfabetização” (BEISIE-GEL, 1974, p.169), em meados 1962, com 25 anos de idade, confor-me a seguir:

7 Sujeito do Material de pesquisa recolhido por Garcia (2006), que integra o Projeto de tese em andamento no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Fede-ral Fluminense, cedido para estudos.

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“Na época de Paulo Freire era muito bom eu gostei porque apren-di a ler e escrever. A primeira palavra que a gente aprendeu foi ti-jolo me lembro como se fosse hoje nunca vou me esquecer disso. Luzia de Andrade.Angicos, 30/06/06”.

A produção escrita dela corrobora aspectos apontados nos es-tudos de Di Pierro et alli (2008). O primeiro refere-se à inserção de pessoas nas turmas de alfabetizandos que não se inserem nesse ní-vel de escolaridade, pois, como é visível em sua escrita, encontra-se alfabetizada visto que já dominou o sistema alfabético, necessitan-do dar continuidade à escolaridade no Ensino Fundamental e Médio. Nesse caso, Dona Luzia está, apenas, engrossando o quantitativo de alunos para a formação de turmas e, consequentemente, o atendi-mento às exigências para o recebimento dos recursos financeiros.

Um segundo aspecto emerge dessa leitura e vai ao encontro das observações elencadas por Di Pierro et al (2008), Dona Luzia inte-gra também o grupo daqueles que tiveram uma escolarização mui-to breve e retornam8, reiteradamente, às turmas de alfabetização como forma de aperfeiçoar conhecimentos de leitura, escrita e cál-culo. A existência e execução de programas, nas diferentes formas que assumem e por diversos atores, configuram-se como as únicas oportunidades para o exercício da leitura, da escrita e do cálculo na perspectiva escolar para essas pessoas.

Um terceiro aspecto também pulula dessa história e tem sido lu-ta dos movimentos sociais em EJA, a necessidade de políticas públi-cas contínuas e sistemáticas que tratem a alfabetização como direito pleno de milhares de cidadãos à educação, como ação fundamental e primeira, mas não a única. As condições desfavoráveis de ensino e aprendizagem aliadas às desigualdades sociais daqueles que são focos dessas ações, a ausência de formação pedagógica dos educa-dores, o aligeiramento dos programas e a ausência de continuidade dos estudos para o ensino e a aprendizagem de um processo tão complexo, ratificam o modelo de campanha de alfabetização e em-perram a efetivação de uma educação de qualidade social.

8 Dados da pesquisa de Garcia têm evidenciado a presença de outras pessoas em situa-ção semelhante à de Dona Luzia, que ficam intercalando de programa em programa de alfabetização.

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Esse aspecto nos encaminha para o quarto, em que somos obriga-dos a perguntar-nos: da alfabetização à “aprendizagem ao longo da vida”? Se tomarmos a análise de Canário (2003), reconhecemos que o conceito de “aprendizagem ao longo da vida”, na perspectiva da coesão social, tem como preocupação o combate e a prevenção de formas de conflitos sociais que poderiam abalar a ordem econômica. Nesse sen-tido, a ação é adaptativa e paliativa, como meio de moderar os efeitos mais extremos, de modo a garantir a coesão social, como por exemplo, o desenvolvimento de programas de alfabetização com cunho assis-tencialista que procuram minorar a questão, sem solucioná-la.

Há quase cinquenta anos, Dona Luzia vem aprendendo, se alfabe-tizando “ao longo da vida”. Pelo tempo, ela já teria cursado a Educação Básica, no mínimo, quatro vezes, se tivesse tido oportunidades efetivas de acesso e permanência na escola. Reitera-se a negação de um direito, consecutivamente, negado. Ratifica-se a existência da educação dua-lista e como privilégio: uma escola diferente em função da classe, para poucos em quantidade e qualidade. A história de Dona Luzia, hoje com 72 anos, corrobora o que Rummert (2007) aponta: oferecimento de uma educação para aqueles cujos papéis a serem desempenhados na produção não requerem maiores investimentos do Estado.

Longe de querer realizar uma denúncia, pretendemos reafirmar a necessidade de políticas públicas para além do acesso de jovens e adultos à alfabetização, que assegurem, efetivamente, o direi-to à educação como direito humano. Entretanto, compreendemos que essa tarefa deve ser assumida, também, pelos jovens e adultos trabalhadores que, nas palavras de Gramsci (apud NOSELLA, 1992, p.17), devem impor a educação que desejam.

REFLEXÕES FINAIS

A lição sabemos de cor, só nos resta aprender.(Sol de Primavera, Beto Guedes e Ronaldo Bastos, 1980)

A epígrafe ajuda-nos a pontuar nossas reflexões finais. O caminho trilhado denota que já sabemos a lição, mas, então, por que ainda não aprendemos? O objetivo de discutir a alfabetização com base

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no programa Brasil Alfabetizado e no conceito de “aprendizagem ao longo da vida” foi, contudo, atravessado por muitas questões que retomamos agora.

A primeira relaciona-se ao desenvolvimento de programas de alfabetização de jovens e adultos que são breves e pontuais não logrando desenvolver a aprendizagem da linguagem escrita. Estes têm pouco impacto individual e social, o que denota a necessidade de elaboração de políticas públicas em EJA que abarquem a conti-nuidade dos estudos no Ensino Fundamental e Médio, mas também de outros direitos para além da educação. Isso implica, como no ca-so de Dona Luzia, encaminhar à rede pública de ensino, aqueles que já se encontram alfabetizados para darem continuidade à escolari-dade básica.

A segunda questão refere-se à necessidade de conhecer bem a realidade na qual se vai intervir. Mais do que diagnosticar que sa-beres os jovens e adultos trazem para o processo de alfabetização, é preciso saber quem e quantos são, que necessidades de escolari-zação e de outras formações culturais demandam, que condições socioeconômicas e motivações de aprendizagem apresentam. Ou seja, implica mais do que aplicar testes de aprendizagem, impli-ca combinar diferentes fontes e meios de informação, de modo a abarcar outros aspectos que um instrumento fechado não permite acessar.

Uma terceira questão consiste na elaboração de políticas públi-cas que atentem à pluralidade das necessidades de aprendizagem peculiares aos diferentes grupos de jovens e adultos, considerando a diversidade sociocultural (vivência rural ou urbana, situação fami-liar, renda, gênero, geração, etnia, ocupação, opção religiosa etc.) e de condições de estudos dos alfabetizandos.

Cabe, também, ajustar as propostas pedagógicas às peculiarida-des dos contextos locais e dos subgrupos sociais, isto é, à aprendi-zagem da leitura, da escrita e dos conhecimentos matemáticos deve ser agregada a outros conhecimentos, como as expressões singula-res dos contextos de produção.

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SOBRE A AUTORA

Marta Lima de Souza é Mestre em Educação pela UFF, onde conclui o Doutorado em Educação. Atua como docente do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro do Grupo de Pesquisa Linguagem, Cultura e Práticas Educativas e do Laboratório de Investigação, Ensino e Extensão em Educação de Jovens e Adultos (LIEJA) onde investiga sobre linguagem escrita, alfabetização e EJA.

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REFLETINDO SOBRE NOSSA DIFICULDADE EM TRANSFORMAR OS ALUNOS JOVENS E ADULTOS EM “SUJEITOS DA ESCRITA”

Não. Eu sei. Saber ler assim, assim, eu sei. É legal, muito legal. Eu aprendi. Tá certo! Mas o que eu acho bacana mesmo, uma coisa

mais incrível é a pessoa ser capaz de botar um livro dentro da cabeça. Isso é uma coisa que eu nem sei explicar de tão importante

que eu acho. Eu acho também que a coisa mais incrível, depois disso, é escrever um livro, tirar da cabeça. Sabe como? Nossa! Isso

também eu nunca vou ser capaz... Será? Hein, Socorro? (Maria Solange Gomes - alfabetizanda em construção da sua

história de leitora e escritora)

Há muito se fala na dificuldade das pessoas jovens e adultas que buscam a escola tardiamente de a enfrentarem para tornarem-se sujeitos da escrita. Apesar disso, não existem indícios de que essa constatação tenha trazido clareza à questão. A expressão “chaga nacional”, cunhada pelo médico sanitarista Miguel Couto, em 1927, tem consequências até os dias de hoje, além de se refletir no imagi-nário do adulto analfabeto, marcando negativamente sua autoesti-ma. O analfabetismo é caracterizado como vergonha e incapacidade, fazendo com que os adultos não alfabetizados assumam para si a culpa e a consequência de seu “não saber ler”, sentindo-se inca-pazes, doentes e inferiores em relação aos outros e ao país. Como consequência, a ideia de “erradicação” toma conta das discussões. É nessa época que o médico e sanitarista Miguel Couto afirma que o adulto analfabeto não raciocina, não entende e não cria (Apud PAI-VA, 1975:99). É ainda Miguel Couto que, sobre o analfabetismo, diz tratar-se de uma calamidade pública, que corrói a célula, fibra por fibra (Apud FREIRE, 1985, p. 218-219). O analfabetismo, ou melhor, o analfabeto, convenientemente trabalhado para que se sentisse as-

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Maria do Socorro Martins Calháu

sim, viu-se transformado na grande causa dos males nacionais e na grande vergonha nacional (FERRARO, 2003).

Ao longo da história do nosso país, o analfabetismo foi compa-rado, ou pior, associado a todas as mazelas pelas quais passávamos, como a desordem política e a falta de patriotismo, ganhando final-mente um estatuto de “doença”, influenciado que foi pela forte con-cepção higienista que assolava o país no início do sec. XX.

O foco da discussão sobre o pouco sucesso desses alunos na apropriação da língua escrita, necessita sair do âmbito de métodos e metodologias e atingir uma dimensão mais objetiva, que seja ca-paz de desenvolver um olhar mais atento para as questões que habi-tam um problema tão complexo.

Parece urgente a necessidade de promover uma discussão que seja mais abrangente e que dê conta de produzir uma forma diferen-ciada de tratar a questão da dificuldade e, através dela, sermos ca-pazes de produzir alternativas no sentido de superar as dificuldades encontradas no processo de alfabetização das pessoas que têm sido consideradas pela escola e pela sociedade, desde o advento da Ciência Moderna, como sujeitos “estranhos” ao universo escolar. É igualmen-te necessário lançar argumentos que nos permitam pensar o conceito de letramento de outra forma, algo que leve em conta a teoria da gra-mática e seu sujeito cognoscente, além disso, problematizar as defini-ções teórico-metodológica de letramento que não levam em conta as questões culturais que se encontram fora do âmbito de uma cultura acadêmica, que não considera outras lógicas de pensamento.

É grande o número de pessoas, jovens e adultas, que não conse-guiram se alfabetizar na chamada idade “adequada”. As discussões acerca do direito e do acesso ganham cada vez mais espaço tanto nas diversas instâncias oficiais quanto no âmbito dos movimentos sociais, igualmente importantes.

