Download - REPRODUÇÃO HUMANA.pdf
REPRODUÇÃO HUMANA
AGOSTINHO ALMEIDA SANTOS
Introdução
A problemática da reprodução humana tem sido alvo, nos últimos tempos,
de polémicas mais ou menos acesas e de discussões por vezes muito
acaloradas. Para tal, tem contribuído um certo entrecruzamento de
sentimentos ambíguos ou mesmo de pulsões antagónicas. Algumas
preocupações resultam do flagrante contraste entre um mundo
superpovoado, arrostando com as suas trágicas consequências e o
apreensivo reconhecimento de que certas regiões do globo se vão
esvaziando, com enorme celeridade, do seu mais importante elemento
constitutivo prefigurado na própria população.
Mas, para uma maior vibração do debate também têm contribuído, e
muito, os avanços recentes e ciclópicos das tecnologias ditas de
reprodução artificial e nomeadamente as possibilidades actuais de
manipulação laboratorial de gâmetas e embriões humanos, em várias
fases do seu desenvolvimento evolutivo precoce. Numa perspectiva
científica, poder-se-á dizer que sucessivas e impressionantes aquisições,
têm constituído outras tantas achegas para o quase perfeito
conhecimento dos mecanismos que presidem ao fenómeno reprodutivo.
Só que o processo vital, em si e na sua essência, esse continua envolto no
insondável mistério da procriação apesar de todos os avanços já
conseguidos e mesmo das previsões mais optimistas que a futurologia
científica permite formular. De facto, durante milénios, a continuidade da
espécie humana tem sido assegurada através de mecanismos específicos
da reprodução natural que apenas são conhecidos de modo grosseiro, tal
a sua complexidade fenomenológica.
Reconhece-se, hoje, que o processo reprodutivo é surpreendentemente
ineficaz. Na verdade, em condições perfeitamente normais, a fecundação
apenas ocorre em 25% dos ciclos genitais de casais considerados
fecundos, e nos quais não é assumida qualquer atitude contraceptiva.
Para além disso, também é sabido que uma em cada três gestações
alcançadas, acaba por se perder espontaneamente, muitas vezes sem que
seja detectada uma causa clínica evidente.
Mecanismos fisiológicos da reprodução
Tendo em vista uma análise tão esclarecedora quanto possível dos
distúrbios que afectam os fenómenos da reprodução, torna-se útil
identificar, antes de mais, os mecanismos que, em condições fisiológicas,
asseguram o correcto desenrolar desse processo dinâmico que culmina no
nascimento de um novo ser. Será, assim, mais fácil compreender e
identificar os pontos de rotura do sistema reprodutivo que, em última
análise, inviabilizam a procriação. E também, graças a um tal
conhecimento, se poderão superar, com mais lógica e maior eficácia,
algumas anomalias detectadas nos complexos mecanismos da
reprodução, através de modalidades terapêuticas da mais diversificada
índole.
De uma forma muito esquemática poder-se-ão resumir, assim, os
pressupostos considerados necessários para que ocorra uma gravidez, em
condições fisiológicas:
1. Suficiente produção de espermatozóides móveis e normais;
2. Deposição dos espermatozóides em contacto com o muco produzido no
colo do útero, durante a fase pré-ovulatória do ciclo genital;
3. Ascensão dos espermatozóides, graças à sua própria mobilidade, ao
longo do tracto genital feminino;
4. Libertação de um óvulo em condições de ser fecundado;
5. Existência de pelo menos uma trompa anatómica e funcionalmente
adequada à captação do óvulo, à condução dos espermatozóides, à fusão
dos dois gâmetas e ao trajecto do embrião até à cavidade uterina;
6. Presença de um útero propício à correcta nidação do ovo e dotado de
suporte trófico, capaz de assegurar a manutenção de todo um processo
evolutivo, do produto de concepção até à sua viabilidade.
Para que haja fecundação é, portanto, indispensável que o homem
produza espermatozóides em quantidade e qualidade adequadas,
traduzindo-se a complexa gametogénese masculina pela diferenciação e
maturação de qualquer coisa como 1000 espermatozóides por segundo, o
que significa uma produção anual de cerca de 30 biliões de
espermatozóides. Assim acontecendo, aquando de uma relação sexual são
depositados cerca de 200 milhões de gâmetas masculinos na vagina.
Porém, só quatro milhões atingem o colo uterino onde são capacitados no
muco cervical, alcançando apenas uns milhares a trompa de Falópio, onde
um único virá a ser capaz de fecundar o gâmeta feminino.
