revista22-3[1] - fobias

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    RECORDARREPETIRELABORAR

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    Christiane Lacte

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    O texto de Christiane Lacte, que aqui se reapresenta, foi pela primeira vezpublicado no Boletim no.7 da APPOA, de agosto de 1992hexatos dezanos, portanto. E, no entanto, as questes que dele emergem mantm suaatualidade, encontrando eco em diversos artigos que compem hoje este n-mero da revista. como dobra do tempo, ento, que ele se faz aqui Histria.Mas sua origem consistiu numa conferncia proferida alguns anos antes, em1986, em evento promovido pela ento Cooperativa Cultural Jacques Lacan,em Porto Alegre, contando ainda com a participao de Charles Melman,Contardo Calligaris e Marcel Czermak. O texto alude, assim, instaurao deuma interlocuo profcua entre psicanalistas brasileiros e franceses, a qualsegue tendo vigncia no contexto de nossa Associao.

    Vou trazer a vocs algumas questes que me coloco a propsito da fobia. H 56meses, iniciamos, na Associao Freudiana, e continuamos, na revista Nodal,um trabalho sobre a fobia, precisamente, o que me deixa muito interessada em poderfalar sobre isto novamente, j que meu trabalho evolui paralelamente ao desta equipe.Vou colocar algumas balizas que formulei e que o Euvaldo, que est aqui presente,conhece. Vamos seguir em So Paulo e em Salvador, juntamente com Jean Bergs,com quem trabalhei particularmente sobre este assunto.

    Iniciamos com os primeiros textos de Freud que tratam do tema e que datam de1896 e de 1898. Nosso trabalho tinha como ponto comum o que vou dizer agora, e queme parece muito importante.

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    Afobia apresenta-se como uma entidade propriamente psicanaltica e no psi-quitrica. O que no significa que o problema seja simplificado, longe disso. O quepodemos dizer que com a questo da fobia estamos de imediato na rea da clnicapsicanaltica. Quer dizer que entre posies metapsicolgicas da parte de Freud euma descrio fenomenolgica que se v como ele, sobre este assunto, elaborou no-es to importantes quanto o recalcamento, a inibio, a angstia e a relao de obje-to que Lacan retomou num seminrio.

    Um dos aspectos que trataremos, no decorrer da discusso, gira em torno danoo de recalque na fobia, totalmente problemtica. Para ns, lacanianos, coloca-se aquesto da escuta do significante no fbico, uma vez que, em As Formaes do In-consciente, Lacan situa diretamente o processo do recalcamento como metafrico.Ora, justamente esse ponto que est em jogo na fobia e que vocs devem ter en-contrado na leitura que fizeram de Lacan. Ele situa a fobia como uma placa giratriaem relao s determinaes neurticas. Ou seja, o estatuto da fobia estaria totalmente parte nem neurose nem psicose o que apresenta a vantagem de isolar problemasespecficos com relao ao gozo, ao objeto e barra subjetiva.

    Creio que faz trs anos que Charles Melman, aqui no Brasil, abordando a ques-to da fobia, colocou a mesma como uma doena do espao. Podemos retomar isso,como tambm a segunda afirmao que fez ontem noite, sobre o surgimento do realdo olhar na fobia, real desse olhar que pode coincidir com a encarnao de um animal.Pensem, por exemplo, no cavalo do pequeno Hans. Isso implica que a problemtica queseguamos na fobia est ligada ao que Lacan elabora sobre os ns borromeanos e noapenas com auxlio deste grande texto onde ele estuda a fobia, mas tambm com osSeminrios sobre As Formaes do Inconsciente e A Relao de Objeto. Os nsborromeanos nos ajudam, j que o imaginrio captado a totalmente em relao ao realou ao simblico. Assim, Melman foi levado a mudar um pouco a sua formulao, passan-do de doena do espao a doena do imaginrio. O que h uma posio, como vocspodem sentir, que retoma a crtica de Lacan a toda a esttica transcendental.

    Aproveito a ocasio para responder novamente ao Aldusio, uma vez que isto uma seqncia, que d seguimento ao que dizia sobre os orifcios do corpo. Ele mecolocava uma questo, a propsito daquela jovem mulher: acaso no constituiria elaum olhar? Questo qual eu respondia, digamos, de forma circunspecta. Trata-se semdvida, na fobia, do objeto a, olhar, mas tomado do ponto de vista do real. Considerandoos ns borromeanos, o objeto a efetivamente um buraco com bordas que so simbli-cas, imaginrias e reais. Portanto, preciso apurar a questo quando se fala de objeto a,olhar. Podemos dizer, ento, que, na fobia, o que surge o objeto a tomado do lado real.

    O segundo ponto que abordarei nesta introduo refere-se unidade das fobi-as. H maneiras imprprias de falar em fobias, como, por exemplo, na linguagem

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    psiquitrica, em que se fala em fobias de impulso, que no tm nada de fbico. Aquesto que talvez deva ser colocada sobre a unidade das fobias a que distingue asfobias de objeto das fobias de espao. Parece que poderamos unific-las por estaposio do objeto a tomado no real.

    Vou colocar algo brevemente, que se apia, como fazia Melman, em LegrandDu Saulle, psiquiatra. Trata-se de que as manifestaes fbicas so intensas em vastosespaos centrados por uma geometria que se apia na perspectiva renascentista, ao

    passo que so menos intensas quando em espaos contornados ou labirnticos. Ora, o que um ponto de fuga? Talvez no seja distinto do ponto automvel, de onde surge o animalautomvel, do mais fundo do espao, quer seja o cavalo que desemboca no final da rua oua cadela, animal de um romance a que me reportei numa exposio anterior sobre a fobia.Esse romance ao mesmo tempo fico e autobiografia sobre a fobia Eve comme Eveem Ville de I. Simha. um livro muito irregular, no qual h, ao mesmo tempo, coisasesplndidas e outras muito fceis. Mas um documento clnico interessante.

    Antes de me referir a algumas passagens desse livro, gostaria de situar a apostadesta pesquisa, que cada vez mais nova para mim. Trata-se da situao do imagin-rio no fbico e da relao entre o imaginrio de apresentao e o imaginrio especular.Nos casos de fobia que tenho ocasio de escutar, h um ponto em torno do qual sepode muito bem trabalhar: o ponto em que ouvimos frases como preciso imaginar

    o prprio espelho ou espelhos jamais so como espero, e uma preparao da ima-gem especular, eu diria, pelo imaginrio. Creio que a, nessa articulao difcil entreesses dois tipos de imaginrio, podem se escutar coisas bastante decisivas e interpretartodos os preparativos que um fbico deve fazer para sair rua, no como ritos, queseriam obsessivados, mas como a manuteno de uma imagem especular que, porvezes, aquele que o acompanha representa, embora nem sempre.

    Por outro lado, a fobia representa, particularmente, o isolamento de circuitospulsionais do olhar. Mas de forma alguma da maneira como a sublimao o faz. Pensoque nesse ponto o olhar est muito marcado pela oralidade, a qual no tomada comoum desvio suficiente pelo simblico, como no caso do isolamento do circuito pulsionaldo olhar em um pintor, por exemplo, ou seja, na criao artstica.

    Vou usar alguns termos de I. Simha que so descritivos e, em seguida, vou

    colocar algumas questes que seriam pontos de intervenes possveis. Ela escreve oseguinte:A cidade est parada, congelada. Ningum se sente com direito de circular.No h para onde se dirigir. A cidade s est agora ligada atravs de centros de SOS.

    Isto me parece extraordinrio, pois o espao est totalmente desorientado. No hdestinao, no h orientao clara. O espao est completamente descentrado. E o quequer dizer, ento, a cidade no est mais ligada agora seno por centros de SOS? queseria preciso ir rapidamente a esses centros diversos, sem que o percurso exista. A est aurgncia dos centros SOS. Sem dvida, a fobia nos coloca uma questo sobre a destinao.

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    Vou ler outro trecho agora:A porta mudou de nmero. O nmero da porta nomudou de algarismos, mas mudou de lugar. O nmero no mudou, nem os algaris-

    mos, nem de lugar, mas de tamanho. Seria preciso verificar isto. O nmero no mu-

    dou nem de lugar, nem de tamanho, mas o espao entre cada algarismo j no o

    mesmo, o mesmo que no momento da ordem, da ordem contrria, da ordem ambgua.

    Isso, sem dvida, tem relao com o que eu explicava da ltima vez, sobre abrincadeira de roda: passa-passar. Ou seja, a numerao extremamente difcil, e o

    intervalo entre os nmeros, impossvel de ser captado.O que vou ler ainda, vocs vero, muito interessante com relao problem-tica dos orifcios pulsionais:A porta seria suficientemente larga? Acaso permaneceraberta o tempo de sua passagem? Antes de passar ela verifica o dinheiro que tem no

    bolso, o bolso, a bainha de sua roupa, o passaporte, pois ela uma mulher que est

    engajada nesta passagem, pressionada por uma ordem, uma ordem contrria, uma

    ordem ambgua, uma ordem tocada de leve, uma poeira de ordem.

    Se tomarmos ao p da letra essas descries, que so justas por serem poticase no brutais, teremos um meio de intervir quanto fobia.

    A porta seria suficientemente larga? Permanecer aberta o tempo de sua pas-sagem?

    Sbado passado, em Paris, falei tambm sobre os orifcios do corpo. Nessa

    ocasio, pensava no pequeno Hans, no interior da porta de entrada, dizendo que nadalhe impedia de sair, mas que ele estava constituindo a porta. Constituindo o espaonecessrio para a passagem, assim como a imagem especular se constitui quando agente se atm moldura, da mesma forma que eu falava outro dia em constituir oorifcio. Ns que nos enganamos quando dizemos que ele no pode passar do interi-or para o exterior, pois isso supe que haveria uma face a transpor. A problemticatalvez seja mais radical no fbico: preciso antes de mais nada constituir a fronteira; apassagem, portanto, no est dada, est ainda por ser construda.

    Antes de passar, ela verifica o dinheiro que tem no bolso, o bolso, a bainha desua roupa, o passaporte.

    Antes de mais nada, uma observao quanto ao termo verificao. Ela no verifi-ca tempos como o obsessivo. totalmente diferente. A escolha muito rigorosa. Ela

    verifica o dinheiro que tem no bolso, isto , as possibilidades de troca, o que interessan-te, pois freqentemente o fbico est fora das trocas. Ela verifica o bolso, ou seja, algoque um continente, e verifica a bainha. Tudo isto so figuras topolgicas. O que umabainha? no apenas uma dobra, mas uma dobra costurada, ou seja, um ponto onde oespao dobrado sobre si mesmo. A bainha uma linha de dobra sobre si mesmo doespao. o mesmo que o ponto de fuga, que, nos quadros do Renascimento Italiano, umponto de dobra sobre si mesmo. Tambm na curvatura pulsional, descrita por Lacan nosQuatro Conceitos, o ponto crtico o que fez com que se dobrasse sobre si mesma.

