teologia da libertação: obra de deus ou do diabo?

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O O b b r r a a d d e e D D e e u u s s o o u u d d o o d d i i a a b b o o ? ? Carlos César dos Santos * * Copyright© 2007 Carlos César dos Santos: presbítero e assessor das CEBs da Arquidiocese de Juiz de Fora. Cx. Postal 491 / 36001-970 Juiz de Fora MG / Home Page: www.carlosonline.net .

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Há quem, apoiado nas teses da globalização e do capitalismo neoliberal, tenha decretado a morte da TdL (teologia da libertação) e, com ela, a das CEBs (comunidades eclesiais de base) e da opção pelos pobres.Aproveitando o debate suscitado pela Conferência de Aparecida em torno desses temas que desafiam o cristianismo na América Latina e no Caribe, o presente trabalho representa a tentativa de fundamentar biblicamente e reconstituir historicamente, a partir do Vaticano II (1962-1965), a tradição latino-americana e caribenha consagrada em Medellím (1968).

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Page 1: Teologia da Libertação: obra de Deus ou do diabo?

OObbrr aa ddee DDeeuuss oouu ddoo ddiiaabboo??

Carlos César dos Santos**

* Copyright© 2007 Carlos César dos Santos: presbítero e assessor das CEBs da Arquidiocese de Juiz de Fora. Cx. Postal 491 / 36001-970 Juiz de Fora MG / Home Page: www.carlosonline.net.

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AAggrraaddeecciimmeennttoo

Para não correr o risco de sermos injustos, não citaremos aqui os

muitos nomes que colaboraram para que pudéssemos levar a termo esta nossa paixão.

Eles e elas, porém, conhecem, tanto quanto eu, o peso de sua

presença, da amizade fraterna que nos une, de suas opiniões, sugestões e, sobretudo, seu estímulo que encorajou e fortaleceu nossa persuasão.

Por isso mesmo, sabem que, na verdade, o sentimento de

reconhecimento e gratidão é comum a todos nós, nesta obra que, embora sob total responsabilidade de quem a assina, foi produzida em mutirão.

Juiz de Fora, 25 de setembro de 2007

Carlos C. Santos

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“Conheço sua tribulação e sua pobreza. Mas você é rico... Não tenha medo do sofrimento que vai chegar... Será para vocês uma provação... Seja fiel até à morte. Eu lhe darei em prêmio a coroa da vida. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas”. (Ap 2,9.10.11)

“Esforço-me para descobrir como dar um sinal aos meus companheiros (...), como dizer a tempo uma simples palavra, uma senha, como fazem os conspiradores: unamo-nos e mantenhamo-nos estreitamente ligados, concentremos nossos corações, criemos um único cérebro e coração para a Terra, demos um significado humano ao combate sobre-humano”. (Nikos Kazantzákis)

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Dedico este trabalho aos Pobres, aos Solidários da sua Causa,

às Comunidades Eclesiais de Base e aos Mártires da Caminhada.

Eles e elas nos ensinam que a mensagem cristã, longe de se reduzir a movimento de Igreja,

é a Igreja em movimento.

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SSuummáárriioo

Apresentação - Dom Aloísio Cardeal Lorscheider 1. Nos horizontes de Aparecida: caminhos e descaminhos 2. TdL - Teologia da Libertação: capricho humano ou proposta divina?

2.1. Primeiro Testamento: Javé é o Deus da Libertação 2.2. Segundo Testamento: Jesus é o Grande Teólogo... da Libertação! 2.3. Jesus e os pobres 2.4. Jesus e os ricos 2.5. A exigência de conversão é para todos 2.6. Atos: “repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um” (2,45) 2.7. O apóstolo Paulo: “carreguem o peso uns dos outros” (Gl 6,2) 2.8. O desafio do seguimento: “a fé sem obras é cadáver” (Tg 2,26) 2.9. Gestão de um novo tempo: a profecia velada e desvelada

3. O Concílio Ecumênico Vaticano II: Nova luz brilhou!

3.1. O Espírito abre caminhos 3.2. A revolução conciliar

4. O estatuto dos Pobres em Medellín e Puebla

4.1. A Herança de Medellín 4.2. A opção pela justiça e libertação 4.3. O jardim floresceu 4.4. O resgate da credibilidade 4.5. Pastores e Profetas 4.6. Um “casamento feliz” 4.7. Puebla: continuidade descontinuada? 4.8. Santo Domingo: “novo espetáculo em novo palco”

5. Mãe Negra, da alegria e da esperança, ensina-nos a caminhar!

5.1. Aparecida, “Mãe dos pobres sem mãe” 5.2. Aparecida no contexto de um mundo em metamorfose 5.3. O salto de qualidade: “Examinem tudo e fiquem com o que é bom” (1Ts 5,21) 5.4. Aparecida e o atual panorama latino-americano

5.4.1. A crise, mãe de novos tempos 5.4.2. “Uma andorinha só não faz verão”

6. E a Teologia da Libertação: obra de Deus ou do diabo?

6.1. Visibilidade: critério de fidelidade? 6.2. Da “teologia” da libertação à práxis libertadora 6.3. Fundamentalismos têm algum fundamento? 6.4. “Deus caritas et liberationis est”

7. Uma questão provocadora: Quem tem medo da Teologia da Libertação? 8. Na ante-sala de Aparecida

8.1. “O Reino continua” - Entrevista com D. Pedro Casaldáliga

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8.2. Memória e compromisso: O Pacto das Catacumbas 9. A Conferência de Aparecida no conflito das interpretações

9.1. O tráfico de influências 9.1.1. “A Assembléia começa antes da Assembléia” 9.1.2. Fatores críticos e destoantes 9.1.3. O clima da V Conferência

9.1.3.1. A conexão com a “aldeia global” 9.1.3.2. O ambiente de santuário 9.1.3.3. A representatividade 9.1.3.4. As surpresas do Espírito

9.1.3.4.1. O Seminário de Teologia 9.1.3.4.2. O Fórum de Participação 9.1.3.4.3. A Romaria das CEBs 9.1.3.4.4. A Tenda dos Mártires 9.1.3.4.5. A presença e assessoria de Ameríndia 9.1.3.4.6. O Discurso Inaugural do Papa

9.2. A usurpação de poder

9.2.1. As alterações do texto original 9.2.2. A reação da CNBB 9.2.3. Manifestações e protestos 9.2.4. “O jeito do cachimbo deixa a boca torta” 9.2.5. “Não entristeçam o Espírito Santo”

9.3. O DA - Documento de Aparecida: O Espírito Divino sopra mais forte que os espíritos de porco

9.3.1. O fio condutor 9.3.2. Visão de conjunto 9.3.3. Esquema geral do DA 9.3.4. As linhas-mestras

9.3.4.1 “Encontrei Jesus!” 9.3.4.2. A perspectiva “reinocêntrica” 9.3.4.3. Vida nova e plena 9.3.4.4. Povo de Deus em missão 9.3.4.5. Missão permanente 9.3.4.6. Confirmação do caminho percorrido

9.3.4.6.1. Opção preferencial pelos Pobres 9.3.4.6.2. CEBs

9.3.4.7. Paróquia: “rede de comunidades” 9.3.4.8. Os Mártires da Caminhada 9.3.4.9. O protagonismo feminino 9.3.4.10. Os que escolhem outros caminhos

10. Conclusão: Lições de um velho papa e um jovem teólogo Índice

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AApprreesseennttaaççããoo

O Carlos César dos Santos, presbítero da Arquidiocese de Juiz de Fora,

apresenta um resumo e uma defesa da Teologia da Libertação, da opção pelos pobres e das Comunidades Eclesiais de Base. São temas intimamente relacionados entre si.

A Teologia da Libertação parte da situação dos oprimidos que, reunindo-se em comunidades, procuram juntos adquirir a verdadeira fraternidade e igualdade que lhes compete. A Teologia da Libertação não tem nada de marxista ou marxistinizante. Ela é um esforço teológico para uma teologia realista, com os pés no chão, para estimular os cristãos a superarem, na luz da fé, amparados pela Palavra de Deus, uma situação pecaminosa. Trata-se de sair da opressão dependente que escraviza a pessoa humana a um sistema liberal do lucro a qualquer custo. Por isso é uma teologia libertadora. É uma teologia que só faz medo ao neocapitalismo, que não respeita a pessoa humana. A característica da Teologia da Libertação é precisamente o respeito pela pessoa humana. É uma teologia profundamente humanística. Em vez de persegui-la e suspeitar do seu valor, é, antes, necessário promovê-la ao máximo. É a teologia da América Latina e de todos os povos injustamente oprimidos e dependentes. É preciso defendê-la e exaltá-la de todos os modos. Por isso, a Teologia da Libertação não morreu nem morrerá porque o ser humano não está morto, mas vive em Cristo Ressuscitado.

Parabéns ao Autor deste escrito! É uma defesa válida da Teologia da Libertação e, com ela, da opção pelos pobres e Comunidades Eclesiais de Base.

Aloísio Card. Lorscheider Arcebispo Emérito de Aparecida

Porto Alegre, 08 de maio de 2007

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11.. NNooss hhoorriizzoonntteess ddee AAppaarreecciiddaa:: ccaammiinnhhooss ee ddeessccaammiinnhhooss

Escrevo enquanto aquecemos os motores para a V Conferência do Episcopado Latino-

Americano e Caribenho,1 que acontece em Aparecida/SP (Brasil), de 13 a 31 de maio de 2007. A etapa de preparação – apesar das muitas dificuldades relacionadas à realidade,

distâncias, poder de mobilização e envolvimento, conteúdo e forma do documento de participação etc. –, no seu conjunto, pode ser avaliada como positiva, se levarmos em conta a considerável participação dos Leigos/as, Teólogos/as, Assessores/as, movimentos, pastorais, associações, comunidades etc., consagrando a legitimidade de uma Conferência que “começa antes de Aparecida. Na verdade ela já começou a acontecer quando o Povo de Deus começou a se reunir para prepará-la, para refletir, partilhar e encontrar novos caminhos que nos ajudem a ser mais fiéis ao seguimento de Jesus e, assim, servir à construção do seu Reino aqui, no Brasil, e em toda a América Latina”.2

Não obstante, nem tudo no caminho a ser percorrido são flores, e muitas são as vozes que,

às vésperas de Aparecida, se levantam imperiosas contra a TdL (Teologia da Libertação)3 e, por tabela, contra a sua concretização no campo da prática libertadora, como sejam as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e a Opção pelos Pobres.

Os que pretendem exorcizar estas instâncias libertadoras da Igreja, com fogo centrado

agora na TdL, apresentam argumentos mais ou menos conhecidos do público cristão mais informado: tende para a ideologia marxista; propõe uma cristologia em que o Jesus histórico “abafa” o Cristo da fé; opta por uma eclesiologia que enfatiza a organização e a luta dos pobres, em detrimento dos ricos, que passariam a ser os “excluídos”; contribui, mesmo que involuntariamente, para fomentar a luta e o ódio de classes; defende a primazia da ortopraxia sobre a ortodoxia; confunde as dimensões temporal e transcendente da experiência de fé etc. etc.

Neste processo, em meio às críticas que poderiam até ser positivas e colaborar

efetivamente na busca comum da verdade, que se expressa na capacidade de dialogar, no respeito recíproco, na abertura sem preconceitos ao diferente, o que temos assistido é o confronto ou conflito de idéias (doutrinas), em reações que surpreendem e até assustam ou porque ultrapassam os limites da razão, ou porque, em alguns casos, chegam às raias do fanatismo.

Diante deste contexto, aproveitando o ambiente oportuno da V Conferência que é o

resultado de um processo histórico desencadeado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, nosso trabalho se propõe não a falar, ou fazer um discurso sobre a TdL, mas deixar que a própria TdL fale de si ao longo da história. Por que preferimos optar por este caminho? A V Conferência traz no seu tema a proposta do seguimento de Jesus na América Latina de hoje: “Discípulos/as e 1 Uma boa resenha sobre as expectativas em torno da V Conferência pode ser encontrada em: AMERINDIA (Org.). Sinais de esperança. São Paulo: Paulinas. 2007. 2 D. EURICO DOS SANTOS VELOSO. Palavras de abertura do Encontro Arquidiocesano de CEBs, em preparação para a V Conferência do CELAM, 13-15 de abril de 2007, em Juiz de Fora-MG. 3 Será comum encontrar em alguns textos a sigla TL, que tem o mesmo significado.

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missionários/as de Jesus Cristo, para que Nele nossos Povos tenham Vida”, acompanhado do oportuno lema posposto por Bento XVI: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Um enunciado cristológico que fundamenta o ser e o agir missionário de cristãos e cristãs no mundo, onde a construção do Reino de Deus é permanente desafio. Para realizá-lo não basta boa vontade, ou “um zelo pouco esclarecido” (Rm 10,2), ou critérios meramente subjetivos. O enunciado explicitado no tema de Aparecida e a própria Conferência não podem ser vistos senão como conseqüência de uma Caminhada que tem história em nosso Continente e no conjunto da história da Igreja. Um processo que tem seu alicerce na Tradição, no que “nossos pais nos contaram”, que, partindo da Palavra, “fonte de todas as fontes”, chega a nossos dias, passando pelo Magistério, pelos documentos das Conferências Episcopais, pela palavra abalizada de Teólogos/as, e por todo o Povo de Deus que, conforme ensinou o Vaticano II, também é co-responsável pelo depositum fidei.

Se, portanto, queremos que a V Conferência seja a atualização e a inculturação da

mensagem cristã para a América Latina e o Caribe hoje, nada mais importante que retornar às fontes e buscar nelas a inspiração para responder à nossa pergunta de fundo: “a TdL é obra de Deus ou do diabo?”

Neste percurso, mesmo optando pela originalidade que queremos conferir ao presente

trabalho, recorreremos, vez por outra, a algumas de nossas posições firmadas em textos que já publicamos tanto na Internet, quanto em livros, revistas e jornais, no Brasil e/ou no exterior.

Por fim, nossa contribuição, longe de chegar a seus pés, mas humildemente aberta ao

espírito do diálogo e da co-responsabilidade eclesial e pastoral neste Kairós Latino-Americano e Caribenho, reporta-se à obra de Lucas, que abre assim sua narrativa:

“Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se passaram entre

nós. Elas começaram do que nos foi transmitido por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra. Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever para você uma narração bem ordenada, excelentíssimo Teófilo. Deste modo você poderá verificar a solidez dos ensinamentos que recebeu” (Lc 1,1-4).

Esta quer ser igualmente a perspectiva do que escrevemos: uma narração, na medida do

possível, bem ordenada, considerando todos e todas que nos precederam, bem como todos e todas que ainda caminham conosco, oferecendo-nos suas incontáveis, ricas e sólidas contribuições para retornarmos às fontes e aderir, cada vez mais plenamente, ao seguimento de Jesus, no tempo histórico que nos toca viver.

Nesta perspectiva redigimos o presente texto, pensando em Você, “excelentíssimo

Teófilo” que, etimologicamente, é “amigo/a de Deus”. Nossa esperança é que Você, vestindo a camisa desta etimologia, assuma com garra e coerência esta “amizade” com o Deus da Vida e, revestido/a do seu Espírito, o testemunhe, abraçando apaixonadamente a missão de construir o seu Reino, no Brasil, na América Latina, no Caribe, e “até os extremos da terra” (At 1,8).

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22.. TTddLL -- TTeeoollooggiiaa ddaa LLiibbeerrttaaççããoo:: ccaapprriicchhoo hhuummaannoo oouu pprrooppoossttaa ddiivviinnaa??

Realidades como a TdL,4 as CEBs, a Opção pelos Pobres, serão mesmo, assim tão

recentes? Sua origem se situará, de fato – como há quem acredite –, na década de 60, com a abertura provocada pelo Vaticano II? Serão mesmo seus primeiros e originais teólogos aqueles que começaram a escrever sobre elas e sistematizá-las? Para responder a estas e outras perguntas, com certeza, provocadoras, vamos recuar no tempo e recorrer à Tradição bíblica e teológica, que nos permitirá uma visão de conjunto sobre donde vem, por onde passa e aonde querem chegar estas instâncias libertárias da Igreja.

2.1. Primeiro Testamento: um Deus Libertador5 Por definir-se como a “articulação do grito do oprimido”, a TdL, p. ex., está estreitamente

ligada ao tema do pobre e da pobreza,6 que é da mais alta relevância não apenas nos discursos ou escritos dos teólogos, mas na tradição bíblica, onde, desde as origens, Deus se manifesta como amante e defensor da vida em todas as suas etapas, circunstâncias e dimensões e, por isso, parceiro na luta pela libertação dos pobres e oprimidos do seu povo:

“Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo...”7

Esta ação de Deus, Pai e Mãe,8 em favor do seu povo escravo de estruturas sociais

iníquas, expressas na injusta distribuição das riquezas, terá por objetivo a realização de um projeto que está no coração de Deus como utopia que deve encontrar lugar no coração da humanidade e de toda a sociedade: “Que entre vocês não haja nenhum pobre” (Dt 15,4).

Destarte, a luta contra a pobreza, com a finalidade de libertar os empobrecidos e

oprimidos, vítimas do sistema socioeconômico desigual e perverso, é drama que permeia todo o Primeiro Testamento. Aí está o movimento das mulheres que, já no Êxodo, se organiza para

4 Entre as obras que possibilitam conhecer e aprofundar o tema, estão as de: G. GUTIÉRREZ. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1979³; L. BOFF. Teologia do Cativeiro e da Libertação, Petrópolis: Vozes. 1980²; A. G. RUBIO. Teologia da Libertação: Política ou Profetismo? São Paulo: Loyola. 1977; C. BOFF. Teologia e Prática. A Teologia do Político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978; ID. Teologia Pé-no-chão. Petrópolis: Vozes, 1978². Como a teologia é também a reflexão inculturada que procura pensar e sistematizar a fé das comunidades afro, indígenas etc., conforme nos ensina a IV Conferência do CELAM, em Santo Domingo, uma boa referência é o trabalho de J. H. CONE. A black theology of liberation. NY: Orbis Book, Maryknoll, 19934. 5 Observe-se que até obras clássicas como as de VON RAD e FEUILLET que tratam do assunto já trazem esta perspectiva. 6 Um bom trabalho, com riqueza de conteúdo e dados históricos, é o de J. PIXLEY & C. BOFF. Opção pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1986. 7 Ex 3,7.8; cf. os poemas do Servo: Is 42, 1-7; 49,1-7; 52,13-53,12, que retratam a opção de Deus pelo Servo sofredor, identificado com os sofredores do povo eleito. 8 Expressão intuída por João Paulo I, com uma bela sistematização na obra de L. BOFF. O rosto materno de Deus. Petrópolis: Vozes, 20039.

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combater o sistema de morte (cf. 1,15ss); Rute, Judite, Éster, símbolos da luta pelo direito e justiça dos pobres e fracos – todas grandes “teólogas da libertação”! Os irmãos Macabeus, testemunho de coragem e resistência na defesa da lei que protege os pequenos; a literatura profética, que tem seu ponto alto, de um lado, na denúncia dos ricos opressores e dos reis cruéis, que exploram impiedosamente os pobres e a classe trabalhadora e, de outro, no anúncio do Dia do Senhor que, então, chegará e fará justiça a seu povo, porque o nome com que mais gosta de ser chamado é “nossa justiça” (Jr 23,6)...

Quem é que ao ouvir – com abertura de coração, largueza de mente e espírito de

conversão – Isaías, Jeremias, Amós, Oséias..., poderá negar que foram os grandes profetas e teólogos da libertação que Deus realiza em favor de seu povo?

Lugar especial na realização deste sonho de justiça e fraternidade ocupa a terra que não é

fruto nem de enriquecimento ilícito, nem de herança deixada pelos antepassados e, menos ainda, de um poder latifundiário que acumule e concentre, mas tão somente da bênção de Deus que, desde sempre, a oferece como dádiva a todos gratuita e indistintamente.9 Portanto, patrimônio comum da humanidade a terra é lugar onde todos deveriam poder viver com alegria, e dela tirar seu sustento: “uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (Ex 3,8). Projetos humanos – ou desumanos! – egoístas e ambiciosos, no entanto, contrariaram o Projeto original de Deus. Conseqüentemente, a luta pela superação do empobrecimento, da miséria e da fome, se travará, no mundo bíblico – como também em nossos dias –, no campo da luta pela terra, visto que “como habitat da humanidade (Gn 1,28; Sl 115,16 etc.), a terra é o palco da história da salvação”.10 Nele, um apelo permanente de conversão se dirige a todos e cada um/a de nós: transformar a “terra de Deus” em “terra de irmãos”, como já propôs uma das Campanhas da Fraternidade, reconstruindo o paraíso, na comunhão total com Deus, as criaturas, a natureza, povos e culturas:

Em nome do Pai de todos os Povos, Maíra de tudo, excelso Tupã. Em nome do Filho, Que a todos os homens nos faz ser irmãos. No sangue mesclado com todos os sangues. Em nome da Aliança da Libertação.

Em nome da Luz de toda Cultura. Em nome do Amor que está em todo amor. Em nome da Terra Sem Males, Perdida no lucro, ganhada na dor, Em nome da Morte vencida, Em nome da Vida, Cantamos, Senhor!11

No esforço para incluir os pobres e restituir-lhes a dignidade, salvaguardado o contexto

cultural em que se inscreve a história do povo de Israel, encontramos, na própria lei mosaica a preocupação em melhorar as condições de vida daqueles que são vítimas da fome e da miséria (cf. Ex 21,1-6; Lv 19,10; 23,22; 27,8; Dt 23,25; 24,19-22). Assim, no conjunto, Deus aparece como partidário e solidário de quem padece miséria e sofre, em conseqüência do empobrecimento (cf. Jo 5,15; Sl 72,12-15; Eclo 35,13-24). Assume a dor e a causa, motivando para a

9 Gn 1,28. Veja a densa obra de M. B. SOUZA. & J. L. CARAVIAS. Teologia da Terra. Petrópolis: Vozes, 1988. Cf. também: EQUIPO EXPRA. En busca de la Tierra sin Mal. Bogota: Indo-American Press Service, 1982. 10 A. van den BORN (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Petrópolis: Vozes, 1977², 1498. 11 http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/yvemaraei.htm.

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transformação, na construção do seu projeto que é fundamentalmente igualitário, participativo e inclusivo (cf. Is 5,8-25; Jr 23,5.7; Am 2,6.7; 3,10.15; 4,1.2).

Em síntese, poderíamos dizer que desde as origens, miséria, fome, pobreza, exclusão etc.

são o resultado do desequilíbrio que transformou a partilha em acúmulo e concentração das riquezas que são, em princípio e por vontade de Deus, destinadas a todos sem exceção e sem exclusão de ninguém. O sonho animado pelo Criador é que todos e todas vivam dignamente e ninguém passe penúria (cf. At 4,34.), cultivando sempre aquela sobriedade recordada por Provérbios:

“...não me dês riqueza, nem pobreza. Concede-me apenas o meu pedaço de pão, para que, saciado, eu não te renegue...ou então, reduzido à miséria, chegue a roubar e profanar o nome do meu Deus” (30,8.9).

