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ISSN 1415-482X • Ano 13 • Nº 52 • Maio-Junho-Julho/2010.

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[email protected]

Dourados Ano 13 - No 52 Págs. 1-70 Maio-Junho-Julho/2010

Page 4: Revista Arandu # 52

CARO LEITORAno 13 • No 52 • Maio-Junho-Julho/2010

ISSN 1415-482X

Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sl. 01Tel.: (67) 3423-0020 / 9238-0022

Dourados, MSCEP 79804-970

Caixa Postal 475CNPJ 06.115.732/0001-03

Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência,Literatura / Grupo Literário Arandu - No 52 (Maio-Junho-Julho/2010). Dourados: Nicanor CoelhoEditor, 2010.

TrimestralISSN 1415-482X

1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos;3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura - Periódicos;5. Grupo Literário Arandu

PUBLICAÇÃO DO

[

EditorNICANOR COELHO

[email protected]

Conselho Editorial ConsultivoÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA

CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO

Conselho CientíficoANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS

MAGNO MIERES AMARILHA, LUCIANOSERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA

CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANORCOELHO e PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS

SANTOS

Coordenadora desta ediçãoROSANA CRISTINA ZANELATTO SANTOS

Editor de ArteLUCIANO SERAFIM

O escritor Rubem Fonseca é o temaprincipal da Revista Arandu, que ao

número 52 apresentando uma série de seisartigos científicos focados na literatura,na língua e na linguagem.

“O subalterno cobra seus direitos naobra de Rubem Fonseca” é o primeirotexto desta edição onde os autores HansStander Loureiro e Rosana CristinaZanelatto Santos analisam os contos dasobras Feliz Ano Novo e O Cobrador.

A professora Josiane Cortes Buzzio es-creveu “Confissões de Mandrake em AGrande Arte”, enquanto que Célia ReginaDelácio Fernandes e Maisa Barbosa daSilva Cordeiro são autoras do texto “Aleitura no acervo do Programa NacionalBiblioteca da Escola – 2008: Ensino Fun-damental”.

Também participam desta ediçãoNeurivaldo Campos Pedroso Júnior queescrever o artigo “Roland Barthes: embusca da textualidade perdida”; DéboraPereira Simões com o trabalho “Os pa-péis narrativos em cena: uma breve lei-tura de Inkheart” e, finalmente, RosicleyAndrade Coimbra que escreveu o textointitulado “Espreitando Lavoura Arcai-ca pelas frestas da linguagem”.

Acreditamos que com a publicaçãodestes trabalhos a Revista Arandu cum-pre a sua parte na disseminação da arte,da literatura e da ciência na região daGrande Dourados, em Mato Grosso doSul e no Brasil.

Tenha uma ótima leitura!

Nicanor CoelhoEditor

CARO LEITOR

EDITADO POR

Page 5: Revista Arandu # 52

• CAPES - Classificada na Lista Qualiswww.capes.gov.br

• ISSN - International Standard Serial Number

• Latindex - www.latindex.org

• GeoDados - www.geodados.uem.br

Ano 13 • No 52 • Maio-Junho-Julho/2010 SUMÁRIO[

]INDEXAÇÃO

O subalterno cobra seus direitosna obra de Rubem Fonseca ............................................................................ 5

Hans Stander LoureiroRosana Cristina Zanelatto Santos

Confissões de Mandrake em A Grande Arte ......................................... 15Josiane Cortes Buzzio

A leitura no acervo do Programa Nacional Bibliotecada Escola – 2008: Ensino Fundamental ................................................ 26

Célia Regina Delácio FernandesMaisa Barbosa da Silva Cordeiro

Roland Barthes: em busca da textualidade perdida ........................... 40Neurivaldo Campos Pedroso Júnior

Os papéis narrativos em cena: uma breve leitura de Inkheart ....... 50Debora Pereira Simões

Espreitando Lavoura Arcaica pelas frestas da linguagem .............. 58Rosicley Andrade Coimbra

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Foto da capa: Zeca Fonseca / DivulgaçãoO escritor Rubem Fonseca em sua biblioteca.

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RESUMOTomando como objetos de análise os contos “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador,”

dos livros homônimos de Rubem Fonseca, pretendemos demonstrar como asubalternidade manifesta-se na ação do personagem narrador, sendo marcadasobretudo pela violência, consubstanciada nos vários atos dos bandidos em “FelizAno Novo” e do Cobrador no conto do mesmo nome. A violência física daspersonagens é destrutiva, porém se justifica, nos contos, por toda uma vida derelações assimétricas, na qual a promessa de liberdade, de igualdade, de autonomiae de dignidade era para poucos, muito poucos. As personagens, então, reivindicamtudo o que têm direito, e aqui usamos as palavras de Arendt, “usando o cano deuma arma”, de onde emana o poder mais efetivo e que leva à mais completaobediência.

Palavras-chave: Subalternidade; Violência; Rubem Fonseca.

ABSTRACTThis analysis has two short stories as objects: “Feliz Ano Novo” and “O

Cobrador,” by Rubem Fonseca. We intended to demonstrate how thesubordination is manifested in the action of the narrator, marked particularly byviolence. Physical violence is destructive, however justified in “Feliz Ano Novo”and “O cobrador” for a life of asymmetric relations in which the promise offreedom, equality, autonomy and dignity were a few persons. The characters use“the barrel of a gun” to emanates the power more effective and leads to morecomplete obedience.

Keywords: Subordination; Violence; Rubem Fonseca.

O SUBALTERNO COBRASEUS DIREITOS NA OBRA

DE RUBEM FONSECA

Hans Stander LOUREIRO1

Rosana Cristina Zanelatto SANTOS2

1 Mestrando em Estudos de Linguagens na UFMS. Bolsista da FUNDECT.2 Doutora em Letras pela USP. Docente da UFMS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa doCNPq.

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INTRODUÇÃO

Tomando como objeto de análise oscontos “Feliz Ano Novo”, do livro Feliz AnoNovo, e o “O Cobrador”, de O Cobrador,ambos de autoria de Rubem Fonseca,pretendemos demonstrar como a subal-ternidade manifesta-se na ação das perso-nagens-protagonistas não somente toma-das de insatisfação com o seu tratamentoem sociedade, mas sobretudo assumindoa forma de violência, consubstanciada nosatos durante a festa de Revellion em “Fe-liz Ano Novo” e nas atitudes do Cobra-dor durante o percurso narrativo.

1. LEITURAS SOBRE OSUBALTERNO

No Capítulo I, intitulado El subalternoy los límites del sáber académico, que com-põe o livro Subalternidad y Repre-sentácion3 (2004), de John Beverly, o autorremete a Jacques Lacan que um dia contoua seguinte história em um de seus seminá-rios em Paris: que em sua juventude, quan-do queria viajar e ter alguma experiênciaprática do mundo, juntou-se a pequenospescadores em sua embarcação tambémpequena. Em certa ocasião, estando no marpara recolher a rede com os pescados, umdos companheiros, por nome Petit Jean,lhe mostrou uma lata a boiar no mar. Erauma lata de sardinhas. Petit Jean lhe disse:“Você vê a lata? Você a vê? Pois bem, elanão o vê!” Lacan, sem entender o por quêdo companheiro se divertir com o que dis-se, conclui que estava fora do lugar, deslo-cado em meio aos pescadores (LACANapud BEVERLY, 2004, p. 53).

Beverly usa a história de Lacan parailustrar como é o sujeito dono de um su-

posto saber. Lacan, por sua vez, ilustracom a narrativa a relação entre o sujeito eo campo visual, como parte de suas leitu-ras sobre a imagem e o objeto. Porém,essa também é uma história sobre asubalternidade e a representação, nessecaso, sobre como o sujeito subalterno se(re)apresenta ao sujeito dominante e, nes-se processo, há a troca mediante uma ne-gociação ou deslocamento — ao percebera divertida reação de Petit Jean diante dalata de sardinhas boiando no mar, Lacandiz: “Eu estava fora do lugar no quadro”(LACAN apud BEVERLY, 2004, p. 53).

Para Ranajit Guha4 , citado por Beverly,subalterno é um nome para o atributogeral da subordinação, que se expressaem termos de classe social, etnia, idade,gênero, trabalho, entre letrados e não-le-trados, entre os que frequentam ou não aacademia. Segundo Beverly, proposição deGuha coincide com o que fica da históriade Lacan: ele, um jovem intelectual, quepodemos classificar como pertencente àclasse dominante, querendo conhecer omundo dos subalternos, materializado nopequeno barco dos pequenos pescado-res. A ideia de Lacan é a de intercâmbio:ele queria estar do lado de lá, ao lado “[...]do mundo de trabalho [prático] e de suamaterialidade, na posição do escravo”(BEVERLY, 2004, p. 54).

Ainda segundo a leitura de Beverly daobra de Guha, o subalterno, ou melhor,sua identidade reside na negação. Podese entender o subalterno como alguémque não somente não possui podersocioeconômico ou cultural, mas tambémnão tem uma representação clara de simesmo. Assim, a proposição de Guha éresgatar o subalterno como sujeito da his-tória, sobretudo de sua própria história.

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Segundo Beverly, usando como exemploo campesino rebelado,

O problema é que os feitos empíricos[históricos] dessas rebeliões [as rebeli-ões campesinas] são transcritos na lin-guagem e pelas correspondentes pau-tas culturais da elite — pautas tanto anativa quanto a colonial — contra asquais as rebeliões precisamente se di-rigiam (2004, p. 54).

Portanto, os insurgentes/os subalter-nos se veem falados, traduzidos e retra-tados por aqueles contra quem se insur-giram, o que fatalmente criará uma ima-gem negativa ou opaca do subalterno.

O projeto de Guha é recuperar o re-apresentar do subalterno como um su-jeito histórico — ‘uma entidade cujavontade e razão constituem uma prá-tica chamada rebelião’ — desde a con-fusão da documentação até os discur-sos historiográficos que lhe negam opoder de autogestão (BEVERLY, 2004,p. 55).

O subalterno é uma entidade em es-tado de rebelião. Ele pode falar e sua falaé a marca da rebelião contra aqueles que,como Gayatri Spivak5 , dizem que o su-balterno fala, porém não altera “[...] asrelações de poder/saber que o constitu-em como subalterno” (apud BEVERLY,2004, p. 57).

Em face da globalização6 e sua capaci-dade de produzir novos modos de explo-ração e de dominação, os estudos sobre asubalternidade, seja pela visão de Guha,seja pela de Spivak, não somente contri-buem para a produção de conhecimento

sobre o tema, mas também podem inter-vir politicamente em favor da discussãosobre o subalterno e sua mudança destatus no mundo.

Ainda que no meio acadêmico se de-pare com uma certa dificuldade em re-presentar o subalterno, não é necessáriorecorrer ao que dizem do subalterno ospesquisadores. As falas dos subalternosestão aí para serem lidas, escutadas ecompreendidas. Beverly cita como exem-plo a narrativa Me llamo RigobertaMenchú, dizendo que se textos como essesão admitidos em centros de hegemoniaacadêmico-intelectual, como foi sua inclu-são em um curso de Cultura Ocidental naUniversidade de Stanford, em plena eraReagan, é porque é possível aceitar suasreivindicações pelo direito à diferença e àautoridade que cada um tem na sua dife-rença (BEVERLY, 2004, p. 58).

O que de fato interessa politicamentenão é a verdade do sujeito, porém o que éa verdade para esse sujeito. O certo é que“A subalternidade é uma identidaderelacional muito mais do que ontológica;trata-se, pois, de uma identidade (ou iden-tidades) contingente e sobredeterminada”(BEVERLY, 2004, p. 59).

Há que se considerar, hoje, que osEUA são o terceiro país de fala hispânicano mundo. Aqui não nos referimos aoespanhol, como o da Espanha, mas a umregistro eivado de espanhol, de inglês,de black english e outros falares de po-pulações que vivem em território norte-americano e são consideradas subalter-nas. Perguntamos: será que com um nú-mero como esse de falantes — e aí con-sideramos também suas práticassocioculturais — o subalterno de fato nãotem voz?

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Em meio a questões como a posta aci-ma, Beverly faz referência a RichardRodriguez7 . De ascendência latino-ame-ricana, em seus tempos de colégio naCalifórnia, ressentia-se dos comentáriossobre seu parco vocabulário em línguainglesa, tornando-se, mais tarde, especia-lista em literatura inglesa. Seu livro Hungerof memory: the education of RichardRodriguez foi recebido por Henry Staten,citado por Beverly (2004, p. 58-59), da se-guinte maneira:

Apesar de sua familiar distinção ideo-lógica dos pobres, apesar de suametafísica transcendental, Richardsente uma profunda conexão com osmexicanos, percebidos de maneira maisabjeta, e deseja manter contato comeles [...] Em parte, esses sentimentosconstituem o ‘paroquianismo da clas-se média’ contra o qual ele mesmo nosadverte (Hunger 6): um romance cul-tural interclasses no qual a burguesiaanseia a corporeidade e a imediatez dostrabalhadores. Porém, no caso deRichard, é muito mais do que isso, porpelo menos duas razões: primeiro por-que ele compartilha o fenótipo dos tra-balhadores e, segundo, porque seu pai,ainda que ‘branco’ e identificado coma burguesia, fala inglês precariamen-te, tem as mãos calejadas pelo traba-lho e foi humilhado na vida por sersubalterno (Hunger 119-20), como osmexicanos de pele morena que Richardretrata. A identidade de Richard divi-de-se com relação a seu pai, que porum lado representa a pessoa que per-mite a Richard ser diferente dos po-bres e, por outro, representa os pobresdos quais Richard é diferente.

O que se percebe na leitura de Statenda obra de Rodriguez é que o sujeito deascendência latino-americana Richardnão consegue escapar à contradição quepaira sobre o subalterno. É um estadoconstante de tensão: como a subalter-nidade é, de modo geral, confundida coma pobreza socioeconômica, quando ossubalternos querem participar da culturahegemônica, tornando-se assimilados, háuma tendência a separar-se de seu grupopela condição econômica — eles não sãopobres — e a fazer parte dele pela culturafamiliar, pelas histórias (de sofrimento, dehumilhação, de ódio étnico) que carregamseus ascendentes.

Assim, o subalterno é o rebelde quecontradiz as verdades de seus inimigos,do dominante, tentando abolir as marcasde sua própria condição. O que a história,como área de saber, deveria fazer é seaprofundar nos estudos sobre asubalternidade, compreendendo-a poli-ticamente e procurando modos, a partirdela, de mudar as condições de subordi-nação na sociedade.

Estudar a subalternidade é diferentede fazer a história dos que vêm “de baixo”,considerando esta expressão social, eco-nômica e culturalmente. O subalternotraz consigo algumas características quepodem não ser encontradas naqueles quevêm “de baixo”. Isso cria um registro débilnos estudos sobre a subalternidade, difi-cultando à academia/à universidade re-presentar o subalterno não somente parao outro, mas também para ele próprio.Dipesh Chakrabarty8 adverte sobre aque-la confusão em três áreas:

[...] (a) uma relativa separação entre a

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história do poder e qualquer históriauniversalista do capital, (b) uma críti-ca da forma nação, e (c) uma interro-gação da relação entre saber e poder (epor meio dela do arquivo mesmo e dahistória como forma de saber) (apudBEVERLY, 2004, p. 67).

Beverly critica a história no seu apegoao passado pelo passado:

Nada é trocado no passado porque opassado é o passado; tampouco tam-bém nada é trocado no presente en-quanto a história como tal — ou seja,como uma forma de saber — nãomodifica as relações existentes de do-minação e de subordinação. De algu-ma forma, é o contrário: a acumula-ção de conhecimento histórico comocapital cultural por parte da universi-dade e dos centros de saber aprofundaas subalternidades já existentes. Para-doxalmente, então, haveria que se pro-duzir um momento em que o subal-terno se insurja contra os estudos su-balternos [...] (2004, p. 63).

Nessa encruzilhada, Beverly volta àquestão levantada por Chakrabarty:

[...] se a educação ‘superior’ — a aca-demia — em si mesma produz e re-produz a relação dominante/subalter-no (porque se é superior deve haveroutra educação que é inferior), comoela pode ser um lugar onde o subalter-no adquira hegemonia? (2004, p. 63).

A partir desse questionamento,Beverly passa a ler o livro Campesino ynación (Campesinato e Nação), de Florencia

Mallon9 , no qual a autora deseja mostrar“[...] como os subalternos [...] ajudaram adefinir os contornos do que foi possívelna construção dos Estados-nação [naAmérica Latina]” (apud BEVERLY, 2004,p. 64).

Mallon observa que o imaginárioiluminista, herança do século XVIII euro-peu, tomou conta das revoluções pós-colonialistas do Peru e do México no sé-culo XIX. No entanto, a promessa de li-berdade, de igualdade, de autonomia ede dignidade era para poucos, os poucosque estavam em acordo com critérios deexclusão de classe e étnica. Pergunta, pois,Beverly:

Como então recuperar os projetos e asvozes dos excluídos? O ponto de par-tida de Mallon é uma noção de‘hegemonia comunal’, baseada no pa-rentesco e na autoridade das gerações(especialmente o patriarcal) e em for-mas coletivas ou semicoletivas de pro-priedade dos grupos indígenas (2004,p. 64).

A recuperação das vozes locais, dasvozes dos excluídos, deve partir, dentreoutros pontos, da devolução às comuni-dades rurais de sua condição de sujeitode sua própria história, possibilitandouma relação simétrica entre o intelectuale o sujeito campesino que rompa “[...]com a divisão artificial entre o analistacomo intelectual e o campesino como su-jeito” (BEVERLY, 2004, p. 65).

Para Beverly, o trunfo das proposiçõesde Mallon é perceber que os habitanteslocais — campesinos/rurais — tanto doMéxico quanto do Peru atuaram de fatona formação dos Estados modernos em

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seus países. Porém, há um problema nes-sas proposições: Mallon “[...] mantémuma forma narrativa diacrônica, isto é,um sentido da história como desenvolvi-mento, amadurecimento [...]” (2004,BEVERLY, p. 66).

Em face de todas as leituras feitas,Beverly propõe que

Assumir como possíveis o projeto derepresentar o subalterno na academiae o projeto de auto-representação dosubalterno como ele próprio é, sim-plesmente, isso: uma assunção. Naverdade, seria mais correto dizer queestes são projetos diferentes e antagô-nicos. [Beverly crê] que a universida-de deve ‘servir ao povo’; para isso, deveser mais acessível, democratizada, ofe-recendo mais possibilidades de resis-tência (2004, p.68).

Referindo-se à Teologia da Libertação,Beverly observa que os estudos subalter-nos acadêmicos devem mostrar um novomodo de falar sobre os subalternos e tam-bém construir relações solidárias entre ospesquisadores/os acadêmicos e os sujei-tos subalternos. Para tanto, cita o teólogoGustavo Gutiérrez10 quando ele fala de“[...] uma amizade concreta com o pobre:não pode ser simplesmente um assuntode ter uma ‘conversa com’ [...] ou roman-tizar ou idealizar o subalterno” (apudBEVERLY, 2004, p. 69-70).

Ao fim da discussão, Beverly chega àconclusão de que

[...] nós não reivindicamos o direitode representar (‘fazer um mapacognitivo’, ‘deixar falar’, ‘falar por’, ‘es-cavar’) o subalterno. Os estudos su-

balternos tratam, ao contrário, decomo o saber que nós produzimos ecompartilhamos como pesquisadores/acadêmicos está estruturado pela au-sência, pela dificuldade ou pela impos-sibilidade de representação do subal-terno. Isso é reconhecer, sem dúvida,a inadequação fundamental de nossosaber e das instituições que o detêm e,por outro lado, a necessidade de umamudança radical em direção a umaordem social mais democrática e igua-litária (2004, p. 70-71).

2. O SUBALTERNO EMRUBEM FONSECA

De modo geral,

Do ponto de vista temático, a narrati-va fonsequiana explora as experiênci-as humanas dos indivíduos que seembatem nas grandes cidades. A vio-lência física que envolve os protago-nistas sustenta-se numa forma outra,de ordem econômica e estrutural, cri-ando uma atmosfera de confrontaçãoe hostilidade que permeia as relaçõesentre os indivíduos tanto na esfera davida pública quanto nas relações pes-soais, afetivas e familiares (CONCEI-ÇÃO, 2010, p. 2).

No primeiro conto de Feliz Ano Novo,que leva o mesmo nome do livro, RubemFonseca expõe a diferença entre a classepobre marginalizada e a rica burguesia,alheia ao que acontece na periferia da ci-dade. Enquanto as granfas bem nutridas ede boa aparência compram roupas, joiase preparam jantares com comidas e bebi-das finas, os três protagonistas, provavel-

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mente pobres e moradores da periferia,estão afundados em suas misérias soci-ais, vivendo em lugares fétidos, entre ar-mas e drogas. Quando resolvem invadiruma casa em São Conrado, a ação vaimuita além de um simples assalto — elesse tornam “cobradores”. Apesar de sonha-rem em ter uma vida como a dos“bacanas”, demonstram desprezo peloambiente de luxo que vêem. Pisam, su-jam, destroem e defecam sobre a colchade cetim do quarto de uma das vítimas,como se quisessem dizer: “Não podemoster, então destruímos, violentamos, ma-tamos”. Tal desprezo chega ao extremo dacrueldade quando uma das vítimas dizque “podem também comer e beber avontade”. O marginal faz toda uma pre-paração da sua vítima, fazendo-o dizer onome, levantar-se e posicionar-se pertoda parede, “encostado não, uns doismetros de distância”, para atirar bem nopeito dele, esvaziando os dois canos dacarabina doze.

No encontro entre os marginais e osdemais participantes da narrativa, há umembate (ou seria um combate?) entredominação e subordinação. Nesse emba-te / combate vem à tona a violência. Se-gundo Hannah Arendt,

Devemos sempre lembrar que a vio-lência não depende de números ou deopiniões, mas de implementos, [...] osimplementos da violência, como to-das as ferramentas, amplificam e mul-tiplicam o vigor humano. [...] A vio-lência sempre pode destruir o poder;do cano de uma arma emerge o co-mando mais efetivo, resultando namais perfeita e instantânea obediên-cia (2009, p. 70).

