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  • 8/16/2019 Passo Atras

    1/1

    LEANDROKARNAL É HISTORIADOR E PROFESSOR

    DE HISTÓRIA CULTURAL DA UNICAMP

    CARAS&BOCAS

    “Oquemaisdóiéainjustiça.Posso ter cometido erros,mas jamais cometi crimes”

    “Ficou estranho um ministério semmulheres, sem representantes dasminorias e de movimentos sociais”

    PauloSérgioPinheiro

    Ogovernofederalinterinoinstalouummi-nistério de apenas homens brancos comadivisa“OrdemeProgresso”,queencer-

    rao quehá demaisconservadornopensamentopolíticobrasileiro.Seriabomalguémdizeraessegoverno queestamosem 2016,e nãoem 1889.

    O seuprimeiro atofoimandarparao espaçoaciência, a cultura e os direitos humanos. Nessaárea, extinguiu as secretarias da Igualdade Ra-cial,das Mulherese a dosDireitosHumanos.As-sim fazendo o governo interino revela uma ses-quipedalignorânciaem duasvertentes.Primeironaesferadodireitointernacionale,emsegundo,quantoàpolíticadeEstadodedireitoshumanos,relegando-aaumadivisãozinhadeCidadanianoMinistérioda Justiça.

    Depois da Declaração Universal dos DireitosHumanos, em 1948, e a partir dos dois pactosinternacionais de direitos civis, políticos e cul-turais e aquele dos direitos econômicos e so-ciais,progressivamenteforamreconhecidososdireitosdascrianças,das mulheres, dosindíge-nas,dosmigrantes,dosidososedetemascomoa tortura, as execuçõessumárias pelas polícias,a pedofilia,a homofobia.O conceitode cidada-niaqueogovernoprovisórioresolveuenfiarno

    Ministério da Justiça não dá absolutamenteconta dessa complexidade que a garantia dosdireitos humanos assumiu na segunda metadedo século 20.

    Por suavez,a decisão daextinçãodas secreta-

    rias de Estado põe abaixo a continuidade, acimados partidos políticos, da política de Estado dedireitos humanos no Brasil. Pode-se dizer quetodos os governos depois da volta ao

    governocivilem1985contribuíram,ca-daumàsuamaneira,paraapromoçãoeproteçãodesses direitos.

    Sarney na sua ida à Assembleia daONUassinouaconvençãodatorturaeo Pacto Internacional de Direito Hu-manos. Collor enviou uma circularaos postos diplomáticos brasileirosobrigando-os a responder às cobran-çasdasorganizaçõesdedireitoshuma-nose,datribunadaONU,afirmouquea soberania nacional não pode ser oescudode proteção dasviolaçõesdes-ses direitos no Brasil. Itamar formu-loucomasociedadecivilaagendabra-sileira para a Conferência Mundial deDireitos Humanos em Viena em 1993,naqualoBrasilteveumpapelprotago-nista com a presidência do comitê deredação da declaração e programa de

    ação de Viena.Fernando Henrique cria a secretariade Estado de direitos humanos, paradarmaisvisibilidadeaeles,comoregis-traemseu DiáriosdaPresidência.Foram

    preparados os Programas Nacionais de DireitosHumanos (PNDH1), comênfase nosdireitosci- vis e políticos, e o PNDH 2, com ênfase nos direi-

    toseconômicosesociais.Pelaprimeira

     vez na República foi criado um progra-maeorganismodecombateaotrabalhoescravo. Foi reconhecida a competên-ciadaCorteInteramericanadeDireitosHumanos,quepermitiuquemaistardefosseexaradaasentençasobreasopera-çõesdeextermíniodaguerrilhadoAra-guaiapela ditaduramilitar.

