a normalista

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2. A Normalista (1893) Adolfo Caminha (1867-1897) Fonte digital: www.bn.br CopyrightDomnio Pblico 3. NDICE Nota Informativa Autor CAPTULOS I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV 4. A Normalista Adolfo CaminhaNOTA INFORMATIVA O romance A normalista foi publicado em 1893, h mais de 100 anos, portanto.Por esse motivo, impossvel l-lo como se l uma obra escrita nos dias de hoje. Em primeiro lugar, pre- ciso que o leitor se transporte para um tempo anterior ao seu nascimento, do qual ele s poderia conhecer atra- vs de leituras ou de outras informaes. A experin- cia pessoal do leitor, aquela que ele vai acumulando na vivncia do seu dia-a-dia, muitas vezes pouco tem a ver com o local, os acontecimentos e a moral que ser- viu para situar o drama vivido pelos personagens de um romance como A normalista.Logo no primeiro captulo, o leitor precisa da aju- da do dicionrio para saber o que um amanuense, ou captar o sentido de frases ou expresses como as insi- nuaes malvolas da alcovitice vil. E o vspora? Ser 5. que todo jovem reconheceria nesse jogo um precursor do bingo atual? E phaeteon, caiporismo, redingote, coxia (no sentido de calada), botica? E o tratamento de vossemec?No caso de A normalista, outro problema de lin- guagem se coloca: o regionalismo. Alm de ter de des- locar a sua imaginao e a sua compreenso no tempo, o leitor se v diante de expresses restritas ao local em que se desenrola a histria do romance. Nesse caso es- pecfico de A normalista, em Fortaleza, no Cear, mas expresses que tambm podem ser de uso corrente em todo o Nordeste.O professor e pesquisador literrio M. Cavalcanti Proena escreveu que Adolfo Caminha teve a preocu- pao de se no tornar pomposo ou oratrio, o que abriu lugar para muito material de linguagem regional de estilizao do coloquial.Assim, recolhemos os exemplos bichinha, rapari- ga de famlia, o peru era uma excelente bebida, e mes- mo ditos populares como: pela cara se conhece quem tem lombrigas, sem tugir nem mugir, e muitos outros.Na verdade, Adolfo Caminha no insiste em de- masiado nas palavras de cunho regional, o que fazem outros escritores, para dar uma cor local a histrias ambientadas em lugares de fala bem caracterstica.Surge, ainda, uma terceira dificuldade para a com- preenso imediata do texto, pela utilizao de palavras eruditas, pouco usadas na comunicao quotidiana das conversas, do jornal, da televiso. Por exemplo: serdia, rtula, tabernculo, estiolando, almiscarado.Mas tudo isso, vocabulrio em parte antiquado, 6. regional ou erudito, no deve desestimular o jovem a prosseguir na leitura comeada. Literatura tambm este enriquecedor contato com o que ainda no sabe- mos, mundos distantes do nosso, aberturas para o des- conhecido.E a histria? O enredo? Tambm deve o leitor fa- zer um esforo para entender a problemtica, a tenso e o drama que se desenrola dentro do contexto da po- ca e do local onde foi situado o romance.As reaes dos personagens s situaes por eles vividas h 100 anos so, certamente, retratadas de for- ma diferente caso fossem escritas nos dias de hoje.No entanto, o leitor deve deixar-se envolver por essa atmosfera regional do passado, que Adolfo Cami- nha descreve com mincia realista. Josu Montello, em seu ensaio A fico naturalista, afirma que A normalista sobressaa pela transplantao fiel e natural da vida da provncia e vigor na fixao dos temperamentos e dos caracteres.O romance relata as muitas tristezas e poucas ale- grias de uma jovem que entregue por seu pai ao pa- drinho, para cri-la. Ela uma menina normal, que es- tuda, que tem uma amiga confidente, um pretenso na- morado de nvel muito superior ao seu e, desgraada- mente, engravidada pelo padrinho e acaba casando- se com um alferes da polcia.O pano de fundo uma cidade provinciana do s- culo passado, cheia de preconceitos e maledicncias. A jovem Maria do Carmo, personagem principal, que d nome ao romance, sofre as conseqncias desse meio mesquinho, que no oferece oportunidades de um cres- 7. cimento interior nem alternativas de vida.Uma histria vulgar, passada numa cidade atrasa- da e vivida por personagens medocres, sem horizon- tes nem futuro.Mas, graas ao talento do escritor Adolfo Cami- nha, acontece o milagre da criao literria: o texto se ilumina de uma aura de beleza e continua atraindo, ao longo dos anos, a ateno e o interesse de geraes e geraes de novos leitores.CLAUDIO MURILO LEAL 8. O Autor Adolfo Caminha Nome completo: ADOLFO FERREIRA CAMINHA Pseudnimo: FLIX GUANABARINO. Nascimento: 29 de Maio de 1867, Aracati, CE. Falecimento: 1 de Janeiro de 1897, Rio de Janeiro. BIOGRAFIAAdolfo Caminha aps ter-lhe morrido a me, fi- cando rfo com mais cinco irmos, foi para a compa- nhia de parentes em Fortaleza. Seis anos depois, em 1883, mudou-se para a casa de seu tio no Rio de Janei- ro que o matriculou na antiga Escola da Marinha. Em 1886, saiu a publicao em versos de Vos Incertos. No mesmo ano, fez uma viagem de instruo aos Esta- dos Unidos. Em 1887, a 16 de Dezembro, promovido a 2 tenente, publicou Judite e Lgrimas de um Crente, livro de contos. Em 1888, regressa a Fortaleza e envol- ve-se em rumoroso escndalo, ao raptar a esposa de um alferes. O ministro da Marinha interfere, inutilmente, para pr fim situao. Em 1890, Adolfo Caminha, pressionado de todos os lados, se demite e com a mu- lher e duas filhas segue para o Rio de Janeiro, onde vive como funcionrio pblico. Em 1891, fundou, em 9. Fortaleza, a Revista Moderna, e colaborou no jornal O Norte. Em 1893, lanou o romance A Normalista, co- laborou na Gazeta de Notcias e em O Pas. Em 1894, publicou No Pas dos Ianques, fruto de sua ida, oito anos antes, aos Estados Unidos. Um ano depois, o ro- mance O Bom Crioulo, e Cartas Literrias. Em 1896, ano em que fundou a Nova Revista, publicou Tenta- o. Atormentado pelas dificuldades econmicas e de- bilitado pela tuberculose, morre precocemente. Dei- xou inacabados os romances: ngelo e O Emigrado. 10. A NORMALISTA Adolfo Caminha IJoo Maciel da Mata Gadelha, conhecido em For- taleza por Joo da Mata, habitava, h anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de aafro, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que dia- riamente cruzavam defronte, e de onde se avistava a Estao da linha frrea de Baturit. Era amanuense, amigado, e gostava de jogar vspora em famlia aos domingos.Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costu- me. Ao centro da sala, em torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, luz parca de um candeeiro de loua esfumado, em forma de abajur, corriam os olhos sobre as velhas colees desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as slabas numa cadncia morosa: Vin...te e quatro! Sessen...ta e nove!... Cinqen...ta e seis!...Havia um silncio morno e concentrado em que destacava o rolar abafado das pedras no saquinho da baeta verde.A sala era estreita, sem teto, cho de tijolo, com duas portas para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiao geral. direita, defronte da jane- 11. la, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho no menos gasto. O resto da moblia compunha-se de algumas cadeiras, um sof entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma espcie de console, colocada esquerda, onde pousavam dois jar- ros com flores artificiais.De onde em onde zunia o falsete do amanuense: Quadra! Ou caoava: Os anos de Cristo!... Os culos do Padre Eterno!Risadinhas explodiam a espaos, gostosas, indis- cretas uma pilhria ricocheteava nos quatro ngulos da mesa. boa! boa! fazia Joo da Mata erguendo a cabea, mostrando a dentua.Depois voltava o silncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os nmeros solenemente. Vspora! saltou de repente um rapazola de cu- los, bigodinho fino, flor na botoeira do fraque de casi- mira clara.Toda gente o conhecia era o Zuza, quintanista de direito, filho do coronel Souza Nunes. Podem conferir, disse erguendo-se, risonho se- gunda linha.E estendeu o brao, passando o carto para o amanuense. No desmarquem, no desmarquem, recomen- dou este espalmando a mo. Pode ter sido engano. Errare humanum est...Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroos rolando sobre a mesa com um surdo rudo de contas desfiadas. Todos desfizeram as marcaes. 12. Numa das extremidades sentava-se Joo da Mata, de palet de fazenda parda sobre a camisa de meia, costas para a rua. direita mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida num casaco frouxo de rendas, cabe- lo penteado em coc, estampa insinuante, bons dentes: era a mulher do amanuense, que passava por sua legti- ma esposa no obstante as insinuaes malvolas da alcovitice vil que entrevira escndalos na vida priva- da de D. Terezinha. Contudo, era tida em conta de ex- celente dona-de-casa, honesta, dizendo-se relacionada com as principais famlias de Fortaleza.Ningum ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilhria calculada. Inventava-se cal- nias do populacho que se correspondia ocultamente com o presidente da provncia. Ela, porm, gabava, batendo no peito com orgulho, que tinha uma vida lim- pa, graas a Deus; que isso de patifarias no lhe entra- va em casa, no, mas era o mesmo. Estava ali o Janjo que no a deixava mentir.Ao p de D. Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de Joo, uma rapariga muito nova, com um belo arzinho de novia, morena-clara, olhos cor de azeitonas, carnes rijas, e cuja ateno volvia-se insis- tentemente para o Zuza.As outras pessoas eram tambm da intimidade: o Loureiro, guarda-livros da firma Carvalho Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a Ldia Campelo, filha da viva Campelo, e o estudante. s vezes ia mais gente e o vspora prolongava-se at meia- noite. 