No conto “Feliz Ano Novo”, instau-ram-se situações que se a princípio temum fundamento — a lógica dos marginaishumilhados pelo poder do capital, repre-sentados pelos convidados da festa — nodecorrer da narrativa aquele fundamen-to se perde em meio à violência que inici-almente atinge os corpos para depois atin-gir outras dimensões. Subalternos edominadores perdem-se em meio à mal-dade humana e ao comando das armas:

Você ai, levante-se, disse Zequinha. Osacana tinha escolhido um carinha ma-grinho, de cabelos compridos.Por favor, o sujeito disse, bem baixi-nho.Fica de costas para a parede, disseZequinha.Carreguei os dois canos da doze. Atiravocê, o coice dela machucou meuombro. Apóia bem a culatra senão elate quebra a clavícula.Vê como esse vai grudar. Zequinhaatirou. O cara voou, os pés saíram dochão, foi bonito, como se ele tivessedado um salto para trás. Bateu comestrondo na porta e ficou ali gruda-do. Foi pouco tempo, mas o corpo docara ficou preso pelo chumbo grossona madeira.Eu não disse? (FONSECA, 1995, p.20. Grifos nossos).

Porém, os bandidos não serão maisdominados. Se os ricos e os poderososdominam pelo poder do dinheiro ou dostatus social, os bandidos dominam pelaviolência, pela força que emana de seu“poder de fogo”.

Em “Feliz Ano Novo”, os subalternos

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se lançam em uma luta não por dinheiroou bens materiais, porém em uma lutacontra o fim da subordinação e da exclu-são social. Eles são os subalternos quedecidem fazer sua própria história.

Já o conto “O cobrador”, que abre olivro homônimo de Rubem Fonseca, àprimeira vista, pode parecer a narrativade um serial killer sobre seus crimes. Seriamais fácil dar conta da literaturafonsequiana se assim o fosse. Sem nome,ou, ao contrário, negando-se como ho-mem e auto-denominando-se como oCobrador (“Não sou homem porra ne-nhuma, digo suavemente, sou o Cobra-dor. / Sou o Cobrador!, grito” – FONSE-CA, 2010, p. 26), logo na abertura do con-to a personagem vai ao dentista e quandoeste lhe cobra pelos serviços, é surpreen-dido pela resposta do cliente: “Eu não pagomais nada, cansei de pagar!, gritei paraele, agora eu só cobro. / Dei um tiro nojoelho dele. Devia ter matado aquele fi-lho da puta” (FONSECA, 2010, p. 12).

O que devem ao Cobrador? Ele res-ponde:

A rua está cheia de gente. Digo, den-tro da minha cabeça, e às vezes parafora, está todo mundo me devendo!Estão me devendo comida, buceta,cobertor, sapato, casa, automóvel, re-lógio, dentes, estão me devendo(FONSECA, 2010, p. 12-13).

Na maioria dos encontros entre oCobrador e os demais participantes danarrativa, há um embate (ou seria umcombate?) entre dominação e subordina-ção. Durante a ida ao “estabelecimento”de um traficante de vários objetos, entreeles, armas de fogo, o Cobrador, quando

ia atravessar a rua, é molestado pela bu-zina de um carro. Diante disso, ele ficaparado na frente do carro. O motorista ochama:

Como é?, ele gritou.Era de noite e não tinha ninguém per-to. Ele estava vestido de branco. Sa-quei o 38 e atirei no para-brisa, maispara estrunchar o vidro do que parapegar o sujeito. Ele arrancou com ocarro, para me pegar [...] Parou logoadiante. Fui até lá. O sujeito estavadeitado com a cabeça para trás, a carae o peito cobertos por milhares depequeninos estilhaços de vidro. San-grava muito de um ferimento feio nopescoço e a roupa branca dele já esta-va toda vermelha (FONSECA, 2010,p. 13).

A vontade de dominação está semprepresente. Porém, novamente, o narradornão será mais cobrado ou dominado. OCobrador suplanta o poder socioeconô-mico de seus oponentes pela violência,pela força que emana de seu arsenal deguerra. Mesmo o traficante que lhe “ven-deu” a Magnum não é perdoado: ao finalda transação, ele é morto com um tirocerteiro “[...] e mais dois tiros só para ou-vir puf, puf ” (FONSECA, 2010, p. 14).

Em “O Cobrador”, o narrador se lan-ça em uma luta incansável não por umlugar ao sol, porém em uma luta contra ofim da subordinação e da exclusão social.Ele é o subalterno que decide fazer e con-tar sua própria história. Ele é o subalter-no que sabe qual é o seu lugar e reconhe-ce seus iguais, como no caso da emprega-da do apartamento onde entrou comoencanador:

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Deve haver um engano, ela [a donada casa] disse, nós não precisamos debombeiro.Tirei o Cobra de dentro da caixa. Pre-cisa sim, é bom ficarem quietas senãomato as duas. Tem mais alguém emcasa? O marido estava trabalhando e omenino no colégio. Amarrei a empre-gada, fechei sua boca com esparadra-po. Levei a dona pro quarto (FONSE-CA, 2010, p. 21).

Ele não estuprou, nem matou a em-pregada. Apenas a imobilizou. A violên-cia do estupro estava destinada à dona doapartamento.

O Cobrador reivindica tudo o que temdireito. E na praia, lugar onde “[...] somostodos iguais, nós os fodidos e eles. Atéque somos melhores pois não temosaquela barriga grande e a bunda mole dosparasitas” (FONSECA, 2010, p. 22), eleconhece Ana, a moça branca dentre duasque lhe chamaram a atenção na areia.

Por algum motivo não esclarecidopelo narrador, Ana estabelece “uma ami-zade concreta com o pobre” (BEVERLY,2004, p. 69), o subalterno, sem idealizá-lo.O Cobrador leva a moça para a pensãoonde mora. Eles transam e ele lhe mostraas armas.

[Ele lhe pergunta] Quer atirar? podeatirar, a velha não vai ouvir. Mais paracima um pouco. Com a ponta do dedo

suspendo o cano até a altura da minhatesta. Aqui não dói.Você já matou alguém? Ana aponta aarma para minha testa.Já.Foi bom?Foi.Como?Como um alívio (FONSECA, 2010,p. 29).

Talvez, aqui, um alívio duplo: o de eli-minar seus algozes nas relações de subor-dinação e o de contar com uma aliadaentre os dominantes no seu desejo de co-brança.

CONCLUSÃO

A violência física das personagens-protagonistas dos contos “Feliz Ano Novo”e “O Cobrador”, de Rubem Fonseca, édestrutiva, porém (parece) se justificar portoda uma vida de relações assimétricas,na qual a promessa de liberdade, de igual-dade, de autonomia e de dignidade erapara poucos, muito poucos. E elas nãoestavam entre esses poucos. Os subalter-nos, então, reivindicam tudo o que têmdireito. E em todos os lugares por ondepassam, destroem não somente os sím-bolos de poder econômico dos granfas,mas também a (aparente) dignidade queo status social lhes traz, tornando-os tãoindigentes quanto a si próprios.

NOTAS

3 Todas as traduções feitas do espanhol para o português no decorrer do seminário sãode nossa autoria.

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ANO 13 ••••• No 52 ••••• MAIO-JUNHO-JULHO/2010144 Ranajit Guha (1922) é historiador e nasceu na Índia. É dos maiores estudiosos dasubalternidade do mundo, sendo o fundador da Revista de Estudos Subalternos. Mi-grou na década de 1960 para a Inglaterra.5 Gayatri Chakravorty Spivak (1942) é indiana, também estudiosa da subalternidade, econhecida por seu artigo Can the Subaltern Speak?, considerado um texto fundamentalsobre o pós-colonialismo e a subalternidade. Leciona na Columbia University. É mem-bro-visitante do Centre for Studies in Social Sciences de Calcutá.6 Aqui não teceremos quaisquer comentários sobre se o processo de globalização épositivo ou negativo. Somente dizemos que ele existe.7 Richard Rodriguez (1944) é estudioso norte-americano de literatura de língua inglesa,nascido em uma família de imigrantes mexicanos. Até seu ingresso em uma escolacatólica na Califórnia, onde nasceu, falava somente espanhol.8 Dipesh Chakrabarty é historiador nascido em Bengali e que muito tem contribuídopara os estudos pós-coloniais e de subalternidade. Ele ensina na Índia. Tem colabora-do decisivamente para a intersecção entre a história e os estudos pós-coloniais.9 Florencia Mallon nasceu em Santiago (Chile) em 1951. Historiadora, sua área deinteresse é a história moderna da América Latina.10 Gustavo Gutiérrez Merino é teólogo peruano e sacerdote dominicano, consideradopor muitos como o fundador da Teologia da Libertação. Na década de 1980 sofreuprocesso da Cúria Romana, que acusava sua obra de reduzir a fé à política.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução Andréa Duarte. Rio de Janeiro: Civiliza-ção Brasileira, 2009.

BEVERLY, John. El subalterno y los límites del sáber académico. In: _______. Subalternidady Representácion. Madrid: Iberoamericano, 2004. p. 53-71.

CONCEIÇÃO, Daniele Barros da. Sob o signo da derrota: os justiceiros desiludidos deRubem Fonseca. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro, CLA –Faculdade de Letras/UFRJ, 3. ed., p. 1-14, jun. 2010. Disponível em:<www.forumdeliteratura.com> Acesso em 4 jun.2010.

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In. _______. Feliz Ano Novo. 2. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 1995.

FONSECA, Rubem. O Cobrador. In. _______. O Cobrador. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir,2010. p. 9-31.

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RESUMOO presente trabalho objetiva refletir sobre a figura do narrador do romance A

grande arte, de Rubem Fonseca. O narrador é a figura encarregada de contar a históriado seu tempo e o faz atravessado pelo seu ponto de vista, mas ele já não pretendetransmitir ensinamentos, desejando tão somente registrar a história do seu tempo,atento, porém, às obscuridades deste. Nesse sentido, o narrador de A grande arte querconfessar as violências físicas e morais praticadas sem peias pelos sujeitos da socieda-de. Em A grande arte o narrador expõe suas angústias, liberta-se e modifica-se pormeio da confissão.

Palavras-Chave: Narrador; Violência; Confissão; Rubem Fonseca.

ABSTRACTThe present work has as an objective to reflect over the figure of the narrator of the

novel A Grande Arte by Rubem Fonseca. It is the figure narrator in charge of telling thestory at his time and does it crossed by his point of view, but he does not intend totransmit teachings, wants only to register the history of this time, attentive, however, toits obscurities. This way, the narrator of A Grande Arte wants to confess the physicaland moral violence practiced with no pity by the subjects of this society. In A GrandeArte, the narrator exposes his anguishes, frees himself, and modifies himself throughthe method of confession.

Keywords: Narrator; Violence; Confession; Rubem Fonseca.

CONFISSÕES DE MANDRAKEEM A GRANDE ARTE

Josiane Cortes Buzzio1

1 Mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS. Docente do Ensino Médio em Dourados-MS.

O romance A grande arte, de RubemFonseca, chama atenção pelo aspec-

to da violência e da sexualidade marcantes.Violência que aparece justificada seja emnome da sobrevivência, do processocivilizatório, ou da cultura. Segue a linhados romances urbanos que retratam asatuais situações enfrentadas nas cidades,acabando por demonstrar a mudança de

comportamento da sociedade como tam-bém as transformações pelas quais amentalidade urbana tem passado.

A solidão da grande cidade é matériaprima para o romance, onde os sujeitosseguem sem saber de si, nem do outro,manipulando situações, cientes de quepodem sucumbir a qualquer momento. Éna cidade do Rio de Janeiro, em meio à

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quer momento; da corrupção que crescea cada dia, deixando a humanidade cadavez mais desacreditada de seus represen-tantes públicos; e da angústia da socieda-de atual frente aos avanços tecnológicos,que nos empurram para algum lugar quenão sabemos qual.

É contemporâneo porque, segundoSilviano Santiago, narra a partir do queobserva, que “[...] se afirma pelo olhar quelança ao seu redor, acompanhando seres,fatos e incidentes” (1989, p. 43). Que estáocupado em observar e narrar a históriade um tempo em que a narrativa heróicae maravilhosa, sustentada na bravura ena solidariedade humana, converteu-se natarefa infinita do narrador de buscar emseu interior uma “[...] verdade que a pró-pria forma da confissão acena como sen-do inacessível.” (FOUCAULT, 1988, p. 60)

O indivíduo, durante muito tempo,foi autenticado pela referência dosoutros e pela manifestação de seu vín-culo com outrem (família, lealdade,proteção); posteriormente passou a serautenticado pelo discurso de verdadeque era capaz de (ou obrigado a) tersobre si mesmo. A confissão da verda-de se inscreveu no cerne dos procedi-mentos de individualização pelo po-der. (FOUCAULT, 1988, p. 58)

Ainda na Idade Média as sociedadesocidentais instituíram a confissão como oinstrumento eficaz na produção da ver-dade: na religião, estabelecendo a confis-são como sacramento; na justiça crimi-nal, com o desenvolvimento de métodospara produzir a verdade, sustentados naconfissão do suspeito; na instauração dosTribunais da Inquisição. Tudo isso com o

paisagem do cotidiano e à violência urba-na, que personagens marginais e da altasociedade ora se misturam, ora se con-frontam, mantendo em comum a desen-freada busca pela sobrevivência. Integra-do às personagens, fazendo a história, estáa figura do narrador: “Muito embora ashistórias sejam resultado inevitável daação, não é o ator, e sim o narrador quepercebe e ‘faz’ a história.” (ARENDT, 2008,p. 205). Mandrake, o advogado metido ainvestigador é quem conduz a trama e aomesmo tempo é engolfado por ela, cum-prindo a função de exteriorizar a escuri-dão que vislumbra em meio à luz.

Segundo Giorgio Agamben, o contem-porâneo deve manter o olhar fixo no seutempo, não para enxergar as luzes, mas aescuridão. Não se trata do tempo crono-lógico, mas daquele que urge dentro des-te, transformando-o. “Todos os tempossão para quem deles experimentacontemporaneidade, obscuros. Contem-porâneo é, justamente, aquele que sabever essa obscuridade, que é capaz de es-crever mergulhando a pena nas trevas dopresente.” (AGAMBEM, 1999, p. 62)

O narrador de A grande arte traduz asociedade carioca, passando por subúrbi-os, favelas, avenidas e mansões, mostran-do bandidos vencedores e instituições in-competentes para cumprir suas atribui-ções de vigiar e punir, abandonando “[...]o caráter de literatura reconfortante esocialmente integrante típico do gênero,em que o criminoso é sempre apanhado,a justiça é sempre feita, o crime não com-pensa e a legalidade e os valores burgue-ses triunfam.” (PELLEGRINI, 1999, p. 104)

Ele é testemunha da violência cotidia-na que nos deixa à mercê de nosso seme-lhante, pronto a apertar o gatilho a qual-

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intuito de produzir a verdade a partir daconfissão. Nos poderes civis e religiosos,a sociedade ocidental tornou-se uma so-ciedade confessanda. O sujeito passou aser autenticado não por suas ações emrelação aos outros, mas pelo seu discursosobre si mesmo. A confissão “[...] difun-diu amplamente seus efeitos: na justiça,na medicina, na pedagogia, nas relaçõesfamiliares, nas relações amorosas, na es-fera mais cotidiana e nos ritos mais sole-nes.” (FOUCAULT, 1988, p. 62)

Confessar implica em exposição equem o faz torna-se previsível, indefeso,exposto à análise do outro. Quem silen-cia, ao contrário, representa uma incóg-nita e como o medo do desconhecido éhumano, a dominação e o cerceamentorecaem sobre quem se mostra. Daí a ra-zão de colocar o outro sob jugo, conhecersua mente para, a partir de então, poderdecifrá-lo, dominá-lo. A confissão é umaforma de estabelecer uma relação de po-der, pois para confessar o indivíduo pre-cisa da presença do outro que se constituiem uma instância a impor a confissão,intervindo para

[...] julgar, punir, perdoar, consolar,reconciliar; um ritual onde a verdadeé autenticada pelos obstáculos e as re-sistências que teve de suprimir parapoder manifestar-se; enfim, um ritualonde a enunciação em si, independen-temente de suas conseqüências exter-nas, produz em quem a articula modi-ficações intrínsecas: inocenta-o, res-gata-o, purifica-o, livra-o de suas fal-tas, libera-o, promete-lhe a salvação.(FOUCAULT, 1988, p. 61)

O que se busca com a confissão é a

produção da verdade, ainda que seja umaverdade relativa. O indivíduo que confes-sa quer exteriorizar o que está em seu ín-timo, quer receber uma censura ou apro-vação, ou simplesmente, desabafar, dizerde si por meio da história do seu tempo.“Todas as mágoas são suportáveis quan-do fazemos delas uma história ou conta-mos uma história a seu respeito”(DINESEN apud ARENDT, 2008, p. 188).A confissão como que redime. Quem con-fessa modifica-se, liberta-se daquilo quea incomoda, que a aprisiona.

Mas, apesar de o mundo querer impe-dir que isso acontecesse, as pessoasmudavam e não mudavam mais por-que eram reprimidas, os que muda-vam eram amedrontados com a acu-sação de desleais, incoerentes, traido-res, eu sabia disso e não ia deixar queos outros me dissessem o que devia sere fazer. Agora não gostava mais doDireito (outra mudança) nem minhamaior alegria era levar uma mulherpara a cama. Quanto tempo isso dura-ria? Não me tornara, tinha certeza,uma pessoa moralmente melhor doque na época em que mantinha,alternadamente, a cópula fornicatóriacom oito mulheres. Continuava gos-tando das mulheres, talvez até mais,mas estava mudado. (FONSECA,1990, p. 60)

“As pessoas mudam”: eis a afirmaçãodo narrador de A grande arte que querexternar, conhecer essa mudança; não setrata de uma justificativa para os atos hu-manos, mas uma constatação a partir desua própria realidade. Ele mesmo passapor muitas transformações no decorrer

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da narrativa, mudanças intrínsecas e sig-nificativas. No início, ao aparecer no es-critório de advocacia com seu sócio, ana-lisando os processos de sempre, tratandode problemas alheios com o distancia-mento definido como “profissional”, é um.No decorrer da trama — desde o mo-mento em que se envolve no caso do as-sassinato de uma prostituta morta poresganadura e que teve a letra “P” inscritana face por uma faca de pequeno porte —vai gradativamente se tornando outro. Suaintromissão no caso também o faz vítima.O distanciamento das situações de perigoo protege; a intromissão o compromete.

Agora ele, também vítima, é tomadopelo sentimento de vingança que o moti-va a sair à procura de seus algozes. Po-rém, trata-se de um herói ingênuo, comoé ingênuo um homem diante da fúria deoutro homem. “A pluralidade humana,condição básica da ação e do discurso, temo duplo aspecto de igualdade e diferen-ça.” (ARENDT, 2008, p.188) O que possi-bilita à humanidade entender seus ances-trais e os anseios das gerações futuras é aigualdade. A diferença, por sua vez, de-termina a importância da linguagem hu-mana, por permitir ao homem comuni-car aos outros seus anseios. A questão dadiferença, da igualdade e da pluralidadetorna o ser humano imprevisível e quesubestima a força e o poder do outro, eum poder investido de violência pode terresultados inomináveis.

É o que acontece com o narrador de Agrande arte. Depois de intrometer-se nocaso das prostitutas, torna-se também alvodos criminosos. Também é vitimado e vio-lentado. A partir de então passa a nutrirpelos seus algozes um sentimento de vin-gança. Em determinado momento,

Fuentes, o homem que o esfaqueara, épreso. Mandrake então é chamado parareconhecê-lo na cadeia, sendo logo em se-guida informado de que Fuentes faz partede uma quadrilha de traficantes à qual aPolícia Federal está no encalço há tempose, por isso, para que a Polícia possa segui-lo e desbancar a quadrilha, Fuentes serásolto. Inconformado, Mandrake segue vi-agem no rastro do bandido, sem saber ain-da o que procura. “Apesar dos perigos queenvolve, a viagem enriquece a vida e ajudaa transpô-la” (LINS, 1990, p. 203)

Em seu percurso de viagem, onarrador enfrenta grandes perigos. A vi-agem provoca-lhe modificações significa-tivas. “É uma tarefa para o meio termo daidade, um instante em que a aventura nosatrai e podemos empreendê-la com ummínimo de segurança porque domina-mos as nossas energias físicas e mentais.”(LINS, 1990, p. 204)

Mandrake segue um roteiro que nãofaria de outra forma. A busca é por al-guém que lhe tirou algo que já é perdido.Ele julga que, eliminando seu algoz, cum-prindo sua missão, sua vingança terá res-tabelecido sua paz interior e recuperadosua dignidade. A viagem sempre é ummeio de busca. Oportuniza desbravar,conhecer, dominar o outro e o desconhe-cido. O desconhecido nesse caso é o pró-prio Mandrake, embora ele ainda não sai-ba disso. “’Tudo ameaça aos navegantescom uma morte certa’, diz Virgílio, paralogo demonstrar que Enéias vence asameaças e cresce com elas.” (LINS, 1990,p. 204)

Entretanto, o narrador de A grandearte não alcança com sua viagem uma vi-tória como o herói épico. Depois de colo-car em perigo sua vida e a vida dos que o

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acompanham, põe a perder todo um tra-balho de anos da Polícia Federal para pren-der uma quadrilha de traficantes. Perde avida de Mercedes, a mulher com quem seenvolvera no trajeto, “[...] a melhor agen-te” da Polícia. Retorna para casa frustra-do, amargurado por ter sido responsávelpor mais uma perda, tomando consciên-cia assim de seu lugar.

Na concepção dos gregos ‘O risco ex-terno, desviando-o de si mesmo, aju-da-o a aprimorar-se e a superar angús-tias que, de outro modo, se tornariamperniciosas’. Enfrentá-lo trás,reestabelecida a paz, a sensação de se-renidade, o reconhecimento de que opior caos se esconde no interior daalma e ela, sempre que possível nossopra coisas terríveis nos ouvidos.(LINS, 1990, p. 204)

“Na verdade, Homero refará, em ou-tros termos, o que contara na Ilíada, istoé, o triunfo da inteligência, da sagacidadee da astúcia sobre a força, sobre os ele-mentos.” (LINS, 1990, p. 205). Mandrake,ao contrário, reafirma sua condição deimpotente diante da violência da qual foravítima, de sua fraqueza e ingenuidade di-ante do outro desconhecido, o possuidorda força e da astúcia. Fuentes mostra-seum sujeito rústico que conheceu a cruel-dade dos homens ainda criança e sabia oquanto precisava ser atencioso para nãosucumbir como seu pai. Ele sim possui ainteligência alimentada pela raiva, nutri-da durante longos e amargos anos, damiserável e humilhada infância e adoles-cência até a promessa na vida adulta denão ter pena de brasileiro algum. Assimcomo não tiveram dele a vida toda.