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    Ela verifica ainda seu passaporte, ou seja, a relao entre a sua identidade e apassagem, o que lhe assegura de ser a mesma passando de um lugar a outro, sendo essajustamente a questo do fbico.Ela uma mulher que est engajada nesta passagem. Emfrancs, o termo engajamento, ao mesmo tempo que significa um pacto, a promessa, amaneira como a criana est colocada, (engag) no momento do parto, no colo do teroque se abriu. A literatura pode ajudar-nos muito a, porque h momentos no texto que so,nesse sentido, muito rigorosos. Normalmente a criana que est encaixada na mulher,

    enquanto que o texto diz uma mulher engajada (encaixada) nessa passagem. verdade que a problemtica do espao que est em jogo na fobia toca muitoperto da problemtica do parto. Ela est engajada nessa passagem, pressionada poruma ordem contrria, uma ordem ambgua, uma ordem roada, uma poeira de ordem.Isto muito interessante, mas vejamos ento por qu.

    pressionada por uma ordem, mas uma ordem que no formulada. O fbicono algum que tem alucinaes em que lhe vm ordens. Trata-se antes, e umponto de uma hiptese pessoal, de uma relao com aquilo que Lacan chama de impe-rativo do significante. Todos os significantes so tomados pelo fbico de um modomuito particular, que o imperativo. o que chamo, em outro texto que tive ocasiode escrever, o modo da invocao.

    A grande inteligncia desmistificadora desses pacientes muito interessante e

    tocante. algo, alis, que vemos nesse livro: um esprito crtico extremamente afiado;uma captao de sua histria sem perdo; um rastreamento muito exato de significantesimportantes, que, no entanto, deslizam como peixes dentro dgua. E ns, dificilmente,podemos intervir nesses significantes situados. Ento, o que ocorre? por isso que for-mulei a hiptese de que os significantes, no seu conjunto, por mais pertinentes que sejam,estavam todos juntos, voltados de uma forma que os tornava equivalentes e desmontavao prprio processo metafrico. Forma que algumas lnguas conhecem, como o optativo,no grego, e que corresponde cada vez mais a essa necessidade que eles tm de imaginar oimaginrio ou de inventar o tecido mesmo do imaginrio.

    O pequeno Hans, por exemplo, no emprega o condicional da mesma maneiraque as outras crianas. As crianas dizem freqentemente: Ah! Se a gente fosse via-jar para o campo! Ah! Se eu fosse papai... Se a gente isso... Se a gente aquilo...

    E isso tomado num jogo. Mas, para o pequeno Hans, trata-se de alguma coisa umpouco diferente, j que seus pais (penso em particular em sua me) so, em relao aele, totalmente sugestivos. Eles tm palavras que esto inteiramente destinadas su-gesto e no apenas pelo desejo de aparecer como bons alunos de Freud. H umapassagem em que o pequeno Hans v alguma coisa de escuro, negro, no focinho docavalo e, imediatamente depois, um dos pais diz a ele: no achas que aquilo umbigode? O que deveria ter sido levado a srio era algo negro. Todo o desenrolar destaanlise do Pequeno Hans mostra a que ponto ele est entregue linguagem sugesti-

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    va de seus pais. Isso um motivo para que nos detenhamos nessa questo da sugesto.Creio que o fbico esteve submetido a uma tal linguagem, ou seja, a um imenso

    abandono. Tentemos escutar o que o pequeno Hans diz: uma vez que seu pai tinha idoembora, ele podia tomar seu lugar. Mas o que isto quer dizer? extremamenteesquemtico! Significa que apenas a prpria presena sustenta o lugar do pai. Ou seja,que, do lado da me, o lugar do pai s mantido de uma maneira sugestiva, em relaocom a mera presena, quer seja real, ou precisamente invocada, mas de forma alguma

    afirmada. Assim, a sugesto, que no caso do Pequeno Hans caracterstica sobretudodo discurso materno, passa a ter uma funo tal que, cessando, no haveria ponto dereferncia simblico seguro. isso que chamo de abandono: que o lugar do pai s sejamantido pela afirmao sugestiva da me, particularmente pela presena da mo ou dopai. Isso explica por que o fbico de bom grado desmistificador que ele sabemuito bem que tudo s mantido pela sugesto no discurso parental, e tenta, semcessar, desfaz-la para buscar estabelecer referncias mais seguras.

    Assim, tambm, no final desse belo livro. Eva, acompanhada por Eva e tam-bm pelo ator Marlon Brando, que representa a perfeio da imagem, marca um dioda histeria muito intenso. Esse o ltimo ponto que vou abordar, pois no se podeabordar tudo. H, certamente, manifestaes fbicas ligadas histeria, mas da fobiaque estou falando. A fobia est num dio pela histeria, j que o discurso histrico

    situa-se essencialmente como sugestivo e, portanto, muito destrutor para o fbico.Vou parar por aqui. Continuaremos com as perguntas.Pergunta Ontem o Dr. Melman falou sobre o real e a irrupo do real, assun-

    to que voc retomou novamente. Tenho algumas questes sobre a fobia escolar, naqual, me parece, h a irrupo de um real insuportvel. Quando a me ou um familiarleva a criana escola, aos 6, 7 anos, h aquela situao em que a criana chora e ame ou o familiar fica longe olhando para ela, e nem um nem outro se afasta. A per-gunta que gostaria de formular seria: que articulao existe neste olhar e em tornodeste olhar, tanto para a criana como para a me? Este olhar e ser olhado assegura oque mesmo criana? Propor-se como objeto de demanda do Outro? Este medo temalguma coisa a ver com dar valor funo paterna?

    Lacte Eu esperava esta pergunta para retornar quilo que tinha lanado depois

    de Melman sobre o real do olhar, pois no podia dizer tudo ao mesmo tempo. Creio quetemos elementos para responder a partir do seguinte: se as palavras da me, todo o discur-so da me, no podem dispensar a sua prpria presena, mantendo-se de modo sugestivo,algo da tranqilizao do estgio do espelho no pode se realizar, ou seja, o aspectoimaginrio do olhar no se constitui. S resta, ento, o aspecto real do olhar.

    Parece que uma das interpretaes possveis do texto de Lacan sobre o estgiodo espelho, na medida em que ele estruturante, ser uma forma de desfazer a suges-to. tambm um meio de siderao, mas ainda a posio da questo da siderao.

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    Eu havia escrito ao longo deste texto que, no final das contas, o fbico um iconoclasta,pois ele sabe que a imagem sidera, que a essncia da imagem de siderar e que oestgio do espelho como todos os pontos da anlise que, ou so pontos dearrolhamento, tamponamento, ou, ento, so pontos de passagem. O espelho ou umaexperincia de siderao ou a postulao da questo da siderao e a sada da mesma.E, para sair da siderao da imagem, preciso que o discurso materno no estejacolocado numa presena sugestiva. Com efeito, naquilo que voc comenta sobre as

    fobias escolares, a criana no pode abandonar a colagem a esse ponto de referncia.Eu observei fobias escolares, sobretudo em adolescentes, em que no h ape-nas essa questo do olhar, mas tambm uma forma de no poder suportar um outrotipo de discurso que no o discurso materno. O que chama a ateno que em nenhumcaso a inteligncia perturbada.

    Pergunta Mas, em crianas, mais freqente a fobia escolar que na adoles-cncia.

    Lacte Eu tive ocasio de encontrar uma fbica de 16 anos que, apesar de suafobia escolar, pde ter bons resultados nos exames finais.

    Melman abordou essa questo h alguns meses, como uma maneira original desituar o Nome-do-Pai no fbico que permitiria uma maior liberdade da inteligncia,que o que se v no caso do Pequeno Hans.

    Sobre a questo proposta da relao da fobia com a funo paterna, eu noligaria isso ao medo. O medo fbico ou, mais exatamente, o pnico do fbico, quepoderia tambm ser descrito como estado de choque, algo como um sinal ou umadefesa contra a angstia. preciso fazer alguns desvios para situar a relao disso coma funo paterna. Creio que este estado de choque est ligado a um estado brutal deabandono, quando a sugesto do discurso parental j no se sustenta mais.

    Observamos, tambm, a incerteza dos fbicos quanto sua identidade sexual,o que visvel nesse livro, se tomarmos por exemplo o ttuloEva como Eva.Comme como comparao; em francs e mais ainda em portugus, soa com, acompa-nhada: Eva com Eva. A comparao reduzida continuidade, mas tambm acom-panhada, de maneira humorstica, por um ator totalmente machista, que sacode osombros sob a luz dos projetores que representam o espao centrado, que a palavra

    dita por Marlon Brando. A oscilao entre Marlon Brando e a mulher , por vezes, notexto, uma indistino.

    Pergunta A fobia do Pequeno Hans pelos cavalos alguma coisa que serefere ao animal; gostaria que falasse desta escolha fbica que faz Hans. No haveriaalgo de mtico nisto? Freud, em Totem e Tabu diz que um retorno a um ancestral.Seria pelo pouco valor do pai, a escolha do animal? No texto Os Nomes-do-Pai,parece que Lacan diz que seria necessrio um animal como ancestral, porque o ho-mem em si tem pouco a se orgulhar, por ser feito de barro.

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    Lacte Talvez eu esteja enganada, mas no penso assim. muito tentador,quando se fala em animal, ligar a totem, mas eu no caio nessa. No caso do pequenoHans, h uma histria com cavalo, que a histria do cavalinho de madeira que Freuddeu a ele de presente. A escolha do animal est ligada a vicissitudes singulares, mas oque me parece importante, no animal, aquilo que Aristteles diz que um autmato,e que ele chamava de automvel. um ponto no espao que se move sem que se saibaqual o motor que o faz mover-se. Isso o que nos permite colocar a relativa unifica-

    o das fobias no espao e das fobias de animais.O segundo ponto sobre os animais algo que vamos retomar, talvez juntamen-te com Bergs, a partir de A Terceira, texto de Lacan: o animal se goza. Trata-seda relao de um gozo mais mudo do que mtico, na medida em que seria um gozobruto, indissoluvelmente ligado presena mesma daquilo que chamei presena su-gestiva. Penso, portanto, que o animal fbico representaria uma espcie de resto dodiscurso completamente desmistificado da me.

    A segunda parte da minha resposta diz respeito quilo que voc falava sobre ocarter herldico. verdade que, em seus Escritos, Lacan fala de selos da neuroseobsessiva e de brases da fobia. H um trecho nesse livro em que I. Simha diz que elanasceu com as orelhas de seus ascendentes, que no tem as suas prprias e que suasorelhas serviram sobre outras bandeiras. Bandeira ou braso quase a mesma coisa. O

    que importante aqui que tanto o braso como a bandeira recorrem a uma cadeiaimperativa dos significantes. O que eu tentava explicar quando falei que o fbico empurrado por uma ordem esta noo de braso que est logicamente associada auma noo de urgncia, ou seja, no so ordens formuladas, mas uma toro impera-tiva de todos os significantes.

    Isso tudo deveria ser colocado em relao com algo de que no lhes falei, pois impossvel falar de tudo, que o espedaamento do corpo do fbico, que no nemhistrico nem esquizofrnico, mas que pode ser pensado, como no escrito a, segundotempos diferentes.