Mas para que o processo reprodutivo ocorra normalmente, torna-se
também necessário que a mulher liberte, ciclicamente, um óvulo com as
adequadas condições de maturação para que seja fecundável. Em cada
ciclo genital iniciam um processo maturativo vários óvulos contidos nos
respectivos folículos ováricos. Porém, só um, e em regra apenas um,
atinge a plenitude maturativa. A libertação periódica de um óvulo em
condições propícias para ser fecundado, deve ser seguida da sua captação
pela trompa que o aspira para o seu interior e o impele ao longo do seu
lúmen. O encontro gamético ocorre no terço externo da trompa, onde se
verifica a fusão do espermatozóide com o óvulo e onde se realiza a união
dos gâmetas masculino e feminino.
A fecundação ocorre, então, como resultado da penetração de um único
espermatozóide na membrana pelúcida do ovócito. Formam-se depois
dois pronúcleos: o masculino e o feminino que contêm em si o património
genético de cada um dos progenitores. Assim se inicia a vida de um novo
ser que terá agora um número diplóide de cromossomas, característico da
espécie, e possui, desde este momento, toda a informação genética que o
define e lhe outorga identidade biológica.
A partir da fusão dos dois pronúcleos, inicia-se o processo de divisão
celular, continuando-se depois, em ritmo acelerado, a multiplicação de
células ao longo do percurso na trompa, o qual deverá ter uma duração
normal de 3 ou 4 dias. O processo evolutivo embrionário, caracterizado
por divisões celulares sucessivas, mantém-se de forma célere mas
coordenada, constituindo-se, progressivamente, uma estrutura
multicelular denominada mórula. Ao fim de 72 a 96 horas de existência, o
embrião, já num estádio de desenvolvimento designado por blastocisto,
possui uma cavidade de tipo quístico (de onde lhe advêm a designação) e
um botão embrionário que constitui o seu esboço rudimentar. É nesta
fase que vai chegar à cavidade uterina, onde agora se procura implantar.
Ocorre então o processo, algo complexo e enigmático, da nidação, ou seja,
a fusão do embrião com as estruturas uterinas que lhe vão constituir
como que um verdadeiro claustro materno. Trata-se de um momento
crítico do processo reprodutivo, na medida em que implica não só o
reconhecimento da estrutura embrionária pelo organismo materno, como
também está dependente de uma não rejeição de material biológico, em
parte estranho às estruturas orgânicas onde se pretende implantar. Vai, a
partir de agora, estabelecer-se uma relação estreita entre o embrião e o
organismo materno, a qual se verifica muito cedo, graças à produção de
gonadotrofina coriónica pelo trofoblasto fetal, sendo esta complexa
hormona veiculada para a circulação materna, vindo a modificar por sua
influência directa os comportamentos físicos e até psicológicos da mulher
grávida. Mais tarde e por volta das 16 semanas de gestação, o novo ser
está completamente formado no interior do saco vitelino, sendo então
dotado de uma estrutura placentar com autonomia funcional, muito
embora continue a verificar-se sempre um necessário e ajustado
relacionamento materno-fetal. Finalmente e passadas as complexas e por
vezes indecifráveis etapas de um processo ainda misterioso, assiste-se ao
nascimento de um novo ser que cumpre um destino biológico assegurado
pelo processo reprodutivo natural.
Esterilidade e infertilidade
Num número relativamente importante de casais, os pressupostos atrás
considerados não se verificam na sua globalidade, pelo que o sistema
reprodutor sofre uma rotura nos seus mecanismos essenciais, não sendo
viável a concretização de um dos objectivos superiores da própria vida
conjugal - a procriação, a transmissão de vida, a plenitude da união e do
amor entre o casal. Surgem, assim, situações patológicas de esterilidade
ou de infertilidade, resultantes de uma falência do processo reprodutivo a
que está subjacente, muitas vezes, uma afecção orgânica, quer masculina
quer feminina.
Nos nossos dias, os distúrbios dos mecanismos fisiológicos da reprodução
constituem um problema médico-social generalizado e de progressiva
incidência, que atinge uma assinalável camada da população em idade
procriativa, envolvendo, à escala mundial, cerca de 15% de todos os
casais.
Importa, agora, definir a tecnologia médica que, na nossa perspectiva,
deverá ser empregue para caracterizar as diferentes anomalias dos
mecanismos fisiológicos da reprodução humana. É necessário, também
nesta matéria, definir conceitos por razões de natureza não só tecnicista,
mas também para que a linguagem adoptada seja compreensível entre
aqueles que a utilizam. Dever-se-á clarificar a nomenclatura preconizada
com objectividade e sem recurso a modelos importados, por vezes até
menos consentâneos com a nossa realidade linguística.