Na prática, a oferta pelas escolas de EJA cresceu, embora não sai-bamos lidar bem com as questões do sucesso e da permanência des-ses sujeitos sociais em nossas salas de aula. Senna (2007a) afirma que “as políticas e as práticas de educação inclusiva pecaram por se concentrarem sobre as pessoas, deixando de intervir nos conceitos que estas viriam a representar quando incluídas nos espaços esco-

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lares” (SENNA, 2007a, p.165-166). Sem dúvida, os sujeitos foram autorizados a participar dos espaços escolares, mas as instituições e seus agentes não produziram mecanismos que lhes assegurassem assumir uma identidade realmente legítima, para longe do precon-ceito histórico instituído há mais de quinhentos anos.

Para compreender melhor a questão do pouco sucesso desses alunos na apropriação da leitura e da escrita, é necessário realizar um percurso que passa, não somente pelas marcas deixadas pela história, mas que se aprofunda no perfil dos sujeitos cognoscentes da EJA, relembra o conceito clássico de Letramento, revisita o pro-cesso de “gramatização” das línguas, rediscute as metodologias de alfabetização e chama a atenção para uma perspectiva infantilizante das práticas pedagógicas.

O analfabetismo em nosso país, segundo Freire (1989), foi “inau-gurado” na época de sua “descoberta”, através da criação de escolas que tencionavam tornar a população dócil e submissa, atendendo à política colonizadora portuguesa. Segundo essa autora, a inter-dição do conhecimento às mulheres, aos índios e aos negros, cuja presença física era proibida por diferentes motivos, em ambientes que lhes facilitassem a aquisição do saber (FREIRE, 1989), teve um papel decisivo nessa produção, que ela denomina de “política da in-terdição do corpo”. De acordo com essa pesquisadora, a produção do analfabetismo inaugura-se, principalmente, pela domesticação através das interdições, particularmente as do corpo. O fator mais emblemático desse processo foi estigmatizar o negro e o índio, não nascidos na Europa, e valorizar, tão somente, Deus, o Céu, o sacer-dote, o branco, o cristão, o casado pelas leis católicas, a monogamia, o conquistador, as línguas latina e portuguesa, a racionalidade. O mais espantoso de tudo foi constatar que eles não excluíram apenas a presença física e política dos negros e dos índios da sociedade em formação, mas, segundo Freire (1989, p. 17),

(...) deixaram sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos”. (...) enfim aqueles que marcados pelas descrimina-ções sociais, regionais, setoriais e sexuais do elitismo brasileiro foram [também] marcados pelo analfabetismo.

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O entendimento de que o adulto sem alfabetização era culpado pelo seu analfabetismo durou até o final da década de cinquenta, quando o II Congresso Nacional de Educação de Adultos que teve, entre outros educadores importantes, Paulo Freire, como um de seus relatores, chamou a atenção, pela primeira vez, para o analfabetismo como um problema socioeconômico, motivado pela desigualdade e pela injustiça social, que necessitava ser enfrentado definitivamente (FÁVERO, 2003). Ao longo da década de sessenta, a discussão sobre injustiça social e analfabetismo ampliou-se e, com elas, muitas ações alfabetizadoras foram desenvolvidas no sentido de superar os altos níveis de analfabetismo e acabar com um estigma perverso, respon-sável pela baixa autoestima de tantas pessoas jovens se adultas.

Com o golpe militar de 1964, todas as ações foram desmontadas, seus responsáveis, presos, torturados e exilados. Como consequên-cia do golpe, a ideia de que o adulto analfabeto era uma vergonha, uma doença, voltou a ganhar força nos discursos oficiais, vigorando no imaginário da sociedade até os dias de hoje.

Outro fator importante para que possamos compreender o baixo desempenho dos jovens e dos adultos que buscam a alfabetização tardiamente é a forma como o conceito de letramento tem sido di-fundido, uma vez que considera as práticas de escrita e seus usos so-ciais legitimados pela cultura acadêmica como os únicos aceitáveis (GALVÃO, 2009; BATISTA, 2009; SENNA, 2007a; 2008, 2009). Nessa perspectiva, o sujeito cognoscente do letramento “legítimo” é um sujeito cartesiano, idealizado, que nada tem a ver com os sujeitos jovens e adultos que buscam a escola tardiamente, oriundos de uma cultura oral e que, de uma maneira geral, não cabem numa modali-dade científica de letramento por uma questão puramente cultural.

É imenso o custo da produção pelo aluno de EJA de uma escrita que satisfaça aos professores e demais falantes da língua culta. Não fosse o fato de possuir uma fala que, por óbvias razões culturais, não obedece aos preceitos da gramática normativa, esse tipo de aluno também revela-se um produtor de textos difíceis de serem aceitos pela escola e seus agentes. Dessa forma, mesmo sabendo que a fa-la e a escrita acontecem de forma distinta, a tendência, enquanto professores, é corrigir a fala pelo modelo acadêmico de escrita e

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penalizar a oralidade pelos mesmos critérios. Assim, não admiti-mos a possibilidade de existirem variações de uma mesma palavra e, tampouco, assumimos que há diferenças regionais numa mesma língua, principalmente numa sociedade complexa como a brasileira. Pior, não autorizamos nossos alunos, que se encontram em proces-so de alfabetização, a pronunciarem palavras que existem em um contexto eminentemente oral. Impedimos, ainda que de forma vela-da, que mantenham essas palavras em seu vocabulário, sob pena de serem excluídos da vida acadêmica. Corrigindo a fala, produzimos um sujeito da escrita completamente apartado de seu universo vo-cabular, de sua identidade, de sua “confiança” no que faz. A escola penaliza o aluno que não encontra significado numa palavra que seu pensamento rejeita. Essa rejeição pela palavra “correta” acontece independentemente de sua vontade, porque ela não faz parte de seu universo interno de significações e, tampouco, diz respeito a uma

“memória afetiva auditiva”1 (CALHÁU, 2008). A este respeito, Senna (2003, p. 2) pontua:

(...) a tradição acadêmica não cuidou de isolar fatores que pudes-sem particularizar a {fala} e a {escrita} como objetos distintos entre si, de modo que se passou a usar do lektón indistintamente para um tipo e outro de formas de expressão. Assim é, portanto, que nos primeiros momentos em que surgiram preocupações sociais com a disseminação da escrita, a alfabetização surge co-mo prática estritamente associada à descoberta de uma pseudo relação entre a fala e o código alfabético.

A língua oficial foi imposta e os estados foram identificados pela língua que falavam. Cabia à escola o papel de moldar o cidadão que esse ideal de sociedade exigia. Ao cidadão, cabia o papel de tornar-se alguém condizente com aquela perspectiva de sociedade racional (SENNA, 2002).

O processo de gramatização das línguas foi forjado como algo totalmente exterior ao sujeito da fala. Ao dominar outros povos, os romanos formaram seu império e receberam essa tradição dos gre-gos. Os gregos valorizavam muito mais o pensar do que o escrever.

1 Estou chamando de “memória afetiva auditiva” algo que faz parte de um repertório familiar, amoroso e afetivo. Essa categoria tomo emprestada de Maturana e Varela (2001) in: A Árvore do Conhecimento. São Paulo: Palas Athena, 2001.

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Assim, as gramáticas se derivaram de uma forma de pensar típica dos gregos, única, ímpar, coberta de idiossincrasias. Muitas deno-minações atribuídas pelos gregos e consagradas na tradução para o latim chegaram até nossos dias e permanecem entre nós em gra-máticas e em nossas aulas de ler e escrever, em nosso caso a Língua Portuguesa, até os dias de hoje . Uma língua escrita e organizada segundo os critérios das ciências da linguagem, com suas normas arbitradas por um grupo seleto, tendo um alfabeto fonético com possibilidades limitadas de produção de sons, que não reconhece todas as variações produzidas pela boca humana, para os sujeitos oriundos de uma cultura eminentemente oral, que não frequenta-ram a escola na chamada “idade apropriada”, funciona como se fosse uma língua estrangeira, ainda que seja a língua falada oficialmente em seu país (CALHÁU, 2008).

O advento da escrita, nessa perspectiva, subtrai de todos aqueles que não são portadores de uma linguagem de poder o direito de conviver com a sua palavra e essa postura autoritária impõe cus-tos e deixa marcas no processo de alfabetização desses sujeitos. A universalização da língua oficial se dá, portanto, no nível gramati-cal, e essa linguagem foi totalmente imposta aos sujeitos que não partilhavam culturalmente esses significados (SENNA, 2002). Este pesquisador ilustra essa discussão, dizendo que:

(...) a normatização da língua se deu no nível gramatical por questões políticas, a língua oficial foi imposta e os estados foram identificados pela língua que falavam, cabia à escola o papel de moldar o cidadão, que esse ideal de sociedade exigia. Ao cidadão, cabia o papel de tornar-se alguém condizente com aquela pers-pectiva de sociedade racional (SENNA, 2002, p.3).

Nesse sentido, vale lembrar que a sociedade brasileira foi for-mada de um jeito muito peculiar e, em consequência, a cultura oral predomina entre seus membros, desde a sua formação até os dias de hoje. Apesar disso, o discurso da ciência e da crítica ao diferente não realiza essa reflexão. Foram as populações orais que deram ori-gem ao povo brasileiro e sua formação totalmente singular. Mesmo os europeus que aqui chegaram por ocasião da colonização nada tinham de letrados. O antropólogo Darcy Ribeiro (1995) faz uma in-

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teressante análise sobre a formação da sociedade brasileira, um es-tudo minucioso sobre a origem do povo. Segundo o autor, sua obra é uma explicação da origem do povo brasileiro em nossos próprios termos, longe de uma visão eurocêntrica. Chegando aqui e encon-trando uma sociedade já formada e etnicamente integrada, esses estrangeiros tiveram seus destinos afetados, os que chegaram se transformaram mais do que os que aqui viviam. Assim, o povo brasi-leiro acabou por possuir uma configuração histórico-cultural única e diferente de todas as outras culturas do mundo (RIBEIRO, 1995).

A superposição de culturas tomou conta da sociedade brasileira e deixou marcas profundas, principalmente nos grupos que ficaram apartados da cultura científica. Com a idealização de um tipo de sa-ber observável e comprovável, observa Senna (2000), que se tornou possível graças às teorias cartesianas, a língua torna-se um fator extremamente dificultador e excludente na construção de conhe-cimentos comuns, “deixando pessoas que não constroem conheci-mentos a partir da linguagem empregada na experiência de ensino com um sentimento de marginalidade cultural – aquele que real-mente causa a segregação dos grupos sociais minoritários” (SENNA, 2000, p. 172).

