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REPRODUÇÃO HUMANA AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS Introdução A problemática da reprodução humana tem sido alvo, nos últimos tempos, de polémicas mais ou menos acesas e de discussões por vezes muito acaloradas. Para tal, tem contribuído um certo entrecruzamento de sentimentos ambíguos ou mesmo de pulsões antagónicas. Algumas preocupações resultam do flagrante contraste entre um mundo superpovoado, arrostando com as suas trágicas consequências e o apreensivo reconhecimento de que certas regiões do globo se vão esvaziando, com enorme celeridade, do seu mais importante elemento constitutivo prefigurado na própria população. Mas, para uma maior vibração do debate também têm contribuído, e muito, os avanços recentes e ciclópicos das tecnologias ditas de reprodução artificial e nomeadamente as possibilidades actuais de manipulação laboratorial de gâmetas e embriões humanos, em várias fases do seu desenvolvimento evolutivo precoce. Numa perspectiva científica, poder-se-á dizer que sucessivas e impressionantes aquisições, têm constituído outras tantas achegas para o quase perfeito conhecimento dos mecanismos que presidem ao fenómeno reprodutivo. Só que o processo vital, em si e na sua essência, esse continua envolto no insondável mistério da procriação apesar de todos os avanços já conseguidos e mesmo das previsões mais optimistas que a futurologia científica permite formular. De facto, durante milénios, a continuidade da espécie humana tem sido assegurada através de mecanismos específicos da reprodução natural que apenas são conhecidos de modo grosseiro, tal a sua complexidade fenomenológica.

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REPRODUÇÃO HUMANA

AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS

Introdução

A problemática da reprodução humana tem sido alvo, nos últimos tempos,

de polémicas mais ou menos acesas e de discussões por vezes muito

acaloradas. Para tal, tem contribuído um certo entrecruzamento de

sentimentos ambíguos ou mesmo de pulsões antagónicas. Algumas

preocupações resultam do flagrante contraste entre um mundo

superpovoado, arrostando com as suas trágicas consequências e o

apreensivo reconhecimento de que certas regiões do globo se vão

esvaziando, com enorme celeridade, do seu mais importante elemento

constitutivo prefigurado na própria população.

Mas, para uma maior vibração do debate também têm contribuído, e

muito, os avanços recentes e ciclópicos das tecnologias ditas de

reprodução artificial e nomeadamente as possibilidades actuais de

manipulação laboratorial de gâmetas e embriões humanos, em várias

fases do seu desenvolvimento evolutivo precoce. Numa perspectiva

científica, poder-se-á dizer que sucessivas e impressionantes aquisições,

têm constituído outras tantas achegas para o quase perfeito

conhecimento dos mecanismos que presidem ao fenómeno reprodutivo.

Só que o processo vital, em si e na sua essência, esse continua envolto no

insondável mistério da procriação apesar de todos os avanços já

conseguidos e mesmo das previsões mais optimistas que a futurologia

científica permite formular. De facto, durante milénios, a continuidade da

espécie humana tem sido assegurada através de mecanismos específicos

da reprodução natural que apenas são conhecidos de modo grosseiro, tal

a sua complexidade fenomenológica.

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Reconhece-se, hoje, que o processo reprodutivo é surpreendentemente

ineficaz. Na verdade, em condições perfeitamente normais, a fecundação

apenas ocorre em 25% dos ciclos genitais de casais considerados

fecundos, e nos quais não é assumida qualquer atitude contraceptiva.

Para além disso, também é sabido que uma em cada três gestações

alcançadas, acaba por se perder espontaneamente, muitas vezes sem que

seja detectada uma causa clínica evidente.

Mecanismos fisiológicos da reprodução

Tendo em vista uma análise tão esclarecedora quanto possível dos

distúrbios que afectam os fenómenos da reprodução, torna-se útil

identificar, antes de mais, os mecanismos que, em condições fisiológicas,

asseguram o correcto desenrolar desse processo dinâmico que culmina no

nascimento de um novo ser. Será, assim, mais fácil compreender e

identificar os pontos de rotura do sistema reprodutivo que, em última

análise, inviabilizam a procriação. E também, graças a um tal

conhecimento, se poderão superar, com mais lógica e maior eficácia,

algumas anomalias detectadas nos complexos mecanismos da

reprodução, através de modalidades terapêuticas da mais diversificada

índole.

De uma forma muito esquemática poder-se-ão resumir, assim, os

pressupostos considerados necessários para que ocorra uma gravidez, em

condições fisiológicas:

1. Suficiente produção de espermatozóides móveis e normais;

2. Deposição dos espermatozóides em contacto com o muco produzido no

colo do útero, durante a fase pré-ovulatória do ciclo genital;

3. Ascensão dos espermatozóides, graças à sua própria mobilidade, ao

longo do tracto genital feminino;

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4. Libertação de um óvulo em condições de ser fecundado;

5. Existência de pelo menos uma trompa anatómica e funcionalmente

adequada à captação do óvulo, à condução dos espermatozóides, à fusão

dos dois gâmetas e ao trajecto do embrião até à cavidade uterina;

6. Presença de um útero propício à correcta nidação do ovo e dotado de

suporte trófico, capaz de assegurar a manutenção de todo um processo

evolutivo, do produto de concepção até à sua viabilidade.

Para que haja fecundação é, portanto, indispensável que o homem

produza espermatozóides em quantidade e qualidade adequadas,

traduzindo-se a complexa gametogénese masculina pela diferenciação e

maturação de qualquer coisa como 1000 espermatozóides por segundo, o

que significa uma produção anual de cerca de 30 biliões de

espermatozóides. Assim acontecendo, aquando de uma relação sexual são

depositados cerca de 200 milhões de gâmetas masculinos na vagina.

Porém, só quatro milhões atingem o colo uterino onde são capacitados no

muco cervical, alcançando apenas uns milhares a trompa de Falópio, onde

um único virá a ser capaz de fecundar o gâmeta feminino.

Mas para que o processo reprodutivo ocorra normalmente, torna-se

também necessário que a mulher liberte, ciclicamente, um óvulo com as

adequadas condições de maturação para que seja fecundável. Em cada

ciclo genital iniciam um processo maturativo vários óvulos contidos nos

respectivos folículos ováricos. Porém, só um, e em regra apenas um,

atinge a plenitude maturativa. A libertação periódica de um óvulo em

condições propícias para ser fecundado, deve ser seguida da sua captação

pela trompa que o aspira para o seu interior e o impele ao longo do seu

lúmen. O encontro gamético ocorre no terço externo da trompa, onde se

verifica a fusão do espermatozóide com o óvulo e onde se realiza a união

dos gâmetas masculino e feminino.

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A fecundação ocorre, então, como resultado da penetração de um único

espermatozóide na membrana pelúcida do ovócito. Formam-se depois

dois pronúcleos: o masculino e o feminino que contêm em si o património

genético de cada um dos progenitores. Assim se inicia a vida de um novo

ser que terá agora um número diplóide de cromossomas, característico da

espécie, e possui, desde este momento, toda a informação genética que o

define e lhe outorga identidade biológica.

A partir da fusão dos dois pronúcleos, inicia-se o processo de divisão

celular, continuando-se depois, em ritmo acelerado, a multiplicação de

células ao longo do percurso na trompa, o qual deverá ter uma duração

normal de 3 ou 4 dias. O processo evolutivo embrionário, caracterizado

por divisões celulares sucessivas, mantém-se de forma célere mas

coordenada, constituindo-se, progressivamente, uma estrutura

multicelular denominada mórula. Ao fim de 72 a 96 horas de existência, o

embrião, já num estádio de desenvolvimento designado por blastocisto,

possui uma cavidade de tipo quístico (de onde lhe advêm a designação) e

um botão embrionário que constitui o seu esboço rudimentar. É nesta

fase que vai chegar à cavidade uterina, onde agora se procura implantar.

Ocorre então o processo, algo complexo e enigmático, da nidação, ou seja,

a fusão do embrião com as estruturas uterinas que lhe vão constituir

como que um verdadeiro claustro materno. Trata-se de um momento

crítico do processo reprodutivo, na medida em que implica não só o

reconhecimento da estrutura embrionária pelo organismo materno, como

também está dependente de uma não rejeição de material biológico, em

parte estranho às estruturas orgânicas onde se pretende implantar. Vai, a

partir de agora, estabelecer-se uma relação estreita entre o embrião e o

organismo materno, a qual se verifica muito cedo, graças à produção de

gonadotrofina coriónica pelo trofoblasto fetal, sendo esta complexa

hormona veiculada para a circulação materna, vindo a modificar por sua

influência directa os comportamentos físicos e até psicológicos da mulher

grávida. Mais tarde e por volta das 16 semanas de gestação, o novo ser

está completamente formado no interior do saco vitelino, sendo então

dotado de uma estrutura placentar com autonomia funcional, muito

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embora continue a verificar-se sempre um necessário e ajustado

relacionamento materno-fetal. Finalmente e passadas as complexas e por

vezes indecifráveis etapas de um processo ainda misterioso, assiste-se ao

nascimento de um novo ser que cumpre um destino biológico assegurado

pelo processo reprodutivo natural.