Costuma dizer-se que existe esterilidade num casal quando, ao fim de dois
anos de relações sexuais desprotegidas, não surge uma gravidez. Trata-se
de uma definição em si própria arbitrária, por diversas razões, entre as
quais a limitação temporal imposta e mesmo até pela própria noção algo
subjectiva de relações sexuais desprotegidas. Muito embora algo criticada,
porém, a designação é utilizada correntemente e encontra-se mesmo
expressa em alguns textos conhecidos de célebres escritores e reputados
cultores da língua portuguesa.
O conceito anterior é bem diferente, na sua etimologia e significado, da
também banalizada expressão infertilidade. A designação de infértil
deverá ser atribuída ao casal em que existe fecundação, mas em que o
produto da concepção não atinge a viabilidade. O casal também não tem
filhos, mas a grande maioria dos mecanismos da fecundação tem lugar, só
que a gravidez que foi alcançada, uma ou mais vezes, não termina pelo
nascimento de um novo ser vivo e viável. Integram-se nestas situações os
casos frequentes de abortos de repetição, de gravidezes ectópicas ou
partos prematuros.
Como se imagina e compreende, o rótulo atribuído a um casal em que
existe uma esterilidade ou uma infertilidade pressupõe, desde logo,
situações patológicas diferentes, implica investigações diversificadas e
culmina em atitudes terapêuticas distintas. Por isso, e em consonância
mais legítima com a língua portuguesa rica de vocábulos com significados
específicos e expressivos, adoptamos esta dualidade de terminologia que
define, logo à partida, e de uma forma relativamente explícita, a situação
clínica do casal que procura cuidados médicos porque não alcança o
objectivo último da reprodução. Por vezes também se costuma utilizar,
englobando os dois conceitos, a expressão de hipofertilidade, traduzindo
genericamente a incapacidade biológica de ter filhos.
Como já se referiu, a esterilidade afecta, segundo as mais diversas
estatísticas, entre 10 a 15% dos casais humanos. Estes números variam,
naturalmente, com os conceitos e as definições e até mesmo com as
latitudes consideradas. É pois, e desde já, uma situação que se verifica
num número considerável de casais e que, em muitos casos, se reveste de
verdadeiro dramatismo, pois o instinto da reprodução, mesmo numa
sociedade moderna, relativamente hedonista, continua a estar
profundamente arreigado na essência profunda da natureza humana.
Em Portugal não se conhecem, mesmo aproximadamente, os números
exactos de casais estéreis. Poder-se-á através de uma mera extrapolação,
admitir que deverão existir no nosso País cerca de meio milhão de
pessoas, em idade fértil, que não terão filhos embora o desejem. Tal
número é, no entanto, teórico e resulta de um paralelismo com as cifras
apresentadas em países estrangeiros e de um cálculo estabelecido com
base no número de casamentos registados anualmente em Portugal.
Uma noção que importa aqui sublinhar é a de que, possivelmente, se
assistirá de forma progressiva a um acréscimo do número de casos de
esterilidade conjugal. Os factos que nos levam a pensar em tal
probabilidade estão fundamentalmente relacionados com os seguintes
fenómenos:
* aumento da incidência de situações em que se detectam factores de
índole masculina;
* incremento de patologia dependente de doenças sexualmente
transmissíveis;
* adiamento da idade em que é desejada a primeira gestação com
inevitáveis consequências negativas para a fecundidade;
* prática mais generalizada de aborto e utilização desregrada de certos
métodos contraceptivos perniciosos para uma futura concepção;
* verificação, com alguma frequência, de sequelas de tuberculose genital
feminina (facto que já deixou de constituir motivo de esterilidade em
muitos dos países da Europa Ocidental);
* exposição excessiva a factores tóxicos e ambienciais com efeitos
deletérios nos mecanismos que asseguram a reprodução.
A esterilidade é, pois, algo de negativo, e representa a falência de um
sistema - o sistema reprodutor. E, tal falência, condiciona alterações não
apenas de natureza biológica, mas reflecte-se também na vivência
interpessoal do casal e arrasta consigo implicações de índole social e
comunitária. A esterilidade é, pois, uma doença que afecta o bem-estar
físico, psíquico e até social, regra geral não apenas de um mas de dois
seres humanos que se uniram e que não conseguem alcançar em
plenitude a sua realização pessoal e conjugal.