Trata-se, então, de refletirmos sobre a linguagem, sua natureza e seus modos de funcionamento, suas eventuais finalidades, sua rela-ção com a cultura e as implicações complexas que ela mantém com um determinado tipo de ideologia. Não se pode desconhecer sua relação com a exclusão social e o “baixo desempenho” dos jovens e adultos que buscam a alfabetização e a escolarização fundamental. Sobre esse assunto, o linguista Maurizzio Gnerre (1991) afirma, que o mais importante a ser compreendido na linguagem, seja ela oral ou escrita, é o fato de ela instrumentar o poder, uma vez que a di-ferença reside no fato de essa linguagem ser porta voz das regras e determinações arbitradas pela cultura científica. O autor afirma que as pessoas falam para serem ouvidas, portanto, é através da pala-vra que as pessoas fundam sua autoridade e exercem influência na sociedade em que vivem. São as relações sociais entre o falante e o ouvinte que regulam as ações verbais do ser humano. Consideran-do-se essas regras, é preciso ficar claro o quando se pode falar, que

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tipo de variedade linguística usar e quais os conteúdos referenciais consentidos em relação ao contexto linguístico e extralinguístico em que o ato da fala é produzido (GNERRE, 1991).

Em relação ao sentimento de exclusão dos que não dominam um determinado tipo de código, Gnerre (1991) afirma que “a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (GNERRE, 1991, p. 22).

Não fosse só isso, há ainda uma questão importante a ser tratada nesse cenário: a infantilização que se encontra com frequência nas salas de aula de EJA, seja no material didático produzido por edu-cadores e editoras, seja na linguagem utilizada pelos professores e demais agentes escolares. Há algo mais no fenômeno da infantiliza-ção do que o desaviso ou o desejo de ser afetuoso, pois aí ocorre um fenômeno muito mais preocupante e que talvez os professores nem tenham se dado conta, que é a disseminação da minoridade, uma espécie de mecanismo de desempoderamento.

Kohan (2000, 2004) e Leal (2004) discutem as relações entre a Filosofia e a infância, tanto no sentido de se pensar o ensino da Fi-losofia para crianças, quanto no que diz respeito às concepções de infância presentes na escola, fazendo uma importante advertência quanto a este fenômeno. Na opinião desses autores, a concepção de aluno, seja ele de que idade for, está impregnada por uma ideia de infância, vinculada à noção de carência, falta, incompletude. Seria uma ideia de infância que pensa os processos educativos como algo que vai funcionar como um exercício de poder dos adultos sobre as crianças, no sentido de as tornarem submissas às regras de um mundo adultocêntrico (LEAL, 2004). Nessa perspectiva, tal concep-ção seria nociva até mesmo na educação das crianças, por conter uma compreensão do conceito de infância bastante misturado com o que seja ser criança, uma vez que infância, na opinião de Watorfsky (Apud KOHAN, 2000), não é nenhuma classe natural ou universal, mas um construto-histórico cultural e crianças são seres humanos ativos na própria constituição da “infância”, que sofrem influências das instituições sociais. Ainda em relação à infância, Leal (2004) chama a atenção para o fato de que as diversas concepções que têm circulado apontam para uma ideia inicial de existência. A esse res-

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peito, a autora afirma que a infância é concebida como “o princípio da vida humana, seu início, uma etapa a ser seguida por outras, a ela posteriores, dela derivadas” (LEAL, 2004:19). São muitas as abor-dagens interpretativas para tentar explicar o termo infância, mas na opinião de Leal (2004), nenhuma delas parece opor-se à dimensão principiadora que a infância impõe. Refletindo sobre as categorias de infância e vida adulta, Kohan (2000, p. 62) nos diz que:

(...) não há crianças por natureza. Tampouco há adultos por na-tureza. Esta categorização social está acompanhada de práticas, saberes e valores que constituem identidades, enquadram rela-ções interpessoais e delimitam modos de vida.

Ainda uma questão complexa, quando falamos de alfabetização de adultos e sucesso, é a escolha do método2 e da metodologia de en-sino da leitura e da escrita. Falar em concepção teórica torna-se ta-refa bastante difícil por conta de alguns motivos bastante significati-vos. Um deles é que nunca se produziu um método de alfabetização para os adultos levando-se em conta suas especificidades na quali-dade de sujeitos sociais inseridos na sociedade de forma bastante diferenciada das crianças. O que se vê, ao longo de muitos anos, é o aproveitamento dos métodos e técnicas utilizadas para as crianças, o que significa dizer, quando muito, que eles ganham um tratamento adulto no que diz respeito à linguagem utilizada e ao contexto onde o método escolhido é inserido. Existe uma discrepância entre o tra-tamento metodológico em relação ao trato específico da aquisição da leitura e da escrita, enquanto uma tecnologia que permite aos sujeitos ler e escrever e o trato político das questões vividas pelos adultos no âmbito das cartilhas e demais materiais didáticos, prin-cipalmente no que se refere à questão do direito (CALHÁU, 2008).

2 Estou usando a palavra método em sua versão universal que afirma ser ele o caminho para se chegar a um fim ou pelo qual se atinge um objetivo. É o programa que regula previamente uma série de operações que se devem realizar, apontando erros evitáveis, em vista de um resultado determinado. (FERREIRA, 1986; Aurélio século XXI) . Estou di-ferenciando método de metodologia, entendendo que o primeiro diz respeito ao caminho a ser tomado referido à questão da alfabetização stricto sensu, enquanto que a segunda diz respeito a todas as ações previstas no contexto da alfabetização, tanto no âmbito do alfabeto (método), quanto no que se refere a todos os eventos ocorridos numa sala de aula de alfabetização, incluindo o método.

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Não se pode esquecer que qualquer proposta teórico-metodoló-gica, principalmente na área da educação, implica uma concepção de homem, de sociedade e de educação. Além disso, se faz neces-sário lembrar que essas formulações são sempre referenciadas por ciências, tais como: Psicologia, Sociologia, Filosofia, Biologia, Antro-pologia, entre outras.

Além disso, a Psicogênese da Língua Escrita, de Ferreiro e Tebe-rosky (1999) que se constituiu em uma verdadeira revolução con-ceitual para o campo da alfabetização, não resolveu os impasses desse campo. Com o auxílio das pesquisas de Senna (1995, 2002, 2004, 2005, 2007a, 2007b), é possível compreender o porquê de não conseguirmos obter sucesso com os nossos alunos em proces-so de alfabetização, mesmo após nos tornarmos construtivistas e adotarmos a Psicogênese da Língua Escrita como orientação a ser seguida no processo da Alfabetização, tal como nos aconselham os Parâmetros Curriculares Nacionais. Ferreiro e Teberosky (1999) lançam mão de aportes teóricos de Jean Piaget, Noam Chomsky e Lev Vygotsky o que, em princípio, parece uma associação bastante interessante, até porque Ferreiro e Teberosky (1999) assumem co-rajosamente um arranjo teórico de natureza diversificada, diferente da tradição acadêmica que preferencialmente postula referenciais teóricos filiados a uma única corrente de pensamento. A questão crucial dessa formulação teórica é que ela pressupõe, como apren-dente, um sujeito idealizado, que a priori produziria um certo mo-delo também ideal ou padronizado de gramática, concebido como um padrão gramatical hegemônico diante um complexo de varian-tes raramente exploradas no processo descritivo, seja, ainda, pela preconcepção de uma estrutura conceitual de gramática, associada a um só modelo de processamento frasal. Trata-se de uma estrutura determinada na tradição gramatical, sob influência da filosofia aris-totélica (SENNA, 1995). Ao levarmos em conta que Chomsky (1972) trabalha com uma concepção única de “estrutura profunda” empre-gada correntemente às teorias gramaticais no século passado, à qual se associam, simultaneamente, o conceito de oração e toda a lógica cartesiana de organização sintática, assusta-nos a possibilidade de estar alfabetizando com uma metodologia que não leva em conta o

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sujeito aprendente das salas de aulas brasileiras. Assim, não é de admirar que Solange, em processo de alfabetização, fique estagnada num determinado modelo de construção da escrita que não avança para uma “hipótese ortográfica”. Poderia se dizer que muitos desses alunos, não chegam a derivar a forma escrita que é denominada por Ferreiro e Teberosky (1999) como “hipótese alfabética”.

O sujeito da alfabetização que a Teoria da Psicogênese descreve tem muito pouco a ver com o sujeito da alfabetização das nossas es-colas de EJA. E é por isso que continuamos sentindo a frustração de não conseguir tornar os alunos em sujeitos leitores e escritores com-petentes, conforme nós desejamos e eles têm o direito de ser. Olhar a Psicogênese da Língua Escrita e poder separar o que nos cabe do que nos sobra parece uma possibilidade bastante interessante para começar a pensar uma forma de realizar este trabalho com olhos, ouvidos e bocas brasileiros. Desta forma, continuar caminhando no sentido de poder investigar, na qualidade de pesquisadores, o pro-cesso de alfabetização, sob uma outra perspectiva, pensando uma forma de encaminhar a tarefa de ensinar a ler por outros caminhos, que não invalidem o acumulado e nem rejeitem a possibilidade de mudança. É bom que se diga e é extremamente animador lembrar que, na passagem para o século XXI, surgem no horizonte estudos que visam superar a concepção do “sujeito lógico-moderno”, am-pliando-se o conceito de “atos de fala” para o de “atos comunicativos” (HABERMAS, 1990), criando uma cisão entre a análise do discurso e a teoria da gramática. Além disso, Senna (2007b) nos lembra que com a Sociolinguística de Labov3, fala e escrita podem, finalmente, ser analisadas como fenômenos materialmente distintos e autôno-mos entre si. E esse fato, desvela a natureza gramatical de estrutu-ras textuais planejadas e organizadas por sujeitos não alinhados à cultura científica, mas à ordem da interação sob condições de comu-nicação específicas da fala, regidas pelo estresse da velocidade e da pluralidade de ações comunicativas (SENNA, 2007b), e aqui, pode-

3 Wiiliam Labov se caracteriza, portanto, por definir uma forma de investigação da lingua-gem pela perspicácia do realismo e por um elevado sentido da realidade. Sobrepondo-se a qualquer paradigma linguístico, ele entende a tarefa sociolinguística como uma opção pelo realismo empírico, frente às ortodoxias. Isto é: a fidelidade à experiência mesma da língua, a sua circulação e atuação em contextos de linguagem, plurais, complexos e, às vezes, – aparentemente – não sistemáticos (LABOV, 1983).

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mos encontrar uma luz para enfrentarmos, sem medo, a problemá-tica do pouco sucesso dos nossos alunos da EJA. Poder incorporar o fator intencionalidade aos estudos gramaticais, acredita Senna (1995, 2007a, 2007b), incorporaria à teoria da linguística aspectos cujo controle não mais se circunscreveriam à estrutura interna dos sistemas regidos por regras gramaticais, autorizando, finalmente,

“Solanges” e tantos outros, a transitarem de outra forma pelo mundo da escrita, inaugurando um tempo novo de fazeres pedagógicos.

Uma questão que sempre surpreende é observar que a Linguís-tica nunca foi realmente utilizada no sentido de trazer subsídios re-levantes para os impasses metodológicos que existem nessa área. Moura (1999) afirma que, no campo da formulação teórica da al-fabetização de jovens e adultos, existe uma zona de conflito entre o pedagógico, o político e o linguístico, que necessita ser superado. Este conflito precisa ser resolvido de forma que, ao buscarmos um embasamento na linguística – como ciência que aborda os modos de funcionamento dos sistemas de escrita, o estudo dos confrontos entre o sistema fonológico da língua e seu sistema ortográfico – bem como o apoio da sociolinguística e da psicolinguística, adquiramos as condições favoráveis à manutenção da conciliação entre os três campos: a Linguística, a Pedagogia e a Política (MOURA, 1999).