Esterilidade e infertilidade

Num número relativamente importante de casais, os pressupostos atrás

considerados não se verificam na sua globalidade, pelo que o sistema

reprodutor sofre uma rotura nos seus mecanismos essenciais, não sendo

viável a concretização de um dos objectivos superiores da própria vida

conjugal - a procriação, a transmissão de vida, a plenitude da união e do

amor entre o casal. Surgem, assim, situações patológicas de esterilidade

ou de infertilidade, resultantes de uma falência do processo reprodutivo a

que está subjacente, muitas vezes, uma afecção orgânica, quer masculina

quer feminina.

Nos nossos dias, os distúrbios dos mecanismos fisiológicos da reprodução

constituem um problema médico-social generalizado e de progressiva

incidência, que atinge uma assinalável camada da população em idade

procriativa, envolvendo, à escala mundial, cerca de 15% de todos os

casais.

Importa, agora, definir a tecnologia médica que, na nossa perspectiva,

deverá ser empregue para caracterizar as diferentes anomalias dos

mecanismos fisiológicos da reprodução humana. É necessário, também

nesta matéria, definir conceitos por razões de natureza não só tecnicista,

mas também para que a linguagem adoptada seja compreensível entre

aqueles que a utilizam. Dever-se-á clarificar a nomenclatura preconizada

com objectividade e sem recurso a modelos importados, por vezes até

menos consentâneos com a nossa realidade linguística.

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Costuma dizer-se que existe esterilidade num casal quando, ao fim de dois

anos de relações sexuais desprotegidas, não surge uma gravidez. Trata-se

de uma definição em si própria arbitrária, por diversas razões, entre as

quais a limitação temporal imposta e mesmo até pela própria noção algo

subjectiva de relações sexuais desprotegidas. Muito embora algo criticada,

porém, a designação é utilizada correntemente e encontra-se mesmo

expressa em alguns textos conhecidos de célebres escritores e reputados

cultores da língua portuguesa.

O conceito anterior é bem diferente, na sua etimologia e significado, da

também banalizada expressão infertilidade. A designação de infértil

deverá ser atribuída ao casal em que existe fecundação, mas em que o

produto da concepção não atinge a viabilidade. O casal também não tem

filhos, mas a grande maioria dos mecanismos da fecundação tem lugar, só

que a gravidez que foi alcançada, uma ou mais vezes, não termina pelo

nascimento de um novo ser vivo e viável. Integram-se nestas situações os

casos frequentes de abortos de repetição, de gravidezes ectópicas ou

partos prematuros.

Como se imagina e compreende, o rótulo atribuído a um casal em que

existe uma esterilidade ou uma infertilidade pressupõe, desde logo,

situações patológicas diferentes, implica investigações diversificadas e

culmina em atitudes terapêuticas distintas. Por isso, e em consonância

mais legítima com a língua portuguesa rica de vocábulos com significados

específicos e expressivos, adoptamos esta dualidade de terminologia que

define, logo à partida, e de uma forma relativamente explícita, a situação

clínica do casal que procura cuidados médicos porque não alcança o

objectivo último da reprodução. Por vezes também se costuma utilizar,

englobando os dois conceitos, a expressão de hipofertilidade, traduzindo

genericamente a incapacidade biológica de ter filhos.

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Como já se referiu, a esterilidade afecta, segundo as mais diversas

estatísticas, entre 10 a 15% dos casais humanos. Estes números variam,

naturalmente, com os conceitos e as definições e até mesmo com as

latitudes consideradas. É pois, e desde já, uma situação que se verifica

num número considerável de casais e que, em muitos casos, se reveste de

verdadeiro dramatismo, pois o instinto da reprodução, mesmo numa

sociedade moderna, relativamente hedonista, continua a estar

profundamente arreigado na essência profunda da natureza humana.

Em Portugal não se conhecem, mesmo aproximadamente, os números

exactos de casais estéreis. Poder-se-á através de uma mera extrapolação,

admitir que deverão existir no nosso País cerca de meio milhão de

pessoas, em idade fértil, que não terão filhos embora o desejem. Tal

número é, no entanto, teórico e resulta de um paralelismo com as cifras

apresentadas em países estrangeiros e de um cálculo estabelecido com

base no número de casamentos registados anualmente em Portugal.

Uma noção que importa aqui sublinhar é a de que, possivelmente, se

assistirá de forma progressiva a um acréscimo do número de casos de

esterilidade conjugal. Os factos que nos levam a pensar em tal

probabilidade estão fundamentalmente relacionados com os seguintes

fenómenos:

* aumento da incidência de situações em que se detectam factores de

índole masculina;

* incremento de patologia dependente de doenças sexualmente

transmissíveis;

* adiamento da idade em que é desejada a primeira gestação com

inevitáveis consequências negativas para a fecundidade;

* prática mais generalizada de aborto e utilização desregrada de certos

métodos contraceptivos perniciosos para uma futura concepção;

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* verificação, com alguma frequência, de sequelas de tuberculose genital

feminina (facto que já deixou de constituir motivo de esterilidade em

muitos dos países da Europa Ocidental);

* exposição excessiva a factores tóxicos e ambienciais com efeitos

deletérios nos mecanismos que asseguram a reprodução.

A esterilidade é, pois, algo de negativo, e representa a falência de um

sistema - o sistema reprodutor. E, tal falência, condiciona alterações não

apenas de natureza biológica, mas reflecte-se também na vivência

interpessoal do casal e arrasta consigo implicações de índole social e

comunitária. A esterilidade é, pois, uma doença que afecta o bem-estar

físico, psíquico e até social, regra geral não apenas de um mas de dois

seres humanos que se uniram e que não conseguem alcançar em

plenitude a sua realização pessoal e conjugal.

A este respeito, é bom esclarecer desde já, e contrariamente às ideias

ainda arreigadas nalguns espíritos, que em cerca de 40% das esterilidades

conjugais existe um factor masculino, em parte ou no todo, responsável

por essa mesma esterilidade. Está também estabelecido que cerca de 50%

das situações de esterilidade conjugal resultam de um ou vários distúrbios

femininos. E, é também conhecido, que em aproximadamente 10% dos

casos não se detecta nenhuma causa presumivelmente responsabilizável

pela esterilidade investigada. São estas as chamadas esterilidades

idiopáticas ou de causa desconhecida que nos fazem meditar sobre os

eventuais mecanismos da reprodução que, ainda hoje, escapam aos

modernos meios de investigação e que nos obrigam a reflectir sobre os

insondáveis enigmas que continuam a envolver o complexo fenómeno que

está na origem da vida humana.

Existem, ainda, situações em que frequentemente se associam mais do

que uma causa de esterilidade e que se poderiam considerar mistas,

englobando quer diversos factores femininos, simultaneamente, quer

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associando alterações em ambos os membros do casal. Por isso se advoga

e se considera como regra fundamental na investigação da esterilidade

conjugal, a análise conjunta de eventuais anomalias quer no homem, quer

na mulher.

Estudo do casal estéril

A investigação dos factores causais de esterilidade deve, a nosso ver,

processar-se, segundo uma metodologia sequencial que respeite o

princípio de agressividade progressiva. Partindo das investigações mais

simples, deve progressivamente caminhar-se para os exames mais

complexos, à medida que os elementos recolhidos os vão sugerindo ou

até mesmo impondo.

De facto é bem sabido que, algumas vezes, a mera realização de

investigações anodinas ou mesmo o simples apoio psicológico resultante

de uma consulta médica correctamente conduzida, podem surtir o efeito

desejado, ou seja o aparecimento de uma gravidez almejada. Nos casos

em que assim não sucede, impõe-se um progressivo aprofundamento das

investigações que devem surgir na sequência lógica das ilações que se vão

estabelecendo e sem precipitações ou gestos intempestivos cujas

consequências podem, por vezes, revelar-se desastrosas.

Como já se deixou claro, a investigação de um casal estéril deverá atender

aos factores etiológicos quer masculinos, quer femininos. E como também

já se disse, aproximadamente 40% dos casos de esterilidade conjugal são

exclusivamente dependentes de factores masculinos perturbados. Por isso

mesmo se considera indispensável a avaliação clínica de ambos os

membros do casal, começando simultaneamente pela investigação de

eventuais distúrbios quer no homem, quer na mulher.