A este respeito, é bom esclarecer desde já, e contrariamente às ideias
ainda arreigadas nalguns espíritos, que em cerca de 40% das esterilidades
conjugais existe um factor masculino, em parte ou no todo, responsável
por essa mesma esterilidade. Está também estabelecido que cerca de 50%
das situações de esterilidade conjugal resultam de um ou vários distúrbios
femininos. E, é também conhecido, que em aproximadamente 10% dos
casos não se detecta nenhuma causa presumivelmente responsabilizável
pela esterilidade investigada. São estas as chamadas esterilidades
idiopáticas ou de causa desconhecida que nos fazem meditar sobre os
eventuais mecanismos da reprodução que, ainda hoje, escapam aos
modernos meios de investigação e que nos obrigam a reflectir sobre os
insondáveis enigmas que continuam a envolver o complexo fenómeno que
está na origem da vida humana.
Existem, ainda, situações em que frequentemente se associam mais do
que uma causa de esterilidade e que se poderiam considerar mistas,
englobando quer diversos factores femininos, simultaneamente, quer
associando alterações em ambos os membros do casal. Por isso se advoga
e se considera como regra fundamental na investigação da esterilidade
conjugal, a análise conjunta de eventuais anomalias quer no homem, quer
na mulher.
Estudo do casal estéril
A investigação dos factores causais de esterilidade deve, a nosso ver,
processar-se, segundo uma metodologia sequencial que respeite o
princípio de agressividade progressiva. Partindo das investigações mais
simples, deve progressivamente caminhar-se para os exames mais
complexos, à medida que os elementos recolhidos os vão sugerindo ou
até mesmo impondo.
De facto é bem sabido que, algumas vezes, a mera realização de
investigações anodinas ou mesmo o simples apoio psicológico resultante
de uma consulta médica correctamente conduzida, podem surtir o efeito
desejado, ou seja o aparecimento de uma gravidez almejada. Nos casos
em que assim não sucede, impõe-se um progressivo aprofundamento das
investigações que devem surgir na sequência lógica das ilações que se vão
estabelecendo e sem precipitações ou gestos intempestivos cujas
consequências podem, por vezes, revelar-se desastrosas.
Como já se deixou claro, a investigação de um casal estéril deverá atender
aos factores etiológicos quer masculinos, quer femininos. E como também
já se disse, aproximadamente 40% dos casos de esterilidade conjugal são
exclusivamente dependentes de factores masculinos perturbados. Por isso
mesmo se considera indispensável a avaliação clínica de ambos os
membros do casal, começando simultaneamente pela investigação de
eventuais distúrbios quer no homem, quer na mulher.
No homem, para além de uma história clínica elementar e de um exame
andrológico sumário, é indispensável, quase sempre, a realização de um
espermograma. E este exame laboratorial quando correctamente
efectuado (o que nem sempre sucede) permite avaliar principalmente o
volume do ejaculado (3 a 5c.c. de sémen), o número de espermatozóides
por centímetro cúbico de esperma (normalmente entre 60 a 200 milhões),
a mobilidade desses mesmos espermatozóides (mais de 70% de
espermatozóides ainda móveis uma hora após a recolha do esperma;
entre 60 a 70% móveis ao fim de 4 horas) e a morfologia dos próprios
espermatozóides (60 a 70% de formas normais).
Sempre que se verifiquem anomalias do espermograma e se identifiquem
alterações no exame clínico, poderá estar indicada a realização de exames
complementares que serão solicitados de acordo com os distúrbios
detectados. Entre os mais frequentemente prescritos contam-se os
doseamentos hormonais, os estudos bacteriológicos, radiológicos, ultra-
sónicos, genéticos, bioquímicos e até o exame histológico de fragmentos
de biópsias testiculares.
O protocolo de investigação feminina começa também e naturalmente
pela colheita de uma história clínica pormenorizada e pela realização de
um exame físico geral e de uma observação ginecológica correcta. Torna-
se, depois, necessário avaliar basicamente três aspectos fundamentais da
fecundidade da mulher: a actividade funcional dos ovários, a captação dos
espermatozóides e a sua sobrevida no muco cervical e a funcionalidade
das trompas e do próprio útero.
Para proceder ao estudo da função ovárica poderemos e devemos
recorrer, desde o início das investigações, à curva das temperaturas
basais. A análise do gráfico das temperaturas rectais colhidas pela manhã,
ao acordar e antes de qualquer esforço, permitir-nos-á detectar o dia
provável da ovulação, o tempo de sobrevida do corpo amarelo e mesmo,
de uma forma relativamente grosseira, a qualidade funcional do corpo
amarelo de cada ciclo estudado.