A carência de pesquisas nessa área resulta, na maioria das vezes, em práticas inconsistentes e os educadores que estão nessa prática, costumam adotar, segundo a autora, verdadeiras “saladas” meto-dológicas para darem conta do trabalho. Os campos do pedagógi-co, do político e do linguístico estão intimamente ligados. Apesar desse embricamento, esses campos vivem em constante conflito. A pesquisa de Moura (1999) revela que os educadores e alfabetiza-dores de jovens e adultos, embora já concordem com a inclusão da Linguística nesse campo conceitual, ainda não conseguiram encon-trar uma forma pacífica de convivência entre os três campos teóri-cos, principalmente no que se refere à inclusão da Linguística nesse debate.

Uma possibilidade sedutora, proposta por Senna, (2007) é a de que nos libertássemos, nas práticas pedagógicas, das categorias “su-cesso” e “fracasso”- já que uma pressupõe a outra - seríamos capa-

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zes de pensar uma relação de outra qualidade da escola com esses sujeitos, de nós mesmos com a nossa prática e a nossa vida, da es-cola com a sociedade em geral. Isto traria coerência ao nosso fazer e ao nosso desejo de construir um mundo melhor, na perspectiva do

“junto com” todos os interessados nessa construção e não “para eles”. No entender do autor,

(...) no lugar hoje ainda ocupado pelo conceito de fracasso, de-ve-se instaurar a categoria diferença e nela focar os estudos e as pesquisas. Trata-se de substituir a pesquisa sobre a defi-ciência do outro em comparação com algum ideal de sujeito cognoscente, indagando-se, em lugar disso, sobre o que há de singular no outro que o torna mais um sujeito cognoscente (SENNA, 2007a, p.160).

E é aí que a questão se torna grave, uma vez que a escola apre-senta-se com métodos e metodologias de aquisição da língua escrita baseados em uma forma idealizada de pensamento, que traz um su-jeito idealizado pela cultura científica e definido a priori; recebemos nas escolas alunos jovens e adultos oriundos da cultura oral e, desta forma, providos de um modo de pensar de natureza estritamente narrativa. No limiar desse confronto de modos de pensar, situa-se o professor, perplexo, frente à impossibilidade de fazer com que seus alunos se apropriem dos conteúdos que ele precisa ensinar, em nos-so caso, a leitura e a escrita.

Esse texto tentou contribuir para a reflexão sobre uma ação pe-dagógica que retire as questões cruciais (que encontramos no per-curso de tornar pessoas jovens e adultas em sujeitos da escrita) des-se “limbo” que elas habitam atualmente e, com isso, tentar produzir algo que nos faça refletir sob outro prisma: a questão da aquisição da leitura e da escrita por esses fascinantes sujeitos, “estranhos” ao sistema escolar, que se encontram em nossas salas de aula.

Neste momento final de reflexão, torna-se importante tirar das costas dos professores e das professoras a culpa pelo pouco suces-so dos alunos, pois eles estão fazendo da melhor forma aquilo que sabem e que podem fazer, limitados a uma formação que não tem dado conta de prepará-los adequadamente para realizar tarefa tão complexa.

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SOBRE A AUTORA

Maria do Socorro Martins Calháu é Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. É Professora Adjunta no Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino da Faculdade de Educação da UERJ, membro da Equipe Pedagógica do Núcleo de Educação de Adultos da PUC-Rio, Professora Colaboradora do Departamento de Artes e Design da mesma universidade e professora titular de Língua Portuguesa do Curso Noturno (EJA) do Colégio Santo Inácio. Realiza pesquisas em Alfabetização e Letramento; atua, princi-palmente, na Formação de Alfabetizadores e Professores para a Educação de Jovens e Adultos das redes pública e privada.

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POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS DA CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DE CONHECIMENTO: REFLEXÕES SOBRE A DIDÁTICA PARA A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

AINDA PRECISAMOS FALAR DE DIDÁTICA?

Em nossa trajetória profissional como professores de Didática Geral e Específica1 nos deparamos, a todo o momento, com o questiona-mento dos alunos sobre qual seria o objeto de estudo da Didática, visto que os licenciandos chegam à nossa sala de aula impregnados pelo desejo de que a disciplina Didática será aquela em que eles, fi-nalmente, aprenderão a “dar aulas”.

Expressões como “aquele professor é muito bom, sabe muito, mas não tem Didática, não sabe passar o conteúdo” povoam os momentos iniciais de nossa sala de aula. A expectativa de que o professor de Didática será aquele que lhes dará o caminho para poderem ensinar é o sentimento maior que paira sobre nossas turmas.

Essa expectativa reflete no que, historicamente, se constituiu o “currículo” dos cursos de Formação de Professores no paradigma da Racionalidade Técnica (o conhecido modelo 3+1), através da ideia de que ensinar é algo essencialmente simples, poderíamos dizer até mesmo que ensinar seria espontâneo, bastando para tal um bom co-nhecimento do conteúdo a ser ensinado aliado a alguns métodos e técnicas (muitas vezes utilizados na perspectiva de “prender a aten-ção” dos alunos). Essa concepção do processo ensino-aprendizagem vem esvaziada de uma reflexão consistente sobre o que significa/representa ensinar e aprender. A ideia de que ensinar/aprender es-tá relacionado à simplesmente – e muitas vezes, unicamente – domi-nar o conteúdo, constitui-se num paradigma dos currículos dos cur-

1 Referimo-nos à disciplina Didática de Ciências e Biologia.

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sos de Formação de Professores que, apesar de inúmeros esforços e constituição de Políticas Públicas, ainda continua presente.

Desde a década de oitenta, inúmeros trabalhos (CANDAU, 1983; Candau, 1989, dentre outros) têm explicitado o enorme debate sobre o papel da Didática nos cursos de Formação de Professores, que vão de uma posição de destaque nos currículos à contestação de sua impor-tância e, até mesmo, de sua necessidade. Estudos sobre as pesquisas no campo da Didática (PIMENTA, 2001) apontam para a constatação de que as reflexões atuais sobre a Didática se encontram ancoradas em dois campos específicos – a epistemologia da prática e o conceito de professor-reflexivo – o que nos revela a consolidação do espaço da prática e do papel do professor como campo de estudo da Didática.

Entretanto, pensamos que ainda cabe refletir sobre o papel da Didática na Formação de Professores, baseados na perspectiva de análise do objeto de estudo da Didática: o processo ensino-aprendi-zagem como “prática social concreta” (PIMENTA, 2001, p.79).

Partindo do pressuposto de que o objeto da Didática é o ensi-nar/aprender materializados na prática social e que, para isso, re-quer construções epistemológicas e discussão de aspectos teórico-metodológicos, cabe pensarmos sobre as múltiplas dimensões que a Didática pode assumir no currículo e no cotidiano dos cursos de Formação de Professores.

De uma perspectiva estritamente técnica e descontextualizada – ainda muito presente – a uma dimensão político-social mediada pela realidade, vamos nos deparar com um leque gigantesco de apropriações da Didática.

O embate produzido por essas perspectivas materializam ten-sões que, se não bem trabalhadas na Formação inicial de Professores, acarretarão em lacunas que – em última instância – se disseminarão pelas salas de aulas das escolas básicas do país. Com essa afirmação, reforçamos o papel de centralidade que a Didática deve assumir nos cursos de Formação de Professores, visto que, defendemos a pers-pectiva de que a Didática é o espaço teórico-metodológico no qual se materializarão os processos pedagógicos de formação. Será a Di-dática o “espaço” curricular através do qual as dimensões técnicas (que não podem ser negadas) e as dimensões políticas interagirão construindo uma ”Didática Fundamental” (CANDAU, 1983; 1989).

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Entendemos que essa Didática Fundamental é aquela que, me-diada pela realidade, se constitui na materialização do ensinar/aprender como um processo sócio político com dimensões próprias de construção e que, portanto, não pode ser espontâneo, baseado numa perspectiva da aquisição/transmissão de conteúdos.

Ressaltamos, ainda, que essas discussões estão longe de serem esgotadas, pois apesar do avanço das pesquisas em torno do tema, em nosso cotidiano profissional, deparamo-nos, tanto nas salas de aula das escolas básicas, quanto nas salas de aula das Universidades, com uma perspectiva limitada e limitante da Didática.

A DIDÁTICA, O ENSINAR/APRENDER E A MEDIAÇÃO DA REALIDADE.

Partimos agora de dois pressupostos básicos para nossa reflexão:

I. A centralidade da Didática na Formação de Professores;

II. Objeto da Didática sendo o ensinar/aprender como prática social.

Nesse sentido, assumimos a posição de que nossa discussão ca-minhará na direção de que pensar a Didática é pensar a íntima re-lação entre a Formação Inicial dos Professores e a materialização dessa formação nas salas de aula das escolas brasileiras.

Para tanto, cabe explicitarmos dois pontos cruciais: ao falar-mos de Formação Inicial de Professores estamos entendendo esse espaço/tempo como etapa de um processo de formação contínua (antes e depois da formação oficial nos cursos de Licenciatura) e a discussão sobre as salas de aula brasileiras se pretende solidária na medida que não pretendemos falar sobre os professores da escola básica, como aqueles que trabalham enquanto fazemos discursos sobre eles (GIMENO SACRISTÁN, 2000 in LUCKESI, 2001) pois, tan-to na universidade, quanto na escola, assumimos o mesmo ofício e é nesse sentido que pretendemos, numa visão coletiva, destacar e refletir sobre o papel da Didática na Formação Inicial e nas salas de aula, em especial, da Educação de Jovens e Adultos.

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Para tanto, vamos partir da premissa de que o conhecimento é uma construção que se efetiva a partir da mediação da realidade. Realidade essa que entendemos como construção humana que se efetiva cotidiana e continuamente, no processo de práticas subje-tivas e coletivas que, ao tentarmos descrever, analisar, aprisionare-mos para que possa ser prevista e controlada.

Com esse objetivo, dentre outros, o conhecimento científico se coloca – ou é colocado - como o caminho preferencial – para a apreensão da realidade. Pensar a realidade pode ser visto como um

“olhar a vida” através das lentes do conhecimento científico. Entre-tanto, perguntamo-nos se há possibilidade de haver um único – e melhor – caminho para construirmos e pensarmos a realidade, co-mo o paradigma dominante nos impõe. Pensamos que ao olharmos por entre as brechas da realidade, podemos vê-la tomando outras trilhas, outros meandros.

Na sala de aula2 – em qualquer nível de ensino – materializa-se cotidianamente, através do currículo – a apreensão da realidade através de um caminho hegemônico e que exclui – afirmamos que preconceituosamente – outras formas de entendê-la.