    LulatransformouasecretariadeEs-tado em Secretaria Especial da Presi-dênciadaRepúblicaecriouassecreta-rias especiais também na presidênciadaspolíticas da mulher e da igualdaderacial. Preparou o PNDH 3, alargandonacionalmenteasbasesdasuaelabora-çãonosEstadosdaFederação,inusita-damente publicando as duas introdu-ções de Fernando Henrique aos doisPNDH anteriores. Apesar de enormeresistência, propôs e sancionou a lei

    contra o castigo corporal das criançase enviou ao Congresso um projeto delei criando a Comissão Nacional da Verdade, sobre os c rimes da ditaduramilitar. A presidenta Dilma Rousseff 

    foi na mesma direção. Por convocação de seugoverno, todos ministros e secretáriosde Esta-do de Direitos Humanos se mobilizaram paradefender a aprovação da lei sobre a ComissãoNacional da Verdade no Congresso Nacional.Instalou a Comissão Nacional da Verdade, aqualgarantiutodoo apoio semjamaisfazerne-nhumainterferêncianosseustrabalhos,somen-te tomandoconhecimentodo relatório quandoestava impresso.

     Afinal,q ualo impacto dessa política de Estadode direitos humanos? Essasfrestas abertas pelomais alto escalão do governo federal, especial-menteapartirde1995,fizeramentrarnaspolíti-casdo governofederaldireitos e temas nadefe-sadaquelestradicionalmenteexcluídos,queou-trossimjamais teriampodido ter sidopromovi-dos.Tortura,racismo,homofobia,execuçõessu-máriaspelas polícias militares, violência contraamulher,trabalhadoresescravos,portadoresdedeficiência,federalizaçãodoscrimesdedireitoshumanos, programas de proteção às vítimas,passarama seralvosde políticaspublicas dega-rantia e prevenção. Enfim, uma infinidade depautasquenuncativeramespaçonemnaditadu-ramilitarnemnoautoritarismosocialmenteim-plantado que prevalece na democracia.

    Essa liquidação da política de Estado e dosmecanismos nela construídos corresponde porsuavezaosprojetosdeleidedesmontedaconsti-tucionalidadede1988,comoadestruiçãodoEs-tatuto do Desarmamento, a redução da idadelaboral e da maioridade penal, o cerceamento

    dos direitos das mulheres, o enfraquecimentoda definição de trabalho escravo. Não esqueça-mos a já sancionada lei antiterrorismo, abrindocaminhoparaacriminalizaçãodosmovimentossociais,quecertamenteessegovernonãohesita-rá em usar,se levarmos em conta o novo minis-tro da Justiça, que classifica protestos popula-res como“guerrilhas” (sic).

    O desaparecimento das secretarias de direi-tos humanos convidaa um prognósticoprofun-damentealarmanteemrelaçãoatodosesseste-mas,poisvaiacarretarnadestruiçãodeestrutu-rasemecanismosconstruídasaduraspenas,emparceriacomasociedadecivil,durantetodososgovernos democráticos para implementaçãodos direitos dos pobrese excluídos.

    Quantoaosdireitoshumanos,comessegover-noextremamenteconservadorqueoraaparece,nunca no Brasil foi tão atual o ditado de que opior aindaestá porvir.

    “A Lava Jato tornou-sereferência e deveter proteção”

    CRISTOVAM BUARQUE, senador(PPS-DF),comentando no Twitterosministériosde Temer

    MICHELTEMER, presidente interino da República,em seuprimeiro discurso no cargo.Sete dosministros queescolheu sãoalvos da LavaJato

    PAULOSÉRGIOPINHEIRO, EX-MINISTRO DA

    SECRETARIA DE ESTADO DE DIREITOS HUMANOS

    DO GOVERNO FHC, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO

    DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP

    LeandroKarnal 

    EscrevocomoBrasiljásobnovaadministra-

    ção. Crônica de uma morte longamenteanunciada, a presidente Dilma foi afasta-da do cargo e o vice, Michel Temer, assumiu ocargomáximodo ExecutivoFederal.

     Vices são fundamentaisno Brasil.A históriadaRepública tem tantos vices que seria prudentecolocar em primeiro plano, nas próximas elei-ções, as ideias e a biografia do eventualsubstituto.