2.2. Segundo Testamento: Jesus é o grande Teólogo... da Libertação!12 Jesus de Nazaré, o Mestre da Justiça (cf. Mt 3,15), faz uma nova leitura da história e

apresenta à humanidade um novo rosto de Deus (cf. Jo 14,8.9). Escreve sua teologia – que é da libertação! – no livro de sua própria vida, com destaque especial para os capítulos que se referem ao seu ministério público. Nasce pobre, vive pobre e morre pobre, sempre solidário, entre os pobres. Até na cruz, como gostava de lembrar D. Luciano Mendes, permanece fielmente solidário, morrendo no meio dos “dois ladrões” que partilhavam da mesma condenação. Diríamos hoje que Jesus “vira o sistema de cabeça pra baixo”: a começar pela vocação dos primeiros discípulos, seu chamado se dirige a pessoas pobres, excluídas, analfabetas, “primárias”, “desqualificadas”; freqüenta os lugares mais extravagantes e vai a festa de pobres (cf. Jo 2,1ss); não acata as convenções sociais e religiosas de sua sociedade hipócrita (cf. Lc 11,37ss); come, bebe e chama para o centro pecadores públicos, difamados e descartados pelo sistema (cf. Mt 9,1ss; Mc 3,1ss; 5,21ss; Lc 7,36ss; 19,1ss; Jo 8,1ss etc.), acolhendo-os e restituindo-lhes a paz e a alegria de viver. Na via inversa, porém, são contrastantes e conflitantes suas relações com as autoridades: chama Herodes de raposa (Lc 13,32); manda tomar cuidado com o fermento dos fariseus e de Herodes (cf. Mc 8,15); desautoriza a dominação intelectual dos doutores da lei e dos fariseus, que são “serpentes, raça de cobras venenosas” (Mt 23,33); usa o chicote contra quem só pensa em dinheiro e lucro (cf. Jo 2,14ss) e, para escândalo de muitos, declara, sem reservas, alto e em bom tom: “os cobradores de impostos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino do Céu” (Mt 21,31). O capítulo 23 de Mateus, p. ex., é a crítica mais contundente ao sistema de opressão, montado para escravizar o pobre, com a agravante de fazê-lo em nome da religião.

2.3. Jesus e os pobres Em toda esta ação missionária libertadora de Jesus, evangelizador do Pai, os pobres

(anawim)13 têm lugar de destaque, a tal ponto de já ter havido quem defendesse que com o irromper do evento Cristo na história, inaugurou-se a era da “promoção messiânica dos pobres”.14 12 No campo da cristologia é vastíssima a produção. Um trabalho que aprofunda muito apropriadamente a natureza humano-divina de Jesus, é o de R.E. BROWN. Jesús, Dios y Hombre. Santander: Sal Terrae, 1973. Em contexto latino-americano, veja-se, entre outros: J. SOBRINO. Cristología desde América Latina. México: CRT, 1977; ID. Jesús en América Latina. Su significado para la fe y la cristología. San Salvador: UCA, 1982; L. BOFF. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis: Vozes, 1972; B. FERRARO. A significação política e teológica da morte de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977; E. MORIN. Jesus e as estruturas de seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1984; J. COMBLIN. O Enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1974. 13 Na língua de Jesus, anawin são os “encurvados”, os “quebrados”, dos quais tudo foi roubado, inclusive o direito de se reerguer ou se reconstituir. 14 A. GELIN. Os pobres que Deus ama. São Paulo: Paulinas, 1973, 113-138.

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De fato, textos como o cântico de Maria (Lc 1,46-55), a parábola do rico epulão e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31), a oferta da viúva pobre (Mc 12,41-44 par), ou ainda o caráter solene atribuído à proclamação das bem-aventuranças (Mt 5,1ss; cf. Lc 6,20-26), revelam a opção clara, consciente, coerente e conseqüente de Jesus, o Grande Pobre, pelos Pobres de seu Povo.

E mais, a opção pelo seguimento de Jesus exige, necessariamente, a opção pelos pobres

porque eles “definem, com sua vida proibida e com sua morte ‘antes de tempo’, a verdade ou a mentira de uma Sociedade, de uma Igreja” (D. Pedro Casaldáliga), e é por isso que a eles o Senhor destinou o seu Reino (cf. Mt 11,4-6.25-26; Lc 4,18-21). Lucas o coloca de maneira magistral, quando contrapõe ao “felizes de vocês que agora têm fome...” (6,21) ao “ai de vocês os ricos!” (6,24) Uma sentença especialmente severa que servirá para iluminar e dar sentido a outros dois textos importantes da comunidade lucana, que se opõem pelas diferentes respostas ao apelo de conversão: o do homem rico (Lc 18,18-23), escravo dos bens materiais que possuía, e o de Zaqueu (Lc 19,1-10), rico porque era ladrão.

2.4. Jesus e os ricos O episódio do homem rico é símbolo característico daquele grupo social minoritário que

traz consigo uma mentalidade marcada pelo egoísmo e o apego às riquezas, ao lucro concentrado e ao acúmulo dos bens. Há quem tenha observado que este “fulano” nem sequer ganhou um nome no evangelho, pelo fato de estar em total desarmonia com a proposta de Jesus dirigida a todos, sem privilegiados – “Vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10). Na verdade, o homem rico queria e desejava a vida, só que apenas para si. Não era capaz de defender e partilhar da vida dos pobres. Quanto a Zaqueu, ao contrário, conhecido publicamente como ladrão, tem sua identidade preservada porque testemunha basicamente duas realidades interativas: por um lado, a mudança de mentalidade e conseqüente conversão (metanoia) para o projeto e o caminho apontado por Jesus e, por outro, a resposta que oferece a uma pergunta existencial que era dos discípulos e discípulas de outrora e, hoje, de muitos de nós: “Então, quem pode ser salvo?” (Lc 18,26), ou: Jesus teria vindo somente para os pobres? Ou ainda: Só os pobres se salvam? A reação de Zaqueu ao acolhimento e misericórdia de Jesus é a demonstração clara e objetiva de que também os ricos podem salvar-se, desde que disponibilizem seus bens em função da partilha e se convertam para os ideais do reino de Deus:15

2.5. A exigência de conversão é para todos A pregação de João Batista (cf. Mt 3,1-12), bem como o início da vida pública de Jesus

são marcadas por este forte apelo de conversão, em vista da proximidade do reino de Deus:

“O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,15).

A conversão exigida para acolher a boa notícia do reino, mais do que um simples

“arrepender-se” e “fazer penitência”, é convite para “uma reviravolta interna” que tem as suas conseqüências para todos os campos da ação humana. É uma nova forma da pregação profética da conversão, mas agora na perspectiva da iminência dos tempos messiânicos, exigindo de todos uma conversão interna radical.16 Neste sentido, na pregação de Jesus, primeiro destinatário da conversão é a pessoa, cada pessoa, que é chamada a fazer uma “ruptura” corajosa, livre e consciente (“entscheidung”, na expressão de Bultmann) com todos os esquemas de pecado e

15 Cf. A. van den BORN. Op. Cit., 293-294. 16 Cf. ID. Ibidem. 294.

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dominação para que, transformados, os corações ajam de maneira eficaz na mudança das estruturas sociais injustas que são hostis à manifestação do Reino. Só mulheres e homens novos, imbuídos de sentimentos de sensibilidade, ternura, compaixão, solidariedade e capacidade de partilhar o ser e o ter, poderão contribuir efetivamente para a construção de uma sociedade nova, justa e fraterna, onde o respeito pela dignidade e pela vida do irmão, da irmã, da natureza, do cosmo, seja a marca registrada do discípulo e discípula do Senhor.

2.6. Atos: "...repartiam o dinheiro entre todos, conforme e necessidade de

cada um" (At 2,45)17 Os primeiros retratos da Igreja primitiva (At 2,42-47; 4,32-37) – movida pelo Espírito que

ressuscitou Jesus e, por isso, gerador de vida nova, humana, digna e plena para todos sem exceção e sem exclusão –, revelam que os primeiros cristãos e cristãs não pouparam esforços para perseguir e refazer o caminho do Senhor no tempo que lhes tocou viver. Com criatividade e liberdade, foram capazes de adotar o projeto da inclusão. Assumiram e atualizaram, nas mais diversificadas circunstâncias sociais, culturais, políticas e religiosas, a ação libertadora de Jesus, no trabalho empenhado e na luta perseverante para reintegrar os marginalizados e fazê-los experimentar a força e a alegria que a Boa Notícia traz para todos: vida, e vida em abundância!

A feliz descoberta de “que Deus não faz diferença entre as pessoas” (At 10,34), será o

fundamento da nova relação estabelecida na comunidade, não mais baseada no egoísmo, na ganância ou no preconceito que excluem e dividem, mas no amor fraterno e na amizade, na solidariedade e na justiça, no diálogo e na comunhão, que mobilizam, motivam e sustentam um outro modus vivendi:

“Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um” (At 2,44.45).

Este testemunho de comunhão afetiva e efetiva é tão forte em Atos, que o seu redator

chega a concluir que, em conseqüência dele, “a Palavra de Deus crescia e se multiplicava” (12,24), enquanto “a Igreja vivia em paz em toda a Judéia, Galiléia e Samaria. Ela se edificava e progredia no temor do Senhor, e crescia em número com a ajuda do Espírito Santo” (9,31).

2.7. O apóstolo Paulo: "carreguem o peso uns dos outros” (Gl 6,2) Paulo, “apóstolo das nações”, também poderia ser cognominado o “apóstolo da

solidariedade” e, se alguém preferir, “teólogo da libertação!” Boa parte de sua atividade apostólica é dedicada à famosa coleta em benefício dos pobres da comunidade de Jerusalém (cf. Rm 15,15-27.31; 1Cor 16,1-3; 2Cor 8,1ss). Dois aspectos muito importantes iluminam nossa ação missionária, solidária, libertadora, com os que sofrem e, por isso mesmo, devem ser ressaltados nesta coleta:

a) Não se trata de uma coleta meramente assistencialista de ajuda aos pobres, mas, ao

contrário, para Paulo, o objetivo principal é o envolvimento, a motivação e a participação de todas as comunidades no projeto de solidariedade (cf. At 11,29.30) com os que padecem, revelando assim que, nesta ação solidária da Igreja, convertida ao modelo do bom samaritano (cf.

17 Um trabalho especial sobre as comunidades da “primeira hora”, que não temos notícia se foi traduzido para o português, é o de A. HAMMAN. La vie quotidienne des premiers chrétiens. Paris: Hachette, 1983³. Na mesma linha está o de: J. DRANE. A vida da Igreja Primitiva. São Paulo: Paulinas, 1985.

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Lc 10,30-37), é a própria mão poderosa do Senhor que deve chegar, em todos os tempos e lugares, para levantar os caídos e restituir dignidade e vida a todos quantos as perderam;

b) a iniciativa da coleta é mais “carregada” e ganha um caráter especial na comunidade de

Corinto que, por um lado, é a mais importante e rica e, por outro, a mais difícil e conflitiva do ponto de vista missionário e pastoral.18 Esta disparidade entre comunidade rica e comunidade pobre vai aparecer também no Apocalipse que contrapõe Esmirna (2,9) e Laodicéia (3,17), o que nos leva a concluir que era intenção clara do apóstolo, já aí, estimular e favorecer a comunhão e a solidariedade das igrejas de maior poder aquisitivo com as igrejas pobres.

2.8. O desafio do seguimento: "a fé sem obras é cadáver” (Tg 2,26) Sempre foi tranqüilo para a Tradição cristã reconhecer que no coração do anúncio de

Jesus de Nazaré está o mandamento novo: “amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 13,34; 15,12.17) que, na verdade, é a síntese do projeto de quem entregou toda a sua vida por amor (Jo 15,9). O Mestre e Senhor (Jo 13,13), que perseverou e foi fiel até o fim (Jo 19,28-30), entrega a todos os seus seguidores e seguidoras uma “carteira de identidade”: “Nisto vão reconhecer que vocês são os meus discípulos: se tiverem amor uns para com os outros” (Jo 13,35). A fé, portanto, está intimamente ligada à vida, e o amor deve ser traduzido em prática concreta que manifeste a misericórdia e a justiça de Deus, chegando a todos sem exceção. Foi assim com Cristo que escolheu e amou até mesmo Pedro que o negou, e Judas, o traidor.

Do que foi dito até aqui, parece que duas intuições podem ajudar a clarear todo este

processo que nos engaja para, no seguimento de Jesus, continuarmos sua ação libertadora no mundo:

a) A palavra de Deus, no seu conjunto, não nos autoriza marginalizar e excluir os ricos,

que, ao contrário, também devem ser alvo da nossa ação evangelizadora. O próprio Jesus e os discípulos contaram com o apoio de pessoas ricas convertidas e solidárias à Causa (cf. Lc 8,3; At 4,37). O grande desafio, porém, é trabalhar as consciências para a conversão ao projeto da partilha, com o objetivo de somar no projeto de construção do Reino que é vida em abundância para todos, e não apenas para alguns privilegiados.

b) Os pobres, do ponto de vista bíblico e da ação missionária de Jesus e dos primeiros

cristãos, serão sempre os nossos preferidos, porque são, também, os preferidos do amor e da ação misericordiosa do Pai. A nossa maneira de amá-los será sempre especial para evitar toda discriminação e preconceito, a exemplo do que nos ensina Tiago (cf. 2,1-9). Deste modo, em tudo, nosso projeto missionário, refazendo o caminho de Jesus e da Igreja primitiva, deve ter por finalidade última fazer com “que o irmão pobre se orgulhe de sua alta dignidade” (Tg 1,9).

2.9. Gestão de um novo tempo: profecia velada e desvelada O tempo que transcorre entre a ação missionária de Jesus e, posteriormente, da

comunidade primitiva, estendendo-se pelos três primeiros séculos do cristianismo, e o advento do Concílio Ecumênico Vaticano II, no século XX, também é marcado por uma preocupação, em muitos casos especial, com os pobres e a “reconstrução da Igreja dos Pobres” (S. Francisco de Assis).

18 Cf. A. van den BORN. Op. Cit., 280.

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Há nomes mais distantes como o de Irineu de Lião (130-202) que, ao perceber a distância que a Igreja vai tomando em relação ao seu líder carismático, Jesus, convoca as comunidades a retornarem ao “comunismo” dos primeiros cristãos; defende ainda a integridade do gênero humano com a máxima: “A glória de Deus é o homem de pé”; ou, Basílio de Cesaréia (329-379), também conhecido como o “bispo social” que, mergulhado nas grandes questões sociais do século IV, torna-se, aí, porta-voz e fiel defensor da causa dos pobres;19 ou, Ambrósio de Milão (340-397), o “pai dos pobres”, a quem santo Agostinho (354-430) descreverá como alguém “assediado pela multidão de pobres, a ponto de se ter grande dificuldade para chegar até ele”.

Esses homens tradicionalmente conhecidos como Padres da Igreja apresentam, em geral,

um perfil crítico e profético que retoma e atualiza a linguagem e a linhagem profética do Primeiro Testamento, na denúncia de tudo o que fere a dignidade humana, inibe a partilha e solidariedade, e é hostil ao projeto de Deus, como o atesta, p.ex., estas palavras incendiadas proferidas por S. Gregório de Nissa (330-395):

“Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbulo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?”20

Conforme o avanço da história, pessoas como Domingos e Francisco, Clara, Antônio,

Teresa de Ávila, Vicente de Paulo e tantos outros,21 ofereceram sua cota de disponibilidade e sacrifício, de generosidade e muito amor na promoção humana e social dos irmãos e irmãs pobres e excluídos fazendo, da solidariedade com eles e elas, caminho para a santidade.

19 Cf. A. HAMMAN. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980, 129-139. 20 Citado por P. FREIRE. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002³³. 21 Para um aprofundamento deste longo período da história da Igreja, numa perspectiva da luta dos pobres e com os pobres, ver: J. PIXLEY & C. BOFF. Op. Cit., 185-212: “A opção pelos pobres durante mil anos de história da Igreja”; o livro sempre atual de M. ROCHA. Projeto de vida radical. Petrópolis: Vozes, 1977², traz um capítulo sobre as “Ordens Mendicantes”, 49-54; e, M. MOLLAT. Les Pauvres au Moyen Age. Paris: Hachette, 1978, também é de uma riqueza de conteúdo extraordinária! A própria Doutrina Social da Igreja é igualmente rica na opção e compromisso com os pobres. Em contexto latino-americano, ver: P. BIGO & F.B. de ÁVILA, Fé cristã e compromisso social. São Paulo: Paulinas, 1982, especialmente o cap. IV da 2ª parte: “Natureza da missão social da Igreja”, 111-134.

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33.. OO CCoonnccíílliioo EEccuummêênniiccoo VVaattiiccaannoo IIII ((11996622--11996655)):: NNoovvaa lluuzz bbrriillhhoouu!!

Estamos na segunda metade do século XX. Depois de praticamente 16 séculos de história,

já havia quem pensasse que o Espírito Santo estava dormindo...Ou, se não dormia, pelo menos cochilava, quando, não mais que de repente, Roncalli é eleito para o trono de Pedro. As repetidas e exaustivas seções do conclave, com a multiplicação dos escrutínios sem resultados que expressassem o consenso dos cardeais em torno de um nome que representasse a “moderação” ou o “equilíbrio”, acabou deixando espaço para que o Espírito interviesse, sugerindo a alternativa do que seria, conforme a crença de muitos, um “papa de transição”.

3.1. O Espírito abre caminhos De idade avançada, com a saúde debilitada, filho de camponeses pobres, muito piedoso, e

com experiências significativas no campo das relações diplomáticas, era tudo o que a Igreja precisava para fazer uma transição tranqüila, pacífica e sem traumas, para a modernidade que batia à sua porta, ameaçando suas estruturas seculares inabaláveis! Sem aparentes condições objetivas de questionar a cristandade e, muito menos, de oferecer opções concretas para uma mudança ou “revolução” eclesial e pastoral, a missão do novo papa seria, então, a de manter o status quo e colaborar, recolhendo-se à sua “insignificância”, para protelar, se possível definitivamente, o acerto de contas da Igreja com a história.

O desenrolar da novela, no entanto, mostrou ao mundo e a quem estava atento aos sinais

dos tempos que, mais uma vez, o Espírito interveio, “divertiu-se”, “riu” de muita gente, e fez de João XXIII o João Batista do século XX, preparando, já não os caminhos do Senhor, mas os caminhos da Igreja renovada, revestida da força do Ressuscitado, aberta ao mundo, solidária da humanidade peregrina nas suas dores e alegrias, amante e construtora da justiça e da paz do Reino.

O “Papa Bom” ou “Papa da Paz” que convocou, animou e sustentou o Concílio contra

tantos que a ele se opuseram, morre antes de concluir sua obra-prima. Suspeitas são levantadas em relação ao futuro do Concílio e da Igreja. O fermento, que já havia começado a levedar a massa, opõe pelo menos três tendências com suas respectivas inquietações:

a) A tendência “progressista”: O novo escolhido dará continuidade a este grande

empreendimento do Espírito, que encontrou em João XXIII o instrumento dócil para realizar sua ação libertadora no mundo?

b) a “moderada”: Mesmo dando continuidade ao caminho proposto e impresso por João

XXIII ao Concílio, o novo papa será capaz de conter os “excessos”? e, c) a “conservadora”: Terá o próximo sucessor de Pedro discernimento suficiente para

perceber que a idéia do Concílio não passou de uma aventura passageira e, portanto, dará marcha à ré na história da Igreja?

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Com a eleição do cardeal Montini, que escolhe o nome de Paulo VI, paira uma tranqüilidade que, de certa forma, “apazigua” o antagonismo destas tendências. Montini, à diferença de seu predecessor, é originário da aristocracia, de formação mais intelectualizada, mais “ilustrado”, e também mais introvertido. É bem verdade que na avaliação de alguns historiadores, o Concílio, sob sua presidência, não continuou no mesmo pique com que vinha sendo conduzido por João XXIII. Não obstante, levando em consideração a época e o peso da “reviravolta” que se ousava perseguir, o resultado, no conjunto, não pode ser visto senão como obra e dom do Espírito à sua Igreja, e, por conseguinte, acentuadamente revolucionário. A consagração de documentos como Lumen Gentium, Gaudium et Spes e Ad Gentes, entre outros, marcou, de fato, um novo Pentecostes que teve repercussão positiva, transformando qualitativamente a vida e ação missionária da Igreja.

3.2. A revolução conciliar O Vaticano II tornou-se modelo e referência ao enfrentar todos os riscos da época e

responder aos desafios advindos, em especial, da Segunda Guerra. Profetizando e assumindo com determinação esta atitude de fundamental abertura ao inusitado, abriu novos caminhos para atualizar a palavra e o projeto de Deus na história. Para além da renovação das pastorais, dos movimentos bíblico e litúrgico que promoveu, estão as muitas “viradas”, cuja proposta era a de religar (objetivo da religião) a atividade missionária da Igreja ao mundo contemporâneo e seus anelos de justiça e libertação. Entre as mais expressivas, lembramos:

a) A superação do eclesiocentrismo,22 na correta articulação Reino-Mundo-Igreja que,

precisamente nesta ordem, sublinhará a preeminência do Reino de Deus que deve ser construído no Mundo com o serviço (mediação) da Igreja (sacramento, sinal, instrumento). Decorre daí que não coaduna com a missão da Igreja nem o narcisismo nem a prepotência, ou seja, ela não anuncia a si mesma, nem está no mundo em função de seus próprios interesses, mas é a humilde servidora e mediadora de uma realidade que é maior e mais importante do que ela:

“A Igreja, enquanto ela mesma ajuda o mundo e dele recebe muitas coisas, tende a um só fim: que venha o Reino de Deus e seja instaurada a salvação de toda a humanidade”.23

b) A configuração da Igreja como Povo de Deus.24 Povo da Nova Aliança estabelecida por

Cristo e selada com seu sangue, a caminho da libertação, que não se restringe nem foi confiada somente a padres e bispos, mas a todos os batizados e batizadas – “raça eleita, sacerdócio régio, nação santa” (1Pd 2,9) –, uma vez que Cristo continua exercendo sua ação profética no mundo “não apenas pela hierarquia, que ensina em seu nome e com seu poder, mas também através dos leigos”, aos quais “muniu com o senso da fé e com a graça da Palavra”.25 Esta dignidade e igualdade fundamentais conferidas pelo batismo dissipam toda tentação de discriminação e exclusão, fazendo de todo o Povo de Deus filhos e filhas do mesmo Pai e, portanto, irmãos e

22 Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II. Lumen Gentium 3 e 5. Obra importante que aborda detidamente o assunto é a de H. KÜNG. Die Kirche. Fribourg-en-Br.: Herder. 1967. Cf. L. BOFF. Eclesiogenese. Petrópolis: Vozes, 1977. 23 Concílio Ecumênico Vaticano II. Gaudium et Spes 45; cf. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi 8. 24 Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II. Lumen Gentium 9ss. Na avaliação de muitos Padres Conciliares é este “o germe de vida mais rico do Vaticano II”. Uma das primeiras reações positivas a este novo sopro do Espírito foi precisamente a de J. RATZINGER. Das Neue Volk Gottes. Düsseldorf: Patmos-Verlag. 1969. Esta imagem da Igreja-Povo-de-Deus colocou as bases para uma corajosa releitura do Concílio na América Latina (AL) – Continente profundamente marcado pela injustiça e opressão –, conforme veremos a seguir, onde o povo de Deus é constituído, na sua maioria esmagadora, pelo Povo dos Pobres. Cf. E. DUSSEL. Populus Dei in Populo Pauperum (Do Vaticano II a Medellín e a Puebla). Concilium 196 (1984) 50-61. 25 Concílio Ecumênico Vaticano II. Gaudium et Spes 31a; 35a; Dei Verbum 10a.

