texto sobre marcuse

25
ARTIGOS Marcuse: cultura, ideologia e emancipação no capitalismo tardio Marcuse: culture, ideology and emancipation in late capitalism Luiz Antonio da Silva Peixoto* Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, Juiz de Fora, MG, Brasil RESUMO Este artigo tematiza os elementos fundamentais da teoria crítica da sociedade de Herbert Marcuse no que se refere aos campos da crítica da cultura e da crítica da ideologia, discutindo especialmente as formas de dominação e de subjetividade prevalecentes no capitalismo tardio; bem como as possibilidades objetivas de transformação histórica no sentido da emancipação social. O pressuposto adotado é de que a atualização das análises marcuseanas da cultura afirmativa idealista, da dessublimação repressiva da cultura e da fusão entre ideologia e realidade econômica e social nos permite compreender as novas formas de subjetividade contemporâneas e explorar os mecanismos ideológicos de dominação nas sociedades pós-modernas, contribuindo para a fundamentação de uma teoria social crítica do capitalismo em sua fase neoliberal ou globalizada. Palavras-chave: Cultura afirmativa, Crítica da ideologia, Emancipação social, Capitalismo tardio. ABSTRACT This article studies the fundamentals of critical theory of society of Herbert Marcuse in relation to the fields of cultural criticism and the critique of ideology, especially discussing the forms of domination and subjectivity prevalent in late capitalism, and the objective possibilities historical transformation towards social emancipation. The assumption adopted is that the update of Marcuse analyzes affirmative and idealistic culture, the desublimation repressive of culture and fusion of ideology and economic and social reality allows us to understand the new forms of contemporary subjectivity and explore the mechanisms of ideological domination in post modernists societies, contributing to the reasons for a critical social theory of capitalism in its neoliberal phase or global. Keywords: Affirmative culture, Critique of ideology, Social emancipation, Late capitalism. Marcuse caracteriza o capitalismo norte-americano – tomado como modelo do capitalismo tardio – como o caminho para o que denomina de sociedade unidimensional (1982, p. 18): uma sociedade que controla e integra todas as dimensões da existência privada e pública, que assimila forças e interesses antes opostos, que administra metodicamente os instintos humanos; uma sociedade na qual toda força de negação está reprimida e se converte, por sua vez, em fator ISSN 1808-4281 Estudos e Pesquisas em Psicologia Rio de Janeiro v. 11 n. 1 p. 156-180 2011

Upload: moreno-valerio

Post on 14-Sep-2015

10 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Entenda o que marcuse fala sobre a industria cultural

TRANSCRIPT

  • ARTIGOS

    Marcuse: cultura, ideologia e emancipao no capitalismo tardio Marcuse: culture, ideology and emancipation in late capitalism Luiz Antonio da Silva Peixoto* Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF, Juiz de Fora, MG, Brasil

    RESUMO Este artigo tematiza os elementos fundamentais da teoria crtica da sociedade de Herbert Marcuse no que se refere aos campos da crtica da cultura e da crtica da ideologia, discutindo especialmente as formas de dominao e de subjetividade prevalecentes no capitalismo tardio; bem como as possibilidades objetivas de transformao histrica no sentido da emancipao social. O pressuposto adotado de que a atualizao das anlises marcuseanas da cultura afirmativa idealista, da dessublimao repressiva da cultura e da fuso entre ideologia e realidade econmica e social nos permite compreender as novas formas de subjetividade contemporneas e explorar os mecanismos ideolgicos de dominao nas sociedades ps-modernas, contribuindo para a fundamentao de uma teoria social crtica do capitalismo em sua fase neoliberal ou globalizada. Palavras-chave: Cultura afirmativa, Crtica da ideologia, Emancipao social, Capitalismo tardio. ABSTRACT This article studies the fundamentals of critical theory of society of Herbert Marcuse in relation to the fields of cultural criticism and the critique of ideology, especially discussing the forms of domination and subjectivity prevalent in late capitalism, and the objective possibilities historical transformation towards social emancipation. The assumption adopted is that the update of Marcuse analyzes affirmative and idealistic culture, the desublimation repressive of culture and fusion of ideology and economic and social reality allows us to understand the new forms of contemporary subjectivity and explore the mechanisms of ideological domination in post modernists societies, contributing to the reasons for a critical social theory of capitalism in its neoliberal phase or global. Keywords: Affirmative culture, Critique of ideology, Social emancipation, Late capitalism.

    Marcuse caracteriza o capitalismo norte-americano tomado como modelo do capitalismo tardio como o caminho para o que denomina de sociedade unidimensional (1982, p. 18): uma sociedade que controla e integra todas as dimenses da existncia privada e pblica, que assimila foras e interesses antes opostos, que administra metodicamente os instintos humanos; uma sociedade na qual toda fora de negao est reprimida e se converte, por sua vez, em fator

    ISSN 1808-4281 Estudos e Pesquisas em Psicologia Rio de Janeiro v. 11 n. 1 p. 156-180 2011

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    de coeso e afirmao. Este processo de integrao, to caracterstico desta sociedade, se desenvolve, alm disso, sem um terror aberto: a democracia consolida a dominao mais firmemente do que o absolutismo. A liberdade administrada e a represso dos instintos se transformam em instrumentos fundamentais para o aumento incessante da produtividade. Mas esta produtividade econmica e tecnolgica se transforma em destruio: no apenas nas guerras, mas destruio do homem em geral e da natureza; exausto de matrias primas, de foras de trabalho, poluio do ar, da gua e violncia generalizada. A sociedade de consumo, como tambm so chamadas as sociedades industriais avanadas, se caracteriza, ao mesmo tempo, pela produo e destruio em grande escala. Graas ao progresso tecnolgico e racionalizao do trabalho e das empresas, a produo no deixa de aumentar. As necessidades polticas da sociedade se transformam em interesses e necessidades dos indivduos a tal ponto que o sistema como um todo se apresenta como a prpria personificao da razo. Contrariando esta auto-imagem da sociedade, Marcuse afirma:

    No obstante, essa sociedade irracional como um todo. Sua produtividade destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz, mantida pela constante ameaa de guerra; seu crescimento, dependente da represso das possibilidades reais de amenizar a luta pela existncia (1982, p. 14).

    Os recursos intelectuais e materiais necessrios para essa represso, na sociedade industrial avanada, so incomensuravelmente maiores do que nas etapas histricas anteriores; portanto, o alcance da dominao da sociedade sobre o indivduo extremamente mais eficiente, como tambm j denunciara Horkheimer em Eclipse da razo (2000, p. 131-133). Essa sociedade se distingue das anteriores pela capacidade de subjugar as foras sociais crticas ou de oposio mais pela tecnologia do que pelo terror; mais pela eficincia do sistema tcnico-cientfico do que pela opresso explcita. Em resumo, um dos aspectos mais paradoxais dessa sociedade o carter racional de sua irracionalidade (MARCUSE, 1982, p. 29). Segundo Marcuse, esta sociedade industrial pode ser denominada tambm de sociedade sem oposio: nela tudo est padronizado, uniformizado, perfeitamente integrado segundo normas comuns. Tudo nela, homens e coisas, aparece como produto do conformismo social. Neste estgio, os direitos e as liberdades perdem sua vitalidade e se esvaziam de seu contedo. A independncia de pensamento e o direito oposio poltica perdem sua funo crtica, no momento em que a organizao dessa sociedade a torna cada vez mais apta a satisfazer as necessidades individuais (MARCUSE, 1982,

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 157

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    p. 23). O totalitarismo e a uniformizao aumentam, tanto no plano poltico como no tcnico-econmico. As necessidades dos indivduos esto condicionadas: criam-se falsas necessidades, impostas pelos interesses dos grupos sociais dominantes; bens de consumo de todo tipo, produzidos segundo as leis de mercado, so eficientemente impostos existncia cotidiana dos indivduos. O desfecho deste processo a euforia na infelicidade: a maioria das necessidades e atividades comuns do cotidiano, bem como as diversas opes de lazer disponveis nesta sociedade pertence a essa categoria de falsas necessidades. De acordo com Marcuse:

    Tais necessidades tm um contedo e uma funo sociais determinados por foras externas sobre as quais o indivduo no tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfao dessas necessidades so heternomos. Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do prprio indivduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condies de existncia; independentemente do quanto ele se identifique com elas e se encontre em sua satisfao, elas continuam a ser o que eram de incio produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige represso (1982, p. 26).