    Pergunta Sabe-se que nas fobias escolares no h problemas de inteligncia,mas, pela dificuldade em permanecer em aula, terminam surgindo dificuldades deaprendizagem. V-se, nas escolas, que essas crianas so muito ajudadas pelos pais ou

    por professores particulares. Desta forma, ento, o problema de aprendizagem ficasolucionado, mas elas sozinhas no conseguem sair disso. Como voc veria isto?

    Lacte Voc tem toda razo. A dificuldade que s se tem solues singula-res no caso dos fbicos. Isto coloca em questo mais o acompanhamento escolar doque a inteligncia em si. preciso considerar sempre a possibilidade de solues comprofessores durante o tratamento. No acho que seja necessrio ir contra, mas umaposio pessoal. Eu sei que algumas analistas infantis so muito intransigentes quantoa esta questo. Eu no sou em nada intransigente, acho que isto s leva a uma perda de

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    tempo para a criana, podendo mais tarde provocar uma marginalizao, e que o pro-blema no o do acompanhamento, mas um problema de discurso. O importante que, na posio clnica lacaniana, o acento na estrutura do discurso, por exemplo,parental. Isso leva a decises para a direo da cura que no so negligenciveis.

    Pergunta Gostaria de retomar o ltimo ponto, em que tratavas de diferenciaralgumas questes relativas fobia e histeria. Mencionavas o dio da fobia em rela-o histeria. Tambm trouxeste a questo da fobia como uma placa giratria, que

    no estaria nem no terreno da neurose nem no da psicose, mas parte. Gostaria deponderar esse ponto com o que Calligaris disse, em agosto, a respeito da hiptese deuma neurose de base, indefinida, que viria a se desdobrar numa neurose histrica ouobsessiva, conforme o caso. E, tambm, com formulaes que j vi, em que a fobiaest situada como um desdobramento da estruturao histrica, ou da histeria de an-gstia, que parece uma formulao bastante distinta da que colocas.

    Lacte Sim, totalmente diferente, o que mostra muito bem como a discus-so permanece aberta. Efetivamente, Calligaris e eu trabalhamos juntos, mas no che-gamos exatamente s mesmas concluses. Mas, tanto para um como para outro, essasso ainda questes. Eu creio que, a originalidade da fobia, ns ainda no teorizamos.

    H um texto de Melman que vai ser publicado em breve, que ele apresentacomo ensaio, sobre a originalidade do n fbico. O que coloca efetivamente a questo

    algo que no tive tempo de falar, a saber, estas fobias infantis necessrias. Estesmomentos de fobia que toda criana conhece e que, na maioria dos casos, desapare-cem sem se transformar, mas, sim, cedendo lugar a esta ou quela estrutura neurtica,por exemplo. nesta base que a questo est colocada. preciso observar que tudoque toca s manifestaes da infncia se desdobra numa organizao do real, do sim-blico e do imaginrio, que no a mesma do adulto.

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    com satisfao que compartilhamos com o leitor algumas breves reflexesque ANA COSTA produziu especialmente para a Revista. Breves, mas nomenos precisas, instigantes e inovadoras. Caractersticas estas que tm re-

    velado seu estilo em suas produes no campo psicanaltico. Sem se dizerespecialistano tema da adolescncia, podemos acompanhar, em suas pu-blicaes mais recentes, o quanto a abordagem de tal assunto tem lhe feitoavanar em temticas cruciais para uma psicanlise inserida em seu tempo.E quanto ao espao? Bem, passemos a palavra a nossa entrevistada.

    REVISTA: Voc acha que o termo fronteiras permite que tenhamos, como afaixa de Moebius, a representao de uma linha divisria complexa, a qual no delimi-ta um simples dentro e fora, mas uma pluralidade de relaes?

    ANA COSTA: Essa questo interessante. Leva a uma outra indagao: serque na fita de Moebius se representa uma fronteira? Sempre que nos encontramoscom essa ltima expresso, a representao que temos a de dois pases estrangeiros

    um ao outro, o que significa duas lnguas, duas culturas e uma demarcao de territ-

    DO LITORAL FRONTEIRA

    Ana Maria Madeiros da Costa *

    * Psicanalista, membro da Associao Psicanaltica de Porto Alegre, Doutora em PsicologiaClnica (PUC/SP). Psicloga do Instituto de Psicologia/UFRGS, Coordenadora do Programa dePesquisa e Extenso Adolescncia e experincias de borda/UFRGS. Autora dos livrosA fic-o do si mesmo, Cia. de Freud, 1998 e Corpo e escrita: relaes entre memria e transmissoda experincia, Relume-Dumar, 2001. E-mail: [email protected]

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    rios. Nesse sentido, a fronteira a linha divisria, que permite saber que voc est indode um lugar para outro. Se voc est saindo de seu pas e cruza a fronteira, voc sabeque ter que falar outra lngua, resolver os problemas de cmbio para uma outra moe-da o que significa que seus valores no sero os mesmos. Frente ao estrangeiro, vocpode ter atitudes diferentes: ou bem de estranhamento e rechao frente diferena deseu lugar de origem, ou bem de idealizao, com a busca de se parecer o mais possvelcom os autctones. Nessas situaes de turismo, ou mesmo de imigrao, o que fica

    ressaltado a diferena (mesmo imaginria) entre dois lugares. Mas vamos ver atonde esta analogia nos leva o espao mesmo onde se localiza a linha divisria dafronteira diferente. Nesse espao, as coisas se misturam: os costumes, expresses elnguas acabam sendo hbridas, na incorporao mtua dos elementos estrangeirosaos do pas de cada um. Assim, a linha demarcatria uma condio que, necessaria-mente, promove alienao, onde o jogo especular e a relao ao duplo se sustentamcom maior radicalidade. nesse espao em que as necessidades de separao provo-cam violncia, pela grande alienao em que se encontram. Os exemplos so inme-ros e temos o nosso, no sul, onde a fronteira se estabeleceu pela degola do irmoespanhol.

    O que melhor se mostra na fita de Moebius essa espcie de confuso que arelao ao espao e ao imaginrio provocam. tanto assim que se pode transitar por

    dois lugares distintos, passando-se de um a outro sem reconhecer distino. Lacan ausou muitas vezes para mostrar a estreita vinculao, na relao sujeito/Outro,provocada pelas expresses da demanda. Isso que imprime uma certa confusomoebiana nesses espaos, passando-se de um a outro sem perceber distino. Nessesentido, difcil reconhecer se, quando a criana chora de fome, no , tambm, anecessidade da me (de aliment-la) o que est em causa. Esse exemplo bem sim-ples, mas podemos citar inmeros outros que se expressam nas relaes de amor.Neles, temos sempre uma separao como condio necessria da unio. Ou seja,quando a me, na demanda, toma o corpo da criana como se fosse seu, temos esselugar do como se preservado. isso que faz com que a demanda seja o mais durode se extinguir porque ela pode ser inesgotvel, na medida em que no h satisfaoreal.

    Temos uma outra forma de demarcao de limite, da qual Lacan tambm seutilizou, e que um litoral. Ele a desenvolve no textoLituraterra, criando esse neolo-gismo que d ttulo ao trabalho. Num litoral, onde vemos, com maior clareza, umencontro de heterogneos. Enquanto na fronteira entre duas lnguas possvel transi-tar pelos enlaces do imaginrio, o litoral se inscreve a partir de dois elementos hetero-gneos, onde o jogo de diferena e identidade no est colocado a princpio. No lito-ral, os dois elementos no se misturam, no permitindo um jogo de continuidade entreeles. Para que haja trnsito entre eles, torna-se necessria a produo de um ato que

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    permita o transporte de um registro a outro. Avanando na metfora, se pensarmos,por exemplo, na poca das grandes navegaes, no foi suficiente construir navios,precisou-se construir fices que permitissem cruzar o oceano. Fazendo uso de umaabordagem de Allouch, podemos dizer que, enquanto nas fronteiras h necessidade detraduo de uma lngua a outra, no encontro de heterogneos podemos pensar que hnecessidade de transcrio de um registro para outro, na medida em que so doisregistros (duas formas distintas de apresentao da memria).

    Pois bem, fiquei pensando que a puberdade poderia se constituir em litoral e aadolescncia em produo de fronteiras. Assim a adolescncia re-corta, re-inscreveaquilo que pode ter sido experimentado como falha na prpria lngua (uma ausnciano lugar do registro especular, do corpo como representao) durante a puberdade. Aexperincia da puberdade muda por princpio. Por essa razo, na adolescncia, acon-tece a reedio dos princpios mesmos da possibilidade de representao seja nareedio do dipo ou mesmo do espelho. Assim, ali onde se constitua ausncia de con-tinuidade na puberdade, o artifcio da adolescncia traduz como um territrio de fronteiraentre duas lnguas. Nessa faixa tudo hbrido, tudo se confunde. At mesmo a onipotn-cia do adolescente, num fazer ativo o que sofreu passivo da onipotncia do Outro dainfncia.

    REVISTA: Voc acredita que as fronteiras auxiliam a pensar as entidadesclnicas chamadas de estado limite ou borderline?ANA COSTA: No gosto muito da expresso borderline porque sempre me

    traz uma ressonncia psiquitrica, e no podemos desconhecer o registro no qual aspalavras se criam. Quanto a estado limite, a palavra estado pode estar referida aevento, acontecimento. Nesse sentido, pode confundir-se com uma operao adoles-cente e reeditar uma fronteira. Esses acontecimentos podem surgir no mbito da neu-rose, fazendo-se necessria a constituio de uma outra lngua para expresso dorecalque originrio o umbigo da privao da prpria lngua.

    REVISTA: O que a clnica da fobia pode ensinar sobre a distribuio dos espa-os na adolescncia?

    ANA COSTA: Em toda transposio de trauma podem constituir-se pelo me-nos duas sadas mais extremas: a angstia derivar numa representao externa (porexemplo, na fobia), ou derivar numa representao interna (sintomas fsicos). Estouchamando mais genericamente trauma um acontecimento que desarranja o sintomaresponsvel pelo sustento do sujeito nas relaes. Por que ser que a puberdade trazcaractersticas de trauma? Afinal de contas, nesse momento, acontecem modificaesque j esto antecipadas nos discursos por onde o pbere circula. No entanto, dife-rente a relao de um discurso que se reduz a um cdigo da relao da experincia que

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    ENTREVISTA

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    produz um sujeito. A experincia necessita de uma incorporao: passar pelo corpo.Essa passagem, como referimos enquanto encontro de heterogneos, no simples. preciso encontrar um determinado trao em comum (a corpo e a discurso) a partirdo qual seja possvel ao sujeito reconstituir o como se a dimenso da fico, dafantasia. Esse trao em comum pode ser construdo na fobia. O trao em comum aquele que permite furar o cdigo, singularizando uma falta a partir da qual o sujeitopode se contar na experincia. No por nada que a fobia precede a construo do

    chamado sintoma de estrutura. Ela responsvel por recortar traos. Sem essaprecondio (primeiro registro de uma falta no Outro) no h construo do sintomaestrutural.