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irmãs, “em cujos corações habita o Espírito Santo”,26 que não é propriedade de uns poucos privilegiados, mas do “conjunto dos fiéis”27 que são plenamente responsáveis de toda a ação missionária da Igreja:

“Como participantes do múnus de Cristo sacerdote, profeta e rei, os leigos participam ativamente na vida e na ação da Igreja. No interior das comunidades da Igreja sua ação é tão necessária que sem ela o próprio apostolado dos pastores não poderia, muitas vezes, alcançar o seu pleno efeito”.28

c) A abertura ao mundo e o movimento “para fora”,29 no diálogo com o diferente expresso

nas culturas, religiões, gênero, filosofias de vida, reconhecendo a necessidade e oportunidade de ampliar e consolidar todos os contatos que estiverem ao seu alcance para realizar a missão ad gentes:

“Onde quer que Deus abra uma porta à palavra para proclamar o mistério de Cristo a todos os homens, com confiança e sem cessar anuncie-se o Deus vivo e Aquele que enviou para a salvação de todos, Jesus Cristo...‘o caminho, a verdade e a vida’ (Jo 14,6)”.30

d) A solidariedade com a humanidade peregrina, na certeza de que Jesus continua

caminhando com os homens e as mulheres também do nosso tempo, em todos aqueles e aquelas que o reconhecem na alegria e felicidade da partilha (cf. Lc 24,13ss), na promoção dos empobrecidos e na libertação dos oprimidos (cf. Mt 11,2-6; Lc 4,18-21),31 para que Deus seja conhecido, acolhido e amado como “Pai nosso”, e não apenas de alguns:

“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.32

e) O combate à “guerra fria” para apoiar e incentivar o desarmamento, e garantir a

coexistência pacífica entre Estados de distinto caráter social,33 na promoção e respeito ao direito internacional e à autodeterminação dos povos:

26 ID. Lumen Gentium, 9b; cf. JOÃO PAULO II. Dominum et Vivificantem 64. 27 ID. Ibidem 12a. Observe-se que na Novo Millennio Ineunte o Papa João Paulo II se refere a São Bento que convida o abade do mosteiro a consultar também os mais novos: “É freqüente o Senhor inspirar a um mais jovem um parecer melhor”, e a São Paulino de Nola que lembra: “Dependemos dos lábios de todos os fiéis, pois o Espírito de Deus sopra em cada fiel” (nº. 45b; os grifos são nossos). 28 Concílio Ecumênico Vaticano II. Apostolicam Actuositatem 10a. 29 Cf. a já citada Gaudium et Spes, que trata especialmente do tema. 30 Concílio Ecumênico Vaticano II. Ad Gentes, 13a. 31 A grande conquista aqui se refere à ação social dos cristãos e cristãs no mundo, que deve dar um salto qualitativo, passando do assistencialismo à promoção humana e social, cujo fundamento é a justiça: “satisfaçam-se em primeiro lugar as exigências da justiça, para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça; eliminem-se as causas dos males, não só os efeitos; seja encaminhada a ajuda de tal maneira que, os que a recebem, pouco a pouco se libertem da dependência externa e se tornem auto-suficientes”. (Apostolicam Actuositatem 8). 32 Concílio Ecumênico Vaticano II. Gaudium et Spes 1. Também o Sínodo dos Bispos sobre A Justiça no Mundo (1971) fazia-se porta-voz deste clamor: “A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do gênero humano de todas as situações opressivas” (nº 6). 33 Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II. Gaudium et Spes 81-82.

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“Por isso, mais uma vez deve ser declarado: a corrida armamentista é a praga mais grave da humanidade, que lesa intoleravelmente os pobres”.34

f) A renúncia à xenofobia contra quem pensa e até age diferente, para integrar, incluir e

fomentar a participação na diversidade de agrupações, correntes e opiniões no seio da Igreja Católica:35

...“Que promovamos no seio da própria Igreja a mútua estima, respeito e concórdia, admitindo toda a diversidade legítima, para que se estabeleça um diálogo cada vez mais frutífero entre todos os que constituem o único Povo de Deus, sejam os pastores, sejam os demais cristãos”.36

A seu tempo, o 2º Concílio do Vaticano respondeu aos sinais dos tempos, avançando

“para águas mais profundas” (Lc 5,4), e estabeleceu o estatuto de uma espiritualidade sadia, aberta ao novo e inusitado, deixando-nos um legado que se constitui desafio e compromisso: Quem ama verdadeiramente conhece, sabe e experimenta a eficácia do provérbio francês: “Chaque jour l’amour change de visage”.37 Os cristãos e cristãs, seguidores e seguidoras de Jesus, mulheres e homens de Deus, ungidos pelo Espírito que, desde as origens, manifesta todo o seu vigor na liberdade criadora e criativa, com muito mais e maior convicção deveriam professar o “credo do Novo” como notícia boa, alegre, inovadora, transformadora, entusiasta, que rejuvenesce os espíritos para que, no mesmo Espírito, que adora variar, tudo e todos, a Criação e a Humanidade, experimentem, a cada novo dia, a força e a vitalidade da palavra ousada que sai da boca de Deus, comprometendo para a mesma ação todos os seus filhos e filhas: “Eis que faço novas todas as coisas!” (Ap 21,5).

34 ID. Ibidem 81c. Cf. JOÃO XXIII. Pacem in Terris, onde o Papa está convencido “de que as eventuais controvérsias entre os povos devem ser dirimidas com negociações e não com armas” (nº. 126). 35 Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II. Gaudium et Spes 43d; 73c; 92. 36 ID. Ibidem, 92b. 37 A cada dia o amor aparece com um novo rosto.

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44.. OO eessttaattuuttoo ddooss ppoobbrreess eemm MMeeddeellllíínn ((CCoollôômmbbiiaa)) ee PPuueebbllaa ((MMééxxiiccoo))

A Conferência de Medellín é a segunda da América Latina. Antes dela, a primeira,

aconteceu – como agora, a de Aparecida – no Brasil, em 1955, na cidade do Rio de Janeiro. É pouco comentada e conhecida, não porque não tenha importância, mas por dois fatores que parecem, se não justificáveis, pelo menos explicáveis: primeiro, porque já está distante no tempo, numa realidade como a nossa que não cultiva a tradição de manter viva a memória e, depois, pelo fato de ter-se realizado antes do Vaticano II e, portanto, sem os horizontes do Concílio que a fizesse marcar época ou posição no Continente, como foi o caso de Medellín. Não obstante, a seu modo e dentro do contexto em que se realiza, a Conferência do Rio de Janeiro, na opinião de especialistas, foi um “divisor de águas” para a Igreja da América Latina e Caribe, na medida em que, a partir dela, já começam a aparecer as preocupações com os grandes desafios que interpelam o Continente; a perspicácia, sobretudo de D. Hélder Câmara, que já está aí presente, estimulando a opção para que a “nossa Igreja” tenha o seu rosto próprio; o trabalho dele e de outros para criar e consolidar o CELAM e as Conferências Episcopais etc. Graças a todos estes esforços foi possível celebrar agora a V Conferência. Um caminho iniciado pela profecia de Pio XII, na sua carta Ad Ecclesiam Christi, lida na abertura da I Conferência, onde, depois de elogiar a América Latina, afirma acreditar que “dentro em pouco”, o continente Latino-Americano “possa achar-se em condições de responder, com vigoroso impulso, à vocação apostólica que a Providência divina” parece ter-lhe “designado”. Vocação essa de ocupar “lugar de destaque na nobilíssima tarefa de comunicar também a outros povos, no futuro, os ansiados dons da salvação e da paz”.38

4.1. A herança de Medellín (1968) A Conferência de Medellín constitui a primeira releitura do Vaticano II para a realidade

latino-americana. É de consenso que foi a “recepção criativa” do Concílio para o nosso Continente. Nossos desafios, entretanto, são ainda mais críticos que aqueles que deram origem ao Concílio. Em 1968, no Brasil, por exemplo, está em plena vigência a ditadura militar, que teve início com o golpe de 1964. Ao nosso, somam-se vários outros países da América Latina que, com total apoio dos EUA, vão consolidando seus regimes de força, repressão, tortura e morte. A fome e o empobrecimento das massas, conseqüência da extorsão de grupos estrangeiros ou multinacionais39 que se espalham pelo Continente, configura um quadro de injustiça social que converge para condenar nossos povos à miséria.

No plano eclesial já há murmúrios de inconformismo com uma visão de Igreja estruturada

mais hierarquicamente, sem levar em consideração o envolvimento e a participação de todo o Povo de Deus. Um bom exemplo aqui é o do Movimento Litúrgico, liderado pelos beneditinos do Rio de Janeiro, anterior, inclusive, ao próprio Concílio, buscando ensaiar passos concretos, revolucionários para a época (presidente da celebração de frente para o povo, missa em língua 38 Cf. Documento sobre a Conferência de Aparecida, publicado por ZENIT, disponível no sítio: http//www.zenit.org/portuguese/archivo_documentos. Ver também a reportagem detalhada publicada pelo Jornal de Opinião. Semanário da Arquidiocese de Belo Horizonte, nº. 932, 9 a 15 de abril de 2007, 10-11. 39 Ou ainda “transnacionais”, conforme posteriormente foram mais adequadamente chamadas.

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vernácula etc.), com o objetivo de renovar a liturgia. Entre os nomes que estão na origem deste movimento, sobressaem os de D. Martinho Michler e D. Clemente Isnard, que mais tarde se tornou Bispo de Nova Friburgo-RJ e, durante muito tempo presidiu a Comissão de Liturgia da CNBB, ocupando também sua vice-presidência. No campo litúrgico, eles foram, assim, os profetas, protagonistas dos novos tempos que se anunciavam para a Igreja latino-americana.

4.2. A opção pela justiça e libertação A liturgia era, no entanto, apenas um dos alvos a ser atingido pelo movimento de

transformação proposto pelo Concílio. Relido e atualizado a partir da América Latina oprimida e reprimida, o Vaticano II motivará aquelas que são consideradas as “opções-eixo” de Medellín, entre as quais se destacam: a Opção pelos Pobres; a Opção pela Libertação; a Opção pelas Comunidades Cristãs de Base; a Opção pela Justiça Social; a Opção pelo Profetismo...

Observe-se, logo de início, que a Opção pelos Pobres não traz ainda o adjetivo

“preferencial” (acoplado só tardiamente por Puebla). Em Medellín a Opção pelos Pobres é clara, transparente e genuinamente evangélica, como foi a opção de Jesus, conforme vimos acima. Nesta opção, talvez a mais importante no contexto de um Continente marcado pela injustiça e opressão que se exerce precisamente contra os empobrecidos e miseráveis, a Igreja latino-americana propõe um passo qualitativo, a saber, o de retornar às fontes bíblica e em especial do Segundo Testamento, para dar lugar a uma ética de inclusão. Se a identidade do cristão e da cristã é o seguimento do Mestre, repetindo, na história, sua palavra e ação libertadora, então a Opção pelos Pobres se distinguirá, de fato, como marca registrada e critério de salvação (cf. Mt 25,31ss) não só para a América Latina, mas para toda a Igreja, na advertência já consagrada Paulo VI: “Se quiserdes, hoje, conhecer quem foi Jesus Cristo, olhai para o rosto dos pobres. Eles espelham a verdadeira face do Cristo”.

De igual modo, a Opção pelas Comunidades Cristãs de Base não traz a designação

“eclesial” que, posteriormente, será inserida, substituindo o “cristãs”. Estas “comunidades cristãs” (cf. Doc. De Medellín) nascem e se desenvolvem com relativa autonomia e em espírito de liberdade frente seja ao Estado, seja à Igreja oficial, conforme nos atesta a pesquisa publicada pela CNBB, em 1974: “...a própria formação de uma CEB40 significa impreterivelmente uma reação a uma forma antiquada de pastoral, de catequese, de vida espiritual, e também de atividade política, na medida em que a CEB inclua fins sociais gerais. O próprio sentido esperado de que cada CEB tenha uma vida mais ou menos autônoma indica a possibilidade de que realize valores e normas diversas das convencionais. Ela não seria satélite, nem da Igreja oficial, nem do sistema político vigente. Mas, pelo contrário, ambos, Igreja e Estado, são vistos em dimensão crítica, pelo menos no sentido de que os parâmetros convencionais não esgotam as possibilidades de oferta de uma vida mais plena”.41

Em qualquer hipótese, convém ressaltar que a interposição de “cristã” por “eclesial” não

sugere, como poderia induzir, uma espécie de substituição do seguimento de Cristo (cristãs) pelo da Igreja (eclesial). Ao contrário, parece evidenciar a reformulação teológica (eclesiológica) do conceito “comunidade” que, se cristã (seguidora de Cristo), torna-se, naturalmente, eclesial, se entendemos que a missão da Igreja é congregar o Povo de Deus para ser sinal do seu Reino e “sacramento universal de salvação”, que é o mesmo dizer libertação.42

40 Aqui já é CEB - Comunidade Eclesial de Base. 41 CNBB. Coleção Estudos nº. 3. Comunidades: Igreja na base, 37. 42 Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II. Ad Gentes 5, na linha do belíssimo trabalho que posteriormente seria elaborado, para o nosso contexto latino-americano, por I. ELLACURIA. La Iglesia de los pobres, sacramento histórico de liberación. Estudios Centroamericanos 32 (1977) 707-722.

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As demais opções – pela Libertação, pela Justiça Social, pela contestação Profética –

vinculadas, sobretudo, à Opção pelos Pobres, firmam, todas elas, a orientação da Igreja latino-americana, com o propósito de perfilar sua identidade própria e característica, a saber, a de uma Igreja que, perseguida e martirizada, mas em sintonia e comunhão fiel com a Tradição bíblica e apostólica, trabalhará com renovado ardor e amor pela libertação efetiva da América Latina, a fim de que o ser e o ter, e todos os bens sejam socializados para que todos e todas tenham vida.

4.3. O jardim floresceu Talvez a imagem que melhor corresponda a este Kairós latino-americano seja a do jardim.

O jardim que é usado pelo autor do Gênesis (2,8) para designar toda a felicidade e todo o bem que Deus destina à humanidade (cf. Jr 33,9). O jardim a que se refere igualmente o evangelista João (19,41), onde o corpo do Crucificado é sepultado, e de onde sairá vencedor da morte, glorioso, ressuscitado, restituindo esperança e vida nova aos que, seguindo seus passos, refazem seu caminho, na opção e entrega absoluta pelo seu Reino de amor, de justiça e fraternidade.

Nesta seqüência, Medellín pode ser símbolo do jardim latino-americano e caribenho, onde

o peso da cruz e a esperança de vida estarão em permanente conflito. Para que, no entanto, em nosso jardim, a vida possa brotar da morte, a “Igreja de Medellín”, amadurecida à luz do Concílio, propõe e realiza a abertura de novos caminhos para a América Latina e Caribe, em diversos níveis:

a) na luta para que os direitos humanos e dos povos sejam respeitados; b) na substituição do assistencialismo (ou paternalismo) pela verdadeira promoção

humana e social, que já era proposta do Concílio; c) na consciência e no trabalho para que os países em desenvolvimento tenham o cuidado

de não marginalizar os pobres e operários; d) na articulação fé/vida, fé/política; e) na superação do autoritarismo e centralismo eclesiástico; f) na valorização da vida comunitária e social; g) na construção de sociedades solidárias e democráticas que evidenciem os sinais do

Reino de Deus. 4.4. O resgate da credibilidade Estavam postas, assim, as bases de um projeto sólido que, logo em seguida, resultaria no

amadurecimento, inserção e compromisso do laicato que agora, confiante na força jovial e transformadora da Igreja, fiel discípula de Jesus e do Reino, organiza-se em comunidades cristãs de base para ler a realidade (vida) à luz da Palavra de Deus (fé), e responder aos grandes desafios (transformação) lançados pela Pátria Grande. A ação destas comunidades se torna tão expressiva para o Continente e, em especial, para o Brasil, que mais tarde os Bispos brasileiros reconhecerão publicamente sua repercussão e importância para a transformação da sociedade e da própria Igreja:

“O novo que as CEBs trouxeram foi o fato de oferecerem, dentro da Igreja, um espaço para o próprio povo simples participar da evangelização da sociedade através da luta pela justiça”. 43

43 CNBB. Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil, doc. 25, 1985, nº. 63.

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Esta consciência de que o campo que desafia o cristão e a cristã é o mundo (trabalho, escola, família, esporte, lazer, sindicato, partido etc.), a descentralização pastoral, a Bíblia nas mãos do Povo, a participação nas liturgias que agora rezam e celebram a realidade do cotidiano, a organização e animação das comunidades, o reconhecimento e a valorização dos Leigos e Leigas, são apenas alguns dos traços que fazem o perfil do jardim que começa a florescer com Medellín. Um tempo que, apesar dos grandes e graves tormentos provocados seja pelos regimes de força, seja pela miséria crescente, a Igreja latino-americana assume sua identidade e recupera sua credibilidade, de tal modo que, mesmo em meio às contradições e conflitos, dela se podia paradoxalmente dizer o mesmo que se dizia da Igreja dos primórdios: “vivia em paz...edificava-se e progredia no temor do Senhor, e crescia em número com a ajuda do Espírito Santo” (At 9,31), conforme era costume cantar nas comunidades:

“Que sabedoria é essa que vem do meu povo? É o Espírito Santo, agindo de novo!”

4.5. Pastores e profetas O impacto produzido por Medellín foi o que hoje é consciência nas CEBs: uma ação

orgânica, bem articulada, integrada, “de baixo pra cima e de dentro pra fora”, que muda o interior e atinge a raiz para converter o todo, o conjunto, e conformá-lo ao projeto do Deus da Vida. Um “novo Pentecostes” que questiona e desinstala (cf. At 2,1-11), e recobra o “entusiasmo do primeiro amor” (cf. Ap 2,4), atualizando o que D. Carlos Alberto Navarro, o Bispo poeta, compunha em uma de suas músicas:

“Somente ao receber teu Santo Espírito, Jesus, os Doze vão levar a boa nova sem temer. É Ele o principal na pregação, é inspirador, dos que lutam pelo Reino até morrer”.

Nesta perspectiva, vimos o florescer de uma geração inigualável de Pastores, que logo se

tornaram Profetas na defesa incondicional da vida para os povos oprimidos e reprimidos do Continente, configurando seu ministério ao do Cristo, Bom Pastor, que conhece, ama e dá a vida por suas ovelhas (cf. Jo 10,11.14-15).

No Brasil, nomes como os de D. Hélder Câmara, D. Pedro Casaldáliga, D. Tomás

Balduíno, D. José Maria Pires, D. Luciano Mendes de Almeida, D. Ivo Lorscheiter, D. Aloísio Lorscheider, D. Paulo Evaristo Arns, entre tantos outros, entram para o cenário nacional e compartilham do mesmo destino dos que lutam por justiça e paz, sendo igualmente perseguidos, difamados e ameaçados de morte pela ditadura. D. Hélder, por exemplo, cognominado “Bispo Vermelho” pelos militares, responderá com sagacidade:

“Quando dou pão aos pobres, chamam-me de santo, quando pergunto pelas causas da pobreza, me chamam de comunista”.

Fora daqui, na Argentina, Mons. Angelelli; em El Salvador, D. Oscar Romero; na

Colômbia, Pe. Camilo Torres; na Nicarágua, Pe. Gaspar García Laviana e, tantos outros, pagaram com a própria vida sua fidelidade ao Reino da Vida e ao Evangelho dos Pobres.

Na década de 70 tive o privilégio de conhecer e conviver com dois desses grandes Bispos

que, mergulhados na vida do povo, comungavam de seus sofrimentos na ação evangelicamente solidária: D. Alberto Trevisan, auxiliar do Rio de Janeiro, era, então, coronel do exército! Simplesmente impressionante! Este grande Pastor, que se destacava precisamente por sua

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simplicidade e humildade, usava do seu posto militar para empreender uma verdadeira atividade “subversiva”, e libertar os prisioneiros políticos. E, D. Clemente Isnard, o mesmo do Movimento Litúrgico a que nos referimos e que, por feliz coincidência, foi quem me ordenou presbítero. D. Isnard tem uma das mais belas páginas de sua história escrita no Livro da Vida, referente também à solidariedade com as vítimas do regime militar. Mantinha, em sua residência, com todos os riscos que a iniciativa comportava um porão reservado aos perseguidos pela ditadura. Aí, recebia, acolhia e abrigava todos/as os/as fugitivos/as que a ele acorriam.

A voz e a ação profética desses Pastores ecoavam afinadas porque fundamentadas na

certeza de que “não há maior amor que dar a vida pelo irmão”, e no rico patrimônio da fé legado por Medellín, onde a violência “institucionalizada” que se exerce contra os fracos é condenada por unanimidade. É igualmente denunciada toda forma de injustiça como pecado social – grave! –, e os Bispos, emprestando sua voz às inúmeras vítimas do sistema, gritam profeticamente: “Que sejam derrubadas as barreiras da injustiça e da opressão!”

Dado de grande importância é que entre as conclusões de Medellín está o reconhecimento,

a todo o Povo de Deus, do legítimo direito de lutar para defender a vida ameaçada pelos regimes de força (insurreição popular contra a repressão). Ninguém precisa se assustar porque tanto Medellín quanto mais tarde D. Romero só fazem retomar uma velha doutrina já expressa por Santo Tomás de Aquino, e não é mais do que o que é de conhecimento público na justiça comum: o direito à legítima defesa. Este elemento, especialmente relevante em contexto da América Latina oprimida e reprimida por militares e ditadores cruéis e sanguinários, contribuiu para, posteriormente, derrubar a ditadura de Somoza na Nicarágua, uma das mais nefastas da nossa história! O absolutamente novo e original na Revolução Popular Sandinista, cujo triunfo se deu em 1979, foi a participação maciça dos cristãos e cristãs que, tendo assimilado as orientações de Medellín, uniram sua fé à luta pela justiça de maneira tão harmoniosa, que já não podiam separar cristianismo e revolução: “entre cristianismo y revolución no hay contradicción!” À diferença, por exemplo, do que ocorrera em Cuba, cuja data da vitória remonta a 1959 e, portanto, antes, tanto do Concílio quanto de Medellín. Aí, não só os cristãos (pelo menos os católicos) não se comprometem com o processo revolucionário, como até se opõem a ele.

No conjunto, vale lembrar que Medellín registra, em consonância com a mais fina

Tradição, o tripé que sustenta a Igreja como obra de Deus através da história: a Igreja latino-americana se impõe, já não pelo autoritarismo, mas:

a) no reconhecimento, valorização e promoção do Povo de Deus; b) na voz e ação profética dos Pastores; e, c) no testemunho fiel de seus Mártires. 4.6. Um “casamento feliz” Por mais extenso que fosse um discurso sobre Medellín, jamais conseguiríamos

incorporar nele toda a beleza e riqueza de conteúdo, de forma, de criatividade, de participação, de compromisso, que este evento significou para a Igreja Latino-americana e Caribenha. Mas poderíamos ensaiar uma síntese de sua herança no que temos chamado de “casamento feliz”, e que teve como que seu berço nesta 2ª Conferência do CELAM, articulando correta e concretamente a relação teoria-práxis, na ordem que segue:

a) A Opção pelos Pobres, que é garantia do seguimento de Jesus, que também optou por

eles, destinando-lhes seu Reino de Justiça e de Vida;

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b) a difusão das CEBs, que lutam para transfigurar o rosto da sociedade e da Igreja, reconhecidas como “grande sinal de esperança para a Igreja universal” (Paulo VI); e,

c) a Teologia da Libertação que, com sua origem no Êxodo (cf. 3,7ss), articula o “grito do

oprimido” a partir das práticas libertadoras das comunidades, consagrada “não apenas oportuna, mas útil e necessária” (João Paulo II).