    O contraste entre necessidades satisfeitas e no satisfeitas, entre o dado e o possvel, se atenua. Disso resulta o nivelamento das classes sociais, com a conseqente homogeneizao ideolgica de seus interesses polticos e sociais. O conformismo se torna to generalizado e to profundamente arraigado nos hbitos cotidianos, que qualquer inconformismo ou insatisfao parece um sintoma de neurose. Nessa sociedade, o indivduo acaba despojado de toda personalidade, no tem espessura nem relevo, est perfeitamente nivelado, ou seja, unidimensional. Marcuse denuncia essa sociedade unidimensional como cerceadora da liberdade e da individualidade, portanto como uma sociedade com traos totalitrios:

    Em virtude do modo pelo qual organizou a sua base tecnolgica, a sociedade industrial contempornea tende a tornar-se totalitria. Pois totalitria no apenas uma coordenao terrorista da sociedade, mas tambm uma coordenao tcnico-econmica no-terrorista que opera atravs da manipulao das necessidades por interesses adquiridos. Impede, assim, o surgimento de uma oposio eficaz ao todo. No apenas uma forma especfica de governo ou direo partidria constitui totalitarismo, mas tambm uma sistema especfico de produo e distribuio que bem pode ser compatvel com o pluralismo de partidos, jornais, poderes contrabalanados etc (1982, p. 24-25).

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 158

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    Podemos perceber que, para Marcuse, as sociedades industriais avanadas so totalitrias em virtude no do domnio explicitamente poltico, mas porque elas operam um aparato tcnico-econmico que impede o surgimento de alternativas ao modo de produo existente. Esta concepo pode induzir crtica de um certo determinismo tecnolgico em sua argumentao, mas acreditamos que este no o caso de Marcuse. Para ele, as sociedades capitalistas avanadas so totalitrias porque o modo de produo capitalista e os interesses de classe utilizam a tecnologia para manipular as necessidades, doutrinar os indivduos, integrar a foras potenciais de oposio e administrar o todo da sociedade de acordo com seus prprios interesses. Neste sentido, as sociedades capitalistas avanadas so totalitrias na medida em que so inteiramente controladas pela hegemonia do capital. Na concepo de Marcuse, o capital controla o Estado, os meios de comunicao, a educao e os outros aparatos ideolgicos e instituies sociais, utilizando-os para seus fins de maximizao do lucro e mantendo o controle social pela eliminao dos pensamentos de oposio e pela integrao dos indivduos no sistema capitalista de produo e de consumo. Marcuse afirma que a racionalidade tecnolgica revela o seu carter poltico ao se tornar o principal instrumento de controle social, criando um universo verdadeiramente totalitrio no qual sociedade e natureza, corpo e mente so mantidos num estado de permanente mobilizao para a defesa desse universo (1982, p. 37). Isto sugere a muitos que a racionalidade tecnolgica que cria o universo totalitrio. No entanto, Marcuse acrescenta tambm que a sociedade capitalista avanada um universo poltico, que a tecnologia tal qual foi desenvolvida por essa sociedade apenas e to-somente um projeto histrico especfico:

    Como um universo tecnolgico, a sociedade industrial desenvolvida um universo poltico, a fase mais atual da realizao de um projeto histrico especfico a saber, a experincia, a transformao e a organizao da natureza como o mero material de dominao. Ao se desdobrar, o projeto molda todo o universo da palavra e da ao, a cultura intelectual e material. No ambiente tecnolgico, a cultura, a poltica e a economia se fundem num sistema onipresente que engolfa ou rejeita todas as alternativas. O potencial de produtividade e crescimento desse sistema estabiliza a sociedade e contm o progresso tcnico dentro da estrutura de dominao. A racionalidade tecnolgica ter-se- tornado racionalidade poltica (1982, p. 19).

    Assim, a tecnologia estruturada e constituda pelos interesses polticos e econmicos que ela ajuda a promover; portanto, em uma sociedade capitalista os interesses polticos e econmicos de

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 159

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    dominao determinam o projeto tecnolgico dessa sociedade. Uma vez moldada por esses interesses, a tecnologia torna-se relativamente autnoma e adquire uma fora e uma dinmica prprias. Dessa forma, a sociedade contempornea deve ser vista no como produto de um determinismo tecnolgico abstrato e a-histrico que submete todas as outras esferas da vida social, mas como uma sntese de capitalismo e tecnologia que constitui uma nova e especfica forma de controle social e totalitarismo. O uso do adjetivo totalitria em relao sociedade capitalista avanada proposital em Marcuse. Durante a Guerra Fria, e at hoje, vemos tal termo ser utilizado pelos governos e pelos meios de comunicao dos pases capitalistas apenas para denotar as sociedades fascistas e comunistas, ou as sociedades culturalmente diferenciadas em relao cultura ocidental. Marcuse o utiliza em relao s sociedades liberal-democrticas do Ocidente para denunciar sua organizao econmica e social como uma forma especfica de totalitarismo entre outras. Embora tal extenso do termo corra o risco de esvazi-lo de sua fora crtica, acreditamos que Marcuse o utiliza como um conceito operacional que permite diversas perspectivas crticas sobre a sociedade capitalista contempornea. Atravs dele, podemos perceber o carter totalitrio de sua forma de organizao e mostrar que o controle pelo capital das esferas poltica, social e cultural e a nova sntese de capital e tecnologia so as novas formas de dominao e controle social. A atualizao da crtica da cultura afirmativa Simultaneamente ao desenvolvimento totalitrio da base tecnolgica e produtiva do capitalismo industrial avanado, ocorre uma integrao dos indivduos no mbito da cultura. Nesta tambm se manifesta o fenmeno de uniformizao e integrao, caracterstico da sociedade unidimensional. Marcuse estuda este fenmeno de uniformizao cultural sob o nome de dessublimao repressiva, que consiste no processo atravs do qual o progresso da racionalidade tecnolgica est liquidando os elementos de oposio e transcendentes da cultura superior. O progresso da sociedade tecnolgica acaba por invalidar a sua cultura superior:

    A celebrao da personalidade autnoma, do humanismo, do amor trgico e romntico parece ser o ideal de uma etapa superada do desenvolvimento. O que est ocorrendo agora no a deteriorao da cultura superior numa cultura de massa, mas a refutao dessa cultura pela realidade. A realidade ultrapassa sua cultura (1982, p. 69).

    A realidade atual absorve a cultura liberal clssica, uma vez que o homem moderno pode, graas racionalidade tecnolgica, superar os heris e semi-deuses de ento. A realidade de hoje supera a fico de

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 160

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    antes. Mas, ao mesmo tempo, todo o potencial de esperana e de verdade profunda que continham as sublimaes da cultura superior se encontra destrudo. O antagonismo entre a realidade social e o mundo da cultura desaparece com a subordinao deste realidade existente. A esfera desta outra dimenso da realidade que era a cultura superior diminui constantemente (MARCUSE, 1982, p. 70). Seus elementos de oposio, de alteridade, de transcendncia com relao realidade social vivida, no so rechaados ou mesmo negados, mas sim assimilados, incorporados ordem estabelecida. O cultural deixa de ser valor para se tornar realidade, e perde com isso toda sua fora de questionamento. O mbito cultural j no garante a bidimensionalidade do homem porque est integrado, dirigido e fragmentado pela sociedade de consumo. A grandeza da arte e literatura livres, os ideais do humanismo, a realizao da personalidade; todos esses valores culturais, que deveriam estar a servio do homem, so utilizados pela sociedade para assegurar sua coeso e a manuteno do status quo, reprimindo qualquer transformao social mais radical. Os meios de comunicao de massa, que s conhecem como denominador comum a forma mercantil, reduzem todas essas criaes culturais ao valor de troca. Dessa maneira, se reduz de forma gradual o domnio do sublimado, que constitua, em nome do ideal, uma denncia da condio humana. A cultura superior (idealista) se degrada em cultura material, convertendo-se a partir da em integrante dessa matria mental que os meios de comunicao difundem para alcanar seus objetivos econmicos de lucratividade. Para Marcuse, a cultura superior do Ocidente foi uma cultura pr-tecnolgica tanto em seu sentido funcional quanto no sentido cronolgico: sua validez resultou da experincia de um mundo que no mais existe e que no pode ser reconquistado por estar, num sentido estrito, invalidado pela sociedade tecnolgica (1982, p. 71). Tal como se apresenta na cultura superior da poca burguesa, a conscincia artstica , em certo sentido, uma conscincia alienada, j que rejeita o mundo do progresso e dos negcios, que o mundo burgus por excelncia. No entanto, esta forma cultural burguesa no pode mais ser recuperada a no ser como lembrana fantasmagrica de possibilidades perdidas:

    uma cultura antiquada e ultrapassada, e somente sonhos e regresses infantis podem recuper-la. Mas essa cultura tambm, em alguns de seus pontos decisivos, ps-tecnolgica. Suas imagens e posies mais avanadas parece sobreviverem sua absoro em comodidades e estmulos administrados; continuam assombrando a conscincia com a possibilidade de seu renascimento na consumao do progresso tcnico. So a expresso da alienao livre e consciente das formas estabelecidas de vida com a qual a

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 161

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    literatura e as artes se opuseram a essas formas at mesmo onde as adornaram (MARCUSE, 1982, p. 72).

    Na sociedade capitalista avanada, ao contrrio de seu conceito na teoria marxista, esta alienao artstica a transcendncia consciente da existncia alienada uma alienao distanciada e mediatizada, no um romantismo nostlgico, mas a expresso de uma dimenso distinta, para alm do cotidiano pragmtico da sociedade vigente. A arte, porm, assim como a cultura como um todo, est hoje em vias de perder este valor de transcendncia com relao realidade estabelecida. A capacidade de assimilao da sociedade industrial avanada to ilimitada que chegou a fazer do liberalismo a nova forma do totalitarismo cultural: no domnio da cultura, o novo totalitarismo se manifesta precisamente num pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditrias coexistem pacificamente com indiferena (MARCUSE, 1982, p. 73). Essa indiferena resultante , no entanto, a proteo mais eficiente para os valores estabelecidos. Segundo Zizek (2006, p. 71-79), em nossa sociedade ps-poltica, o multiculturalismo, que parece hegemnico nos trabalhos acadmicos e nos meios de comunicao de massa, atualiza e legitima aquela tendncia ao pluralismo harmonizador que Marcuse j denunciara em seu artigo sobre a tolerncia repressiva (apud WOLFF; MOORE; MARCUSE, 1970, p. 87-126). Talvez se possa argumentar que, apesar de tudo, positivo que a cultura na atualidade possa ser acessvel ao grande pblico; que as grandes obras da literatura e da arte possam, graas aos modernos meios de comunicao de massa, sair dos museus e reencontrar-se com a vida cotidiana. Marcuse responde a esse argumento dos neoconservadores, assinalando que estes clssicos assim popularizados, apesar de voltarem vida da qual se alienavam, ao mesmo tempo mudam de ndole, perdendo o poder antagnico e negativo que constitua sua verdade:

    verdade, mas voltando vida como clssicos, eles voltam vida diferentes de si mesmos; so privados de sua fora antagnica, do alheamento que foi a prpria dimenso de sua verdade. O intento e a funo dessas obras foram, assim, fundamentalmente modificados. Se antes estavam em contradio com o status quo, essa contradio se mostra hoje aplanada (1982, p. 76).

    Essa reconciliao cultural estabelece uma igualdade de acesso, no entanto, na mesma medida, sustenta a dominao. Os autores e as obras clssicas, uma vez comercializadas, se transformam em elementos da sociedade de consumo. A distncia entre objeto de arte e produto de consumo deixa de existir e tudo se nivela no mercado.

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 162

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    no exato momento em que a sociedade de consumo parece prestar um servio arte e cultura, ao colocar suas criaes ao alcance do grande pblico, que retira o seu potencial de negao. A arte e a cultura se convertem, atravs desse processo, em simples peas da engrenagem de uma mquina cultural que remodela seu contedo (MARCUSE, 1982, p. 77). A sociedade industrial, regida pelo progresso tcnico, diminui progressivamente a misria material, mas, igualmente nela, a negao negada e a cultura superior acaba despojada de sua transcendncia. Os valores culturais, segundo Marcuse, so retirados do campo da metafsica e assimilados ao nvel do cotidiano, fechando a possibilidade da Grande Recusa (1982, p. 75). No universo tecnolgico, os problemas metafsicos se reduzem anlise do sentido das palavras:

    A anlise lgica e lingstica demonstra que os velhos problemas metafsicos so ilusrios; a busca do significado das coisas pode ser reformulado como a busca do significado das palavras, e o universo estabelecido da palavra e do comportamento pode fornecer critrios perfeitamente adequados para a resposta (MARCUSE, 1982, p. 81).

    O sistema bloqueia toda escapatria a este mundo da racionalidade instrumental e o aumento progressivo da satisfao material adormece todo desejo de liberdade. A cultura superior se transforma em cultura de massa, sofre uma dessublimao crescente, o transcendente se integra aos afazeres do cotidiano para perder-se no anonimato e no comercializvel. A sociedade industrial avanada, no entanto, no teme esta invaso do transcendente, pois est segura de poder digeri-lo e assimil-lo; ela opera a partir de uma posio de fora: a sociedade tecnolgica concede mais do que antes pelo fato de os seus interesses se terem tornado os impulsos mais ntimos de seus cidados e porque os prazeres que ela concede promovem a coeso e o contentamento sociais (MARCUSE, 1982, p. 82). importante notar a mudana de postura de Marcuse frente a este processo de integrao cultural. Em seu artigo da dcada de 30, Sobre o carter afirmativo da cultura, Marcuse utilizou a dicotomia entre cultura, entendida como a esfera dos valores espirituais, e civilizao, entendida como a esfera do mundo do trabalho e da necessidade, para criticar a filosofia idealista da cultura, que concebia a primeira esfera como radicalmente distinta da segunda. A cultura idealista burguesa se equivocava por ignorar completamente o condicionamento social de toda produo intelectual e artstica. Essa cultura idealista denominada por Marcuse de cultura afirmativa:

    Cultura afirmativa aquela cultura pertencente poca burguesa que no curso de seu desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual-anmico, nos termos de

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 163

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    uma esfera de valores autnoma, em relao civilizao. Seu trao decisivo a afirmao de um mundo mais valioso, universalmente obrigatrio, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que essencialmente diferente do mundo de fato da luta diria pela existncia, mas que qualquer indivduo pode realizar para si a partir do interior, sem transformar aquela realidade de fato. Somente nessa cultura as atividades e os objetos culturais adquirem sua solenidade elevada tanto acima do cotidiano: sua recepo se converte em ato de celebrao e exaltao (1997, v. 1, p. 95-96).