    Ser que os diferentes momentos da vida produzem diferentes fobias? Respon-der a isso no simples, porque tambm poderia se pensar que as fobias se produzemde acordo com a forma particular de relao ao Outro que as diferentes estruturasorganizam. Vou arriscar desenvolver alguns cruzamentos dessa questo. Em todo caso,vamos partir da questo inicial de que a fobia uma forma de resposta ao encontro deum ndice da falta no Outro. Esse ndice apresenta-se basicamente de duas formas: napassagem inanimado/animado e nas relaes presena/ausncia.

    O ndice da passagem inanimado/animado representado, privilegiadamente,naquilo que Freud denominou zoofobia a fobia de animais. Nela, vemos representar-

    se um momento em que coisa e nome podem ser equivalentes. A escolha do animalfobgeno semelhante eleio de um totem: momento crucial em que o medo repre-senta o interdito de uma representao. Essa operao possibilita a instituio de inter-valos e recortes de lugares, que permitem ao sujeito se contar. Ou seja, a possibilidadede incluir-se ou excluir-se, bem como estabelecer dentro e fora. Freqentemente, oretorno desse momento apresenta-se nos sonhos com animais, que, nesse retorno se-cundrio, permite belos jogos de metforas.

    O ndice da passagem que chamamos genericamente presena/ausncia surgeprivilegiadamente na fobia do espao. Nela, como se num jogo de simbolizao osujeito ocupasse o lugar de um carretel, que tivesse perdido o fio que solda presena/ausncia. Assim que todo deslocamento assemelha-se a uma queda no nada, na me-dida em que falta a presena do duplo especular para sustentar o jogo presena/ausn-

    cia. por essa razo que tem efeito o acompanhante contrafbico, na medida em quea falta se sustenta somente em presena.

    possvel perceber que as fobias expressam os suportes os dois ndices dafalta no Outro que sero responsveis pela produo das identificaes: seja na rela-o a um trao, seja na relao ao semelhante. Como mencionamos anteriormente, naadolescncia acontece uma reedio dessas fundaes, o que torna o adolescente par-ticularmente sensvel a sintomas fbicos.

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    REVISTA: E o acting oute a passagem ao ato, o que podem revelar sobre osatos adolescentes?

    ANA COSTA: difcil abordar, de uma forma to genrica, essas duas expres-ses de atos. Teria de desenvolver todo um trabalho para situar teoricamente essasduas referncias, coisa que excederia a condio de uma entrevista. Prefiro lig-las,ento, construo de fronteiras como demarcao de territrios e acrescentar unspoucos elementos quilo que j coloquei antes. Digamos, de uma forma aproximada,

    que essas duas expresses de atos se registram do outro lado do espelho, na medida emque o ndice da falta no Outro no suportado na dialtica do semelhante. Podemos,talvez, dizer que ao Outro ele mesmo a que o ato se dirige. O sujeito, ento, estalienado a seu ato confundido com ele de uma forma absoluta. No acting out,reconstituindo, no seu ato, o significante enquanto valor de potncia flica. Na passa-gem a ato, encenando a falta primeira a falta do recalque originrio a priori neces-srio para que qualquer relao ao desejo se coloque.

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    Fernando Pessoa, um dos mais importantes poetas contemporneos, o poeta dadissonncia, o nico caso de heteronmia na literatura universal. A heteronmia,na literatura, se articula com a questo da subjetividade para a psicanlise: o que acon-

    tece em Fernando Pessoa no uma simples multiplicao de um eu em vrios, mas odesdobramento de uma alteridade em tal dimenso que o retorno ao Um se torna impos-svel. Transbordei, no fiz seno extravasar-me (Pessoa apud Perrone Moiss, 1990,p.11).

    No dia triunfal de 8 de maro de 1914, surge, em sua produo, outras vozesnomeadas: primeiro, Alberto Caeiro, o mestre; a seguir, Ricardo Reis e lvaro deCampos. Cada outro com produo e estilo prprios, biografia e at mesmo tipofsico. Alberto Caeiro, em busca da sensao pura, o poeta da despersonalizao, pro-duz odes modernas dentro de um projeto antipotico. Ricardo Reis o poeta da ticada abdicao, da transitoriedade, misto de estoicismo e epicurismo (carpe diem), cls-sico, tendo como referncia Horcio. lvaro de Campos, futurista em seu primeirotempo, poeta da tenso; do sentir tudo de todas as maneiras, paradigma da

    modernidade, o autor de Tabacaria.O poema Tabacaria foi publicado na revista Presena (julho de 1933) e teria

    sido composto no dia 15 de janeiro de 1928. A referncia que se conhece a de que no

    A TABACARIA DE PESSOAA rua e o arrepio metafsicoda interrogao sobre o real

    Lcia Serrano Pereira *

    * Psicanalista, vice-presidente da Associao Psicanaltica de Porto Alegre, mestranda em Le-tras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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    prdio em frente a um dos escritrios em que Fernando Pessoa trabalhava, na Ruados Retroseiros existia uma tabacaria, a Havanesa dos Retroseiros, que teria dadonome ao poema. No se sabe se a relao certa, mas, de qualquer maneira, conside-rada essa poesia (que falada de um lugar muito especial) como uma produoemblemtica, concentradora da obra de Fernando Pessoa, e um dos poemas mais fa-mosos da lngua portuguesa.

    Eduardo Loureno, em seu livro Pessoa Revisitado refere que, a partir de 1926,

    desde o poemaLisbon revisited, aparece na produo de Pessoa a mesma orfandademetafsica (coincidente com a orfandade real, a morte de sua me) de estrangeiroaqui e em toda parte. Em Tabacaria: E tudo isto estrangeiro, como tudo: Averdade que todos os poemas a partir dessa data tem todos um lado de sobrevivnciae por vezes de agonia de si mesma cansada. Deles emerge como resumo mtico delvaro de Campos, poeta da universal Iluso e por isso mesmo dilacerantemente ama-da e interrogada, acaso o mais grandioso e memorvel poema de Pessoa, A Tabaca-ria (Loureno, 1973, p.191).

    Para Eduardo Loureno, esse poema concentra toda a obra de lvaro de Cam-pos alma excedida de si mesmo e do universo trazendo o aroma que no se apagade todos os excessos. Refere que Pessoa soube transformar a simptica tabacaria dacidade terrestre e seu humilde dono no smbolo mesmo do Universo e de seu mistrio,

    simultaneamente evidente e incompreensvel, real e inacessvel, pondo em questosua angstia pessoal, como que portando um poder mtico e, ao mesmo tempo, ultra-passando-a, na medida do possvel, por um ltimo sorriso de compreenso e aceita-o infinitas da mesma Iluso (Loureno, 1973).

    A produo de um autor como Antnio Tabucchi merece tambm ser levadaem conta em se tratando de Fernando Pessoa. Tabucchi, em seu livro Pessoana mni-ma, escreve um artigo curioso, intitulado Pessoa, Campos e os cigarros. Abre o artigocom as seguintes palavras: H um fio de fumo que atravessa a Europa literria dosculo XX (p.63) (para unir imaginariamente duas cidades, Lisboa e Trieste, e doisescritores, Pessoa e Svevo, relao literria que trabalha no texto. Svevo o pseudni-mo de Schmitz, autor do romanceA conscincia de Zeno. Tanto Schmitz quanto Pes-soa eram fumantes inveterados, observa Tabucchi).

    O sculo XIX teria sido rico em absinto e pio (o real e o mal-estar de seutempo?), h textos soberbos do sculo XX dos quais podemos nos aproximar atravsdo sabor fugitivo de um cigarro. Segundo Tabucchi (1984), o poema Tabacaria todoele marcado pela dialtica entre o fenmeno da realidade, simbolizada pela tabacariado outro lado da rua, e pelo arrepio metafsico da interrogao sobre o prprio real(p.71). Questiona: por que que tem que ser exatamente uma tabacaria a veicular aimagem de uma realidade sem metafsica? Podemos nos contentar com a informaosobre a Havanesa dos Retroseiros, mas quantas lojas ele no teve diante dos olhos,

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    quantos pequenos restaurantes, cafs (o clebre Martinho da Arcada) dos quais erafreqentador, as lojecas da Baixa descritas por lvaro de Campos, por que essaescolha? Tabucchi prefere pensar nessa escolha como no casual, como uma espciede escolha necessria. Uma forma criativa, a meu ver, de fazer os significantes traba-lharem. Sua proposio ousada: Campos escolhe forosamente, cometendo um t-pico lapsus freudiano, exatamente essa loja e no outra porque exatamente nesta lojaque se vende um produto que ele emprega habitualmente, embora sem se dar conta

    disso, para neutralizar a sua angstia metafsica: o tabaco (Tabucchi, 1984, p.72).Trata-se de uma especulao, podemos argumentar, mas uma proposioque, se examinada internamente ao poema Tabacaria, encontra sustentao o mo-mento em que o poeta acende um cigarro, saboreia no cigarro a libertao de todos ospensamentos, segue o fumo e goza num momento sensitivo e competente (p.74) aconscincia de que a metafsica uma conseqncia de estar mal disposto (disposto/exposto ao mal-estar, angstia metafsica?). Fumo, fugacidade, sculo XX e suas me-tforas. Tanto o cigarro como os jornais, as quinquilharias das tabacarias remetempara o efmero, a rapidez, o descartvel, o que se esfumaa na sociedade de consumo,a mercadoria, a brevidade e rarefao.

    Em O poema e as mscaras, Carlos Felipe Moiss (1981) situa o poema des-tacando sua configurao fechada e coesa, sntese de uma viso do mundo como ne-

    nhum outro poema do autor, texto privilegiado, articulador das grandes linhas de for-a, os ncleos essenciais da poesia pessoana. Tabacaria pode ser concebido tantocomo um ponto de partida ncleo gerador de perspectivas poticas , como de che-gada, de recolha, como diz, como a reunio da diversidade de elementos que estodispersos na obra de Pessoa.

    A temtica de Tabacaria traz os elementos do ser, do nada, da totalidade, doimpossvel, do sonho, da realidade, e, em especial, toda a interrogao pelo ser e pelofazer potico. Os elementos so apresentados no seu confronto tudo/nada, sonho/reali-dade, dentro/fora. Vale a pena irmos devagar nessas oposies; no se tratam de confron-tos excludentes mas de uma organizao em constelao, esse universo em movimen-to. Ordens contraditrias que se articulam, podemos dizer (como no inconsciente).

    No sou nada

    Nunca serei nada.No posso querer ser nada parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Como no sofrer o impacto dessas palavras que nos introduzem em Tabaca-ria? So fortes, categricas, e nos pem no contato direto com uma de suas questesmais contundentes: totalidade e negatividade. um incio extremamente concentradordo desenvolvimento de todo o poema, que segue de um s flego, perto da narrati-va, sem padres de retorno ou de regularidade.

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    No sou nada se desdobra e ganha fora nas afirmaes seguintes, nas vari-aes que deslizam at tenho todos os sonhos do mundo. O ser e o ter, camposdistintos, mas cuidadosamente articulados, constituem um ponto piv na potica deFernando Pessoa que no cessa de ser posto em questo a diviso que cinde o sujeitolrico, a reiterada indicao daquilo que faltoso, que no fecha.