A biópsia do endométrio pode também fornecer elementos válidos acerca
da influência das hormonas esteróides sobre a mucosa uterina,
transmitindo assim uma ideia relativamente fiel sobre a produção
hormonal dos ovários. Um endométrio com características histológicas de
tipo secretor, testemunha, em condições fisiológicas, uma produção de
progesterona, a qual só pode provir de um corpo amarelo, em regra
resultante de uma ovulação prévia. Mas para além de indicar, com muita
probabilidade, a existência de ovulação, o estudo histológico do
endométrio é também capaz de fornecer informações preciosas sobre o
valor funcional do corpo amarelo ou seja sobre o teor da sua produção
hormonal. A própria biópsia do endométrio pode ainda transmitir certos
aspectos independentes da acção hormonal, nomeadamente relativos a
determinadas lesões orgânicas que podem correlacionar-se com a
situação de esterilidade cuja causa se pretende investigar.
Os doseamentos hormonais urinários ou plasmáticos são, nos nossos dias,
os parâmetros mais utilizados para análise da função ovárica. A
determinação plasmática das hormonas produzidas pelos ovários -
estradiol, progesterona, androstenediona - e de tantas outras oriundas de
outros órgãos mas com interferência no próprio funcionamento ovárico -
FSH, LH, prolactina, testosterona, etc. - permite definir um quadro
hormonal ilustrativo da situação endócrina da paciente analisada. Em
certas situações poder-se-ão realizar provas funcionais dinâmicas que
fornecerão elementos importantes para uma correcta interpretação da
forma como se processa o ritmo biológico funcional do ovário ou de
outras glândulas endócrinas com ele relacionadas.
A capacidade de penetração dos espermatozóides no muco cervical e a
sua sobrevida, é avaliada através da realização do teste de Hühmer ou
teste pós-coital. Este exame é efectuado no muco cervical de uma mulher
em período pré-ovulatório e cerca de 6 a 8 horas após relações sexuais. O
muco cervical colhido nestas circunstâncias é examinado ao microscópio e
a observação de espermatozóides com boa mobilidade e em quantidade
satisfatória atesta não apenas a adequada penetração dos
espermatozóides no muco cervical, mas até a boa qualidade do próprio
esperma. Em casos particulares poderá haver necessidade de recorrer a
testes de penetração in vitro que poderão indicar a hostilidade de um
muco, regra geral consequência de alterações imunitárias complexas.
No sentido de apreciar a permeabilidade das trompas tem sido
preconizada a realização de diversos tipos de investigação - a
histerossalpingografia, a cromotubação per-celioscópica e, mais
recentemente, a ecografia com contraste liquido ou
histerossalpingossonografia. A histerossalpingografia, através das imagens
radiológicas da cavidade uterina, do trajecto tubar e do derrame
peritoneal do produto de contraste extravasado através das trompas, é o
exame que fornece as melhores informações não apenas relativamente às
características anatómicas do útero e das trompas mas também alusivas a
certos aspectos da própria dinâmica funcional da trompa. Trata-se de um
estudo que, realizado segundo metodologia adequada e interpretado
correctamente, permite conclusões de extrema validade. Para além de
propiciar uma visualização da cavidade uterina e da sua eventual e
diversificada patologia, fornece também elementos importantes sobre o
trajecto e permeabilidade bilateral das trompas, sobre a forma como o
derrame do contraste se difunde na pélvis e ainda sobre a dinâmica da
própria trompa e sua integridade funcional. Tratando-se de um exame
relativamente inócuo e com poucas contra-indicações é considerado como
um passo fundamental e praticamente obrigatório no decurso da
investigação de uma esterilidade.
A celioscopia, permitindo visualizar directamente os órgãos pélvicos,
possibilita a realização de um gesto associado traduzido pela instilação de
um líquido através do canal útero-tubar, o qual poderá ser observado ao
longo do seu trajecto nas trompas e mais precisamente aquando da sua
passagem através do pavilhão e consequente derrame na escavação
pélvica. Este exame, designado por cromotubação, de grande
importância em certos casos, deverá ser praticado quando as
circunstâncias aconselhem a realização de uma celioscopia, associando-se
então a prova de permeabilidade como gesto complementar.
Em 1984 descrevemos, pela primeira vez, e com idêntico objectivo dos
exames anteriores, um novo método de exploração do útero e do interior
das trompas, utilizando a ultra-sonografia como método de observação e
um líquido instilado na cavidade uterina e no lúmen tubar como meio de
contraste. Designámos, na altura, o procedimento como
histerossalpingossonografia, sendo hoje considerada tal técnica como
exame banal já muito vulgarizado na literatura internacional. Trata-se de
um processo muito simples que consiste em injectar na cavidade uterina e
nas trompas uma solução salina de alto peso molecular, seguindo
exactamente a mesma técnica preconizada para a hieterossalpingografia.