    A cultura afirmativa burguesa prometia a felicidade e a harmonia, mas apenas no plano do imaginrio, da iluso: era preciso, portanto, defendia Marcuse, superar (aufheben) essa cultura, realizando na prtica as promessas nela incorporadas, e transformando, num certo sentido, a arte em vida. Ao final da dcada de 60, porm, Marcuse (1981, p. 109) se assusta com as conseqncias dessa dessublimao no capitalismo industrial avanado e recomenda aos combatentes de sua poca que renunciem a qualquer projeto de dissoluo da cultura: a revoluo cultural, para manter e intensificar o poder da negao, o poder subversivo da arte, deve manter e intensificar o poder alienante da arte, pois s dessa forma pode testemunhar contra a alienao objetiva do real. Nessa fase, ento, Marcuse retoma a distino entre cultura e civilizao, agora no mais para denunciar a autonomia idealista da cultura afirmativa burguesa, mas para denunciar a perda dessa autonomia: a sociedade unidimensional cumprira bem demais o programa revolucionrio do jovem Marcuse dos anos 30, realizando de maneira totalitria aquela superao que ele defendera (ROUANET, 1989, p. 203). A cultura idealista burguesa, evidentemente era ideolgica, no sentido clssico marxista de falsa conscincia, pois ao transferir para o plano espiritual um conceito de liberdade irrealizvel nas condies sociais existentes, inibia a compreenso totalizante dessas condies e contribua para perpetu-las. A satisfao esttica e intelectual da classe dominante era assegurada atravs das privaes impostas maioria, isto , classe trabalhadora, cujo trabalho gerava o excedente sem o qual a esfera da cultura careceria de base material. Sendo fruto da diviso repressiva entre trabalho fsico e trabalho intelectual, a cultura afirmativa contribua para dissimular a realidade dessa diviso, apontando para uma harmonia ideal alm das realidades de um mundo dicotmico:

    Mas essa cultura alienada continha, em sua alienao mesma, um momento de verdade e a promessa de uma ordem no-alienada. Exatamente por funcionar como uma esfera relativamente autnoma acima e alm da civilizao, representava uma perspectiva de transcendncia, uma

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 164

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    normatividade, uma paidea, uma reserva de valores espirituais que apropriados historicamente poderiam conduzir a civilizao a autotranscender-se em direo realizao concreta dos ideais culturais (ROUANET, 1989, p. 203-204).

    A dimenso crtica da cultura residia precisamente nessa tenso entre as duas esferas da transcendncia e da imanncia; tenso irredutvel porque a cultura sempre continha um excedente de significao que ultrapassava todas as suas realizaes histricas. A cultura idealista, ao mesmo tempo transfigurando espiritualmente a liberdade e ocultando a heteronomia efetiva da esfera da civilizao, propunha um ideal de autonomia que funcionava como um fermento subversivo capaz de contestar a realidade estabelecida. Nas condies atuais do capitalismo avanado, desaparece o antagonismo entre a esfera da cultura e da civilizao. A cultura foi incorporada integralmente esfera da civilizao; suas manifestaes mais crticas foram absorvidas pelo universo instrumental. Seus valores, antes subversivos, constituem hoje elementos de coeso e controle social. Cessou o distanciamento que assegurava a verdade da cultura. A dessublimao repressiva produziu finalmente uma conscincia feliz e satisfeita: a conscincia infeliz da humanidade, que latejava na cultura como a memria da injustia e como a anteviso de uma justia futura, foi extirpada, integrando-se de forma no problemtica na conscincia feliz da ordem unidimensional (ROUANET, 1989, p. 204). Como bem observa Zizek (2006, p. 111), na era da dessublimao ps-moderna os indivduos so controlados no por um superego repressivo quanto realizao de seus desejos mais profundos, mas ao contrrio, so regidos pelo imperativo de gozar a todo custo: a nova subjetividade ps-moderna comporta como seu elemento mais caracterstico um superego que nos ordena que adoremos fazer o que temos de fazer (ZIZEK, 2006, p. 113). O fetichismo da mercadoria se estende, no capitalismo tardio, esfera da cultura e da subjetividade; e a forma mercantil invade a derradeira reserva de autonomia, regida (mesmo no plano do imaginrio) por leis que excluam o valor de troca. A crtica da ideologia no capitalismo tardio Na esfera ideolgica e poltica, o processo de unidimensionalizao apontado por Marcuse se manifesta de forma mais clara na integrao da classe operria. Essa integrao se d ao nvel da conscincia, na medida em que o proletariado do capitalismo avanado introjetou os valores do sistema econmico e poltico, mas sobretudo integrao objetiva, na medida em que a classe

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 165

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    trabalhadora se beneficia crescentemente, de fato e no apenas ideologicamente, da prosperidade geral, como observa Rouanet:

    Por sua posio central no processo produtivo, a classe operria no perdeu sua significao objetiva como agente histrico da transformao. Mas se continua sendo uma classe revolucionria em si, no o mais para si, isto , subjetivamente. Deixou de ser a negao viva do sistema. Com a assimilao do proletariado, fecha-se o espao da contestao radical. Esse fechamento constitui o paradigma e a precondio de todas as outras formas de integrao que caracterizam, em diferentes nveis, a sociedade unidimensional (1989, p. 202).

    Marx sempre considerou o proletariado como a classe revolucionria por excelncia. Sendo a principal vtima da explorao capitalista, e sem perspectivas de emancipao no quadro do mundo burgus, ela seria o sujeito da transformao social. Marcuse nota, porm, que nas sociedades industriais avanadas j no ocorre o mesmo: na sociedade afluente a classe operria est ligada ao sistema das necessidades, mas no a sua negao. Essa classe j no experimenta a necessidade de transformar a sociedade capitalista, uma vez que est integrada ao sistema. O desenvolvimento do mundo capitalista alterou a estrutura e a funo das classes sociais, burguesia e proletariado, at o ponto de despoj-las de seu papel histrico de agentes da transformao social. Cada vez mais, um interesse predominante na preservao e no melhoramento do status quo institucional une os antigos antagonistas nos setores mais avanados da sociedade contempornea (MARCUSE, 1982, p. 16). A idia de uma evoluo quantitativa, lenta e gradual do capitalismo substitui progressivamente a idia de uma mudana qualitativa, revolucionria. A sociedade capitalista desenvolvida teria tido xito em integrar a classe operria a seu sistema, principalmente no que se refere a suas organizaes sindicais. Assim, conseguiu eliminar a distino entre interesse real e interesse imediato dos explorados e, junto com esta distino, a necessidade de transcender as reivindicaes salariais ou de condies de trabalho para faz-las passar do plano econmico ao poltico. No capitalismo avanado, os controles sociais foram introjetados a tal ponto que at o protesto individual foi afetado em suas razes: a negativa intelectual ou emocional de compactuar com os valores socialmente aceitos parece impotente, ou ento um sintoma neurtico. Essa a dimenso scio-psicolgica do fechamento do universo poltico: o desaparecimento das foras histricas que, na fase anterior da sociedade industrial, pareceu representarem a possibilidade de novas formas de existncia (MARCUSE, 1982, p. 30). Mas, segundo Marcuse, at mesmo o termo introjeo talvez

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 166

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    seja inadequado para expressar esse fenmeno de integrao das classes e dos indivduos ao sistema: ele ainda pressupe algo exterior que transferido ao interior; indica ainda a existncia de algo como uma liberdade interior que se oporia s idias e valores impostos pela sociedade aos indivduos. Na sociedade industrial avanada, no entanto, esse espao privado se apresenta invadido pela realidade tecnolgica que torna mecnicos os comportamentos dos indivduos. Ao fim desse processo, temos no o ajustamento do indivduo, mas sua identificao com a sociedade como um todo; a dimenso interior da mente, na qual a oposio ao universo estabelecido poderia se enraizar, totalmente esvaziada e conquistada. fundamental ressaltar que, para Marcuse, a perda dessa dimenso de negatividade e de oposio a contrapartida ideolgica do prprio desenvolvimento material da sociedade industrial avanada: o impacto do progresso transforma a Razo em submisso aos fatos da vida e capacidade dinmica de produzir mais e maiores fatos do mesmo tipo de vida (1982, p. 31). A conseqncia disso que o prprio conceito de alienao colocado em xeque: no capitalismo avanado os indivduos se identificam com o tipo de existncia que lhes imposto e tm satisfao com a sua manuteno e aprimoramento. Essa identificao no uma iluso; longe de ser apenas subjetiva, ela se d no nvel objetivo, uma realidade. O fenmeno da absoro da ideologia pela realidade no significa, porm, o fim da ideologia. Em sentido especfico, a cultura industrial avanada mais ideolgica do que sua predecessora a sociedade liberal clssica , uma vez que, atualmente, a ideologia est no prprio processo de produo (...) O aparato produtivo e as mercadorias e servios que ele produz vendem ou impem o sistema social como um todo (MARCUSE, 1982, p. 31-32). A unidimensionalizao da realidade , portanto, um processo objetivo e deriva do aparato tecnolgico e econmico capitalista: ele d origem a um padro de pensamento e comportamento unidimensionais no qual as idias, as aspiraes e os objetivos que por seu contedo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ao so repelidos ou reduzidos a termos desse universo (MARCUSE, 1982, p. 32). As idias e valores que no se encaixam nessa sociedade estabelecida so redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extenso quantitativa. As possibilidades da emancipao social A principal conseqncia das integraes cultural e ideolgica, caractersticas da sociedade unidimensional, a dificuldade de pensar a prtica emancipatria. Nesta sociedade, a teoria e a prtica revolucionria se encontram divorciadas; as condies da dominao tornam quase invivel pensar a transformao social, uma vez que