Notou que o adversário possuía aquiloque Cassidy lhe dissera, durante otreinamento, ser a grande qualidadedo lutador — o “ódio frio”. Esse ódioextraordinário não prejudicava, aocontrário, fortalecia a indispensáveldisciplina mental do combatente.Hermes percebeu, ainda, com admi-ração, na plena imobilidade deFuentes, o controle que o adversárioexercia sobre sua energia física e men-tal. (FONSECA, 1990, p. 290)

Mandrake, ao contrário, sempre ab-sorto em sua vida de classe média, fora“[...] um bom estudante e depois umbom advogado [...]” (FONSECA, 1990,p.60), possuíra desde a infância a segu-rança e o conforto de um lar. Não podiasuspeitar qual fúria dominava e motiva-va homens como Fuentes e Nariz de Fer-ro. Ingenuamente nosso herói lança-seem um mundo desconhecido, cheio deperigos, empunhando uma pequena facae acreditando que com ela faria deFuentes sua vítima.

O objetivo maior do Ulisses, deHomero, é a sobrevivência, mesmo nosconfrontos com inimigos gigantescos,mostrando-se ágil e astuto o suficientepara vencê-los. Mandrake, ao contrário,quer matar, porém mostra-se incompe-tente para tanto, assumindo um ar estú-pido frente aos policiais que o informamda operação frustrada por conta de suaintromissão e da morte de Mercedes, quefora descoberta graças aos seus descui-dos. A viagem de Mandrake, assim comoa viagem do narrador contemporâneo,conta

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[...] as circunstâncias de um naufrá-gio. [...]A crise das utopias e das ideologias sóse instaura na década de 50 para osnossos dias. Mesmo assim, o persona-gem que ocupa o primeiro plano dacena é aquele que revira a alma embusca de uma decifração interior desua própria aventura na vida. (LINS,1990, p. 210-211)

A viagem é uma alegoria dessa busca.Parte-se do pressuposto de que o que te-mos de saber encontra-se oculto dentrode nós mesmos. É um meio que possibili-ta a transformação.

O uso da alegoria e da viagem interiorbaseia-se na premissa pela qual o quedevemos saber se acha oculto, soterra-do por camadas invisíveis de impres-sões e suposições que, se confiarmosnelas, nos atiram, desorientados, deum lado para outro, como um barco àderiva. (LINS, 1990, p. 212)

O narrador em A grande arte modifi-ca-se no decorrer da trama, confessa seusmedos, suas decepções e seus fracassos.Reconhece não ser astuto como pensava.O mundo em que vivera era outro; suarealidade de homem de classe média nãoo fizera um homem forte o suficiente parasobreviver na selva feroz onde se meteraao fazer a rota do tráfico. Era inocentedemais para achar que sobreviveria à fú-ria de homens como Fuentes.

A confissão constitui uma “faca de doisgumes”. Por um lado, provoca modifica-ções em quem confessa; por outro, aque-le que confessa o faz guiado pela convic-ção de que se afirmará pelo discurso que

profere sobre si mesmo e isso o tornasuscetível à censura alheia. “Ora, desde apenitência cristã até os nossos dias o sexotem sido a matéria privilegiada de confis-são.” (FOUCAULT, 1988, p. 61) Nesse sen-tido, pertencemos a uma sociedade que“[...] articulou o difícil saber do sexo, nãona transmissão do segredo, mas em tor-no da lenta ascensão da confidência.”(FOUCAULT, 1988, p. 62) A sexualidadefoi por esse motivo durante muito temporeservada ao discurso, transformando-seassim em algo a ser interpretado e anali-sado cientificamente.

Nossa civilização, pelo menos à pri-meira vista, não possui ars erótica. Emcompensação é a única, sem dúvida, apraticar uma scientia sexualis. Oumelhor, só a nossa desenvolveu, nodecorrer dos séculos, para dizer a ver-dade do sexo, procedimentos que seordenam, quanto ao essencial, emfunção de uma forma de poder-saberrigorosamente oposta à arte das inici-ações e ao segredo magistral, é a con-fissão. (FOUCAULT, 1988, p. 58)

A civilização ocidental criou uma ne-cessidade de dizer sobre os prazeres indi-viduais como forma de produção de ver-dade sobre si mesma. A partir disso osindivíduos eram definidos pelo que dizi-am sobre sua sexualidade. Instituiu-seassim uma ciência-confissão sobre sexo.Livros científicos foram escritos e lidos arespeito, assim como as consultas médi-cas eram direcionadas nesse sentido. Nasentrevistas, o paciente era induzido a di-zer de si para o outro, misturando senti-mentos de angústia pela exposição e deprazer por ser interpretado.

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Mandrake indaga sobre o uso de umdiscurso sobre sexo, desempenhandouma função de proibição e de repressãosexual como meio de coagir o indivíduo aenquadrar-se em um determinado modode conduta, quando relata uma fase desua infância, do seu tempo de menino naescola, ouvindo os ensinamentos do pa-dre, seu professor, falando de sexualida-de e do quão pecadora é a mulher, sem-pre induzindo o homem ao pecado desdeos tempos de Eva.

Como isso pudera acontecer com omenino que ouvia arrebatado as pala-vras inspiradoras do professor padreLepinski contra o pecado da libido? Opadre (que também era vegetariano,como os seguidores de Mani) pregavaa castidade, o ascetismo com todas assuas opressivas abstinências. “Bom se-ria a um homem não tocar mulher al-guma”, citava Lepinski o São Paulo daEpístola aos coríntios. O casamentoera aceito por ser (ainda são Paulo)“uma forma de cada um evitar a luxú-ria”. “Mas, mas, mas — “e essaadversativa dita com sotaque polonês,crescendo de intensidade como chi-cotadas em um condenado, sempreantecedia uma revelação terrível —“mas, mesmo no casamento, a rela-ção sexual é pecaminosa.” (Santo Agos-tinho, quem diria?) “A mulher levavao homem ao pecado”, explicavaLepinski, “não foi assim desde Eva, atentadora, agressiva e sensual raiz detodo o Mal?” “Toda mulher devia co-rar ao refletir que é uma mulher”, bra-dava o padre com desgosto, citandoseu teólogo favorito, Clemente deAlexandria. A concupiscência havia

destruído Sodoma, Gomorra, Egito,Grécia, Roma e os Estados Unidos.(FONSECA, 1990, p. 60)

A ciência sexual esteve essencialmen-te vinculada a uma moral e nesse sentidoutilizava normas médicas comoparâmetros de análise. Diante da menorpossibilidade de desvio sexual, atribuía-se ao indivíduo uma carga de culpa anteaos possíveis reflexos maléficos resultan-tes de sua conduta na própria vida, na vidadas gerações futuras e da humanidade.Enfim, “[...] no final dos prazeres insólitoscolocou-se nada menos do que a morte: ados indivíduos, a das gerações, a da espé-cie.” (FOUCAULT, 1988, p. 54)

O que se buscava assim não era a pro-dução da verdade, ao contrário, tencio-nava-se impedir que ela viesse à tona.Segundo Michel Foucault, o interessanteé a ligação que se estabelece hoje entre“[...] sexo, a revelação da verdade, a in-versão da lei do mundo, o anúncio de umnovo dia e a promessa de uma certa felici-dade [...].” (FOUCAULT, 1988, p.13)

Nesse momento os prazeres mais sin-gulares eram solicitados a sustentar umdiscurso de verdade sobre si mesmos,discurso que deveria articular-se nãomais àquele que fala do pecado e dasalvação, da morte e da eternidade,mas ao que fala do corpo e da vida —o discurso da ciência. (FOUCAULT,1989, p. 64)

Assuntos como nascimento e morteconstituem a natureza humana, assimcomo a sexualidade. No entanto, o ho-mem evita falar de tudo o que remete àsua natureza humana, portanto, mortal.

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Falar de sexualidade implica falar de vida,cópula, nascimento e morte. O que justi-fica a humanidade ter mudado seu modode encarar a morte. É como se no decor-rer dos tempos ela fosse perdendo suaonipresença; as pessoas evitam seu espe-táculo; o que antes era um acontecimen-to comum, natural na vida de qualquerindivíduo, passou a ser dissimulado. “Mor-rer era antes um episódio público na vidado indivíduo, e seu caráter era altamenteexemplar”. (BENJAMIN, 1994, p. 207)

‘Man created death’ é a que mais apa-rece. Essa frase me fez pensar muito.Creio que ela explica um pouco, o LimaPrado. O homem criou a morte. Por-que sabe que a morte existe, o homemcriou a arte, um pensamentonietzschiano. O nome do pensadoralemão também aparece na balbúrdiade anotações ‘Birth, copulation anddeath’ é a segunda frase que mais apa-rece, e esta como a outra, também mefez refletir demoradamente. Nasci-mento, cópula e morte. Afinal, istotalvez fosse, também, a história daminha vida. De todas as vidas. (FON-SECA, 1990, p. 176)

O sujeito encontra-se tão obcecadopela morte violenta, que figura na TV to-dos os dias pelos noticiários, que deixoude enxergar a morte como um processonatural. Todo indivíduo, ao menos quetenha sua vida ceifada antes, chegará àvelhice e encontrará a morte quando nãotiver mais forças para continuar sua ca-minhada.

Em A grande arte, o episódio da desco-berta de Lima Prado sobre sua origemconfronta temas como sexualidade e mor-

te sendo por isso objeto de análise e ob-servação do narrador. Com a morte da avó,Lima Prado herdara o casarão onde elamorava. Todos os dias ele revirava gavetase caixas, lia cartas antigas e descobria umpouco mais de si. Uma das cartas, porém,continha uma revelação surpreendente. Eleera filho incestuoso de seu pai com a pró-pria irmã; sua tia, que vivera encarceradaem um porão da casa, que uivava comoum lobo, que gritava o tempo todo e era“por isso” privada do convívio dos outros.A tia trancafiada era sua mãe.

Transtornado com a informação, bus-cou em um primeiro momento descobriro paradeiro da mãe. Embora penoso, erapreciso encontrá-la, ampará-la, tentarreparar o irreparável, e ele era o únicoque podia fazê-lo. Encontrou-a interna-da em um sanatório, vivendo em péssi-mas condições de saúde e de higiene,muito velha e abandonada. A situação erademasiadamente crítica, exigindo demaisdele, obrigando-o a ir ao encontro de seusmaiores medos.

Caminharam por um longo corredor,passando por várias enfermarias atéchegar àquela em que estava MariaClara. A pobreza tinha um cheiro, avelhice tinha um cheiro, a morte ti-nha um cheiro — e todos eles paira-vam misturados no ar do corredor,como uma espessa neblina rançosainvisível, que parecia umectar a peledo rosto e as narinas de Lima Prado.(FONSECA, p. 272)

Maria Clara fora mantida enclausu-rada pela mão a vida toda, Laurinda justi-ficativa a prisão da filha alegando sua lou-cura, um pretexto para esconder a vergo-

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nhosa relação incestuosa que ocorreradentro da família. Quando Maria Claraenvelheceu foi abandonada em um sana-tório. Morreria sem que ninguém a visse.A sociedade burguesa manda seus enfer-mos para morrerem em lugares “apro-priados”, como hospitais e sanatórios, evi-tando assim presenciar a morte. Porém,é na hora da morte que a verdade apare-ce, o que foi vivido, o que foi perdido, oque valeu a pena ou não. A história deuma vida transforma-se em narrativa,inscreve-se em um tempo. É o momentoem que o indivíduo pode transmitir suahistória de vida, livre de qualquer inten-ção oculta. “Quem tem apenas um mo-mento de vida não tem mais nada a dissi-mular” (FONSECA, 1990, p. 43). Assim ohomem afasta-se de seus doentes nomomento da morte, como busca afastar-se da ideia da velhice, do tempo corroen-do-lhe o corpo, limitando-lhe a ação.

Segundo Arendt (2008, p. 28), os ho-mens são os únicos mortais que existem,eles diferem dos demais animais que sãoconsiderados membros de uma espéciee garantem sua imortalidade pela pro-criação. Nesse sentido, o que possibilitaao homem perpetuar sua existência sãosuas obras, o resultado de suas ações. Aação alimenta o homem, sua vida, suaexistência.

A tarefa e a grandeza potencial dosmortais têm a ver com sua capacidadede produzir coisas — obras e feitos epalavras — que mereceriam pertencere, pelo menos até certo ponto, per-tencem à eternidade, de sorte que,através delas, os mortais possam en-contrar o seu lugar num cosmo ondetudo é imortal exceto eles próprios.

Por sua capacidade de feitos imortais,por poderem deixar atrás de si vestígi-os imorredouros, os homens, a des-peito de sua mortalidade individual,atingem o seu próprio tipo de imorta-lidade e demonstram sua natureza di-vina. (ARENDT, 2008, p. 28)

Com o passar do tempo, utilizandosua capacidade criativa, o homem foi apri-morando seus inventos. “Sem dúvida, asmáquinas tornaram-se condição tãoinalienável de nossa existência como osutensílios e ferramentas o foram em to-das as eras anteriores.” (ARENDT, 2008,p. 160) Na modernidade a máquina ficouresponsável pelo serviço mais pesado,para que a humanidade gozasse de maistempo livre. Esse processo de moderni-zação teve um início, mas não aponta umfinal. O criador tornou-se escravo de suaprópria criatura.

A cada dia surgem máquinas maismodernas que as anteriores, prometen-do desempenhar sua função em menortempo e com mais qualidade. Formou-seum círculo vicioso: produzir, comprar,consumir e produzir. “Só o esforço de con-sumir restará das ‘fadigas e penas’ ine-rentes ao ciclo biológico à cuja força mo-triz está ligada a vida humana.” (ARENDT,2008, p. 144)

A vida biológica passa necessariamen-te pelos estágios do labor e do consumo,mas o que tem ocorrido é que todo laborhumano tem sido gasto consumindo deforma que sobra pouco tempo para olazer. O homem precisa mostrar-se pro-dutivo para dar conta da demanda do con-sumo. Em contrapartida o tempo vago égasto consumindo. A personagem de Cila,a terceira prostituta assassinada represen-

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ta no romance o indivíduo escravo desseconsumismo desenfreado. Ao adentrar noapartamento da moça Mandrake obser-va a decoração, o excesso de roupas carase tão bem arrumadas no armário, o per-fume do ambiente misturado ao cheiropodre do corpo sobre a cama. Todo aqueleluxo já não lhe serviria mais.

A sala fora montada por um decoradorprofissional. Móveis, quadros, lumi-nárias, tapetes criavam um ambientede luxo moderno que logo estaria ob-soleto, quando surgisse a nova moda.“Passatempo de arrivistas em país sub-desenvolvido”, eu disso. ‘O quê?’, per-guntou Licurgo, em voz baixa. ‘Deco-ração’, sussurrei de volta. (FONSECA,1990, p. 52)

O processo de produção e consumovai se acentuando na medida em que ogosto das pessoas vai sendo tornado maisrefinado. A produção procura atender aum público cada vez mais exigente, quenão se limita a consumir produtos paraatender às suas necessidades básicas masàs suas superficialidades, acarretando operigo de que Hannah Arendt nos alerta:“Chegará o momento em que nenhumobjeto do mundo estará a salvo do con-sumo e da aniquilação através do consu-mo.” (2008, p. 146)

A mecanização e a artificialização davida natural resultantes do processo deprodução acelerada constituem um ris-co. Entretanto, o maior risco que aco-mete a sociedade nesse processo está nofato de que a humanidade, buscandoaumentar a produtividade em função dademanda, tem suas forças sugadas peloesforço da produção, pelo trabalho

repetitivo, reduzindo-lhe a vida a pro-duzir/consumir, diminuindo com isso otempo dos materiais fornecidos pela na-tureza nesse mundo:

Pois agora já não usamos material talcomo a natureza o fornece, matandoprocessos naturais, interrompendo-osou imitando-os. Em todos estes casos,alteramos e desnaturalizamos a natu-reza para os nossos próprios fins mun-danos, de sorte que o mundo ou o ar-tifício humano, de um lado, e a natu-reza, de outro, passam a ser duas enti-dades nitidamente separadas. Hoje,passamos a criar, por assim dizer, istoé, a desencadear processos naturaisnossos que jamais teriam ocorrido semnós; e, ao invés de defender cuidado-samente o artifício humano contas asforças elementares da natureza, man-tendo-as o mais possível à parte domundo feito pelo homem, canaliza-mos essas forças, juntamente com oseu poder elementar, para o própriomundo. (ARENDT, 2008, p. 161)

Assim, Mandrake segue seu destinocercado por personagens carentes de pos-turas que lhes possibilitem julgar tantosuas ações quanto os acontecimentos aoseu redor, consumidas por um vazio exis-tencial como figuras errantes e incapazesde enquadrar-se no padrão ético das vir-tudes tradicionais: bondade, solidarieda-de, amor despretensioso. Por outro lado,também não podem viver sem culpa,conduzidas que são pelo mercado de tro-cas e engolfadas pelas relações sociaisalienantes, além de se reprimirem sexu-almente ao mesmo tempo em que mas-sacram economicamente o outro.

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O narrador de A grande arte expõeseu ponto de vista frente a um mundoalienado e alienante, percorrendo o ca-minho rumo ao futuro incerto ele traduzem palavras a angústia do sujeito contem-porâneo frente às intercorrências do pre-sente, angústia extraída do âmago do sere externada pela confissão.

A confissão, segundo Foucault, pres-supõe um ouvinte que se encontra emuma posição superior de onde conferiráao exposto censura ou aprovação e,consequentemente a condenação ou libe-ração do interlocutor. O narrador de A

grande arte outorga ao leitor uma superi-oridade buscando liberar-se assim da suaculpa pela inércia frente às barbáries co-metidas em um tempo que atribui aosindivíduos — que agem ou que se omi-tem — a responsabilidade pela situaçãopresente. É ele que tem a incumbência denarrar o hoje, deixando registradas suasimpressões sobre esse tempo aos seuscontemporâneos e à posteridade pois “Avida não passava de uma luta de vida oude morte entre as pessoas. Entre os ani-mais. Entre os povos. Entre as forças danatureza”. (FONSECA, 1990, p. 133)

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius NicastroHonesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: _______. Obras escolhidas. Magia e técnica. Arte epolítica. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (V. 1).

FONSECA, Rubem. A grande arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FOUCAULT, Michael. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Therezada Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

LINS, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

PELEGRINI, Tânia. A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea. SãoPaulo: Mercado das Letras, 1999.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: _______. Nas malhas da letra. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1989.

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RESUMOEste artigo busca analisar as imagens de leitura presentes nas obras literárias

infantojuvenis que circulam nas escolas públicas do Brasil, por meio de compras go-vernamentais, realizadas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE/2008.Para tanto, serão levantados e estudados as concepções de leitura, os significados daspráticas de leitura, os espaços de leitura, os sujeitos leitores, os mediadores, a circula-ção dos livros, os modos de ler e as conotações que permeiam as leituras representa-das nos títulos selecionados. Assim, a pesquisa pretende contribuir para discutir aspossíveis relações entre leitura, literatura infantojuvenil, escola e políticas públicas deleitura.

Palavras-Chave: 1) Literatura infantojuvenil; 2) Leitura; 3) PNBE/2008.

ABSTRACTThis research analyzes the images found in reading literary works for children and

young people circulating in the public schools in Brazil, through governmentprocurement, conducted by the Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE/2008.For this, we collected and studied the concepts of reading, the meanings of readingpractices, the areas of reading, subjects readers, the mediators, the circulation of books,the ways of reading and the connotations that permeate the readings represented inthe titles selected. Thus, the research aims to contribute to discuss the possiblerelationship between reading, children’s literature, school and public policies of reading.

Keywords: 1) Children’s literature; 2) Reading; 3) PNBE/2008.

A LEITURA NO ACERVO DOPROGRAMA NACIONAL

BIBLIOTECA DA ESCOLA –2008: ENSINO FUNDAMENTAL

Célia Regina Delácio FERNANDES1

Maisa Barbosa da Silva CORDEIRO2

1 Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista - UNESP (1990), Mestre em TeoriaLiterária e Literatura Comparada pela Universidade Estadual Paulista - UNESP (1996) e Doutoraem Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas - UNICAMP (2004). Professora daUniversidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: [email protected] Graduanda em Letras com habilitação em Português/Inglês, pela Universidade Federal daGrande Dourados (UFGD). Bolsista de iniciação científica pelo PIBIC/CNPq da UFGD. E-mail:[email protected].

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INTRODUÇÃO

A função da escola em capacitar os alu-nos a lerem os diferentes tipos de textosque circulam socialmente ao final dos noveanos de ensino fundamental é confirma-da pelos Parâmetros Curriculares Nacio-nais – PCN’s de Língua Portuguesa (BRA-SIL, 1998). Contudo, nem sempre a esco-la tem se constituído no locus privilegiadopara a existência dos estímulos necessári-os ao desenvolvimento dessa capacidade.Como alertam os PCN’s de Língua Por-tuguesa (BRASIL, 1998, p. 29), não se for-mam bons leitores com materiais empo-brecidos, ou alienados às realidades de-les: “as pessoas aprendem a gostar de lerquando, de alguma forma, a qualidade desuas vidas melhora com a leitura”.

Nesse sentido, para auxiliar as escolaspúblicas, municipais e estaduais, a trans-formarem a atitude defensiva dos alunosfrente ao texto literário, o Programa Na-cional Biblioteca da Escola – PNBE vemdistribuindo acervos de literaturainfantojuvenil para aprimoramento dasbibliotecas escolares. Como se vê, o PNBEfoi criado devido à necessidade de sanaro problema da falta de bons materiais deleitura nas escolas públicas. Em vista dis-so, os critérios para seleção das obras acada ano tornam-se mais rigorosos, como propósito de, a cada preparação de acer-vos, melhorarem a perspectiva sobre oque vem a ser qualidade literária.