Explicitamente, afirmamos que nas salas de aula, o espaço pa-ra a construção de conhecimento se constitui limitado pela “visão epistemológica” daqueles que são os responsáveis por organizá-lo, os professores. Entendam que aqui não estamos materializando um processo que chamamos de “culpabilização da vítima” (RYAN, 1976), pois não responsabilizamos os professores pela hegemonia do co-nhecimento científico e do que isso representa no processo peda-gógico nas salas de aula. Afirmamos que não há culpa ou responsa-bilidade por esse processo pedagógico que exclui formas diferentes de construção da realidade, pois entendermos serem os professo-res, produtos desse processo e numa perspectiva dialética, também seus produtores. Entretanto, entendemos, ainda, que um processo crítico-reflexivo pode proporcionar a construção de concepções que proporcionem uma mudança de rumo no processo ensino-aprendi-zagem nas salas de aula brasileiras.

2 Ao falarmos em “sala de aula” estamos nos referindo, de uma forma genérica, aos es-paços escolares.

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Optamos por analisar esse processo através de um prisma da Didática por entendermos que, tendo como seu objeto o ensinar/aprender como prática social concreta e assumindo sua centralida-de nos processos formativos, a Didática é para nós o espaço/tempo do pensar crítico dessas relações.

Afirmamos que a visão de conhecimento científico como cami-nho único e hegemônico para a apreensão e análise da realidade é uma das questões principais para pensarmos os processos ensino-aprendizagem do sistema de ensino que ainda “excluem” grandes parcelas da população que, a nosso ver, não são excluídos, mas in-cluídos de forma “instável, precária e desigual” (MARTINS, 1989).

Partindo da premissa de uma educação que se quer fomentado-ra da transformação da sociedade, entendemos que pensarmos os processos através dos quais essa educação se materializa é caminho fundamental para a tão falada e esperada mudança.

É nesse sentido que, ao usarmos como ponto de partida a ideia de que diferentes conhecimentos circulam nas salas de aula e que ao serem “excluídos” do processo ensino-aprendizagem, através da concretização de uma visão hegemônica de que há apenas um co-nhecimento válido que pode dar conta da apreensão e análise da sociedade, propomos o pensar dessas questões através da Didática.

Ao assumirmos que a Didática que se constrói cotidianamente nas salas de aula – sejam da escola básica, da universidade e, em especial, dos cursos de formação de professores – representa uma visão de mundo, de conhecimento e de educação, afirmamos que para repensá-la é imprescindível que repensemos as possibilidades epistemológicas dela se constituir em sua centralidade.

Pensarmos processos ensino-aprendizagem que representem con-cepções limitadoras de mundo, de conhecimento e de educação é pen-sarmos que a Didática é o espaço para a construção de outros caminhos para a efetivação de processos ensino-aprendizagem que, mediados pela realidade, se constituam em espaço/tempo de transformação.

A construção do conhecimento se dará, nessa perspectiva da Di-dática, mediada pela realidade e não exclusivamente pelo conteúdo e pela técnica, partindo e chegando de uma mesma “fonte” de conhe-cimento. Pensar a Didática por esse ângulo requer que assumamos

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uma postura pautada numa concepção epistemológica diferenciada, que questiona o conhecimento científico e vislumbra, na relação en-tre os conhecimentos diversos que circulam na sociedade, possibili-dades de ruptura com os processos excludentes que se materializam nas salas de aula e se enraízam em todas as instâncias da vida.

Na Educação de Jovens e Adultos vemos materializados os ques-tionamentos que fazemos aqui, pois há todo um discurso da “utiliza-ção das experiências” dos alunos no processo ensino-aprendizagem. Entendemos que essas experiências dos alunos representam mais do que suas vivências cotidianas, sendo mesmo suas formas ela-boradas e sistematizadas de entenderem e explicarem a realidade. Entretanto, na maioria das vezes, seguimos os seguintes caminhos: ignoramos essas “experiências” ou as utilizamos como meramente ilustrativas ou como ponto de partida para que possamos superá-las e chegar ao conhecimento dito “correto e coerente”, pois encara-mos os conhecimentos dos jovens e adultos que frequentam as salas de aula de EJA (e das classes populares de uma forma geral) como erros, mitos ou como uma visão primitiva da realidade.

Essa Didática materializada expõe a visão de mundo, de conhe-cimento e de educação e perpetua um determinada concepção de ensino-aprendizagem que carrega em si pressupostos epistemoló-gicos mantenedores da ordem social vigente.

A SUPERAÇÃO DOS CONHECIMENTOS BULÍMICOS ATRAVÉS DA CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DE CONHECIMENTOS.

Pensamos que a Didática que tem sido trabalhada nos cursos de Formação de Professores e na Escola Básica tem apresentado um reducionismo epistemológico à medida que se entende como um caminho técnico para materializar processos ensino-aprendizagem

“eficientes” (no sentido mais restrito da palavra). Esse reducionismo se encontra ancorado nas perspectivas de mundo, conhecimento e educação de seus atores e resulta em processos pedagógicos que ex-cluem saberes e encaram o conhecimento científico como único pon-to de partida e de chegada para o processo ensino-aprendizagem.

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Dessa forma, as classes populares, representadas em nossa dis-cussão pelos alunos da EJA, que apresentam “uma visão sistemati-zada e coerente da realidade” (VALLA, 1996) são objeto de depósi-to – numa perspectiva da Educação Bancária trabalhada por Freire (1986) – daquilo que chamamos de “conhecimentos bulímicos”.

A bulimia é um transtorno alimentar que consiste na ingestão de grande quantidade de alimentos que são posteriormente expe-lidos, de forma provocada, para evitar ganho de peso. Entendemos que nas salas de aula, os alunos da EJA – e todos os outros, de uma forma geral – são levados a “engolir” uma quantidade exagerada de conteúdos que, nos momentos ditos de avaliação, são expelidos e devolvidos ao professor, ficando os alunos novamente vazios.

Uma visão distorcida da Didática, ou seja, uma visão limitada dos processos ensino-aprendizagem, pode levar à manutenção desses

“conhecimentos bulímicos” e não contribuir para a construção de co-nhecimentos plenos de significados para as classes populares, pois expelir os conhecimentos ingeridos sem reflexão pode provocar alívio nos alunos e a falsa impressão de que esses conhecimentos foram digeridos, à medida que nos são devolvidos nas avaliações.

Com isso, afirmamos que pensar a Didática para os alunos da EJA requer pensar numa Didática Fundamental, comprometida com o papel da educação e sua relação com a perspectiva transformadora, emancipatória e coerente.

Para tanto, propomos que a Didática nos cursos de Formação de Professores seja trabalhada na perspectiva de uma “Construção Compartilhada do Conhecimento3”:

A construção compartilhada do conhecimento é uma metodolo-gia desenvolvida na prática da Educação e Saúde que considera a experiência cotidiana dos atores envolvidos e tem por finali-dade a conquista, pelos indivíduos e grupos populares, de maior poder e intervenção nas relações sociais que influenciam a qua-lidade de suas vidas (CARVALHO et alli, 2001, p.101).

3 Proposta resultante de investigação participativa desenvolvida pelo Núcleo de Educa-ção, Saúde e Cidadania, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, na década de 1990 (CARVALHO et alli, 2001).

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Essa metodologia, ao ser incorporada pela Didática, leva a uma mudança de paradigma, pois para pensarmos numa construção que por ser compartilhada é coletiva, necessitamos de uma inversão de lógica em que há uma relação indissociável entre a prática e a teoria e as mesmas são pensadas mediadas pela realidade e as possibilida-des de sua transformação. Nesse sentido:

(...) é um conceito construído no decorrer de uma experiência na qual a teoria é desenvolvida a partir da prática (...) a dinâmica e o processo de conhecimento produzido vão demarcando o ca-minho conceitual e teórico em função da realidade e da prática estabelecida (CARVALHO et alli, 2001, p.101).

Pensar nessa perspectiva pressupõe assumir que diversos co-nhecimentos circulam nas salas de aula – em especial da EJA – e que os mesmos são diferentes, porém, não hierarquicamente dife-rentes (FONSECA, 2005). Sendo diferentes, conhecimentos cientí-ficos, escolares, populares, podem dialogar se interpenetrando e constituindo-se, assim, numa interação que não é só comunicacio-nal, mas também, pedagógica e epistemológica à medida que, pa-ra pensarmos numa construção compartilhada, temos que pensar, didaticamente numa perspectiva em que “todos somos educadores e fazemos circular saberes diversos e de diferentes ordens, constru-ídas no enfrentamento coletivo e individual de problemas concretos” (CARVALHO et alli, 2001, p.102-3).

Fica claro, então, que trabalharmos o processo ensino-aprendi-zagem nessa perspectiva implica assumirmos a visão de Sousa San-tos (1994) de que uma caracterização do conhecimento popular não requer a contraposição ao conhecimento científico, requer sim, o diálogo entre esses conhecimentos e a materialização do que Sousa Santos chama de “dupla ruptura epistemológica” em que o conheci-mento científico se “sensocomunariza”.

Para pensarmos a Didática nessa perspectiva, precisamos fazer uma reflexão não apenas pedagógica, mas também epistemológica, à medida em que, para pensarmos em construção compartilhada do conhecimento, precisamos destacar os seguintes aspectos funda-mentais: a assunção de que diversos conhecimentos diferentes cir-culam nas salas de aula e que esses são diferentes, entretanto não

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hierarquicamente diferentes. Requer ainda, pensarmos que esses saberes circulam e interagem e, portanto, a dialogicidade é caminho indispensável para que a construção compartilhada ocorra, pois se é compartilhada implica cooperação coletiva pautada no diálogo.

Uma questão, porém, precisa ser ressaltada, pois a dialogicidade aqui proposta implica, substancialmente, diálogo respeitoso, tanto no sentido pessoal, quanto nos sentidos pedagógico e epistemológi-co, visto que não se trata de “deixar o outro falar” ou simplesmen-te “levantar os conhecimentos prévios dos alunos”, mas requer uma mudança de paradigma. Paradigma esse que caminhe no sentido da construção de um conhecimento, que se quer pleno de significados, para aqueles que o constroem e de que “todos somos docentes de saberes diferentes” (CARVALHO et alli, 2001, p.109).

Para tanto, entendemos ser a Didática o espaço/tempo necessá-rio para que essa discussão seja realizada e que se supere a tão en-raizada perspectiva limitadora dos processos do ensinar/aprender.

CONCLUINDO AO APONTAR A NECESSIDADE DE UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Obviamente que ao falar da constituição da Didática do ponto de vista da dialogicidade, referimo-nos essencialmente a Paulo Freire4, pois entendemos, como ele, que o “diálogo é uma exigência existen-cial” (1986, p.79) e está pautado na profunda relação entre ação e reflexão. Dessa forma, entendemos que só a partir de um processo ensinar/aprender que articule indissociavelmente “informação-for-mação-transformação”, pautado na relação ação-reflexão, podemos materializar a dialogicidade.

Repensar a Didática a partir desse outro prisma, requer que os clássicos elementos da Didática, o planejamento, por exemplo, seja revisto e repensado a partir de uma outra lógica.