4.7. Puebla (1979): continuidade descontinuada? Apesar de ser diferente o contexto sócio-econômico e político-religioso em 1979, 11 anos

depois de Medellín, o clima continua tenso e os bispos reconhecem que os grandes problemas sociais, em lugar de diminuir, tornaram-se ainda mais graves. Constata-se, também, que a tensão vivida nas sociedades se reproduz no interior da Igreja.

A opção pelos pobres ganha o adjetivo “preferencial”.44 Além dela, a opção pelos Jovens,

pela Comunhão e Participação e pela Dignidade da Pessoa Humana são destaques em Puebla. Para além dos desafios da conjuntura, no entanto, os Pastores continuam denunciando profeticamente os regimes de força espalhados pelo Continente, e a Ideologia de Segurança Nacional, que atentam contra a vida e as liberdades individuais e coletivas. Simultaneamente proclamam a dignidade da pessoa humana como dom maior que deve ser respeitada e defendida, como honra devida ao Criador.

A “Igreja de Puebla”, mesmo nas “negociações” que se viu obrigada a fazer em razão da

onda de (neo)conservadorismo interno e externo, mantém e fortalece passos importantes nas pegadas de Medellín:

a) a opção “preferencial” pelos Pobres acabou sendo um tiro que saiu pela culatra, abrindo

variadas discussões mundo afora, e mobilizando comunidades, grupos, associações, o Movimento Popular etc. para a organização dos Pobres como tarefa prioritária e opção “incondicional”;

b) a opção pelos Jovens, nos lugares em que foi e é acolhida e assumida, contribuiu e

contribui para rejuvenescer o rosto da Igreja, dando-lhe novo vigor missionário; c) a opção pela Comunhão e Participação incrementou o processo já desencadeado de

descentralização, presente de forma mais visível nas CEBs, enriquecido agora pelos “novos ministérios” confiados aos Leigos e Leigas;

d) finalmente, a opção pela Dignidade da Pessoa Humana reforça o compromisso da

Igreja com a justiça, com os direitos humanos, com a defesa da vida. À luz destas opções, poderíamos dizer que Puebla colaborou para fazer evoluir o perfil da

Igreja da América Latina no que se refere à realidade de empobrecimento em 4 níveis distintos, mas interativos:

1º) a ampliação do conceito de pobre que, até então, era reduzido à mera e simples

privação dos bens básicos:

“Na vida real vemos tantos rostos, e neles devemos reconhecer os traços do Cristo sofredor. Rosto de índios, de negros, que vivem colocados de

44 Puebla 1134-1165.

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lado pela sociedade. Rosto de camponeses, de operários, quase sempre mal pagos. Rosto de pessoas amontoadas nas periferias das cidades. Rosto de desempregados e subempregados. Rosto de jovens desorientados, sem lugar na sociedade, sem oportunidades. Rosto de crianças, marcadas pela desnutrição, que carregarão as conseqüências disso por toda a vida. Rosto de velhos, cada vez mais, colocados de lado...”;45

2º) a correção de uma distorção ideológica que perdurou séculos de história, onde o pobre

é pobre porque quer, ou porque é vagabundo, ou, ainda, porque Deus quer assim:

“Descobrimos que esta pobreza não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas...A situação interna de nossos países encontra, em muitos casos, sua origem e apoio em mecanismos que...produzem, em nível internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”.46

A pobreza, portanto, não é casual, mas causal, e o pobre não é tão somente pobre, mas

empobrecido;47 3º) a responsabilidade (culpa) de quem compactua com o sistema que empobrece:

“Vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas. Isto é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida”;48

4º) a conversão de corações e estruturas começa em casa pela pobreza evangélica que

“une a atitude de abertura confiante em Deus com uma vida simples, sóbria e austera, que aparta a tentação da cobiça e do orgulho”, bem como “pela comunicação e participação dos bens materiais e espirituais; não por imposição, mas por amor, para que a abundância de uns remedeie a necessidade dos outros”.49

4.8. Santo Domingo (República Dominicana, 1992) : “novo espetáculo, em

novo palco”

Contexto: O tempo é de “abertura política”, com a presença de novo ator no cenário mundial: o capitalismo neoliberal, que baseado nas leis do mercado, do consumo e das pequenas, porém, eficazes concessões, busca garantir seu espetáculo. No terreno eclesial, está em curso a “volta à grande disciplina” (Libânio).

Opções: pela Inculturação - pelo protagonismo dos Leigos e Leigas - pela Solidariedade - pela Leitura da realidade a partir dos desafios contemporâneos.

45 Id. 31-39. 46 Id. 30; cf. 63-70. 47 Id. cf. a nota 331 do nº. 1135. 48 Id. 28. 49 Id. 1149-1150.

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Anúncio-denúncia: Sintomas negativos da ambígua globalização, tais como o egoísmo, individualismo, consumismo etc., podem conduzir fatalmente a humanidade ao fracasso total e à morte. Só o cultivo da solidariedade, no respeito às “minorias” étnicas excluídas, e na defesa da vida humana e ecológica, poderão garantir a felicidade do planeta.

Conseqüências práticas: A “Igreja de Santo Domingo”, apesar de seu contexto extremamente desafiador, oferece pistas importantes para a construção do “outro” mundo e da “outra” Igreja possíveis. As opções aí assumidas vão todas na linha de considerar e responder aos “sinais dos tempos e lugares”. O protagonismo dos Leigos e Leigas, p. ex., aparece como resposta seja ao amadurecimento da teologia laical, seja às experiências positivas de democratização da instituição, desde Medellín, seja ao desenvolvimento e difusão das CEBs, “novo/velho” jeito de ser Igreja, seja ainda à crise por que passa a Igreja, carente de ministros ordenados. A inculturação mantém a vitalidade e força do Evangelho como Boa Nova que é proposta e projeto de libertação, uma vez respeitada a diversidade cultural. A solidariedade, ampla, geral e irrestrita, deve unir a América Latina e o mundo através de alianças e parcerias em favor da vida para todos e todas, e para tudo.

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55.. MMããee NNeeggrraa,, ddaa aalleeggrriiaa ee ddaa eessppeerraannççaa,, eennssiinnaa--nnooss aa ccaammiinnhhaarr!!

O lugar escolhido para a V Conferência é muito significativo no contexto de um Continente em cativeiro e, simultaneamente, em processo de libertação: o Santuário de Aparecida do Norte, cuja história é popularmente conhecida pela tradição da “aparição” da Mãe Negra a pescadores humildes e pobres, que “pescaram” sua imagem, cuidando com carinho daquela que posteriormente se tornaria a Mãe próxima, benevolente e parceira de todo o Povo brasileiro, na sua luta por dignidade e justiça.

5.1. Aparecida, “Mãe dos pobres sem mãe” O local é, portanto, carregado de símbolo50 que se traduz em vida e compromisso. Nele

“apareceu” a Mãe de Jesus e nossa Mãe (cf. Jo 19,26.27), disponível, servidora e solidária da humanidade que sofre carregando o peso de tantas cruzes: a cruz do desemprego, a cruz do abandono à própria sorte, a cruz das doenças, do analfabetismo, da falta de terra pra plantar e pra colher, da dívida e da dúvida, da violência, das guerras... Em sua ternura e carinho de quem gera e defende a vida, N. S. Aparecida é o símbolo mais perfeito e acabado da Mãe, que vai ao encontro de seus filhos e filhas deste “vale de lágrimas”, vivendo em situação de carência, para levar-lhes a boa notícia da intervenção de Deus que fará justiça a seu povo: “derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; sacia de bens os famintos, e despede os ricos de mãos vazias” (cf. Lc 1,52.53). Sua negritude rompe com os velhos esquemas do preconceito racial; sua manifestação a pescadores pobres propõe a eliminação de toda discriminação social; e, a fidelidade, que faz dela a “primeira discípula do projeto de Deus” (Santo Agostinho), é convite constante a permanecermos fiéis no seguimento de Jesus, fazendo “tudo o que Ele mandar” (Jo 2,5).

Em uma palavra, é o absolutamente novo que, mais uma vez, irrompe na história humana,

marcada pelos mecanismos de opressão, injustiça, exclusão e morte, sugerindo opções e caminhos alternativos que conduzam à transformação de todas as relações humano-afetivas, sócio-culturais, econômicas, ecológicas etc. Tudo para que a defesa incondicional da vida em sua totalidade realize, para todo o nosso Continente, a Pátria Grande, que anela por libertação, a profecia de Jesus que aquece corações e alimenta a utopia, desde a sinagoga de Nazaré:

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18.19).

50 Para toda a simbologia de Aparecida, ver AMERINDIA. Op. Cit. Maria de Aparecida: Rosto dos Povos da América Latina e do Caribe, 73-89.

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A partir deste conteúdo genuinamente libertador, Aparecida – apesar de eventualmente registrar práticas que ainda possam corresponder a uma religião “imatura” ou “alienada”, como se expressam alguns – constitui-se como o Santuário para onde acorrem os pobres, oprimidos, doentes, idosos, desempregados e subempregados, muitos dos quais sem nome, sem vez e sem voz, excluídos, por conseguinte, de todo e qualquer poder de ação e participação. As numerosas e volumosas romarias, em geral, compostas por aqueles e aquelas que “vêm chegando da grande tribulação” (Ap 7,14), expressam a profundidade e fecundidade da “religião do povo” que, sem ver reconhecidos e respeitados seus direitos, buscam, na experiência do sagrado (a Mãe da Esperança, forte, fiel, corajosa, generosa, amiga, protetora, solidária...), o reencontro com sua própria identidade de ser humano, bem como sua filiação divina, Povo, gente enfim, a quem se deve reconhecer, respeitar e defender o sagrado direito à vida.

Mariama, Iya, Iya, ô, Mão do Bom Senhor!

Maria Mulata, Maria daquela colônia favela que foi Nazaré.

Morena formosa, Mater dolorosa, Sinhá vitoriosa, Rosário dos pretos mistérios da Fé.

Mãe do Santo, Santa, Comadre de tantas, liberta mulhé.

Pobre do Presépio, Forte do Calvário, Saravá da Páscoa de Ressurreição, Roseira e corrente do nosso Rosário, Fiel Companheira da Libertação.

Por teu Ventre Livre, que é o verdadeiro, pois nos gera livres no Libertador, acalanta o Povo que está em cativeiro, Mucama Senhora e Mãe do Senhor.

Canta sobre o Morro tua Profecia, que derruba os ricos e os grandes, Maria.

Ergue os submetidos, marca os renegados, samba na alegria dos pés congregados.

Encoraja os gritos, acende os olhares, ajunta os escravos em novos Palmares.

Desce novamente às redes da vida

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do teu Povo Negro, Negra Aparecida!51 5.2. A Conferência de Aparecida no contexto de um mundo em

metamorfose É inerente à natureza humana a condição de “ser insatisfeito”, à procura daquele “algo

mais” que realize plenamente e cubra de sentido sua existência que oscila entre o Mistério e o absurdo. Esta dinâmica configura, consciente ou inconscientemente, o desejo de libertação total no encontro com o Absoluto que enxugará todas as lágrimas (cf. Ap 7,17; 21,4) e, finalmente, será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28).

Muitos foram e são os fatores que historicamente contribuíram para a evolução e

aperfeiçoamento da condição humana, tirando o ser humano do lugar de mero coadjuvante, para devolver-lhe o papel de protagonista, como ser naturalmente vocacionado para a perfeição, com a missão de fecundar a terra (cf. Gn 1,28). É praticamente impossível pensar hoje as relações humanas e sociais, o diálogo intercultural e inter-religioso, o ecumenismo e o “macro-ecumenismo”,52 ou a evangelização inculturada, se não considerarmos tais elementos, todos eles decisivos para o conjunto de nossas sociedades e igrejas. Por isso, elegemos propositadamente alguns mais significativos que julgamos relacionados ao nosso tema por sua referência explícita às noções de desenvolvimento humano e social em busca de aprimoramento, felicidade e, conseqüentemente, libertação:

- Da razão à liberdade. É especialmente a partir de Kant (1724-1804), com a aplicação do

“princípio da razão autônoma” (a razão humana dita suas próprias regras), que temos assistido ao desenrolar de um processo que, de certo modo, descaracteriza ou desqualifica todo e qualquer tipo de imposição ad extra, que se queira exercer arbitrariamente ou que não se deixe submeter aos critérios da razão, uma vez que esta se foi tornando paulatinamente, com o posterior advento da modernidade e pós-modernidade, o supremo juiz. Esta concepção, responsável pela elaboração da auto-suficiência contribuiu ainda para substituir, em determinado momento da história, o tradicional ideário do “teocentrismo” ou “cristocentrismo” (Deus, Cristo no centro) pelo antropocentrismo, supervalorizando o homem como o grande –e único?– artífice do universo!

- Caminho aberto. Em linha de continuidade e afinado com o projeto de emancipação

humana, aparece no novo cenário, agora mais propício, o existencialismo,53 contrapondo-se energicamente à medieval filosofia tomista, e trocando o conceito de essência pelo de existência. Ou seja, o homem não é. O homem existe. Não é, portanto, ser pronto, acabado, pré-moldado, predestinado, que morrerá exatamente como nasceu, sem construir ou evoluir. Mas, ao contrario, o homem é projeto (pro-iectare) que se lança para frente, para o futuro; é dasein que muda constantemente, cresce, amadurece, evolui, renova suas opções, constrói-se a si mesmo e modifica todos os dias no emaranhado das relações humanas e sociais em que vive mergulhado. Sente-se, assim, responsável, livre e independente para desenhar o seu próprio destino.

- Verdade e humildade. Neste trajeto, o conceito de verdade também sofrerá sua

reformulação, exigindo de todos quantos a buscam com sinceridade uma nova postura de maior abertura e mais humildade: “da verdade ninguém é dono; todos somos intérpretes” (C. Mesters). Decorre daí que a verdade não se imponha pela força,54 mas pela capacidade de dialogar,55 de

51 Composição de Milton Nascimento, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra. 52 Concílio Ecumênico Vaticano II. Lumen Gentium 22b. 53 Heidegger, 1889-1976; Kierkegaard, 1813-1855; Sartre, 1905-1980. 54 Concílio Ecumênico Vaticano II. Dignitatis Humanae 1c. 55 Ibidem, 3b.

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ouvir e acolher a verdade do outro, de respeitar e valorizar quem pensa e faz diferente, de discutir, trocar e escolher livremente o caminho que conduz à Verdade que liberta (cf. Jo 8,32), sabendo que de verdade em verdade, podemos ir até Deus, verdade das verdades (Bossuet).

- A primazia do prazer. Devemos originariamente a Freud (1856-1939), a noção de

sexualidade que, na experiência como na teoria psicanalíticas não designa apenas os atos sexuais (coito), mas toda uma série de excitações e atividades presentes desde a infância, que proporcionam prazer e satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (respiração, fome, sede, função de excreção etc.), e que se encontram a título de componentes na chamada “forma normal do amor sexual”. Sem deixar de incluir a dimensão carnal (sexual, propriamente dita), a sexualidade, ao mesmo tempo em que a envolve, também a ultrapassa, na busca do prazer total e absoluto que se manifesta em todos os ramos da atividade humana, no anseio por realização e felicidade: encontro, conversa, amizade, pacto, amor, paixão, carinho, afeto, abraço, beijo, trabalho, cultura, arte, comida, bebida etc.

- O clamor das classes subalternas. São, sem sombra de dúvida singulares as contribuições

de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895) para as teorias que se referem aos modos de produção na relação força de trabalho-capital no sistema capitalista. Não obstante, em Jesus de Nazaré, há 2 mil anos, já encontramos uma preocupação e atenção especial às classes oprimidas e exploradas, denunciando, com veemência a ganância dos ricos contra a miséria dos empobrecidos. Um texto revelador é o de Mt 20,1-15, onde a capacidade (força e tempo) de trabalho já não aparece submetida ao lucro, ao capital: ao final de uma jornada de trabalho, todos os operários, independentemente do tempo que trabalharam e, portanto, do que produziram, ganham a mesma remuneração. Na verdade Jesus inverte a (des)ordem estabelecida e denuncia os mecanismos opressores de uma sociedade que valoriza o ser humano pelo que tem e pode oferecer, para humanizar as relações trabalhistas e mostrar que a pessoa vale pelo que é, ainda que só possa oferecer o que lhe permite seus limites. É nesta ótica eminentemente evangélica que se anuncia o “irromper dos pobres como sujeitos de libertação” (G. Gutiérrez): trabalhadores, camponeses, índios, negros, mulheres etc. abrem os olhos, os ouvidos e a boca, e tomam consciência da realidade que se caracteriza “por fenômenos maciços de marginalidade, alienação e pobreza, e condicionada...por estruturas de dependência econômica, política e cultural em relação às metrópoles industrializadas que detêm o monopólio da tecnologia e da ciência”.56 Esta consciência crítica e coletiva do neocolonialismo, bem como do imperialismo enquanto forma superior e mais acabada do capitalismo, comprometerá as classes populares subalternas na luta contra as ditaduras localizadas e pela libertação integral de todo e qualquer totalitarismo, venha de onde ou de quem vier.

- A autoridade posta à prova. No mundo que se nos apresenta tal como está aí hoje:

globalizado, inter-relacionado e com um conjunto de “barracas que disputam a mesma feira”, um dos questionamentos que aparecem é o da autoridade, conseqüência, por um lado, do anseio de liberdade ampla, total e irrestrita e, por outro, da confusão que se estabeleceu entre autoridade e autoritarismo. Um desafio que já se manifesta no seio da própria família, onde adolescentes, jovens e até crianças, desde a mais tenra idade, colocam em xeque ou pelo menos tentam “negociar” a autoridade dos pais. Ampliando para as relações interpessoais e sociais, e tendo em conta os itens precedentes, não é difícil chegar à conclusão de que o atual quadro de

56 Medellín 10,2; cf. PAULO VI. Populorum Progressio 19, 26, 57, 59... JOÃO XXIII. Mater et Magistra, onde se lê: “...a retribuição do trabalho, assim como não pode ser inteiramente abandonada às leis do mercado, também não pode fixar-se arbitrariamente; há de estabelecer-se segundo a justiça e a eqüidade. É necessário que aos trabalhadores se dê um salário que lhes proporcione um nível de vida verdadeiramente humano e lhes permita enfrentar com dignidade as responsabilidades familiares” (nº. 68). Neste sentido, é igualmente contundente o magistério social de JOÃO PAULO II, expresso, sobretudo, na Laborem Exercens e Sollicitudo Rei Socialis.

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desenvolvimento humano, racional, cultural, tecnológico etc., exige uma revisão profunda do conceito de autoridade que busque integrar os diversificados processos de diálogo, co-participação, envolvimento, criatividade, afetividade, troca de experiências e de saberes etc., para que todos indistintamente se sintam e sejam, de fato, protagonistas da história que somos chamados a escrever.

- Uma “nova era” do Espírito? Não é difícil constatar por toda parte, em nossos dias, o

que alguns têm denominado “renascimento do homem espiritual” nos seus mais diversos aspectos e dimensões: crescimento acelerado e progressivo da busca de aproximação do sagrado; multiplicação e fermentação de grupos religiosos autônomos; manifestações privadas ou públicas de “transes” cognominados “espirituais”; propagandas alusivas ao nome de Jesus, Maria, os santos, o terço, difundidas em carros, caminhões, praças etc., etc. Toda esta carga emotiva que preferimos chamar de espiritualismo para diferenciar de espiritualidade, parece ser o resultado da conjugação de alguns fatores importantes, entre os quais salientamos:

a) a miséria, a fome, a exclusão, o desemprego etc., que geram insegurança e medo,

obrigando, sobretudo, as populações carentes a apelar para o sagrado como instância derradeira, à espera da intervenção mágica de Deus que, em algum momento aparecerá como “o salvador da pátria” e realizará “o milagre”, mudando para melhor as condições de vida do Povo;

b) a decepção com as muitas organizações políticas partidárias sem programa ou projeto

que encaminhe, na prática, as grandes causas populares, levando, em geral, o Povo simples a acreditar que só Deus, a reza, os santos, podem dar um jeito na situação;

c) uma vivência intimista, “privatizada” da fé que encontra sua correlação no sistema

capitalista globalizado, com a exaltação do individualismo na satisfação das necessidades pessoais em detrimento dos imperativos da coletividade;

d) por fim, este modo sui generis de viver a fé implicará, por conseguinte, no

desconhecimento, indiferença e/ou inexperiência em relação a Deus e seu Projeto; Jesus será visto e experimentado apenas unilateralmente como “doce”, “amável”, “bondoso” etc.: um Cristo sem conflitos (contra o que prescreve, p.ex., Mt 23 ou Lc 21,13-19), sem cruz (contra o que prescreve Lc 9,23; 14,27), sem reino (contra o que prescreve Mt 12,28; 13) e sem evangelho (contra o que prescreve Mc 1,15), que nunca enfrentou o poder do mal, que nunca se indispôs com ninguém, que pura e simplesmente abençoou o status quo da sociedade e da sinagoga do seu tempo. Caberá, então, a pergunta: A quem (pessoas) e a quê (instituições) interessa esse Jesus?

5.3. O salto de qualidade: “Examinem tudo e fiquem com o que é bom”

(1Ts 5,21) Nunca é demais recordar que a confusão de conceitos pode gerar práticas distorcidas e

incoerentes do ponto de vista da fidelidade à mensagem transmitida. Diferenciam-se, por exemplo, essencialmente, Tradição e tradicionalismo. A Tradição é coisa boa, tratando-se das raízes da nossa fé, expressas na comunhão com Jesus e seu projeto, depois confirmada pelos apóstolos e apóstolas na ação evangelizadora das comunidades da “primeira hora”, que não hesitaram em abrir-se ao Espírito e, diante de cada novo desafio, “reinventar” criativamente a Igreja, oferecendo respostas adequadas à realidade e aos sinais dos tempos e lugares (cf., p. ex., toda a trajetória de Atos dos Apóstolos).57 Já o tradicionalismo é apego intransigente e inflexível 57 Traduzido em nossos dias, poderíamos dizer assim: estamos diante de novos e múltiplos desafios e questionamentos que não existiram no tempo de Jesus, nem quando da realização do Vaticano II: bebê de proveta, transplantes, clonagem, divórcio, gravidez precoce, dependência química, tecnologia de vanguarda, globalização,

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ao passado que não admite o novo, a alternativa, a atualização, a inculturação. Na mentalidade e na prática do tradicionalista tudo se passa como se fosse possível fazer uma cirurgia plástica no rosto da história e transplantar o passado para o presente, de sorte que a conclusão a que se chega é a da involução; ou, em sentido inverso, coincidindo com a teoria do “eterno retorno” dos filósofos antigos,58 mais tarde retomada por Nietzsche, é o presente que volta ao passado, de modo que o universo repassa sempre, ao cabo de milênios, pelas mesmas fases. Uma teoria comprovadamente equivocada porque redutora, estreita, estática, que desconhece, por um lado, as leis naturais do desenvolvimento dos processos históricos e, por outro, atenta contra a própria fé e a teologia, uma vez que desde a criação (cf. Gn 1), o Criador cria e recria, muda todos os dias, transforma e evolui, fazendo do homem e da mulher, criados à sua imagem e semelhança, seus mais competentes co-criadores que são chamados a dar continuidade à sua obra na mesma dinâmica criadora e criativa.