Ao pensar o PNBE como um progra-ma que visa à formação de leitores literá-rios, é importante observar como se cons-tituem as representações de leitura nasobras selecionadas, já que podem ser im-portantes atrativos na conquista de no-vos públicos. Além disso, as imagens de

leitura contribuem para desvendar “[...] acapacidade dos recursos linguísticos deconcretizar significados ao mesmo tempoem que o disseminam” (WALTY; FONSE-CA; CURY, 2006, p. 09). Dessa forma,mais dos que meras abordagens sobre otema, as imagens de leitura, bem elabo-radas e condizentes com diferentes tiposde contextos sócio-histórico-culturais,podem dialogar com as diversas realida-des dos alunos de escolas públicas.

Ao observar essas discussões, preten-de-se, neste artigo, analisar as represen-tações de leitura de um corpus de dezobras, resultante do desenvolvimento doplano de trabalho de iniciação científicafinanciado pelo PIBIC/CNPq e vinculadoao projeto de pesquisa “Imagens de esco-la e de leitura na literatura infanto-juve-nil”, coordenado pela Profa. Dra. CéliaRegina Delácio Fernandes. A discussãodessas imagens, tanto no âmbito socialcomo no acadêmico, é fundamental paraproblematizar e discutir a formação deleitores literários. Ao abordar a constitui-ção das imagens de leitura presentes emum acervo público, a pesquisa objetivacontribuir para a discussão da necessida-de e melhoria das políticas públicas depopularização da leitura no Brasil.

Para nortear o estudo, foram utiliza-das as seguintes categorias para análise:as concepções de leitura; os significadosdas práticas de leitura; os espaços de lei-tura; os sujeitos leitores; os mediadores;a circulação dos livros; os modos de ler eas conotações que permeiam as leiturasrepresentadas nos títulos selecionados.Dessa maneira, serão utilizados, comobase teórica, os estudos de especialistasda área (CECCANTINI, 2008; FERNAN-DES, 2007; FREIRE, 1982; LAJOLO;

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ZILBERMAN, 1988) e a pesquisa federalPrograma Nacional Biblioteca da Escola[PNBE]: leitura e biblioteca nas escolaspúblicas brasileiras (BRASIL, 2008) reali-zada pela Secretaria de Educação Básica –SEB – do Ministério da Educação em par-ceria com uma equipe de pesquisadoresligados à Associação Latino-americana dePesquisa e Ação Cultural (ALPAC), doLaboratório de Políticas Públicas (LPP) daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ).

CRITÉRIOS DE SELEÇÃODO CORPUS

O plano de trabalho do qual resultoueste estudo mapeou as cem obras desti-nadas às séries/anos iniciais do ensinofundamental selecionadas pelo PNBE/2008, dispostas no sítio do Fundo Nacio-nal de Desenvolvimento da Educação –FNDE (BRASIL, 2007). As obras foramencontradas nas escolas estaduais e mu-nicipais de Dourados/MS. A procura pe-los livros foi feita no período de agosto aoutubro de 2009 em trinta e cinco escolas,das quais vinte e seis possuíam obras doacervo do PNBE/2008: ensino fundamen-tal. Das cem obras, vinte e nove faziammenção à leitura, das quais foram seleci-onados dez em que as imagens de leituraforam consideradas mais significativaspara compor o corpus a ser utilizado pararedação deste artigo.

Também foi feita, durante a pesquisa,a análise do edital de convocação para ins-crição de obras de literatura no processode avaliação e seleção para o PNBE/2008(BRASIL, 2007). Para seleção das obraspelo Programa, foram apresentados, noedital, três critérios básicos: qualidade do

texto, adequação temática e projeto grá-fico. Tendo em vista que, quando as cri-anças ingressam na escola, possuem dife-rentes níveis de contato com a leitura,como qualidade do texto, as obras deve-riam contribuir “para ampliar o repertó-rio lingüístico dos leitores” e “propiciar afruição estética”, de modo a permitir a lei-tura individual dos alunos ou a leituraauxiliada pelo professor. Em relação àadequação temática, seriam selecionadas“obras com temáticas diversificadas, dediferentes contextos sociais, culturais ehistóricos” (BRASIL, 2007, p. 15). O proje-to gráfico seria avaliado de acordo com:

[...] apresentação de capa criativa eatraente, apropriada ao projeto estéti-co-literário da obra; uso de tipos gráfi-cos, espaçamento e distribuição espa-cial adequados aos pequenos leitores,distribuição equilibrada de texto eimagens; ilustrações que interagemcom o texto, artisticamente elabora-das; uso de papel adequado à leitura eao manuseio pelas crianças epertinência das informações comple-mentares (BRASIL, 2007, p. 15).

Para o processo de seleção, o editaldefiniu três categorias para escolha dasobras e composição dos acervos: textosem verso (poemas, quadras, parlendas,cantigas, travalínguas, adivinhas); textosem prosa (pequenas histórias, novelas,contos, crônicas, textos de dramaturgia,memórias, biografias) e livros de imagense histórias em quadrinhos (dentre osquais se incluem obras clássicas da litera-tura universal artisticamente adaptadas aopúblico) (BRASIL, 2007, p. 2). Após a sele-ção das cem obras foram feitos cinco acer-

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vos distintos, com vinte títulos cada, paraenvio às escolas de acordo com o númerode alunos matriculados. O Programa en-caminhou “[...] um acervo para as escolascom até 250 alunos, dois acervos para es-colas com 251 a 500 matrículas, três paraaquelas com 501 a 750 estudantes, quatropara aquelas com 751 estudantes a milalunos e cinco acervos para as escolas quepossuírem mais de 1.001 alunos matricu-lados” (MACIEL, 2008, p. 14).

Dentro dos três tipos de texto que osacervos deveriam contemplar, foram en-contrados, nas obras do corpus de pes-quisa deste trabalho, sete títulos do gêne-ro literário pequenas histórias, um dogênero biografia, um do gênero memóri-as, pertencentes à categoria textos emprosa e um com o gênero poesia, perten-cente à categoria textos em verso.

Com base nos critérios de seleção uti-lizados durante as etapas do plano de tra-balho, o corpus desta pesquisa ficou deli-mitado nas seguintes obras: A caligrafiade Dona Sofia (2008) de André Neves, Ali-ce viaja nas histórias (2007) de GianniRodari, Conversa pra boy dormir (2007)de Léo Cunha, Dadá e Dazinha (2007) deLuís Aguiar, Felpo Filva (2008) de EvaFurnari, Meu amigo mais antigo (2005) deZiraldo, O cabelo de Lelê (2007) de ValériaBelém, O rei maluco e a rainha mais ainda(2008) de Fernanda Almeida, Patativa doAssaré: o poeta passarinho (2008) de Fa-biano dos Santos e Você viu meu pai poraí? (2007) de Charles Kiefer.

AS REPRESENTAÇÕES DELEITURA NO CORPUS

Abordar a formação de leitores nasescolas públicas brasileiras envolve alguns

elementos fundamentais para que ocorraum despertar primeiro. Oferecerpluralidade literária é a primeira opção,mas nem sempre suficiente para germinarem crianças e adolescentes o gosto peloslivros. A segunda, a priorizada neste tra-balho, são as formas de abordagem àtemática da leitura em um acervo público.

Das obras estudadas, apenas duasfocaram a leitura como tema central: FelpoFilva (FURNARI, 2008) e A caligrafia deDona Sofia (NEVES, 2006). Outras duasobras apresentaram a leitura ligada àtemática do preconceito: O cabelo de Lelê(DIAS, 2007), Você viu meu pai por aí?(KIEFER, 2007). Seis das obras focaram aleitura indiretamente: Dadá e Dazinha(AGUIAR, 2007), O Rei maluco e a Rainhamais ainda (ALMEIDA, 2008), Patativa doAssaré: o poeta passarinho (SANTOS,2008), Conversa pra boy dormir (CUNHA,2007), Meu tempo e o seu (ZIRALDO, 2005)e Alice viaja nas histórias (RODARI, 2007).

De modo predominante, as imagensde leitura encontradas nas obras do corpusapresentam-na de acordo com três con-cepções: fonte de conhecimento, fonte deprazer, ou, em algumas obras, há a junçãodas duas concepções, mostrando o livrocomo algo que proporciona, concomitan-temente, saber e distração.

Em apenas duas das obras a leitura éapresentada unicamente como fonte desaber: O cabelo de Lelê e Você viu meu paipor aí? Pode-se notar que, nas duas, a lei-tura está ligada a temática do preconceitoracial, inserido no tema transversal depluralidade cultural. Nota-se que, devidoà representação étnica, contribuem parainvestir na superação da “discriminação edar a conhecer a riqueza representadapela diversidade etnocultural” (BRASIL,

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1997). A prática de leitura é vista pelospersonagens como uma possibilidade decontribuírem para o conhecimento dacultura e etnia à qual eles pertencem. Noentanto, há divergência na abordagemdada à etnia. Enquanto que a afro-des-cendente Lelê (O cabelo de Lelê) sente or-gulho da beleza particular de seu povo,não mencionando o preconceito racial, oindígena José (Você viu meu pai por aí?)sente na pele a necessidade de estudarpara melhorar as condições de sua aldeia.

O cabelo de Lelê, que contribui para“uma visão positivada dos negros e/ou dacultura afro-brasileira” (COSSON;MARTINS, 2008, p. 66), apresenta a per-sonagem Lelê que, com dúvidas sobre oporquê de seu cabelo ser diferente do dasoutras meninas, vê o livro como algo quepossui respostas para todas as dúvidas, oque a faz buscar em um livro “muito sabi-do” (DIAS, 2008, p. 13) as origens do seupovo: “- De onde vêm tantos cachinhos?A pergunta se mantém [...] Toda pergun-ta exige resposta. Em um livro vou procu-rar – pensa Lelê, no canto a cismar (DIAS,2008, p. 8-10)”.

Em contrapartida, o indígena José (Vocêviu meu pai por aí?) sofre o estigma de ummenino branco que, habituado a ver índi-os apenas por livros ou televisão, se es-panta por José usar roupas e saber ler eescrever: “- Não é nada, tu é um índio faju-to: não anda pelado, vê televisão, vai verque até sabe ler e escrever [...]. - Sei mes-mo – respondi, já estudei até a quinta sérielá na Reserva e estou pensando em conti-nuar, quero ser deputado” (KIEFER, 2007,p. 24). Observa-se, nesse ponto, a visãoestereotipada de muitas crianças em rela-ção aos povos indígenas. Devido à falta deorientação familiar e escolar, para muitas,

os índios continuam vivendo da maneiraque propagam a televisão e muitos livrosdidáticos. Como destaca Marisa Lajolo(2001, p. 80), a partir do século XIX, a lite-ratura “assume a função de denunciar in-justiças e reivindicar uma nova ordem so-cial”. Com efeito, constata-se entre os cri-térios de seleção do PNBE/2008 (BRASIL,2007), a preocupação em aproximar, pormeio dos acervos, as crianças dos diferen-tes meio sociais.

O conhecimento proporcionado pe-los livros é associado ao prazer da leituraliterária em quatro das obras do corpus.Em Dadá e Dazinha, observa-se a manei-ra lúdica com a qual o avô-mediador apre-senta o mundo dos livros à Dadá, que vêna leitura uma diversão maior do quebrincar com a irmã. A leitura ainda ofere-ce a ela a oportunidade de conhecer a cul-tura do outros povos:

Foi aí que Dadá bateu os olhos numlivro, na estante do vovô Tranquilo ese estirou na ponta dos pés para con-seguir alcançá-lo. – Você não vai ler!Tem que brincar comigo! – GritouDazinha, se zangando. Ela morria deinveja da irmã mais velha, que já sabialer[...] O livro tinha escrito na capa: “His-tórias de ciganos”. Foi isso que atraiuDadá. Daí quando ela abriu uma pági-na, tinha lá uma ilustração linda e co-lorida de uma bola de cristal(AGUIAR, 2007, p. 48).

A leitura também é apresentada comofonte de saber e distração em O Rei malu-co e a Rainha mais ainda. A protagonistaHeloísa, uma menina muito formal e aten-

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ta às convenções, está em uma viagem porum reino metafórico onde tudo é dife-rente do mundo em que vive. O Rei, umdos personagens que apresenta à Heloísaa importância de se divertir, vê a leituracomo uma preciosa fonte de conhecimen-to e distração, já que o livro que ele lê ésobre direção escolar: “Os caminhões par-tiram, a Rainha com um pé em cada um.O Rei pôs-se a caminho da escola, lendosossegadamente o livro... Ao chegarem naescola já encontraram o Rei, lendo noportão. O Rei deu um adeusinho à For-miga e à Heloísa e voltou a engolfar-se naleitura” (ALMEIDA, 2008, p. 75).

Também no livro Meu tempo e o seu(ZIRALDO, 2005), a leitura é abordadacomo fonte de conhecimento e prazer.Nesta obra, adultos e crianças conversamsobre as mudanças ocorridas entre as épo-cas e em uma das histórias, Meu amigomais antigo, o objeto comparado é o li-vro. Um personagem, ao contar a históriade leitura do pai, menciona a descobertana biblioteca de livros diferentes dos uti-lizados na sala de aula: “[...] ele lembravaque achou estranho encontrar um livroinfantil, na escola, só para menino ler enão para estudar. Ele achava isso o máxi-mo! E não se esquecia que o livro se cha-mava Narizinho Arrebitado. Ele queriamuito reencontrá-lo para dar para seu fi-lho de presente” (ZIRALDO, 2005, p. 39).

Destaca-se, nesta obra, a presença dopai mediador que busca compartilhar umlivro que marcou sua história de vida, pormeio da obra Narizinho Arrebitado, deMonteiro Lobato, autor pioneiro na lite-ratura infantojuvenil:

[...] Já havia bem mais de 20 anos queele tinha lido aquele livro e nunca

mais ouviu falar dele. Até que um diacheguei da escola trazendo um livroque havia pedido emprestado na bibli-oteca do Grupo Escolar. E o livro sechamava Reinações de Narizinho. Euperguntei pro meu pai: “não será essamenina aqui sua Narizinho Arrebita-do, pai!” Ele me perguntou: “Como éo nome do autor do livro?” Eu disse:“um tal de Monteiro Lobato”(ZIRALDO, 2005, p. 39).

Nas outras cinco narrativas os perso-nagens leem por prazer e adquirem o gos-to pela leitura literária influenciados pelaprópria família, com exceção de Patativado Assaré (SANTOS, 2008), que apren-deu a gostar de ler na escola. Já em Con-versa pra boy dormir a leitura favorece odesenvolvimento de uma ligação forteentre pai e filho. O personagem principalda narrativa, o menino Mateus, de oitoanos, mora somente com o pai e vê a mãeapenas uma vez por mês. A leitura é umadas formas que o pai encontra para man-ter um vínculo que amenize a ausência damãe. Dentro do tema transversal dapluralidade cultural, observa-se a quebrado preconceito de que somente a mãe temresponsabilidade na educação dos filhos.O pai de Mateus, além de lhe contar his-tórias todas as noites, antes de dormirem,guarda os livros que marcaram sua histó-ria durante a infância e adolescência paradar a ele. O personagem destaca, dentreos livros que guardou para seu filho, aobra O caneco de prata de João CarlosMarinho (1971), que foi marco nos anossetenta devido à “proposta revolucioná-ria” no campo da ficção policial(ZILBERMAN, 2005, p. 112):

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Tive que me inclinar uns dois palmospara frente, esticar o pescoço, apertaros olhos. Ah, sim: O caneco de prata!Incrível, nem me passou pela cabeça.E olha que eu mesmo coloquei o livrona estante [...] Inesquecível, o Caneco.Dali a uns dois anos, decidi, eu ia su-gerir a leitura pro Mateus. Com certe-za ele ia amar, como eu amei. A nãoser que puxasse a mãe: ela sempreachou o livro esquisito demais, malu-co, besta (CUNHA, 2007, p. 7).

Também se nota na história um temaessencial a ser tratado na escola, que con-tribui para a quebra do estereótipo deque, para gostar de ler, é necessário serintelectual. Mateus, mesmo adorando aleitura, conserva as mesmas brincadeirasque qualquer outro menino de sua idade.

A leitura também é tratada como fon-te de prazer em Felpo Filva. A história ésobre um coelho com traumas de infân-cia, que evita aparecer em público e, prin-cipalmente, relacionar-se com outras pes-soas. Felpo é um poeta famoso e, um dia,recebe uma carta de uma fã chamadaCharlô, que além de criticar seus poemas,modifica o final de alguns, por achá-losmuito tristes. A coelha, mesmo possuin-do, assim como Felpo, características físi-cas que a afastam do que a sociedade im-põe como normal, não é deprimida comoele. A leitura, responsável pelo início daamizade dos dois, mostra aos leitores aimportância do respeito às diferenças eauxilia em um sério problema enfrenta-do por crianças e adolescentes, o bullying:“Felpo era assim solitário desde os tem-pos de criança, quando os coleguinhas daescola zombavam dele porque ele tinhauma orelha mais curta que a outra”

(FURNARI, 2008, p. 8).Nota-se que a única representação

docente de leitura é feita por Dona Sofia,a protagonista de A caligrafia de DonaSofia, a terceira narrativa que traz a leitu-ra como possibilidade de distração. A per-sonagem é uma professora aposentadaque adora poesia. Tanto que decorou to-das as paredes de sua casa com os poe-mas de que mais gosta, para que não fi-cassem escondidos nos livros e ela pudes-se relê-los a qualquer momento. Quandonão havia mais espaço nas paredes, resol-veu fazer cartões poéticos que seu amigo,o carteiro Ananias, passou a distribuirentre os moradores da cidade. A perso-nagem contribui para a transformação dacidade ao distribuir poemas, já que a po-esia vai tomando conta da vida de todos,por meio da mediação de Dona Sofia: “Dona Sofia resgatava dos livros ou damemória os versos que tanto lhe diziam eque iriam, como sementes ao vento, de-sabrochar em outros corações” (NEVES,2006, p. 13).

Alice, protagonista de Alice viaja nashistórias, a quarta obra que se refere àleitura como fonte de prazer, nunca gos-tou de ler, até que, em um dia chuvoso,resolveu, devido à falta de alternativa, fo-lhear um livro que encontrou na estante.Logo mergulhou, metaforicamente, nomundo dos contos de fadas que antes nãoa atraíam, fazendo com que sua antigaopinião sobre os livros mudasse comple-tamente: “Olhou a primeira página sono-lenta, mas na segunda página já estava tãoatenta como um caracol quando levanta-va as antenas. Na terceira página, estavatão interessada que escorregou e caiu den-tro do livro de cabeça e tudo” (RODARI,2007, s/p).

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A última obra a abordar a leitura comofonte de prazer é Patativa do Assaré: opoeta passarinho (SANTOS, 2008). O fu-turo poeta, ao aprender a ler durante opouco tempo que frequentou a escola,descobre que possui elementos ricos paraescrever as histórias e a beleza do sertão,lugar onde o poeta nasceu: “Sentiu-se atra-ído com a música das palavras. Era poesiade cordel. Folhetos coloridos que versamsobre as coisas feitas pelo homem e pelanatureza. Contos maravilhosos, roman-ces, estórias de animais, de heróis, de ci-dades, de santos, de homens bons e dehomens perversos” (SANTOS, 2008, p. 12).

Como se vê, as representações de lei-tura nas obras selecionadas priorizam arelação com o conhecimento e o prazer.Do mesmo modo, evidencia-se que a lei-tura não é relacionada à obrigatoriedadeescolar, mas alia-se a possibilidade de des-cobertas naturais, associando aprendiza-do e deleite. Como também constataCeccantini (2008) em sua tese de douto-rado, muitas das representações de leitu-ra não buscam “convencer a todo custo oleitor da importância da leitura e de tor-nar-se leitor” (CECCANTINI, 2008, p. 82).Fernandes (2007), também demonstra quea literatura infantojuvenil contemporâneabusca afastar a leitura da relação deobrigatoriedade com a escola. Observa-se que a leitura não é mais ligada à “tradi-ção pedagogizante do gênero infanto-ju-venil” (CECCANTINI, 2008, p. 81), o quecontribui significantemente para a forma-ção do gosto literário no público ao qualo corpus se dirige.

As concepções de leitura abordadasnas obras deste corpus convergem com asconcepções apresentadas nos depoimen-tos de alunos de escolas públicas obtidos

na pesquisa federal Programa NacionalBiblioteca da Escola [PNBE]: leitura e bi-blioteca nas escolas públicas brasileiras(BRASIL, 2008): “A leitura abre as portas.Ler pra mim é ser cidadão. É ser gente. [...]A leitura leva a marca, também, de ativida-de prazerosa que permite conhecer outrasrealidades, mundos diferentes” [itálicos doautor] (BRASIL, 2008, p. 83).

Um aspecto importante percebido nasnarrativas é a intertextualidade. Em A ca-ligrafia de Dona Sofia (NEVES, 2006), asilustrações simulam as paredes da casa daprofessora aposentada decoradas compoemas de vários autores. Furnari (2008),em Felpo Filva, intercala diferentes tiposde texto como cartas, bula de remédio,receita médica, poema, adequando a fon-te tipográfica a cada gênero textual. Cu-nha (2007), em Conversa pra boy dormir,faz referência a outras obras por meio dopai do personagem Mateus, que guardapara o filho alguns livros que foram seus.Além disso, Mateus adquire livros novospor escolha própria: “O Gato Malhado e aandorinha Sinhá eu conseguia distinguirsem esforço. O título vinha em letras enor-mes e vermelhas, sob o fundo branco decapa dura. Ao lado dele, A bolsa amarela,também fácil de enxergar. E depois [...] Ogalego da praia. O galego da praia? Que li-vro seria esse, meu Deus?” (CUNHA,2007, p. 7).

Em Meu tempo e o seu, além da refe-rência a outros livros, são mencionadastambém outras artes, como teatro e cine-ma, contribuindo para o que menciona oedital (BRASIL, 2007, p. 14) sobre a neces-sidade da interação dos estudantes nomundo por meio de múltiplas linguagens:“O que eu aprendi disso tudo é que umacoisa puxa a outra: o teatro, os livros e o

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cinema. Acho que também pode aconte-cer o contrário, de uma pessoa querer lerum livro por causa de um filme que viu,né? Foi isso que aconteceu comigo quan-do eu assisti Menino Maluquinho natelona” (ZIRALDO, 2005, p. 41).