13. Joo da Mata era um sujeito esgrouvinhado, es- guio e alto, caro magro de tsico, com uma cor hepti- ca denunciando vcios de sangue, pouco cabelo, cu- los escuros atravs dos quais boliam dois olhos midos e vesgos. Usava pra e bigode ralo caindo sobre os bei- os, tesos como fios de arame; a testa ampla confun- dia-se com a meia calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado, gesticulando bruscamente, e, quando ria, punha em evidncia a medonha dentua postia. Noutros tempos fora mestre-escola no serto da provncia, de onde se mudara para a capital por con- venincias particulares. Era ento simplesmente o pro- fessor Gadelha, o terror dos estudantes de gramtica. O serto foi-lhe aborrecendo; estava cansado de ensi- nar a meninos, era preciso fazer pela vida noutro meio mais vasto onde as suas qualidades, boas ou ms, fos- sem aquilatadas com justia. Estava perdendo-se, inu- tilizando-se e fossilizando-se, por assim dizer, entre um vigrio seboso e pernstico e um delegado de polcia ignorante: No era um guia, um Ablio Borges, um Macedo... mas reconhecia que tambm no era burro. At podia fazer figura em Fortaleza.E abalou com tanta felicidade que no tardou ser nomeado comissrio de socorros ao tempo da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada capital. Desde logo tornou-se conhecido, suas faanhas corri- am impressas nos pasquins domingueiros. De uma fei- ta escapou milagrosamente de ser preso por crime de defloramento numa menor, criada do Dr. Moraes e Sil- va; de outra feita apanhou de rebenque na cara por ha- ver caluniado um capito de infantaria propalando uma 14. infmia. Toda a gente o conhecia muitssimo bem, por sinal tinha uma cicatriz oblonga e funda na tmpora esquerda, e no largava o mau vezo de roer o canto das unhas.Depois da seca entregou-se de corpo e alma pol- cia, intriguinha partidria, rabulice, cabala eleito- ral, chicana. Toda a vez que se anunciava um pleito, punha em jogo as mil e uma sutilezas que s o seu esp- rito sagaz podia conceber. Ningum como ele sabia copiar uma chapa em letra firme e aprumada. Aquilo a pena cantava no papel que nem o lpis de um taqugrafo. E que letra, que esplndido talhe! Dir-se-ia traada a nanquim, delicadamente, com a pacincia de um chi- ns. Ningum como ele sabia tirar proveito duma vit- ria alcanada pelo partido. Discutia, falava alto, berra- va... impunha-se! Extraordinrio homem! diziam os chefes polti- cos; destes que ns precisamos, destes que precisa o partido.Mas Joo sabia vender caro seu peixe. Fazia pol- tica por uma espcie de ambio egosta, visando sem- pre tirar resultados positivos de suas artimanhas, em- bora com prejuzo de algum.Dinheiro o que ele queria, no lhe fossem falar em poltica sem interesse pessoal. Histrias, homem, histrias! Isso de patriotis- mo uma patranha, um rtulo falso! O que se quer dinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual ptria, qual nada! Patacoadas! Ele, Joo, trabalhava, l isso era inegvel: dava o seu voto, cabalava, servia de tes- ta-de-ferro, mas... tivessem pacincia era mo pra l 15. mo para c... Porque argumentava a poltica uma especulao torpe como outra qualquer, como a de com- prar e vender couros de bode na praia, a mesmssima coisa; pois no ? Pra tudo preciso jeito, muito jeiti- nho...Agora, porm, andava meio retrado, dava o seu voto, calado, e passe muito bem! A poltica s lhe trouxera desenganos e inimigos. No estava mais para servir de degrau a figuro algum. Que se fomentassem! boa! Trabalhara que nem besta de carga para no fim de contas ganhar o qu? Um pingue lugar de amanuense? Um miservel emprego que se anda ofere- cendo a a qualquer vagabundo? Decididamente no o pilhavam mais para a canga... Estava experimentado, meus senhores, experimentadssimo.E agora, com efeito, ningum o via mais nas reda- es, entre os jornalistas da terra, a esbravejar contra os adversrios, nem nos cafs, quanto mais em dia de eleio, sentado, como dantes, na sua cadeira de mesrio, carrancudo, circunspecto, a contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente ou- tro: amigo de casa, vivendo para si, com poucas amiza- des, metdico, econmico, s voltas com a sua atrablis crnica, sem ambies, sem dvidas.A sua grande paixo, o seu fraco era a Maria do Carmo, a menina de seus olhos, a afilhadinha; queria um bem extraordinrio rapariga e tratava-a com um carinho lnguido de amante apaixonado no supremo grau do amor incondicional. Criara-a desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia mesmo beij-la sem malcia, j se deixa ver nas faces, 16. na testa, nos braos e at, por que no? na boca.s vezes, quando Maria voltava da Escola Nor- mal, ele mandava-a sentar-se na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros e l ia, sem fazer beio, deitar-se com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone passado a ferro pela manh. Obe- decia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavra spera; ao contrrio, eram carinhos, cafuns no alto da cabea, ccegas, histrias de alma do outro mundo e gracinhas para ele rir... Tinha sempre um sorriso fresco e luminoso para o seu padrinho. E Joo da Mata sentia um bem-estar incomparvel, uma delcia, um gozo ine- fvel ante aquele esplndido tipo de cearense morena, olhos cor de azeitona onde boiava uma nvoa de inge- nuidade, cabelos compridos descendo at a altura dos quadris, desmanchando-se em ondas de seda finssima... Quantas vezes, quantas! punha-se, por trs dos gran- des culos escuros, a olh-la como um pateta, sem que ela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio de desejo!Maria estava-se pondo moa, entrava nos seus quin- ze anos, e o padrinho a ador-la cada vez mais!Joo comeou a enquizilar-se com as freqentes visitas do Zuza. Por fim notara certas tendncias do estudante para a pequena, certo quebrar de olhos, uma como insistncia atrevida em dizer as coisas por met- foras... Isso o incomodava, punha-lhe pruridos na cal- va, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro no havia risco, o guarda-livros estava para casar com a Campelinho, era um rapaz srio. Mas o senhor Zuza?... Ali andava namoro, apostava. Tinha idia de ter lido na Provncia 17. uns versos dedicados a M. C. e assinados por Z.*** Naquela noite, sobretudo, pareceu-lhe ver o mariola passar uma carta, um papel a Maria. Boas! Era preciso pr um termo ao descaramento, sob pena de ele, Joo, desmoralizar-se no conceito da gente sria. L por ser filho do Sr. coronel no fosse pensar que faria o que entendesse. Alto l! Tudo, menos patifaria dentro de sua casa. E, enquanto ia enchendo os cartes automaticamen- te sem olhar para os nmeros, pensava em Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias do bigodao. Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, verme- lho do calor da luz, gritou vspora! numa voz triun- fante e clara, Joo esteve quase atirando-lhe com o car- to. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de dar escndalo, trmulo, nervoso, a semicalva reluzente de suor. Sim senhor, disse secamente devolvendo o car- to. Vamos ltima... E o jogo continuou. Fez-se novo silncio. Agora era o Zuza, o futuro bacharel que cantava pausadamen- te, tirando as pedras com a ponta dos dedos e colocan- do-as devagar, cauteloso. Davam nove horas na S quando todos se ergue- ram. A Campelinho suplicou mais uma partida, o Lou- reiro tambm foi de opinio que se jogasse ainda uma vez, todos, enfim, desejavam continuar, mas Joo da Mata ops-se tenazmente: que era tarde, tinha muito que escrever. Uma s, meu padrinho, rogou Maria do Carmo tomando-lhe as duas mos e fitando-o com os seus 18. magnficos olhos cor de azeitona.O amanuense estremeceu. Agora era a prpria afi- lhada, a Sra. D. Maria do Carmo que lhe pedia com um sorriso extraordinrio que jogassem! E na sua imagi- nao acentuava-se a suspeita do namoro com o estu- dante.Curvou-se e proferiu um palavro ao ouvido da rapariga. Estava desesperado, no se continha. No senhora, por hoje basta de vspora!Todos admiraram a sbita mudana na sua fisionomia a princpio to alegre.A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, acotove- lou o marido e despediu-se at a primeira vista.Zuza foi o ltimo a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido de ternura.A noite estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular, altas, minsculas como cabeas de alfinetes em papel de seda escuro. Ouvia-se distintamente, como por um tubo acstico, a toada dos soldados rezando Virgem da Conceio, no quartel de linha e o marulhar da praia, distante. A rua do Tri- lho, deserta, com a sua iluminao incompleta, naque- les confins da cidade, parecia um tnel subterrneo. Fazia medo transitar ali a desoras.Assim que se foram os habitus do vspora, Joo da Mata desabafou: Uma patifaria! O Sr. Zuza pre- tendia sem dvida abusar da sua confiana, plantar a desordem no seio da famlia, mas estava muito engana- do. Ali era casa de gente pobre e honesta. Estava muito enganadinho, seu pelintra! Mas eu sei quem a culpada, acrescentou furi- 19. oso, a culpada a Sra. D. Maria do Carmo, porque se atreve a olhar para ele!Aquilo no podia continuar, o Sr. Zuza no lhe punha mais os ps em casa sob pretexto algum. No se portava srio? Pois ento fora! pra rua!Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Ldia vinha namorar o outro s suas barbas; j uma vez cara-lhe porta dentro uma imundcie de carta an- nima denunciando certos abusos...E colrico, soprando o bigode, sacudindo os bra- os, esmurrando a mesa, berrava, com os olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha.Maria desaparecera pelo corredor e chorava debruada sobre a mesa de jantar, onde ardia uma vela de carnaba. Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele que no tem mais do que enfronhar-se num fato de casimi- ra clara, com uma flor no peito, com modos de safardana, e zs! plantar-se na pequena, mas est muito enganado! Aqui estou eu (e batia com fora no peito ossudo) para impedir escndalos em minha casa!Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que no desse escndalo, que fosse dormir As paredes tm ouvidos, dizia ela dentro da alcova. O moo era filho de gente grada, e ele, Janjo, um simples empregado pblico. Tivesse modos. Se houvesse m inteno por parte do Zuza, ela, Tet, seria a primeira a no consen- tir que ele pisasse o cho de sua casa. Mas, no senhor, a gente deve pensar antes de fazer as coisas. Pra que todo aquele espalhafato, por que semelhante barulho?Joo da Mata, porm, estava fora de si, tinha a ca- 20. bea a arder como uma brasa. Seu temperamento ex- cessivamente irritvel expandia-se com desespero ao mesmo tempo que seu corao de homem gasto sentia pela primeira vez um quer que era, uma agonia, uma sufocao ante a possibilidade de um namoro entre o estudante e a afilhada. No era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a rapariga desonrando-a e atirando-a por a ao desprezo; era como revolta do ins- tinto, uma espcie de egosmo animal que o torturava, acendendo-lhe todas as cleras, dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua, exclusivamente sua por direito inalienvel. Via-a cada pelo acadmico, toda voltada para ele, amando-o talvez, preferindo-o a to- dos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria dele, Joo, depois? Nem mais uma beijoca na boqui- nha rubra e pequenina, nem mais um abrao ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor; nem mais uns cafuns, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o padrinho... Isto que o deses- perava!Desde a sada de Maria do colgio das Irms de Caridade tinha se operado uma mudana admirvel nos hbitos de Joo da Mata. Ela j no era para ele como uma filha; estava quase moa, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes. J no era, que esperana! aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceio, toda santidade, magrinha, com uma cor esbranquiada e mrbida de cera velha, o olhar macilento, a falar sem- pre no padre Reitor e na Superiora e na Irm Filomena e noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tem- po. Quando ia passar o domingo em casa, uma vez no 21. ms, metia-se para os fundos do quintal ou pelas camarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a Imita- o; no chegava janela, no aparecia s visitas, doi- da por voltar ao colgio. Aquilo punha o padrinho de mau humor. Uma coisa assim fazia at vergonha a ele, que detestava tudo quanto cheirasse a sacristia. Porque Joo da Mata dizia-se pensador livre; no acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinio, era uma espcie de mito, uma como legenda mstica sem utilidade prtica. Isso de colgios internos guisa de conventos no se acomodava com o seu tempera- mento. Tambm fora professor, ol! e sabia muito bem o que isso era um coito de patifarias. Queria a educa- o como nos colgios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se fsica e moralmente como a rapaziada de calas, com uma ra- pidez admirvel, tornando-se