Eis porque parece evidente que quem opta hoje pelo conservadorismo, no apego

saudosista ao passado, além de incorrer em alguns riscos no campo da realização humana, pode ainda comprometer gravemente a presença e a credibilidade do Evangelho e do cristianismo na história. Quem desconhece ou menospreza as leis da evolução e decide marchar alheio ou indiferente – e até contra – à história, rompe a comunhão natural com o Criador e a Humanidade peregrina, isola-se e, no isolamento se frustra porque, tendo chegado aonde chegamos, ninguém pode fugir da grande verdade contida no refrão: “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”. No que concerne propriamente à religião, para não se tornar ópio como denunciava Marx (seguido por Feuerbach, Nietzsche e outros), nem “neurose coletiva” (Freud), deve acompanhar os sinais dos tempos como verdadeiro Kairós do Deus cristão que sempre se manifestou (do Gênesis ao Apocalipse) e continua a manifestar-se nos acontecimentos e na história real que evolui todos os dias.

Responder, portanto, aos desafios, por mais inusitados e ousados que possam parecer, na

preocupação para que o Evangelho seja inculturado conforme a diversidade das realidades, situações e culturas, significará, em última instância, assumir e perpetuar o verdadeiro sentido da missão que é simultaneamente dinâmico e atual: “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade” (Mc 16,15; cf. Mt 28,19 e At 1,8).

5.4. Aparecida e o atual panorama latino-americano

5.4.1. A crise, mãe de novos tempos

Recordando nossa história recente, quando da queda do muro de Berlim, pelo menos três

grandes reações díspares apareciam no cenário mundial: a) a dos “marxistas ortodoxos” que recusaram, ipso facto e sem abrir-se para qualquer

argumentação, a política de distensão de Gorbatchev; b) a dos “capitalistas selvagens” que, ao contrário, aplaudiram o que seria – como de fato

foi, com o advento do neoliberalismo – a abertura de uma nova era, a da primazia do mercado; e,

desemprego, exclusão etc. etc. Nossa pergunta será, então: Como Jesus e seus apóstolos e apóstolas, guiados que eram pela liberdade e criatividade do Espírito, responderiam a esta realidade complexa? Como seria sua presença para fermentar a massa com o fermento bom do Evangelho? Seria uma presença meramente moralista, preconceituosa e excludente ou, ao contrário, seria uma presença ética e libertadora de todas as prisões? 58 Heráclito, + 540 a.C; Pitágoras, + 571 a.C; e os estóicos.

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c) a dos “sensatos ou equilibrados” que, em face do pluralismo e dos novos contextos sócio-culturais, percebiam a necessidade de uma revisão e atualização do marxismo histórico sem, contudo, cair na cilada de um sistema econômico que, ao privilegiar o capital e o lucro, preconiza a morte dos pobres, historicamente sem chances de concorrência com a idolatria do mercado.

Esta última tendência foi claramente percebida e acolhida, inclusive por João Paulo II,

tendo encontrado eco nas suas sábias, lúcidas e proféticas palavras, que esboçam um diagnóstico preciso para o nosso Continente: “O colapso do marxismo não deve ser considerado como o triunfo do sistema capitalista liberal...a América Latina há de reafirmar sua identidade a partir de suas raízes genuínas, para a construção de uma sociedade solidária, mais justa”.

Toda esta crise de ideologia e de valores certamente afetou o mundo inteiro, mas

repercutiu, muito especialmente, na América Latina que, conforme recente relatório da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), “é a região mais desigual do mundo”, somando hoje 208 milhões de pobres, entre os quais, 80 milhões sobrevivem em situação de extrema pobreza!

Análises de conjuntura responsáveis reconhecem que, na avaliação do conjunto, o

resultado é positivo. Ou seja, de Medellín até aqui, caminhamos e continuamos caminhando, na convicção de que o maior desafio é a solidariedade com as vítimas, na promoção de seus direitos e de sua dignidade, e na defesa incondicional da vida. A boa e alegre notícia gerada pela crise, parece, então, encaminhar-se para uma “purificação” dos critérios ideológicos, no amadurecimento da consciência e opção política, e na revitalização dos movimentos populares em andamento, colocando ou recolocando no poder, p. ex., nas últimas eleições, nomes que simbolizam os interesses e as causas populares, como Lula, no Brasil; Chávez, na Venezuela; Morales, na Bolívia; Correa, no Equador; Ortega, na Nicarágua; e, ainda a esperança que representam Fernando Lugo, no Paraguai e Rigoberta Menchú, na Guatemala...

5.4.2. “Uma andorinha só não faz verão”

Isto, porém, não quer dizer que estão resolvidos todos problemas. Permanecem grandes

desafios como sejam: a luta pela terra, ainda cobiçada e concentrada pelo latifúndio; o descaso no tratamento com as populações indígenas sobreviventes, manifesto, em muitas circunstâncias, no desrespeito à sua cultura e na falta de vontade política para demarcar suas terras; o preconceito e a discriminação em relação aos irmãos Negros e Negras que foram e, em muitos lugares, ainda são mártires da escravatura branca; a violência imposta pelo sistema, não só na América Latina, mas hoje no mundo todo, aos migrantes, submetidos à agressiva política que obriga ao rompimento de laços familiares, culturais etc.; a desestruturação da família, vítima do desemprego, da insegurança, do medo, do tráfico e consumo de drogas...; a ociosidade da juventude, conseqüência, em especial, da falta de oportunidade para competir e conquistar o mercado de trabalho; o desmatamento e a depredação da natureza, a poluição das águas, sobretudo, por grupos nacionais e estrangeiros que subordinam a harmonia do sistema ecológico à ganância de seus empreendimentos, comprometendo hoje a região amazônica que, em dados extra-oficiais, já está, na sua quase totalidade, vendida; o “olho gordo” dos Estados Unidos da América, que continua fixo no Continente, ambicionando reconstituir e ampliar a dominação imperialista, e roubar o resto de tudo que já nos roubaram...enfim, o capitalismo neoliberal que se impõe como juiz que julga os pobres e os sentencia: “condenados da terra” (Fanon).

Diante deste contexto, extremamente desafiador, seria ilusão pensar e acreditar que

nomes, pelo simples fato de representarem os anseios populares por libertação, possam realizar,

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sozinhos, a transformação de nossas sociedades. Estes seriam “salvadores da pátria”, cuja experiência histórica já tivemos, inclusive no Brasil, e comprovaram seu mais absoluto fracasso. A opção é, então, pela coletividade, no incremento qualitativo e quantitativo das múltiplas iniciativas já existentes, como o grito dos excluídos; as semanas sociais; a consciência negra; a mobilização das mulheres; a organização de menores, pescadores, catadores de papel, prostitutas, homossexuais...; os fóruns sociais em diversos níveis; as associações, sindicatos, igrejas e movimentos que articulem a luta dos pobres e trabalhadores; enfim, ações que sejam capazes de tecer e alimentar redes eficazes de solidariedade, para que todos tenham vida, e vida em abundância.

Mais, no plano estrutural e de interatividade com os políticos eleitos, além da vigilância

permanente que se impõe sobre cada um/a, com o objetivo de acompanhar sistematicamente seus passos, suas promessas, sua ética e a maneira como estão desenvolvendo seu mandato, fundamental será também, em todo este processo de democratização, que os eleitores sejam ouvidos, através de consulta que pode começar pelo município até chegar à cúpula; ou, através de plebiscito popular; ou, ainda, através de “secretarias de representatividade”, que poderiam ser estabelecidas, reunindo delegados e representantes das forças de movimentos e organizações populares, preocupados e afinados com os reais interesses do Povo e da classe trabalhadora.

No conjunto dessas ações, sinais visíveis do Reino, nunca esquecer a sabedoria do

apóstolo que deve ser também a nossa: bebendo no poço das experiências do passado, avançamos para frente, em direção à meta (cf. Fl 3,14), e continuamos a Caminhada, sem vacilar.

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66.. EE aa tteeoollooggiiaa ddaa lliibbeerrttaaççããoo:: oobbrraa ddee DDeeuuss oouu ddoo ddiiaabboo??

Aproveitando de modo especial o contexto e a motivação da V Conferência, fizemos uma pequena viagem, entrando no “túnel do tempo”, para chegar a nossos dias. Talvez, a partir dela, tenhamos mais elementos para responder a algumas perguntas que hoje são dirigidas não só à TdL, mas aos Pobres, às CEBs, ao rotulado “clero progressista”, aos “bispos vermelhos”, enfim, ao Povo de Deus...:

Será que a TdL e também as CEBs perderam sua “visibilidade”, nestes últimos anos,

porque, de fato, são obras do diabo?

Não obstante, com esta perda de visibilidade não foram eliminadas do processo histórico, tanto é assim que muita gente continua preocupada com elas. Então, que foi feito delas? Para onde foram? Onde se esconderam?

� Por que será que a TdL, as CEBs, os Pobres, incomodam tanto? Pelo que conhecemos da

Palavra (de Deus) também Jesus levantou tantas suspeitas, tantas polêmicas...foi acusado de “louco”, “comilão e beberrão”, levado ao tribunal, torturado e violentamente assassinado por dois poderes que se uniram para matá-lo: o império e a religião. Por quê?

� De acordo com a Tradição, sem tirar nem pôr uma vírgula – conforme já profetizava o próprio Jesus em relação à Palavra –, e levando em conta o desenrolar da história, será que a libertação é pura invenção do imaginário de Deus para enganar e iludir seus filhos e filhas?

� O Magistério do Concílio, de Medellín, as diversas encíclicas papais, documentos de Conferências Episcopais etc., portadores, em muitos casos, de linguagem mais dura e “violenta” que a dos/as teólogos/as da libertação, foram todos equivocados? Devem ser queimados ou jogados no lixo?

� Os incontáveis santos e santas, nossos mártires, amantes dos pobres e do Cristo Pobre, estarão ardendo no fogo do inferno por sua opção libertadora?

6.1. Visibilidade: critério de fidelidade?

O sal tempera, e não aparece na comida. E Jesus disse que nós somos o sal da terra. O

fermento leveda, mas não é visto. E Jesus disse que nós somos o fermento na massa. Se voltarmos nossos olhos para as comunidades primitivas, ostensivamente perseguidas pelo império, sobreviventes na clandestinidade das catacumbas, logo nos damos conta de que perderam toda a visibilidade e, não obstante, foi o tempo em que os cristãos assumiram, com todo o risco que isso comportava, mais plenamente sua identidade e missão.

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Hoje, podemos dizer o mesmo em relação às CEBs59 e também à TdL. É evidente que o império mudou de nome, a perseguição também é mais mascarada, mas os efeitos são os mesmos. Nas três últimas décadas, constata-se uma onda de (neo)conservadorismo60 que atinge e põe em xeque os espaços eclesiais (as igrejas), enquanto lugar de organização e militância que têm como meta a libertação integral, consolidada na “opção pelos pobres” (Medellín, Puebla). Os exemplos de Cuba e, mais especialmente, da Nicarágua, cujo processo revolucionário contou com a participação majoritária dos cristãos, contribuíram para fortalecer esta ideologia que passa a ver, na Igreja dos pobres, uma grande ameaça aos interesses do império, devido ao seu potencial libertador e transformador das realidades de opressão e injustiça.

É nesta conjuntura agressiva e desestabilizadora que terá início um longo inverno para a Igreja “Povo de Deus” e, por conseguinte, para as CEBs. Muitos são os que, dentro e fora das igrejas, aceitam, passiva ou ingenuamente, o ópio oferecido pelo império. A sujeição aos interesses imperialistas passará, então, a ser mediada pelo religioso, com a função específica de neutralizar os conflitos e frear os processos de libertação. Neste contexto, as igrejas particulares serão “convocadas” a enquadrar-se na lógica da Grande Disciplina.61 Paralelamente ao neoliberalismo político e com a globocolonização da economia setores da Igreja começam a divulgar, mundo afora, um “neoliberalismo religioso” ou um projeto de “pensamento único”, que acaba por inibir toda a beleza da diversidade das igrejas locais que costuram unidade em meio a um grande pluralismo. Há representantes, “de lá e de cá”, implementando práticas conservadoras e restauradoras da Grande Disciplina, o que, na prática, contradiz o Espírito do Concílio Vaticano II. Promove-se o esvaziamento de temas importantes como Igreja-Povo-de-Deus, ecumenismo, inculturação, a legítima autonomia das igrejas locais, etc. As CEBs, mesmo que de forma velada ou dissimulada, são incompreendidas e, em alguns casos, desprezadas, quando não atacadas, por setores da Igreja configurados nos seus quadros mais conservadores. São lançadas suspeitas de politização e marxização da fé cristã. Em contrapartida, não se percebe a capitalização da fé cristã que, muitas vezes, acaba acontecendo em grupos que não aceitam uma interpretação bíblica libertadora com uma exegese bem fundamentada, que atualiza e contextualiza a Palavra. Em geral, as leituras bíblicas escolhidas são aquelas que satisfazem os próprios interesses para justificação de posturas evangelicamente suspeitas. Há que considerar também que boa parte dos novos padres é oriunda do movimento carismático ou de outros movimentos conservadores. Há uma avalanche de espiritualismos que tentam induzir a juventude a expressões religiosas mais desencarnadas da fé.

Para todo este cenário, será fundamental não esquecer as colunas das igrejas primitivas – Pedro, Tiago e João –, que, ao acolher os clamores da igreja de Antioquia (da periferia), relativo à superação da obrigatoriedade da circuncisão para os gentios que aderiam ao cristianismo, exortaram vivamente as comunidades: “Não impomos nada. Apenas alertamos: não esqueçam dos pobres" (Gl 2,6.10). Era hora de “criatividade fiel”, mais do que “fidelidade criativa”. Melhor dizendo, urge a “reinvenção criativa”.

59 Cf. Para toda esta perspectiva, C. C. SANTOS & G. L. MOREIRA. CEBs: memória e utopia. Reflexões a partir do 11° Intereclesial. REB -Revista Eclesiástica Brasileira. 260 (2005) 874-899. 60 Cf., por exemplo, a obra bem fundamentada de EZCURRA, A. M. La Ofensiva Neoconservadora. Las Iglesias de USA y la Lucha Ideológica hacia América Latina. Madrid: IEPALA, 1982; ou, a de LIMA, D. M. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. Ambas são uma amostragem pertinente da ingerência e manipulação norte-americana do religioso na América Latina via “seitas”. No plano ideológico, lembramos o Documento de Santa Fe e o Plano Banzer, que são uma leitura sociopolítica da conjuntura latino-americana e da influência das igrejas nos movimentos de transformação social. Estes documentos estabelecem metas claras e precisas para limitar e, a curto e médio prazo, eliminar os efeitos provocados seja pela adesão à TdL, seja pela alternativa oferecida pelas CEBs. 61 Cf. J. B. LIBÂNIO. A volta à Grande Disciplina. São Paulo: Loyola, 1983.

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6.2. Da “teologia” da libertação à práxis libertadora

Em diferentes circunstâncias Jesus apela e chama a atenção para a importância de não cair numa tentação que é de todos os tempos: deixar a palavra se transformar em “verborréia” sem eco na vida, na prática cotidiana: “Quem ouve as minhas palavras e as põe em prática...” (Lc 6,47); “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu...” (Mt 7,21); “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim...” (Mc 7,6)...

CEBs, TdL, Opção pelos Pobres, nasceram, como vimos no Primeiro Testamento, com o Projeto do Deus Libertador. No Brasil e na América Latina, (re)nascem especialmente em fins da década de 50 e início dos anos 60 do século XX, impulsionadas pelo novo modelo eclesiológico definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, que recupera e reconhece o lugar do Povo de Deus, não mais apenas como “destinatário passivo” da evangelização, mas como “sujeito eclesial” e “protagonista da ação evangelizadora de toda a Igreja” (Santo Domingo).

Nas últimas quatro décadas, as CEBs, inspiradas na Palavra e abraçando a Opção pelos Pobres, foram um celeiro de vocações libertárias, políticas e sindicalistas, uma sementeira de movimentos populares e de pastorais sociais (como a CPT - Comissão Pastoral da Terra, CIMI - Conselho Indigenista Missionário, Pastoral Operária, Pastoral da Mulher Marginalizada, da Criança, do Povo de Rua, etc). Grande parte das lideranças do PT - Partido dos Trabalhadores (lamentamos que muitos tenham perdido esta referência) e do sindicalismo combativo nasceram nas CEBs. O MST - Movimento dos Sem Terra é também devedor das CEBs.

Portanto, ao contrário do que se possa imaginar, todas essas instâncias libertadoras da Igreja deixaram, sim, de “aparecer” – até porque o narcisismo nem é evangélico, nem é libertador! Deixaram os espaços fechados e mofados de nossas sacristias que não têm nenhuma relação com a evangelização. Deixaram os átrios de igrejas, muitas delas atreladas ao rito repetitivo e sem nenhum vínculo com a vida ou a realidade. Fizeram este movimento “para fora” na convicção evangélica do mandato: “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade” (Mc 16,15). O espaço “fora”, “mundano”, é o lugar da inserção, do engajamento, do compromisso. É nele que se define a missão: se o sal tem gosto e se o fermento é de boa qualidade (cf. Mt 5,13-16). É aí que se determina se estamos ou não temperando o mundo e dando a ele o apetitoso sabor do Evangelho e do Reino.

6.3. Fundamentalismos têm algum fundamento?

Fundamentalismo é sinônimo de heresia e das mais nefastas, porque na raiz do fundamentalismo está a extração do texto de seu contexto para adequá-lo ou adaptá-lo a interesses espúrios de pessoas, grupos ou situações. Faz o texto dizer o que não está na intenção original do seu autor. Obriga o texto a falar o que não era seu propósito. E, no caso específico do fundamentalismo bíblico, mata a palavra e a ação de Deus na história, subordinando o Espírito a critérios meramente subjetivos e pessoais.

Além de matar Deus, o fundamentalismo também faz Deus matar. Transforma Deus em assassino! A guerra entre religiões ou em nome delas...em nome de Deus! Não é sem razão que o grande expoente da teologia conciliar, H. Küng, profetizava que “sem um caminho que persiga com perseverança a unidade, o ecumenismo, não haverá paz sobre a terra”. Quantos são, hoje, os que matam em nome de Deus, realizando a profecia de Jesus: “...vai chegar a hora em que alguém, ao matar vocês, pensará que está oferecendo um sacrifício a Deus” (Jo 16,2). Em nome de quem é que Bush idealiza e promove suas guerras? Para ele, no entanto, são todas “guerras santas”. É gravíssimo!!! Questão, como comentava recentemente um amigo, esta, sim, para a

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Congregação para a Doutrina da Fé. Por que? Simplesmente porque neste “arranjo”, Deus passa, então, a falar o que nunca falou e a fazer o que nunca fez ou, o que é o mesmo, passa a falar o que eu quero que fale e agir como eu quero que aja. Em suma, é exatamente o que pretenderam fazer os fariseus, os doutores da lei e o sinédrio com Jesus.

Entre nossos melhores teólogos, biblistas e bispos, há quem tenha alertado para o fato de que, por exemplo, quem lê um dos quatro evangelhos e só fica com ele, não tem o conjunto da vida e da ação de Jesus; quem lê um único livro da Bíblia e fica apenas com ele, não tem o conjunto do Projeto de Deus ou da História da Salvação; do mesmo modo, quem toma exclusivamente um documento da Igreja – de preferência o que lhe interessa –, e a ele se agarra como tábua de salvação, não tem o conjunto do Magistério... A ação missionária, evangelizadora, pastoral da Igreja, não é unilateral e estática, mas se inspira no conjunto, no todo (Bíblia, Concílios, Conferências, Encíclicas, CDC - Código de Direito Canônico etc. etc.). Só o CDC não representaria o pensamento da Igreja, como só Medellín, isoladamente, não referendaria a Igreja no seu conjunto. Por que? Porque a Igreja é – ainda que haja quem queira reduzi-la a sinagoga –, na sua constituição e desenvolvimento histórico, por excelência, o espaço da fraternidade, da solidariedade, da diversidade, da liberdade, do respeito, católica (=aberta, católico se refere a aberto e não a denominação religiosa), onde há – ou ao menos deveria haver – lugar para todos e todas, inclusive para mim, o maior dos pecadores.

6.4. “Deus caritas et liberationis est”

Do conjunto de nossa reflexão deduz-se que a libertação – e a TdL – não é obra pessoal sua ou minha, nem dos/as teólogos/as que a sistematizam, nem do “clero progressista”, nem de “bispos vermelhos”, e muito menos do diabo! A TdL – tanto quanto as CEBs, tanto quanto a Opção pelos Pobres, tanto quanto a Igreja – é obra de Deus através da história!

Obra de Deus que ama profunda e incondicionalmente o seu Povo – e seu Povo Pobre! –, sem julgamentos maliciosos, sem preconceitos, sem discriminação, sem xenofobia, sem fundamentalismos. Ou, se preferirmos, em sentido inverso: com carinho, com ternura, com compaixão, com cumplicidade, com misericórdia, com respeito pela diversidade, com bondade, com amor...

Não há dúvida de que precisamos aprender muito do Deus-Amor que liberta e é o único e verdadeiro Senhor e Mestre (cf. Mt 23,8), beber no poço de sua sabedoria e de sua “espiritualidade” encarnada, que se faz Pobre para os Pobres, com os Pobres e nos Pobres (cf. Lc 10,21b).62 Para isso, no entanto, a primeira condição é a conversão a um autêntico processo de humanização. Um velho amigo especialista em cristologia faz um trocadilho interessante com a humanidade-divindade de Jesus, desmistificando o divino como realidade meramente mágica ou “milagreira”, que o teria isentado de todas as tentações e mazelas atribuídas ao ser humano. Diz ele: “Jesus não errou, não porque era divino, mas precisamente porque era humano. Nós erramos, não porque somos humanos, mas porque somos desumanos”.

Nesta humana divindade de Jesus manifestou-se toda a grandeza e beleza da solidariedade de Deus com a humanidade que sofre, vítima dos sistemas ainda desumanos. A única maneira de retribuirmos a este colossal gesto de amor é fazer a nossa parte na missão de colaborar com Ele, trabalhando para realizar, em nosso Continente, seu projeto de libertação total sistematizado na profecia de Isaías:

62 Cf. BENTO XVI. Deus caritas est, 15.

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“Vou criar um novo céu e uma nova terra. As coisas antigas nunca mais serão lembradas...Por isso, fiquem para sempre alegres e contentes...Farei de Jerusalém uma alegria, e de seu povo um regozijo...E nela nunca mais se ouvirá choro ou clamor. Aí não haverá mais crianças que vivam apenas alguns dias, nem velhos que não cheguem a completar seus dias...Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricarem. Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo, porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé” (Is 65,17ss; cf. Ap 21,1ss).

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77.. UUmmaa qquueessttããoo pprroovvooccaaddoorraa:: QQuueemm tteemm mmeeddoo ddaa tteeoollooggiiaa ddaa lliibbeerrttaaççããoo??