Nas obras que compõem o corpus ob-serva-se a presença significativa e variadade mediadores de leitura em quatro nar-rativas. Em Dadá e Dazinha, era o avô queapresentava às crianças o mundo dos li-vros. Em Conversa pra boy dormir, o pai,responsável pela educação do filho équem introduz o menino na leitura. Em Acaligrafia de Dona Sofia, a professora apo-sentada e o carteiro distribuem poemasaos habitantes da cidade. Na obra Meutempo e o seu são mencionados os paiscomo mediadores de leitura.

Sabe-se que para se formar leitores, éfundamental o envolvimento da família.Além de adquirirem os livros e incentiva-rem os pequenos leitores a frequentarembibliotecas, é importante que os pais tam-bém possuam o hábito de ler. Em pesquisafederal sobre a utilização do PNBE, cons-tatou-se que crianças cujas mães ou outraspessoas da família estudam, a leitura é maisvalorizada. Além disso, a mesma pesquisaobservou que: “a falta de hábito de leituradas famílias; a baixa renda familiar queimpede o estabelecimento de manter am-bientes propícios para o estudo; e a faltade acesso a todo tipo de material impres-so” (BRASIL, 2008, p. 81) dificultam seria-mente o rendimento escolar.

Quanto aos sujeitos-leitores, sete sãocrianças. Todas leem por prazer e por es-colha própria, e algumas, como já mencio-nado, com a mediação dos adultos. Em trêsobras são encontrados leitores adultos: ORei (ALMEIDA, 2008), Dona Sofia (NE-

VES, 2006) e o coelho escritor Felpo Filva(FURNARI, 2008). Como a maioria dossujeitos-leitores representados são crian-ças que gostam de ler, o corpus contribuipara mudar a realidade dos estudantes, jáque muitos diretores de escola afirmaramque os alunos não gostavam de ler: “[...]um diretor disse que havia estudantes quegostavam de ler, mas eram poucos, e que amaioria lia mais em função de atividadesde pesquisa, principalmente na área dehumanas, do que por ter o hábito de leitu-ra” (BRASIL, 2008, p. 90).

Nas narrativas, todos os sujeitos-leito-res têm fácil acesso aos livros. Com exce-ção de José (KIEFER, 2007), que tem difi-culdades para estudar na aldeia onde vivee Patativa do Assaré (SANTOS, 2008), quepôde estudar apenas as séries iniciais, o quenão o impediu de se tornar um poeta re-conhecido nacionalmente. Nota-se que arepresentação de condição financeira pro-pícia à aquisição de obras de literatura di-verge dos resultados da pesquisa (BRA-SIL, 2008) sobre a utilização das obras doPNBE nas escolas. Para os estudantes quemencionaram gostar de ler, esbarram noproblema do acesso aos livros. Mesmo quehaja os livros na biblioteca da escola, nota-se a ausência de um profissional qualifica-do: “Eu adoro ler, gosto mesmo. [...] Li todosos livros que ganhei na escola, mas aqui real-mente, que já foi uma boa escola, é difícil esteacesso a todos nós. [...] Também não tem nin-guém para nos ajudar a procurar os livrosque precisamos” [itálicos do autor] (BRA-SIL, 2008, p. 91).

Na análise dos modos e lugares derealização das leituras, em seis narrativasa leitura acontece na casa dos persona-gens, em lugares agradáveis, como o quar-to ou a sala: “Gostei tanto da história que

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minha mãe comprou o livro [...] não dor-mia enquanto alguém não lesse a históriapara mim. Depois que fui alfabetizada,minha mãe sentava-se na cama comigo eeu lia a mesma história, encantada e semnunca enjoar” (ZIRALDO, 2005, p. 41).

Apenas quatro obras relacionam a lei-tura ao ambiente escolar, mas apenas Meutempo e o seu faz referência àobrigatoriedade ou ao didatismo, quan-do o personagem descobre o tipo de lei-tura “só para menino ler e não para estu-dar” (ZIRALDO, 2005, p. 39). As outrasduas obras que se referem à leitura naescola são O Rei maluco e a Rainha maisainda e A caligrafia de Dona Sofia. Nasduas também há a representação de lei-tura na rua, ao ar livre:

Pensando nisso, num dia de serviço,seu Ananias escutou seu Gilberto reci-tando alguns versos na praça da cida-de; no quintal de sua casa, seu Manuelcochilava com um livro de poemas nocolo. Viu também as irmãs Lia e Cléamostrando os belos cartões recebidosde Dona Sofia. Naquele momento, ospensamentos de Seu Ananias se ilumi-naram, tudo clareou em sua mente. Narua, na praça, em casa, todos liam poe-sia (NEVES, 2006, p. 28).

Os lugares e modos de ler citados pe-los estudantes leitores entrevistados napesquisa federal Programa Nacional Bibli-oteca da Escola [PNBE]: leitura e bibliotecanas escolas públicas brasileiras (BRASIL,2008) convergem com as representadas nasobras do corpus. Os estudantes menciona-ram, ainda, que os lugares que escolhemprecisam ser silenciosos. Isso possivelmenteassocia-se ao fato de que eles buscam ler

em ambientes que se afastem do contextoescolar: “Os estudantes contaram como gos-tavam de fazer quando se dispunham a ler:uns liam no quarto, na sala, outros na varan-da, no terraço, e até mesmo no banheiro, massempre em espaços silenciosos” [itálicos doautor] (BRASIL, 2008, p. 109).

É fato que a leitura literária envolvesempre a troca de sentido. Dessa manei-ra, mesmo a leitura solitária engloba nãoapenas a troca entre escritor e leitor, mastambém entre as sociedades nas quaiscada um se insere, “pois os sentidos sãoresultados de compartilhamentos de vi-sões do mundo entre os homens no tem-po e no espaço” (COSSON, 2006, p. 27). Oato de ler possibilita, então, a abertura deuma porta entre o mundo de quem es-creve e o mundo de quem lê. Os leitoresprecisam ser estimulados a compreende-rem que ler é abrir as portas de seu mun-do ao mundo do outro, mesmo quandoestá lendo individualmente. Como desta-ca Tânia Carvalhal (1998), o leitor tam-bém é o autor, pois a interpretação feitapor ele é algo particular e decorrente desua construção de mundo, tanto que oreceptor passou a ser considerado como“determinante no processo interliterário”(CARVALHAL, 1998, p. 72).

Na obra Patativa do Assaré: o poetapassarinho é mencionada a leitura esco-lar, mas não associada à obrigatoriedade.Por meio dela, Patativa descobre a belezadas palavras, o que o motiva a fazer poe-sias com elementos do próprio sertão. Aobra valoriza a poesia de cordel, citandotrechos com as poesias do próprioPatativa do Assaré.

Apresentar a leitura literária desvincu-lada do contexto educacional é necessá-rio porque, como apontam Marisa Lajolo

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e Regina Zilberman (1998), “[...] raras ve-zes as leituras que produzem prazer cir-culam em ambiente sancionado, como aescola” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p.219). Como ainda mostram as autoras, as“leituras clandestinas” – desvinculadas daescola –, “atendem às exigências da fanta-sia, pela qual, em acumulação infinita, ar-ticulam-se a outras de ficção ou as conhe-cidas por meio da transmissão oral, comoas ouvidas de contadoras” (LAJOLO;ZILBERMAN, 1998, p. 227).

Como exemplo atual de “leitura clan-destina”, apresentada por Lajolo eZilberman (1998), pode-se mencionar astrilogias Harry Poter, da escocesa J.K.Rolling e Crepúsculo, da americanaStephenie Meyer, que independente dainfluência escolar, constituíram-se em ver-dadeiras febres entre crianças e adultos.Como destaca Sissa Jacoby (2003, p. 196),“nunca tantas crianças leram e releramcom tanto entusiasmo tantas páginas emtão pouco tempo”.

Em duas obras do corpus referem-sea gêneros de leitura estigmatizados. Aprimeira, Alice viaja nas histórias, traz apresença dos contos de fadas. Em Patativado Assaré: o poeta passarinho encontra-sea poesia de cordel.

Infelizmente, alguns estudiosos insis-tem em inferiorizar alguns gêneros literá-rios. Esses profissionais, como mencionaLajolo (2001, p. 8) “dão, aulas, escrevemlivros imensos, dão entrevista aos jornais”.Para Márcia Abreu (1999, s/p), “O prestí-gio social destes profissionais faz com quesua opinião seja tida como a única verda-deira, fazendo com que as pessoas sin-tam-se diminuídas por não lerem os li-vros certos, da maneira certa”. Isso semdúvida acaba afastando os alunos da lei-

tura, que acabam tomando como mode-lo de boa literatura apenas os livros clás-sicos apontados pelos professores, quemuitas vezes não despertam interesse emum leitor iniciante.

Observa-se nas obras um númeroconvergente entre leitores femininos emasculinos, o que contribui para a for-mação do gosto literário também nosmeninos, que muitas vezes possuem pre-conceito em relação à leitura. Como apon-ta Ceccantini (2008), na nossa sociedade,geralmente o número de leitoras superao de leitores. Este fato também foi cons-tatado em pesquisa (BRASIL, 2008). Se-gundo bibliotecários de escolas públicas,as meninas fazem empréstimos de livroscom mais frequência que os meninos. Nasobras do corpus, há cinco personagens-leitores femininos e cinco masculinos.Também se percebe que cinco das obrastrazem a presença de mediadores mascu-linos: “Havia, porém, duas coisas quemeus colegas de escola não sabiam. A pri-meira é que eu adorava livros [...] A outracoisa é que meu pai também tinha tidolivros que marcaram muito sua vida demenino” (ZIRALDO, 2005, p. 39).

Apesar da representação plural de lei-turas nas obras do corpus, observa-se quea maioria denota leitores favorecidos so-cialmente. A pesquisa de campo sobre oPNBE apresenta a opinião de um gestorescolar do Pará mencionando que os acer-vos deveriam privilegiar as literaturas re-gionais: “O que é que predomina? São osescritores que nós temos no Brasil. Que nóssabemos onde eles estão mais concentrados:sul e sudeste, não é? Aqui em Belém nóstambém temos escritores, e acho que pode-riam ser incluídos nesse projeto” [itálicosdo autor ] (BRASIL, 2008, p. 117). Com

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efeito, constatou-se, neste artigo, que asimagens de leitura poucas vezes foramfocalizadas com aspectos de variados con-textos culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aproximar o leitor da leitura literáriaé fundamental pelo fato de que a literatu-ra condicionada pela escola deve explorara fruição que textos de outros gênerosgeralmente não proporcionam. Comosugere Cosson (2006, p. 27), compreen-der o discurso de um texto literário é maiscomplexo que o simples ato de decodificaralgo escrito. Desse modo, as representa-ções de leitura encontradas no corpus fa-vorecem a pluralidade de representações,o que contribui para o desenvolvimentodo gosto literário.

Por meio da análise, que se dividiu emcategorias específicas em relação às diver-sas possibilidades de referência à leitura,constatou-se que as imagens de leituraforam alvo de elaborações complexas eprovocadoras, afastando-se completa-mente da tradição pedagogizante. Comoa maioria das leituras era realizada emcasa, sob a mediação familiar, é um passoimportante para transformar a visão deque a leitura literária é algo relacionadosomente com o intuito do professor ava-liar os alunos. As obras do corpus privile-giaram a variedade de tipos de leitura, ti-pos de sujeitos-leitores, mediadores, lo-cais de leitura e modos de ler, favorecen-do a descoberta da leitura como algoenriquecedor e prazeroso, contribuindocom o que sugerem os PCN’s (BRASIL,1998) para a ideia de que a leitura ofertadaaos alunos deve contribuir com a quali-dade de suas vidas.

Em contrapartida, foi notado que, di-ferentemente do que sugere o edital deconvocação para inscrição de obras de li-teratura no processo de avaliação e sele-ção para o PNBE 2008 para o fato de queas obras selecionadas favoreceriam a re-presentação de diferentes realidades(BRASIL, 2007, p. 15), foram encontradasreferências à leitura feita apenas por pes-soas que possuíam fácil acesso aos livros,o que diverge da realidade da maioria dosestudantes de escolas públicas. As únicasobras do corpus que apresentaram repre-sentações opostas foram Patativa doAssaré: o poeta passarinho que aborda ahistória de um poeta de origem pobrenascido no ano de 1909 e Você viu meu paipor aí? que narra o preconceito sofridopor um menino indígena.

Um ponto extremamente valioso ob-servado nas narrativas foi a presença deimportantes temas transversais ligados àleitura, como a pluralidade cultural. Ostemas, trabalhados às vezes de forma di-reta e às vezes simbolicamente, são es-senciais para a construção psicológica nosleitores para a necessidade de novas emelhores relações sociais.

De modo geral, as narrativas selecio-nadas apresentaram referências à leituraessenciais para a construção do gosto lite-rário, principalmente devido à variedadede temáticas relacionadas à leitura. Noentanto, as narrativas não privilegiaram arepresentação de sujeitos leitores demodo a aproximarem as crianças das di-ferentes realidades, dificultando que osalunos de escolas públicas, aos quais sedestinam os acervos do PNBE, encon-trem-se ou percebam a presença, nas nar-rativas, a valorização dos diferentes mei-os sócio-culturais.

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ROLAND BARTHES: EMBUSCA DA TEXTUALIDADE

PERDIDA1

RESUMOO artigo pretende discutir, com base no projeto teórico-crítico de Roland Barthes,

os conceitos de textualidade, intertextualidade e transtextualidade. Procuraremos de-monstrar que em Barthes os conceitos de Texto, Espaço e Imagem estão intimamenterelacionados de forma a abrangem não apenas a Literatura, mas, também, as demaisartes.

Palavras-chave: Roland Barthes – Intertextualidade – Transtextualidade.

ABSTRACTThe article intends to discuss, based on the theoretical and critical Project of Roland

Barthes, the concepts of Textuality, Intertextuality and Transtextuality. We will try todemonstrate that in Barthes the concepts of Text, Space and Image are intimatelyrelated, that covers not only the Literature, but also the Other Arts.

Keywords: Roland Barthes – Intertextuality – Transtextuality.

Neurivaldo Campos Pedroso Junior2

1 Este texto fora produzido, inicialmente, para a disciplina Tendências teórico-críticas nasLiteraturas Estrangeiras Modernas: Roland Barthes – intertextualidade e transtextualidade, noDoutorado em Literatura Comparada da UFRGS, sob a orientação da Profa. Dra. Maria LuizaBerwanger da Silva. O texto sai agora com algumas modificações.2 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) emCo-tutela com a Universidade de Barcelona (UB). Assessor Pedagógico da Secretaria Municipalde Educação de Dourados/MS.

Para Maria Luiza Berwanger da Silva,com gratidão

O texto, em sua totalidade, é compa-rável a um céu, plano e profundo aomesmo tempo, liso, sem bordos e semreferências; tal como o áugure, recor-tando com a ponta do bastão um ân-

gulo fictício no céu para aí interrogar,segundo certos princípios, a vôo dospássaros, o comentador traça ao lon-go do texto zonas de leitura para nelasobervar a migração dos sentidos, oafloramento dos códigos, a passagemdas citações.

Roland Barthes

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A Crítica Literária Latino-Americana, e por conseguinte a Brasileira, acos-

tumou-se, desde seus primórdios, a im-portar da Europa modelos teóricos emetodológicos. Assim, acostumamo-nosao contrabando – por vezes salutar de teo-rias como as da multiplicidade, da des-construção, da reversão de valores, da des-contuinidade e do pensamento rizomáticoenunciadas por Michel Foucault, JacquesDerrida, Gilles Deleuze e Féliz Guattari, sópara citar alguns nomes. Nessa rede deimportações, acaba-se, muitas vezes, portomar um desses teóricos ou críticos e lê-los, relê-los e translê-los sob um único as-pecto de suas reflexões e críticas. Tal práti-ca, sob nosso ponto de vista, é redutora econtra-produtiva, uma vez que desconsi-dera ou faz vistas grossas a outras verten-tes do pensamento teórico-crítico dos au-tores “importados”. Assim, Jacques Derridatem, sempre, seu nome associado àDesconstrução, enquanto que GillesDeleuze e Félix Guattari são vistos, quaseque exclusivamente, pelo viés da teoriarizomática. Não pretendemos aqui des-considerar ou invalidar tais conjugações,desde que elas compactuem com as ou-tras possibilidades de leituras provenien-tes da reflexão dos autores “importados”.

Ao retomamos essa observação acer-ca da Crítica Latino-americana e Brasilei-ra é porque Roland Barthes, um autor quenos é muito caro, tem, também, sofridocom essa atitude de tentar “engeçá-lo” emúnico modelo, reduzindo seu projeto te-órico-crítico a um ou outro aspecto. As-sim, Barthes tem recebido os mais dife-rentes rótulos, dentre os quais podemoscitar o de mitólogo, “novo crítico”,semiólogo e escritor. Tais rótulos, na mai-oria das vezes, pretendem dar conta de

um ângulo da reflexão barthesiana. Nes-se sentido, é significativa a advertência quenos faz Leyla Perrone-Moisés, grandedivulgadora da obra barthesiana no Bra-sil, pois para a crítica e professora:

A teoria barthesiana é, portanto, umateoria mutante, que evolui e se trans-forma ao longo dos anos. Por isso éimpróprio chamar Barthes de críticomarxista sociológico ou de semiólogo,porque essas denominações correspon-deriam apenas a determinadas fases desua carreira (PERRONE-MOISÉS,2004, p. 88)

Harmonizamo-nos com o pensamen-to de Leyla Perrone-Moisés no que dizrespeito à tentativa de se enquadrarRoland Barthes dentro de uma ou outracorrente teórico-crítica, porque, uma aná-lise mais atenta da obra barthesiana nospermitirá afirmar que Barthes pode simreceber “rótulos”, desde que estes não se-jam excludentes. Assim, o que propomosneste artigo é, na verdade, uma análisemais detalhada de um ponto suscitadopela leitura da reflexão barthesiana - aquestão do texto - mas, nós reconhece-mos que essa mesma questão abre-se aoutras tão díspares e diversas, que tentarabordá-las nos limites de um artigo seriaum projeto utópico, senão, impossível.

Em Barthes ou para Barthes, a refle-xão acerca da noção de Texto é significati-va, na medida em que, a partir dela, pode-se partir para outras reflexões das quais aTeoria e a Crítica Literárias - mas só elas -têm se ocupado, como, por exemplo, aquestão do espaço, da imagem, as posi-ções canônicas ocupadas por Autor e Lei-tor e, last but not least, a própria questão

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da prática produtora desses Textos. Logo,poderíamos afirmar que a noção de Tex-to com a qual Barthes opera, dotada deuma flexibilidade e mobilidade, é susten-tada, sobretudo, pela noção de Espaço ede Imagem, pensamos, inclusive, que emBarthes, esses três conceitos são indisso-ciáveis: Texto - Espaço - Imagem.

Dentro dessa pauta, podemos iniciarnossa reflexão, valendo-nos do conceitode Texto que Barthes propõe no verbeteTexte, escrito sob encomenda para aEncyclopaedia Universalis, onde lemos,

Le texte est une productivité. Cela neveut pas dire qu’il est le produit d’untravail (tel que pouvaient l’exiger latechnique de la narration et la maîtrisedu style), mais le théâtre même d’uneproduction où se rejoignent leproducteur du texte et son lecteur: letexte “travaile”, à chaque moment etde quelque côte qu’on le prenne; mêmeecrit (fixé), il n’arrête pas de travailler,d’entretenir un processus de produc-tion (BARTHES, 1996, p.998).

O Texto abandona seu caráter de “pro-duto” que traz implícita a ideia de algopronto e acabado e torna-se uma “pro-dutividade”, cujo caráter de incessante epermante trabalho é assinalado porBarthes. Mas, devemos ressaltar que, nes-sa operação, o “produtor” do texto e oleitor trabalham o Texto da mesma for-ma que o Texto os trabalha. Ou, pode-mos afirmar, mais ainda, que é no inces-sante processo de trabalho mútuo que seproduz o Texto. Em O prazer do texto,Barthes desenvolve mais amplamente aideia de incessante e contínuo trabalho deprodução textual no qual estão imersos o

autor, o leitor e o próprio texto, ao regis-trar que

Texto quer dizer Tecido; mas enquan-to até aqui esse tecido foi sempre to-mado por um produto, por um véutodo acabado, por trás do qual se man-tém, mais ou menos oculto, o sentido(a verdade), nós acentuamos agora, notecido, a idéia gerativa de que o textose faz, se trabalha através de umentrelaçamemto perpétuo; perdidoneste tecido - nessa textura - o sujeitose desfaz nele, qual uma aranha que sedissolvesse ela mesma nas secreçõesconstrutivas de sua teia (BARTHES,1999, p.82-83).

A imagem utlizada por Barthes paraabordar o conceito de Texto, ou seja, a deTexto enquanto Tecido, já havia sido utili-zada por Jacques Derrida, quando, em Afarmácia de Platão, observará:

Um Texto só é um texto se ele ocultaao primeiro olhar, ao primeiro encon-tro, a lei de sua composição e a regrade seu jogo. Um texto permanece, ali-ás, sempre imperceptível. (...) A dissi-mulação da textura pode, em todo caso,levar séculos para desfazer seu pano.O pano envolvendo o pano. Séculospara desfazer o pano. Reconstituindo-o, também, como organismo. Rege-nerando indefinidamente seu própriotecido por detrás do rastro cortante, adecisão de cada leitura(DERRIDA,2005, p.7).