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No homem, para além de uma história clínica elementar e de um exame

andrológico sumário, é indispensável, quase sempre, a realização de um

espermograma. E este exame laboratorial quando correctamente

efectuado (o que nem sempre sucede) permite avaliar principalmente o

volume do ejaculado (3 a 5c.c. de sémen), o número de espermatozóides

por centímetro cúbico de esperma (normalmente entre 60 a 200 milhões),

a mobilidade desses mesmos espermatozóides (mais de 70% de

espermatozóides ainda móveis uma hora após a recolha do esperma;

entre 60 a 70% móveis ao fim de 4 horas) e a morfologia dos próprios

espermatozóides (60 a 70% de formas normais).

Sempre que se verifiquem anomalias do espermograma e se identifiquem

alterações no exame clínico, poderá estar indicada a realização de exames

complementares que serão solicitados de acordo com os distúrbios

detectados. Entre os mais frequentemente prescritos contam-se os

doseamentos hormonais, os estudos bacteriológicos, radiológicos, ultra-

sónicos, genéticos, bioquímicos e até o exame histológico de fragmentos

de biópsias testiculares.

O protocolo de investigação feminina começa também e naturalmente

pela colheita de uma história clínica pormenorizada e pela realização de

um exame físico geral e de uma observação ginecológica correcta. Torna-

se, depois, necessário avaliar basicamente três aspectos fundamentais da

fecundidade da mulher: a actividade funcional dos ovários, a captação dos

espermatozóides e a sua sobrevida no muco cervical e a funcionalidade

das trompas e do próprio útero.

Para proceder ao estudo da função ovárica poderemos e devemos

recorrer, desde o início das investigações, à curva das temperaturas

basais. A análise do gráfico das temperaturas rectais colhidas pela manhã,

ao acordar e antes de qualquer esforço, permitir-nos-á detectar o dia

provável da ovulação, o tempo de sobrevida do corpo amarelo e mesmo,

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de uma forma relativamente grosseira, a qualidade funcional do corpo

amarelo de cada ciclo estudado.

A biópsia do endométrio pode também fornecer elementos válidos acerca

da influência das hormonas esteróides sobre a mucosa uterina,

transmitindo assim uma ideia relativamente fiel sobre a produção

hormonal dos ovários. Um endométrio com características histológicas de

tipo secretor, testemunha, em condições fisiológicas, uma produção de

progesterona, a qual só pode provir de um corpo amarelo, em regra

resultante de uma ovulação prévia. Mas para além de indicar, com muita

probabilidade, a existência de ovulação, o estudo histológico do

endométrio é também capaz de fornecer informações preciosas sobre o

valor funcional do corpo amarelo ou seja sobre o teor da sua produção

hormonal. A própria biópsia do endométrio pode ainda transmitir certos

aspectos independentes da acção hormonal, nomeadamente relativos a

determinadas lesões orgânicas que podem correlacionar-se com a

situação de esterilidade cuja causa se pretende investigar.

Os doseamentos hormonais urinários ou plasmáticos são, nos nossos dias,

os parâmetros mais utilizados para análise da função ovárica. A

determinação plasmática das hormonas produzidas pelos ovários -

estradiol, progesterona, androstenediona - e de tantas outras oriundas de

outros órgãos mas com interferência no próprio funcionamento ovárico -

FSH, LH, prolactina, testosterona, etc. - permite definir um quadro

hormonal ilustrativo da situação endócrina da paciente analisada. Em

certas situações poder-se-ão realizar provas funcionais dinâmicas que

fornecerão elementos importantes para uma correcta interpretação da

forma como se processa o ritmo biológico funcional do ovário ou de

outras glândulas endócrinas com ele relacionadas.

A capacidade de penetração dos espermatozóides no muco cervical e a

sua sobrevida, é avaliada através da realização do teste de Hühmer ou

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teste pós-coital. Este exame é efectuado no muco cervical de uma mulher

em período pré-ovulatório e cerca de 6 a 8 horas após relações sexuais. O

muco cervical colhido nestas circunstâncias é examinado ao microscópio e

a observação de espermatozóides com boa mobilidade e em quantidade

satisfatória atesta não apenas a adequada penetração dos

espermatozóides no muco cervical, mas até a boa qualidade do próprio

esperma. Em casos particulares poderá haver necessidade de recorrer a

testes de penetração in vitro que poderão indicar a hostilidade de um

muco, regra geral consequência de alterações imunitárias complexas.

No sentido de apreciar a permeabilidade das trompas tem sido

preconizada a realização de diversos tipos de investigação - a

histerossalpingografia, a cromotubação per-celioscópica e, mais

recentemente, a ecografia com contraste liquido ou

histerossalpingossonografia. A histerossalpingografia, através das imagens

radiológicas da cavidade uterina, do trajecto tubar e do derrame

peritoneal do produto de contraste extravasado através das trompas, é o

exame que fornece as melhores informações não apenas relativamente às

características anatómicas do útero e das trompas mas também alusivas a

certos aspectos da própria dinâmica funcional da trompa. Trata-se de um

estudo que, realizado segundo metodologia adequada e interpretado

correctamente, permite conclusões de extrema validade. Para além de

propiciar uma visualização da cavidade uterina e da sua eventual e

diversificada patologia, fornece também elementos importantes sobre o

trajecto e permeabilidade bilateral das trompas, sobre a forma como o

derrame do contraste se difunde na pélvis e ainda sobre a dinâmica da

própria trompa e sua integridade funcional. Tratando-se de um exame

relativamente inócuo e com poucas contra-indicações é considerado como

um passo fundamental e praticamente obrigatório no decurso da

investigação de uma esterilidade.

A celioscopia, permitindo visualizar directamente os órgãos pélvicos,

possibilita a realização de um gesto associado traduzido pela instilação de

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um líquido através do canal útero-tubar, o qual poderá ser observado ao

longo do seu trajecto nas trompas e mais precisamente aquando da sua

passagem através do pavilhão e consequente derrame na escavação

pélvica. Este exame, designado por cromotubação, de grande

importância em certos casos, deverá ser praticado quando as

circunstâncias aconselhem a realização de uma celioscopia, associando-se

então a prova de permeabilidade como gesto complementar.

Em 1984 descrevemos, pela primeira vez, e com idêntico objectivo dos

exames anteriores, um novo método de exploração do útero e do interior

das trompas, utilizando a ultra-sonografia como método de observação e

um líquido instilado na cavidade uterina e no lúmen tubar como meio de

contraste. Designámos, na altura, o procedimento como

histerossalpingossonografia, sendo hoje considerada tal técnica como

exame banal já muito vulgarizado na literatura internacional. Trata-se de

um processo muito simples que consiste em injectar na cavidade uterina e

nas trompas uma solução salina de alto peso molecular, seguindo

exactamente a mesma técnica preconizada para a hieterossalpingografia.

Podem-se, assim, obter imagens muito curiosas da cavidade uterina e, ao

mesmo tempo, visualizar a passagem do liquido através das trompas,

facto que é comprovado pela existência de derrame do contraste na

cavidade peritoneal. Pelo contrário, pode-se suspeitar da existência de

patologia que afecte a permeabilidade tubar ao identificar situações de

retenção de líquido nas trompas devido a obliteração das suas porções

terminais.

Naturalmente que, como já se referiu para o homem, também na mulher

pode ser necessário recorrer a exames complementares mais

especializados, de natureza hormonal, genética, bacteriológica,

imunológica, histológica, etc.. Regra geral, porém, a colheita dos

elementos anteriormente aduzidos é suficiente, na grande maioria dos

casos, para estabelecer um diagnóstico etiológico correcto e permitir,

sempre que possível, uma terapêutica causal adequada. Um certo número

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de situações que se cifram na ordem dos 10% não apresentam, no

entanto, alterações justificativas da esterilidade e são, por isso, rotuladas

de idiopáticas, muito embora se suponha que resultem de perturbações

não detectáveis com os meios actualmente disponíveis, mas

suficientemente importantes para bloquear os ainda algo misteriosos

mecanismos íntimos da reprodução.

De uma forma esquemática e algo sintética apresentamos, a seguir, um

quadro sinóptico das diferentes causas de esterilidade conjugal, colocando

prioritariamente aquelas que, na prática corrente, são mais

frequentemente objecto de observação clínica.