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 167

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    elas dificultam a identificao do sujeito histrico ao qual caberia a tarefa prtica da mudana histrica. Marcuse caracteriza a nova sociedade do capitalismo avanado como uma combinao do Estado beligerante com o Estado do bem-estar social, uma sociedade da administrao total na qual os problemas tradicionais da sociedade liberal clssica esto sendo dissipados ou isolados, sendo controlados os elementos dissociativos (1982, p. 38). Nessa sociedade, os opostos convergem para as mesmas posies polticas e ideolgicas. Ocorre o fenmeno, cada vez mais atual, da homogeneizao da poltica: tanto os partidos de direita quanto os de esquerda defendem, na prtica, isto , uma vez no poder, a continuidade da mesma poltica econmica e da mesma noo de progresso entendido como produtividade econmica. Marcuse j denunciava que nos pases do socialismo real a situao no era diferente, pois a reduo gradativa dos controles polticos diretos testemunha a crescente confiana na eficcia dos controles tecnolgicos como instrumentos de dominao (1982, p. 39). Os partidos de esquerda ocidentais se rendem prontamente ao sistema econmico e tecnolgico e arquivam o projeto da tomada revolucionria do poder. A luta de classes atenuada e toda mobilizao se d em torno das ameaas externas: a sociedade capitalista avanada ostenta uma coeso e unio internas desconhecidas em outras fases anteriores da sociedade industrial. No capitalismo organizado, a racionalidade tcnica est personificada, a despeito de sua irracionalidade, no aparato produtivo. No so apenas os meios de produo e os instrumentos de trabalho que se adaptam racionalidade tcnica, mas a prpria forma do trabalho que se conforma aos procedimentos da gerncia cientfica. Marcuse sustenta que nem a nacionalizao nem a socializao alteram por si essa personificao fsica da racionalidade tecnolgica; pelo contrrio, esta permanece uma condio prvia para o desenvolvimento socialista de todas as foras produtivas (1982, p. 41). Assim, fica evidente que, para Marcuse, os pases ditos socialistas mantiveram a mesma forma de produo e de produtividade que prevalecia nos pases capitalistas avanados1. Isto significa que, para ele, houve uma assimilao dos dois sistemas, uma vez que se constituram a partir da mesma base tecnolgica (LOUREIRO, 1999, p. 54). O problema da teoria crtica da sociedade, nesse contexto, saber se e como os indivduos administrados podem se libertar do aparato tcnico-econmico dominante:

    Assim, deve ser novamente enfrentada a pergunta: como podem os indivduos administrados que levaram a sua mutilao s suas prprias liberdades e satisfaes e, assim, reproduzem-na em escala ampliada libertar-se tanto de si mesmos como de seus senhores? Como se poder sequer

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 168

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    pensar que o crculo vicioso possa ser rompido? (MARCUSE, 1982, p. 230).

    A situao histrica da integrao, objetiva e subjetiva, da classe trabalhadora ao sistema tcnico-econmico vigente indica a dificuldade de se pensar alternativas factveis de transformao social. Nos pases em que a classe trabalhadora se encontra mais integrada ou assimilada, isto , nos pases capitalistas mais desenvolvidos, ela no representa mais a negao desse sistema. Ela antes uma fora de coeso do que de negao dessa sociedade (MARCUSE, 1982, p. 234). Em sua fase mais avanada, a dominao funciona como administrao total: a vida administrada se torna agradvel e satisfatria para a maioria da populao, unindo, assim, as classes antes antagnicas. As metas da autodeterminao autntica dos indivduos e do controle social da produo e da distribuio eficaz e igualitria das necessidades acaba obscurecida pela eficincia do sistema em fornecer as mercadorias. Por outro lado, as tendncias totalitrias da sociedade unidimensional tornam ineficazes as formas clssicas, modernas, de protesto, o que enfraquece cada vez mais as organizaes de trabalhadores. Nessas condies, colocam-se as questes: o que aconteceu com o sujeito da revoluo? Se, de fato, a integrao do trabalhador progride nos pases industriais altamente desenvolvidos, teremos ainda o direito de considerar a classe trabalhadora como o sujeito histrico da revoluo? (LOUREIRO, 1999, p. 54-55). A resposta de Marcuse a essa questo tem sido objeto de controvrsias. A anlise da integrao poltica e cultural da classe trabalhadora no capitalismo avanado e seu apoio alis, de forma alguma acrtico ao movimento estudantil do final da dcada de 60, poderiam nos fazer acreditar que Marcuse j no tomava aquela classe como classe revolucionria2. No entanto, acreditamos que, dentro da lgica do pensamento marcuseano, a classe trabalhadora continuava sendo a principal interessada numa mudana revolucionria, embora sua conscincia estivesse contaminada pela ideologia do sistema tcnico, econmico e social estabelecido. Embora esta classe no estivesse propensa grande recusa das idias e valores vigentes na sociedade industrial avanada, Marcuse tambm no imaginou ingenuamente, como muitos acreditam, que o movimento estudantil e os novos movimentos sociais seriam os sujeitos de qualquer transformao histrica radical. Marcuse via esses grupos apenas como catalisadores da insatisfao geral, por estarem, de certa forma, excludos das principais benesses oferecidas pelo sistema classe trabalhadora assimilada e tornada conservadora. Mas, apesar de seu regular pessimismo, Marcuse continuava tentando detectar, no prprio processo histrico concreto, as foras que poderiam contestar o sistema como um todo:

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 169

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    Contudo, por baixo da base conservadora popular est o substrato dos prias e estrangeiros, dos explorados e perseguidos de outras raas e de outras cores, os desempregados e os no-empregveis. Eles existem fora do processo democrtico; sua existncia a mais imediata e a mais real necessidade de pr fim s condies e instituies intolerveis. Assim, sua oposio revolucionria ainda que sua conscincia no o seja. Sua oposio atinge o sistema de fora para dentro, no sendo, portanto, desviada pelo sistema, uma fora elementar que viola as regras do jogo e, ao faz-lo, revela-o como um jogo trapaceado (1982, p. 235).

    Muito dessa anlise poderia ser transportada para a atualidade, quando o nmero dos excludos do sistema aumenta na mesma medida em que o capitalismo avana globalmente. Podemos, tambm, repetir hoje a afirmao de Marcuse, se referindo possibilidade de o sistema entrar em seu estgio terminal, de que nada indica que ser um bom fim. Continuamos sem parmetros para visualizar o curso futuro do capitalismo em sua aventura de hegemonia mundial. Contudo, devemos nos lembrar de que, segundo Marcuse, a teoria crtica da sociedade no pode ser positiva, sob pena de sucumbir aos fatos dados: ela pode definir as possibilidades histricas; at mesmo as necessidades histricas; mas a realizao destas s pode estar na prtica que responde teoria, e, na atualidade, a prtica no d tal resposta (1982, p. 232). Enquanto a unidade entre teoria e prtica no se torna realizvel no mundo histrico concreto, temos que manter a teoria sintonizada com os movimentos que representam, ou podem vir a representar, a sobrevivncia da razo crtica no mundo social. Eros como princpio de emancipao Em Eros e civilizao, obra publicada originalmente em 1955, Marcuse parte do pressuposto de que a sociedade industrial avanada j detm todas as possibilidades tcnicas para transformar a vida humana de simples luta pela existncia, isto , pela satisfao de suas necessidades e carncias bsicas (Anank ou Lebensnot), em uma vida de liberdade, gratificao e prazer (1999a, p. 37). As restries e represses impostas aos indivduos pela necessidade de garantir a sobrevivncia j no fazem sentido no estgio de progresso econmico e social do capitalismo tardio. No entanto, seria ingnuo acreditar que essas possibilidades tcnicas sejam suficientes para fazer desaparecer a pobreza e para operar a passagem histrica para uma nova civilizao, uma civilizao no-repressiva. Reinterpretando a teoria de Freud acerca do processo civilizatrio humano, Marcuse tenta explicitar os mecanismos de defesa utilizados pela sociedade repressiva contra o advento dessa nova sociedade e