    A relao entre no ser nada e ter todos os sonhos do mundo pauta todo odesenvolvimento do poema, que vai apresentar, na seqncia, mais um desdobramen-

    to conseqente a essa diviso:Janelas do meu quarto,Do meu quarto de um dos milhes do mundo que ningum sabe quem (E se soubessem quem , o que saberiam?)Dais para uma rua inacessvel a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,Com o mistrio das coisas por baixo das pedras e dos seres,Com a morte a por humidade nas paredes e cabelos brancos nos ho-mens,Com o destino a conduzir a carroa de tudo pela estrada do nada.

    Janelas do quarto que aparecem como moldura, abertura, passagem na distri-buio dos lugares: de um lado, o sujeito que se interroga no espao do quarto, priva-

    do, isolado, espectador no reconhecido, observador da outra cena; do outro lado, acena da rua, pblica, espao da ao, dos fatos acontecendo, espao da atualizao,onde os sonhos poderiam vir a ser realidade, mas onde o cruzamento entre essesdois lugares encontra um impossvel.

    O sujeito que interroga, que se indaga sobre o mistrio das coisas, sobre apassagem do tempo, sobre a morte, a finitude, produzido, ele mesmo, comoefeito de sua interrogao. a partir dessas indagaes que ele . O homem darua, a menina, o Esteves sem metafsica so aqueles que fazem, que compramcigarros, que comem chocolates, que passam apenas, no se detm na interroga-o. Lembra o texto de Walter Benjamin (1989) com o comentrio sobre o contode Edgar Alan Poe, O homem na multido que fala do convalescente de umadoena grave que, sentado em um bar, desde o seu interior, observa a rua atravs

    da janela, o movimento intenso da multido que passa apressada, distrada,fervilhante, enquanto ele, destacado desse movimento (perdi-me na contempla-o da cena da rua) pode pr um olhar de certa maneira deslocado sobre o exte-rior, marcado por uma espcie de exlio, a doena grave, por vislumbrar algo dolimite, o que para os outros naquele contexto no est em questo. Essa pareceser a linha divisria que marca a impossibilidade de recobrir um mundo pelooutro, ou uma posio pela outra. H uma impossibilidade de fazer que o pensa-mento tenha acesso rua, transformado em ao e, inversamente, a impossibi-

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    lidade de reduzir a pensamento a ao das pessoas que cruzam a rua, compreen-dendo-lhe os significados e a finalidade (Moiss, 1981, p.70).

    No h como conciliar o que seria como duas realidades distintas: a do sujeitoque se interroga, que pensando, contemplando (evocando a posio neoplatnica emPessoa), e a realidade da rua, a ao. A rua real para aqueles que esto nela, que acruzam, que a povoam, mas impossivelmente real para quem est do outro lado, noquarto, lanando o olhar e o pensamento sobre a rua. A rua tambm se constitui en-

    quanto objeto de interrogao. O mistrio das coisas por baixo das pedras e dos se-res, o desconhecimento, a rua est ali como mistrio a ser desvendado. Mistrio porbaixo, a dimenso do oculto pessoano que, talvez, nesse caso, se remeta prpriacondio de outridade, do impossvel recobrimento das coisas em termos de identi-dade, de substituio, de sempre haver uma outra palavra, uma outra cena. Com oDestino a conduzir a carroa de tudo pela estrada de nada (1996, p.61). O caminho circular, e voltamos aqui ao termo do primeiro verso, o nada.

    Em Fundamentos filosficos da obra de Fernando Pessoa temos o apontamen-to da existncia do ser atravs do nada que o fundamenta. A citao de Pessoa: Huma tendncia criadora em mim de entificar e nadificar. No concebo o ser sem lheapor o nada e no concebo o nada sem, automaticamente, o entizar (Pessoa,[(1928)1996], p.134). O nada necessrio para que o ser exista e est em uma condi-

    o de precedncia sobre o ser. O ser sai, por oposio, do no-ser, que vem antes.Reafirma-se a constituio do sujeito, que parte inicialmente de uma alteridade, nega-o, daquilo que se situa como no-eu, fora do eu, uma exterioridade que vai produ-zindo as bordas do eu, da positivao como eu. O no vem primeiro, o fora precede odentro em matria de identidade. A questo reiterada na obra de Pessoa: Mas ser eno ser, real e irreal, no sero, no fundo, meros episdios de uma aventura interior?(Pessoa apud Coelho, 1971, p.134).

    A carroa conduzida pelo destino, em um caminho com o mistrio das coisaspor baixo traz o se saber sem condies de domnio: um homem subordinado aalgo que o ultrapassa, seja o Destino, Deus, a contingncia ou mesmo a sua prpriasituao dividida, essa que o torna incapaz de dar conta de todos os seus atos, porhaver uma disjuno fundamental entre ser e saber. O estou hoje dividido, no poe-

    ma, apresenta a dicotomia entre a lealdade devida... Tabacaria, do outro lado da rua, como coisa real por fora, eE sensao de que tudo sonho, como coisa real por dentro.

    Ser o que penso? pergunta o poeta da Tabacaria. Que sei eu do queserei, eu que no sei o que sou?

    A possibilidade de coincidir ser e pensar se d em momentos fugazes, entregrandes intervalos angustiados. Um desses momentos de certa fulgurao no poema e,

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    que pode nos remeter, talvez, a essa alternncia de certa forma inexorvel, introduzidapor uma de suas mais belas expresses: escravos cardacos das estrelas.

    Escravos cardacos das estrelas,Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;Mas acordamos e ele opaco,Levantamo-nos e ele alheio,Samos de casa e ele a terra inteira,

    Mais o sistema solar e a Via Lctea e o Indefinido.A cada acordar, ainda na zona de passagem entre o dormir e o despertar, aindaem intimidade com o campo do sonho, o homem pode achar que tem uma ligao,uma comunho com o andamento do universo, das estrelas. Cardaco das estrelas. Queo ser toca com sua pulsao algo do ilimitado, sonhando com uma altura impossvel,inatingvel, intangibilidade reconhecida no momento seguinte, no despertar. depoisdo acordar que o mundo opaco e alheio (e o sujeito cheio de sintomas, de inibi-es...).

    Estou hoje vencido.Falhei em tudo...

    Entre a ambio e o realizado se remarca a impossibilidade, talvez imaginarizadacomo impotncia.

    Em quantas mansardas e no mansardas do mundoNo esto nesta hora gnios-para-si-mesmos sonhando?Quantas aspiraes altas, nobres e lcidas ,Sim, verdadeiramente altas nobres e lcidas ,E quem sabe se realizveis,Nunca vero a luz do sol real nem acharo ouvidos de gente?O mundo para quem nasce para o conquistarE no para quem sonha que pode conquist-lo,ainda que tenha razo.Tenho sonhado mais que o que Napoleo fez.Tenho apertado ao peito hipottico mais humanidades do que Cristo.Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,Ainda que no more nela;Serei sempre o que no nasceu para isso;Serei sempre s o que tinha qualidades;Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta aop de uma parede sem portaE cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,E ouviu a voz de Deus num poo tapado. Crer em mim?

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    No, nem em nada.Com a impossibilidade, o tom nos evoca a melancolia que cai como efeito

    desse profundo desencontro sem remdio, no dizer do poeta, pela via das oposiessonho/realidade, contemplao/ao, mas que paradoxalmente o desencontro quefunda, que sustenta as condies para o fazer potico: o que no nasceu para isso,aquele que sustentado por uma espcie de negatividade, de renncia a estar imersono mundo da realidade da ao para poder ouvir a voz de Deus num poo tapado, ou a

    cantiga do Infinito, ou estar frente a essa parede sem porta, que impede o acesso rua.O gnio-para-si-mesmo se sabe, se supe como tal, mas no reconhecido pelaHistria, pela tradio, diferena de Napoleo, Cristo e Kant conquistadores domundo. O mundo para quem nasce para o conquistar, e no para o sonhador, poeta.O paradoxal que o poeta ele mesmo produtor de atos alteradores, em outro registro:o da criao.

    No poema o eu lrico reitera uma procura:A aprendizagem que me deram,Desci dela pela janela das traseiras da casa.Fui at o campo com grandes propsitos.Mas l encontrei s ervas e rvores,E quando havia gente era igual outra.

    Descer da aprendizagem que lhe deram, descer podendo levar a se dispensardessa tradio, ainda reforando mais o contraste entre a tradio elevada e de facha-da, em contraposio s traseiras da casa, a no-fachada, o campo, o suposto retorno natureza. De qualquer forma, o encontro com a decepo: o campo se apresenta comomais uma iluso, ervas e rvores quem sabe reais como a rua, e a gente igual outra.

    Que dizer dessa outra gente? Um dos momentos mais fortes do poema, fica areverberar nos ouvidos. a passagem da pequena dos chocolates:

    (Come chocolates, pequena;Come chocolates!Olha que no h mais metafsica no mundo seno chocolatesOlha que as religies todas no ensinam mais que a confeitaria.Come, pequena suja, come!

    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdadeCom que comes!Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que de folha de estanho,Deito tudo para o cho, como tenho deitado a vida).

    Ao mesmo tempo em que uma interpelao forte, ela se d toda entre parn-teses, o sujeito potico est falando para ela, imperativo, mas no propriamente comela. O retorno dessa fala sobre si mesmo, fala agressiva (quase vemos o poeta esfre-gar, mesmo, o chocolate na cara da menina), perplexidade frente a essa menina que

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    est como se fosse toda comendo chocolates, esquecida do que quer que seja quepudesse estar para fora de sua ao.

    O eu que ali enuncia est nesse tecido de palavras que o separa de estar todona realidade.A menina, ela se encontra mergulhada em seu ato, no prazer do chocola-te, nenhuma dvida sobre seu ser no mundo.

    A metafsica e o chocolate. Ali surge a equivalncia entre religio e confeitariacomo uma ironia. O que as religies lutam por apaziguar, conciliar, responder, um

    chocolate o faz na perfeio, em um gozo talvez por demais na implicao do corpo.Suja, pequena suja.Tabacaria vai nos trazendo, nesses momentos fugazes, pela via da potica, o

    que da ordem da ciso subjetiva, corte entre sujeito e objeto. Uma das formas dedizer o impossvel, o real para Lacan: o que o homem perde na operao significante o fato de que seu corpo no o representa enquanto sujeito.

    Mais adiante, vai surgir atiro a roupa suja que sou, sem rol (...). Desfazer-sede si como roupa suja, o movimento de se desfazer, de se livrar, talvez, dessamaterialidade que sempre faz o desencontro se evidenciar. Atirar a roupa sem rol para no retornar, sem volta.

    Meu corao um balde despejado (...) as musas no esto mais l, nocomparecem, desde a deusa grega concebida como esttua, a patrcia romana

    impossivelmente nobre e nefasta, a dama do amor corts gentilssima e colorida, amarquesa do sc XVIII decotada e longnqua, a cocote clebre, e, na atualidade nosei qu moderno. A srie dessas mulheres musas, mitos, vai, desde o divino, des-cendo cada vez mais, os adjetivos so cada vez mais mundanos nobre, colorida,decotada, at a diluio nesse no sei qu moderno. A srie traz, da mesma forma,desde o homem perfeitamente integrado comunidade, at o sc. XX, esvaziado demitos, fundado no individualismo, no isolamento.