CAUSAS MASCULINAS ( ~40%)

ETIOLOGIA "SECRETORA"

Causas orgânicas testiculares - varicocelo, orquite pós-parotidite,

criptorquidia

Factores endócrinos - hipofisáríos, pancreáticos, tiroideus

Causas genéticas

"Stress"

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ETIOLOGIA EXCRETORA

Obstrução dos canais excretores - infecções, traumatismos, tumores

Agenesia dos deferentes

Laqueação dos deferentes

PERTURBAÇÕES DA EJACULAÇÃO

Impotência

Enajaculação

Ejaculação retrógada

CAUSAS FEMININAS (~50%)

Tubares e peritoneais - endometriose, infecções (ascendentes e

contiguidade), tuberculose

Ováricas - distúrbios cortico-hipotalamo-hipofisários, perturbações

ováricas, endocrinopatias diversas

Uterinas - miomas, pólipos, sinéquias

Vaginais e cervicais - infecções, alterações do muco e pH

Mistas

PROCRIAÇÃO ASSISTIDA - AS TÉCNICAS E A ÉTICA

A terapêutica da esterilidade conjugal tem sofrido nos últimos anos,

assinaláveis progressos decorrentes não só do melhor conhecimento dos

mecanismos fisiológicos da reprodução, como também do enriquecimento

frequente do arsenal terapêutico com novas modalidades de intervenção

médico-cirúrgica. As notáveis aquisições no plano farmacológico,

nomeadamente graças à produção industrial quer de poderosos agentes

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estimulantes da função ovárica, quer de substâncias dopaminérgicas

altamente eficazes, trouxeram a solução quase generalizada às situações

de esterilidade de causa ovárica.

Os progressos não foram, porém, tão brilhantes relativamente à patologia

tubar ou à terapêutica da esterilidade masculina que, no seu conjunto,

representam, hoje em dia, cerca de 60% de todas as etiologias da

esterilidade do casal. Face a uma crescente solicitação de apoio médico

para o tratamento das muito frequentes e diversificadas situações de

esterilidade conjugal, a evolução recente da Medicina tem vindo a

procurar ultrapassar as falências do processo reprodutivo, muito embora

algumas das terapêuticas ainda preconizadas se mostrem, mesmo nos

nossos dias, absolutamente infrutíferas em determinadas situações

concretas. Todavia, noutras circunstâncias, as soluções disponíveis podem,

pelo contrário, revelar-se exageradamente eficazes, dando origem a

gravidezes multifetais, facto que poderá causar um certo júbilo, mas não

deixa de constituir significativo motivo de preocupações clínicas e até

mesmo familiares.

Para tentar obviar a estes inconvenientes assistiu-se, a partir de 1978, a

uma verdadeira revolução na área da Reprodução Humana. De facto,

nesse ano, veio ao mundo o primeiro ser humano concebido fora do

organismo materno através de uma técnica de reprodução artificial

designada por fecundação in vitro e transferência de embriões para o

útero (FIVETE). Foi assim possível assistir-se ao nascimento de uma criança

concebida no laboratório e no interior de uma simples proveta onde se

juntaram espermatozóides e óvulos previamente seleccionados.

Graças a esta técnica de procriação assistida, tem-se conseguido fazer

nascer milhares de bebés que, provavelmente, em condições naturais,

nunca teriam sido originados. Resolveram-se, por esse meio, inúmeras

situações de esterilidade conjugal, algumas delas até agora consideradas

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insolúveis. Mas geraram-se, por via disso, seres humanos que passaram a

ter uma origem biológica diferente daquela que durante séculos fez a

história do Homem. E estabeleceu-se, também, com tal perspectiva, uma

dissociação entre o afectivo e o biológico dando-se azo a uma rotura

nunca antes vivida entre sexualidade e procriação.

Desde 1978 até aos nossos dias, múltiplas têm sido as etapas percorridas,

e enormes os progressos alcançados nesta nova ciência da reprodução

artificial que já se pretende mesmo, individualizar com a denominação

específica de Procreática. Mas, simultânea e talvez um pouco

paradoxalmente, são também imensas as legítimas e inicialmente

impensáveis preocupações decorrentes da simples possibilidade actual de

manipular, em ambiente laboratorial, não apenas gâmetas

(espermatozóides e óvulos) mas, sobretudo, embriões humanos em pleno

decurso do seu complexo e acelerado desenvolvimento vital.

Perspectivas quase ilimitadas abrem-se hoje num horizonte nem sempre

despido de contradições e até mesmo envolto em ensombradas nuvens

de verdadeira angústia. Graças às técnicas já comumente utilizadas, têm

sido alcançados benéficos progressos científicos, mas são também

imagináveis algumas perversões quase fantasmagóricas, como poderão

ser, por exemplo, as modificações genéticas embrionárias com finalidades

eugénicas ou a própria clonagem de seres humanos.

Importa ainda assinalar, a propósito das técnicas de procriação

medicamente assistida, que não existe apenas a fecundação in vitro no

arsenal terapêutico de que hoje se dispõe para tratar certas formas de

esterilidade, nas quais a utilização de outras modalidades terapêuticas

mais clássicas ou convencionais se revelou já ineficaz ou não encontra

mesmo razão de ser. Apenas num caso paradigmático se justifica

exclusivamente o recurso à fecundação in vitro - a ausência bilateral de

trompas ou a sua obstrução irreparável. Em tais circunstâncias não é

Page 18: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

possível o encontro natural dos espermatozóides e do óvulo e, assim, só a

fecundação in vitro ou extracorporal poderá propiciar uma gravidez, não

havendo, portanto, qualquer outra alternativa terapêutica disponível.

Em muitas das outras situações clínicas de esterilidade antes

inventariadas, é possível também, desde há alguns anos, recorrer a

diferentes técnicas de procriação assistida. A transferência de gâmetas

para a trompa, designada abreviadamente por GlFT (Gamete Intra

Fallopian Transfer), foi descrita em 1984 nos Estados Unidos e tem vindo a

ser realizada por nós, em Portugal, desde 1987. Com este método, os

gâmetas masculinos e femininos seleccionados no laboratório, não se

misturam numa proveta para dar origem a embriões in vitro, mas são

antes veiculados directamente para o interior da trompa, no decurso de

uma celioscopia. Espera-se, assim, que aí, no local próprio da fecundação,

ocorra a junção gamética, encaminhando-se depois o, ou os embriões

dessa forma obtidos, para a cavidade uterina, através do percurso

fisiológico, e ainda, no tempo que é mais adequado para o normal

desenvolvimento inicial de um novo ser. Um tal procedimento, permite

ultrapassar muitos dos problemas éticos levantados pela fecundação

extracorporal, que são inerentes à possível manipulação laboratorial de

embriões humanos, proporcionando, além disso, resultados, em termos

de gravidezes alcançadas, que são globalmente superiores aos obtidos

com a fecundação in vitro.

Apesar dos assinaláveis êxitos alcançados com as já clássicas técnicas de

procriação assistida, muitos dos crescentes problemas resultantes da

esterilidade masculina não tinham encontrado, até há bem pouco tempo,

soluções dotadas de desejável eficácia. De facto, em diversas

circunstâncias, o correcto diagnóstico da verdadeira causa que motiva a

esterilidade do homem é particularmente difícil e, muitas vezes, mesmo

impossível. Sendo assim, as terapêuticas disponíveis revelavam-se quase

sempre empíricas e, por isso mesmo, destituídas de real valia. Nos últimos

anos porém, registaram-se progressos inesperados neste domínio,

Page 19: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

mormente graças à utilização já hoje generalizada de uma nova

modalidade de reprodução artificial, designada por fecundação assistida,

que consiste na micro-injecção de um único espermatozóide no interior

do citoplasma do próprio óvulo. Esta técnica, rotulada de ICSI (Intra

Citoplasmic Sperm Injection), representa um novo passo, muito

significativo, na resolução de situações tecnicamente inultrapassáveis de

esterilidade masculina. Apontam-se-Ihe porém, até ao momento, algumas

reservas quanto a eventuais consequências para os indivíduos gerados

após inseminação dentro do próprio ovócito de um espermatozóide que,

pelas suas próprias apetências, não consegue flanquear algumas barreiras

naturais. Por isso, é preferível considerar, por enquanto, esta tecnologia

como experimental e sujeita, por tais motivos, a estreita e continuada

vigilância no que respeita a resultados e consequências para as gerações

vindouras.

As técnicas de reprodução artificial não são, muito longe disso, uma

panaceia universal, nem sequer representam estratégias terapêuticas

isentas de riscos e conflitualidades. Nestas circunstâncias, o recurso a tais

procedimentos só deve preconizar-se depois de ensaiadas outras

modalidades de tratamento menos agressivas e credíveis de alguma

eficácia presumível. A procriação assistida deveria ser a última instância

de um processo que viu inviabilizadas ou inoperantes, algumas etapas

terapêuticas prévias menos pesadas no ponto de vista físico e psicológico.