Como planejar processos de ensino/aprendizagem para a Educa-ção de Jovens e Adultos pautados na perspectiva pedagógica da Cons-trução Compartilhada de Conhecimentos? Esse planejamento requer

4 Em especial ao capítulo 3 do livro Pedagogia do Oprimido, a Dialogicidade – essência da educação como prática da liberdade. (FREIRE, 1986).

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que assumamos que os diversos conhecimentos circulantes na sala de aula devam ser objeto de um profundo diálogo que começa já, quando nós, professores, nos perguntamos sobre o que devemos ensinar (a seleção dos conteúdos). Pautados na dialogicidade, essa seleção se-rá “a devolução desorganizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada” (FREIRE, 1986, p. 84), que obviamente, foi realizada a partir da cons-trução coletiva e compartilhada de objetivos para o processo. Esses conteúdos serão trabalhados através de metodologias, também im-pregnadas pela dialogicidade e pela ação/reflexão contínuas. A ava-liação também será um processo contínuo, em que todos se avaliam e avaliam o processo de maneira coletiva e compartilhada.

Pensar o processo ensino/aprendizagem nessa perspectiva im-plica profundo pensar/repensar a realidade, haja vista que é ela que mediará todo esse processo e professores e alunos, juntos refletin-do sobre e com essa realidade, pois “a superação não se faz no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação” (FREIRE, 1986, p.101).

É esta Didática que propomos, uma Didática Fundamental, cen-tral nos cursos de Formação de Professores, que ao pensar/repensar continuamente seu objeto de estudo e o processo ensinar/aprender como prática social, reorganize seus pressupostos epistemológicos e que se constitua no espaço/tempo de uma construção comparti-lhada de conhecimento que, pautada no diálogo, se dissemine pela salas de aula brasileiras.

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SOBRE A AUTORA

Lana Fonseca é doutora em educação pela UFF. Atua como docente do departa-mento de Teoria e Planejamento de Ensino do Instituto de Educação da UFRRJ e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola (PPGEA) desta Universidade. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de Biologia, onde pesquisa sobre educação em ciências e biologia, com ênfase na educação popular.

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ESPAÇOS, SUJEITOS E DISCURSOS: CINCO DESAFIOS PARA REPENSAR A EJA DESDE O LEGADO FREIREANO

Muitos dos discursos contemporâneos sobre a educação no Brasil seguem uma lógica denuncista que sinaliza a existência de uma cri-se permanente do sistema educacional. Vale ressaltar (e recordar) que estudos acerca da crise da educação e, em especial, na EJA, não são novos (FRIGOTTO, 1994; HADDAD, DI PIERRO, 2000; FAVERO, 2004). Uma revisão da literatura contemporânea sobre a EJA sugere, fortemente, que a área tem problemas sérios, talvez desde a institui-ção dos primeiros programas, ainda na segunda metade do século XX, até a atualidade (HADDAD, DI PIERRO, 2000; BEISEGEL, 1997; RUMMERT, VENTURA, 2007; PAIVA, 2004 e 2009). Embora tais es-tudos demonstrem que essa percepção da crise da EJA é produto de muitos fatores, na nossa experiência a tradução, difusão e recepção dessas análises produzem um processo onde a tendência é locali-zar um único culpado para os problemas da EJA, gerando modelos analíticos simplificadores: a culpa é do Ministério da Educação, do governo, das professoras, das crianças, dos jovens, dos adultos, dos idosos ou, quando muito, de alguma combinação mágica de fatores.

Esses processos de simplificação seguem uma lógica antiga, si-milar as narrativas religiosas, dominante nos filmes de Hollywood e nos seriados acerca dos professores e as escolas, muito influente no campo educativo, que nós denominamos “discursos redentores” (FISCHMAN, SALES, no prelo). Tais discursos são articulados para uma noção de esperança e seguem uma sequencia muito conhecida, na qual tudo começa em um grande problema/pecado, que provoca

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uma crise e um trauma. Esse trauma abre as portas para o reconhe-cimento da responsabilidade dos sujeitos sobre o problema/pecado que começará a ser resolvido através da intervenção de um agente ou agência redentora e resultará na absolvição e recuperação dos sujeitos que terminarão tendo um grande sucesso. Cabe ressaltar que esta narrativa pressupõe o arrependimento do sujeito, que tem que reconhecer o erro, olhar para o futuro, redescobrir a esperança perdida, fazer a promessa da mudança, começar a caminhar pelo caminho certo... um tipo de narrativa bem conhecida.

Gostaríamos de sublinhar que a noção da esperança que apa-rece nessas narrativas é uma esperança muito desesperançada. É uma esperança simples, fácil, quase natural e que tem, como única sustentação, uma figura muito especial. Onde se localiza, ou melhor, quem traz esperança nesses discursos? Nessas narrativas, a figura dos educadores – ainda que na realidade devamos reconhecer que são majoritariamente educadoras – é a sua capacidade de amar e de se entregar.

O que é curioso é que em tempos como estes, onde ouvimos constantemente sobre as demandas da globalização para a educa-ção, a importância da produção científica, tecnológica e cultural pa-ra as economias baseadas no conhecimento e como essas mudanças transformaram as escolas aprofundando as lógicas avaliativas, esti-mulando a competição, tem sentido demandar das professoras mais amor e mais entrega como a fonte da esperança pedagógica?

Vamos compartilhar duas histórias simples que nos permitem pensar em termos de outra esperança que, como dizia Freire, pre-cisa incorporar o conflito, a luta e o diálogo constante no cotidiano das práticas educativas como requisito fundamental para a constru-ção das condições necessárias para fazer outra educação possível. Uma destas histórias fica perto e a outra fica longe das experiências de muitos e muitas educadores e educadoras de jovens e adultos no Brasil, mas acreditamos que as duas permitem enxergar as respos-tas tradicionais da EJA brasileira com um olhar novo e também a fazer novas perguntas para o campo.

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Espaços, sujeitos e discursos: cinco desafios para repensar a EJA desde o legado freireano

PRIMEIRO POSTAL: OLHANDO PERTO, FAZENDO OUTRAS PERGUNTAS. A HISTÓRIA DE JÚLIA E JOÃO

Estava em Porto Alegre (POA) fazendo pesquisa sobre o Projeto Escola Cidadã, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação (SMED), quando conheci Júlia, durante uma oficina de formação para diretores de escolas. Júlia era uma diretora que claramente se posicionava con-tra a direção da SMED. Como pesquisador, eu queria saber como é que um projeto político pedagógico, que se afirma no princípio da demo-cratização radical da escola pública, trabalhava com aqueles que não estavam a favor da orientação oficial. Em outras palavras, quais eram os limites da democracia do Projeto Escola Cidadã. Perguntei a Júlia se eu poderia visitar a escola que ela dirigia e, uma semana depois, os gritos de um garoto interromperam minha entrevista.

Júlia pergunta para Sulina, a merendeira: - que barulho é esse?

Sulina. - É o João outra vez. Ele quer entrar.

Júlia. - Como ele está hoje?

Sulina. - Completamente bêbado e “doidão”, como sempre.

Júlia. - Deixa ele entrar e dá comida para ele. Fala com a Sabine que venha falar comigo e se tiver alguém da EJA, que venha também.

Júlia me olha e diz: me desculpe, mas vou ter que sair. Se qui-ser, pode me esperar aqui.

Gustavo: - tudo bem, eu vou esperar.

(Respondi pensando que a diretora voltaria em 15 minutos, no máximo. Quanto tempo poderia levar uma diretora para dispensar um aluno bêbado?).

Alguns minutos depois, Júlia, Sabine, Luis, um dos professo-res da EJA, e João entraram na sala da direção da escola. João me impressionou muito. Era magérrimo, negro “tinta forte”, não tinha os dentes da frente e parecia muito bravo e zangado. Cheirava a álcool e tinha as roupas completamente sujas. Essa

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cena me levou a confirmar o que havia pensado anteriormen-te: isso vai durar 15 minutos. Eu estava totalmente equivo-cado. Para encurtar a história, Júlia demorou uma hora para voltar a falar comigo. Durante esse tempo, eu assisti a uma negociação entre a direção da escola, o representante da EJA, a merendeira, que também participou da discussão, e João.

Na negociação, os adultos explicavam para João que ele não podia entrar na escola bêbado, em hipótese alguma, e que, como já tinha 15 anos, ele teria que frequentar as aulas no período noturno. Mas isso não queria dizer que a escola não era um lugar para ele, já que a quadra, a biblioteca e os de-mais espaços estariam sempre abertos. Júlia, nesse momento, falou muito claro que o João teria que aceitar algumas condi-ções para voltar para a escola tendo, inclusive, que assinar um compromisso. Dentre as condições estava tomar banho, tro-car de roupa, parar de beber e começar as aulas nesse mesmo dia. Pouco depois, após reclamar muito, João aceitou as con-dições da escola e resolveu assinar o compromisso.

Quando todos saíram da sala de Júlia, na tentativa de retomar a conversa eu perguntei: você deve gostar muito do João... E ela me disse: Gostar? Eu odeio esse rapaz. Eu poderia mentir para você, que eu gosto muito do João, que todos os alunos da escola são como meus filhos, mas a verdade é muito diferente. Eu fiquei calado por uns segundos. Eu não queria sugerir para ela que estava esperando um tipo de resposta determinada. Quando me recompus perguntei: qual é a verdade, então? E ela respondeu: a verdade é que eu sou a diretora dessa escola e eu sou uma profissional muito competente. Você sabe que eu não estou de acordo com a SMED, mas eu fui eleita para di-rigir essa escola. Eu ganho um bom salário para ser a respon-sável pela escolarização de todas as crianças, jovens e adultos dessa comunidade. Inclusive, daqueles que abandonaram a escola. Esse é meu trabalho. Eu tenho que gerir o projeto pe-dagógico da comunidade que me escolheu como a cabeça da equipe pedagógica, que está trabalhando duro na educação de todos. Daqueles que amo e daqueles que odeio.

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Voltando para a cidade de POA, eu não podia parar de pensar que essa tinha sido a primeira vez que uma professora me falava, se referindo a um aluno, em uma entrevista formal -

“eu odeio esse rapaz”-. Ela, de fato, não gostava do João e eu acredito nas suas palavras, mas por uma razão que ainda es-tou procurando, eu me sentia contente com a sua expressão de ódio.

Quando eu estava escrevendo as notas do trabalho de campo, o título foi: “a escola da Júlia é muito diferente”.

Neste artigo, apresentamos alguns dos motivos que fazem a es-cola de Júlia e João muito diferente das muitas que conhecemos:

1. Júlia, como diretora da escola, entende que a sua posição de liderança pressupõe ser parte de uma equipe que inclui a EJA;

2. Não culpabiliza ou castiga os “Joãos” por abandonar a es-cola, beber ou não falar a norma culta da língua portuguesa;

3. Não castiga os “Joãos” por não terem os mesmos valores culturais de alguns dos professores ou das boas crianças que aparecem na Malhação ou até em muitos livros de texto;

4. Não paternaliza a relação com João, já que ele tem que se responsabilizar e fazer a sua parte como integrante do coleti-vo da escola e se assumir como estudante da EJA;

5. Afirma de maneira radical a igualdade ética e política de todas as pessoas;

6. Permite a Júlia e a todo o corpo da escola ,localizada em um bairro pobre de POA, olhar nos olhos de um garoto que pa-rece bravo, pobre, bêbado e sujo, sem vergonha e sem culpa;

7. Sem atos heroicos, é talvez um exemplo REAL, e REALIS-TA de possibilidades de melhoras e mudanças pedagógicas a partir de uma reinvenção das ideias de Paulo Freire (que Frei-re, insistentemente, propunha a seus leitores/as).