por fim excelentes mes de famlia, perfeitas donas-de-casa, sem a interveno inquisitorial da Irm de Caridade. No compreendia (tacanhez de esprito embora) como pudesse instruir- se na prtica indispensvel da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silncio e na sensaboria de uma casa conventual, entre paredes sombrias, com quadros alegricos das almas do purgatrio e das pe- nas do inferno; com o mais lamentvel desprezo de to- das as prescries higinicas, sem ar nem luz, rezando noite e dia ora pro nobis, ora pro nobis... Era da opi- nio do Jos Pereira da Provncia: Irms de Caridade foram feitas para hospitais. O diabo que no Cear no havia colgios srios. A instruo pblica estava redu- zida a meia dzia de conventilhos: uma calamidade pior 22. que a seca. O menino ou menina saa da escola saben- do menos que dantes e mais instrudo em hbitos ver- gonhosos. As melhores famlias sacudiam as filhas na Imaculada Conceio como nico recurso para no v- las completamente ignorantes e pervertidas. Afinal, para no contrariar o Mendona que queria a filha para san- ta, metera Maria do Carmo no convento.D. Terezinha participava das mesmas idias do Janjo: Uma menina inteligente como Maria devia edu- car-se no Rio de Janeiro ou num colgio particular, mas um colgio onde ela pudesse aprender o traquejo soci- al. Pode ser que as Irms sejam umas mulheres virtuosssimas e castas, mas filha sua no punha os ps em colgio de freiras...Joo da Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o cnego Feitosa, porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele en- tendia que deviam ser todos os padres: asseado, inimi- go da batina, com afilhadas em casa... E por que no? Os padres so fisicamente (e sublinhava a palavra), anatomicamente, fisiologicamente homens como os outros: tm corao, rgos sexuais, nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmssimo direito de procriao, direito natural e at consagrado pela Escritura. O contrrio contrafazer a natureza humana que, afinal, no obedece a preceitos de casti- dade. Da, conclua Joo, da o desregramento das clas- ses religiosas condenadas a eterno celibato. O prprio Cristo dissera numa parbola cheia de senso e de expe- rincia: Crescei e multiplicai-vos.Por amor de Deus no lhe falassem em padres. A 23. educao moderna, a educao livre, sem interveno da batina eis o que ele queria e apregoava alto e bom som.Havia meses que Maria do Carmo cursava a Esco- la Normal. Sua vida traduzia-se em ler romances que pedia emprestados a Ldia, toda preocupada com bai- les, passeios, modas e tutti quanti... Ia Escola todos os dias vestidinha com simplicidade, muito limpa, man- gas curtas evidenciando o meio-brao moreno e rolio, em cabelo, o guarda-sol de seda na mo, por ali afora toque, toque, toque at praa do Patrocnio, como uma grande senhora independente.Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de figurar em qualquer salo aristocrtico.A fama da normalista encheu depressa toda a capi- tal. No se compreendia como uma simples retirante sada h pouco das Irms de Caridade fosse to bem- feita de corpo, to desenvolta e insinuante. As outras normalistas tinham-lhe inveja e faziam-lhe pirraas. Nas reunies do Club Iracema era ela a preferida dos rapa- zes, todos a procuravam.Joo da Mata inflava. Certo no a entregaria por preo algum a qualquer rapazola como o filho do coro- nel Souza Nunes.Entretanto, o Zuza era um rapaz da moda. Monta- va a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta Jurdica, freqentava o palcio do presidente...Joo conhecera-o uma noite no baile do Dr. Cas- tro. Havia meses que se achava em Fortaleza estudan- do o quinto ano de direito e gozando a sua fama de 24. rapaz rico. s seis horas da tarde j l estava ele, no Trilho, em casa do amanuense, queixando-se da mono- tonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo, a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode gozar. Muito progresso, muito divertimento: cor- ridas de cavalos, uma sociedade papa-fina muitssimo bem-educada, magnficos arrabaldes, certo bom gosto nas toaletes, nos costumes, certas comodidades que ain- da no havia no Cear... Ao que parece o Sr. Zuza no gosta do Cear... disse-lhe um dia D. Terezinha. Absolutamente no, minha senhora. Sou meio exigente em matria de civilizao; isto me parece ain- da uma terra de bugres... De bugres?! ...Sim, uma terra em que s se fala nas secas e no preo da carne verde. V. Ex compreende, no pode corresponder expectativa de um rapaz de certa or- dem, por assim dizer educado na Veneza Americana... Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus conterrneos, os seus parentes... Absolutamente no.O que dizia que o Recife est num plano muito superior a Fortaleza. Apenas estabelecia um paralelo.Joo da Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo. No, o Sr. Zuza no lhe punha mais os ps em casa por forma alguma! bradava naquela noite.Maria continuava a chorar l dentro, na sala de jan- tar, inconsolvel, triste, com um grande desgosto na alma. De repente ouviu a voz do padrinho que a cha- mava. Ergueu-se com um movimento brusco e rpido, 25. o leno nos olhos, soluando devagar.Joo quis saber onde estava a carta que o Zuza lhe havia entregue. Botasse-a pra ali, j!Trmula, abafando a clera que lhe oprimia a res- pirao, Maria no podia falar. Vamos, vamos! No tenho carta alguma, disse num acento do- loroso.Joo da Mata sentiu atear-se-lhe o fogo da concu- piscncia. Teve mpetos de tomar entre as mos a cabe- a da afilhada e beij-la, beij-la sofregamente, com a fria de um selvagem, no pescoo, na boca, nos olhos... mpetos de beij-la toda inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana. Ento aquele bandido no lhe entregou uma carta por debaixo da mesa, no vspora? Entregou, sim senhora, d-ma! No senhor, no me entregou coisa alguma, tor- nou a normalista, sem levantar a cabea fungando.Estavam em frente um do outro, ao p da mesa. As portas da sala j se tinham fechado; ele com o palet aberto mostrando a camisa de meia cor de carne, o olhar fixo em Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita, cabelos penteados numa trana, acaapada, submissa ante a clera rude do padrinho. Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tome sentido: vossemec no me aparece mais quele cabro- cha, est ouvindo?E depois duma pausa, com ternura: V dormir, ande...Soprou o gs e foi deitar-se com a mulher, na 26. alcova. Pois no achas, Tet, dizia ele em camisa de dormir, aconchegado D. Terezinha, na larga cama de jacarand: no achas que um desaforo aquele patife vir nossa casa para namorar? No, que tolice! O Zuza at um rapaz srio... Vem, coitado, porque nos estima... boa! fez Joo. Ento vem porque nos estima, hein? Esta c me fica, Sra. D. Tet, esta c me fica! Homem, trate das suas hemorridas que me- lhor... Ora, sabe que mais? Voc outra!E deram-se as costas fazendo ranger a cama.Com pouco ambos roncavam no discreto silncio da alcova.Sobre a cmoda, ao p do oratrio, ardia uma lamparina de azeite. 27. IIFoi numa tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capito Bernardino de Mendona che- gou a Fortaleza, pela estrada nova de Mecejana, depois de penosssima viagem.A seca dizimava populaes inteiras no serto. Famlias sucumbiam de fome e de peste, castigadas por um sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando os esqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no areal incandescente dos caminhos abantesmas da desgraa gemendo preces ao Deus dos cristos, numa voz rouquenha, quase soluada. Era um horror de misrias e aflies.Bernardino de Mendona foi dos ltimos que aba- laram do interior da provncia para o litoral na pista de socorros pblicos. Totalmente desiludido, quase arrui- nado, vendo todos os dias passarem por sua porta, em Campo Alegre, magotes de emigrantes andrajosos que batiam do serto num xodo pungente, acossados pela necessidade, resolvera tambm ir-se com a famlia para Fortaleza, embora mais tarde fosse obrigado a procu- rar outros climas.Era homem sadio, vigoroso, excessivamente tra- balhador e dedicado. Contava a esse tempo quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, ga- bando o peito rijo, no se trocar por muito rapazola pimpo que a vive nas cidades grandes caindo de t- dio e preguia, cheio de vcios secretos. Corria-lhe nas veias largas e azuis de matuto inteligente, puro e abun- 28. dante sangue portugus. Nunca sofrera a mais leve dor de cabea. Conhecia a sfilis por ouvir falar. Casara muito moo, imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eullia de Mendona Furtado, de uma famlia de Furtados da Telha. At ento s tive- ra trs filhos, um dos quais, o mais velho, chamado Loureno, fora recrutado para o exrcito por peralta incorrigvel. Outro, o Casimiro, mais rude e tambm mais obediente, vivia com os pais, era mesmo o va- queiro de Mendona que descobrira nele especial vo- cao para esse inglrio trabalho de andar atrs das boiadas ec! ec! metido em couros, chapinhando audes e lagoas, galopando brida solta nas vrzeas, ao ar fresco das manhs do norte, identificado, por as- sim dizer, com o mugir nostlgico e penoso do gado. Desde menino, o pai acostumara-o vida alegre do campo, e agora a vinha tambm, Deus o sabe, triste e apreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedrs chouto, escanchado entre dois grandes alforjes de fa- rinha e carne salgada.Por ltimo nascera Maria do Carmo, o ltimo filho de Mendona, a caula. Em 1877 completava seis anos, e, para felicidade dos pais, era uma criana verdadeira- mente encantadora, com seu arzinho ingnuo e meigo de sertaneja. A cor, os olhos, os dentes, o cabelo tudo nela era um encanto: olhos puxando para negros, den- tes miudinhos e de uma brancura de algodo em rama, cabelos negros e luzidios como a asa da grana more- na-clara. Crescia sem outra educao a no ser a que lhe davam os pais, de modo que, naquela idade, mal soletrava a Doutrina Crist. 