É que, depois de esgotada a hipótese derradeira, pode ver-se eliminada a

esperança, instalando-se assim o desespero. E será também legítimo,

advogar que uma vez decidida a implementação de tecnologias de

reprodução artificial, se deverá deixar aos beneficiários a opção por um

dos diferentes métodos que seja cientificamente justificável - FIV, GIFT ou

ICSI - dando a conhecer previamente aos interessados, as diferentes

etapas técnicas dos vários procedimentos, os riscos e benefícios

respectivos e os resultados que presumivelmente poderão ser esperados

com a realização de cada um deles.

Page 20: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

As atitudes e os comportamentos preconizados, e aqui apenas

brevemente esboçados, permitem perspectivar toda a complexa

problemática da esterilidade conjugal encarada nas suas diversificadas

facetas, com o rigor científico desejável e numa postura ética defensora

de valores fundamentais que constituem o garante da preservação do

respeito e da dignidade sempre devidos à Pessoa Humana.

O EMBRIÃO HUMANO - QUE ESTATUTO?

O desenvolvimento de um indivíduo começa no momento da fecundação.

Este é um facto indiscutível e perante o qual as múltiplas polémicas sobre

o início da vida não podem constituir, hoje, e no estado actual do

conhecimento científico e do desenvolvimento tecnológico, senão meras

especulações académicas ou estéreis discussões mais ou menos

bizantinas.

O respeito que deve ser garantido, até pelas vias constitucionais, à vida

humana, a defesa que se deseja intransigente dos direitos do Homem e a

necessidade de preservar princípios de índole ética, social e deontológica

impõem, porém, uma continuada reflexão acerca do momento que define

o começo do processo vital. A análise desejável terá de ser de natureza

sociológica, mas não poderá deixar de se fundamentar em premissas

científicas inequivocamente objectivas, algumas ainda em contínua e

renovada evolução conceptual.

Numa matéria tão controversa e acesamente polémica, as discussões

terão de ser conduzidas tendo em conta matrizes socioculturais, mas

fundamentando-se em dados técnico-científicos, para não se deixar

margem a aventureirismos fáceis ou manipulações mais ou menos

tentadoras, quantas vezes pretensamente arquitectadas no pressuposto

de uma inexistência, aliás questionável, de elementos de cariz científico

Page 21: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

precisos e concretos. Não restam hoje grandes dúvidas quanto à asserção,

ainda até há bem pouco posta em causa, segundo a qual a visa começa na

concepção. As posições expressas a este propósito por instituições e

personalidades são ilustrativas do axioma.

Para o Royal College of General Practitioners, britânico, "o início da vida

humana pode considerar-se como surgindo na fecundação", momento em

que um embrião geneticamente completo é formado. O "Comité" Francês

de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde, após prolongadas discussões,

acabou por concluir que o embrião humano deve ser considerado como

"pessoa humana potencial desde o momento da sua concepção". O

Parlamento Europeu na sequência de audições públicas levadas a cabo

pela Comissão dos Assuntos Jurídicos e dos Direitos dos Cidadãos,

elaborou extenso relatório no qual se afirma, sem hesitações, que a "vida

humana começa com a fecundação e desenvolve-se sem saltos de

qualidade numa continuidade permanente até à morte".

Porém, algumas questões fundamentais ainda hoje se levantam numa

perspectiva científica e numa visão sociojurídica.

* Será que o embrião resultante da fusão de um espermatozóide e de um

óvulo é apenas uma simples célula com particularidades específicas ou é

já um ser humano?

* Será o embrião humano uma pessoa potencial ou uma pessoa humana

real?

* E a partir de que momento exacto deverá o produto de concepção ser

objecto de toda a protecção implícita a um ser humano?

* Será que ao ovo ou zigoto, ainda antes da nidação uterina, deverão ser

outorgados menos direitos do que a um embrião já implantado no

claustro materno?

Page 22: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

* E será o mesmo embrião humano já um sujeito jurídico, devendo por tal

gozar de tutela da lei?

As razões para tais interrogações resultam mais de questões filosóficas do

que propriamente de dúvidas científicas. É razoável admitir que o óvulo

que foi fecundado e ainda não se dividiu, é apenas uma célula totipotente

que não tem, em tal momento, por determinismo único, a formação de

um ser humano. De facto, o desenvolvimento embrionário nesta fase

precoce pode orientar-se noutros sentidos bem diferentes do que é mais

fisiológico: a pura e simples eliminação espontânea, a separação gemelar

em dois indivíduos geneticamente idênticos, ou mesmo, degenerescência

de tipo tumoral. No entanto, numa grande maioria das gestações

detectadas, o desenvolvimento embrionário constitui um processo

evolutivo contínuo que conjuga a celeridade com a segurança e associa a

complexidade à perfeição.

Logo após a fecundação, as células primordiais resultantes da divisão do

ovo - os blastómeros - possuem uma capacidade intrínseca de

totipotencialidade, podendo cada uma delas assegurar uma continuidade

evolutiva independente e individualizada. Só que tal atributo vai ser

precoce e gradualmente perdido, à medida que a diferenciação celular vai

sendo progressivamente assumida. Assim sendo, a potencialidade

geneticamente contida em cada blastómero é inquestionável, muito

embora se deva também reconhecer que de cada uma dessas mesmas

células não pode resultar senão outra coisa que não seja um ser humano,

o que quer dizer uma pessoa. Assim, a célula primeira, fonte e princípio de

todas as células do organismo humano, contém em si mesma a

potencialidade de pessoa.

Nos últimos tempos, conhecimentos progressivos e mais aprofundados,

têm vindo a ser adquiridos na constante pesquisa que envolve os

mecanismos evolutivos dos estádios mais precoces do desenvolvimento

Page 23: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

embrionário e do diálogo materno-fetal. Diversos factores intrínsecos do

embrião modificam o metabolismo do útero e de outros órgãos no

período da nidação e durante os primórdios do processo gestacional. Logo

após a implantação uterina, componentes celulares do embrião humano,

originado apenas há alguns dias, produzem uma hormona glicoproteica

complexa - a gonadotrofina coriónica - cuja estrutura é tão elaborada que

não foi ainda sequer conseguida a sua síntese pela mais sofisticada

tecnologia farmacológica. E tal substância, logo que entra na circulação

materna, controla e comanda a actividade endócrina do ovário, impede o

aparecimento do episódio menstrual e assegura a troficidade uterina

propícia à manutenção de uma gravidez.

Mas já mesmo antes da nidação uterina, o embrião humano desenvolve

actividade biológica importante. Está hoje bem demonstrado que o

genoma embrionário se torna activo precocemente, após a fecundação,

iniciando-se a expressão de certos genes num estádio de segmentação

correspondente a quatro ou oito células. A transcrição da sub-unidade

beta da gonadotrofina coriónica, ocorre já quando o embrião é

justamente constituído apenas por oito células. Além disso, embriões

humanos mantidos em sobrevida laboratorial, em ambiente apropriado,

produzem quantidades significativas, embora variáveis, de um factor

activador de plaquetas (P.A.F.), o qual foi já detectado em meios de

cultura logo nas 48 horas após a inseminação in vitro do ovócito, sendo

mesmo relacionado o grau de produção desse factor embrionário com a

qualidade do próprio embrião.

Por outro lado, o acontecimento biológico mais precoce no momento da

nidação uterina, é a expressão por parte do embrião, ainda não

implantado, de alguma substância que assinale a sua presença ao

organismo materno. Diversos sinais têm sido invocados para explicar o

reconhecimento materno do embrião e ao mesmo tempo para propiciar

uma implantação embrionária adequada. De todos os factores aduzidos

nenhum parece, porém, ser o principal interveniente no processo, sendo

Page 24: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

de admitir uma indispensável acção concertada de diversos agentes

embrionários e uterinos que sincronicamente regulem o reconhecimento

do embrião pelas estruturas maternas e possibilitem a implantação

embrionária.

Diversas razões, alguns factos e variadas circunstâncias têm vindo a

permitir demonstrar as potencialidades biológicas de um embrião desde

as fases iniciais do seu desenvolvimento. Mas será o embrião um ser

humano? Os princípios universais que consagram o respeito pela vida

humana desde o seu início estão claramente expressos em quase todos os

textos constitucionais do mundo civilizado e encontram-se formalmente

contidos nos códigos deontológicos médicos que se inspiram na

Declaração de Genebra de 1948 e que, também reflectem o sentir da

associação Médica Mundial traduzido nos ditames da Conferência de

Veneza de 1983.