    A rua que o sujeito potico v agora com uma nitidez absoluta sem mitos. Solojas, carros, passeios, ces, entes vivos vestidos um universo esvaziado, tudo isso estrangeiro. A rua era mistrio e agora nitidez, desvendada e ao mesmo tempoaparente.

    Quando quis tirar a mscara,

    Estava pegada cara.A mscara se prende ao ser, o poeta um fingidor, as mscaras so inevitveis,

    fices, algo da verdade. No sculo XX, o poeta j no ocupa aquele lugar reconhe-cido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a aurola (Baudelaire), a super-viso, e s tem acesso viso parcial dos fenmenos (Perrone Moiss, s/ ref.).

    Ao final, o poeta e a tabacaria diretamente confrontados. Os dois morrero, umdeixa versos, o outro a tabuleta. Depois morrero os versos, a tabuleta, a rua ondeesteve a tabuleta, a lngua em que foram escritos os versos, o planeta. Em outros siste-

    ATABACARIA DE PESSOA...

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    mas, qualquer coisa como gente continuar fazendo coisas como versos...Continuar fazendo coisas como versos e vivendocomo genteSempre uma coisa defronte da outra.

    A referncia inutilidade, a impossibilidade, at o momento em que uma aotoma conta da cena:

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)

    E a realidade plausvel cai de repente em cima de mim. o momento de fumar aquele cigarro, de pensar ironicamente em um casa-mento com a filha da lavadeira.

    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calas?)Ah, conheo-o: o Esteves sem metafsica.(O Dono da Tabacaria chegou porta).Como por um instinto divino o Esteves voltou-se eviu-me.Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus Esteves!, e o universoReconstruiu-se-me sem ideal nem esperana, e o Dono da Tabacariasorriu.

    Para concluir, voltamos s palavras (e sensibilidade) de Antnio Tabucchi:

    A esta altura, Campos, com o universo que se lhe reconstri sem ideal nem esperan-a, tambm ele um Esteves sem metafsica, um homem prtico, quotidiano, ntido,que poderia possuir uma horta. Um homem normal. S que esta normalidade dura omomento sensitivo e competente de um cigarro (Tabucchi, 1984, p.74).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Charles Baudelaire, um lrico no auge do capitalismo.So Paulo: Brasiliense, 1994.COELHO, Antnio Pina. Os fundamentos filosficos da obra de Fernando Pessoa. Lisboa:Editorial Verbo, 1971.LACAN, Jacques. O seminrio.Livro 7. A tica da psicanlise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1986.

    LOURENO, Eduardo. Pessoa revisitado. Leitura estruturante do drama em gente. Lisboa:Editorial Inova/Porto, 1973.MOISS, Carlos Felipe. O poema e as mscaras. Coimbra: Livraria Almedina, 1981.MOISS, Leyla Perrone. Pensar estar doente dos olhos; e Pessoa ningum? Artigo fotocopia-do, sem referncias bibliogrficasPESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1996.SOLER, Colette. Laventure literraire ou la psychose inspire. Rousseau, Joyce, Pessoa. Paris:...Inprogress Editions du champ lacanien, 2001.TABUCCHI, Antnio. Pessoana mnima. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984.TUTIKIAN, Jane. Notas de seminrios proferidos no curso de ps-graduao em Letras, PortoAlegre, UFRGS, 2002.

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    Nesta curta reflexo, procurarei me restringir a um nico tema: as elaboraes deFreud sobre a Guerra em certos textos deste perodo, buscando apontar algumasdiretrizes daquilo que considero a contribuio psicanaltica sobre a violncia quandoconsiderado o contexto social em que esta reflexo se inscreve.

    Sabemos do desastre produzido na Europa com o advento das duas grandesguerras. Quanto a Freud, alm de ter que enfrentar o esvaziamento das fileiras dosmuitos psicanalistas (Karl Abraham, Sandor Ferenczi, Otto Rank, Max Eitington) con-

    FREUD E A PLIS:ESPECTROS DA GUERRA*

    Paulo Endo *

    * Em 1998 apresentei no Congresso Regional da ABRAPSO (Associao Brasileira de Psicolo-gia Social), um trabalho sobre o ndio Patax Jos Galdino dos Santos, queimado vivo porquatro jovens de classe mdia, enquanto dormia num banco em praa pblica no Distrito Fede-ral. Minha inteno era contribuir neste debate escuro com a lamparina psicanaltica. Naqueleepisdio, os quatro rapazes procuravam um libi na alegao de que tudo no passava de umabrincadeira. Em novembro de 2001, voltei a falar sobre o tema, mas num contexto completa-mente diferente. Comemorava e compartilhava com os colegas da platia, ainda no frescor dosacontecimentos, a condenao dos quatro jovens assassinos a 14 anos de priso por homicdiodoloso, triplamente qualificado: por motivo torpe (brincadeira), cruel (atear fogo) e impossvelde defesa (a vtima dormia). No avanarei nesse tema, mas creio que a justia foi exemplarnesse caso. A pretensa brincadeira, que soava como libi no incio do processo, termina comoqualificao do crime. O mesmo com a crueldade, que justamente estancada quando se tornauma outra qualificao do crime, e a justia assume, assim, a responsabilidade social pelosexcessos psquicos cometidos em nome do gozo narcsico, da destruio lenta do outro, numritual que termina completando o circuito sadomasoquista na ao e no discurso dos jovens

    homicidas: da incinerao divertida de Jos Galdino condenao e privao de liberdade dosassassinos. a justia ento, nesse caso, que recusa a definio torpe de uma brincadeiraprivada, redefinindo-a como um crime pblico. E a justia que exemplarmente arremata: noh brincadeira que termina em crime. O presente trabalho segue uma inspirao parecida e sebeneficiou dos anteriores.Gostaria ento de dedicar este artigo a Jos Galdino dos Santos, encerrando-o, curiosamente, nomesmo ms em que ele morreu.* Psicanalista, Doutorando pela USP, Pesquisador do Ncleo Psicanlise e Sociedade da PUC/SP onde coordena a sub-rea Violncia, Democracia e Subjetividade, professor convidado doPrograma de Ps-Graduao em enfermagem peditrica da Universidade Federal de So Paulo(Escola Paulista de Medicina). E-mail: [email protected]

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    vocados para a guerra, como mdicos do exrcito, alm da evaso dos pacientes de seuconsultrio particular, fonte de sua sobrevivncia, teve de viver e testemunhar a partidade trs dos seus filhos (Martin, Oliver e Ernest) para ofront. Seu genro Max Halberstadt,marido de Sophie, tambm foi convocado, combateu na Frana e aps ter sido ferido, foireformado por invalidez. Seu sobrinho Hermann Graf morreu em combate.

    Isto sem falar nas agruras vividas por Freud durante a segunda guerra, naViena depauperada aps 1933, ano da ascenso de Hitler ao poder. Perodo em que Freud

    presenciou a ecloso violenta do anti-semitismo nas ruas de Viena, viu sua casa revolvidae saqueada pelos nazistas, alm da dramtica priso de Anna pela Gestapo em 1938.Esses fatos sempre mantiveram Freud muito prximo das guerras, da morte e

    da violncia, e suas respostas a essa proximidade esto presentes ao longo de suaobra1, revelando variados matizes sobre um tema que ele sempre discutiu em muitosmbitos: a problemtica da destruio do homem pelo homem. Seu olhar sobre estedebate nunca foi furtivo, e gerou contribuies fundamentais para a metapsicologia,cujas conseqncias mais evidentes esto em seus textos sobre a guerra, nos chama-dos textos sociais e no extraordinrioMais alm do Princpio do Prazer.

    Em 1920, ano da publicao deMais alm do Princpio do Prazer, Freud apre-senta a uma comisso de guerra, instituda pelo Ministrio Austraco um Memorandumsobre o tratamento eltrico dos neurticos de guerra2, publicado s em 1955.

    1 H tambm aquelas inolvidveis respostas e comentrios sarcsticos de Freud frente violn-cia sofrida diretamente por ele, contra sua obra ou contra sua famlia. Desde sua dedicatriaendereada a Mussolini, em seu texto Por que a Guerra?, quando Freud o chama de heri dacultura (Gay, 1989, p.408), em 1933; ou quando, comentando a queima de seus livros a ErnestJones, num momento particularmente difcil para os judeus residentes na ustria, diz com ironiae rudeza: Que progressos estamos fazendo. Na Idade Mdia, teriam queimado a mim; hoje emdia eles se contentam em queimar meus livros. (Gay, 1989, p.536). Ou, ainda, quando sua casafoi invadida e saqueada a mando da Gestapo, e Freud soube que haviam roubado da casa cercade 840 dlares, comentou mais tarde que nunca haviam lhe pago to bem por uma nica visita(sesso) (Jones, 1989, p.224). A este respeito, remeto o leitor ao interessantssimo artigo de JeanMnchal (1988) intitulado Une femme est brle.2 Esse texto foi publicado pela primeira vez por James Strachey na Standard Edition inglesa das

    obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Reproduzo abaixo um trecho da nota escritapor Strachey, referente ao texto: No fim da primeira Guerra mundial, aps a dissoluo doImprio Austro-Hngaro, correram muitas notcias em Viena de que os homens que sofriam deneuroses de guerra haviam sido brutalmente tratados pelos mdicos do Exrcito. Foi, portanto,instaurado um inqurito sobre a matria pelo ministro de Guerra Austraco, no decorrer do qualFreud foi chamado a dar a sua opinio especializada. Conseqentemente ele submeteu ummemorandum comisso responsvel pelo inqurito, apresentando-se a esta, depois, para umdepoimento oral. O memorandum foi descoberto nos Arquivos do ministrio da Guerra peloprofessor Josef Gicklhorn, da Universidade de Viena, que generosamente colocou nossa dis-posio uma cpia fotosttica.(Freud, 1920 [1955], p.227)

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    Nele, Freud ir discutir, ou melhor, ir se opor utilizao do choque eltricono tratamento das neuroses de guerra pelos mdicos funcionalistas alemes. Oposioesta que soa mais como denncia, j que se tratava de um fato consumado e ocorridodurante os anos de guerra.

    Critica ele, nessa ao teraputica simplria e tosca (Freud sempre conceitual),uma tentativa absurda de se apropriar do conhecimento psicanaltico a fim de susten-tar uma prtica duplamente violenta. Ou seja, se o soldado buscava, com a neurose,

    fugir inconscientemente do intolervel (medo da morte, impossibilidade de matar ou-tras pessoas, rebeldia contra a supresso implacvel da prpria personalidade pe-los seus superiores, etc.), e se essa motivao era inconsciente, portanto inatingvelpelo argumento ou pela presso, nada mais coerente do que tornar esse procedimentode fuga mais intolervel do que a prpria guerra. Essa foi a lgica e a teoria do trata-mento com choques eltricos, aplicados s neuroses de guerra.