Em 1992, Frei Betto escrevia:

“Hoje em dia, fala-se muito em Teologia da Libertação (TdL). O presidente Reagan chegou a considerá-la ‘muito perigosa’ aos interesses norte-americanos na América Latina...”63

Passados 15 anos, voltam as preocupações com a TdL e com tudo o que ela representou e

representa em termos de transformação das muitíssimas estruturas injustas do nosso Continente. Isso numa conjuntura em que cresce a consciência política de nossos povos, com positivo e significativo despertar para a solidariedade, na construção de projetos alternativos; há, como vimos, o que muitos têm chamado uma “guinada para a esquerda”, reconstituindo, ainda que paulatinamente, o poder popular, que tem muito a ser trabalhado, mas o que conta é que foi dado o primeiro passo; a V Conferência, apesar das dificuldades já apontadas, envolveu muita gente que acredita e reclama o “outro mundo possível”, urgente e necessário.

A TdL é a sistematização da fé refletida e vivida em comunidade que, à luz da Palavra,

trabalha para transformar a realidade. A Palavra, conforme constatamos em nosso 2° capítulo, atravessa a história, manifestando seu potencial genuinamente libertador e revolucionário de um Deus presente, operante e amante da vida que, por amar o seu povo, o acompanha e fortalece, legitimando seu projeto de libertação de todas as forças hostis à construção do seu Reino. Estas forças têm nome, e também fizeram caminho na América Latina: hoje já não é Reagan, mas Bush que é um Reagan “piorado”, as elites, a minoria abastada, o latifúndio, as transnacionais, a mídia atrelada à burguesia, a corrupção... Estes são os verdadeiros inimigos de nossos povos e que, por isso, têm muito a temer porque também têm muito a perder. Estes estarão em permanente conflito com a TdL, com as CEBs, com a Opção pelos Pobres, enquanto instâncias que os confronta com o Deus da Vida que exige conversão constante para a partilha, a justiça e a solidariedade...Repetir e reafirmar de maneira atualizada, como se fez na Conferência de Aparecida, as opções de Medellín, consolidando a tradição latino-americana e caribenha de luta por justiça e libertação, é simplesmente catastrófico para o sistema econômico neoliberal! Eis aí pânico! O sistema neocolonialista, capitalista, imperialista, gerador de injustiça e morte, novamente ameaçado pelo poder popular e pelo cristianismo libertador!

Está aí, o gigante Golias que assume, entre nós, o nome de capitalismo neoliberal e é o

maior responsável pela fome, pela miséria e pela morte dos pobres que Deus ama. De outro lado, também está aí Davi, pequeno, frágil, que não dispõe mais que de uma pedra para enfrentar canhões. A luta é desumana, injusta e cruel. Mas há um “algo mais” que faz a diferença nesta batalha: Davi tem Deus a seu lado, e Golias não. Como nos velhos tempos da escravidão do Egito, “o Senhor dos que combatem é conosco, está com a gente. Ele é nossa fortaleza, é o Deus que nos defende”.

63 Catecismo Popular. São Paulo: Ática. 1992, 172.

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A convicção desta presença solidária e combativa do Deus da Vida em nossas lutas também é obra e dom do Espírito que pode tocar corações e motivar para ações libertadoras, na linha do que escrevia o Pe. José Comblin, chamando a atenção para a realidade que nos desafia:

“A economia neoliberal, a forma como se faz a globalização, não é inevitável. A superação deste sistema é a grande meta do século XXI. Não se fará em poucos anos. Há um despertar, mas ainda falta a participação dos cristãos nesse despertar. Os homens e as mulheres que ali estão já praticam vida evangélica. São da Igreja, mas precisam reconhecer-se, conhecer-se e mutuamente solidarizar-se em vista de mútuo apoio. Este será o papel das pequenas comunidades. Sem pequenas comunidades os heróis irão se cansar e desanimar. Com uma Igreja viva, os heróis podem multiplicar-se e mudar este mundo.[...] Há uma terrível contradição entre a aspiração à liberdade que nasce na revolução cultural dos anos 70 e o sistema de economia mundial que exerce uma ditadura nos corpos e nas mentes. Quem estiver na frente da luta para superar essa contradição dará um sinal. A mensagem de Jesus não será difundida a partir do poder, mas a partir de pessoas heróicas que se põem à frente do combate somente com a força e Deus”.64

“Ninguém pára esse vento passando, ninguém vê e ele sopra onde quer...” – é a certeza

que, cantada, alimenta a vida, a missão e os sonhos de nossas comunidades. É também a esperança que depositamos neste Kairós latino-americano e caribenho: seja ele espaço atento, aberto, acolhedor e dócil à ação do Espírito que, agindo na história, “renova a face da terra”, e é luz que ilumina e faz (re)descobrir toda a vitalidade da TdL, no texto lúcido e profético de Castel Romero, cujo conteúdo sintetiza magistralmente a nossa reflexão:

“A Teologia da Libertação não morreu, como não morreu Jesus na Cruz...

As lutas contra as cruzes de nossos povos continuam e sempre haverá teólogos e teólogas

que farão a relação entre estas lutas, a bíblia e a tradição profética.

A Teologia da Libertação não acabou. Tentaram destruí-la por todos modos, pois ela é uma teologia de esperança, sobretudo para nossas maiorias excluídas.

Tentaram destruí-la para colocar em seu lugar teologias da "tranqüilidade", para dizer que

Deus abençoa o que aí está consagrado pela mercantilização dos corpos e espíritos.

Mas vou dizer, com muita humildade, o que é a Teologia da Libertação e como ela é também universal e se assenta na tradição apostólica.

A Teologia da Libertação é... Lázaro saindo do túmulo após três dias sepultado... É a pecadora regando os pés do mestre com suas lágrimas.. É o leproso liberto da exclusão... É a cabeça de João Batista em uma bandeja, clamando aos céus! É a alegria da viúva vendo seu filho único ressuscitado! É o mestre ordenando ao vento e à tempestade para que cessem!

64 REB. As grandes incertezas na Igreja atual 255 (2007) 36-58, aqui, 57-58.

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É o pão que se multiplica para as multidões... É a angústia de Jesus na perseguição... É o chicote na mão do Mestre, expulsando os vendilhões do templo... É o menino do povo, de 12 anos de idade, ensinando os doutores... É Jesus chamando Herodes de raposa... É Jesus pedindo água à Samaritana... É o discípulo de Emaús sofrido com a execução do Mestre! É o pão e o vinho! É o Mestre andarilho anunciando a chegada do Reino! É o grito incômodo e aflito de Jesus na Cruz!

É tudo isso, na América Latina e Caribe, vivido por tanta gente apaixonada pelo Mestre e seu Reino.

Vocês que foram consagrados e consagradas para levarem a Boa Notícia Pobres.

Discípulos e discípulas, acusados de subversivos, torturados, presos, difamados,

silenciados, cuja voz libertadora nunca parou de ecoar por estes lados periféricos de Nazaré.

Vocês que emergiram dos pobres.

Vocês discípulos e discípulas de Emaús destas terras: não morreu a prática de libertação.

Refaçam o caminho de Emaús, e então perceberão que não morreu a Teologia da Libertação!”65

65 A teologia da libertação vive! Disponível em: www.cebsuai.org.br.

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8. Na ante-sala de Aparecida

8.1. “O Reino continua...” - Entrevista com D. Pedro Casaldáliga

Carlos: Querido D. Pedro, sua circular fraterna de 2007, A VERDADE, PILATOS, É..., que, com certeza, para muitos de nós foi luz neste Kairós latino-americano, para setores conservadores da Igreja, no entanto, teve repercussões nada fraternas...As reações, contudo, trouxeram algo de positivo: no contexto da V Conferência do CELAM, revelaram que ainda subsiste medo (e em alguns casos pânico!) quando a América Latina se reúne para buscar seus próprios e legítimos interesses e caminhos. Isso corresponde à realidade? Por que? D. Pedro: O contexto da V Conferência está suscitando amores e temores, sonhos e fechamentos. Tudo depende do "lugar" e da "visão"; da opção, sobretudo. É verdade que América Latina eclesialmente suscita uma reação de controle nas altas esferas. Nossa América, a partir de Medellín, e com toda a criatividade espiritual, teológica e pastoral, é vista como um fenômeno díscolo, perigoso para unidade católica, "mau exemplo" para comunidades do Terceiro Mundo e do Primeiro Mundo também. O centralismo não permite "aventuras", que para nós são fidelidades... Carlos: O tema escolhido para Aparecida, “Discípulos/as e missionários/as de Jesus Cristo, para que n’Ele nossos povos tenham vida”, é muito sugestivo na motivação para a transformação das nossas realidades de morte. Quais seriam, hoje, as principais características do/a discípulo/a que segue Jesus na América Latina? D. Pedro: Sempre a principal característica do discipulado cristão foi e será a paixão por Jesus, pelo Pai e pela família humana do Pai, explicitada na vida, na práxis, na paixão pelas causas de Jesus, pela causa total de sua vida: o Reino do Pai. Isso se desdobrará, "ubicadamente, situadamente", em opção pelos pobres, em vivências e práticas de libertação, em fidelidade radical, muitas vezes até o martírio, em oração e em partilha diárias. Carlos: O atual contexto Latino-americano que, conforme Você diz, “está dando uma virada para a esquerda”, poderia influir na Conferência de Aparecida, contribuindo para que ela seja uma versão atualizada, inculturada, p. ex., de Medellín? Como? D. Pedro: O processo da Teologia da Libertação está dando uma resposta a essa pergunta. Os pobres são os empobrecidos, a violência contra os pobres é estrutural, a fé católica deve ser cada vez mais cristã e mais reinocentrista, e por isso mesmo, mais ecumênica e mais macro-ecumênica. Os "sujeitos emergentes" (povo indígena, povo negro, a mulher, a juventude, a inter-solidariedade, o diálogo inter-religioso...) entram com personalidade própria numa teologia e numa espiritualidade situadas e que pretendem responder "às perguntas que se fazem" a partir da vida e da historia.

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Carlos: Tendo em conta estas muitas Causas que ainda estão em jogo no Continente, como Você coloca: índios, negros, terra, mulheres, ecologia etc., de que maneira as opções pelos Pobres, pelas CEBs, pela TdL (teologia da libertação) podem colaborar efetivamente para responder a estes desafios, e diminuir as barreiras da exclusão? D. Pedro: Explicitando um pouco a resposta anterior, essas opções, esses sujeitos, obrigam a uma práxis que arranca da realidade e responde à realidade, com aquela abrangência que repetia o mártir Ellacuria. Eu gosto de repetir, seguindo a nossos mestres (e tentando seguir ao Mestre Jesus) que os desafios, as responsabilidades, a missão devem-se viver no dia a dia, na vida normal de cada um e cada uma de nós, a partir da família, da vizinhança, na participação nas comunidades eclesiais, no movimento popular, no testemunho pessoal de uma vida sem descriminações, sem "as barreiras da exclusão". Toda vida pode ser uma profecia. Carlos: O filósofo J.-P. Sartre dizia que “o existencialismo é um humanismo”. Como Você completaria o pensamento: “o capitalismo neoliberal é...” D. Pedro: O capitalismo neoliberal é o homicídio e o suicídio de uma sociedade humana. Carlos: Que palavras de estímulo e de esperança Você diria para os Pobres e os solidários de sua Causa, nesta hora especial e decisiva para a Pátria Grande? D. Pedro: Deus é o Deus da Vida e do Amor. "Tudo é Graça". Todas as pessoas humanas somos filhos e filhas de Deus e, por isso mesmo, irmãos e irmãs. O nosso DNA é a esperança. Somos Páscoa na Páscoa do Crucificado Ressuscitado. O Evangelho de Jesus de Nazaré proíbe o medo, a decepção e a paralisação. Nossa América é um continente de mártires, vencedores da morte e testemunhas da esperança. Contra todos os impérios, o Reino continua. Carlos: Muitíssimo obrigado, D. Pedro, por suas sempre sábias, oportunas e iluminadas palavras, que fecham nosso trabalho com chave de ouro, porque muito nos encorajam a permanecer fiéis, no caminho do Reino e dos Pobres!

8.2. Memória e compromisso: o Pacto das Catacumbas

No dia 16.11.1965, ao término do Vaticano II, cerca de 40 Padres Conciliares concelebraram nas Catacumbas de Domitila uma Eucaristia, pedindo fidelidade ao Espírito de Jesus. Após essa celebração alguns deles firmaram o que ficou conhecido como o “Pacto das Catacumbas”.* Reproduzimos na íntegra o texto do documento que é de conteúdo eminentemente libertador, antecipando profeticamente o que seria o caminho da Igreja latino-americana, a partir do perfil traçado por Medellín.

“Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e

* B. KLOPPENBURG. Concílio Vaticano II. Vol. V, Quarta Sessão. Petrópolis: Vozes, 1966, 526-528.

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dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue: 1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que

concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

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11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:

- a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

- a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

- esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles; - suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o

espírito, do que uns chefes segundo o mundo; - procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...; - mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s;

At 6,1-7; 1Tim 3,8-10. 13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos

diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

Ajude-nos Deus a sermos fiéis”.

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99.. AA CCoonnffeerrêênncciiaa ddee AAppaarreecciiddaa nnoo ccoonnfflliittoo ddaass iinntteerrpprreettaaççõõeess

Conforme previsto, realizou-se, de 13 a 31 de maio de 2007, a V Conferência Geral do

CELAM, no Santuário de Aparecida, São Paulo, Brasil, que emitiu o esperado DA. Na mídia e nas entrevistas concedidas por bispos e participantes, a impressão que se tinha

era a de uma Assembléia tranqüila, pacífica, em que tudo ia sendo resolvido pelo diálogo maduro e consensual das partes. Não obstante, terminados os trabalhos e ouvidos os depoimentos, logo foi possível dar-se conta de que, na verdade, nem tudo foi assim tão simples quanto aparentava.

9.1. O tráfico de influências É evidente que um conjunto de fatores prévios e concomitantes ao evento contribuiu,

direta ou indiretamente, para criar expectativas tanto nos comumente chamados setores conservadores quanto progressistas,66 que esperavam ver confirmados seus respectivos modelos de Igreja. Daí, um clima natural de receio, constrangimento, instabilidade ou insegurança, em relação à V Conferência. Afinal, qualquer assembléia – bem como o documento que ela eventualmente produza – é o resultado de influências internas e/ou externas ou, se preferirmos, é o texto que deve ser lido no seu contexto.67

9.1.1. Preparativos: “A Assembléia começa antes da Assembléia”

A Conferência de Aparecida fez todo um percurso antes da Assembléia, no envolvimento

de nossas inúmeras Comunidades, com o objetivo de estudar, refletir, aprofundar e, sobretudo, propor criativamente caminhos novos e alternativos para a construção de um plausível e eficaz projeto de evangelização para o Continente. Instrumentos como o Documento de Participação, o valioso subsídio de Carlos Mesters e Francisco Orofino, nos Dez Círculos Bíblicos sobre o seguimento de Jesus na América Latina, e a própria Assembléia da CNBB às vésperas da Conferência, contribuíram para incrementar e enriquecer o debate. Há quem tenha avaliado que, neste processo preparatório, Aparecida superou, em nível de participação do Povo de Deus, todas as Conferências anteriores. É natural que quando o Povo se reúne e se une para organizar-se e buscar suas próprias saídas e mecanismos para a superação das desigualdades, os que são afeiçoados e atrelados ao poder, seja ele social, econômico, político ou religioso, sentem-se, de algum modo, ameaçados, agredidos e abalados.

9.1.2. Fatores críticos e destoantes

66 Estas terminologias tradicionalmente usadas, embora contribuam para elucidar teorias e práticas opostas, não correspondem, como já lembrou alguém, à proposta geral do DA que, no seu conjunto, permite entrever que o contrário de conservador já não é progressista, mas “missionário”. 67 Uma análise rica e detalhada sob este aspecto pode ser encontrada no artigo de A. BRIGHENTI, Criterios para la lectura del Documento de Aparecida. El pre-texto, el con-texto y el texto. Dispomos do original em espanhol que recebemos por e-mail, com a promessa de que a tradução portuguesa será publica pela revista Convergência, da CRB.

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O conservadorismo de parte das elites latino-americanas continua defendendo, em certos casos, exagerada e fanaticamente, o retrocesso ao pré-Concílio. Há, na corrente, quem recue ainda mais no tempo e pretenda registrar este “pré”, por exemplo, lá em Trento ou Pio V (séc. XVI). Esta ala, ora de maneira mais sutil, ora mais hostil, de acordo com as circunstâncias, esteve presente e agiu em Aparecida, antes e durante a Assembléia. Não nos deixam mentir, só para citar alguns exemplos, as campanhas de Felipe Aquino, o “teólogo do deus pagão”, da Canção Nova e seus adeptos, orquestradas e amplamente divulgadas pela internet e outros meios de comunicação, às vésperas do evento, contra a Opção pelos Pobres, as CEBs e a TdL; ou, a ação planejada, durante a Conferência, por pessoas e grupos dedicados ao trabalho anônimo e silencioso, entre os quais o que ficou conhecido como a “greve dos dedos” na área da digitação, ou o dos cognominados “mão branca”, experts na arte de burlar ou sumir com os textos encaminhados; ou as manobras imputadas à própria Comissão de Redação que, não se sabe segundo que critérios ou em conformidade com que instâncias, eliminava ipso facto algumas propostas mais evangelicamente radicais...

Neste quadro se inscreve também a “notificação” da Santa Sé ao Pe. Jon Sobrino, grande

expoente da TdL, que constituiu prato feito, sobretudo, para alguns setores conservadores que, de imediato, se apropriaram dela, denominando-a “condenação”. Se houve uma parcela significativa das sociedades da América Latina e do mundo que se solidarizou com o teólogo notificado, não deixou de haver, em contrapartida, uma rede de intrigas, que já condenava Sobrino e, com ele, os demais teólogos ligados à TdL. A idéia difundida era a de que estaria preparado o terreno para a visita do Papa e a celebração da V Conferência que, na seqüência dos acontecimentos, condenariam explicitamente toda a tradição teológica latino-americana e caribenha. Este diagnóstico antecipado certamente foi determinante, tornando tenso, para alguns, o clima de preparação e realização da Assembléia, que tinha em conta os grandes desafios e compromissos relacionados ao modo peculiar de ser Igreja, preconizado por Medellín.

9.1.3. O clima da V Conferência

9.1.3.1. A conexão com a “aldeia global” Aparecida é a primeira Assembléia do CELAM em conexão aberta e direta com a “aldeia

global”, através da tecnologia de ponta que disponibiliza hoje as mais diversificadas vias, quais sejam o celular, a internet, e todos os elos que, a partir daí, podem ser articulados. Este estar permanentemente “plugado”, apesar de condição para acompanhar o trem da história, manifesta-se, não raro, como restrição de liberdade e privacidade. Em outras palavras, já não é possível fazer nada às escondidas. Acontecia lá, e a notícia chegava on-line cá. Por conseguinte, e aqui um dado importante, não há mais como conceber uma assembléia privada ou secreta, isenta deste tráfico de influências que, com certeza, circulou e permeou a V Conferência.

9.1.3.2. O ambiente de santuário

O ambiente em que se realiza a Conferência também é original: um santuário, aberto ao

Povo, aos Pobres, às romarias, à religião e à cultura popular, em um cenário que mantém no ar o “espetáculo” praticamente 24 horas por dia, favorecendo a aproximação, encontros, contatos diretos, diálogo etc. Recordando nosso irmão, Gustavo Gutiérrez, neste imenso Altar do Povo, Bispos e Delegados e Delegadas da Assembléia tiveram que beber no poço dos Pobres. Uma realidade, portanto, que, por si só, no mínimo, questiona, desinstala e faz pensar.

9.1.3.3. A representatividade

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De acordo com a estatística fornecida por Brighenti, os 268 participantes da Assembléia se fizeram presentes nas categorias de membros, convidados, observadores e peritos. Apenas os membros: cardeais, arcebispos e bispos tinham direito a voz e voto, somando 123 votantes. Os demais só tinham direito a voz. Entre os convidados estavam bispos, presbíteros, diáconos permanentes, religiosos e religiosas, e leigos e leigas representantes de movimentos e outros organismos. Observadores eram os representantes de outras Igrejas ou denominações religiosas. Os peritos, num total de 15, eram teólogos que colaboraram na reflexão e elaboração do Documento. Também estiveram presentes: 17 membros da Cúria Romana; 12 bispos e convidados de outras conferências episcopais (Canadá, EUA, Espanha, Portugal, África, Europa e Ásia); 5 superiores religiosos maiores; 3 da CLAR; e, 6 de movimentos eclesiais e organismos de ajuda.

Duas observações importantes: 1. Mais da metade dos integrantes da V Conferência não eram bispos; 2. Mais de 50% da Assembléia, portanto, apesar de não ter tido direito a voto, teve direito

a voz, tendo participado efetivamente de todo o processo, falando e sendo ouvida.

9.1.4. As surpresas do Espírito

O sopro suave e contumaz do Espírito, que faz novas todas as coisas (cf. Ap 21,5),

também influenciou, desconcertou e surpreendeu em Aparecida. Eventos acentuadamente eclesiais, não paralelos, conforme suspeita e acusação de alguns, mas complementares, expressaram sintonia e comunhão com a Assembléia, tornando-se momentos fortes de oração, de contemplação, de fé comprometida e espiritualidade libertadora. Entre essas manifestações do Espírito divino estão:

9.1.4.1. O Seminário de Teologia

Promovido pelo CNLB, que reuniu teólogos e agentes de pastoral do Continente e de fora;

transmitido também on-line, o seminário atingiu e interagiu com quantidade expressiva de internautas, contribuindo, efetivamente, para retomar e consolidar a tradição teológica latino-americana e caribenha que arranca, em especial, de Medellín, consagrando a TdL como profética “articulação do grito do oprimido”.

9.1.4.2. O Fórum de Participação

Mobilizando pastorais, movimentos, organismos e entidades, e envolvendo a opinião

pública, o Fórum de Participação chamou a atenção para a importância do evento que não se restringia às esferas internas ou hierárquicas da Igreja, mas estava aberto e intimamente vinculado à vida de todo o Povo de Deus, especialmente à sua parcela que habita a América Latina e o Caribe.

9.1.4.3. A Romaria das CEBs, PJ e PO

As CEBs juntamente com a PJ e a PO, atravessaram corajosamente a noite de 19 de maio,

com paradas que iam refletindo e resgatando as opções das Conferências anteriores, para manter viva a memória do que já foi conquistado, devendo ser atualizado e incorporado ao projeto de Aparecida.

9.1.4.4. A Tenda dos Mártires

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Uniu à “memória perigosa” do Jovem de Nazaré – o Crucificado-Ressuscitado – o

seguimento conseqüente de uma multidão de discípulas e discípulos seus na América Latina e no Caribe, celebrando o amor ao Reino e aos Pobres, sonhando a aventura da fraternidade e da justiça, e alimentando a esperança de construir, na fecundidade do sangue dos Mártires da Caminhada, o outro mundo e a outra Igreja possíveis.

9.1.4.5. A presença e assessoria de Ameríndia

68 Uma rede de católicos das Américas com espírito ecumênico e aberta ao diálogo e à

cooperação inter-religiosa com outras instituições; seu papel foi especialmente decisivo por defender a prioridade da opção pelos pobres e excluídos, inspirada no Evangelho, atualizando a herança das Conferências precedentes, para responder aos novos desafios enfrentados por nossos países e provenientes da globalização neoliberal.