Entre nós, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no

parecer que divulgou em 10 de Fevereiro de 1993, ao emitir opinião sobre

a polémica questão do momento a partir do qual o embrião humano

estará já revestido da dignidade de pessoa humana entendeu que

"enquanto a controvérsia não for resolvida e subsistir a dúvida, tem

aplicação, entretanto e sempre, o principio ético que estabelece ser

gravemente ilícito atentar contra uma entidade de que se duvida se, sim

ou não, constitui um sujeito investido de plena dignidade humana".

Só que declarações éticas e princípios deontológicos não são sinónimo de

regulamentação legal, pelo que o embrião humano continua a encontrar-

se, entre nós e em muitos outros Países, sem adequada protecção jurídica,

por inexistência de legislação específica ou por não lhe serem outorgados

os direitos inerentes a um indivíduo, ainda que em fase incipiente do seu

desenvolvimento progressivo.

Page 25: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

Toda a questão até agora invocada se vem agravando, nos últimos anos,

desde que os enormes progressos na área da Medicina da Reprodução

permitiram que seres humanos pudessem ser concebidos fora do

organismo materno. E como fruto deste prodigioso feito, que constitui já

marco relevante na História da Medicina e revolucionou clássicos

conceitos antropológicos e sociais, contam-se, hoje, por muitas dezenas

de milhares, os embriões humanos que se preservam congelados em

laboratórios de Procriação Medicamente Assistida e cujo destino biológico

não é sempre conhecido, nem muitas vezes respeitado. A possibilidade de

dispor in vitro e em condições laboratoriais de sobrevivência de embriões

humanos em várias fases do seu desenvolvimento inicial, veio dar azo a

procedimentos eventualmente menos transparentes, surgindo, assim,

algumas nuvens que ensombram o horizonte, nem sempre despido de

contradições, que rodeia as novas tecnologias de reprodução artificial e

em que estão envolvidos aspectos científicos, éticos e jurídicos de uma

questão que tem a ver com o Homem, a Vida Humana e a própria

dignidade da Pessoa.

A circunstância de ser possível congelar, por tempo ainda indeterminado,

embriões humanos poderá revestir-se de aspectos positivos e cumprir

objectivos intrinsecamente louváveis. Só que a existência generalizada e

crescente desses embriões acarreta também situações dramáticas que

vão desde a sua manutenção sob custódia até à experimentação

manipuladora ou à pura e simples eliminação indiscriminada.

As perspectivas enunciadas parecem aconselhar a elaboração de um

estatuto jurídico para o embrião hibernado, uma vez que se prove a

indispensabilidade da sua existência quase sistemática, o que, diga-se de

passagem, não está minimamente demonstrado, pesem embora as

campanhas orquestradas por alguns sectores, que chegam a camuflar a

verdade científica, criando um falso problema ao invocar a necessidade de

dar origem a embriões excedentários para alcançar êxitos terapêuticos

com as técnicas de procriação assistida.

Page 26: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

Seja como for, a possibilidade de manipulação laboratorial de embriões

humanos, com todo o cortejo de consequências imagináveis daí

resultantes - diagnósticos precoces in vitro antes da implantação, selecção

do sexo, eliminação de indesejáveis, tentações eugénicas, análises

preditivas, modificações da identidade genética - quase obriga ou pelo

menos aconselha a que se estabeleça um verdadeiro estatuto para um ser

humano não vivo mas com promessa de vida.

Em nosso entender, importa que o respeito que é devido ao ser humano,

desde a sua concepção, seja garantido através da explicitação de alguns

dos seus direitos.

* O embrião humano concebido fora do organismo materno deverá ser

gerado com amor e apenas como alternativa de procriação de um casal

sem outra possibilidade de dar expressão a um projecto de vida;

* Ao embrião humano mantido em condições laboratoriais de

sobrevivência, deverá ser propiciada transferência para o seio materno

sempre e logo que as condições lhe sejam mais favoráveis, não devendo

sofrer manipulações de qualquer natureza, salvo se visarem o seu próprio

benefício;

* Deve outorgar-se ao embrião humano o direito a ser respeitado de

forma integral e com a dignidade que, no mínimo, deve ser garantida a um

ser humano, ainda que numa fase incipiente do seu processo evolutivo

contínuo, sendo desejável que lhe venha a ser reconhecido direito a

protecção legal e jurídica como sujeito de pleno direito.

Este é um verdadeiro desafio que os juristas têm de enfrentar com

prudência e razoabilidade, mas também com eficácia. A inércia legislativa,

em certas áreas, representa, à partida e por si só, já uma escolha de

valores. Mas também se reconhece que um figurino legal não pode ser

aceitável se não encontrar uma adesão de opiniões que caucione as

Page 27: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

escolhas que, mesmo assim, serão sempre objecto de contestação por

alguns.

Importa, nesta matéria, anular algumas tensões actualmente existentes

entre os avanços da ciência e os inalienáveis direitos fundamentais do ser

humano. O respeito pela pessoa humana é um dever fundamental e

constante de todo o cidadão. E deve ser o pilar que alicerça o

comportamento dos médicos, dos biólogos, dos especialistas de medicina

da reprodução, para que não se repitam algumas catástrofes hediondas

que a história não deixará esquecer como testemunho da indignidade

totalitária e da pérfida tentação eugénica.

A nossa responsabilidade é, afinal, o imperativo de consciência, individual

e colectivamente expresso, através do inequívoco respeito pela liberdade

do Homem e sobretudo pela intransigente defesa da dignidade da pessoa

humana em toda a sua enorme dimensão.

A Esterilização

HENRIQUETA ALEXANDRA COIMBRA E SILVA E AGOSTINHO ALMEIDA

SANTOS

A liberalização dos costumes, nomeadamente no respeitante à

sexualidade, as tentativas de controlo do crescimento demográfico, a

exigência do conforto económico, a par da inocuidade e fácil acesso aos

novos métodos de contracepção definitiva, levaram à esterilização de

milhões de indivíduos em todo o mundo. Após anos de extensa

propaganda, com a criação de numerosas associações em defesa da

esterilização voluntária, assiste-se hoje à preocupação internacional pelo

envelhecimento da população e estudam-se métodos legais de protecção

da família e de incentivo ao alargamento da prole. A problemática da

Page 28: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

esterilização coloca-se hoje não só no campo da ética, como no plano

biológico e económico da sobrevivência da espécie e da civilização.

A esterilização, definida como a "supressão deliberada e reflectida da

fecundidade sem lesão das outras funções sexuais ou endócrinas" (R.

Palmer), opõe-se à castração, que é a ablação das gónadas, e à

contracepção temporária. Proposta inicialmente pelo inglês Blundell em

1824, a primeira esterilização tubar foi realizada no decurso de uma

cesariana em 1880 pelo americano Lundgren.

As várias técnicas de esterilização feminina têm em comum a interrupção

da permeabilidade tubar, por laqueação, secção, ou destruição dos

tecidos por electrocoagulação. As vias de acesso mais usadas são a

celioscópica e a minilaparotomia. A obstrução do ostium tubar por via

histeroscópica nunca teve grande popularidade. Os riscos, mínimos,

dependem da técnica utilizada e as contra-indicações são essencialmente

anestésicas e cirúrgicas. A eficácia é excelente, com taxas de gravidez

inferiores a 0.4%. As dores pélvicas são o sintoma pós-operatório mais

frequente. O curto internamento e a ausência de necessidade de

consultas de vigilância, tornam o processo economicamente atractivo. A

repermeabilização tubar é possível mas requer uma microcirurgia para

plastia tubar, técnica onerosa, disponível em muito poucos centros, e

cujos resultados dependem largamente do dano tubar provocado pela

técnica utilizada na esterilização. Nos casos em que a repermeabilização é

possível, as taxas de gravidez intra-uterina rondam os 70%. A gravidez

ectópica, situação de risco da vida materna, é um espectro permanente.

A esterilização masculina consiste na laqueação ou secção dos canais

deferentes, a vasectomia. Efectuada com anestesia local, é um processo

rápido e de riscos mínimos. A eficácia é quase de 100%. As técnicas

microcirúrgicas de vaso-vasostomia asseguram a repermeabilização em 70

a 90% dos casos, mas com taxas de gravidez de apenas 50 a 60%. Mesmo

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a normalização do espermograma, que pode demorara até dois anos, não

assegura a fertilidade.

As técnicas de procriação medicamente assistida, reforçam o carácter não

definitivo da esterilização, mas as taxas de sucesso que não ultrapassam

os 20% (recém-nascido/ciclo iniciado), os altos custos e a dificuldade de

acesso, transformam-nas apenas em soluções de recurso. É pois

consensual que, sem excluir estas informações aos requerentes de

esterilização, eles devem ser informados de que o processo deve ser

considerado e assumido, em princípio, como irreversível.