    Foi no corpo, ento, que se pretendeu adestrar o inconsciente do soldado. Paraisso, aplicavam-se, nos ex-combatentes, violentos choques eltricos, a fim de tornar anova e indita experincia do choque mais intolervel do que a da guerra. Esse proce-dimento visava habilitar o soldado ao intolervel, restituir suas funes de soldado,devolvendo-o assim ao horror psquico que a neurose buscava aplacar.

    Freud ratifica ao vivo, frente aos militares, uma face da guerra discutida clara-

    mente, em 1915, no artigo Consideraes sobre a Guerra e a Morte. L ele dir que oEstado que exige de seus cidados atitudes da mais pura civilidade rompe completa-mente com tais atitudes por livre escolha e cobra de seus cidados, outrora pacficos,que destruam, matem, saqueiem e torturem aqueles que, a partir de ento, sero for-malmente definidos como adversrios. No caso do tratamento por choque aplicadoaos soldados, o exemplo mais eloqente, pois se trata de violentar e traumatizar seusprprios aliados: os soldados que lutaram nofrontem nome da ptria. Essa contradi-o, entretanto, advoga Freud, s pode ser ressaltada por uma prxis (a psicanlise)que reconhece no soldado traumatizado marcas psquicas inalterveis deixadas pelaexperincia da guerra, a cujo curso e o destino, s um trabalho alongado no tempopode acompanhar e deslindar.

    Numa guerra, a prontido, exigida ao soldado, e sua convivncia conflitiva

    com aquilo que Freud denominou, em 1919, (Introduo ao simpsio sobre as neuro-ses de guerra), como um conflito entre o eu-pacfico e o eu-combatente converte-se,cotidianamente, num processo de perda abrupta de todos os investimentos libidinaisem objetos que no existem mais, o que implicaria uma liberao excessiva (e traum-tica) da energia ligada ao eu e aos seus objetos imediatamente perdidos. Fratura narcsicaque se procurou reabilitar com choques eltricos. Golpes sobre o corpo at o ponto dodesconhecimento e alheamento total de tudo que confere potncia e representabilidadeao eu, de tudo que fixa libidinalmente todas aquelas instncias provisrias, internas e

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    externas que demarcam o mbito da ao e do discurso onde qualquer reconhecimentotorna-se possvel.3

    A conseqncia anmica imediata dessa estratgia de reabilitao a perdade todas as referncias internas e externas, referncias identitrias e aquelas, outras,que permitem reconhecer na realidade exterior uma representao fivel e minima-mente estvel na relao com o prprio desejo. O prprio Estado, como refernciaincerta e evanescente, destitui os sujeitos (soldados) de uma mnima posio desejante,

    seja do ponto de vista do alvo da pulso, que deve necessariamente voltar-se para asustentao da vida frente iminncia da prpria destruio e ocupar-se maciamentecom ela como condio de sobrevivncia; assim como tambm, do ponto de vista dafonte pulsional, que se desloca no corpo como pura intensidade, este um dos efeitos dochoque eltrico.

    Essa energia livre no encontrar no recalcamento uma nova fonte de investi-mento, j que no se trata de um conflito entre desejos e proibies; mas ser empur-rada para um mais aqum do princpio do prazer, onde as condies psquicas para aativao do mecanismo de recalque simplesmente inexistem, e o que vigora umatentativa de reativao obsessiva do ocorrido.

    A repetio do mesmo por uma motivao que no se esgota na busca de prazere na diminuio do desprazer, onde o que est em jogo a sobrevivncia do psiquismo,

    como observou Freud, a conseqncia do traumtico.Voltando ao memorandum, veremos que ali incide uma crtica, se quisermos,humanitria, de Freud e um elemento que remexe a clnica. A crtica ao funcionalis-mo e covardia mdica, incapazes de agir contra o Estado e a favor do sujeito neur-tico; o elemento clnico introduzido por Freud a partir da observao de que com estetipo de tratamento ponderado, laborioso e tedioso era impossvel contar com a prontarecuperao do paciente para o servio ativo(Freud,[1920]1955, p.231)).

    O psiquismo no agenta tudo constatao mais do que bvia que a Psican-lise leva s ltimas conseqncias, requisitando um trabalho que se alonga no tempo.Frente a isso, a tcnica de produzir sucessivos traumatismos no sujeito (atravs dochoque eltrico) a fim de devolv-lo s pressas guerra s coerente com a prpriafragmentao tica experimentada em uma guerra, que permite, entre outras coisas, os

    genocdios e a tortura e, depois, institui um tribunal para julgar os crimes de guerra.Destri no privado para reparar no pblico.

    3 Vale citar Freud: Nas neuroses traumticas e na guerra o eu do indivduo se defende contraum perigo que o ameaa desde fora ou que se lhe apresenta encarnada na formao do eu; nasneuroses transferenciais da vida civil, o eu considera sua prpria libido como um inimigo cujasexigncias lhe parecem perigosas. Em ambos os casos existe o temor do eu ante a possibilidadede experimentar um dano; no segundo, pela libido; no primeiro, pela violncia exterior(1919,p2544).

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    Tal tcnica reparadora, no limite, pretendia abolir o espao temporal cavadosofregamente entre os horrores inerentes guerra e os horrores inerentes ao choqueeltrico: hiato de tempo colapsado onde o sujeito busca algum alvio neurtico.

    Mas num sentido diferente daquele em que o recalcamento converte-se nummecanismo fracassado quando a competncia das defesas do ego pode ser questio-nada , na sucesso da experincia traumtica podemos reconhecer, muitas vezes, aativao da pulso de morte cujo alvo repetir, na mesma intensidade, um estado

    aqum do ego, em que nenhum prazer possvel seno a prpria morte, onde o sujeitobuscaria algum repouso. Repouso s encontrado, necessariamente, com a prpria ani-quilao. Freud ratifica isso observando que jamais foi desmentido o fato de que noshospitais alemes houve mortes nesta poca em conseqncia dele (o tratamento por

    choque), e suicdios em conseqncia dele([1920]1955, p.230)) .

    preciso considerar, entretanto, que, no memorandum, Freud est falando aocomando militar austraco. E, certamente, falando das finalidades humanitrias dotratamento analtico frente a uma exigncia capital pela prontido comportamentalque , de todo modo, a nica coisa que se pode exigir de um Estado que perde poder,autoridade e legitimidade e busca recuper-los, agora, atravs da violncia.4

    O tratamento para as neuroses de guerra atravs do choque eltrico a demons-trao daquilo que se perde numa guerra e que no poderia ser recuperado, seno a partir

    de uma toro tica que considere a incidncia direta da violncia nos corpos dos comba-tentes, domesticados fora. isso que Freud procurou demonstrar ao comit austraco.Nesse exemplo, o Estado, sem princpios, impe ao corpo do sujeito um nico

    lugar: a iminncia da prpria morte (na guerra ou no choque eltrico). Ao faz-lo,prope ao sujeito um esquecimento radical de si, que s atingido com a lembranapermanente da dor e do desprazer, estado a-conflitual, em que o desejo o desejo demorte. Ali a repetio obsessiva da prpria dor, sintomatologia tpica nas neuroses deguerra, reverte-se num desejo radical de pacificao absoluto: o fim da prpria vida.

    Sabemos o quanto a violncia sofrida pode esvair-se no mutismo, no silncio.Sabemos tambm o quanto o mutismo da violncia sofrida expressa-se socialmente nodiscurso da violncia consentida e plenamente autorizada. Tantos autores nos alertaramsobre esse risco, apontaram sua virulncia e chamaram nossa ateno contra a autori-

    dade absoluta do discurso da vtima, que se isola em preconceitos e imediatismospropagando a violncia cotidianamente.5 De certa maneira, quando se trata de contri-

    4 Estou me servindo, implicitamente, aqui, da longa discusso crtica que faz Hannah Arendtsobre os conceitos de poder, fora, vigor, autoridade e violncia, a partir de toda reflexo soci-olgica moderna, extraindo da discriminaes conceituais que permitem revisar a prpria rela-o entre Estado e sociedade civil. Remeto o leitor diretamente para sua obra, especificamentepara o texto Sobre a Violncia (1994).5Nesse ponto estou me utilizando dos trabalhos de Teresa Pires do Rio Caldeira (2000), Gilber-to Velho (1991) e Walter Benjamin (1994).

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    buir com a prpria experincia para aplacar a violncia futura, muitas vezes o discursoda vtima se ressente da impossibilidade de restaurar-se no lugar de uma fala prpria,singular, sem os apelos das solues fceis, caducas e preconcebidas, assumidas eenraizadas nas representaes coletivas e que rapidamente tornam-se, socialmente,um verdadeiro desastre quando capitalizadas como porta-vozes da sociedade, dopovo ou de qualquer outra instncia genrica e inespecfica, onde se ancoram abs-tratamente os discursos indecentes e irresponsveis das mdias e da poltica nacional.6

    Freud alertou-nos para a impropriedade do discurso da vtima, muitas vezesincapaz de inscrever o prprio sofrimento num comrcio linguageiro em que o sujeitotem apenas pedaos, rudimentos de falas desorganizadas, torcidas, sem eloqncia.

    Sob o risco de repousar de uma vez por todas no corpo violentado, o vazioinaugurado pelo trauma reenviado, permanentemente, para um discurso e uma aouma vez mais mortferas ao eu. Matar, exterminar e erradicar todos os possveisofensores so, muitas vezes, as fantasias secretas de quem no consegue pensar por simesmo quando reencontra sofregamente o instante da dor, sem representao.

    Como psicanalistas, buscamos, tal como aconselhou Walter Benjamin (1936),as narrativas a serem construdas em corpos que se espatifaram contra uma violnciaque, dada a sua fora inapelvel e imperativa, derrota qualquer trabalho psquico.

    Matar-se ou matar o outro, psicanaliticamente falando, so respostas ao mesmo

    desejo de morte ao eu, com repercusses psquicas infinitamente variadas e expres-ses sociais muitas vezes terrorficas e deletrias.Considerado o sujeito num mbito muito mais vasto do que o recorte que lhe

    permite definir-se como indivduo, as repercusses que a pulso de morte tem sobre aaniquilao do eu so extensas, duradouras e vazam para campos alheios ao settinganaltico.

    Quando Freud, em sua verso final, insiste em responder a Einstein sobre oporqu das guerras com base na definio de uma pulso de morte voltada para oexterior (pulso de destrutividade), sabemos que, no momento em que pensamos numnico caso concreto, prximo de ns o suficiente para despertar experincias de hor-ror, vazio representacional e perplexidade psquica, no estamos to longe do expedi-ente das guerras. Formas modernas e metropolitanas de fazer do estrangeiro o inimigo

    criam permanentemente novos inimigos, novos estrangeiros.Para falarmos apenas de nossa prpria cidade, dessa ordem a forma de vio-

    lncia praticada por agentes policiais do Estado de So Paulo, quando torturam e ex-terminam indiscriminadamente, preferencialmente as populaes pobres das perife-rias da cidade de So Paulo. Essa ao, que se repete h dcadas, nos lana imediata-

    6 Ver sobre isso os discursos exemplares de Paulo Salim Maluf em todas as suas campanhascomo candidato a cargos eletivos representando o povo da So Paulo.