29. Mendona abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido as esperanas de inverno segu- ro, depois de ter visto estrebuchar a ltima rs no solo duro e estril.Todas as tardes, invariavelmente, da janela que di- zia para o poente, ou em p na varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o cu de um azul difano de safira, procurando bispar na inclemncia da atmosfera imvel a sombra fresca de uma nuvem, um indcio qualquer de chuva.Surpreendia s vezes, crivando a transparncia do ar, revoadas de aves de arribao. Recolhia-se anima- do. Mas os dias passavam quentes e secos.Outras vezes, noitinha, clares rpidos e lvidos abriam-se no poente como reflexos de luz eltrica; ou- via-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendona pu- nha-se a escutar calado, sentia um como arrepio bom, e l tornava a iludir-se alimentando, toda uma noite, a doce esperana de ver pela manh o solo mido e a rama brotando verde e pujante da fornalha. Mas qual! As manhs sucediam-se cada vez mais tpidas, sem pingo de gua, uma aragem leve, de cemitrio, arrepi- ando a folhagem do arvoredo. Um cu muito alto, var- rido, montono, indecifrvel como um dogma.E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuan- do forte no esprito do sertanejo, como as vibraes de um clarim que d sinal de marcha; pouco a pouco foi- se convencendo de que aquilo era uma situao impos- svel em que ele no devia absolutamente permanecer.Os audes estorricavam mostrando os leitos greta- dos pelo sol, duros como pedra; juritis encandeadas iam 30. espapaar ofegantes no cho, defronte da casa, casca- vis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisveis, e todas as coisas tinham um aspecto desolado e lgubre que se comunicava s criaturas.Passava gente todo santo dia, a p, de trouxa ao ombro, arrastando-se pesadamente.Uma vez ele prprio, Mendona, vira de perto a agonia lenta de uma mulher asfixiada pela elefantase pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado horr- vel!Decididamente era tempo de arrumar tambm os seus cacos e adeus Campo Alegre, adeus carnaubais rumorejantes, adeus igrejinha branca! Ir-se-ia fazer pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente contava amigos polticos, correligionrios dedicados que certamente lhe no recusariam uma acha de lenha, um pouco de gua fresca, um punhado de farinha... Demais era homem, graas a Deus, forte como novi- lho, tinha sangue nas veias trabalharia!Ao mesmo tempo lembrava-se da sua velha, da Eullia, que andava adoentada, com umas pontadas no corao, muito fraca e cuja natureza talvez no resis- tisse s fadigas duma viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha querida, a menina de seus olhos, to nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores da seca, nas febres de mau carter, na quase absoluta falta de gua, com um desalento a aniquilar-lhe as foras, a dobrar-lhe a altivez de forte. Depois tornava ao mesmo rio de idias: no, aquele inferno do serto, com um raio de tempo medonho seria talvez pior, seria a sua desgraa. De si para si media, calculava, meticulosa- 31. mente, toda a gravidade da situao a que chegara. No havia outro recurso, outro jeito seno marchar para a capital, para onde quer que fosse, como tantos outros infelizes empolgados pela misria. Iria, que remdio? bater porta de um amigo, de um correligionrio, de um cristo. Lembrou-se ento do compadre Joo da Mata, padrinho de Maria.Muito bem: iria ao compadre.Arribaram de manh, muito cedo, ao romper da alva. Os cavalos, magros e ruins, romperam num trote mido. Ao passarem defronte da igrejinha do povoado, um pobre nicho todo fechado, com as suas janelinhas por pintar, solitrio como uma coisa intil, D. Eullia ciciou uma orao, e os outros, Mendona e Casimiro, descobriram-se com respeito.Havia oito anos que isto fora...Enfiaram por uma estrada de areia que se prolon- gava indefinidamente, torcendo e retorcendo-se em zi- guezagues, ocultando-se aqui para brilhar l adiante, por cima da floresta imvel, como uma enorme serpen- te amarela dormindo ao sol...As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e a pequena caravana sumia-se na distncia...Ao cabo de doze longos dias em que paravam para repousar sombra de alguma rvore que ainda verde- java ou nalguma palhoa abandonada, avistaram o cam- panrio branco e alegre do Corao de Jesus, direito e esguio como o minarete de um templo muulmano, destacando-se na meia sombra crepuscular, esbatido pela irradiao do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta. 32. Morria no ar calmo o dobre melanclico de um sino...Flutuava um cheiro vago de coisas podres. Para as bandas do Paje ardiam restos de fogueiras a extingui- rem-se.Uma tarde infinitamente calma, essa...Havia oito anos que isto fora, mas nos seus mo- mentos de desnimo, Maria do Carmo punha-se a relembrar toda essa tragdia de sua infncia. Olhava para o passado com a alma cheia de saudade, recordan- do, tintim por tintim, como se estivesse lendo num li- vro, ninharias, minudncias de sua vida naqueles tem- pos em que ela, pobre e matutinha, via tudo cor-de- rosa atravs do prisma lmpido e imaculado de sua me- ninice. Transportava-se, num vo da imaginao, a Campo Alegre, e via-se, como por um culos de ver ao longe, ao lado da mame, costurando quieta ou sole- trando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim, muito limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigrio. Lembrava-se do papai quando voltava do roado, de camisa e ceroula, chapu de palha de carnaba, tostado, trigueiro do sol, contando histrias de onas e maracajs...Recapitulava, mentalmente, com uma preciso cro- nolgica, toda a sua vida e ficava horas e horas em cis- ma, a pensar, a pensar como se tivesse perdido o juzo...Nas Irms de Caridade que lhe sobrava tempo para isso. Vinham-lhe mente os episdios da viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao p duma rvore, faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho que cantava na estrada sem 33. ter o que comer...Nunca mais lhe sara da cabea um retirante que ela vira estendido no meio do caminho, sobre o areal quente, ao meio-dia em ponto, morto, e completamen- te nu, com os olhos j comidos pelos urubus, os intesti- nos fora, devorados pelas varejeiras... Que feio aquilo!No era m, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, no era, mas se fosse possvel tornar a ser criana, renascer e viver outra vez em Campo Alegre...No dia seguinte ao da chegada capital, D. Eullia morrera duma sncope cardaca. Maria lembrava-se muito bem; a mame fora para o cemitrio na padiola da Santa Casa de Misericrdia, toda de preto... Parecia v-la ainda, com os olhos fundos, entreabertos, mos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife...Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada de anjos com um manto azul recama- do de estrelas, subindo para o cu... Por sinal acordou sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo- se toda na rede, fria de medo.Dias depois Mendona embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a Joo da Mata desejos de ir tentar fortuna onde quer que fosse. No podia continuar no Cear, vivo e ocioso, de bra- os cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, deci- didamente no podia continuar. Mas, havia uma difi- culdade a Maria. Se o compadre quisesse tomar a me- nina, encarregar-se de sua educao, mediante uma mesada, um pequeno auxlio...O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente 34. para o norte. A vida no Cear no valia coisssima al- guma. O Par, sim, aquilo que terra de fartura e de dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com um pouco de experincia, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os serin- gais? eram uma mina da Califrnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mo no bolso e cabea erguida. E o Cear? Fome e misria somente. Num ms morriam trs mil pessoas, eram mortos a dar com o p, morria gente at defronte do palcio do governo, uma lstima!E acrescentou que o Cear era boa terra para os polticos e ricaos, que o pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas de honradez era sempre o pobre, maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o indivduo mais ou menos endinheirado podia contar amplamente, largamente (e abria os bra- os) com a simpatia geral: tinha ingresso em todos os sales, em toda a parte, at no santurio da famlia fos- se ele, embora, um patife, um grandssimo canalha. Usava chapu alto e gravata branca? Tinha um ttulo de bacharel? No fizesse cerimnia, podia entrar onde quisesse Uma terra de famintos, seu compadre! Fome, misria e patifaria era o que se via. Com a Ma- ria do Carmo no tivesse cuidado; ele, Joo da Mata, havia de trat-la como filha, no lhe faltaria nada; teria para ela todas as carcias, todos os afagos de um pai. Mendona podia mesmo demorar o tempo que quises- se no Par, anos, sculos... a menina ficava em casa de gente sria, pobre, verdade, mas honrada.Da a dias, um domingo de muito sol e muito ven- 35. to, realizou-se o embarque do capito Mendona e do Casimiro.Os conselhos de Joo calaram poderosamente no nimo forte e resoluto do sertanejo cuja confiana no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quase todo o Cear, estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe muito o corao generoso e democrata, por tal forma que Joo se lhe afigurou o nico homem capaz de concorrer para a felicidade de sua filha refle- xes nascidas de boa-f e da experincia da vida soci- al, que enchiam de ntima e doce consolao a alma ingnua e simples do sertanejo.Mendona conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens capital tinham sido rarssimas; viera vezes contadas a negcio. Sabia os homens propensos ao mal, por mais duma vez ele prprio fora vtima da ingratido de indivduos que se diziam seus amigos e a quem fizera grandes benefcios; porm, a vida ruidosa e dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vcios inconfessveis, esse tropel de paixes desencontradas, isso que constitui, por as- sim dizer, a maior felicidade do gnero humano, esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse cortio de vespas que se denomina sociedade, desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. L, no seu tranqilo recanto de Campo Alegre, onde s de longe em longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falar em mulheres que traam os maridos, filhos que assassi- navam os pais, incestos de irmos, homens que negoci- avam com a prpria honra... e tudo isso parecia-lhe sim- ples inveno das gazetas, romances de sensao que 36. ele ruminava devagar e esquecia depressa. uma grande alma aquele Mendona! admira- vam os amigos.E era-o.Resolvera como que recomear a vida, esquecer o passado, recuperar o tempo perdido, trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas as suas foras, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Par.E l se fora barra fora, mais o Casimiro, na proa dum vapor brasileiro, honrado e obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer pela vida at... sabiam l!...Antes de embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peas de chita, rendas, fitas, bugigan- gas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maleta americana. Chamou-a parte, beijou-a na testa e disse- lhe com os olhos cheios dgua e a voz trmula que o papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse boa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudas- se muito, porque era feio uma mulher ignorante, e, fi- nalmente, que no esquecesse de rezar por alma da mame...Maria lembrava-se de tudo.Depois ela ficara sozinha em companhia dos pa- drinhos.Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a me, morrera-lhe o pai duma febre, no alto Purus. O Casimiro ningum dava notcia dele, nunca mais voltara... O Loureno, esse ela no conhecia andava no sul feito soldado. Estava s, por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia 37. dizer que no tinha tristezas, uma ou outra vez que se punha a pensar no passado.Depois que sara da Imaculada Conceio a vida no lhe era de todo m. Ora estava no piano, ensaiando trechos de msica em voga, ora saa a passear com a Ldia Campelo, de quem era muito amiga, amiga de escola, ora lia romances... Ultimamente a Ldia dera- lhe a ler O Primo Baslio, recomendando muito cuida- do que era um livro obsceno: lesse escondido e havia de gostar muito. Imagina um sujeito bilontra, uma espcie de Jos Pereira, sabes? o Jos Pereira, da Pro- vncia, sempre muito bem vestido, pastinhas, monculo... No contes, atalhou Maria, tomando o livro quero eu mesma ler... Gostaste? Mas muito! Que linguagem, que observao, que rigor de crtica!... Tem um defeito escabroso demais. Onde foste tu descobrir esta maravilha, criatu- ra? da mame. Vi-o na estante, peguei e li-o.Maria folheou ao acaso aquela obra-prima, disposta a devor-la. E, com efeito, leu-a de fio a pavio, pgina por pgina, linha por linha, palavra por palavra, deva- gar, demoradamente.Uma noite o padrinho quase a surpreende no quar- to, deitada, com o romance aberto, luz duma vela. Porque ela s lia O Primo Baslio noite, no seu miste- rioso quartinho do meio da casa pegado sala de jan- tar.Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa! 38. Toda aquela complicada histria do Paraso!... A pri- meira entrevista de Baslio com Luza causou-lhe uma sensao estranha, uma extraordinria superexcitao nervosa; sentiu um como formigueiro nas pernas, titilaes em certas partes do corpo, prurido no bico dos seios pberes; o corao batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos... Terminou a leitura cansada, como se tivesse acabado de um gozo infini- to... E veio-lhe mente o Zuza: se pudesse ter uma en- trevista com o Zuza e fazer de Luza... At aquela data s lera romances de Jos de Alencar, por uma espcie de bairrismo mal-entendido, e a Conscincia, de Heitor Malot publicada em folhe- tins na Provncia. A leitura do Primo Baslio desper- tou-lhe um interesse extraordinrio Aquilo que um romance. A gente parece que est vendo as coisas, que est sentindo... No compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Ldia; sim, a Campelinho devia saber a histria da champanha passada num beijo para a boca de Luza. Que porcaria! E assim tambm a tal sensao nova que Baslio ensinara amante... no podia ser coisa muito asseada... Terminada a leitura do ltimo captulo, Maria sen- tiu que no fossem dois volumes, trs mesmo, muitos volumes... Gostara imensamente!No dia seguinte, antes de ir Escola Normal, Ma- ria teve uma entrevista secreta com a amiga no quintal da viva Campelo que morava defronte do amanuense. 39. A Campelinho tinha acabado de banhar-se e esta- va arranjando umas flores para a Nossa Senhora do Oratrio. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho, cer- cado de estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjerices ao fundo, perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre o telha- do. O cho mido da chuva que cara noite, porejava uma frescura comunicativa e boa.Ldia estava fresca, de cabelos soltos sobre a to- alha felpuda aberta nos ombros, quando Maria apare- ceu. Boa vida, hein? saudou esta. E logo, triunfante: Acabei o Primo Baslio! Que tal? Magnfico, sublime! Olha, vem c...E dando o brao outra dirigiu-se para o banheiro, uma espcie de arapuca de palha seca de coqueiro, acaapada, medonha, sem a mnima comodidade e para onde se entrava por uma portinhola de tbua mal segu- ra.Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que fora de sabo, nica moblia do banheiro, Maria sacou fora o Primo Baslio, cuidadosamente embrulhado numa folha da Provncia. Queria que a Ldia explicasse uma passagem muito difusa, quase impenetrvel sua inte- ligncia. isto, menina, que eu no pude compreender bem. E, abrindo o livro, leu: ...e ele (Baslio) quis-lhe ensinar ento a verdadeira maneira de beber champa- nha. Talvez ela no soubesse! Como ? perguntou Luza tomando o copo. No com o copo! Horror! 40. Ningum que se preza bebe champanha por um copo. O copo bom para o Colares... Tomou um gole de cham- panha e num beijo passou-o para a boca dela, Luza riu..., etc., etc... Como explicas tu isso? Tola! fez a Campelinho. Uma coisa to simples... Toma-se um gole de champanha ou de outro qualquer lquido, junta-se boca a boca assim... E juntou a ao s palavras. ...e pronto! bebe-se pela boca um do outro. To simples... E que prazer h nisso? Sei l, menina! tornou a outra com um gesto de nojo, cuspindo. Pode l haver gosto...Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, brao a brao, passaram sensao nova.Ldia apressou-se em dizer que as mulheres do mundo que sabem essas coisas... Quanto a ela no conhecia outras sensaes alm dos beijos na boca, s escondidas, fora os abracinhos fortes e demorados, peito a peito, isto mesmo com pessoa do corao... Contou ento que o seu primeiro namorado, um estudante do Liceu, um fedelho, tentara certa vez... Concluiu baixi- nho ao ouvido de Maria, com receio de que algum as estivesse observando. E consentiste? Qual! Dei-lhe com um no na cara, e o tolo nunca mais me fez festa.Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, co- chichando, acotovelando-se, e depressa a conversao tomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o Lourei- 41. ro. A propsito, perguntou Maria curiosa, preten- des mesmo casar com o guarda-livros? Por que no? fez a outra erguendo-se. Muito breve tenho homem! Decididamente este no me esca- pa, tenho-o seguro... Vai todas as noites nossa casa, como vs, est caidinho. A mame j no repara, dei- xa-se ficar com o dela... Com o dela? inquiriu Maria com surpresa, mui- to admirada.Apanhada em flagrante indiscrio, Ldia confes- sou, muito em segredo, que uma noite encontrara D. Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, um negociante... !!!Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espicaava o esprito. Calou-se para no ser indis- creta, e, depois de uma pausa em que folheava maqui- nalmente o romance: Dize uma coisa, Ldia: tu amas deveras o Lou- reiro? Que pergunta, criatura? Certamente que sim. Ele ento tem uma paixa doida por mim! Bebe-me com o olhar e me come de beijos. na boca, no pescoo, na orelha, nos olhos, na nuca... Nunca vi gostar tanto de beijos! E preciso que se note, conhecemo-nos h trs meses! E o teu Zuza?O namoro de Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava no comeo. A falar verdade, ela gostava do Zuza e casaria se ele quisesse, mas at aquela data ainda no se tinham comunicado. Conheciam-se nada 42. mais.Nessas confabulaes ntimas com a amiga, Ma- ria, que comeava a compreender a vida tal como ela na sociedade, fingia-se ingnua, tolinha, expediente que usava sempre que desejava saber a opinio da Ldia sobre isto ou sobre aquilo.A princpio evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra mais livre ou a qualquer fato menos srio que lhe contavam as colegas de estudo. Agora, porm, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar- se dos acontecimentos, sem acanhamento, sem pejo. Pouco a pouco foi perdendo os antigos retraimentos que trouxera da Imaculada Conceio. A convivncia com as outras normalistas transformara-lhe os hbitos e as idias. A Ldia principalmente era a sua confidente mais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola, nos passeios, em toda parte onde se encon- travam, de braos dados, aos cochichos... Havia entre elas um comrcio contnuo de carinhos, de afagos e de segredos. Gabavam-se mutuamente, tinham quase os mesmos hbitos, vestiam-se pelos mesmos moldes, como duas irms.Ldia Campelo tinha ento vinte anos. Era uma ra- pariga alta, fausse-maigre e bem-feita de corpo.A razo por que ainda no se casara ningum ig- norava, toda a gente sabia que a filha da viva Campelo, por via do atavismo, puxava me. No ha- via na cidade rapazola mais ou menos elegante, caixei- ro de loja de modas que no se gabasse de a ter beijado. Tinha fama de grande namoradeira, exmia em negci- os de amor. O prprio Joo da Mata no gostava muito 43. daquela amizade com Maria. Mais de uma vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianas, os seus escrpu- los, os seus receios em relao a essa intimidade da afilhada com a Ldia: No consentisse a rapariga ir casa da outra. Antes prevenir que curar. Havia mesmo quem ousasse afirmar que a Campelinho j no era moa. Da viva diziam-se horrores: aquilo era casa aber- ta... Tantos fossem, quantos ela recebia com risinho sem- vergonha, arregaando os beios. A filha seguia o mes- mo caminho. O certo, porm, que o procedimento de D. Amanda no escandalizava a sociedade. Vivia na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada, sem amigas, num respeitoso isolamento, saindo rua pou- cas vezes em companhia da filha, no freqentando os bailes nem o Passeio Pblico e muito menos as igrejas: vivia a seu modo, comodamente, do minguado montepio de seu defunto marido. Uma mulher honesta! protestava o Loureiro. Infmias era o que se diziam da pobre senhora, infmi- as que caam por terra, ante o indefectvel procedimen- to de D. Amanda! E acrescentava convicto: Tal me, tal filha! 44. IIIO velho mostrador da sala de jantar deu meia-noi- te, uma hora, e Maria do Carmo ainda estava acordada, a pensar no Zuza, arquitetando frases para responder ao futuro bacharel em cincias jurdicas. Porque o es- tudante, como suspeitou o amanuense, achara meio de comunicar-se com a rapariga, atirando-lhe uma cartinha por baixo da mesa, quando jogavam o vspora.Era a primeira vez que o Zuza lhe escrevia numa letra caligrfica, de mulher, miudinha, igual e redonda. Ao apanhar o envelope, com um movimento disfara- do, Maria sentiu o sangue afluir todo para o rosto, como se todo o mundo a tivesse surpreendido em flagrante s barbas do padrinho. Ela mesmo, depois, admirou a sua coragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense, te- mendo-o como a seu pai. No pde reprimir um susto, ficou fria, com os olhos baixos, sem prestar ateno ao jogo. Pareceu-lhe ver atravs dos culos escuros do pa- drinho um lampejo de clera concentrada. Tremia com o papel na mo, sem saber o que fizesse. Mas o vspora continuava animado e ela pde cautelosamente guar- dar o objeto querido, pretextando sede e levantando-se para beber gua no interior da casa. Guardou-o bem guardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler, e voltou imediatamente ao seu lugar com um alvio, muito lpida.Quando o amanuense entrou a esbravejar contra o Zuza, esmurrando a mesa, batendo portas, colrico, medonho, Maria ficou lvida! Ta, ta, ta, ta, ia tudo guas 45. abaixo, o seu crime ia ser descoberto, no havia fugir. Estava irremediavelmente perdida! Enfiou pelo corre- dor com as mos na cabea, aflita. Decididamente o padrinho ia expuls-la de casa... seu primeiro mpeto foi voltar, atirar-se aos ps de Joo da Mata e pedir-lhe, suplicar-lhe por amor de Deus, por quem era que a per- doasse, que fora uma fraqueza, uma criancice... Isto, porm, seria complicar a situao, confessar-se culpa- da, entregar-se clera do amanuense. E ao sentar-se mesa de jantar foi acometida por uma convulso de choro mudo, com a cabea entre as mos, cotovelos fincados na mesa, olhos fixos na luz moribunda da ve- linha de carnaba.O padrinho berrou, jurou acabar com a bandalheira, disse horrores do Zuza, e, afinal, que felicidade para a rapariga! foi se deitar com a mulher. Maria suspirou forte como se lhe tivessem tirado um grande peso do corao; e agora, s no seu quarto, lia e relia a carta do acadmico, muito fresca, sentindo um bem-estar con- fortvel na sua rede de varandas, branca e sarapintada de encarnado.Fazia calor.Maria costumava dormir com a vela acesa, numa palmatria de flandres. Noutro quarto, defronte, ressonava a cozinheira, uma tirando para velha, cha- mada Mariana, e, no corredor, o Sulto abanava as ore- lhas sacudindo as pulgas. De quando em quando havia um barulho de asas na sala de jantar: era a sabi deba- tendo-se na gaiola, assombrada.Agora, sim, Maria estava s, completamente s, podia ler vontade, uma, duas, trs... quantas vezes 46. quisesse, a carta do Zuza. Nada como a noite para os