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 170

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    investigar as possibilidades de emancipao da sensibilidade rumo a uma sociedade no-repressiva. Segundo ele, quanto mais se aproxima a possibilidade concreta de libertar os homens das coaes justificadas antes pela escassez, maior a necessidade da sociedade repressiva de reforar as coaes historicamente impostas, modernizando-as e introjetando-as de maneira mais eficaz na conscincia dos indivduos:

    Mas quanto mais perto se encontra a possibilidade real de emancipar o indivduo das restries outrora justificadas pela escassez e imaturidade, tanto maior a necessidade de manuteno e dinamizao dessas restries, para que a ordem estabelecida de dominao no se dissolva. A civilizao tem de se defender contra o espectro de um mundo que possa ser livre (...) A defesa consiste, principalmente, num fortalecimento dos controles no tanto sobre os instintos, mas sobre a conscincia, a qual, se se permitir que fique livre, poder reconhecer o trabalho de represso mesmo nas maiores e melhores satisfaes de necessidades (MARCUSE, 1999a, p. 94-95).

    Assim, coao sobre os instintos, imposta pela escassez, se juntaram as coaes impostas pela civilizao por meio da diviso do trabalho. A represso imposta pelo princpio de realidade e a represso devida dominao, isto , o interesse de proteger os interesses particulares de grupos especficos, se conjugaram para perpetuar a represso. Como resultado, a sociedade continua a reprimir crescentemente os instintos, uma vez que a noo de progresso que sustenta a existncia dessa civilizao assegura a sobrevivncia e o reforo da dominao e do trabalho alienado. Para esse fim, as instituies histricas especficas do princpio de realidade e os interesses especficos de dominao introduzem controles adicionais acima e alm dos indispensveis associao civilizada humana. A esses controles adicionais, impostos pelas instituies especficas de dominao, Marcuse deu o nome de mais-represso (1999a, p. 52-53). Segundo Marcuse, a mais-represso assumiu diferentes formas em diferentes fases histricas. Sua manifestao contempornea o que ele denominou de princpio de desempenho. Esta designao foi escolhida por Marcuse para acentuar que, sob o seu domnio, a sociedade estratificada de acordo com os desempenhos econmicos concorrentes dos seus membros (1999a, p. 58). A represso oriunda do interesse de dominao foi tornada invisvel pela extenso ideolgica do conceito de necessidade ou escassez, que passou a incluir no somente as necessidades advindas do controle da natureza como tambm as resultantes do controle sobre os homens, ambas assimiladas a necessidades naturais, e como tal, no suscetveis de modificao histrica. A sociedade unidimensional,

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 171

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    portanto, garante a manuteno da dominao naturalizando um princpio de realidade especfico, a saber, o princpio de desempenho tpico do capitalismo industrial avanado e obtendo a adeso subjetiva dos indivduos a esse princpio. At a fase do capitalismo liberal, a forma subjetiva de integrao dos indivduos aos interesses do poder, ou seja, a adequao do plo subjetivo ao plo objetivo, era mediatizada pela famlia, que funcionava como agncia psquica da sociedade. Esta forma mediatizada de integrao do indivduo sociedade ainda permitia uma ltima reserva de vida privada e podia ainda assegurar a formao de personalidades relativamente autnomas e auto-determinadas. Na fase do capitalismo tardio ou organizado, porm, a unidimensionalizao leva expulso desses ltimos redutos de transcendncia e auto-determinao. a prpria sociedade que, atravs de suas agncias, socializa os indivduos para se adequarem ao princpio de realidade imposto. Esta explicao nos ajuda a compreender a impotncia atual das famlias e das instituies educacionais, s quais as famlias delegavam esta tarefa para influir na formao da conscincia e da viso de mundo de seus filhos: a famlia e a escola no tm mais condies de competir com o poder de formao das conscincias que est concentrado nos meios de comunicao de massa (MARCUSE, 1999a, p. 96-97). As possveis bases para o antagonismo entre o indivduo e a sociedade so eliminadas pela modificao do aparelho pulsional. Atravs dessa modificao, o ciclo filogentico da dominao-rebelio-dominao no mais apenas um movimento cclico, mas um progresso em dominao. O indivduo, na sociedade regida pelo princpio de desempenho, introjeta o logos da dominao como um princpio impessoal, objetivo, universal e racional:

    Por fim, sob o domnio do princpio de desempenho plenamente desenvolvido, a subordinao apresenta-se como que efetivada atravs da diviso social do trabalho (...) A sociedade emerge como um sistema duradouro e em expanso de desempenhos teis; a hierarquia de funes e relaes adquire a forma de razo objetiva: a lei e a ordem com a prpria vida da sociedade. No mesmo processo, tambm a represso despersonalizada: a restrio e arregimentao do prazer passam agora a ser uma funo (e resultado natural) da diviso social do trabalho (MARCUSE, 1999a, p. 91).

    A sociedade unidimensional representa, para Marcuse, a ltima etapa do logos da dominao e, ao mesmo tempo, uma realidade qualitativamente nova no ciclo filogentico. At ento, a represso era legitimada por uma ideologia que justificava o poder em virtude das imensas exigncias da luta pela existncia. No capitalismo avanado, a legitimao se fundamenta na abundncia, na eficcia

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 172

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    com a qual satisfaz as necessidades humanas. O sistema interioriza nas conscincias, no mais os valores ascticos que levavam os indivduos a aceitar a frustrao de suas necessidades, mas as prprias necessidades apresentadas como valores em si mesmos. Como o aparato tcnico-econmico suficientemente eficiente para gratificar essas necessidades (verdadeiras ou falsas aqui j pouco importa) com um mnimo de esforo, o sistema visto como a prpria objetivao da razo. Parece no haver mais nenhuma tenso entre desejo e realizao: na medida em que o indivduo socializado para desejar certos bens materiais e o sistema produtivo lhe fornece estes bens na medida de seu desejo, o antigo antagonismo entre sujeito e objeto, entre aspirao e realidade desaparece. Diferentemente do capitalismo liberal, quando a opresso assumia a forma de privao, no capitalismo tardio a opresso assume a forma de abundncia. Dessa maneira, a represso caracterstica da sociedade unidimensional no pode ser facilmente percebida, pois sua confirmao a prpria realidade material e econmica promovida por esta sociedade. H uma identificao dos indivduos justamente com o poder do aparato produtivo que os oprime: a incorporao econmica e poltica dos indivduos no sistema hierrquico do trabalho acompanhada de um processo instintivo em que os objetos humanos de dominao reproduzem sua prpria opresso (MARCUSE, 1999a, p. 93). Na sociedade da abundncia, no se trata mais de legitimar a impossibilidade da gratificao, mas de utilizar a prpria gratificao como forma de legitimao. Para Marcuse, esta acaba por assumir o carter de dessublimao, uma vez que substitui a satisfao mediata pela satisfao imediata (1982, p. 82). Sua finalidade, no entanto, no promover uma libertao real dos indivduos, mas control-los e aprision-los de maneira mais eficaz dentro da ordem estabelecida, o que permite que falemos de uma dessublimao repressiva. Esta aparece sob diversas formas; uma delas a absoro da cultura pela civilizao, ou seja, o fenmeno que chamamos de unidimensionalizao da cultura: na esfera da cultura idealista, o princpio de prazer, violentado pelo princpio de realidade, continuava, no obstante, presente como nostalgia da felicidade e recordao da possibilidade de um futuro melhor. Possua, assim, uma fora subversiva que se manifestava em sua incompatibilidade com a sociedade existente. Na sociedade unidimensional, entretanto, ocorre uma reduo progressiva do reino do sublimado no qual a condio humana era representada, idealizada e denunciada (MARCUSE, 1982, p. 70). Dessa forma, a incorporao da cultura idealizada na civilizao significa uma dessublimao a servio da represso. Nesta nova fase histrica, o princpio de prazer no simplesmente negado, mas sim mobilizado pelo princpio de realidade