Assim, o que vemos, tanto em Barthesquanto em Derrida, é que a existência doTexto está condicionada a um trabalho e a

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uma produção, e estes implicam, então, aexistência de um sujeito que sustentarátais práticas. Mas, se até então as luzestinham se centrado apenas no Autor en-quanto o sujeito produtor do Texto, ve-mos, agora, que o leitor é também trazi-do para o palco da produção e divide como autor a tarefa de tecer, destercer e re-tecer o tecido-pano do qual o Texto é for-mado, asssim, “na cena do texto não háribalta: não existe por trás do texto nin-guém ativo (o escritor) e diante dele nin-guém passivo (o leitor); não um sujeito eum objeto” (BARTHES, 1999, p.24). Nes-se sentido, reconhecemos, com PauloNolasco dos Santos, que

Tem razão o teórico da ficção ao dizerque o leitor de ficção é também umartista; que o seu esforço prolongadoda recriação da forma de ficção com-pete com o do romancista. Daí a per-manência de uma situação paradoxalque se mantém como tensão naturaldo leitor - o leitor crítico - que tam-bém é romancista (SANTOS, 2006,p.189)

Retomamos, aqui, a reflexão com aqual iniciamos nosso artigo, ou seja, a ati-tude de se ler determinados autores ten-do em vista apenas um ou outro aspectode suas obras. É o que tem acontecido,muito comumente, com Barthes e a ati-tude deste crítico de trazer para o planoda reflexão um sujeito que até então eraesquecido pela teoria e crítica literárias -o leitor - e decretar, por conseguinte, a“morte do autor”, entendido como o“dono” ou o “proprietário” do Texto. As-sim, Barthes é visto, muitas vezes, apenascomo aquele que decretou a morte do

autor e, com isso, a famosa afirmação “onascimento do leitor deve pagar-se coma morte do Autor” (BARTHES, 2004, p.64)é tomada fora do contexto da reflexãobarthesiana e alardeada aos quatro can-tos, sem se levar em consideração o de-senvolvimento dessa questão, sobretudose considerarmos que, em Sade, Fourier,Loyola, Barthes afirmará:

O prazer do Texto comporta tambémuma volta amigável do autor. O autorque volta não é por certo aquele quefoi identificado por nossas instituições(história e ensino de literatura, da fi-losofia, do discurso da Igreja); nemmesmo o herói de uma biografia ele é.O autor que vem de seu texto e vaipara dentro de nossa vida não temunidade; é um simples plural de ‘en-cantos’, o lugar de alguns pormenorestênues, fonte, entretanto, de vivoslampejos romanescos, um cantodescontínuo de amabilidades, em quelemos apesar de tudo a morte com maiscerteza do que na epopéia de um des-tino; não é uma pessoa (civil, moral),é um corpo (BARTHES, 2005, p. VXI).

É por isso, que podemos afirmar queem Barthes não há uma teoria tal e qual.Mas, o que há, na verdade, são teorias.Assim, no plural. Em Barthes, há

Teorias das singulariadades, dos valo-res e de suas transmutações. As teoriasvão se formando da observação aten-ta, suavemente interessada, amorosa.E, portanto, livre da banal empiria.Nascem as teorias quase de um nada;são percepções sutis que se enformamsubitamente, que assumem sua força,

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sem que intervenha nenhum concei-to duro e prévio; apenas lampejos: acei-tação da Mathesis de que se faz todosaber. E esse estado, essa sabedoria, vemde um trabalho (SANTOS, 1999, p.95).

Diante disso, acreditamos ser maisprodutivo se, ao nos atermos à discussãoacerca das questões sobre autor, leitor etexto, nos concentrarmos em um pontoque tem sido deixado à margem mas quese apresenta como fudamental: o proces-so de produção textual, ou, ainda, naspalavras de Edgar Nolasco,

O próprio conceito de texto muda sen-sivelmente porque, cada vez mais, fa-lar de texto é buscar o processo, o con-texto e a situação enunciativa em queele se constrói enquanto tal, o que nospermite observar que o lugar, ou posi-ção, do autor (a até mesmo do leitor)está sendo repensado (NOLASCO,2001, p.29)

Mas aqui, devemos fazer uma ressalvae registrar que em Barthes a noção de tex-to não está circunscrita apenas à palavraescrita, ou seja, o teórico francês amplia detal forma o noção de Texto que ela passa aacolher as diferentes manifestações artís-ticas (fazemos, sobretudo, alusão aos es-critos recolhidos em O óbvio e o obtuso,que passam pela Literatura, pela Música,pelo Teatro e pela Escultura) e, para alémdisso, o Mundo torna-se um Texto, cujoprocesso de escrituração conta com a nos-sa participação, seja como “autores” sejacomo “leitores”. Recorremos, então, à pas-sagem abaixo, pois acreditamos que elapode ser tomada como um exemplo do

pensamento barthesiano acerca daabragência do conceito de Texto.

E mais: se literatura e pintura deixa-rem de ser consideradas em uma refle-xão hierárquica, uma sendo oretrovisor da outra, de que servirámantê-las por mais tempo como ob-jetos simultaneamente solidários e se-parados, em uma palavra: classifica-dos? Por que não anular sua diferença(puramente substancial?) Por que nãorenunciar à pluralidade das “artes”,para melhor afirmar a pluralidade dos“textos”? (BARTHES, 1992, p.87).

As palavras de Roland Barthes citadasacima permitem-nos, então, obsevar queo trabalho do escritor e do pintor ao lon-go do processo de “escrita” de suas obraspodem ser tomados como análogos. As-sim, Barthes, em “Durante muito tempo,fui domir cedo”, volta-se a Marcel Proustpara exemplificar que o escritor moder-no (e aqui estendemos a reflexão a todoartista moderno, seja ele escritor, pintor,escultor ou músico) é tomado de umahesitação com relação à escrita e, com isso,com relação à forma ou ao gênero pormeio dos quais sua escrita deve “materia-lizar-se”, criando, dessa forma, uma inde-cisão dos gêneros e das formas. Tal atitu-de, longe de se apresentar como negativaé, ao contrário, de uma produtividadeexemplar, na medida em que irá propor-cionar aquilo a que chamaríamos dehibridação textual, ou seja, os Textos po-derão se mover entre os diferentes gêne-ros, discursos ou artes, criando, assim, umaterceira forma ou uma terceira margem,originada, não apenas das convergênciasde formas tão diversas mas, sobretudo e

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principalmente, a partir das divergênciasentre elas, pois,

(...) abalada a crono-logia, fragmen-tos intelectuais ou narrativos, vão for-mar uma sequência que se submete àlei ancestral da Narrativa ou do Racio-cínio, e essa sequência produzirá, semforçar, a terceira forma. (...) A estru-tura dessa obra será, falando exatamen-te, rapsódica, isto é (etmologicamen-te), costurada; é aliás uma metáforaproustiana: a obra se faz como umvestido; o texto implca uma arte ori-ginal, como é a da costureira: peças,pedaços são submetidos a cruzamen-tos, a arranjos, a ajustes: um vestidonão é um patchwork, como tampoucoo é a Busca (BARTHES, 2004, p.353).

Vemos, assim, que a prática de escritaé sustentada por um sujeito que, destitu-ído de seu lugar de poder e, diante damultiplicidade de gêneros (e aqui incluí-mos os diferentes discursos e as diversasformas de manifestação artística), tal qualum Don Juan, é seduzido por todos aomesmo tempo. E agora caímos no terre-

no da hesitação, da errância e, também,da dúvida. A dúvida de Proust, a dúvidade Barthes, a dúvida de Cézanne, enfim,de todo artista moderno. Nesse sentido,o ensaio “A dúvida de Cézanne”, deMaurice Merleau-Ponty é de grande re-levância, já que acena para a questão dadúvida do artista como aquilo que impul-siona à produção e à produtividade. Alémdisso, Merleau-Ponty promove, com basena obra de Cézanne, discussões pertinen-tes acerca da Arte, em geral. Dentre essesposicionametos, harmonizamo-nos coma reflexão merleaupontiniana, quando oautor, ao discorrer sobre o estatuto daarte, registrará que,

A arte não é nem uma imitação, nem,por outro lado, uma fabricação segun-do os desejos do instinto ou do bomgosto. É uma operação de expressão.(...)Assim como a palavra não se asse-melha ao que ela designa, a pinturanão é um trompe-l’oeil, uma ilusão derealidade; Cézanne, segundo suas pró-prias palavras, “escreve como pintor oque ainda não está pintado e faz dissopintura absolutamente”. (...) O pintor

Roland Barthes(1915-1980)

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retoma e converte justamente em ob-jeto visível o que sem ele permaneceencerrado na vida separada de cadaconsciência: a vibração das aparênciasque é o berço das coisas. Para um pin-tor como esse, uma única emoção épossível: o sentimento de estranheza,e um único lirismo: o da existênciasempre recomeçada (MERLEAU-PONTY, 2004, p.133).

Merleau-Ponty proporciona, comovimos acima, a analogia entre o ato deescrever e o ato de pintar. Ou melhor, combase nas observações de Cézanne,Merleau-Ponty afina-se, em muito, à no-ção barthesiana de Texto, não maiscirscunscrito à palavra escrita e à Litera-tura, mas que englobe também as outrasformas de expressão humana. Diante datentativa de expressar o que capta nomundo,

Um pintor como Cézanne, um artis-ta, um filósofo devem não apenas cri-ar e exprimir uma idéia, mas aindadespertar experiências que a enraiza-rão nas outras consciências. Se a obraé bem sucedida, ela tem o estranhopoder de ensinar-se ela mesma. Se-guindo as indicações do quadro ou dolivro, fazendo comparações, esbarran-do de um lado e de outro, guiadospela clareza confusa de um estilo, oleitor ou o espectador acabam porredescobrir o que lhes quiseram comu-nicar (MERLEAU-PONTY, 2004,p.135)

Assim, a expressão da ideia ou de umaemoção pode estar estendida tanto nasuperfície da tela quanto a superfície da

página. Nesse sentido, podemos pensar,com Barthes, uma vez mais, para quem

Toda descrição literária é uma visão.Dir-se-ia que o enunciador, antes deescrever, põe-se à janela, não tantopara ver bem, mas para construir oque vê através da própria moldura: omarco da janela faz o espetáculo. (...)para falar do “real”, é necessário que oescritor, por um rito inicial, transfor-me inicialmente esse real em objetopintado (emoldurado); após o que,pode despendurar esse objeto, tirá-lode sua pintura: em uma palavra: des-pintá-lo (despintar é fazer cair o tape-te dos códigos, é ir, não de uma lin-guagem a um referente, mas de umcódigo a outro código) (BARTHES,1992, p.85)

A afirmação acima só vem a corrobo-rar a ideia que vimos desenvolvendo, asaber, a semelhança entre a prática de “es-crita” de um livro e a prática de “escrita”de um quadro, uma vez que, o pintor podepensar como o escritor, da mesma formaque o escritor pode pensar como o pin-tor. E esse fato colhemos tanto das obser-vações de Maurice Merleau-Ponty quan-to de Roland Barthes. Todavia, a reflexãoacerca dessa noção de Texto - ampla - eque serve tanto à Literatura quanto à Pin-tura traz para o palco uma outra questãoque, sob nosso ponto de vista, sustenta oconceito barthesiano de Texto, a questãoda Imagem. Em A Câmara clara, por exem-plo, Barthes alude à definição para ima-gem, proposta por Maurice Blanchot

(...) a essência da imagem é estar todafora, sem intimidade, e no entanto

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mais inacessível e misteriosa do que opensamento de foro íntimo; sem sig-nificação, mas invocando a profundi-dade de todo sentido possível;irrevelada e todavia manifesta, tendoesse presença-ausência que faz a atra-ção e o fascínio das Sereias (BLAN-CHOT apud BARTHES, 1984).

Assim, a presença que oculta e a au-sência que revela, configuração da ima-gem colhida por Barthes de Blanchot re-mete-nos a um outro texto, de Blanchot,novamente, quando, ao discorrer sobre oato de escrever (e pensamos aqui na es-crita de Textos de natureza as mais diver-sas ou de diversos códigos, para usadaacima), o teórico francês observará queescrever

(…) não é mostrar ou fazer aparecer,mas é, pelo contrário, testemunharpela inelutabilidade de umadesaparição das coisas e de si no que seescreve e, portanto, valer-se de todasas maneiras possíveis para se despren-der, sob a forma de um inexplicáveldistanciamento (BLANCHOT apudCASA NOVA, 2002, p.71)

Escrever concecta-se indissoluvel-mente à vida: sua escrita. Diante disso, osescritores, os pintores, os músicos, enfim,aqueles que ousam a escrever o Texto (naconcepção barthesiana),

(...) podem tornar sua escrita umainfinda passagem pelos mesmos pon-tos, fazendo-os grafias da dor, feridasda letra ou, ao contrário, percorreruma travessia ou ser pela letra atraves-sados, construindo uma via entre dois

pontos. Tudo parece depender, afinal,da força da letra que, inscrita no sujei-to, é capaz de fazê-lo, um dia, escrevero mundo, potencializando-se em dis-tintas forças: estilo, escrita, represen-tação (CASTELLO BRANCO &BRANDÃO, 2000, p.7)

A página apresenta-se, dessa forma,como o espaço no qual os escritores po-derão mover-se, com o propósito de li-gar esses pontos, dos quais nos falamLucia Castello Branco e Ruth SilvianoBrandão. É por isso que observamos, an-teriormente, que a noção de Texto, a par-tir de Barthes, é sustentada, também, pelanoção de espaço, pois, “un paysageredéfinit son espace de façon d’autant plustotale qu’il bouge d’un angle plus faible”(GUIRAUD, 1980, p. 170), mas, aqui de-vemos entender que o espaço “est alors,non plus le milieu à trois dimensions danslequel l’homme vit et se déplace, maisl’événement par lequel une oeuvreaccomplie outrepasse ses dimensionsphysiques, accède au rang de l’ouevre d’art”(GUIRAUD, 1996, p.170).

A página torna-se paisagem, que osescritores vão configurando, des-configu-rando e re-configurando. Ora, essa práti-ca diante da página não nos remete, umavez mais, a Barthes e sua imagem do Tex-to enquanto Tecido, que nós devemos te-cer e destecer? Com isso, podemos en-tender a composição da paisagem da telaou da página,

(...) enquanto produto do deslocamen-to incessante ao horizonte infinito (datextualidade), paralelamente, a paisa-gem da transgressão identifica nas“parages” a expressão mais legitima

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do processo de criação literária, mo-dulado pelo ritmo duplo de tecer edestecer. Em essência, trata-se de per-ceber, na intimidade do artesanatopoético, o fio condutor do espaço cujotraço da oscilação, do espaço que hesi-ta entre o fazer e o desfazer, sulca apaisagem intervalar mas infinita, pai-sagem que concretiza o sonhobaudelairriano de “vaste” (SILVA,1998, p. 27)

Com base na reflexão de Maria LuizaB. da Silva, podemos pensar a página en-quanto paisagem, mas podemos também,pensar na página, com a qual os escritorestrabalharão, como um papel em branco,

(…) ali, livre, disposto a que se inscre-vam coisas diversas e contraditórias aomesmo tempo: rabiscos da vida coti-diana, exposição de camadasfantasmáticas, o medo, o susto, o tre-mor: os grandes e os baixos desejos, osinterditos, as formas de distintas espé-cies; ora o olhar indiferente, ora a pe-

regrinação; o cansaço, a melancolia, obem-estar súbito, e as tantas direçõesdo espírito durante o dia - a escrita, afala, a aula, a paixão, os velhos hábi-tos. A multiplicidade do viver (SAN-TOS, 1999, p.97)

Assim, esse gesto de inscrever ou es-crever o Texto na página em branco ounesse papel em branco é empreendidopor escritores de todas as naturezas e quelidam com os mais variados códigos, masisso só é possível por que temos, agora,um conceito mais amplo de Texto, nãomais circunscrito apenas à palavra escritamas que coaduna, também, as diferentesformas de expressão humana. Essa no-ção, ampla e sustentada pela produtivi-dade, pelo espaço e pela imagem, nós de-vemos a Roland Barthes.

Dívida que é necessário reconhecer.Dívida que procuramos saldar com

uma leitura revitalizadora, provocadorade novos questinamentos, revigorando,dessa forma, a reflexão barthesiana como olhar atento do presente.

REFERÊNCIAS

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DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras,2005.

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MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In. O olho e o espírito. Trad. PauloNeves & Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo:Annablume, 2001.

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SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. O outdoor invisível: crítica reunida. Campo Gran-de: Ed. UFMS, 2006.

SANTOS, Roberto Corrêa. Modos de saber, modos de adoecer: o corpo, a arte, o estilo, ahistória, a vida, o exterior. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

SILVA, Maria Luiza Berwanger. “Limiares críticos e paisagem da transgressão”. In: ATeoria na Prática Ajuda - Limiares Críticos Gt de Literatura Comparada, Rio de Janeiro,v. 4, 1998.

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OS PAPÉIS NARRATIVOS EMCENA: UMA BREVE LEITURA

DE INKHEART

RESUMOO presente estudo versa sobre questões acerca do filme Inkheart e possíveis corre-

lações entre semiótica e teoria literária, tangenciando noções acerca do real e do ficcionale da tessitura da narrativa. Busca-se, ao longo do texto, evidenciar as diversas relaçõesperceptíveis na narrativa e alguns pontos de contato entre estes e a teoria da linguageme da análise literária, apontando sempre para o papel essencial do leitor, associando aele a interferência da linguagem a leitura de mundo como fatores que auxiliam na(re)configuração da realidade.

Palavras-chave: Inkheart, narrativas, semiótica,teoria, leitor

ABSTRACTThe present study deals with questions about the Inkheart movie and possible

correlations between semiotics and literary theory, touching on notions of the real andthe fictional and the texture of the narrative. One aim, throughout the text, highlightthe different relationships perceived in the narrative and some points of contact betweenthem and the theory of language and literary analysis, always pointing to the essentialrole of the reader, linking him to the interference of language reading world as factorsthat help to (re)configuration of reality.

Keywords: Inkheart, narrative, semiotics, theory, reader

Debora Pereira Simões*

* Aluna regular do Programa de Pós-graduação em Nível de Mestrado em Letras da UniversidadeFederal da Grande Dourados/PPGL. Especialista em Literatura pela UEMS, pesquisa temáticasque se relacionem aos chamados Estudos Culturais.

A linguística deveria, a meu ver,voltar mais a sua atenção para a

natureza da experiência perceptivo-cognitiva e procurar detectar a fun-ção e o papel desta na configuraçãodo “real” bem como na arquiteturaconceitual de nosso pensamento. Se-ria na percepção-cognição, portanto

antes mesmo da própria linguagem,que se desenhariam as raízes da signi-ficação. (BLIKENSTEIN, 2003, p. 39).

“Desde o começo dos tempos, conta-dores de história encantam o público comsuas palavras. Mas há um talento aindamais raro. Existem aqueles que, lendo em

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voz alta, podem trazer os personagens àvida. Dos livros para o nosso mundo.”Essa é a sentença de abertura da versãocinematográfica de Inkheart ou “Coraçãode tinta – o livro mágico”, como foi cha-mado no Brasil o filme baseado na obrade Cornelia Funke.

Originalmente, o livro pode ser classi-ficado como uma metanarrativa uma vezque suscita questões ligadas à arte narra-tiva, à importância do leitor, ao conceitode realidade e à autoria, por exemplo.Mesmo tendo sido adaptada para o cine-ma, tais aspectos da obra permanecemcomo chaves para a compreensão do en-redo e, talvez, da intencionalidade da au-tora do livro e/ou do diretor do filme.

No entanto, qualquer leitura que sepretenda desveladora dos segredos doentretecimento de qualquer obra de arteequivaleria a decretar sua falência enquan-to tal. Sim, a obra é aberta, como a tramade uma renda delicada e suas alternânciasentre vãos e fios emaranhados. Mas osliames que a constituem impõem limitesàs intervenções daqueles que a contem-plam, delineando contornos e imagensque não podem ser simplesmente desfei-tas, sob pena de se perder todo o traba-lho artístico.

A fim de apresentar um panorama ge-ral da trama da obra que nos propomos aconsiderar, segue-se uma breve sinopse:

Mo é um encadernador de livros que pos-sui o dom de, ao realizar leituras em vozalta, trazer as personagens e/ou aconteci-mentos narrados para o mundo real. Acon-tece que, em uma das vezes em que ele lêpara sua esposa e filha, Resa — a esposa —é levada para dentro da história da narra-tiva Inkheart, ao passo que Capricórnio,Basta e Dust Finger são trazidos para arealidade em seu lugar. A partir desse epi-sódio, o grande propósito da vida de Mopassa a ser encontrar um outro exemplarda obra, lê-la e desfazer a troca. Após acre-ditar que todos os exemplares do livro seesgotaram, procura o autor da obra literá-ria a fim de conseguir com ele uma cópia.

O autor, Sr. Cornelius, inicialmentenão acredita na possibilidade de os per-sonagens terem realmente saído do livro.“Língua de Prata é uma ótima idéia. Masé muito absurda para acreditar. Sei quemeus personagens até parecem sair dolivro. Mas não é possível.” Mas, após ob-servar a Dust Finger realizando malabarescom fogo, estupefato, afirma “Exatamen-te como o imaginei. Deve ser a sensaçãode parir”.

Muitos personagens que são trazidospara a realidade estão marcados por le-tras em seus corpos em decorrência deproblemas de leitura, pois um leitor gagointerfere na passagem do mundo dos li-vros para o mundo real.

Exemplo de personagem trazidaao mundo real com marcasprovocadas pela leituradeficiente, o unicórnio tambémaponta para a metanarratividadeda obra.

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Numa leitura que se aproxima com opensamento de Michel Foucault expres-so em Isto não é um cachimbo, a utilizaçãode palavras nos corpos dos personagensreforça, também, o caráter representa-cional do filme.

É preciso não se enganar: num espaçoem que cada elemento parece obede-cer ao único princípio da representa-ção plástica e da semelhança, os sinaislinguísticos, que pareciam excluídos,que rondavam de longe à volta daimagem (...), se aproximaram sub-repticiamente: introduziram na soli-dez da imagem, em sua meticulosasemelhança, uma desordem — umaordem que só lhes pertence. Fizeramfugir o objeto, que revela a finura desua película. (1988, p. 19)

Outras distorções ocorrem em decor-rência da leitura de Dario. Um exemplodesse fato é a saída de Resa da narrativaquando ele a lê. Em função da gagueira doleitor, ela é trazida sem sua voz, que ficapresa no livro. Ora, o que mais seria esseacontecimento que a alusão à necessidadede uma leitura que seja bem realizada paraevitar a rotura da trama? Por outras pala-vras, uma leitura defeituosa prejudica areconfiguração, na acepção de PaulRicoeur1 , do que é lido e, consequen-te-mente, sua compreensão. Esta seria umaprimeira categoria de leitores a se abordar.

Uma das personagens que mais nosfazem refletir acerca do papel da leituracomo meio de aquisição de conhecimen-tos e como meio de estímulo à imaginaçãoé Elinor que diz que já foi à “Pérsia, SãoPetersburgo, Paris, Terra Média, planetase Shangri-la. E nunca tive que sair daqui.