namorados! Era s quando ela gozava a sua liberdade, noite, no seu quarto, em camisa, fazendo o que bem entendesse...Minha senhora, dizia o futuro bacharel, muito res- peitoso. Tomo a liberdade de me dirigir a V. Exa. con- fiado na sua infinita bondade, nessa bondade que se revela em seus esplndidos olhos de madona e na bran- dura meiga de sua voz cujo timbre faz-me lembrar toda a melodia duma harpa elia tangida por mos de serafins... Tomo esta liberdade para dizer-lhe simples- mente que a amo! e que este amor s podia ser inspira- do pela incomparvel luz de seu olhar e pela msica sentimental de sua voz... Amo-a deveras... S me resta esperar que V. Exa. aceite este amor como tributo sin- cero de um corao avassalado por sua beleza encanta- dora, e ento serei o mais feliz dos homens. D. V. Exa. adm. e escravoJos de Souza Nunes"Isto numa letrinha micros- cpica, indecifrvel quase.Maria esteve meditando muito tempo sobre a res- posta que devia dar ao estudante, com os olhos na pa- rede onde esbatia a sombra da rede ao comprido. Para no responder ficava-lhe mal, era uma falta de consi- derao. Devia responder fosse o que fosse. E, nessa dvida, lia e relia a carta numa inquietao que lhe ti- rava o sono. Realmente! comeava cedo a sua carreira amorosa e comeava por um aspirante a bacharel! Se- ria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se sua custa? O Zuza parecia-lhe um bom moo, muito bem- educado, incapaz de seduzir uma rapariga honesta, de 47. costumes irrepreensveis, refratrio a pagodeiras... s vezes, porm, tinha cara de pedante com os seus cu- los de ouro, com a sua flor na botoeira, dizendo que d, d-me voc isto, faa voc aquilo, ora sebo!Maria implicava com certos modos do rapaz. verdade que tinha fortuna, era filho dum homem de bem, dum coronel... Mas...E l vinha o mas, e a dvida no se desfazia.Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha mui- to bem mobiliada, com cortinas de cretone na sala de jantar e um viveiro de pssaros ele, de chambre e gor- ro sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, des- preocupado; ela com um robe-de-chambre todo bran- co, fitinhas na frente de alto a baixo, cabelo solto, a ler o ltimo romance da moda, recostada na espreguia- deira, sem filhos... Que vida!Ao mesmo tempo lembrava-se de que o Zuza po- dia lhe sair um marido muito besta e casmurro, cuidan- do somente da papelada de autos e requerimentos, um advogado com escritrio e tabuleta porta para fazer... nada! Ela, por outro lado, a cuidar dos filhos, muito besuntada, da sala para a cozinha numa azfama de burguesinha reles. Boas!E no assentava idias, a mente que nem um rodo- pio, fantasiando situaes disparatadas, coisas impos- sveis.Leu outra vez a carta, analisando-a palavra por palavra, repetindo as frases meia voz. Aquela lingua- gem alambicada e dengosa quis-lhe parecer tosca de- mais para ter sido do punho dum estudante de direito. Que idiota! pensava; comparar seus olhos com olhos 48. de madona e sua voz com uma harpa elia! E, num arrebatamento, levantou-se e guardou a carta na caixinha de fitas. Qual olhos de madona! Qual har- pa elia, qual nada, seu besta!Da a pouco tambm ressonava com a respirao leve como uma carcia.O dia seguinte era domingo. Todos em casa do amanuense acordaram muito bem-dispostos. Havia missa cantada na S. Espocavam foguetes e repicavam sinos. Meninos apregoavam numa voz cantada a Ma- traca a 40 ris! um jornaleco imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades contra Joo da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia a Matraca, apesar de o padrinho ter proibido ex- pressamente a entrada do pasquim em sua casa. Ali s lhe entrava a Provncia, dissera ele; isso mesmo por- que o Jos Pereira no exigia pagamento de assinatura. O mais era uma scia de papis nojentos que s servi- am para... Maria deu um pulo at a casa da viva Campelo e a pde comprar a Matraca. O padrinho es- tava no banho. O Namoro do Trilho de Ferro! grita- vam os vendedores. Maria teve um palpite. Certo aqui- lo era com ela. Que felicidade o padrinho estar no ba- nho! Pagou ao menino, pedindo-lhe pelo amor de Deus que no gritasse mais o Namoro do Trilho de Ferro. Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia, com efeito, uma piada sobre ela e o Zuza. Mais que depressa cor- reu a mostrar Ldia. Ests vendo, menina? L isto aqui. E apontou com o dedo.Eram uns versos de p de viola que contavam o 49. recente namoro do Zuza: A normalista do Trilho,ex-irm de caridade,est cada pelo filhodum titular da cidade. O rapazola galantee usa flor na botoeira:D. Juan feito estudantea namorar uma freira... Eis por que, caros leitores,eu digo como o Bahia: Falem baixo, minhas flores,Seno... a chibata chia!... ........................................... Ldia achou graa na versalhada. Ela tambm j sara na Matraca. Um desaforo, no achas? perguntou a normalista indignada. Que se h de fazer, minha filha? Ningum est livre destas coisas no Cear moleque. No se pode con- versar com um rapaz, porque no faltam alcoviteiros. Olha, eu aposto em como isto que aqui est saiu da cachola do Guedes. Que Guedes? t feito redator principal da Matraca. 50. E que mal fiz eu a esse Guedes que nem sequer me conhece? Eu te digo. O Guedes andou a querer namorar- me. Chegou a escrever-me uma carta muito errada e piegas, pedindo uma entrevista... Que fiz eu? Ri-me muito das asneiras do bicho, trocei-o a valer e mandei- o pastar bem... Ora, o Guedes sabe que ns somos muito amigas e talvez queira vingar-se indiretamente. A est o que , menina. Manda-o plantar couves e rasga esta baboseira, que isto no vale seno nada. No vale nada, mas toda a gente l e acredita, o que . Sabem l qual a normalista do Trilho!A propsito Maria contou as ocorrncias da vs- pera, a carta do Zuza, a clera do padrinho, muito ve- xada.Estavam janela, em p, frente a frente. D. Amanda andava para os fundos da casa a mourejar. No fim da rua, do lado da Estrada de Ferro, uma locomotiva fazia manobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou at a frente da casa da viva, soltou um guincho rpido e voltou estralejando sobre os trilhos....E os sinos a repicarem na S e girndolas de fo- guetes estourando no ar. Chegavam espaados sons de msica que o vento trazia. No sei se deva responder, disse Maria dando a carta amiga. Ele com certeza vem hoje para o vspora... De forma que tens um compromisso a satisfa- zer... Compromisso? Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a 51. carta, agora responder. Diz-lhe que o amas tambm e que desde j o consideras teu noivo. Nisso de amor quanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o enten- do assim. Queres, eu fao a minuta. Eu, escrever para um homem? Tola! Que crime h nisso? Eles no escrevem para ns? Olha, tolinha, no sejas criana. O homem foi feito para a mulher e a mulher para o homem. Mas... No tem mas nem meio mas. Decide-te a namo- rar o rapaz e deixa-te de meninices. Tu que tens a lucrar. O Zuza tem fortuna, est a formar-se e com mais um ano pode ser teu marido e fazer-te muito feliz.O que que esperas de teu padrinho, um sujeito estpido e usurrio como um urso? J no tens pai nem me e ele j fala em tirar-te da Escola. muito homem para botar-te a cozinhar. No sejas tola!...Ldia interrompeu-se para cumprimentar um cava- leiro que passava. Era o Zuza montado num alazo re- luzente ao sol, de cauda aparada e arreios de prata. O estudante trajava flanela e meias-botas de polimento, chapu castor desabado, uma grande rosa branca no peito, luva, rebenque, muito vistoso com seus culos de ouro e seu bigodinho retorcido para cima.Fazia o costumado passeio matinal e lembrara-se de passar porta do amanuense. Cumprimentou rasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se enver- gonhada atrs do postigo olhando por entre as gretas. Adorvel! fez Ldia. E tu ainda queres mais, hein, minha tola?Como sentia no ser ela a querida do Zuza! Ambos 52. com vinte anos de idade, encarando a vida por um mes- mo prisma: passeios a cavalo, toaletes de vero e de inverno, como nos figurinos, com chcara no Benfica, um faetonte para virem cidade, vacas de leite... Um man!Tinha o seu, o Loureiro, mas o guarda-livros pare- cia-lhe muito casmurro, muito indiferente a essas coi- sas de bom gosto, aos requintes da vida aristocrtica que ela ambicionava tanto. Queria-o mais por um ca- pricho, porque no encontrava outro homem em me- lhores condies que desejasse casar com ela. Sabia de sua m fama e agarrava-se ao Loureiro como a uma tbua de salvao. Tudo menos ficar para tia. Verdade, verdade, o Loureiro no era um sujeito ignorante e po- bre que lhe fizesse vergonha; mas no tinha certo apru- mo, certa elegncia no trajar; aferrava-se cala e ao colete branco, invariavelmente, e ningum o demovia daquele velho hbito. Entretanto possua seu cabedal em casas e aplices da dvida pblica. Ao passo que o outro, o Zuza, sabia empregar seu dinheiro divertindo- se, trajando bem, passeando como um prncipe. Uma simples questo de temperamento. Atira-te, minha tola. Aproveita enquanto o Brs tesoureiro... Que queres tu que eu faa? Escreva logo essa carta e faze como eu: marca o dia do casamento. Assim que se faz. Quem pensa no casa, l diz o ditado, e muito certo.A voz de D. Terezinha chamou a Maria do outro lado da rua. Era hora do almoo. O amanuense estava apressado porque tinha de ir praia, ao embarque do 53. conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio de Janeiro.Joo da Mata almoou s carreiras, como quem vai tomar o trem, e abalou, enfiando-se no inseparvel e j velho chapu-chile.Seriam onze horas pouco mais ou menos. Um mormao de fornalha abafava os transeuntes que des- ciam e subiam a rua de Baixo a p, esbaforidos.No porto havia grande lufa-lufa de gente que em- barcava e desembarcava simultaneamente, bracejando, falando alto. A mar de enchente, crispada pela venta- nia de sudoeste, num contnuo vaivm, alagava o areal seco e faiscante. Gente muita ao embarque do conse- lheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores adu- aneiros de jaqueta azul, guardas de Alfndega e ofici- ais de descarga com ar autoritrio, de fardeta e bon, marinheiros da Capitania, confundiam-se numa promis- cuidade interessante. Jangadeiros, arregaados at aos joelhos, chapu de palha de carnaba, mostrando o peito robusto e cabeludo, iam armando a vela s jangadas. A cada fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoro- o! Jangadas iam e vinham em direo do Nacional, que tombava como um brio, aproado ao vento. Ape- nas quatro navios mercantes fundeados e uma canhoneira argentina. Reluzia em caracteres garrafais, pintadinhos de fresco na popa duma barca italiana Civita Vecchia.O vapor apitou pedindo mala. Era uma maada ir a bordo com a mar cheia e um vento como aquele. De- mais o sol estava de rachar. Um carro parou porta da Escola de Aprendizes marinheiros: era o conselheiro, 54. metido numa sobrecasaca muito comprida, cheia de atenes. J o esperavam os amigos receosos de que o vapor no suspendesse sem o homem. A msica da Polcia, formada porta do quartel, gaguejou o Hino Nacional e o conselheiro, cheio de si, cortejando direita e esquerda, muito ancho, seguiu a tomar o escaler da Alfndega. Plulas! fez Joo da Mata limpando a testa. No vale a pena a gente se sacrificar com um calor deste! L adiante encontrou o Loureiro, que vinha