9.1.4.6. O Discurso Inaugural de Bento XVI

Diferentemente do que esperavam e desejavam os setores conservadores, o DI do Papa

que abriu a Assembléia não os legitimou e, menos ainda, os autorizou. Ao contrário, sua fala está marcada por ingredientes que combinam conhecimento da realidade, leitura crítica da conjuntura, denúncia dos sistemas de corrupção e de morte e orientação para uma opção concreta e eficaz pelos pobres e excluídos. Mesmo à postura equivocada segundo a qual “...o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha”,69 correspondeu, a partir das reações de comunidades indígenas e afro, a correção de Bento XVI: “...a memória de um passado glorioso não pode ignorar as sombras que acompanharam a obra da evangelização do continente latino-americano... os sofrimentos e as injustiças que os colonizadores infligiram à população indígena, frequentemente pisoteada em seus direitos fundamentais... condenados, já então, por missionários como Bartolomé de las Casas e teólogos como Francisco de Vitoria”.70

É mais do que evidente que o conjunto dessas influências repercutiu muito mais positiva

do que negativamente, conferindo à Assembléia de Aparecida um rosto novo, próprio, característico, diria, mais conciliar, popular, aberto e ecumênico, enquanto considerou, permitiu e, em muitos casos, integrou os múltiplos processos eclesiais e pastorais aí visivelmente unidos e reunidos.71 Revelou-se, mais uma vez, a novidade do Espírito que adora variar e, como cantam as comunidades, “barra o caminho dos maus... mas dá força ao braço dos bons”.

9.2. A usurpação de poder O documento conclusivo original, votado, aprovado e consagrado pela Assembléia de

Aparecida, para além de todos os matizes relativos ao seu contexto, constitui um todo harmônico belíssimo que consolida a tradição teológica e eclesial da América Latina e do Caribe, tendo encontrado respaldo até mesmo da teologia mais crítica, como a representada, por exemplo, pelo Pe. José Comblin.72 Não obstante, como já adverte o ditado, “há algo de podre no reino da Dinamarca”. E oxalá fosse só da Dinamarca...

68 Cf. www.amerindiaenlared.org. 69 DI no DA, pg. 268. 70 Citado por A. BRIGHENTI. Art. cit., 5. 71 Um número significativo de bispos e presbíteros presentes ou não na Conferência, acolheu, sem restrições, as atividades religiosas promovidas pelo Povo de Deus, contribuindo com sua presença e/ou presidência da Eucaristia. 72 Cf. O projeto de Aparecida, disponível no site: www.cebsuai.org.br.

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9.2.1. As alterações do texto original

Enviado ao Papa para aprovação final, o texto, aprovado para publicação, retorna com

diversas modificações entre cortes e acréscimos, junções e disjunções etc., comprometendo, visivelmente, entre outros, os itens concernentes às CEBs.73 O teólogo chileno Ronaldo Muñoz, por exemplo, destaca 34 adulterações que relativizam e desvirtuam o sentido do texto, que, por fim, acabou reduzido de 573 para 554 parágrafos. À procura do responsável ou dos responsáveis, as pressões por diversos meios (troca de correspondências, manifestações, abaixo-assinados etc., em especial na internet) e a mídia, apresentam uma primeira versão para o mistério: as alterações não seriam provenientes de Roma, mas de autoria do próprio Presidente e Secretário-geral do CELAM na ocasião, respectivamente, o Cardeal chileno Francisco Javier Errázuriz Ossa e seu colega, Andrés Stanovnik, da Argentina que, em princípio, direta ou indiretamente, admitiram ter mudado o documento original antes de entregá-lo a Bento XVI.74 Mais tarde, ambos se justificaram com declarações, cartas etc. sem, porém, levar a bom termo a questão que continua em aberto.

9.2.2. A reação da CNBB

A CNBB, de início, igualmente surpresa, condenou a manipulação do texto original, na

palavra abalizada de Bispos como o Cardeal Geraldo Majella Agnelo, D. Raymundo Damasceno Assis, atual Presidente do CELAM, D. Luiz Soares Vieira, D. Demétrio Valentini, entre outros, lembrando que “o Papa respeitaria o que os Bispos decidiram”.75 Mais adiante, perante do impasse provocado pela obscuridade das notícias, a CNBB opta por uma posição de conciliação, disponibilizando em seu site uma Comunicação à Imprensa através da qual D. Andrés Stanovnik transfere toda a responsabilidade das modificações para a Santa Sé.

9.2.3. Manifestações e protestos

Esta controvertida manipulação de partes do texto original trouxe para o centro do debate

uma série de contribuições, manifestações, reflexões, protestos etc., o que, com certeza, pode e deve ser considerado um bem no contexto não só do legítimo direito à discordância, como também à defesa de uma ética de transparência. Afinal, filha da discórdia e da crise que brotou já nas origens do cristianismo com as também controvertidas, e até contraditórias, eclesiologias de Pedro e Paulo, as Igrejas são geradas, crescem e amadurecem no respeito mútuo e no diálogo fraterno, como na busca de comunhão e unidade, que nos fazem olhar e caminhar na mesma direção, embora por estradas diferentes. Precisamente como os dois apóstolos citados que, por vias diferentes, chegaram ao Senhor, “um pela cruz e outro pela espada”.

9.2.4. “O jeito do cachimbo deixa a boca torta”

Há, porém, uma questão de fundo que a alteração do texto original de Aparecida lança,

embora não explicite. Não é a primeira vez que um documento desta importância é adulterado à revelia de uma assembléia validamente constituída, como é o caso das Conferências Episcopais, 73 DA, texto original: 193-196; cf. texto oficial: 178-180. Nunca é demais lembrar que, independente das suspeitas que possam ser levantadas em relação às CEBs sobretudo nos centros de poder, elas não deixarão de ser, de acordo com a profecia de Paulo VI, “um lugar de evangelização para benefício das comunidades mais amplas, especialmente das Igrejas Particulares, e serão uma esperança para a Igreja universal” (EN, 58). Posição, aliás, reafirmada no DA que insistirá na reestruturação das paróquias como rede de comunidades, conforme veremos mais adiante. 74 Para toda a questão, cf. as reportagens de J. M. MAYRINK. O Estado de São Paulo, nas edições de 16 e 17/08/2007. 75 ID. Idem, 16/08/2007.

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que têm normas pré-estabelecidas, entre as quais a que determina que somente o Papa pode modificar o conteúdo do documento votado e aprovado, deliberando ou não sobre sua publicação. As Conferências de Medellín e Puebla, e até o Vaticano II, registraram maquinações da mesma natureza. Está vivo o Cardeal colombiano López Trujillo que poderá comprová-lo.

O processo funciona, então, mais ou menos assim: a manipulação e as modificações

executadas no documento original são como uma dor de cabeça, que nada mais é do que o sintoma de um mal maior que ela acusa no organismo, podendo ser estômago, fígado, rins etc. que serão, então, a causa do sintoma. De igual maneira, a mudança arbitrária do texto é tão-somente sintoma de uma causa que, esta, sim, precisa ser combatida e erradicada, a saber, a estrutura de poder, ou o modo como esse poder é exercido na comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir (cf. Mc 10,45), e impõe como condição para seu seguimento que, o maior seja o servidor (cf. Mt 23,11). Esta é a questão central ou nevrálgica, da qual não se pode mais fugir e que, se enfrentada com honestidade, poderá varrer definitivamente da nossa história, da nossa teoria e militância todo despotismo e sede de poder que não coadunam, em nenhuma hipótese, com o seguimento de Jesus.

9.2.5. “Não entristeçam o Espírito Santo”

Nesta perspectiva se excluem, por conseguinte, as justificativas, pois, além de não

convencerem, tampouco atacam a causa ou o mal pela raiz. Desculpas como as que foram propaladas, alegando forma, estética, ou seja lá o que for do texto alterado, não resolvem o problema de fundo que permanece: alguém que, seja quem for, auto-suficiente, abusa do poder relacionado ao cargo que ocupa, e muda, conforme seus próprios critérios e interesses, o que fora aprovado e votado por uma maioria. Assim compreendida, a questão não é pura e simplesmente a da volta ou não do texto original, mas da reconstituição de um processo em que o poder absolutista falou mais alto que o poder serviço do Evangelho, abafando e entristecendo o Espírito Santo (cf. Ef 4,30).

Na atual conjuntura socioeconômica e política, em que a Igreja tem criticado com

veemência e condenado profeticamente a avalanche de corrupção em todos os níveis, denunciando o acintoso abuso de poder que despreza e exclui os pobres, não deverá partir dela, em primeiro lugar, o testemunho evangélico de uma ética transparente e condizente com o espírito do Evangelho que é Boa Nova da verdade que liberta (cf. Jo 8,32)? Em contexto dos regimes de força, que supomos definitivamente sepultados, o Concílio já rejeitava os totalitarismos, ditaduras, absolutismos e intolerâncias que nada mais são que contra-testemunho e idolatria (cf. GS 75).

Toda a contenda em torno da manipulação do DA constitui, incontestavelmente,

desrespeito à Assembléia, ao Povo de Deus da América Latina e do Caribe e, portanto, à Igreja, configurando pecado contra o Espírito Santo (cf. Mc 3,29; Mt 12,31). Por outro lado, como já se alertou, seria irresponsável uma supervalorização deste aspecto negativo, prescindindo do rico patrimônio da fé cristã que arranca agora de Aparecida.

9.3. O DA: O Espírito divino sopra mais forte que os espíritos de porco

9.3.1. O fio condutor

Para o (a) leitor (a) atento (a), não será difícil perceber que o texto do DA, seja o original

ou oficial, traz uma série de ambigüidades e contradições, o que, até certo ponto, é natural por tratar-se, como vimos, de um documento redigido a partir de uma diversidade muito grande de

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contribuições, intervenções, acordos e influências que, somadas, negociadas e votadas, resultaram, então, no documento final. Visto no seu conjunto, no entanto, o DA não representa retrocesso, legitimando, por exemplo, conforme se esperava, o conservadorismo ou os arautos de uma neo-cristandade em curso, em determinados campos da sociedade e da Igreja. Ao contrário, professando e propondo, desde o início, continuidade afinada e, ao mesmo tempo, atualizada, com o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) e as Conferências precedentes do Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), o DA não fundamenta suas conclusões em verdades absolutas ou em um pretenso senhorio da verdade, mas assume com humildade a condição de parceria, inserindo-se no quadro das grandes transformações atuais (cf. DA 33), que faz da Igreja uma instância a mais, entre muitas outras, de serviço à construção do Reino e, portanto, do “outro mundo possível”.

9.3.2. Visão de conjunto

Mantendo postura crítica em relação a modelos eclesiológicos e doutrinais que destoam

do espírito do Concílio (cf. DA 100b), o DA convoca os cristãos e as cristãs para a inaudita tarefa de assumir a cultura atual,76 como meio imprescindível de conhecer, falar e compreender a linguagem contemporânea (cf. DA 480),77 e mergulhar sem medo na era da modernidade, respeitando a legítima autonomia do temporal e das ciências, em nosso mundo marcadamente pluralista. Neste contexto, centrar toda a ação evangelizadora na convivência dialogal e respeitosa com o diferente e consolidar a emancipação da tutela da Igreja, enquanto sacramento do Reino, é condição indispensável para que ela cumpra sua missão de caminhar solidariamente com toda a humanidade peregrina (cf. DA 384; Lc 34,13ss), e resgate a credibilidade histórica. Com este pano de fundo, no conteúdo como na forma, o DA se apresenta atraente e criativo e, conjugando harmonia, beleza e profundidade pastoral e teológica, parece ser um dos projetos missionários mais bem articulados dos últimos tempos. Nas palavras de Fr. Clodovis Boff, “uma surpresa do Espírito” e “o ponto mais alto do Magistério da Igreja Latino-Americana”.78

Não temos nenhuma pretensão de ser ou ter a última palavra em relação a um assunto que,

por sua própria natureza, é prioritariamente comunitário e deve ser amplamente socializado. Consequentemente estamos convencidos de que, diante da densa e rica proposta expressa no DA, o Espírito suscitará, como já vem suscitando, muitas outras reflexões, com o objetivo de complementar o acervo de subsídios que buscarão enriquecer e iluminar, a partir das intuições de Aparecida, a missão das discípulas e dos discípulos espalhados e simultaneamente congregados por toda a nossa Pátria Grande bolivariana. Daí, nossa opção por lançar sobre o DA um olhar de conjunto, tentando realçar nele, ainda que em tópicos e en passant, os principais aportes que encorajam e sustentam a missão das cristãs e dos cristãos, chamados a ser fermento, sal e luz (cf. Mt 5,13-16), que transformem, por sua ação evangelizadora e libertadora, a América Latina oprimida em “Continente da Esperança” e da Justiça, para que todos e todas e tudo tenham Vida.

9.3.3. Esquema geral do DA

O DA, aqui de acordo com o texto oficial, está esquematizado como segue, onde os

números entre parênteses correspondem aos respectivos parágrafos: Introdução (1-18) Primeira Parte: A vida de nossos povos hoje (19-100) Capítulo I: Os discípulos e missionários (20-32)

76 Já foi lembrado que a inculturação já é uma das opções da Conferência de Santo Domingo (1992). 77 No horizonte, p.ex., das diretrizes estabelecidas pela CNBB, Doc. 80: Evangelização e missão profética da Igreja. 78 Entrevista à revista IHU On-Line: www.unisinos.br.

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Capítulo II: Olhar dos discípulos e missionários sobre a realidade (33-100) Segunda Parte: A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários (101-346) Capítulo III: A alegria de ser discípulos missionários para anunciar o Evangelho de Jesus

Cristo (101-128) Capítulo IV: A vocação dos discípulos missionários à santidade (129-153) Capítulo V: A comunhão dos discípulos missionários na Igreja (154-239) Capítulo VI: O caminho de formação dos discípulos missionários (240-346) Terceira Parte: A vida de Jesus Cristo para nossos povos (347-546) Capítulo VII: A missão dos discípulos a serviço da vida plena (347-379) Capítulo VIII: Reino de Deus e promoção da dignidade humana (380-430) Capítulo IX: Família, pessoas e vida (431-475) Capítulo X: Nossos povos e a cultura (476-546) Conclusão (547-554)

9.3.4. As linhas-mestras

Optamos por colocar em destaque aqueles traços que, a nosso ver, parecem ser os mais

característicos ou fundamentais do DA, constituam eles novidade em relação ao novo projeto de evangelização proposto para o Continente ou, simplesmente, reafirmação de conquistas anteriores que, no entanto, contribuam para continuar endossando a tradição teológico-pastoral latino-americana e caribenha.

Nas trilhas do método ver-julgar-agir, o DA reapresenta a já conhecida, difundida e

experimentada proposta de partir da realidade que precisa e deve ser transformada, à luz do projeto de Deus, pela ação libertadora dos (as) discípulos (as) missionários (as). Nesta perspectiva, sobressaem, entre outros, 10 grandes eixos:

9.3.4.1. “Encontrei Jesus!”

A realidade de uma experiência pessoal e comunitária, concreta, existencial, de encontro

afetivo e efetivo com Alguém, que está por trás desta expressão comumente usada por irmãs e irmãos evangélicos, é como que a “força motora” do DA.

Cristo foi, é e será sempre (cf. Hb 13,8) aquele que chama (cf. Mt 4,18-22), acolhe (Lc

7,36ss; Jo 4,7ss), convive (cf. Lc 10,38-42), educa (cf. Mt 20,17ss) e envia (cf. Mc 6,6b-13; 16,15) para o discipulado missionário (cf. Jo 20,21). É o Crucificado-Ressuscitado que, por fidelidade ao projeto do Pai, obsessão incontida pelo Reino e amor aos Pobres e Oprimidos, caminha decididamente para Jerusalém (cf. Lc 13,33), onde vai desmascarar e deslegitimar os poderes socioeconômico e político-religioso, para consumar seu Ofertório de Vida para que todos tenham vida. Jesus não é, portanto, em primeira instância, um conjunto de normas e doutrinas às quais se está obrigado a submeter, mas uma Pessoa real, concreta – o Irmão Maior que nos foi dado – à qual se deve aderir e seguir por ser Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,6). Tendo enfrentado e vencido corajosamente as forças do mal e da morte, traz-nos a esperança-certeza de que mudar é possível, confiando-nos seu Espírito (cf. Jo 20,22) que nos enche da mesma coragem para seguir seus passos, repetindo o que Ele fez (cf. DA 31).

“Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho arraigada em nossa história, a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, que desperte discípulos e missionários... homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade, como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino, protagonistas de

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uma vida nova para uma América Latina que deseja reconhecer-se com a luz e a força do Espírito” (DA 11).

Mais: no espírito da gratuidade e das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5,1ss), não só

repetir o que Ele fez, mas como Ele fez:

“No Evangelho aprendemos a sublime lição de ser pobres seguindo a Jesus pobre (cf. Lc 6,20; 9,58), e a de anunciar o Evangelho da paz sem bolsa ou alforje, sem colocar nossa confiança no dinheiro nem no poder deste mundo (cf. Lc10,4ss)” (DA 31).

9.3.4.2. A perspectiva “reinocêntrica”

A trajetória histórica que, em especial, a partir de Kant, com o princípio da razão

autônoma, colocou o ser humano no centro do universo (antropocentrismo) não conseguiu responder aos grandes anseios de liberdade e felicidade humanas, tendo sido substituído, à época pós-conciliar, pelo cristocentrismo (Cristo é o centro de tudo).

Hoje, contudo, amparados por reflexões de uma teologia sadia e mais coerente, é possível

chegar a compreender que um encontro pessoal e comunitário com Jesus de Nazaré não pode estar restrito aos limites de uma experiência de fé meramente intimista, individualista, sentimentalista, espiritualista ou moralista. Nesta perspectiva, se tem defendido muito apropriadamente que, mais do que aderir à fé em Jesus, é preciso aderir à fé de Jesus, que fez de toda sua vida, morte e ressurreição, compromisso incondicional para construir e tornar presente o Reino na história (cf., entre outros, Mc 1,15 e Mt 13).

É evidente que esta mudança de ótica torna o desafio ainda maior, pois aderir à fé de Jesus

implicará, em termos práticos, continuar sua palavra profética e sua ação libertadora no mundo, prolongando suas opções e seu compromisso, em muitos casos, até à morte, para consolidar o Reino como destino último da humanidade e do mundo. E aqui nos confrontamos novamente com o ponto conflitante relacionado aos poderes constituídos que já foi objeto, p. ex., da advertência de Paul Tillich, quando recorda que o Reino de Deus – porque transforma nos quatro níveis: pessoal, político, econômico e universal – é “o símbolo mais importante e o mais difícil do pensamento cristão e ainda mais – um dos mais críticos tanto para o absolutismo político quanto eclesiástico”.79

“Os povos da América Latina e do Caribe vivem hoje uma realidade marcada por grandes mudanças que afetam profundamente suas vidas. Como discípulos de Jesus Cristo, sentimo-nos desafiados a discernir os ‘sinais dos tempos’, à luz do Espírito Santo, para colocar-nos a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e ‘para que a tenham em plenitude’ (Jo 10,10)” (DA 33).

9.3.4.3. Vida nova e plena

A urgência do advento do Reino, enquanto realidade que porá termo às forças do mal,

impõe o tema que atravessa todo o DA e é como que sua alma: o da defesa de uma genuína cultura da vida que conheça, enfrente e vença os sistemas de morte.

79 Teologia Sistemática. São Paulo: Paulinas/Sinodal, 1984, 658.

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“Conduzida por uma tendência que privilegia o lucro e estimula a concorrência, a globalização segue uma dinâmica de concentração de poder e de riqueza nas mãos de poucos. Concentração não só dos recursos físicos e monetários, mas sobretudo da informação e dos recursos humanos, o que produz a exclusão de todos aqueles não suficientemente capacitados e informados, aumentando as desigualdades que marcam tristemente nosso continente e que mantêm na pobreza uma multidão de pessoas” (DA 62).

Defender e garantir direitos, dignidade e vida humana, social e ecológica em todas as suas

etapas, circunstâncias e dimensões, na denúncia corajosa e profética do sistema de globalização neoliberal que pretende submeter tudo e todos às leis iníquas do mercado, eis a vocação primordial dos (as) discípulos (as) missionários (as) que encontraram e experimentaram Jesus, comunicador do Reino e Vida em abundância.

“Frente a essa forma de globalização, sentimos forte chamado para promover uma globalização diferente, que esteja marcada pela solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos, fazendo da América Latina e do Caribe não só o Continente da esperança, mas o Continente do amor” (DA 64).

Em todo este processo de cuidado e defesa da vida de todos e todas, e de tudo, merecem

atenção especial: a) os afro-americanos e indígenas

“A história dos afro-americanos tem sido atravessada por uma exclusão social, econômica, política e sobretudo racial, onde a identidade étnica é fator de subordinação social. Atualmente, são discriminados na inserção do trabalho, na qualidade e conteúdo da formação escolar, nas relações cotidianas e, além disso, existe um processo de ocultamento sistemático de seus valores, história, cultura e expressões religiosas. Permanece, em alguns casos, uma mentalidade e um certo olhar de menor respeito em relação aos indígenas e afro-americanos. Desse modo, descolonizar as mentes, o conhecimento, recuperar a memória histórica, fortalecer os espaços e relacionamentos inter-culturais, são condições para a afirmação da plena cidadania desses povos” (DA 96).

b) a relação com o ecossistema

“...percebemos claramente de quantas maneiras o homem ameaça e inclusive destrói seu ‘habitat’. ‘Nossa irmã a mãe terra’ é nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação. Desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas, é uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, definitivamente, contra a vida [...] O Senhor entregou o mundo para todos, para os das gerações presentes e futuras. O destino universal dos bens exige a solidariedade com as gerações presentes e as futuras. Visto que os recursos são cada vez mais limitados, seu uso deve estar regulado segundo um princípio de justiça distributiva, respeitando o desenvolvimento sustentável” (DA 125 e 126).

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9.3.4.4. Povo de Deus em missão

Em continuidade com o Concílio, Aparecida devolve a todo o Povo de Deus o que de

direito lhe pertence por vocação batismal: a co-responsabilidade na missão de evangelizar e “revitalizar o nosso modo de ser católico e nossas opções pessoais pelo Senhor” (DA 13), para proclamar as maravilhas que Deus realiza em favor de seu Povo (cf. 1Pd 2,9).

Esta opção está tão fortemente presente no DA que seu texto permite ler nas entrelinhas

que é o batismo, primeiro sacramento da iniciação cristã que, de fato, “imprime caráter”, a saber, o caráter de discípulo (a) missionário (a). Observe-se, por exemplo, o Capítulo V, que trata “a comunhão dos discípulos missionários na Igreja” (DA 154-239). Aí, ainda que se tenha em conta a oportuna, saudável e necessária diversidade dos carismas, eles não são confiados em ordem de importância, mas de harmonia (cf. 1Cor 12), a serviço do todo, no caso, o Povo de Deus. Assim, papa, bispos, presbíteros, religiosos e religiosas, diáconos, leigos e leigas, todos são membros do único Povo de Deus, chamados a servir com um só distintivo que é comum a todos e todas: discípulos (as) missionários (as). São mencionados e incluídos, até onde sabemos, ineditamente, também os irmãos presbíteros que deixaram o ministério, na motivação para que “cada Igreja particular procure estabelecer com eles relações de fraternidade e mútua colaboração” (DA 200).

“Ao receber a fé e o batismo, os cristãos acolhem a ação do Espírito Santo que leva a confessar a Jesus como Filho de Deus e a chamar Deus ‘Abba’. Todos os batizados e batizadas da América Latina e do Caribe, ‘através do sacerdócio comum do Povo de Deus’, somos chamados a viver e a transmitir a comunhão com a Trindade, pois ‘a evangelização é um chamado à participação da comunhão trinitária’” (DA 157).