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    mente num terreno onde muitas lgicas se misturam: a paixo pelo sofrimento e pelador prpria e do outro, rituais sadomasoquistas sofisticados em crueldade, ausncia deum Estado Democrtico de direito, impunidade das instituies do Estado, incompe-tncia do Poder Judicirio, falncia das prticas de encarceramento para minorar cri-mes de qualquer natureza, convivncia entre democracia como sistema e ditadura comooperador do sistema, fracasso da poltica como palco da resoluo de conflitos, etc.Muitas lgicas e discursos operam na destruio de cidades inteiras, gradual e insidi-

    osamente, e decifr-las, combat-las, tornou-se impossvel a partir de um nicoreferencial de experincia e anlise, qualquer que seja.A contribuio psicanaltica ressente-se, muitas vezes, da distncia em que se

    coloca em relao aos casos que pretende analisar e aos sujeitos sobre os quais preten-de falar. No s como forma de disponibilizar a escuta analtica nesses casos, comotambm definir com mais clareza em que ponto a reflexo freudiana, por exemplo,articula-se e colide com outros saberes e discursos, e em que ponto os desloca ou deslocada por eles. Isto o que possibilita, de fato, outras vias propositivas para pen-sar, compreender e agir sobre fenmenos que, por princpio, pem a pique, quando ocor-rem, todas as possibilidades imediatas de fala e escuta, s muito lentamente recuperadas.

    A vastido dos problemas que se colocam e a especificidade dos contextosonde as violncias brotam e se enrazam tm nos conduzido cada vez mais prximos

    de solues locais, com participao local e dispondo do conhecimento inerente scomunidades, que por vezes, paradoxalmente, no o reconhecem. Enquanto, no Bra-sil, alguns polticos ligados a partidos de esquerda, Ouvidorias, Universidades e ONGs,por exemplo, pretendem estabelecer interlocues verdadeiras entre o Estado e a soci-edade civil, outros, como setores da igreja, movimentos sociais, lideranas comunit-rias, escolas, pesquisadores de vrias reas do saber, trabalham no reconhecimento e,s vezes, na reelaborao da dor singular provocada pelos acontecimentos traumticosdaqueles que foram submetidos s muitas modalidades de violncia e foram, aps oespetculo miditico, relegados a segundo plano. Todos estes trabalhos operam, emgeral, de modo fragmentrio e desorganizado e, mesmo assim, muitos so extraordi-nariamente bem sucedidos. Sabemos, contudo, que as muitas violncias no tm umalgica comum; procur-las to estril e mentiroso quanto oferecer solues

    descontextualizadas para lugares e situaes bem especficas.Reflexes importantes e muito recentes7 apontam a necessidade de compreen-

    so de certos fenmenos subjetivos em causa na proliferao da violncia. Eles so

    7 Muitos so os autores que, especialmente a partir da dcada de 90, vm redirecionando osdebates sobre a violncia. Entre estas inovaes, est a preocupao com os elementos subjeti-vos em causa na formao de processos de cronificao e reproduo continuada da violncia.Entre eles, gostaria de citar Flvia Schilling, Gilberto Velho, Lus Eduardo Soares, Alba Zaluar,Paulo Sergio Pinheiro, Sergio Adorno e Teresa Caldeira.

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    determinantes, tanto no desencadeamento de guerras genocidas entre naes, desres-peitando leis e acordos internacionais, quanto na articulao e aprovao social vio-lncia policial cotidiana nas cidades brasileiras que, anualmente, assassinam e matammilhares de cidados dentro e fora de casa.

    A questo mobilizadora que sempre nos atia a conduzir a psicanlise aos um-brais do debate social e poltico nestes casos encontra apoio na rplica idia modernade que o melhor e mais adequado espao para a singularizao do sujeito entre

    quatro paredes (em casa, na famlia, no seu crculo ntimo, no consultrio do analista).Isso colide com a noo de individualidade presente na plis grega e vigente no ideriodas democracias ocidentais, ondea esfera pblica era reservada individualidade;era o nico lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivel-mente eram(Arendt, 1983,p.51).

    Essa observao torna-se tanto mais importante no que tange s reflexes psi-canalticas sobre a violncia quando percebemos, neste fenmeno, um trao comumque a sua capacidade de atravessar, num instante, a dimenso privada e pblica,exigindo, imediatamente, outros posicionamentos do sujeito. Isso tem ocorrido, porexemplo, toda vez que a violncia e os sujeitos envolvidos nela e por ela so transfor-mados em notcia, em modelo, em espetculo e em paradigma, lanados ao pblico,sem concesses. Ser vtima ou agressor so categorias que imediatamente se tornam

    pblicas. Definir algum como vtima ou agressor tem como uma de suas conseqn-cias embutir nesses sujeitos a obrigao da publicizao. Tornam-se paradigmas dohorror, da guerra que acreditamos no participar, como cidados de outro lugar, alijadosdos acontecimentos em outro tempo e espao.

    Exemplos da dor que nos aflige tanto mais quanto menos implicados estamosnela, como nos ensina a prtica psicanaltica cotidiana. Disso resulta o interesse cres-cente e incontrolvel pelos horrores da TV, editados, narrados, cuidadosamente pre-parados para nosso entretenimento e nos quais, ao final do dia, buscamos algum al-vio neurtico, desabilitados que estamos para o enfrentamento da guerra que noscompete em nossas cidades todos os dias.

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    Agora: Estudos em Teoria Psicanaltica, pp-115-130, Rio de Janeiro : Contra Capa, n.3, v.12,pp.115-130, janeiro/junho de 2001.FREUD,Sigmund (1915). Consideraciones de actualidad sobre la guerra e la muerte, VII, ObrasCompletas, Madrid, Biblioteca Nueva, 1981.FREUD,Sigmund (1919). Introducion al simpsio sobre las neurosis de Guerra, v.III, ObrasCompletas, Madrid, Biblioteca Nueva, 1981.FREUD,Sigmund (1933). O porqu de la Guerra, v.III, Obras Completas, Madrid, BibliotecaNueva, 1981.FREUD, Sigmund.Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund

    Freud, 1986FREUD, Sigmund (1920 [1955]). Memorandum sobre o tratamento eltrico dos neurticos deguerra, v.XVII, 1920 [1955]GAY, Peter (1988). Freud: uma vida para nosso tempo. So Paulo : Companhia das Letras,1989.JONES, Ernest (1953). A vida e a obra de Sigmund Freud. V.3, Rio de Janeiro : Imago, 1989.MNCHAL, Jean (1988). Une femme est brle. Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris :Galimard, n.38, pp.73-86, automne/1988.VELHO, Gilberto (1991). O Grupo e seus limites.Revista USP, So Paulo, EDUSP, n.9, pp. 23-30, mar/abr/maio de 1991.

    FREUD E A PLIS...

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    NORMAS PARA PUBLICAO

    I APRECIAO PELO CONSELHO EDITORIAL

    Os textos enviados para publicao sero apreciados pela comisso editorial daRevista e consultores ad hoc, quando se fizer necessrio.

    Os autores sero notificados da aceitao ou no dos textos. Caso sejam neces-srias modificaes, o autor ser comunicado e encarregado de providenci-las, de-volvendo o texto no prazo estipulado na ocasio.

    Aprovado o artigo, o mesmo dever ser enviado para a APPOA, aos cuidadosda Revista, em disquete, acompanhado por uma cpia impressa e assinada pelo autor,ou por e-mail.

    II DIREITOS AUTORAIS

    A aprovao dos textos implica a permisso de publicao, sem nus, nestaRevista. O autor continuar a deter os direitos autorais para futuras publicaes.

    III APRESENTAO DOS ORIGINAIS

    Os textos devem ser apresentados em trs vias, contendo: Folha de rosto: ttulo, nome e crditos do autor (em nota de rodap), contendottulos acadmicos, publicaes de livros, formao profissional, insero institucional,endereo postal, e-mail, fone/fax; resumo (at 90 palavras); palavras-chaves (de 3 a 5substantivos separados por ; ); abstract (verso em ingls do resumo); Keywords(verso em ingls das palavras-chaves). Corpo do texto: dever conter ttulo e ter no mximo 15 laudas (70 toques/ 25 li-nhas); usar itlico para as palavras e/ou expresses em destaque e para os ttulos deobras referidas. Notas de rodap: as notas referentes ao ttulo e crditos do autor sero indicadas por* e **, respectivamente; as demais, por algarismos arbicos ao longo do texto.

    IV REFERNCIAS E CITAES

    A referncia a autores dever ser feita no corpo do texto somente mencionandoo sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de autores cujo anodo texto relevante, coloc-lo antes do ano da edio utilizada.

    Ex: Freud [(1914) 1981].As citaes textuais sero indicadas pelo uso de aspas duplas. As que possu-

    rem menos de 5 linhas, devero ser mantidas no corpo do texto. A partir de 5 linhas,devero aparecer em pargrafo recuado e separado, acrescidas do (autor, ano da edi-o, pgina).

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    V REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfa-btica pelo ltimo nome do autor, conforme os modelos abaixo:

    OBRA NA TOTALIDADE

    BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciao e a gramtica inconsciente. 2.ed. Porto Alegre : Artes Mdicas, 1987.LACAN, Jacques. O seminrio. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro : J. Zahar, [s. d.].

    PARTE DE OBRA

    CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O lao conjugal.Porto Alegre : Artes e Ofcios, 1994. p. 11-24.CHAUI, Marilena. Laos do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. So Paulo : Comp.das Letras, 1993. p. 21-9.FREUD, S. Teoras sexuales infantiles (1908) In: _____. Obras completas. 4. ed. Madri : Bibli-oteca Nueva, 1981. v. 2.

    ARTIGO DE PERIDICO

    CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? C. da APPOA, Porto Alegre, n. 71, p. 12-20,ago. 1999.HASSOUN, J. Os trs tempos da constituio do inconsciente.Revista da Associao Psicana-ltica de Porto Alegre, Porto Alegre, Artes e Ofcios, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.

    ARTIGO DE JORNAL

    CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl.Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 05 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.NESTROVSKI, Authur. Uma vida copiada: prensa internacional reavalia memrias fictcias deBeinjamin Wilkomirski. Folha de So Paulo, So Paulo,11 jul. 1999. Caderno Mais, p. 9.

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    ASSOCIAO PSICANALTICADE PORTO ALEGRE

    MESA DIRETIVA(GESTO 2001/2002)

    Presidncia: Maria ngela C. Brasil1a Vice-Presidncia: Lucia Serrano Pereira2a Vice-Presidncia: Jaime Alberto BettsSecretaria: Carmen Backes

    Gerson Smiech PinhoTesouraria: Grasiela Kraemer

    Simone Moschen Rickes

    Alfredo Nstor Jerusalinsky, AnalicePalombini, Ana Maria Gageiro, Ana MariaMedeiros da Costa, ngela Lngaro Becker,Edson Luiz Andr de Sousa, GladysWechsler Carnos, Ieda Prates da Silva,Ligia Gomes Vctora, Liliane SeideFremmin