Podem-se, assim, obter imagens muito curiosas da cavidade uterina e, ao
mesmo tempo, visualizar a passagem do liquido através das trompas,
facto que é comprovado pela existência de derrame do contraste na
cavidade peritoneal. Pelo contrário, pode-se suspeitar da existência de
patologia que afecte a permeabilidade tubar ao identificar situações de
retenção de líquido nas trompas devido a obliteração das suas porções
terminais.
Naturalmente que, como já se referiu para o homem, também na mulher
pode ser necessário recorrer a exames complementares mais
especializados, de natureza hormonal, genética, bacteriológica,
imunológica, histológica, etc.. Regra geral, porém, a colheita dos
elementos anteriormente aduzidos é suficiente, na grande maioria dos
casos, para estabelecer um diagnóstico etiológico correcto e permitir,
sempre que possível, uma terapêutica causal adequada. Um certo número
de situações que se cifram na ordem dos 10% não apresentam, no
entanto, alterações justificativas da esterilidade e são, por isso, rotuladas
de idiopáticas, muito embora se suponha que resultem de perturbações
não detectáveis com os meios actualmente disponíveis, mas
suficientemente importantes para bloquear os ainda algo misteriosos
mecanismos íntimos da reprodução.
De uma forma esquemática e algo sintética apresentamos, a seguir, um
quadro sinóptico das diferentes causas de esterilidade conjugal, colocando
prioritariamente aquelas que, na prática corrente, são mais
frequentemente objecto de observação clínica.
CAUSAS MASCULINAS ( ~40%)
ETIOLOGIA "SECRETORA"
Causas orgânicas testiculares - varicocelo, orquite pós-parotidite,
criptorquidia
Factores endócrinos - hipofisáríos, pancreáticos, tiroideus
Causas genéticas
"Stress"
ETIOLOGIA EXCRETORA
Obstrução dos canais excretores - infecções, traumatismos, tumores
Agenesia dos deferentes
Laqueação dos deferentes
PERTURBAÇÕES DA EJACULAÇÃO
Impotência
Enajaculação
Ejaculação retrógada
CAUSAS FEMININAS (~50%)
Tubares e peritoneais - endometriose, infecções (ascendentes e
contiguidade), tuberculose
Ováricas - distúrbios cortico-hipotalamo-hipofisários, perturbações
ováricas, endocrinopatias diversas
Uterinas - miomas, pólipos, sinéquias
Vaginais e cervicais - infecções, alterações do muco e pH
Mistas
PROCRIAÇÃO ASSISTIDA - AS TÉCNICAS E A ÉTICA
A terapêutica da esterilidade conjugal tem sofrido nos últimos anos,
assinaláveis progressos decorrentes não só do melhor conhecimento dos
mecanismos fisiológicos da reprodução, como também do enriquecimento
frequente do arsenal terapêutico com novas modalidades de intervenção
médico-cirúrgica. As notáveis aquisições no plano farmacológico,
nomeadamente graças à produção industrial quer de poderosos agentes
estimulantes da função ovárica, quer de substâncias dopaminérgicas
altamente eficazes, trouxeram a solução quase generalizada às situações
de esterilidade de causa ovárica.
Os progressos não foram, porém, tão brilhantes relativamente à patologia
tubar ou à terapêutica da esterilidade masculina que, no seu conjunto,
representam, hoje em dia, cerca de 60% de todas as etiologias da
esterilidade do casal. Face a uma crescente solicitação de apoio médico
para o tratamento das muito frequentes e diversificadas situações de
esterilidade conjugal, a evolução recente da Medicina tem vindo a
procurar ultrapassar as falências do processo reprodutivo, muito embora
algumas das terapêuticas ainda preconizadas se mostrem, mesmo nos
nossos dias, absolutamente infrutíferas em determinadas situações
concretas. Todavia, noutras circunstâncias, as soluções disponíveis podem,
pelo contrário, revelar-se exageradamente eficazes, dando origem a
gravidezes multifetais, facto que poderá causar um certo júbilo, mas não
deixa de constituir significativo motivo de preocupações clínicas e até
mesmo familiares.
Para tentar obviar a estes inconvenientes assistiu-se, a partir de 1978, a
uma verdadeira revolução na área da Reprodução Humana. De facto,
nesse ano, veio ao mundo o primeiro ser humano concebido fora do
organismo materno através de uma técnica de reprodução artificial
designada por fecundação in vitro e transferência de embriões para o
útero (FIVETE). Foi assim possível assistir-se ao nascimento de uma criança
concebida no laboratório e no interior de uma simples proveta onde se
juntaram espermatozóides e óvulos previamente seleccionados.