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SEGUNDO POSTAL: OLHAR DISTANTE PARA REFLETIR SOBRE O QUE FICA PERTO. A HISTÓRIA DE CHAMELI

Chameli escreveu essa história aos 38 anos de idade. Nascida em uma região rural muito pobre do Nepal, ela nunca havia frequen-tado uma escola e era analfabeta absoluta até os 21 anos de idade, quando começou a participar de um programa não escolar de alfa-betização de jovens e adultos, onde aprendeu a ler e a escrever. Ela se animou não só a contar, mas também a escrever e, por isso mes-mo, a multiplicar infinitamente a história que apresentamos aqui 1.

A mágica das letras2

Eu acredito no alfabeto, porque ele tem o poder de mudar a vida.

Eu percebi o poder escondido no alfabeto no primeiro dia que eu entrei na sala de alfabetização de adultos. Nesse dia fui, pela pri-meira vez, apresentada para as letras que estavam no meu nome. Ao descobrir o alfabeto Nepali, eu descobri que eu era Cha-me-li e não Cha-mi-li, como todos costumavam me chamar. Parecia mági-ca. Uma pequena troca de “e” para “i” mudou o meu nome!

Se essa letra poderia mudar meu nome, o quanto eu seria capaz de transformar a minha vida se eu entendesse todas as letras? Passei a noite toda escrevendo e reescrevendo o meu nome. Depois disso, eu carregava a cartilha comigo quando eu ia buscar lenha, catar as ervas daninhas no milharal, enfim, para todos os lugares, até que eu aprendi a ler e a escrever.

Antes de aprender a ler e a escrever, minha vida era como um lago que havia perto de casa, sempre estagnada. Eu tinha a dor de um casa-mento infantil, meu marido não me apoiava, eu vivia miseravelmente e não tinha nenhuma habilidade ou coragem para fazer nada. Mas eu vi que o número de pessoas que estavam aprendendo a ler e escrever

1 No Nepal, sua história foi contada em um programa de rádio da Fundação Antenna Ne-pal, foi lida na televisão e escrita nos jornais. Nos Estados Unidos, a história de Chame-li foi lida em inglês no Programa I believe (Eu acredito) da National Public Radio – NPR (Rádio Pública Nacional), que inspirou o programa do Nepal, o texto escrito e sua gra-vação, foram postados no site da emissora. (http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=100677646). O programa foi produzido, independentemente ,para Weekend Edition Sunday, por Jay Allison e Gediman Dan ,com Gregory e John Merrick Viki que fazem um agradecimento especial a Madhu Acharya da Fundação Antenna Nepal. 2 Tradução feita pelos autores do texto The magic of the letters, veiculado no programa I believe da NPR.

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estava crescendo - e suas vidas estavam melhorando. Então percebi que não era nem dinheiro, nem beleza que me faltava, mas as letras.

Como o conhecimento de novas palavras aumentou minha con-fiança e coragem, tomei uma decisão: sim, minha vida tem sido as-sim, mas eu e minhas irmãs e irmãos devemos ter educação, tanto quanto nós gostaríamos de ter.

O obstáculo imediato a isso foi o River Tasar. A escola da aldeia estava do outro lado do rio e as crianças eram impedidas de ir à escola du-rante a estação das chuvas. Eu queria construir uma ponte sobre o rio. No início, os moradores não ajudaram. Alguns até zombaram da ideia, dizendo que isso era só para mim. Chegaram a apelidar minha ideia de a “ponte da Chameli”. Mas, finalmente, tivemos o apoio necessário, os materiais foram doados, os trabalhadores voluntários estavam disponíveis e, finalmente, a ponte foi construída. Agora eu não posso expressar a minha satisfação de ver crianças correndo para a escola sobre essa ponte. É uma ponte de ferro, uma ponte de letras, uma pon-te de comunidade. Nada é possível sem a cooperação de todos.

Agora estou liderando cinco grupos de mulheres e estamos nos organizando para abrir um pequena cooperativa de microcrédi-to em breve. Dez ou 20 rúpias que costumavam ser gastas com cosméticos agora fazem parte de um fundo de 300.000 rupias. Queremos também criar salas de alfabetização permanentes para as mulheres e abrir uma biblioteca.

Tudo isso é resultado do meu conhecimento do alfabeto, embora eu o tenha aprendido tarde. Letras têm imenso poder. Eles têm magia. A melhor coisa do mundo é o alfabeto. Eu acredito nisso.

Nós acreditamos que a história de Chameli, ainda que longe do Brasil, é importante não só por ser similar a de muitas alunas e mui-tos alunos da EJA, mas também porque permite refletir sobre algu-mas das tradicionais respostas da EJA com um outro olhar. Prova-velmente, a cartilha que mostrou para Chameli a diferença fonética entre “e” e “i”, que ela identificou como sendo tão crucial para sua vida, seria rejeitada por numerosos educadores de EJA no Brasil e talvez, por nós mesmos. É também provável, que tal cartilha tenha sido organizada de acordo com princípios “tradicionais” similares àquelas com as quais muitos de nós fomos alfabetizados, sem uma intencionalidade “libertadora” ou conscientizadora e sem atentar para as últimas descobertas da Psicolinguística sobre a prática al-

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fabetizadora. Apesar de tudo, uma cartilha “tradicional” e até, em nossa especulação, reacionária, fez uma enorme diferença no pro-cesso de alfabetização e de politização na vida de Chameli. Ela não atribuiu seu envolvimento com os problemas da sua comunidade, a mobilização que ela foi capaz de articular em torno da constru-ção da ponte e a organização das mulheres em cooperativas a um processo de alfabetização pautado nos princípios freireanos ou de estudo da realidade na qual vivia. Ao contrário, ela atribuiu o início de todo esse processo à compreensão e ao domínio das letras e do alfabeto. Assim, a história de Chameli nos provê cinco claras indica-ções para orientar nosso repensar o campo da EJA brasileira.

1. As discussões essencialistas que dicotomizam “funcionali-dade” / “conscientização” e “cartilha sim/cartilha não” pre-cisam ser superadas, já que práticas alfabetizadoras e mate-riais didáticos considerados “tradicionais” em si mesmos não são capazes de impedir (ou produzir) leitores autônomos e sujeitos participativos, tanto quanto as que anunciam esses propósitos podem alcançá-los ou não;

2. Os processos de alfabetização têm influência direta ou indire-ta em todos os aspectos da vida de uma pessoa. Ter a capacida-de de se “autonomear” de comunicar-se por escrito, de contar a sua própria história são, em si mesmos, altamente relevantes, e no caso da Chameli (e todos aqueles na mesma situação), não é possível “controlar” ou “prever” qual área o sujeito da EJA vai priorizar. Isso quer dizer que ninguém sabia a priori que um “e” ou um “i” seria a chave para desenvolver a construção de uma ponte ou a conscientização política da Chameli;

3. A utilização de um conceito abrangente de alfabetização é fundamental. Aprender a escrever o nome é importante, mas não é o suficiente para que as pessoas possam responder as demandas sociais, laborais, familiares, cada vez mais relacio-nadas com processos de domínio da leitura e da escrita;

4. As dinâmicas de gênero na sociedade, na educação e na EJA são muito significativas: mulheres ensinando, aprendendo, trabalhando e se organizando.

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5. Ainda que reconheçamos a grande importância das dinâmi-cas de gênero, o sujeito da EJA na atualidade é múltiplo e diverso. São mulheres, homens, jovens, adultos e idosos envolvidos em processos de ensino e aprendizagem nos mais variados espaços sociais. Por isso, nós educadores temos que reconhecê-los, não só por sua posição de classe social, mas na sua diversidade etá-ria, de gênero, de cor/raça, de religião e naquelas dinâmicas de identificação que eles e elas assumam como relevantes.

Neste trabalho, queremos argumentar que os exemplos de Júlia, João e Chameli são uma pequena amostra do potencial transfor-mador e da vigência dos princípios freireanos. Também queremos argumentar que esses exemplos ilustram que é impossível enten-der a atualidade do pensamento de Freire, bem como propor a EJA enquanto lugar para o fomento e o encorajamento da participação democrática, a menos que o modelo de EJA seja dramaticamente re-configurado como um projeto fundamentado firmemente no reco-nhecimento de que as condições da realidade mudaram muito e não se pode seguir trabalhando com os esquemas do século XIX.

TRÊS PRINCÍPIOS PARA PENSAR A EJA DESDE O LEGADO FREIREANO

A democracia real é compreendida por Freire como algo latente no presente, algo imanentemente ligado ao futuro que pode ser agarrado no momento vacilante da consciência antecipatória. Freire mostra que a utopia e a consciência crítica são mutuamente inclusivas e dialetica-mente reanimadas e que juntas elas “sinergizam” o conhecimento novo e as novas configurações e possibilidades culturais para a transforma-ção humana. Freire mostra, ainda, que a democracia, como qualquer as-piração social, não é feita com bons desejos, mas com reflexão e prática:

Na luta entre o dizer e o fazer em que nos devemos engajar para diminuir a distância entre eles, tanto é possível refazer o dizer para adequá-la ao fazer quanto mudar o fazer para ajustá-lo ao dizer. Por isso a coerência termina por forçar uma nova opção. No momento em que descubro a incoerência entre o que digo e o que faço – discurso progressista, prática autoritária – se, refle-tindo, às vezes sofridamente, apreendo a ambiguidade em que

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me acho, sinto não poder continuar assim e busco uma saída. Desta forma, uma nova opção se impõe a mim. Ou mudo o dis-curso progressista por um discurso coerente com a minha prá-tica reacionária ou mudo minha prática por uma democrática, adequando-a ao discurso progressista. Há finalmente uma ter-ceira opção: a opção pelo cinismo assumido, que consiste em en-carnar lucrativamente a incoerência. (FREIRE, 1997, p. 62-63).

O trabalho de Freire sublinha o fato de que a práxis utópica tem que incluir alguma forma de análise das reais circunstâncias exis-tentes que envolvem as contradições sociais dentro do capitalismo, sendo a crítica ideológica a forma mais importante de análise. A dis-posição utópica do trabalho de Freire é, consequentemente, concre-ta no sentido em que ela se origina nas condições de vida dos atores sociais oprimidos, nas suas colocações históricas, nos seus riscos, desafios e problemas, mas também em suas energias produtivas e criativas exibidas nas lutas cotidianas.