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 173

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    estabelecido. Como conseqncia, o contedo subversivo e negador da cultura silenciado, dando lugar a uma cultura afirmativa. Alm da dessublimao cultural, temos tambm uma dessublimao repressiva no campo da sexualidade: a extenso, por parte da civilizao industrial, de seu controle a regies da conscincia anteriormente livres e ao tempo de lazer permite o relaxamento dos tabus sexuais, ou seja, uma liberalizao sexual. Entretanto, segundo Marcuse, esse processo ainda repressivo, pois o corpo no deixa de ser um instrumento de trabalho, mas passa a ser tambm valorizado como objeto libidinal:

    Hoje, comparada com a dos perodos puritano e vitoriano, a liberdade sexual aumentou indiscutivelmente (...). Ao mesmo tempo, porm, as relaes sexuais passaram a estar muito mais assimiladas com as relaes sociais; a liberdade sexual harmoniza-se com o conformismo lucrativo. O antagonismo fundamental entre sexo e utilidade sexual em si mesmo um reflexo do conflito entre o princpio de prazer e o princpio de realidade obnubilado pela progressiva incrustrao do princpio de realidade no princpio de prazer. Num mundo de alienao, a libertao de Eros atuaria, necessariamente, como uma fora destruidora e fatal como a total negao do princpio que governa a realidade repressiva. (...) Em contraste com a destrutividade do Eros libertado, o relaxamento da moralidade sexual, dentro do sistema firmemente consolidado e controles monopolsticos, serve ao sistema (1999a, p. 95).

    A partir da dessublimao repressiva da sexualidade, promovida pela sociedade unidimensional, o sexo se transforma em mercadoria e a mercadoria adquire atributos sexuais, sofre um processo de libidinizao: a sexualidade invade a propaganda e envolve os objetos do cotidiano, seja nos ambientes residenciais, nas ruas ou nas empresas. Esta ressexualizao da vida, no entanto, funciona num sentido favorvel ao princpio de realidade, pois acompanhada de uma contrao de Eros. Este que para Freud uma fora geral que transcende a mera funo sexual reduzido sexualidade, permitindo, ao mesmo tempo, uma deserotizao geral da vida e uma liberalizao do sexo. A manipulao repressiva dos instintos levada a cabo pela sociedade industrial avanada significa, portanto, dessublimar sem eliminar, de fato, a represso (ROUANET, 1989, p. 234). O que ocorre, na prtica, a adequao do aparelho pulsional dos indivduos aos imperativos econmicos e polticos do princpio de desempenho, isto , do princpio de realidade especfico que governa o progresso da civilizao ocidental. Na medida em que a sociedade unidimensional promove a manipulao repressiva dos instintos, com a finalidade de produzir conscincias totalmente submissas ao princpio de desempenho, a

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 174

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    possibilidade de se construir uma sociedade no-repressiva, segundo Marcuse, est na libertao pulsional, ou seja, na formao de conscincias hostis a qualquer manipulao e capazes de estabelecer novas relaes perceptivas com a realidade. Levando em conta que no capitalismo industrial avanado o pressuposto da escassez j no justifica a necessidade da represso e que esta s se mantm (enquanto mais-represso) graas ao interesse de dominao que continua presente no princpio de desempenho de nossa civilizao, Marcuse reafirma a possibilidade histrica de uma nova sociedade na qual a falsa conscincia unidimensional seria sucedida por uma conscincia emancipada, e o poder interiorizado seria expulso do aparelho pulsional, dando lugar ao reino da liberdade:

    luz da tendncia da civilizao, vista numa longa perspectiva, e luz da prpria interpretao freudiana do desenvolvimento dos instintos, esse pressuposto deve ser discutvel. A possibilidade histrica de um descontrole gradual do desenvolvimento instintivo deve ser tomada seriamente em considerao, talvez mesmo a sua necessidade histrica se acaso a civilizao tem de progredir para um estgio superior de liberdade (1999a, p. 127).

    O maior obstculo hiptese de uma civilizao no-repressiva a concepo de que a diminuio ou eliminao da represso social privaria os indivduos das energias necessrias ao trabalho, sem o qual a sociedade no pode sobreviver em sua luta pela sobrevivncia diante da escassez. Mas com o nvel de desenvolvimento das foras produtivas alcanado pela sociedade industrial avanada, o tempo de trabalho poderia ser reduzido ao mnimo. Em uma organizao social no-repressiva, em que o tempo livre no seja manipulado e apropriado pela indstria cultural, poderia ocorrer uma reerotizao do organismo por inteiro, para alm das necessidades da sexualidade. Isto seria uma conseqncia da prpria reduo do tempo de trabalho socialmente necessrio. Haveria uma regresso ao narcisismo primrio, fase na qual o Ego e o mundo ainda no se distinguem (MARCUSE, 1999a, p. 152). Sob um novo princpio de realidade, portanto, homem e natureza, razo e imaginao, no seriam mais incompatveis entre si; Eros no seria mais inimigo da civilizao, e sim o fundador de uma nova civilizao. Nessa nova ordem no-repressiva, tornada possvel pela liberao dos instintos e pela transformao de Eros, os indivduos passariam a ser conduzidos de acordo com princpios autnomos, auto-determinados: a humanidade finalmente realizaria, ento, o mais alto ideal do Iluminismo, a conquista da maioridade (mndigkeit). Assim, a liberao dos instintos, para Marcuse, tem tambm um carter de libertao poltica e social, uma vez que ela

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 175

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    o pressuposto de uma sociedade verdadeiramente livre e emancipada. Perspectivas atuais do pensamento de Marcuse Desde o falecimento de Marcuse, em 1979, o interesse pelo seu pensamento tem diminudo progressivamente. Diversas razes podem ser apontadas para explicar este desinteresse pelo pensamento marcuseano. Entre elas, destacamos duas que, em nosso entender, so as mais fundamentais: uma de ordem prtica e outra de ordem terica. No campo da prtica, entendemos que o refluxo dos movimentos revolucionrios com os quais sua obra dialogava, de alguma forma, fez arrefecer o interesse por suas idias, consideradas por muitos, datadas em demasia ou at mesmo superadas pelas recentes e profundas mudanas econmicas, sociais e polticas. A outra, no campo terico, que talvez seja a mais relevante foi o novo contexto histrico-filosfico das duas ltimas dcadas. Desde a dcada de 80, o mundo terico, tanto na filosofia quanto nas cincias humanas, foi caracterizado pela hegemonia do pensamento ps-estruturalista ou ps-moderno, voltando seu interesse para autores como Lyotard, Foucault, Derrida e Baudrillard. Alm disso, assistimos a um surto de interesse pelas correntes tpicas da filosofia anglo-americana, como o neopragmatismo e a filosofia analtica. Mesmo Habermas, excelente promessa de continuao da terceira gerao da Escola de Frankfurt, parece ter abandonado, na atualidade, os pressupostos bsicos da teoria crtica da sociedade, procurando nas vertentes tericas anglo-americanas um caminho filosfico prprio. Marcuse no tem sido considerado nesses novos debates tericos, principalmente os relativos ao pensamento moderno e ps-moderno. Segundo Kellner (MARCUSE, 1999b, Prefcio, p. 17), isto ocorre porque:

    Ao contrrio de Adorno, Marcuse no previu os ataques ps-modernos razo e ao Iluminismo e sua dialtica no era negativa. Em vez disso, Marcuse adotava o projeto de reconstruir a razo e de postular alternativas utpicas sociedade existente uma imaginao dialtica que foi relegada em uma era que rejeita o pensamento revolucionrio e vises grandiosas de libertao e reconstruo social.