Graças a esta técnica de procriação assistida, tem-se conseguido fazer
nascer milhares de bebés que, provavelmente, em condições naturais,
nunca teriam sido originados. Resolveram-se, por esse meio, inúmeras
situações de esterilidade conjugal, algumas delas até agora consideradas
insolúveis. Mas geraram-se, por via disso, seres humanos que passaram a
ter uma origem biológica diferente daquela que durante séculos fez a
história do Homem. E estabeleceu-se, também, com tal perspectiva, uma
dissociação entre o afectivo e o biológico dando-se azo a uma rotura
nunca antes vivida entre sexualidade e procriação.
Desde 1978 até aos nossos dias, múltiplas têm sido as etapas percorridas,
e enormes os progressos alcançados nesta nova ciência da reprodução
artificial que já se pretende mesmo, individualizar com a denominação
específica de Procreática. Mas, simultânea e talvez um pouco
paradoxalmente, são também imensas as legítimas e inicialmente
impensáveis preocupações decorrentes da simples possibilidade actual de
manipular, em ambiente laboratorial, não apenas gâmetas
(espermatozóides e óvulos) mas, sobretudo, embriões humanos em pleno
decurso do seu complexo e acelerado desenvolvimento vital.
Perspectivas quase ilimitadas abrem-se hoje num horizonte nem sempre
despido de contradições e até mesmo envolto em ensombradas nuvens
de verdadeira angústia. Graças às técnicas já comumente utilizadas, têm
sido alcançados benéficos progressos científicos, mas são também
imagináveis algumas perversões quase fantasmagóricas, como poderão
ser, por exemplo, as modificações genéticas embrionárias com finalidades
eugénicas ou a própria clonagem de seres humanos.
Importa ainda assinalar, a propósito das técnicas de procriação
medicamente assistida, que não existe apenas a fecundação in vitro no
arsenal terapêutico de que hoje se dispõe para tratar certas formas de
esterilidade, nas quais a utilização de outras modalidades terapêuticas
mais clássicas ou convencionais se revelou já ineficaz ou não encontra
mesmo razão de ser. Apenas num caso paradigmático se justifica
exclusivamente o recurso à fecundação in vitro - a ausência bilateral de
trompas ou a sua obstrução irreparável. Em tais circunstâncias não é
possível o encontro natural dos espermatozóides e do óvulo e, assim, só a
fecundação in vitro ou extracorporal poderá propiciar uma gravidez, não
havendo, portanto, qualquer outra alternativa terapêutica disponível.
Em muitas das outras situações clínicas de esterilidade antes
inventariadas, é possível também, desde há alguns anos, recorrer a
diferentes técnicas de procriação assistida. A transferência de gâmetas
para a trompa, designada abreviadamente por GlFT (Gamete Intra
Fallopian Transfer), foi descrita em 1984 nos Estados Unidos e tem vindo a
ser realizada por nós, em Portugal, desde 1987. Com este método, os
gâmetas masculinos e femininos seleccionados no laboratório, não se
misturam numa proveta para dar origem a embriões in vitro, mas são
antes veiculados directamente para o interior da trompa, no decurso de
uma celioscopia. Espera-se, assim, que aí, no local próprio da fecundação,
ocorra a junção gamética, encaminhando-se depois o, ou os embriões
dessa forma obtidos, para a cavidade uterina, através do percurso
fisiológico, e ainda, no tempo que é mais adequado para o normal
desenvolvimento inicial de um novo ser. Um tal procedimento, permite
ultrapassar muitos dos problemas éticos levantados pela fecundação
extracorporal, que são inerentes à possível manipulação laboratorial de
embriões humanos, proporcionando, além disso, resultados, em termos
de gravidezes alcançadas, que são globalmente superiores aos obtidos
com a fecundação in vitro.
Apesar dos assinaláveis êxitos alcançados com as já clássicas técnicas de
procriação assistida, muitos dos crescentes problemas resultantes da
esterilidade masculina não tinham encontrado, até há bem pouco tempo,
soluções dotadas de desejável eficácia. De facto, em diversas
circunstâncias, o correcto diagnóstico da verdadeira causa que motiva a
esterilidade do homem é particularmente difícil e, muitas vezes, mesmo
impossível. Sendo assim, as terapêuticas disponíveis revelavam-se quase
sempre empíricas e, por isso mesmo, destituídas de real valia. Nos últimos
anos porém, registaram-se progressos inesperados neste domínio,
mormente graças à utilização já hoje generalizada de uma nova
modalidade de reprodução artificial, designada por fecundação assistida,
que consiste na micro-injecção de um único espermatozóide no interior
do citoplasma do próprio óvulo. Esta técnica, rotulada de ICSI (Intra
Citoplasmic Sperm Injection), representa um novo passo, muito
significativo, na resolução de situações tecnicamente inultrapassáveis de
esterilidade masculina. Apontam-se-Ihe porém, até ao momento, algumas
reservas quanto a eventuais consequências para os indivíduos gerados
após inseminação dentro do próprio ovócito de um espermatozóide que,
pelas suas próprias apetências, não consegue flanquear algumas barreiras
naturais. Por isso, é preferível considerar, por enquanto, esta tecnologia
como experimental e sujeita, por tais motivos, a estreita e continuada
vigilância no que respeita a resultados e consequências para as gerações
vindouras.