Esterilização coerciva

O século XX tem, na sua história, inúmeros exemplos da aplicação da

esterilização coerciva, com objectivos punitivos, eugénicos ou

demográficos. A castração penal ou punitiva foi aplicada em diversos

países aos responsáveis por crimes sexuais de particular gravidade e

reincidência para prevenir as recidivas, mas a sua licitude foi sempre

questionada e a sua aplicação não é permitida nos Estados em que, de

acordo com o direito internacional, proscrevem as penas corporais.

Com a finalidade de impossibilitar a procriação de pessoas supostamente

portadoras de genes "patogénicos", doentes mentais e outros, a

esterilização foi imposta não só em países de regimes totalitários como

também nos ditos democráticos. Em 1920, a esterilização eugénica era

praticada em 19 países e em 1930 o número era já de 25. Na Alemanha,

entre 1934 e 1944 terão sido efectuadas 200.000 esterilizações, 13.000 na

Suécia entre 1941 e 1975; na Dinamarca, as mulheres com Quociente de

Inteligência inferior a 75 deveriam ser esterilizadas; nos Estados Unidos, o

Estado de Indiana proclamava, em 1907, uma lei que previa a esterilização

dos "criminosos incorrigíveis, dos imbecis e dos alienados", posição

posteriormente seguida por numerosos outros Estados (Sutter, 1950). A

condenação da Igreja Católica, feita por PioXI, na Encíclica Casti Connubi

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(31 de Dezembro de 1930) foi várias vezes reforçada, por decretos do

Santo Ofício em 1931 e em 1940, e ulteriormente retomada por Pio XII.

Com a finalidade de controlo demográfico, houve a legislação na Índia, em

1973, que teve como resultado 13 milhões de indianos esterilizados. A

reacção dos bispos indianos foi manifestada e expressa pelo cardeal

Pichachy (19 de Março de 1976) e também pelo Comité Permanente, em

1976. Esta posição pode encontrar-se noutros documentos posteriores da

Igreja1.

A esterilização coerciva ofende dois direitos fundamentais reconhecidos

não apenas pela moral racional mas também pelo direito internacional, ou

seja, o direito à integridade física e o direito à liberdade fundamental de

constituir família (DUDH, 1948). O consentimento informado é, aliás,

considerado um direito de quem vai ser submetido a um acto médico e

um dever daquele que o presta.

Não obstante a veemente condenação internacional, a licitude do acto

tem sido defendida como meio para evitar um mal maior, como a difusão

de doenças genéticas graves ou a pobreza consequente à explosão

demográfica. Alguns concluem mesmo que se pode estabelecer um

paralelo entre a esterilização eugénica coerciva e as disposições legais

que, por motivos genéticos, interditam o casamento e punem as relações

sexuais entre consanguíneos. Os países democráticos, "desenvolvidos",

chegaram a condicionar a ajuda económica aos países pobres, à prática de

uma drástica redução da natalidade. Em termos científicos, não é

defensável o extermínio das doenças genéticas pela esterilização dos

indivíduos doentes, e a história prova que o progresso económico estável

e duradoiro não se constrói à custa dos direitos do homem.

Page 31: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

O princípio invocado do mal menor para justificar a esterilização coerciva

eugénica ou malthusiana abre caminho ao aborto coercivo com o mesmo

objectivo, ou mesmo à eliminação dos doentes - prática, por enquanto,

limitada à vida intra-uterina - ou dos menos úteis ou dispensáveis ao

"bem-estar" económico dos grupos. A Convenção Europeia de Bioética, no

artigo 2, diz a este propósito: "Os interesses e o bem-estar do ser humano

deverão prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade ou da

ciência" (CPHRDHB, 1996).

Esterilização do doente mental

A esterilização não consentida da mulher doente mental com a finalidade

de prevenir uma gravidez não desejada, tem levantado problemas éticos e

legais. Os direitos dos doentes mentais são os mesmos dos restantes seres

humanos e devem ser protegidos. Mas o exercício de um direito acarreta

responsabilidades e exige determinadas capacidades que alguns

deficientes mentais de facto não possuem. Por vezes, a incompreensão da

realidade e a desinibição própria da sua deficiência, colocam-nas em

situações de risco que devem ser prevenidas.

A Resolução A/3-0231/92 aprovada pelo Parlamento Europeu em 16 de

Setembro de 1992 sobre os direitos dos deficientes mentais, assim se

pronuncia no que diz respeito aos problemas da esterilização: "O

Parlamento Europeu no que concerne aos direitos civis... solicita que a

esterilização seja considerada como uma última ratio e que seja praticada

somente quando não haja disponibilidade de outros instrumentos ou

métodos de controlo, ou quando eles não ofereçam garantias de

segurança" (art.6). Os próprios documentos da Igreja, quando definem a

esterilização como ilícita, referem-se constantemente ao exercício livre e

consciente da sexualidade. Numa passagem de um seu discurso, Pio XII diz

textualmente: "Quando o portador de uma tara hereditária não é capaz de

se comportar humanamente, nem, consequentemente, de contrair

matrimónio, ou quando se torna mais tarde incapaz de reivindicar com um

Page 32: REPRODUÇÃO HUMANA.pdf

acto livre o direito adquirido pelo matrimónio válido, pode ser impedido

licitamente de procriar uma nova vida" (Pio XII, 1944).

A capacidade de manter uma relação afectiva, de procriar ou de educar os

filhos, varia com o grau de deficiência mental. Há deficientes mentais com

capacidade para exercer estes direitos, desde que auxiliados. Estes

indivíduos compreendem a relação entre a sexualidade e a procriação.

Será lícita a esterilização sem consentimento, provando-os de um direito

fundamental?

A esterilização contraceptiva dos deficientes mentais deve ter em conta

"os deveres, as responsabilidades e as capacidades dessas pessoas... do

ponto de vista ético, ela apenas se poderá justificar se pretender o bem-

estar do próprio e não de outrém, quer se trate dos pais ou da sociedade

em geral (Roy, 1994). Tratando-se de um método cirúrgico, com riscos

inerentes, a sua prescrição tem de ser justificada pela elevada

probabilidade de ocorrência de gravidez e pela não aplicabilidade de

outras medidas preventivas. Põe-se igualmente o problema de saber a

quem cabe a decisão. Ao tribunal? Será suficiente a prescrição médica e o

consentimento do tutor?

Esterilização terapêutica

É considerada como esterilização terapêutica directa aquela que é

efectuada com o objectivo de prevenir uma gravidez para a qual existe

uma contra-indicação médica absoluta e permanente. A esterilização

terapêutica indirecta resulta como consequência não desejada, mas

inevitável, de um acto médico terapêutico como a histerectomia por

patologia uterina ou a quimioterapia que frequentemente destroi as

células germinais.

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Embora a lista de patologias que contra-indicam a gravidez possa ser

extensa - cancro estrogénio-dependente, antecedentes trombo-embólicos

graves, cardiopatias com hipertensão pulmonar crónica, existência de

múltiplas cicatrizes uterinas, etc. - cada vez mais o seu carácter absoluto e

sobretudo permanente é questionável. É o caso das insuficientes renais

jovens que após transplante renal poderão, em muitos casos, engravidar.

A indicação do acto médico exige, geralmente, a intervenção de uma

equipa multidisciplinar, envolvendo o especialista da área da patologia em

causa, o ginecologista, o obstetra e o anestesista, dada a complexidade e

gravidade da decisão que implica, frequentemente em mulheres jovens, a

exclusão do direito à procriação. A informação deve ser cuidadosamente

transmitida e discutida com os interessa dos, que darão, posteriormente,

o seu consentimento. O imperativo da presença do casal é tanto maior

quanto mais elevado o risco operatório, situações que dificultam a

avaliação do risco/benefício da intervenção, e podem aconselhar outras

opções, incluindo a esterilização masculina.

A licitude da esterilização terapêutica é-lhe garantida enquanto meio mais

adequado para assegurar o direito à vida e à saúde, sem os quais não se

pode falar de integridade física e liberdade.

Esterilização voluntária

Actualmente, em muitos países, a esterilização voluntária, dita opcional

ou de comodidade, é admitida como um método anticoncepcional, sendo

frequentemente gratuita. Em 14 de Janeiro de 1995, o Conselho da

Europa reconheceu a esterilização humana voluntária como um acto

médico englobado nos métodos que permitem aos casais ter o número de

filhos desejados; esta resolução foi votada, na altura, por todos os países

da comunidade, com a excepção da Irlanda. Em todo o mundo, até ao

início de 1976, havia 65 milhões de esterilizados, dos quais 42 milhões na

China, 8 milhões nos EUA, 7 milhões na Índia e 4.5 milhões na Europa.