    Deodorofoinossoprimeiropresiden-te, mas renunciou meses após ter sidoeleito. Seu vice, Floriano Peixoto, trou- xe energia e ideologia ao cargo, e é cha-madode “consolidadorda República”.

    Nossoprimeiropresidentecivil,Pru-dente de Morais, tinha saúde frágil e o vice, o médic o Manuel Vitorino Perei-ra,teveoportunidadedesubstituí-lo.A morte do presidente Afonso Pena, em1909, levou o vice Nilo Peçanha ao po-

    der. A gripe espanhola levou o eleitoRodriguesAlveseseuvice,DelfimMo-reira, assumiu o poder entre 1918 e1919.

    O assassinato de um vice, João Pes-soa,em1930,foioestopimdeummovi-mentoquelevouGetúlioVargasaopo-der. Sem vice ao subir, Getúlio caiusem vice em 1945, levando ao poder opresidentedoSTF,JoséLinhares. Ovi-ceCaféFilhoassumiuquandodosuicí-diodeVargas,em1954,sendooprimei-ro protestante a assumir a PresidênciadoBrasil.Outrovice,JoãoGoulart,tor-nou-se presidente em 1961, com a renúncia deJânio Quadros. O vice Pedro Aleixo foi impedi-do de assumir quando o marechal Costa e Silvateve um problema de saúde. Daqui em diante amemóriademuitagenteajuda:desdearedemo-cratização, três vices (Sarney, Itamar e Temer)tornaram-se presidentes.

    Ostrêsúltimosapresentamemcomumserem

    membros do PMDB. Partido surgido com o AtoInstitucional número 2 (outubro de 1965) quedissolveuopluripartidarismoecriouMDBeARE-

    NA – uma oposição confiável e um partido dasituação.Curiosamente, nasjustificativasparaoato institucional, os militares usaram um argu-mento que, de alguma forma, foi repetido pormuitaspessoas nasvotações daCâmara e doSe-nadorecentes. Dizia o texto: “A Revoluçãoé ummovimentoqueveiodainspiraçãodopovobrasi-

    leiro para atender às suas aspiraçõesmaislegítimas:erradicarumasituaçãoeum Governo que afundavam o País nacorrupçãoe na subversão.”

    É umacaracterísticaquase universaldos movimentos políticos invocaremque falam em nome do povo e não deinteressespartidáriosoupessoais.Des-dequeoconceitopovoentrounovoca- bulário político do Ocidente, com a Re- volução Francesa, ele tem sido usadoparatudo,menosparaosinteressesdopovo propriamente ditos. O nome po-

     vo sempre foi sagrado, mas o povo realsemprefoi alvo de gás de pimenta.OMDBvirouPMDBecontinuousen-

    do umafrente ampla, sem posição cla-rasobreamaioriadasquestões.Acimadetudo,opartidoviroupeçaestratégi-ca. Por quê? Ele é suficientemente va-riadoeamploparapoderestarassocia-doaqualquerprojetopolíticomaiscla-ro. Pode estar ao lado de um políticotradicional como Tancredo Neves ouao lado de um emergente da políticacomoCollor.Tambémnãofazmáfigu-raaoladodeumex-operáriosocialista

    como Lula. Não existe contradição em termosporque não existem termos no PMDB. Não há negaçãodevaloresporqueissoimplicariaaexis-tência deles.

    Eventualmente,críticos do governoFHC po-demlevantarpontos e medidasque contrariamatradiçãosociológicadoex-presidenteouaale-

    gadasocial-democraciadoseupartido.Dames-

    ma forma, inimigos da era Lula-Dilma podemdemonstrarqueomercadofinanceirofoibenefi-ciado de forma estranha para a orientação es-querdistadeambos.Esqueçamoqueescrevioudeletem quem eu fui são frases inerentes aoexercício do poder real no Brasil. Porém, seriainjusto alegar qualquer incoerência com o

    PMDB.Incoerênciaemrelaçãoaqualprincípio?O PMDBfoi convidadopara essaschapaselei-torais não pelos valores, mas pela sua presençano legislativo federal e nas prefeituras, pela suaimensa atomização e maleabilidade. Sei exata-menteoquepensamosdeputadosBolsonaroouJean Wyllys. E umdeputadodo PMDB?