Livros são aventuras! Contêm paixão, as-sassinato e destruição! Amam qualquerum que os abra”. Elinor, pode ser apontadacomo uma representação do leitorempírico de Umberto Eco. Um leitor quese deleita com a fruição do texto, que semantém, no mais das vezes, no nível desuperfície do que lê. O que se pode com-provar pela declaração da personagem fei-ta em um outro momento do filme. Elafala: “Desculpe. É tudo real demais paramim. Prefiro uma história que tem o bomsenso de permanecer no papel”.

(...) O leitor empírico é você, eu, to-dos nós, quando lemos um texto. Osleitores empíricos podem ler de váriasformas, e não existe lei que determinecomo devem ler, porque em geral uti-lizam o texto como um receptáculode suas próprias paixões, as quais po-dem ser exteriores ao texto ouprovocadas pelo próprio texto. (ECO,1994.p. 14)

Por sua vez, os “Língua de Prata” sãoos leitores “especiais”, aqueles dotados deuma leitura mais elaborada, nãodistorciva, capaz de reconfigurar aquiloque é lido com mais habilidade que osleitores “comuns”. Personagens que, ain-da numa leitura que se aproxima da clas-sificação do escritor italiano, seriam umaespécie de tipo ideal previsto e configura-do no próprio texto. Ainda sob esse pris-ma, Paola Pugliatti (apud ECO, 1994, p.22) afirma que o leitor modelo:

(...) não só figura como interagente ecolaborador do texto, muito mais —e, em certo sentido, menos — , ele/elanasce com o texto, sendo o sustentá-

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culo de sua estratégia de interpreta-ção. Assim, o que determina a compe-tência dos leitores-modelo é o tipo deestampagem genética que o texto lhestransmitiu (...) Criados com o texto— e nele aprisionados —, os leitores-modelo desfrutam apenas a liberdadeque o texto lhes concede.

É a presença de leitores mais bem pre-parados para e pelo exercício da leiturana narrativa que abre as grandes discus-sões acerca dos conceitos de representa-ção e realidade que podem ser notadosao longo de toda a obra. De certa manei-ra, poderíamos estabelecer uma compa-ração entre essa categoria de leitores aoscríticos e teóricos da literatura ao realiza-rem uma leitura de explicação e compre-ensão da obra.

Um momento da narrativa é bastanterepresentativo quanto ao que seja a cons-trução da realidade. Farid (personagemtirado da história de Ali Baba e os 40 la-drões), após sua saída do livro e aprisio-namento no castelo de Capricórnio, ficarepetindo para si, como que em estadode choque, “É só um sonho. É só um so-nho. É só um sonho”, para se convencerde que aquilo que vive não é real.

Interessante é perceber que ele é umapersonagem de livro que acredita que aficção em que vive é a realidade e que omundo real para o qual é trazido é airrealidade, um sonho, uma ilusão. Tal ati-tude da personagem aponta para afluidificação, a relativização da constru-ção do real.

O mesmo Farid serve como prova deadaptação do sujeito à realidade percebi-da, uma vez que apaixona-se por Meggiee, mesmo tendo a oportunidade de ser lidopor Mo e retornar ao seu livro, seu uni-verso, sua realidade inicial, decide ficar nomundo real e permanecer junto à amada.

Além desse carinho especial porMeggie, o ex-ladrão, numa relação ficção-ficção, aprende a dominar o fogo com apersonagem Dustfinger, criando uma novacategoria de relações no interior da obra,somando-se à relação leitor-obra, autor-obra, autor-leitor, obra-obra a relaçãopersonagem-personagem, reafirmando apluralidade significativa e narrativa quesurge no âmbito da obra.

Exatamente por ser portadora de umametanarratividade, a obra pode se mos-trar e mostrar o processo criador das nar-rativas, dando mais importância aos ele-mentos consagrados para as análises das

Farid e Meggie: a ficção que se apaixona pela realidade

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narrativas que à própria trama. Mais im-porta estabelecer o diálogo entre leitor-personagens, personagens-autor, obra-obra e autor-leitor. Dessa forma, pela alu-são direta ou indireta, a realidade do fil-me é invadida, também, por personagensde outras histórias, como ChapeuzinhoVermelho, O mágico de Oz, Peter Pan,Ali Baba e os 40 Ladrões, Rapunzel, Joãoe Maria, Cinderela, Cachinhos Douradosa Pequena garota vendedora de fósforos,o Lobisomem, o Minotauro e Unicórnios.

Um aspecto relevante a se observarpor esse procedimento de trazer perso-nagens de contos, romances, mitos e len-das para dentro da trama é a configura-ção de um dialogismo entre diferentesnarrativas, entre diferentes gêneros lite-rários, entre diferentes escolas literárias,estilísticas particulares além de apontarpara a impossibilidade de um discursocapaz de ser plenamente original, comojá afirmava Bakhtin2 . Ou, assim comoRoland Barthes, que retoma o conceitode dialogismo,

Sabemos agora que um texto não éfeito de uma linha de palavras a pro-duzir um sentido único, de certa ma-neira teológico (que seria a ‘mensa-gem’ do Autor-Deus), mas um espaçode dimensões múltiplas, onde se ca-sam e se contestam escrituras varia-das, das quais nenhuma é original: otexto é um tecido de citações, saídasdos mil focos da cultura” (1988, p. 68-69).

De igual modo, cabe afirmar que apro-priação de uma narrativa por outra tam-bém é uma mostra da fragmentação quepermeia a arte na atualidade.

Uma forma de manter o equilíbrioentre o real e o ficcional que se pode per-ceber como estratégia da autoria da tra-ma adaptada para as telas do cinema éque, no nosso mundo, as personagens secomportam da maneira como foram es-critas (pensadas por seus autores) namaior parte das ações. Capricórnio é sem-pre um mentiroso. Dust Finger é sempreum fraco. Há um momento no filme emque ele, conversando com Resa, diz, aoser rejeitado por ela, “é por causa do jeitocomo sou escrito, não é? Acha que soufraco e falso. Não sou só isso. Não é tudode mim.” Em um determinado momento,Mo afirma a seu respeito: “Personagemegoísta, repugnante, fraco!”, ao que eleresponde que a culpa é do autor do livro.

Essas oscilações entre as reações deDust Finger e dos demais personagenstrazidos de Inkworld – o nome do lugarem que a trama de Inkheart se desenvol-ve - no que se refere à sua existência ma-terial apontam para a questão da inde-pendência da obra em relação ao autor, apartir do momento em que esta é trazidaa público. Metaforicamente, o diálogotranscrito a seguir ilustra essa perda decontrole do autor sobre a obra3 .

C – Dust Finger!Mo – Eu tentei impedí-lo.C – É maravilhoso conhecê-lo.D – Não, não, não.C – As cicatrizes são perfeitas. Horrí-veis como imaginei.Mo – Eu disse, ele tem medo.C – Mas não de mim, espero.Mo – Tem medo do que acontece nofinal do livro.C – Como assim? Por que ele morre?Mo – Ah, não!

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a história só existe quando ele é parte in-tegrante dela e, principalmente quandoele é lido. Dessa forma, ele só está nomundo ficcional quando o discurso sematerializa.

No outro extremo dessa relação obra-autor, o Sr. Cornelius, enquanto perso-nagem da trama e, concomitantemente,segundo Barthes, “personagem moder-na”, é configurado para representar oideário de uma autoria que sonha em vi-ver num mundo como o do livro que es-creveu. Ou, como a personagem afirma:“Um livro maravilhoso, devo dizer. Dariatudo para entrar nele”. Uma clara alusão àfuga da realidade em que se vive.

Quanto ao nome do escritor, é possí-vel perceber uma semelhança com onome da autora da obra que deu origemao filme. Seria Cornelius uma alusão di-reta a Cornelia Funk? Seriam as aspira-ções do autor, na obra, as mesmas da cri-adora da obra de ficção? Impossível afir-mar que sim ou que não, uma vez que aobra, como já firmado aqui, foge do do-mínio do autor ao ser publicada, ao che-gar ao seu destinatário (o público). Noentanto, a existência dessa proximidadede nomes entre autores suscita, de fato,ao leitor mais atento, um ato reflexivo.

Próximo ao final da história, um dospersonagens sugere que o autor faça umapequena alteração em sua aparência (re-escrevendo parte do livro). Essa sugestãoparece ser a única forma de “desfazer” osproblemas que acabam envolvendo a tra-ma na obra, pela devolução do poder deditar os destinos das personagens à penado autor. Na tentativa de alterar o final,Sr. Cornelius tem o seguinte diálogo comMeggie.

C – Entendi. Certo. Desculpe.Meggie - Ele morre no fim?C – Tinha que deixar emocionante.Nem todos têm final feliz. Afinal, avida nem sempre tem.D – Como acontece?C – Um homem de Capricórnio omata enquanto tenta salvar Gwin...Uma cena de morte muito tocante.Chorei quando escrevi.D – Acha que ligo para o que escre-veu?... Não vai controlar o meu desti-no. Senão, eu não estaria aqui... Nãosou só um personagem em seu livro...e você... não é meu deus... Agora,ouça, velho... tem uma cópia do livroou não tem? Pois eu gostaria de ir paracasa agora, por favor.

Dust Finger também pode simbolizaro personagem que existe como tal en-quanto é lido. Ou seja, enquanto aindapertencia ao universo da narrativa, eleestava sujeito e condicionado pelo textode que era parte. Ao ser trazido para forada obra, deixa de estar sujeito ao texto,passando a agir por si próprio, indepen-dentemente da intencionalidade de seuautor. No entanto esta personagem nun-ca leu o livro todo. Sente medo de sabercomo a história termina. Assim, para ele,

A cena em que autor e personagem dialogam

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M – Crise de criatividade?... Talvez eupossa ajudar.C – Isso. Quer ser escritora, certo?M – Fala como se fosse algo ruim.C – Não, não. Só algo solitário... Àsvezes o mundo que cria parece maisamigável e vivo do que o mundo emque se vive.M – E queria poder estar lá.

Esse diálogo faz com que, ao final, pormeio da leitura da menina, o autor tenhaseu desejo atendido, sendo enviado paradentro do livro. Fato esse que nos remeteaos questionamentos acerca do(s)papel(éis) do leitor. Ora, Meggie, não sen-do originalmente a autora de Inkheart,acaba por possuir atributos iguais oumaiores que o próprio autor. É ela quemintervém e reinventa o desfecho da tra-ma, provocando, simbolicamente, a mor-te do autor4 , uma vez esse processo de“assassínio” da autoria se inicia com a es-critura e, diria eu, culmina na leitura.

Entre tantos outros aspectos passí-veis de serem analisados, a obra literáriae sua versão fílmica, um embricamentoentre a fantasia e a realidade, a leitura ea escrita, mostram-se como símiles daconstrução da realidade e de sua apre-ensão. Mas, finalmente, até que pontose entretecem esses pontos eternamen-te interrogativos? Ora, se

(...) a significação do mundo deveirromper antes mesmo da codificaçãolinguística com que o recortamos: ossignificados já vão sendo desenhadosna própria percepção/cognição da re-alidade. [Desse modo] (...) trata-se darelação entre língua, pensamento, co-

nhecimento e realidade (...). (BLIK-STEIN, 2003, p. 17).

Estendendo à arte uma capacidade,não uma função, de mediar os processosde percepção, configuração e/ou apropri-ação da realidade, mais especificamente,neste ponto, da obra de arte literária, nosvalemos das palavras de Marina Yaguelloque afirma:

A linguagem acciona capacidades es-pecificamente humanas, as capacida-des para a simbolização e a abstracção:o homem é capaz de evocar não ape-nas o que é palpável e está presentemas também o que está longe, no tem-po ou no espaço, o que é abstracto oumesmo imaginário. (1997, p. 16)

Tanto o imaginário fílmico como o li-terário abrem portas para realidades ou-tras, diferenciadas mas não impossíveis,distantes mas não intangenciáveis. Tudose configura e se conforma num jogo emque ora somos atores, ora espectadores.Detectar os actantes e os papéis desem-penhados auxilia a performá-los de me-lhor maneira. Numa aproximação parci-al, porque particular, e multifacetada, poisvários os aspectos da obra literária,metanarrativamente expostos na versãofílmica de Inkheart, buscamos evidenciaras diversas relações perceptíveis na nar-rativa e alguns pontos de contato entreestes e a teoria da linguagem e da análiseliterária, apontando sempre para o papelessencial do leitor, associando a ele a in-terferência da linguagem a leitura de mun-do como fatores que auxiliam na(re)configuração da realidade.

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NOTAS

1 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Tomo I.2 BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.3A transcrição dos diálogos aqui citados foi feita a partir das cenas do filme, não do livro.Assim, para facilitar a compreensão, C corresponde a Cornelius, Mo é Mortimer e Dequivale às falas de Dust Finger.4 “Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado, para fins intransitivos, enão para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente fora de qualquer função quenão seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem,o autor entra na sua própria morte, a escritura começa.” (BARTHES, 1988, p. 65).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BARTHES, R. “A morte do autor”. In.: ____ O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira.São Paulo: Brasiliense, 1988.

BLIKSTEIN, I. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. 9. ed. São Paulo: Cultrix,2003.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Com-panhia das letras, 1994.

FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo. 4.ed. São Paulo Paz e terra, 1988.

YAGUELLO, M. Alice no país da linguagem: para compreender a linguística. Trad.Maria José Figueiredo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.

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ESPREITANDO LAVOURAARCAICA PELAS FRESTAS

DA LINGUAGEM

RESUMOEste artigo propõe percorrer os caminhos da linguagem em Lavoura arcaica,

romance de Raduan Nassar. Partindo do pressuposto de que o indivíduo é reveladopela própria linguagem, intentamos investigar as posições do pai e do filho nesteromance que se apresenta entrecruzado por uma infinidade de vozes dissonantes.Em certa medida, a palavra se mostra como a desencadeadora de uma crise dentroda família, pois, a partir do momento em que o filho começa a contestá-la é o inícioem que discursos são contrapostos e testados. Sob esse aspecto, pensaremos a pala-vra como sendo uma das maneiras de se adentrar neste mundo particular e espreitá-lo pelas frestas da linguagem.

Palavras-chave: Linguagem; Palavras; Lavoura arcaica; Conflitos.

ABSTRACTThis article proposes to investigate the way of language in Lavoura arcaica, by

Raduan Nassar. From the presupposed that the being is revealed by own languagewe intent to investigate the position of father and son in this novel that is presentedcrossed by an infinity of dissonant voices. In way the word is showed off as a creatingof crisis in that family, from the moment that one of the children start to contest thefather’s word we see several discourses being opposed and tested. Under this aspectwe’ll think word as being one of manners to get in that private world and spyingthrough language skylight.

Keywords: Language; Words; Lavoura arcaica; Conflicts.

Rosicley Andrade Coimbra1

1 Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Atualmente é mestrando,bolsista CAPES, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal daGrande Dourados, na área de Literatura e Práticas Culturais.

As palavras me escondem sem cuidado. Manoel de Barros

Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é,em última análise, em relação à coletividade.

Mikhail Bakhtin

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[...] toda palavra é uma semente: traz vida,energia, pode trazer inclusive uma carga

explosiva no seu bojo: corremos gravesperigos quando falamos.

Raduan Nassar

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As três citações usadas como epígrafesneste texto servirão de preâmbulo parafalarmos sobre linguagem no romanceLavoura arcaica (LA), de Raduan Nassar.Entendemos que elas dialogam entre siatravés de uma estreita ligação: a palavracomo ocultamento e revelação do falan-te. Nesse sentido, ao procurar se “escon-der” atrás da palavra o falante acaba porser revelado justamente por aquilo queusou para se ocultar. A palavra nunca éisenta, daí afirmarmos que ela nos expõeà constante presença do outro. Foi pen-sando sob esse ângulo que Bakhtin subli-nhou que, “a palavra é o fenômeno ideoló-gico por excelência” (BAKHTIN, 2004, p.37).E é sob essa face especular que a palavrapode ser tratada como uma semente deordem, mas que traz consigo também ogerme da desordem. Ela se mostra trans-parente, neutra, por um lado e do outrooculta uma face opaca e autoritária.

Falar sobre a linguagem em LA é tra-zer para a arena das discussões a singula-ridade de uma obra dentro da própria li-teratura brasileira. Publicada em 1975,ganhou notoriedade numa época em quea produção literária se encontrava numavia de mão dupla: ou seguir uma temáticapolítico-social, denunciando de maneiracrítica os desmandos do militarismo ouseguir um caminho mais alternativo, vol-tado para um gênero maravilhoso-fan-tástico, trabalhando de maneira menos

incisiva. No entanto, LA se destacou como“um romance intimista cujo trabalho for-mal levou a linguagem às fronteiras daprosa poética”, conforme apontou o críti-co Alfredo Bosi (BOSI, 2006, p.423). Suaprosa-poética nos remete a um tempomítico, quando somente uma voz era pas-sível de ser ouvida e obedecida. As de-mais eram silenciadas por meio da coer-ção. Um único discurso poderia ser acei-to: o discurso cominativo, ou seja, aqueleque impunha, prescrevia e ao mesmotempo castigava e penalizava. Este era odiscurso autoritário do patriarcalismo.Uma ideologia precisava ser mantida, cus-tasse o que fosse e a obediência incontestefazia parte deste mundo. Se há denúnciaem LA ela é feita de maneira velada, co-medida. No entanto, há um grande labi-rinto de palavras que acaba por desviar ofoco de uma eventual referencialidade,levando o leitor a concentrar-se somenteem sua linguagem.

Na verdade, o que encontramos é umromance polifônico, entrecortado porvozes dissonantes que, sob forte tensão,

O autor Raduan Nassar:“Toda palavra é uma semente.”

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oscilam entre o lirismo e a cólera, entre aobediência e a desobediência. E ainda, odiscurso autoritário presente na obra dis-puta lugar com o silêncio que tambémpercorre toda sua extensão. Se por umlado temos um discurso mantenedor deuma ideologia, por outro, o silêncio se fazinsuportável. Todavia, podemos dizer quese trata de um silêncio aparente, poismesmo tendo seu significado e peso, elenão se mantém por muito tempo e acabapor se romper.

O que temos daí então é o desaba-mento de uma grande barragem. As águascaudalosas, ao destruírem o grande di-que, não poupam ninguém e os discur-sos, outrora bem alicerçados, são postosà prova e subvertidos. Eventuais incon-sistências dos sermões do pai são aponta-das por André, o filho problemático. As-sim, as consequências de palavras ditassem qualquer preocupação com o uso vêmà tona.

O pai, figura austera, é o responsávelpor manter a ordem da família. Tudo de-corre de sua vontade, que é a lei, a verda-de indiscutível. O equilíbrio é estabeleci-do por meio de seus sermões. Seu discur-so funda-se numa ordem quase religiosa,no respeito ao tempo: um tempo feito deesperas. O silêncio é a resposta esperada,é sinal de obediência e entendimento.Tudo é sempre igual, o mesmo gesto, omesmo tom profético ao proferir as leissagradas, que devem reinar naquela casa,naquele mundo limitado às cercas da pro-priedade. Contudo, nem todos são passí-veis a esses ensinamentos. Há resistência,há quem não concorde com tais sermõese os julgue “inconsistentes” e este alguémé André, um dos filhos. E é este descon-certo com a vontade do pai que dará ori-

gem a uma série de acontecimentos den-tro da família, e que culminarão em suadesagregação.

Como dito anteriormente, LA é cru-zada por vários discursos, mas dois sesobressaem e se mostram antagônicos,mas na verdade estão envolvidos numamesma tessitura. O diálogo entre eles sefaz justamente por serem conflitantes. Há,por um lado, um discurso mantenedorde uma ordem, de uma ideologia que pre-cisa ser reafirmada a todo instante, e dooutro, um que vai de encontro ao primei-ro: uma espécie de contra-discurso, pró-ximo a uma réplica, um verdadeiro atoresponsivo.

Temos então num pólo, o discursocristalizado e autoritário do pai, que seconstitui como o “discurso de uma verda-de absoluta, sem contestações” (BARROS,2001, p.152), e no lado oposto, o discursode André, que procura, justamente,contestá-lo apontando-lhe incoerências,vendo que essa cristalização não condizcom a verdade, ou seja, as palavras po-dem remeter a outras interpretações ousignificados, distando de todos aquelesditos e prescritos pelo pai.

O discurso paterno é um discursomilenar, repetido e reafirmado a cada novageração e a ideologia que o permeia con-tinua sendo sempre a da eterna espera eda obediência. Nesse sentido, a paciênciaconstitui-se como única e verdadeira vir-tude a ser cultivada nesta lavoura arcaica.A constante repetição terminou por pe-trificar a tradição, tornando-as mera imi-tação de gestos e palavras de outrem.

Sob esta ótica, propomos investigar oscaminhos da linguagem, bem como a re-volta de André que, de um silêncio con-tundente passa para uma explosão de có-

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lera. Assim, esse filho “problemático”também fará amplo uso da linguagemcomo forma de ficar em pé de igualdadecom o pai, fazendo uso de seu própriodiscurso como forma de atingi-lo. E des-sa forma, des-tecendo os meandros daspalavras do pai, André quebrará o silên-cio de outrora, explodindo em cólera.

LINGUAGEM E DISCURSO:O PODER SOB DISFARCES

IDEOLÓGICOS

Falemos inicialmente da linguagemcitando Roland Barthes:

A linguagem é uma legislação, a lín-gua é seu código. Não vemos o poderque reside na língua, porque esquece-mos que toda língua é uma classifica-ção, e que toda classificação é opressi-va: ordo quer dizer, ao mesmo tempo,repartição e cominação (BARTHES,2007, p.12)

No sentido barthesiano, a linguagemcarrega em si um paradoxo: ao mesmotempo em que liberta, ela condiciona, pres-crevendo o indivíduo que se lança em seuencalço. Daí a ratificação de Barthes acer-ca do caráter “fascista” da língua, uma vezque, segundo ele, o fascismo não impedede dizer, mas, ao contrário, obriga a dizer(BARTHES, 2007, p.14). A língua impõe-se como produto a ser adotado tal qualsua determinação, isto é, por ser um sis-tema, conforme atestara Saussure, ela estácalcada em prescrições que devem serobedecidas.