    Entendemos ser importante a retomada da teoria crtica de Marcuse, na medida em que ela pode nos fornecer instrumentos conceituais que continuam a ser relevantes para a teoria social e a poltica contemporneas. No campo especfico da teoria da sociedade, Marcuse nos legou perspectivas filosficas sobre as formas de dominao e de libertao, um mtodo crtico de anlise da sociedade contempornea e apontou possibilidades utpicas de transformao

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 176

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    social. Seu pensamento procura retomar e superar as lacunas do marxismo ortodoxo e da prpria teoria crtica original. Alm disso, representa uma anlise terica e prtica extremamente fecunda, que se coloca como alternativa s correntes atualmente valorizadas da teoria ps-moderna. A concepo de emancipao de Marcuse, entendida como pleno desenvolvimento do indivduo numa sociedade no-repressiva, diferencia sua obra e nos proporciona uma instncia crtica sobre as formas de dominao presentes na sociedade contempornea. Sua teoria crtica da sociedade se apresenta como extremamente til na atual conjuntura de hegemonia do pensamento conservador. Em sua obra, Marcuse mostrou como a cincia, a tecnologia e a prpria teoria possuem uma dimenso poltica e produziu um conjunto de anlises ideolgicas e polticas acerca de muitas tendncias de dominao na sociedade e na cultura, nunca abdicando de lutar por suas idias, no apenas no campo da teoria, mas tambm no campo da prtica poltica. Como observa Habermas (apud BERNSTEIN, 1998, p. 67), Marcuse evitou cair no ceticismo absoluto, na pura negatividade, buscando sempre apontar alternativas tericas e polticas para o futuro:

    Embora, certamente, Marcuse no fosse um pensador afirmativo, ele foi no obstante o mais afirmativo entre aqueles que elogiavam a negatividade. Com ele, o pensamento negativo manteve a confiana dialtica na negao determinada, no descobrimento de alternativas positivas. Marcuse, ao contrrio de Adorno, no se limitou apenas a cercar o inefvel; ele fez apelo a alternativas futuras.

    Acreditamos que Marcuse ultrapassa as limitaes de muitas correntes atuais da filosofia e da teoria social e que seu trabalho proporciona um ponto de vista mais crtico sobre as tendncias tericas e polticas contemporneas. Em particular, ele promove articulaes entre filosofia, teoria social e poltica, e crtica da cultura e da ideologia que enriquecem a nossa compreenso dos fenmenos que caracterizam o capitalismo global. Enquanto no mbito acadmico ainda persistem fortes divises e especializaes entre as diversas disciplinas, Marcuse seguindo a tendncia original da teoria crtica fornece uma viso interdisciplinar que vincula a filosofia com anlises concretas da sociedade, da poltica e da cultura do nosso tempo. Esta abordagem dialtica assegura filosofia uma importante funo crtica nos discursos tericos contemporneos. Mantendo sua fidelidade ao pensamento de Marx, Marcuse sempre se preocupou em analisar as novas condies da sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que denunciava os descaminhos do socialismo real. A filosofia e a teoria social contemporneas podem extrair do pensamento de Marcuse importantes instrumentos para a anlise das

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 177

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    transformaes do capitalismo e da emergncia do novo sistema econmico e poltico global. Para Marcuse teoria social teoria histrica (1982, p. 15), portanto, ela deve teorizar sobre os fenmenos mais significativos do presente e sobre as transformaes pelas quais vem passando a formao social capitalista. No momento em que diversos tericos ps-modernos partem do pressuposto de uma ruptura histrica e declaram, inclusive, o fim do marxismo e da economia poltica, em nosso entender eles falham na anlise das mudanas econmicas, sociais e polticas que caracterizam o capitalismo em sua fase neoliberal ou global. Eles aumentam e radicalizam o fosso entre teoria e prtica, pensamento e histria, cultura e economia. Marcuse, ao contrrio, sempre ressaltou a importncia de analisar as diversas mudanas histricas do capitalismo e relacionar as transformaes sociais e culturais s transformaes econmicas. Consideramos especialmente relevantes, para a atualidade, as anlises de Marcuse sobre o papel da tecnologia como forma de controle social. O determinismo tecnolgico embutido no discurso hegemnico da globalizao um dos recursos mais poderosos, na atualidade, para a aceitao ideolgica da irreversibilidade do domnio mundial do capital. Outro aspecto central da obra de Marcuse que pode iluminar o presente sua anlise da fuso entre a economia, a poltica e a cultura na sociedade unidimensional. O processo de globalizao neoliberal em curso tem promovido, no apenas uma simples fuso, mas a subordinao da poltica e da cultura economia, na medida em que tudo e todos tm que se submeter ditadura do mercado como fora suprema da vida em sociedade. O carter totalitrio das democracias liberais finalmente se explicita atravs de seu reducionismo econmico, isto , do esvaziamento da dimenso poltica e da homogeneizao cultural, promovendo a primazia do mercado nas relaes sociais. A crtica da ideologia de Marcuse, por sua vez, essencial para a denncia e o combate ao domnio hegemnico das teorias ps-modernas que, ao fazerem a crtica radical da racionalidade moderna, no distinguem a razo instrumental da razo crtica e, dessa forma, colaboram para o ataque conservador ao nico instrumento que pode permitir pensar a utopia e a emancipao. Enquanto algumas dessas tendncias de pensamento, resvalando muitas vezes no irracionalismo, tm renunciado a uma anlise crtica e poltica do sistema vigente, Marcuse sempre se esforou por vincular sua teoria crtica da sociedade com os movimentos sociais e polticos que lutam contra as tendncias totalitrias da sociedade capitalista. Dessa forma, acreditamos que o pensamento de Marcuse fornece instrumentos e estmulos fundamentais, tanto para a filosofia quanto para a teoria social e poltica contempornea, em sua tarefa irrecusvel de apontar alternativas histricas ao sistema econmico e social dominante.

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 178

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    Referncias Bibliogrficas BRONNER, S. E. Da teoria crtica e seus tericos. Campinas, SP: Papirus, 1997. HABERMAS, J. Psychic thermidor and the rebirth of rebellious subjectivity. In: BERNSTEIN, R. (Ed.). Habermas and Modernity. Cambridge: The MIT Press, 1985. HORKHEIMER, M. Eclpse da razo. So Paulo: Centauro, 2000. KURZ, R. O colapso da modernizao: da derrocada do socialismo de caserna crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. LOUREIRO, I. (Org.). Herbert Marcuse: a grande recusa hoje. Petrpolis, RJ: Vozes, 1999. MARCUSE, H. Contra-revoluo e revolta. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. ______. A Ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. ______. Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, vols. I e II, 1997. ______. Eros e civilizao: uma interpretao filosfica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Editora LTC, 1999a. ______. Tecnologia, guerra e fascismo. So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1999b. ROUANET, S. P. Teoria crtica e psicanlise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. WOLFF, R. P.; MOORE JR., B.; MARCUSE, H. Crtica da tolerncia pura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. ZIZEK, S. Elogio da intolerncia. Lisboa: Relgio Dgua, 2006. Endereo para correspondncia Luiz Antonio da Silva Peixoto Rua Dr. Jos Barbosa n 110 / apto. 301, Bairro So Mateus, CEP 36025-270, Juiz de Fora MG, Brasil Endereo eletrnico: [email protected] Recebido em: 15/03/2010 Aceito para publicao em: 19/04/2010 Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald e Jorge Coelho Soares Notas *Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ; Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF, Juiz de Fora, MG, Brasil 1Para uma anlise mais recente da identidade estrutural entre os sistemas produtivos dos pases socialistas e dos pases capitalistas. Cf. Kurz, Robert, O

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 179

  • Luiz Antonio da Silva Peixoto Marcuse: cultura, ideologia

    Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 156-180, 2011. 180

    colapso da modernizao: da derrocada do socialismo de caserna crise da economia mundial, 1993. 2Segundo Stephen Bronner, apesar de seu apoio explcito ao movimento estudantil, Marcuse manteve uma posio bastante crtica frente a ele: Marcuse desconfiava do populismo do movimento, de suas tendncias irracionalistas, e no tinha muito o que fazer com o rock e a cultura popular. Sempre foi altamente crtico da libertao sexual e rejeitava os que acreditavam na possibilidade de fundir a arte com a realidade tal como ela existe. Isso, segundo ele achava, s resultaria em barbrie no auge da civilizao. Ao contrrio de muitos de seus ex-colegas do Instituto, porm, ele nunca retirou seu apoio ao movimento. Cf. Bronner, Stephen E. Da teoria crtica e seus tericos, 1997, p. 306.