Uma das dimensões mais importantes da visão utópica de Frei-re é a sua demanda pela mudança dos aspectos opressivos da vida cotidiana nas escolas e na sociedade, a partir do engajamento nos conflitos comuns do “aqui e agora”, ao invés de esperar pela rea-lização das condições objetivas idealizadas, ou pelo aparecimento mágico de uma super consciência de classe, gênero ou raça entre os oprimidos. Na visão utópica de Freire, a tarefa principal não é liber-tar os outros pela aplicação de receitas pedagógicas já prontas, mas através do desenvolvimento da solidariedade para com o outro e da luta conjunta, nas salas de aula, nas escolas e nas ruas.

Freire também afirmou que para acontecer uma práxis pedagógica orientada a obter igualdade efetiva de direitos sociais e uma transforma-ção educativa com justiça, a dimensão utópica tem que ser sentida como possível, como uma condição natural, ou seja, não artificial, nem mágica:

A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicis-ta da História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da espe-rança. É que, na inteligência mecanicista portanto determinista da História, o futuro é já sabido. A luta por um futuro assim “a priori” conhecido prescinde da esperança. (FREIRE, 2006, p 73).

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Neste sentido, uma proposta pedagógica utópica tem que ser dinâmica, não estática; tem que reafirmar a vida criativa em lugar da reprodução mecânica do presente. Na nossa leitura, o desafio de Freire consiste em transformar os espaços educativos e as escolas em lugares mais democráticos, sem unir a esperança depositada nes-sa transformação a um evento revolucionariamente Hollywoodiano ocorrido em um momento histórico finito no passado. Ter esperança em mudanças, melhorias, solidariedade e justiça social é a força guia, uma força que é entendida como uma latência pulsante de possibili-dade que não desconhece os perigos, ou minimiza o poder do medo, da fome e dos castigos sociais. Como tal, a esperança, no caso da edu-cação, tem que ser concreta (sem dúvida atravessada por numerosos conflitos, dos quais a mercantilização de todas as formas do conheci-mento é o maior), possível de ser atuada pelos professores e profes-soras reais e não pelos que só existem nas telas da TV ou do cinema. A esperança pedagógica, de Freire precisa de uma práxis (reflexão e ação) que recupere o horizonte conceitual para o desenvolvimento do ensino democrático como uma “utopia educacional crítica”. E pa-ra que isso aconteça é preciso considerar três princípios:

Primeiro, assim como discutir melhoras e mudanças sociais im-plica uma definição de “boa sociedade,” de maneira similar, preci-samos de uma definição do que consideramos uma “boa escola de EJA”. Propomos que essa escola tenha que ensinar a ler, escrever e dar acesso aos conteúdos que são socialmente valorizados em dado momento histórico, mas tem que incorporar como objetivo funda-mental o desenvolvimento do senso de agência.

Segundo, é necessário estabelecer um conjunto de meios “certos” para atingir resultados “incertos”. Precisamos pensar estratégias e organizar práticas para que nossas salas de aula provejam igual aces-so para estudantes a conhecimentos que lhes ajudarão a ter sucesso na escola; mas não podemos estar certos de que o que consideramos acesso igual ao conhecimento garantirá uma igualdade de resultados. Isto se deve ao fato de que o conhecimento que consideramos impor-tante poderia não ser assim visto por aqueles que estamos tentando educar. Não podemos insistir com a estratégia de ofertar acesso ao conhecimento em troca da perda das marcas identitárias das popula-

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ções marginalizadas, nem limitar a aprendizagem àquilo que é consi-derado, “essencialisticamente”, conhecimento popular.

Para serem reconhecidos como democráticos, os espaços da EJA precisam ser transformados em locais soberanos que convidam a to-dos os sujeitos a formar juízos razoáveis sobre os fins da educação e assegurar que, a cada membro da comunidade educativa, seja outor-gado peso igual na deliberação grupal. Em outras palavras, as deci-sões educativas devem estar baseadas nos juízos da comunidade na qualidade de pessoas livres e iguais. A autonomia é exercitada através das capacidades autônomas de compreensão, imaginação, argumen-tação, avaliação e desejo. Reivindicar autonomia para si mesmo é re-conhecer as reivindicações recíprocas para a autonomia dos outros.

Em terceiro lugar, queremos argumentar que não há nenhuma possibilidade de imaginar outros espaços de EJA sem reconhecer o papel crucial e diretivo dos educadores e das educadoras em qualquer processo de mudança educacional. A formação desses educadores, le-vando isto em conta, é talvez um ponto crucial para fomentar práticas dirigidas a abrir espaços novos de prática democrática. Assim, gos-taríamos de apresentar cinco desafios gerais para refletir acerca da formação dos educadores, em especial aqueles que atuam no campo da EJA, que se articulam com os três princípios apresentados:

1. Um primeiro desafio é procurar saber quais são as condições necessárias para que os educadores e educadoras, que atuam no campo da EJA, possam se engajar em processos sistemáti-cos de reflexão sobre os propósitos da educação na sociedade contemporânea. É de grande importância contar com os espa-ços e os tempos de formação para explicitar as visões filosófica, moral e política dos educadores da EJA, de modo que possam tomar a iniciativa de propor e realizar mudanças de baixo para cima e a transformar os espaços educativos em que atuam.

2. A EJA contemporânea está estruturada por relações desiguais de poder e os educadores são sujeitos com agência imersos nesses regimes de poder, que moldam a eles mesmos, aos seus alunos e ao contexto cotidiano do ensino. Um dos grandes desa-fios é encorajar e facilitar os espaços para que os sujeitos da EJA

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possam trabalhar os códigos de poder, os modos repressivos e produtivos que atravessam não só as escolas, ONGs, igrejas e qualquer espaço educativo, mas a sociedade como um todo.

3. Uma maneira de incrementar a capacidade de agência dos sujeitos da EJA é dar maior centralidade aos processos siste-máticos de produção de conhecimentos sobre as experiências sociais que regulam a educação, tanto como sobre os conheci-mentos e conteúdos demandados pelo estado e pelo mercado de trabalho. Ao considerar esses processos sistemáticos de produção de conhecimentos, os sujeitos da EJA não podem excluir nem reificar aqueles conhecimentos que foram histori-camente desvalorizados e excluídos, ou seja, o conhecimento chamado popular, produzido pelas mulheres, grupos minori-tários e grupos indígenas. Aceitar a importância daqueles co-nhecimentos, que foram historicamente desvalorizados, não implica renegar a importância dos conhecimentos demanda-dos pelo estado e pelo mercado de trabalho – muitas vezes apresentados como conhecimento escolar. O desafio para EJA é reafirmar a importância dos espaços escolares e os conheci-mentos do currículo oficial, mas reconhecendo que não são os únicos “educadores” e que devem cooperar com as famílias e as comunidades e facilitar a cooperação entre outras institui-ções, como museus, cadeias, hospitais, teatros, ONGs etc.

4. Na atualidade, é impossível desconhecer o grande impacto das tecnologias de comunicação e informação, tanto como os novos regimes da cultura audiovisual. Por isso, um outro desa-fio é saber como facilitar a construção de redes de aprendiza-gem entre os sujeitos da EJA, fazendo uso dos recentes desen-volvimentos e inovações em tecnologia de comunicação e de seus usos práticos, mas também investigando como essas tec-nologias modificam as relações existentes e os modos de viver.

5. Como enfatizar a pesquisa, individual e institucional, para poder ensinar também métodos sofisticados de investigação, se constitui em um outro desafio. É preciso usar os instru-mentos de análise dirigidos à pesquisa: observação, entrevis-

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tas, fotografia, gravação em vídeo, tomada de notas e coleta de histórias de vida. Ao fazer assim, os alunos não só afinam as habilidades tradicionais, como ler, escrever, calcular, es-cutar, interpretar e pensar, mas aprendem a compreender e reconhecer as dinâmicas que impactam as suas vidas cotidia-nas: o seu lugar na hierarquia social, nos grupos de amigos e colegas dos quais participam, suas relações românticas, suas aspirações profissionais, suas relações com os professores.

Em nossa visão, procurar dar respostas a estes cinco desafios é uma forma realista de implementar a noção da esperança pedagógi-ca do legado freireano, já que nessa procura apostamos em uma EJA melhor e num futuro mais democrático. Queremos esclarecer que a

“democracia” não é uma realização que acontece em um momento messiânico, nem é um sistema naturalmente preso às realizações políticas, econômicas e culturais dentro de um país ou região, nem uma produção mágica dos mercados financeiros globais. A democra-cia não chegou miraculosamente, de alguma maneira, ao momento atual da história. As práticas e os resultados democráticos são fun-damentalmente adversos às predições sempre certinhas; não existe nenhuma essência democrática que precede nosso próprio envolvi-mento cotidiano na tarefa de lutar por um imaginário democrático.

Os espaços educativos, em geral, e os de EJA, em particular, po-dem ser mais democráticos e encorajadores para uma vida melhor e oferecer aos alunos e alunas e aos educadores e educadoras a pos-sibilidade de interação dialógica baseada em um sistema de valores que aproveita as tensões e as possibilidades de avanço democrático. Em outras palavras, sem ignorar as injustiças do capitalismo global, das ditaduras, da exploração do meio ambiente, esse trabalho po-derá expor as armadilhas ideológicas do sistema que tem uma ten-dência forte de reduzir até mesmo a noção de cidadania em adultos para que exerçam essa função política como observadores indife-rentes ou consumidores cínicos.

Esforços para criar escolas radicalmente democráticas, como no caso de Júlia e João ou em uma sala de alfabetização de jovens e adul-tos, como no caso de Chameli, tanto como esforços maiores na esfera de uma prefeitura, um estado ou país, valem a pena serem persegui-

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dos. Estas experiências não só nos ensinam a esperar mais de cada espaço educativo (especialmente daqueles que trabalham com os setores populares), mas também a melhorar os sistemas culturais e educacionais conectando a formação dos gestores, a formação docen-te, a participação dos indivíduos e das comunidades com metas gerais de igualdade e de solidariedade social. Neste sentido, temos que re-cuperar, criativa e criticamente, as lições (e os erros) que generosa-mente nos oferecem as muitas “Júlias”, os muitos “Joãos” e as muitas

“Chamelis” que habitam nossas escolas e as comunidades em seus en-tornos. A todas elas e a todos eles, nosso agradecimento por nos en-sinar que ainda faz sentido repensar a EJA, desde o legado freireano.

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SOBRE OS AUTORES

Sandra Regina Sales é Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. Atua como docente do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ. Integra o grupo de pesquisa Políticas de trans-formação: pesquisas em educação e comunicação, de que é líder, o grupo Estudos Culturais em Educação e Arte e o Laboratório de Estudos Afrobrasileiros – LEAFRO desenvolvendo pesquisas sobre Educação de Jovens e Adultos, Mídia e Educação e Políticas de Ação Afirmativa no Ensino Superior.

Gustavo E. Fischman é Doutor em Ciências Sociais e Educação Comparada pe-la University of California, Los Angeles. Atua como docente do Departamento de Educação Mary Lou Fulton da Arizona State University e está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Educativas desta universidade.

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Este livro foi composto com as fontes Cambria e Helvética World e impresso em papel cartão supremo 250 g/m2 (capa) e

papel off set 75 g/m2 (miolo).

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