Contudo, podemos dizer que tal pa-radoxo da língua se deve também ao pró-prio homem que, ao nomear objetos, o

faz de maneira arbitrária. Assim, a lin-guagem, que nada mais é que o código —isto é, a língua — posto em funcionamen-to, surge como “um produto ideológico”,segundo Bakhtin, que destaca ainda que,todo produto ideológico possui um signi-ficado, remetendo a algo que está situadofora de si. Dessa forma, tudo o que é ide-ológico é um signo. Sem signos não existeideologia (BAKHTIN, 2004, p.31). Assim,Bakhtin vincula ideologia e signo comoconstruções imersas em arbitrariedades.

Seguindo esta concepção bakhtinianade uma aproximação entre ideologia e sig-no, podemos ressaltar que a primeira tam-bém jaz numa situação de extrema arbi-trariedade, posto que o significado é-lheexterior: a ideologia sempre remete parafora de si. Numa ordem um pouco diver-sa, Foucault apontará um caráterdicotômico entre ideologia e verdade. Se-gundo ele, a ideologia “está sempre emoposição virtual a alguma coisa que seria averdade” (FOUCAULT, 1979, p.7). Dessemodo, ideologia e verdade estariam sem-pre se digladiando por um lugar de desta-que ou, em outras palavras, pelo poder.

Todavia, a ideologia apresenta mais umparadoxo. Se por um lado ela se apresen-ta como um “conjunto lógico, sistemáticoe coerente de representações [...]”, visan-do sempre preservar os membros da so-ciedade, por outro lado, ela se mostracomo normativa, prescritiva e regulado-ra. E ainda, sua função primordial estáapoiada no apagamento das diferençasdentro de uma sociedade, isto é, seu pa-pel é fazer passar por verdade aquilo quedeveras não é: de que todos os membrosda sociedade são iguais (CHAUÍ apudBARROS, 2001, p.148-9). Esta visão deideologia, apresentada por Marilena

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Chauí, baseia-se nas divisões sociais detrabalho, na qual se observa uma divisãodessa força em “manual” e “intelectual”(BARROS, 2001, p.149).

Por sua vez, o Estado, através de seusaparelhos, procura sempre reafirmar seupoder por meio da manutenção da ideo-logia, que se dá sempre por intermédioda repetição de um saber ou de uma ver-dade. Na assertiva de Barros, as ideologi-as também podem ser vistas como visãode mundo, uma vez que elas

não nascem nos aparelhos, [mas] sur-gem das classes sociais, de suas condi-ções de existência, de suas práticas, desuas lutas, e os aparelhos constituem aforma pela qual a ideologia da classedominante se realiza. É no seu interi-or que se medem e se confrontam va-lores (BARROS, 2001, p.150).

Sob esse prisma, a ideologia da classedominante provém do uso dos aparelhosdo Estado e os confrontos de valores sãoinstalados no interior destes aparelhos deforma a refratar a realidade, dissimulan-do ou apagando as diferenças, inscreven-do-se como verdade igualitária. Podemoscitar a escola como um dos aparelhos usa-dos para a realização da ideologia da clas-se dominante: o lema “educação para to-dos” está permeado neste aparelho, con-tudo, nem todos continuam a estudar,dando a entender que, quem não estudaé porque não quer.

Ao discorrer sobre o estatuto da lín-gua, Barros destaca que ela:

não é neutra e sim complexa, pois temo poder de instalar uma dialética in-terna, em que se atraem e, ao mesmo

tempo, se rejeitam elementos julga-dos inconciliáveis [...] As ideologias,sobretudo a dominante, tentam colo-car o signo acima da luta de classes eesconder suas contradições internas,tornando-o monovalente e “neutro”(BARROS, 2001, p.151).

Uma presumida neutralidade se mos-tra na língua, ou seja, a arbitrariedade dosigno é posta em suspenso, tornando-sevelada para que contradições sejam tam-bém disfarçadas, dando assim a impres-são de verdade, passando por verossímilaquilo que na realidade não é. Esta su-posta neutralidade mascara o discursolegitimador do poder, uma vez que as pa-lavras são tidas como incólumes às mu-danças.

Sob esta perspectiva, podemos ver napostura do patriarca em LA que, por meiode seus sermões, procura deixar claro umaveneração, segundo ele, ao tempo, masque na verdade implica uma obediência auma doutrina muito mais rígida, de sub-missão a uma única vontade, a sua. Ele,sempre ele, é o centro de seus sermões.

O fato de estar sempre falando pon-deradamente, como o pêndulo do reló-gio, evidencia sua preocupação em nãoser incompreendido, já que: “Para que aspessoas se entendam, é preciso que po-nham ordem em suas ideias. Palavra compalavra [...]” (NASSAR, 1989, p.160). To-davia, esse patriarca se esquece da forçaque tem a palavra: “toda palavra compor-ta duas faces”, afirmará Bakhtin (2004,p.113), e a palavra do pai, repetida há ge-rações, comporta duas facetas: pode con-tinuar a ser repetida ou pode ser criticadae usada contra ele por outrem.

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O SILÊNCIO REVELADOR:O SILÊNCIO REVELADOR:O SILÊNCIO REVELADOR:O SILÊNCIO REVELADOR:O SILÊNCIO REVELADOR:QUANDO QUANDO QUANDO QUANDO QUANDO UM COPOUM COPOUM COPOUM COPOUM COPO

TRANSBORDTRANSBORDTRANSBORDTRANSBORDTRANSBORDA A A A A DE CÓLERADE CÓLERADE CÓLERADE CÓLERADE CÓLERA

Conforme afirmação de Bakhtin:

Toda a essência da apreensão aprecia-tiva da enunciação de outrem, tudo oque pode ser ideologicamente signifi-cativo tem sua expressão no discursointerior. Aquele que apreende aenunciação de outrem não é um sermudo, privado da palavra, mas ao con-trário um ser cheio de palavras interi-ores. Toda a sua atividade mental, oque se pode chamar o “fundo percep-tivo”, é mediatizado para ele pelo dis-curso interior e é por aí que se opera ajunção com o discurso apreendido doexterior. A palavra vai à palavra.(BAKHTIN, 2004, p.147).

Partindo dessa proposição, vemosAndré não como um ser mudo, pois elepossui um fundo perceptivo como todoouvinte. Ele está cheio de palavras; querfalar, ou melhor, quer o direito a voz. Quercontestar os discursos do pai, postopercebê-los como engodo. As palavras dopai levam o filho a querer a palavra tam-bém, ou como ele diz: “Queria o meu lu-gar na mesa da família” (NASSAR, 1989,p.160). Ele quer ter o direito de falar àmesa da família. Assim, sua postura im-põe um desmascaramento da ideologiasubjacente na fala do pai.

Ao falar de discurso e de comunicaçãoreal, Bakhtin aventa o fato de o ouvinteocupar (sempre) uma posição responsivaem relação ao falante, ou seja, o ouvintepode concordar ou discordar deste a qual-quer instante. Ele tanto pode completar o

que o outro disse como aplicá-lo ou pre-parar para usá-lo. E mais, “essa posiçãoresponsiva do ouvinte se forma ao longode todo o processo de audição e compre-ensão desde seu início, às vezes literalmentea partir da primeira palavra do falante”(BAKHTIN, 2003, p.271).

Podemos entrever na figura do paiuma postura do falante estudado pelalinguística geral, nos chamados “desenhosesquemáticos”, questionados por Bakhtinpor não corresponderem a “determina-dos momentos da realidade”. Segundo ele,a comunicação se dá de forma ativa, pos-to que “toda compreensão é prenhe deresposta, e nessa ou naquela forma a geraobrigatoriamente: o ouvinte se torna fa-lante” (BAKHTIN, 2003, p.271). Mas,como o discurso do pai é autoritário ecarrega consigo o estigma de uma ideolo-gia de obediência incontinenti, acaba pornão abrir um precedente para um atoresponsivo: o ouvinte é somente ouvinte.

No outro extremo temos André quese mostra como o ouvinte que está pre-nhe de atos responsivos. Seu discurso estáem constante diálogo com o do pai justa-mente por serem conflituosos. Ele não éo ouvinte passivo, mas sim o outro quedeve ser levado em consideração numacomunicação real. Durante uma comuni-cação em condições reais, o falante

não espera uma compreensão passiva,por assim dizer, que apenas duble oseu pensamento em voz alheia, masuma resposta, uma concordância, umaparticipação, uma objeção, uma exe-cução, etc. (BAKHTIN, 2003, p.272).

É assim que André se comporta dian-te dos sermões do pai. Ele não quer repe-

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ti-los ou mantê-los. Não há uma concor-dância entre o que o patriarca diz e o queo filho compreende, ele quer objetar, con-testar, em outras palavras, ele quer res-ponder! Observado por esse ângulo, ocomportamento de André é reflexo daprópria fala do pai, uma vez que, duranteuma comunicação, nem sempre ocorre aresposta em voz alta ao enunciado, elapode realizar-se na ação ou

pode permanecer de quando em quan-do como compreensão responsiva si-lenciosa [...] mas isto, por assim dizer,é uma compreensão responsiva de efei-to retardado: cedo ou tarde, o que foiouvido e ativamente entendido res-ponde nos discursos subsequentes ouno comportamento do ouvinte(BAKHTIN, 2003, p.272).

A compreensão responsiva de efeitoretardado de André surge numa explo-são de cólera, num transbordamento deraiva que, ao ser expelido, não poupa nada,nem ninguém. A quebra daquele silênciocontundente é atestada então como umanegação daquela vida arcaica, fundada emvalores ossificados, mantidos por palavrasdesgastadas pelo uso, palavras que eramapenas repetidas de geração em geração,mas que com o passar do tempo, portan-to em contexto diverso, adquiriram ou-tros sentidos, ignorados pelo pai.

E ainda, todo o universo desta famí-lia está restrito as cercanias da proprie-dade, uma espécie de microcosmo da so-ciedade. É dele, do pai, que parte toda avontade mantenedora da ordem. Seussermões, proferidos à mesa antes dasrefeições vem a lume como verdades in-contestáveis, como o primum móbile da-

quele universo familiar. O silêncio quese segue as suas prédicas é entendidocomo uma assertiva do que fora dito. Otom profético com que fala: ai daqueleque brinca com fogo: terá as mãos cheiasde cinza, está sempre lembrando os cas-tigos que poderão advir com o não-cum-primento das leis sagradas.

Desse âmbito, os sermões do pai seapresentam sempre como uma espéciesilogismo, em que temos uma premissamaior que poderia ser: “na união da famí-lia está o acabamento dos nossos princí-pios” (NASSAR, 1989, p.61), isto é, a felici-dade está na união da família. Em seguidapodemos depreender uma premissa me-nor: André vive numa família unida. Eentão teremos um conclusão: André é fe-liz naquela família. É claro que os sermõesnão se resumem a este único silogismo,existem outros de forma mais velada den-tro da obra.

No entanto, um silogismo não se apre-senta como uma lógica verdadeira, ele épassível de ser questionado: na maioriadas vezes ele se mostra como inteiramen-te falso. E é assim que podemos percebê-lo em LA, já que André não é feliz da for-ma como as coisas são conduzidas em suafamília, principalmente em se tratando desua relação com o pai. Um silogismo écontestável, posto ser inverossímil.André, em seu silêncio, não concordacom os ditos do pai. Tanto que, consuma-do um ato incestuoso com uma das ir-mãs, Ana, faz questão de ironizar, dizen-do que cumprira a vontade o pai: a felici-dade está na união da família.

Assim, se o silêncio se mostra comoalgo positivo para o pai, por outro ladoele tem um significado totalmente inver-so para o filho pródigo. “Se a linguagem

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implica silêncio, este por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem”(ORLANDI, 1993, p.23). Como Andrébem confessa ao irmão Pedro posterior-mente: “(Tinha contundência o meu si-lêncio! Tinha textura a minha raiva!)”(NASSAR, 1989, p.35). A totalidade sig-nificativa no silêncio de André jaz na suadiscordância ao que pregava o pai emseus sermões.

Assim, conforme destaca Orlandi, osilêncio “tem significância própria”, uma vezque ele “é a garantia do movimento dossentidos” (ORLANDI, 1993, p.23). O silên-cio de André é a resposta mais contunden-te que este poderia dar ao pai naquelemomento. Entretanto, inversamente doque acredita o pai, o filho faz uso destesilêncio como forma de negar sua verda-de, posto considerá-la inconsistente.

Por sua vez, Ana, após a fuga do ir-mão também entra em profundomutismo. O que esconde seu silêncio? Afalta do irmão ou a culpa pelo crime deincesto? Para a família Ana está muda pelafalta do irmão. No entanto, sabemos queé por culpa e arrependimento. Aliás, su-blinhe-se aqui o fato de que Ana não pro-nuncia uma única palavra em toda a obra.Nesse sentido, ela não é um personagemfeito de palavras, mas de silêncio. Assim,todo um silêncio altamente significativotransita pela obra: do silêncio de André,passando por Ana, até chegar à família.

O silêncio da família se manifesta emseu comportamento, posto que umaonda de retraimento se apodera desta:todos sabem o que acontece, mas nin-guém ousa quebrar a cortina de quietu-de que o encobre. O silêncio pela fugado filho se mostra análogo a um luto:

não se toca no nome do morto nestacasa! Sob essa perspectiva, “o silêncio nãoé o vazio, o sem-sentido; ao contrário,ele é o indício de uma totalidade signifi-cativa” (ORLANDI, 1993, p.70): a dor pelaperda de um filho, de um irmão ou deum membro da família.

Mas todo esse silêncio é quebradoantes mesmo que o filho fujão retorne àfazenda. Ainda na pensão, onde fora en-contrado pelo irmão mais velho, Andréexpele toda sua cólera e convulso confes-sa todas suas angústias: a sufocante auto-ridade do pai e a paixão incestuosa pelairmã Ana.

A VERSATILIDADEDA PALAVRA NO DISCURSO

DE ANDRÉ

André vai de encontro ao discurso dopai, procurando nas palavras deste as suas,para assim produzir seu próprio discur-so. No entanto, o filho adota posição crí-tica e subversiva, transformando eressignificando tais palavras, uma vez queas julgava inverossímeis. Assim, os ser-mões que o patriarca proferira a vida todapara a família, é usado por André comoarma contra o próprio pai.

A principal denuncia de André se devea palavra do pai estar em todos os luga-res: “[...] tudo em nossa casa é morbida-mente impregnado da palavra do pai [...]”(NASSAR, 1989, p.43), dirá ele. Dessa for-ma, ele demonstra conhecer todos osimbricamentos do discurso paterno, jáque será a partir disto que ele começará aeclodi-lo. Este filho pródigo sabe comomanejar as palavras; ele é um conhece-dor do poder que elas possuem, sabe que

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elas não são neutras como o pai acredita.Em um de seus momentos de fúria decla-rará ao irmão Pedro:

[...] era ele [o pai] que dizia provavel-mente sem saber o que estava dizendoe sem saber com certeza o uso que umde nós poderia fazer um dia, era eledescuidado num desvio [...] era elesempre dizendo coisas assim na suasintaxe própria, dura e enrijecida pelosol e pela chuva, era esse lavrador fi-broso catando da terra a pedra amorfaque ele não sabia tão modelável nasmãos de cada um [...] (NASSAR, 1989,p.43-44).

Durante a conversa com o irmão,André demonstra conhecer a força queaquelas palavras possuíam. Se o pai jul-gava sua doutrina dura e enrijecida pelosol e pela chuva, enfim, “neutras”, o filho“tresmalhado” sabe que não é assim quefunciona, ele tem pleno conhecimento deque a pedra amorfa é modelável nas mãosde cada um. Em outras palavras, Andrésabe que uma palavra revela muito maisdo que aparenta, ela revela uma intençãosubjacente, coercitiva, visando manter umcontrole sobre o ouvinte. Por sua vez, opai desconhece completamente que:

A palavra é uma espécie de pontelançada entre mim e os outros. Se elase apóia sobre mim numa extremida-de, na outra apóia-se sobre o meuinterlocutor. A palavra é o territóriocomum do locutor e do interlocutor(BAKHTIN, 2004, p.113).

Podemos dizer que, a palavra lançadapelo pai não admite um ato responsivo.

Contudo, ela começa a acumular-se nasmãos do ouvinte (André) que, silenciosoa manobra, aguardando o instante propí-cio para devolvê-la ao falante. Cada umtem pleno domínio da palavra que lhe édada, podendo manejá-la de acordo comsua vontade, imprimindo-lhe uma subje-tividade, uma vez que ela está alicerçadana complexidade. “A palavra está presen-te em todos os atos de compreensão e emtodos os atos de interpretação”, dirá maisuma vez Bakhtin (BAKHTIN, 2004, p.38).

Ainda conforme Bakhtin:

A palavra é o fenômeno ideológico porexcelência. A realidade toda da pala-vra é absorvida por sua função de sig-no. A palavra não comporta nada quenão esteja ligado a essa função, nadaque não tenha sido gerado por ela. Apalavra é o modo mais puro e sensívelde relação social (BAKHTIN, 2004,p.36).

O pai traz sempre consigo a ordemdas palavras, isto é, seu discurso está sem-pre orientando para uma cumplicidadeentre as palavras e o tempo. Como ditoantes, cada palavra sua é ponderada pelopêndulo do relógio, como se fosse sem-pre um mesmo concerto. Por outro lado,André sabe que não é assim que proce-dem as coisas e confessa isto ao pai: “Todaordem traz uma semente de desordem, aclareza, uma semente de obscuridade,não é por outro motivo que falo comofalo” (NASSAR, 1989, p.160).

Durante o diálogo entre pai e filho,apesar de falarem sobre a mesma coisa, opatriarca não entende o que André diz:“Faça um esforço, meu filho, seja mais cla-ro, não dissimule, não esconda nada do

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teu pai [...]” (NASSAR, 1989, p.160). Asmetáforas usadas pelo filho são totalmen-te obscuras ao pai, posto que este não com-preende o uso que André fez de suas pró-prias palavras, e isto também é confessadoao pai, que continua sem entender: “[...]foi o senhor que disse há pouco que todapalavra é uma semente: traz vida, energia,pode trazer inclusive uma carga explosivano seu bojo: corremos graves riscos quan-do falamos” (NASSAR, 1989, p.167).

Diante da incompreensão do que ofilho fala, o pai também explode em có-lera:

— Cale-se! Não vem desta fonte nos-sa água, não vem destas trevas a nossaluz, não é a tua palavra soberba quevai demolir agora o que levou milêni-os para se construir; ninguém em nossacasa há de falar com presumida pro-fundidade, mudando o lugar das pala-vras, embaralhando as ideias, desinte-grando as coisas numa poeira, poisaqueles que abrem demais os olhosacabam só por ficar com a própria ce-gueira [...] (NASSAR, 1989, p.169).

Quando percebe que não poderá com-preender a fala do filho, o pai usa sua au-

toridade para reafirmar sua ideologia, dei-xando claro que seu discurso estácalcificado, são palavras que levaram milê-nios para serem construídas e que, por isso,devem ser obedecidas — e repetidas.

Ao filho pródigo, diante do transbor-damento do copo de cólera do pai, resta“aceitar” (e conformar-se?) com sua au-toridade — ao menos aparentemente. Eassim, quando tudo parece voltar a anti-ga ordem, a do silêncio, uma grande festade boas vindas é oferecida a André e uma“obscura revelação” põe termo a vida dairmã. O pai, paladino da ordem, se mos-tra fraco e falho em sua postura. Seu dis-curso sobre guardar-se ao mundo daspaixões e do desequilíbrio cai por terra.Quanto a André... este observa tudo re-costado numa grande árvore em silêncio...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme foi possível sublinhar, LAapresenta discursos que se cruzam numlabirinto de vozes abafadas. Ao se cruza-rem tais discursos se mostram inteira-mente antagônicos, por isso uma rela-ção altamente dialética. Enquanto umprocura manter a ideologia através deuma linguagem calcificada pelo tempo e

Raul Cortez interpretouo pai de André,no filme Lavoura Arcaica (2001,direção de Luiz Fernando Carvalho)

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pela repetição, tornando-a desgastada,o outro tende a desmascarar o que jazpor baixo da fala bem comportada ditana mesa das refeições. Observamos ain-da, palavras postas em funcionamento,movimentando-se sempre, mostrandoque a linguagem por mais cuidada queseja sempre deixa transparecer o quedeveras encobre.

Todavia, os exemplos acerca da lin-guagem, ilustrados por LA, não podemser tomadas como exceção. A linguagempermeada por uma ideologia, que age si-lenciado a voz do outro, não é exclusivi-dade dessa obra: o que nela está postopode ser visualizado em qualquer outraparte, em qualquer lugar onde haja doisindivíduos em uma situação de comuni-cação. A literatura se mostra como exem-plar para tratar dessa questão, daí a esco-lha desse objeto.

André pode até ser tido como o avatardos excluídos, mas não pode ser conside-rado o único, assim como o pai, não de-ver ser tido como paradigma de uma con-duta autoritária. A linguagem, posta aprova em LA, é penetrada através de suasfrestas que, a despeito de todos os esfor-ços do pai, deixa vãos que são rapidamente

preenchidos por André, que encontra aíuma rota de fuga e uma forma de criticara ideologia paterna. Se o pai julgava tercontrole sobre o que dizia, André mos-tra-lhe o contrário ao explodir em cólerae depois, apaziguado e conformado, pre-senciando toda da desagregação da famí-lia à distância, deixando que o pai pereçamoralmente, fazendo justamente o que opai sempre dissera: saber esperar.

E aqui, novamente recorremos ao ver-so de Manoel de Barros posto emepígrafe: As palavras me escondem sem cui-dado, fazendo-o dialogar com Bakhtin:Através da palavra, defino-me em relaçãoao outro, isto é, em última análise, em rela-ção à coletividade, acrescentando em se-guida a fala de André: [...] toda palavra éuma semente: traz vida, energia, pode tra-zer inclusive uma carga explosiva no seubojo: corremos graves riscos quando fala-mos. E assim, por meio desse diálogo po-demos retificar uma das prescrições dopai: ai daquele que brinca com fogo: terá asmãos cheias de cinza. Em verdade, ele de-veria dizer: “evitai proferir palavras des-cuidado, pois poderão vê-las serem usa-das contra vós mesmos, afinal, uma pala-vra dita não pode ser (des)dita!”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de MichelLahud &Yara Frateschi Vieira com a colab. de Lúcia Teixeira Wisnik & Carlos HenriqueChagas Cruz. São Paulo: Hucitec, 2004.

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BARTHES, Roland. Aula. Trad. e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,2007.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: ____. Microfísica do poder. Org. e trad.Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas/SP: UNICAMP, 1993.

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