Estes dados foram confirmados por novos dados publicados nos fins dos

anos 80, que revelavam que, nesse período, a esterilização era praticada

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por 30% dos casais que recorriam à contracepção, com o envolvimento de

99 milhões de casais em todo o mundo (Sgreccia, 1988). Entre 1990 e o

ano 2000, prevê-se a esterilização de 159 milhões de indivíduos (Ross,

1992).

Não obstante a sua evidente popularidade, as controvérsias éticas e

mesmo legais são reconhecidas e delicadas.

A esterilização, enquanto irreversível - facto não absoluto mas que assim

deve ser assumido na prática - pode ser considerada não só como uma

mutilação, um dano à integridade física, como também um atentado à

liberdade do indivíduo, princípios gerais da ética, do direito internacional

e consignados nas Constituições dos Estados democráticos. De facto, o

indivíduo, integrado num universo, numa espécie, a espécie humana,

numa sociedade, para já não falar num plano divino da criação, embora

lhe seja Outorgado o direito à autodeterminação, não é senhor absoluto

do seu corpo nem da sua liberdade; veja-se a penalização do suicídio e da

automutilação. Há uma obrigação moral à participação e à construção da

sociedade. Serge Regourd (1944) refere-se aos "direitos da humanidade":

"a liberdade dos seres opõe-se ao respeito da espécie humana em si

mesmo, à sua salvaguarda...". A sobrevivência da espécie depende do

exercício do direito à procriação. Não se trata aqui, sequer, de um

princípio teórico, filosófico, sem consequências práticas, pois que dos

temores neomalthusianos da superpopulação, passámos para a eminência

do colapso dos sistemas económicos por envelhecimento da população. O

mesmo autor, Serge Regourd, e outros como Jean-Christophe Galloux,

apresenta argumentos de ordem individual, considerando a contracepção

definitiva um atentado à liberdade pessoal, pois que o indivíduo perde,

definitivamente, a liberdade de optar por procriar ou não procriar

(Rejourd, 1994).

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Interroga-se Elio Sgreccia (1988): "...Se o homem tivesse o domínio

arbitrário de si mesmo, se fosse seu dono despótico, por que não poderia

ter o mesmo domínio sobre os outros? Será que a vida do outro deve ter

mais valor do que a própria e ter uma tutela superior? E de quem?"

O princípio da inviolabilidade absoluta ou da não disponibilidade da

pessoa humana, mesmo perante a própria vontade do sujeito, é

igualmente defendido pela Igreja Católica, como podemos ler na Humanae

Vitae: "Portanto, se não se quiser expor ao arbítrio do homens a missão

de gerar vida, devem necessariamente ser aceites limites intransponíveis à

possibilidade de domínio do homem sobre o próprio corpo e sobre as suas

funções; limites que nenhum homem, quer particular, quer revestido de

autoridade, pode romper...".

Em Portugal, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, na mesma

linha de pensamento, preceitua: "É vedada a prática de processos que

conduzam à esterilização, excepto quando a conservação da vida do

doente os imponha".2

O direito à constituição da família, da determinação do número de filhos e

seu espaçamento, ou o direito ao acesso aos métodos de planeamento

familiar, como referido no artigo 67 da Constituição da República

Portuguesa, deverão submeter-se aos direitos básicos e superiores do

direito à vida, à integridade física e à liberdade? A pergunta é pertinente e

motivou o pedido de um parecer à Procuradoria-Geral da República. A

resposta, publicada em DR. II série-n.36-12.2.1982, remete-se ao artigo 81

do Estatuto da Ordem do Médicos aprovado pelo Decreto-Lei nº. 40651

de 21 de Junho de 1956, ainda em vigor, dado que o novo Código

Deontológico, publicado na Revista da Ordem dos Médicos, nº.6 (Junho)

de 1981, não foi publicado em Diário da República.

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Numa atitude de compromisso perante os interesses envolvidos, em

Portugal, muitos hospitais adoptaram os critérios recomendados noutros

países, que limitam o acesso à esterilização voluntária, sem contudo a

abolirem. Visam estes critérios tornar pouco provável o desejo de

devolução da capacidade de procriar - idade do indivíduo, número de

filhos, idade do filho mais novo, prática de abortamento - e avaliar a

inadequação dos métodos reversíveis - contra-indicações, objecções éticas

e religiosas, má adesão aos outros métodos. O critério social da falta de

meios económicos não pode ser considerado isoladamente, já que neste

caso o Estado teria o dever de assegurar os meios ao exercício do direito à

constituição da família. A necessidade da aplicação criteriosa dos métodos

irreversíveis é cada vez mais evidente dada a perenidade crescente da

família, sendo frequentes os pedidos de repermeabilização tubar aquando

de um segundo casamento.

Embora com uma elevada taxa de sucesso, os métodos de contracepção

irreversíveis não são, como vimos, infalíveis, e a ocorrência de gravidez vai

levantar novos problemas éticos e legais. É que em grande parte a

persecução da queixa e a obtenção de compensação, pressupõem que a

criança seja considerada um prejuízo.

Como qualquer acto médico, ele carece do consentimento informado

do/dos interessados. Quando existe um cônjuge, ele deverá participar da

decisão e do consentimento, já que a procriação é um bem do casal3. Esta

presença do casal, deveria ser, aliás, o habitual nas consultas de

planeamento familiar, o que constituiria uma corresponsabilização dos

dois e do reafirmar da tão alardoada igualdade dos direitos e dos deveres.

A esterilização é uma acto médico, o consentimento dos interessados não

constitui uma indicação de esterilização; a decisão é do médico e do

âmbito da sua responsabilidade profissional. Mesmo que legalmente lícita,

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o que não implica que o seja do ponto de vista ético, o médico tem direito

à objecção de consciência nos termos da lei.

Bibliografia

Artigos 5 e 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada

pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948; Artigos 25 e 36 da

Constituição da República Portuguesa

Convenção Europeia de Bioética, subscrita por 21 países a 4 de Abril de

1997

Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human

Being with Regard to the Application of Biology and Medicine: Convention

on Human Rights and Biomedicine, Council of Europe, Directorate of Legal

Affairs, Strasbourg, November, 1996

Pio XII: Discurso à União Médico-Biológica "S. Lucas" (12.11.1944), in

Discorsi e Radiomessaggi, VI, p.192

Rejourd S: Citado em: Les droits de l'être humain sur son corps, Presses

Universitaires de Bordeaux, 1994

Ross JÁ: Sterilization: past, present, future. Stud Fam Plann 1992; 23: 187-

198

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Roy DJ, William JR, Dickens BM, Baudouin JL: La Bioéthique, ses

fondements et ses controverses. ERPI-Éditions Du Renouveau

Pédagogique Inc.,1995. Tradução de Catherine Ego do original "Bioethics

in Canada" dos mesmos autores, publicado em 1994 por Prentice Hall

Canada Inc.

Sgreccia E: Manual de Bioética I. Fundamentos e ética biomédica. Edições

Loyola, São Paulo. Tradução de Orlando Soares Moreira do original

"Manuale di bioetica I. Fondamenti ed etica biomedica", 1988 Vita e

Pensiero

Sutter VJ: "L'eugénique" Cahier, Travaux de l'INED, nº11, PUF, 1950

1 Cf. Contre um projet de loi sur la stérilistion obligatoire en Inde, "La

Documentation Catholique", 1976, pp. 420-421; "L'Osservatore Romano",

de 30.05.1976, p.2, e 01.03.1978; Paulo VI, Discurso aos participantes da

25ª Assembleia Geral da Federação Internacional Farmacêutica e do 34º

Congresso Internacional de Ciências Farmacêuticas (07.09.1974),

Insegnamenti di Paolo VI, Xii, p.800; Sínodo dos Bispos, Messaggio alle

famiglie cristiane (24.10.1980), in Enchiridion Vaticanum, 7, pp. 743-759.

2 Artigo 81 do estatuto da Ordem dos Médicos aprovado pelo Decreto-Lei

nº. 40651, de 21 de Junho de 1954, mantido em vigor do Estatuto

aprovado pelo Decreto-Lei nº. 282/77 de 5 de Julho. O novo Código

Deontológico, publicado na Revista da Ordem dos Médicos, nº. 6 (Junho)

de 1981, mas não publicado em Diário da República, diferencia a

"esterilização irreversível", permitida enquanto terapêutica e eugénica, da

"esterilização reversível", "permitida perante situações que

objectivamente a justifiquem". Os termos utilizados são dúbios e não

esclarecem como classificar métodos como a laqueação tubar ou a

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vasectomia que, actualmente, não criam uma impossibilidade absoluta à

procriação, levando a situações de dupla interpretação e conduta.

3 Esta co-gestão da fertilidade coloca-se igualmente na disposição dos

gâmetas no âmbito da medicina da reprodução.