    O presidente da República em exercício, Mi-chelTemer,anunciouqueconstituiriaum minis-tériodenotáveisecomcortesnoabsurdonúme-rodaquelaesplanada.Retrocedeunasduasdeci-sões.Lógica da Realpolitik: não é o idealismodatransformaçãoquemarcaaaçãonemdeTemerenemdo PMDB,mas dajá gastaideiado príncipedeSalinade Lampedusa, damudançasuperficialparagarantira manutençãoestrutural.Dilmale- vou tempo para entender que o cão de guardafurioso ajuda o dono, desde que muito bem ali-mentado.

    O curioso é que o PMDB foi escolhido por re-presentar essa segurança. Sarney era o líder do

    partidoqueapoiouaditaduraeseunome acalma-

    riaconservadoressobreasintençõesdaNovaRe-pública. Itamar Franco era o contrapeso à açãocoruscante de Collor. Temer cumpriu o mesmopapel.OPMDBgarantiaablindagemdogovernoeaquaseautonomiabonapartistaquemarcaBra-síliaemrelaçãoànação.

    O poder dosbastidores, o conchavode sacris-

    tia,asreuniõesquedecidemtudoantesdelevaraquestãojáacordadaparaoplenárioforamesãoasmarcas dos políticosprofissionais. A políticaas-simconcebidasó entende valores como“clamordas ruas”, “respeito à Constituição”, “bandeiradaética”ououtraqualquercomoóleoaserusadopara lubrificar as engrenagens do poder. Demo-craciaepovosãofundamentais,desdeque,claro,não contrariem o objetivo prático e imediato dointeresse político.

    Masháumriscoempassardeviceatitular.Éoriscoinerenteatodaamantequedesejaserespo-sa.Avidaalternativatinhaquasetodososbenefí-cios e pouca exposição. Agora, a vidraça está expostaaosoleaoalcancedosestilingues.Pode-ríamos inverter a frase de Jesus no Calvário:“Pai, eles podem ser perdoados? Não sei, maselessabemexatamenteoque fazem”. Nãoduvi-de disso, leitor!

    MAIO

    O Ministério

    das Mulheres,

    da Igualdade

    Raciale dos

    Direitos

    Humanos,

    criadopara

    garantir

    direitosde

    minorias, foi

    extinto pelo

    governointeri-

    node Temer.

    Os temas serão

    debatidosno

    novo ‘Ministério

    da Justiça

    e Cidadania’.

    12

    MAIO

    A extinção de secretarias quedefendem interesses das minoriaspõe abaixo em uma canetada umapolítica de Estado de direitoshumanos que levou décadas paraser construída, acima de questõespartidárias, diz cientista político

    DILMA ROUSSEFF, presidente afastada da República,em pronunciamentoapós decisãodo Senado quea tirado cargo durante pelomenos180 dias

    12

    Michel Temer

    assumiu a

    Presidência da

    República,

    depois do

    afastamento

    de Dilma

    Rousseffpelo Senado

    Federal.

    Em cerimônia

    à tarde,

    Temer deu

    posse aos 23

    ministros do

    novo governo,

    incluindo

    três membros

    do PMDB.

    MIGUEL SCHINCARIOL/AFP

    DIDASAMPAIO/ESTADÃO

    CHEIOSDEFOME

    Fogo. Atocontra impeachment emSão Paulo,na terça, queministrodefiniu como guerrilha

    PASSO ATRÁS

    Monotonia. Temerdáposse aosministros, todoshomense todosbrancos

    Que ninguém acuse o PMDB de incoerência e contradição. Paranegar valores é preciso primeiro que eles existam, diz historiador

    %HermesFil eInfo:E- 2:20160515:

    E2   Aliás   DOMINGO, 15 DE MAIO DE 2016 O ESTADO DE S. PAULO