9.3.4.5. O caráter permanente da missão

Em Jesus Cristo, fundamento de toda ação missionária, nos confrontamos com quatro

etapas igualmente fundamentais da missão que é: - permanente porque compromete para a imperiosa construção do Reino que é processo

instaurado, mas não consumado, na conhecida tensão, expressa pela teologia conciliar, entre o já e o ainda não totalmente presente na história (cf. Mt 13,24-30);

- ad extra ou para fora, em virtude do mandato do Senhor: “Vão pelo mundo inteiro” (Mc

16,15), que não é estático, mas dinâmico, comportando movimento na direção do mundo que deve ser evangelizado e transformado em reino e reinado de Deus (cf. At 1,8);

- inculturada porque, embora o Evangelho conserve intacta sua fonte incomensurável de

riqueza que é água viva, pura e cristalina (cf. Jo 4,10ss) em todos os tempos e lugares, para cumprir sua finalidade de fermentar e libertar deve vestir a roupagem cultural das diferentes épocas e situações históricas (cf. At 17,22ss); e,

- coletiva em razão do envio que não é individual, mas “dois a dois” (cf. Lc 10,1ss),

sugerindo que o projeto de evangelização supõe uma dimensão acentuadamente comunitária e social, que se realiza contando também com parcerias.

Dentro deste espírito, Aparecida enfatiza três aspectos interativos que conferem qualidade

à missão:

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a) ela não aparece como fator opcional, mas constitutivo do ser cristão; em outras palavras

é a missão que identifica o cristão que, por se ter tornado discípulo (a), seguidor (a), é ipso facto missionário (a);

b) a missão está em função da comunhão com o projeto de Deus manifestado na pessoa de

Jesus de Nazaré, e a comunhão é essencialmente missionária; c) são destituídas de sentido as chamadas “campanhas missionárias”, pois por vocação e

identidade toda a Igreja está evangelicamente convocada ao estado de missão permanente.

“Ao chamar os seus para que o sigam, Jesus lhes dá uma missão muito precisa: anunciar o evangelho do Reino a todas as nações (cf. Mt 28,19; Lc 24,46-48). Por isso, todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão, ao mesmo tempo que o vincula a Ele como amigo e irmão. Dessa maneira, como Ele é testemunha do mistério do Pai, assim os discípulos são testemunhas da morte e ressurreição do Senhor até que Ele retorne. Cumprir essa missão não é tarefa opcional, mas parte integrante da identidade cristã, porque é a extensão testemunhal da vocação mesma” (DA 144).

9.3.4.6. Confirmação do caminho percorrido

A ação missionária por ser evangelizadora e, portanto, transformadora de todas as

realidades sócio-econômica, político-cultural, religiosa, ecológica etc. (cf. Mt 11,2-6), implica, não em continuísmo medíocre (cf. DA 12), mas em continuidade fiel aos princípios estabelecidos pelo próprio Evangelho e pelo rico patrimônio do Magistério que arranca do Vaticano II, passa por Medellín, Puebla e Santo Domingo, chegando a nossos dias.

Neste contexto, Aparecida retomou e reafirmou a tradição teológico-pastoral da América

Latina e do Caribe, expressa, de modo especial, em duas de suas grandes vertentes: a opção preferencial pelos Pobres e as CEBs que, expressando a face samaritana e servidora da Igreja latino-americana (cf. DA 32; Lc 10,25ss) são, simultaneamente, a base ou o “laboratório” para a TdL.

9.3.4.6.1. Opção preferencial pelos Pobres

Não é apenas reafirmada, mas atualizada e radicalizada no âmbito da nova conjuntura

globalizada que produz os “novos rostos da pobreza”,80 entre os quais se destacam: as comunidades indígenas e afro-americanas, as mulheres, os jovens, os desempregados, os migrantes, os agricultores sem terra, as crianças submetidas à prostituição infantil...(cf. DA 65).

“Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia ou sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (DA 65).

80 Puebla já aludia aos rostos desfigurados dos que sofrem, vítimas do empobrecimento e da miséria (32-39).

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O rosto dos pobres é imagem fiel e atualizada na história do rosto de Cristo na sua dúplice dimensão: dor e alegria. Vítima da exclusão do sistema que descarta e em muitos casos elimina sistematicamente, pela ação solidária dos (as) discípulos (a) missionários (a), no entanto, pode transfigurar-se em rosto iluminado (cf. Mt 17,1ss), fonte de justiça e de vida.

“No rosto de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, maltratado por nossos pecados e glorificado pelo Pai, nesse rosto doente e glorioso, com o olhar da fé podemos ver o rosto humilhado de tantos homens e mulheres de nossos povos e, ao mesmo tempo, sua vocação à liberdade dos filhos de Deus, à plena realização de sua dignidade pessoal e à fraternidade entre todos” (DA 32).

Esta realidade que é chamado imperioso da morte à vida (cf. DA 13; Dt 30,15 e Jo 11,43)

configura, em Aparecida, “a tarefa essencial da evangelização, que inclui a opção preferencial pelos pobres, a promoção humana integral e a autêntica libertação cristã” (DA 146).

A propósito ainda do tão discutido quanto controvertido “preferencial” que Puebla

incorporou à opção pelos Pobres, note-se que o DA é contundente:

“Que seja preferencial implica que deva atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais” (DA 396).

9.3.4.6.2. CEBs

Primeiro traço característico das CEBs é sua afinidade com o jeito de ser Igreja das

comunidades primitivas, descrito em At 2,42-47; 4,32-37 (cf. DA 178). Ou seja, as CEBs buscam ser o retrato fiel e atualizado das primeiras comunidades cristãs unidas e reunidas para enfrentar e combater o poder imperialista romano, e criar alternativas para a construção do Reino de Deus. Neste seu afã, vem, como conseqüência, um segundo traço inevitável: a perseguição que, acompanhada da fidelidade ao Evangelho, é carteira de identidade das CEBs. Foi, é e será sempre assim. Por que? Porque as CEBs, por opção, natureza e compromisso, ameaçam todo e qualquer poder que seja exercido com base no autoritarismo, fora dos parâmetros evangélicos do serviço.

Por se tratar de um grupo quantitativamente menor de cristãos e cristãs, as CEBs,

animadas pelo Espírito de Jesus, favorecem a aproximação, a acolhida e o diálogo entre seus membros que partilham o pão da Palavra e da Eucaristia; vivem a solidariedade entre si e aberta a todos e ao mundo, onde procura ser sal, luz e fermento de transformação social, econômica, política, religiosa... Por isso, seja na atual conjuntura da sociedade globalizada e do capitalismo neoliberal, com a exaltação do individualismo, do egoísmo, do consumismo e tantas outras formas de vida que sobrepõem o “eu” ao “nós”, seja no contexto de um projeto missionário que se queira coerente e eficaz, as CEBs, que também são comunidades missionárias, representam e oferecem alternativas para a construção do bem comum e da sociedade justa e solidária.

“...as Comunidades Eclesiais de Base têm sido escolas que têm ajudado a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até derramar o sangue, de muitos de seus membros... Medellín reconheceu nelas uma célula inicial de estruturação eclesial e foco de fé e evangelização... Puebla constatou que... as comunidades eclesiais de base, permitiram ao povo chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso

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social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos...”(DA 178; cf. texto original, 193).

É em razão desta profunda experiência de fé e belíssimo testemunho de vida, que as CEBs

são confirmadas “no seguimento missionário de Jesus” (DA 179), e reconhecidas no texto original do DA “uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja da América Latina e do Caribe depois do Vaticano II” (DA, texto original, 194).

9.3.4.7. Paróquia: “rede de comunidades”

Não é recente a discussão que coloca a paróquia, tal como está estruturada hoje, como

modelo ultrapassado, que não responde mais aos desafios impostos pela missão. Enquanto a marca registrada da sociedade globalizada e neoliberal é a massificação que

descaracteriza, desqualifica e descarta a pessoa e as relações humanas, os princípios que regem a opção cristã, do (a) discípulo (a) missionário (a), se caracterizam, ao contrário, pela acolhida, diálogo, interação, respeito, abertura que vai ao encontro para estabelecer com todos e todas e cada um (a) a inclusão no grande mutirão em favor da vida.

“Levando em consideração as dimensões de nossas paróquias, é aconselhável a setorização em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e coordenação que permitam maior proximidade com as pessoas e grupos que vivem na região. É recomendável que os agentes missionários promovam a criação de comunidades de famílias que fomentem a colocação em comum de sua fé cristã e das respostas aos problemas” (DA 372).

Neste processo é especialmente relevante a contribuição das CEBs. Atualizadas e

inculturadas, elas representam a alternativa viável e eficaz para transformar a paróquia em “comunidade de comunidades” (DA 170ss) ou rede de comunidades missionárias, “chamadas a ser casas e escolas de comunhão” (DA 170), capazes de acolher fraternalmente e solidarizar-se concretamente com pessoas e grupos vítimas da exclusão ou sobreviventes que resistem à iniqüidade do sistema, quais sejam: os pobres, famintos, dependentes químicos, migrantes, meninos e meninas de rua etc.

“A renovação das paróquias no início do terceiro milênio exige a reformulação de suas estruturas, para que seja uma rede de comunidades e grupos, capazes de se articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão. [...] A renovação missionária das paróquias se impõe, tanto na evangelização das grandes cidades como no mundo rural de nosso Continente, que está exigindo de nós imaginação e criatividade para chegar às multidões que desejam o Evangelho de Jesus Cristo” (DA 172-173).

9.3.4.8. Os Mártires da Caminhada

Desde as origens, a Igreja que assume a mesma fé de Jesus e se compromete com a missão

de construir o Reino é, também, testemunha e, por conseguinte, mártir, no seguimento do Cristo Mártir, que entrega a vida por amor aos seus (cf. Jo 10,11).

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Na história remota ou recente da América Latina e do Caribe, é incalculável o número daqueles e daquelas que misturaram seu sangue ao do Crucificado, semeando nos corações de nossos povos a esperança do dia feliz da ressurreição, em que “veremos nesta terra reinar a liberdade”. Um deles foi precisamente o Bom Pastor da Igreja de San Salvador, em El Salvador, Dom Oscar Romero que, entre outros, deixou-nos este expressivo testemunho:

“Aqueles que caem na luta, contanto que seja com sincero amor ao povo e na procura de uma verdadeira libertação, devem ser considerados sempre presentes entre nós. Não só porque ficam na lembrança dos que continuam lutando, mas também porque a nossa fé nos ensina que com a destruição do corpo não termina a vida humana. Mas esperamos, pela misericórdia divina, a libertação plena e absoluta”.

A profecia de Romero, que preside a imensa Galeria dos Mártires da América Latina e

Caribe, ressoou vigorosamente em Aparecida, saldando a histórica dívida com aqueles e aquelas que refizeram o caminho do Senhor e não pouparam o próprio sangue para que nossos povos tenham vida.

“Queremos recordar o testemunho valente de nossos santos e

santas, e aqueles que, inclusive sem terem sido canonizados, viveram com radicalidade o Evangelho e ofereceram sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo” (DA 98).

9.3.4.9. O protagonismo feminino

Se Santo Domingo definiu o protagonismo do Laicato, Aparecida representa o resgate de

uma dívida secular social e eclesial, postulando o protagonismo das Mulheres, vítimas, ainda, do preconceito, da desigualdade e da exclusão.

Nos parágrafos referentes à “dignidade e participação das mulheres” (DA 451-458),

percebe-se que há uma evolução que reconhece e valoriza o feminino nas suas mais variadas expressões de manifestação e cuidado da vida, em sintonia fina com a tradição bíblica, em especial a neotestamentária. Aí, começando por Maria (cf. Lc 1,38.46-55), encontramos uma diversidade muito grande de mulheres que aderiram ao movimento libertador de Jesus de Nazaré (cf. Lc 8,3; Jo 4,1ss), e se tornaram discípulas missionárias que profetizam (cf. At 21,9) e exercem a diaconia a serviço dos pobres e da vida (At 1,14; 9,36; 12,12.13; 16,13-15.40; 17,412.34; 18,2; 21,5.9).81

“É urgente escutar o clamor, muitas vezes silenciado, de mulheres

que são submetidas a muitas formas de exclusão e de violência em todas as suas formas e em todas as etapas de suas vidas. Entre elas, as mulheres pobres, indígenas e afro-americanas têm sofrido dupla marginalização. É urgente que todas as mulheres possam participar plenamente na vida eclesial, familiar, cultural, social e econômica, criando espaços e estruturas que favoreçam maior inclusão” (DA 454).

No plano da participação eclesial e missionária, o DA representa avanço, na medida em

que supera uma visão machista e meramente funcional ou oportunista da participação da mulher.

81 Para uma idéia da ampla participação e discipulado das mulheres no NT, cf. Carlos C. SANTOS. Atos dos Apóstolos: ação criadora e criativa do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2002.

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Até o presente momento, na verdade, foram majoritariamente as mulheres que com seu trabalho honroso, fiel e corajoso, conduziram ou até “carregaram a Igreja nas costas”, sem que, porém, se tenha reconhecido nelas sua capacidade, potencial e seus legítimos direitos a participar efetivamente também nos órgãos decisórios. Sensível a esta realidade objetivamente tão cruel quanto a exclusão social, Aparecida propõe uma ação de conjunto que busque “garantir a efetiva presença da mulher nos ministérios que na Igreja são confiados aos leigos, como também nas instâncias de planejamento e decisão pastorais, valorizando sua contribuição” (DA 458b. O grifo é nosso).

9.3.4.10. Os que escolhem outros caminhos

O DA assume posição especialmente respeitosa e, ao que parece também inédita, em

relação aos irmãos e irmãs que se deslocam para diferentes grupos cristãos, admitindo, por exemplo, que sua motivação principal é a busca sincera de Deus (DA 225).

Apontam-se as eventuais razões para este deslocamento, entre as quais figuram: modo de

vivenciar a experiência de fé, concepção pastoral, metodologia etc. Por isso, as respostas à situação não passam pelo proselitismo ou pela disputa de espaço e de poder, mas pela qualidade e credibilidade do projeto missionário.

“A Igreja cresce, não por proselitismo, mas por atração: como Cristo atrai tudo para si com a força do seu amor” (DA 159).

“...Onde se estabelece o diálogo, diminui o proselitismo, crescem o conhecimento recíproco e o respeito, e se abrem possibilidades de testemunho comum” (DA 233).

Para responder de maneira plausível e concreta ao desafio, o DA sugere reforçar quatro

eixos interativos: a experiência religiosa, a vivência comunitária, a formação bíblico-doutrinal e o compromisso missionário de toda a comunidade (cf. DA 226).

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1100.. CCoonncclluussããoo:: lliiççõõeess ddee uumm vveellhhoo ppaappaa ee uumm jjoovveemm tteeóóllooggoo

Apesar dos resquícios de clericalismos, saudosismos e “algumas tentativas de voltar a um

certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II” (DA 100b), cuja manifestação atingiu seu ponto crítico na alteração de seu texto original, Aparecida desponta como proposta nova e alternativa, aberta ao diálogo com o diferente, sintonizada com os sinais dos tempos e lugares, atenta, em especial, aos prejuízos, em alguns casos irreversíveis, da globalização neoliberal.

Este perfil recorda palavras sábias e proféticas que, embora antigas, se revestem de vigor e

atualidade, no espírito do que propõe o projeto de Aparecida. Por isso, as transcrevemos a seguir para “memória e caminhada”.

O papa é João XXIII, que nos últimos dias de sua vida terrena, escreve em seu diário:

“Hoje, mais do que nunca (com certeza mais que nos séculos anteriores), somos chamados a servir o ser humano como tal e não apenas os católicos. A defender, sobretudo e em todas as partes, os direitos da pessoa humana, e não apenas os da igreja católica. As condições atuais, as investigações dos últimos 50 anos, nos trouxeram realidades novas, como eu disse na abertura do concílio. O Evangelho não mudou; fomos nós que começamos a entendê-lo melhor. Quem teve a sorte de uma vida longa, se encontrou em princípios do século diante de novas tarefas sociais, e quem – como eu – esteve 20 anos no Oriente e 8 na França, e se achou na encruzilhada de diversas culturas e tradições, sabe que agora chegou o momento de discernir os sinais dos tempos, de aproveitar a oportunidade para olhar para frente”.82

O teólogo é Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, que sustenta posição semelhante, porém

com palavras diferentes:

“...a ação do Espírito Santo não se deixa enquadrar simplesmente nos limites da Igreja visível. O Espírito e a graça podem também faltar a pessoas que vivem na Igreja. Por outra parte, o Espírito e a graça podem agir eficazmente em pessoas que vivem fora da Igreja. Seria presunçoso e falso... querer identificar simplesmente a obra do Espírito Santo com o trabalho dos órgãos eclesiásticos... há uma só esperança para católicos e não-católicos. Todos anseiam pelo único Reino de Deus, no qual não haverá mais divisões, porque Deus será tudo em todas as coisas”.83

82 Citado por V. CODINA. El Vaticano II, un Concilio en proceso de recepción. Selecciones de Teología 177 (2006) 18. 83 O Novo Povo de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974, 117.

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Fiel a esta sabedoria ecumênica e “macroecumênica”, o modelo proposto por Aparecida pode significar um divisor de águas para a América Latina e o Caribe, reabrindo, como no Concílio, as portas da Igreja para fazer dela “morada de povos irmãos e casa dos pobres” (DA 8).

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ÍÍnnddiiccee

Sumário...................................................................................................................................... 05 Apresentação - D. Aloísio Cardeal Lorscheider........................................................................ 07 1. Nos horizontes de Aparecida: caminhos e descaminhos........................................................ 08 2. TdL - Teologia da Libertação: capricho humano ou proposta divina?.................................. 10

2.1. Primeiro Testamento: Javé é o Deus da Libertação....................................................... 10 2.2. Segundo Testamento: Jesus é o Grande Teólogo... da Libertação!................................ 12 2.3. Jesus e os pobres............................................................................................................. 12 2.4. Jesus e os ricos............................................................................................................... 13 2.5. A exigência de conversão é para todos.......................................................................... 13 2.6. Atos: “repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um” (At 2,45).......................................................................................................................................

14

2.7. O apóstolo Paulo: “carreguem o peso uns dos outros” (Gl 6,2)..................................... 14 2.8. O desafio do seguimento: “a fé sem obras é cadáver” (Tg 2,26)................................... 15 2.9. Gestão de um novo tempo: a profecia velada e desvelada............................................. 15

3. O Concílio Ecumênico Vaticano II: Nova luz brilhou!......................................................... 17

3.1. O Espírito abre caminhos............................................................................................... 17 3.2. A revolução conciliar..................................................................................................... 18

4. O estatuto dos Pobres em Medellín e Puebla......................................................................... 21

4.1. A Herança de Medellín................................................................................................... 21 4.2. A opção pela justiça e libertação.................................................................................... 22 4.3. O jardim floresceu.......................................................................................................... 23 4.4. O resgate da credibilidade.............................................................................................. 23 4.5. Pastores e Profetas.......................................................................................................... 24 4.6. Um “casamento feliz”.................................................................................................... 25 4.7. Puebla: continuidade descontinuada?............................................................................. 26 4.8. Santo Domingo: “novo espetáculo em novo palco”....................................................... 27

5. Mãe Negra, da alegria e da esperança, ensina-nos a caminhar!............................................. 29

5.1. Aparecida, “Mãe dos pobres sem mãe”.......................................................................... 29 5.2. Aparecida no contexto de um mundo em metamorfose................................................. 30 5.3. O salto de qualidade: “Examinem tudo e fiquem com o que é bom” (1Ts 5,21)........... 33 5.4. Aparecida e o atual panorama latino-americano............................................................ 34

5.4.1. A crise, mãe de novos tempos................................................................................ 34 5.4.2. “Uma andorinha só não faz verão”......................................................................... 34

6. E a Teologia da Libertação: obra de Deus ou do diabo?........................................................ 36

6.1. Visibilidade: critério de fidelidade?............................................................................... 36 6.2. Da “teologia” da libertação à práxis libertadora............................................................ 38 6.3. Fundamentalismos têm algum fundamento?.................................................................. 38 6.4. “Deus caritas et liberationis est”.................................................................................. 39

7. Uma questão provocadora: Quem tem medo da Teologia da Libertação?............................ 41 8. Na ante-sala de Aparecida..................................................................................................... 45

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8.1. “O Reino continua” - Entrevista com D. Pedro Casaldáliga.......................................... 45 8.2. Memória e compromisso: O Pacto das Catacumbas...................................................... 46

9. A Conferência de Aparecida no conflito das interpretações.................................................. 49

9.1. O tráfico de influências.................................................................................................. 49 9.1.1. “A Assembléia começa antes da Assembléia”....................................................... 49 9.1.2. Fatores críticos e destoantes................................................................................... 50 9.1.3. O clima da V Conferência...................................................................................... 50

9.1.3.1. A conexão com a “aldeia global”.................................................................... 50 9.1.3.2. O ambiente de santuário.................................................................................. 50 9.1.3.3. A representatividade....................................................................................... 51 9.1.3.4. As surpresas do Espírito.................................................................................. 51

9.1.3.4.1. O Seminário de Teologia........................................................................ 51 9.1.3.4.2. O Fórum de Participação......................................................................... 51 9.1.3.4.3. A Romaria das CEBs.............................................................................. 51 9.1.3.4.4. A Tenda dos Mártires.............................................................................. 52 9.1.3.4.5. A presença e assessoria de Ameríndia.................................................... 52 9.1.3.4.6. O Discurso Inaugural do Papa................................................................. 52

9.2. A usurpação de poder.......................................................................................................... 52 9.2.1. As alterações do texto original.................................................................................... 53 9.2.2. A reação da CNBB...................................................................................................... 53 9.2.3. Manifestações e protestos............................................................................................ 53 9.2.4. “O jeito do cachimbo deixa a boca torta”.................................................................... 54 9.2.5. “Não entristeçam o Espírito Santo”............................................................................. 54

9.3. O DA - Documento de Aparecida: O Espírito Divino sopra mais forte que os espíritos de porco......................................................................................................................................

55

9.3.1. O fio condutor............................................................................................................. 55 9.3.2. Visão de conjunto....................................................................................................... 55 9.3.3. Esquema geral............................................................................................................. 56 9.3.4. As linhas-mestras........................................................................................................ 56

9.3.4.1 “Encontrei Jesus!”................................................................................................ 56 9.3.4.2. A perspectiva “reinocêntrica”.............................................................................. 57 9.3.4.3. Vida nova e plena................................................................................................ 58 9.3.4.4. Povo de Deus em missão..................................................................................... 58 9.3.4.5. O caráter permanente da missão.......................................................................... 59 9.3.4.6. Confirmação do caminho percorrido................................................................... 60

9.3.4.6.1. Opção preferencial pelos Pobres.................................................................. 60 9.3.4.6.2. CEBs............................................................................................................ 61

9.3.4.7. Paróquia: “rede de comunidades”........................................................................ 62 9.3.4.8. Os Mártires da Caminhada.................................................................................. 62 9.3.4.9. O protagonismo feminino.................................................................................... 63 9.3.4.10. Os que escolhem outros caminhos..................................................................... 63

10. Conclusão: Lições de um velho papa e um jovem teólogo.................................................. 65 Índice.......................................................................................................................................... 67