de des- pachar uma fatura no Trapiche, muito apressado com a sua cala branca lustrosa de gomas sem uma dobra. Por ali? verdade, tinha ido a negcio. Que h de novo? tornou o Loureiro. Nada. Vou aqui ao embarque do conselheiro. Hs de ganhar muito com isto... Que queres, filho? A poltica, a poltica... Qual poltica, homem! Com um solo deste no havia quem me fizesse ir a embarque de filho da me nenhum. Uma lufada de poeira redemoinhou a dois passos dos interlocutores derribando bruscamente o chapu do amanuense, pondo-lhe a calva mostra. Com os diabos! vociferou Joo da Mata abai- xando-se mais que depressa para apanhar o seu chile que rodava sobre as abas numa disparada vertiginosa por ali afora. Fiau! fiau! Pega! pega! prorrompeu a garotada numa vaia estrepitosa de gritos e assobios. Canalha! resmungava o homem, enquanto o Loureiro escafedia-se daquela situao grotesca, sacu- 55. dindo com a ponta dos dedos a poeira do palet, muito calmo.O conselheiro tinha chegado ao trapiche com o seu prstito oficioso de amigos.O amanuense encavacou deveras Diabos levem conselheiros e tudo! dizia ele mal-humorado, piscando os olhos desesperadamente por trs dos culos escu- ros, cobrindo a calva com um leno para no constipar. E dali mesmo voltou casa maldizendo-se por haver deixado os seus cmodos por uma estopada intil da- quela.Dava meio-dia. porta do quartel de linha um sol- dado soprava a todo pulmo numa corneta muito bem areada.Joo da Mata caminhava devagar, automtico, como quem vai com uma idia fixa. Que sca! Podia muito bem estar em casa quela hora, metido na sua camisola fresca, de papo para o ar na rede, ao aconche- go morno da afilhada, saboreando-lhe o cheiro bom das carnes; entretanto ali vinha ofegante como um boi e suado como dois burros, todo emporcalhado de poeira, furioso. No lhe contassem para outra. J tinha pensa- do mesmo em abandonar para sempre a poltica. Plu- las! Mal lhe chegava o tempo para pensar na Maria do Carmo, naquela deliciosa boquinha fresca e rosada, boa para a gente levar a vida inteira a beijar...O Zuza tinha-lhe acordado o instinto; receava agora que a menina se deixasse levar pelas gabolices do estu- dante e ento l se iam os seus belos projetos guas abaixo.Nunca se preocupara tanto com Maria do Carmo. 56. Desde que o Zuza comeou a freqentar a rua do Tri- lho no lhe saa mais da cabea a afilhada. A prpria D. Terezinha por vezes tinha estranhado os seus modos para com a menina.Achava a Tet uma mulher gasta: queria uma rapa- riga nova e fresca, cheirando a leite, sem pecados tor- pes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos do amor, ocultamente, sem que ningum soubesse... Esta- va farto do amor conjugal. Nunca experimentara o con- tato aveludado de um corpo de mulher educada, vir- gem das impurezas do sculo. E quem melhor que Maria do Carmo, uma normalista exemplar e recatada, pode- ria satisfazer os caprichos de seu temperamento impe- tuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! no havia entre ele e a menina o menor grau de consanginidade, por- tanto, no podia haver crime nas suas intenes... Se Maria houvesse de cair nas garras de algum bacharelete safado fosse ele, Joo da Mata, o primeiro a abrir cami- nho...Demais, argumentava de si para si, podia arranjar tudo sem que ningum soubesse. O segredo ficaria en- tre ele e a afilhada, inviolvel como a sepultura de um santo.E ia parafusando num meio simples e natural de conquistar o corao de Maria. Toda a questo era de oportunidade.quela hora a normalista arrastava ao piano a val- sa Minha esperana, cuja cadncia punha uma mono- tonia irritante na quietao morna da rua do Trilho. 57. IVO futuro bacharel em leis ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em Fortaleza o filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo largamente a fortuna do pai avaliada em cerca de cem contos de ris. O coronel franqueava a burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente paternal. Que- ria-o assim mesmo, com todas as suas manias aristo- crticas e afidalgadas, com os seus jeitos elegantes, ar- rotando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente da provncia de quem se dizia amigo. Cada qual com seu igual doutrinava o coronel. O que no admitia que o filho se metesse com gente de laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de sua dignidade para tirar o chapu ou apertar a mo a indi- vduos que no tivessem uma posio social definida. Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado desembargador Souza Nunes, homem de costumes se- veros, que sabia dar aos filhos uma educao esmera- da, quase principesca. O Zuza, dizia ele, no era mais do que uma vergntea digna desse belo tronco genealgico dos legtimos Souza Nunes, to nobres quanto respeitados no Cear.Era um orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo, com o presidente, alvo do olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante, em trajes de montaria, roupa de flanela, botas, chapu mole desabado.O Zuza dava-se muito com o presidente que tam- 58. bm pertencia a uma alta linhagem de fidalgos de So Paulo e fora educado na Europa: um rapago alegre, amador de cavalos de raa, ilustrado e amigo de mu- lheres.As revelaes da Matraca sobre o namoro do Tri- lho de Ferro deram que falar cidade inteira. Nas ro- das de calada o fato propalou-se imediatamente gui- sa de escndalo. A princpio ningum sabia ao certo qual era a tal normalista ex-irm de caridade. Que ha- via de ser a Ldia Campelo afirmavam uns. Mas a Campelinho nunca fora religiosa quanto mais freira. Afinal sempre se veio a saber a verdade e espalhou-se logo que a afilhada do Joo da Mata estava com um namoro pulha mais o estudante. No era Ldia mas dava no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma esco- la, eram dignas uma da outra.E toda a gente dizia sua pilhria, atirava seu con- ceito boca pequena, com risadinhas sublinhadas pi- lhrias e conceitos que chegavam at aos ouvidos do coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como ferroadas de maribondos. No era possvel, pensava ele. O Zuza era incapaz de semelhante criancice; um rapaz de certa categoria no se deixa iludir por uma simples normalista sem eira nem ramo de figueira, uma rapariga sem juzo, filha de pais incgnitos, educada em casa dum amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois no viram logo a monstruosidade do absurdo? Era uma ca- lnia levantada a seu filho. Que esta! No faltava mais nada seno ver o nome do rapaz em letra redonda es- tampado na Matraca, um jornaleco imundo como uma cloaca! 59. Morava na rua Formosa, numa casa assobradada e vistosa com frontaria de azulejos, varandas, e dois ana- nases de loua no alto da cimalha, velha moda portu- guesa.O coronel gostava de passar bem, de fazer figura, e, at certo ponto, revelava uma natureza delicada que no era indiferente ao aspecto exterior das coisas; sa- bia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher bric-- bracs. No que respeita a asseio ningum o excedia. Era o que se pode chamar um homem de bons costumes, um pouco orgulhoso e duma susceptibilidade a toda prova em matria de dignidade pessoal: irrepreensvel e caprichoso na intimidade domstica como na vida pblica.Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-velu- do claro com ramagens cinzentas, mobiliada com inexcedvel graa, sem ostentao, sem luxo, mas onde se notava logo certa correo no arranjo dos mveis, na colocao dos quadros, na limpidez dos cristais.Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior da casa, ficava o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual as- sentavam estatuetas de biscuit. direita, descansando sobre grandes pregos dourados, o retrato a leo do co- ronel com a sua barba em ponta, olhava para o piano, muito srio, em simetria com o da esposa.O corredor da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza que ficava esquerda. No falta- va mais nada! repetia mentalmente o coronel, estendi- do na espreguiadeira de lona, pernas tranadas, de- fronte da varanda, aparando as unhas. 60. Em casa usava calas brancas, palet de seda ama- relo e sapatos de entrada baixa com flores no rosto de l.Era hora do almoo, o Zuza no devia tardar. Ia falar-lhe decididamente; aquela histria do namoro no lhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo a estroinice pueril de desfrutar a rapariga.Da a pouco entrou o estudante. Vinha muito jovi- al, cantarolando o Boccio:Se acaso algum de ns tiver por sina atroz mulher que se no cale que a toda hora fale...E repetia muito alegre: Tr l l l... tr l l l... Vens muito alegre, hein, meu filho? interrom- peu o coronel da sala. Zuza tinha entrado para o gabinete e comeava a despir-se. Ah! meu pai estava a? E logo: Trago uma novidade. Vejamos... Vou a Baturit com o presidente. Ainda bem, ainda bem... fez o coronel num tom desusado, sem erguer a cabea. Como ainda bem? inquiriu o estudante aproxi- mando-se. 61. Apenas trocara o fraque por um palet de brim bran- co. Porque... porque... Eu precisava mesmo falar- te. Ora, dize, uma coisa: leste o ltimo nmero da Ma- traca?Zuza franziu os sobrolhos desconfiado, com um risinho seco. No tinha lido a Matraca, no. Um jornaleco imoral que andava por a? No, no tinha lido. Por qu? Que histria uma de namoro no Trilho de Fer- ro? Fala-se em ti, no teu nome, numa normalista...Cresceu o assombro do rapaz. Eu?!... Meu pai est gracejando... Juro-te que no. Mas olha, quem diz a Matra- ca e algum afirmou-me particularmente que a rua est cheia... E esta! fez o Zuza cruzando os braos admira- do. Pois meu pai no v logo que isto um gracejo de mau gosto, um canalhismo de provncia? O que certo que no te fica bem a brincadei- ra. Absolutamente no, e eu preciso saber quem o autor do pasquim...A criada avisou que o almoo estava na mesa. ...Sim, continuou Zuza, vou informar-me, pre- ciso saber... Eis a est por que fazes bem indo passar uns dias a Baturit.E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como um apstolo do bem, enquanto o filho ia desabafando suas cleras contra a sociedade 62. cearense. Uma sociedade que l a Matraca e gosta! No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturit em companhia do Dr. Cas- tro, presidente do Cear.Lia-se na Provncia:Segue amanh, pela manh, com destino a Baturit, a fim de visitar a importante fbrica Proena, o Exmo. Sr. Presidente da Provncia. Acompanham o ilustre amigo do Cear os nossos distintos amigos e correligi- onrios Srs. Dr. Jos de Souza Nunes e Jos Pereira, nosso colega de redao. S. Exa. pretende demorar-se alguns dias naquela cidade.Maria do Carmo leu com surpresa a notcia da Pro- vncia e no pde conter um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido por ela! Ir-se embo- ra sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixara um bilhetinho, um carto com duas palavras, duas so- mente! Que custava escrever num pedao de papel Vou e volto?Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa.Estava tudo acabado, no falaria mais no Zuza, no lhe escreveria: que fosse bugiar! Moas havia muitas no Cear: que procurasse uma l a seu jeito e ela por sua vez trataria de arranjar noivo, mas noivo para ca- sar, noivo srio, noivo de bem!Entretanto, Maria no tinha feito reparo na des- pedida do Zuza, um soneto em decasslabos, com sla- bas demais nuns versos e de menos noutros. Adeus era 63. o ttulo e vinha na terceira pgina da Provncia. Depois que viu por que a Ldia mostrou-lhe. J estavas fazendo mau juzo do rapaz, hein? disse a Campelinho. Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos teve a lembrana de me avisar! Como querias tu que ele avisasse se ainda no lhe respondeste a carta?Maria esteve pensando com o jornal na mo, lendo e relendo os versos, e, meio arrufada meio risonha: Embora! O dever dele era me participar. O ho- mem que faz tudo...E na manh seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos ps, embrulhada no lenol, ver passar o trem atravs da vidraa.A locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e fagulhas que pareciam uma irriso aos olhos da normalista. A sineta, num badalar contnuo, acordava os moradores do Trilho, quela hora ainda nos lenis.Maria viu passar a enfiada de vages estralejando sobre os trilhos e esteve muito tempo em p ouvindo o silvo longnquo da locomotiva que ia, como uma coisa doida, serto adentro! Comeou ento a sentir-se s; teve vontade de abrir num choro histrico como se lhe houvessem feito uma grande injustia. Voltou para a tepidez do seu quarto e l deixou-se ficar at sair o sol, com um peso no corao, encolhida na rede, sem ni- mo para levantar-se, desejando um querer que era vago, extraordinrio, que lhe punha arrepios intermitentes na pele. Que bom se o Zuza estivesse ali com ela, na mes- 64. ma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor... quela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches...; no, j devia ter chegado a Mondubi... Imaginava-o metido num comprido guarda-p de brim pardo, toman- do leite fresco na estao, ao lado do presidente, tiran- do do bolso da cala um mao de notas de banco, mui- to amvel, rindo... Depois o trem apitava. Havia um movimento rpido de gente que embarcava s pressas, e... l ia outra vez por aqueles descampados afora, ca- minho da serra que se via ao longe, rente com as nu- vens, como aquelas cadeias colossais de montanhas onde h gelos eternos e que na geografia tm o nome de Alpes... De repente lembrou-se: E se o trem desencarrilhasse...? Ia adormecen- do quando lhe veio mente esta idia. Sentou-se na rede, esfregando os olhos, como se tivesse acordado de um pesadelo. Se o trem desencarrilhasse o presi- dente morreria tambm... ...Teve um consolo. No, o trem havia de chegar em paz com todos os passageiros. Espreguiou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente, deixou es- capar um ai! ai! muito lnguido e prolongado. L fora recomeava a labuta quotidiana. A criada puxava gua da cacimba; o cargueiro de gua potvel enchia os potes; cegos cantavam na rua uma lengalen- ga maante, pedindo esmola numa voz chorada; ven- dedores ambulantes ofereciam cajus... Havia um rudo matinal de cidade grande que desperta.Nesse dia Maria do Carmo no foi Escola Nor- 65. mal: que estava incomodada, com uma enxaqueca muito forte.Joo da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mos- trasse a lngua, muito solcito, com cuidados de pai: No era nada, uma defluxeira. E largou-se para a Re- partio, palitando os dentes.A Ldia, essa tinha liberdade plena em casa da me, ia Escola quando queria e, se lhe convinha, l no punha os ps. Deixou-se ficar tambm com a Maria. Tinham muito que conversar. Que saudades, hein? comeou a Campelinho.Estavam ss, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido casa da viva mostrar um corte de fazenda que o Janjo lhe comprara.Maria, derreada na cadeira de balano, fechou o volume que estivera lendo, e, com um bocejo: verdade, o diabo do rapaz no lhe saa da lembrana. Nem um castigo... Mas estava muito desgostosa da vida, j andavam inventando histrias, calnias... No te importes minha tola. Ora! ora! ora!... Isso a gente faz ouvidos de mercador, e vai para adian- te. A vida esta, e tola quem se ilude. No, Ldia, as coisas no so como tu pensas. No Cear basta um rapaz ir duas vezes casa de uma moa para que se diga logo que o namoro est feio, que um escndalo, e ns que somos prejudicadas. Ah! porque j no mais moa, porque uma sem-vergo- nha o quem dizem... Pois olha, esta aqui h-de namorar at no po- der mais. Queres que te diga uma coisa? Isso de casa- mento uma cantilena... 66. E, num assomo de despeito, a Campelinho lem- brou mulheres casadas que tinham amantes e que vivi- am muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr. Mendes, juiz municipal. Estava ali uma que fora en- contrada aos beijos com o Jos Pereira, da Provncia, em pleno Passeio Pblico! Quem era que no sabia? Ningum. Entretanto freqentava as melhores famlias da capital era a Sra. D. Amlia! Queria outro exem- plo? E abaixando a voz: Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Nin- gum ignora neste mundo que D. Terezinha amigada com teu padrinho. E tudo mais assim, querida Maria. A canalha fala de inveja, invejosos o que no faltam nesta terra. Maria prestava ateno, silenciosa. Ento, disse ela por fim, achas que devo conti- nuar o namoro? Que dvida, mulher! Eu porque j tenho o meu. Assim mesmo... Maria sentiu uma pontinha de cime roar-lhe o corao. Disfarou com um risinho seco. Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me pre- gue uma taboca... Nada mais simples: prega-lhe outra casando-te com o primeiro bilontra que aparecer. Amor com amor se paga... No, falemos srio... Que queres tu que se diga? Eu c no costumo enganar ningum. Sou muito franca. Po, po, queijo, queijo... 67. Do licena? disse uma voz fora, na rua.Era D. Amlia, mulher do Dr. Mendes.Maria foi abrir a rtula. Oh! por ali?... verdade, meninas, venho morta de calor. Uf! que solo, que solo!Ldia, muito expedita e pronta, ajudou a desatar o vu e a tirar as luvas.Como estava a Tet? perguntou D. Amlia muito afogueada, tirando o chapu defronte do espelho. D. Amanda ia bem? E sentando-se: J sei que no foram hoje Escola... Boa vida! No h como ser moa. Pois, meninas, venho duma sca. Fui ali casa da costureira experimentar o meu vestido de cetim... Isso que boa vida, disse a Campelinho: pas- seios, vestidos...Maria tinha ido chamar a madrinha: que era um pulo. Qual passeios! Quem tem filhos pode l passe- ar?D. Terezinha no se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-se toda. Ora viva! disse atirando-se nos braos de D. Amlia. Como vai, como tem passado? Que milagre!Agora todas falavam a um tempo, rindo, gabando- se. Sabem quem esteve ontem conosco?... O Zuza. Diz que volta sbado de Baturit. Gabou muito a Ma- ria: que uma cearense distinta, muito prendada, chi- que a valer, um horror! Ao que parece temos casrio... 68. Qual casrio! fez Maria com um rubor nas fa- ces. Invenes... No havia de ser contra a minha vontade, disse D. Terezinha. Seria at uma felicidade. Deus o permi- ta... Falaram de modas. D. Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viva Campelo achara de muito bom gosto. D. Amlia queixou-se do marido: um homem sem gosto, um mosca-morta, muito desleixado, com vene- tas de doido. Ela at j se aborrecia, porque o Mendes tinha o mau costume de beber aguardente; s vezes chegava tropeando, com a lngua pegada, sem poder falar. Vestidos ela via-os de ano em ano. Um indiferen- te, o Mendes. Sofria de uma erisipela na perna direita que o proibia de trabalhar meses inteiros... Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me as vontades, mesmo porque eu no sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses pra ali um vestido. Diabo quem os poupa! Tambm, minha filha, dou-lhe toda liberdade, fora e dentro de casa. Felizmente no tenho queixa dele. Ldia pediu a D. Amlia que tocasse alguma coisa, a Juanita, que era a valsa da moda. A propsito D. Amlia perguntou se j tinham ido ao teatro. Que fossem, que fossem. O grupo lrico da Naguel estava fazendo sucesso. A Belle-Grandi era um mulhero capaz de arrebatar uma platia inteira. Que modos, que requebros! Domingo ia a Juanita pela lti- ma vez em benefcio da Aliverti. Que fossem. Era uma opereta interessantssima, por sinal tinha sido represen- 69. tada cem vezes na Corte! A beneficiada ia fazer o pa- pel de Juanita. Eu para que tenho jeito, atalhou a Campelinho, para o teatro. Deve ser uma vida to cheia de sensa- es a das atrizes... Vestem-se de todas as formas, rece- bem presentes ricos, jias, anis de brihante... so aplau- didas e ainda por cima ganham dinheiro ufa. Eu j disse mame, mas ela no quer por coisa alguma, diz que uma vida imoral... Tolice! H tanta gente boa nos teatros... A ltima vez que fui ao circo chileno fiquei encantada pela Estrela do Mar! o que voc pensa, menina, disse D. Amlia. Essas pobres mulheres fazem um ror de sacrifcios... Sabe Deus quanto lhes custa uma noite de espetculo! Acabam quase sempre miserveis, coitadas, nalgum quarto de hotel, a esmolas. Enquanto so moas ainda, ainda encontram quem lhe estenda a mo, porm, de- pois, morrem por a em qualquer pocilga, sem um real para a mortalha. Tibis, menina, nem se lembre de tal coisa!Maria, a um canto do sof, pensava no estudante, perdida num labirinto de reflexes, com uma langui- dez no olhar vago. O Zuza preocupava-a como um so- nho douro. Comeava a sentir o que nunca sentira por homem algum, certo desejo de ter um marido a quem pudesse entregar-se de corpo e alma, certa sentimentalidade sem causa positiva, uma como abs- trao do resto da humanidade. E quando D. Amlia, sentando-se ao piano, comeou a tocar a Juanita, veio- lhe um vago e esquisito desejo de ir-se pelo mundo afora nos braos do seu Zuza, rodopiando numa valsa 70. entontecedora at cansar... Via-se nos braos dele, ar- quejando ao compasso da msica, quase sem tocar o cho, voando quase leve como um floco de algodo, como uma pena, como uma coisa ideal e area... E lem- brava-se do padrinho. Ah! o padrinho queria tanto mal ao Zuza... Doravante ia agradar muito a Joo, trat-lo com mais carinho, dar-lhe muitos cafuns, fazer-lhe todas as vontades, adul-lo, a fim de que ele no ra- lhasse por causa do estudante. Que tola no ter escrito logo ao Zuza, quele Zuza que era agora a quantidade constante de seus clculos, a preocupao nica de seu esprito, o seu alter ego!Sim, porque de resto, ela no havia de ser nenhu- ma freira que ficasse por a solteirona, sempre casta como uma vestal.A Ldia tinha razo a mulher fez-se para o homem e o homem para a mulher. Era sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do que entregar-se a a qual- quer caixeiro de armarinho, a qualquer lojista usurrio e safado. Ao menos o Zuza tinha dinheiro e posio, era um rapaz conceituado. Comparava-se com a Ldia e sentia-se outra, muito outra, noiva de um moo ele- gante, estimada, querida por todos. Ningum se lem- braria, depois, de sua origem humilde, todo o mundo a respeitaria como esposa do Sr. Dr. Jos de Souza Nunes! Comeava mesmo a sentir uma grande afeio pelo Zuza.As ltimas notas do piano produziram-lhe uma comoozinha, uma ponta de saudade sincera, um ar- repio na epiderme. E, levantando-se muito desconfia- da, foi juntar-se s outras que palravam por quantas 71. juntas tinham.A voz de Campelinho timbrava muito fina e met- lica, traduzindo todo um temperamento nervoso e irre- quieto.Acharam deliciosa a valsa da Juanita. Maria tam- bm deu o seu parecer: que era linda, que ia ensai-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas velhas, sem pensar nas horas que iam passando rapidamente.Fazia sombra na calada. Pela j