As técnicas de reprodução artificial não são, muito longe disso, uma
panaceia universal, nem sequer representam estratégias terapêuticas
isentas de riscos e conflitualidades. Nestas circunstâncias, o recurso a tais
procedimentos só deve preconizar-se depois de ensaiadas outras
modalidades de tratamento menos agressivas e credíveis de alguma
eficácia presumível. A procriação assistida deveria ser a última instância
de um processo que viu inviabilizadas ou inoperantes, algumas etapas
terapêuticas prévias menos pesadas no ponto de vista físico e psicológico.
É que, depois de esgotada a hipótese derradeira, pode ver-se eliminada a
esperança, instalando-se assim o desespero. E será também legítimo,
advogar que uma vez decidida a implementação de tecnologias de
reprodução artificial, se deverá deixar aos beneficiários a opção por um
dos diferentes métodos que seja cientificamente justificável - FIV, GIFT ou
ICSI - dando a conhecer previamente aos interessados, as diferentes
etapas técnicas dos vários procedimentos, os riscos e benefícios
respectivos e os resultados que presumivelmente poderão ser esperados
com a realização de cada um deles.
As atitudes e os comportamentos preconizados, e aqui apenas
brevemente esboçados, permitem perspectivar toda a complexa
problemática da esterilidade conjugal encarada nas suas diversificadas
facetas, com o rigor científico desejável e numa postura ética defensora
de valores fundamentais que constituem o garante da preservação do
respeito e da dignidade sempre devidos à Pessoa Humana.
O EMBRIÃO HUMANO - QUE ESTATUTO?
O desenvolvimento de um indivíduo começa no momento da fecundação.
Este é um facto indiscutível e perante o qual as múltiplas polémicas sobre
o início da vida não podem constituir, hoje, e no estado actual do
conhecimento científico e do desenvolvimento tecnológico, senão meras
especulações académicas ou estéreis discussões mais ou menos
bizantinas.
O respeito que deve ser garantido, até pelas vias constitucionais, à vida
humana, a defesa que se deseja intransigente dos direitos do Homem e a
necessidade de preservar princípios de índole ética, social e deontológica
impõem, porém, uma continuada reflexão acerca do momento que define
o começo do processo vital. A análise desejável terá de ser de natureza
sociológica, mas não poderá deixar de se fundamentar em premissas
científicas inequivocamente objectivas, algumas ainda em contínua e
renovada evolução conceptual.
Numa matéria tão controversa e acesamente polémica, as discussões
terão de ser conduzidas tendo em conta matrizes socioculturais, mas
fundamentando-se em dados técnico-científicos, para não se deixar
margem a aventureirismos fáceis ou manipulações mais ou menos
tentadoras, quantas vezes pretensamente arquitectadas no pressuposto
de uma inexistência, aliás questionável, de elementos de cariz científico
precisos e concretos. Não restam hoje grandes dúvidas quanto à asserção,
ainda até há bem pouco posta em causa, segundo a qual a visa começa na
concepção. As posições expressas a este propósito por instituições e
personalidades são ilustrativas do axioma.
Para o Royal College of General Practitioners, britânico, "o início da vida
humana pode considerar-se como surgindo na fecundação", momento em
que um embrião geneticamente completo é formado. O "Comité" Francês
de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde, após prolongadas discussões,
acabou por concluir que o embrião humano deve ser considerado como
"pessoa humana potencial desde o momento da sua concepção". O
Parlamento Europeu na sequência de audições públicas levadas a cabo
pela Comissão dos Assuntos Jurídicos e dos Direitos dos Cidadãos,
elaborou extenso relatório no qual se afirma, sem hesitações, que a "vida
humana começa com a fecundação e desenvolve-se sem saltos de
qualidade numa continuidade permanente até à morte".
Porém, algumas questões fundamentais ainda hoje se levantam numa
perspectiva científica e numa visão sociojurídica.
* Será que o embrião resultante da fusão de um espermatozóide e de um
óvulo é apenas uma simples célula com particularidades específicas ou é
já um ser humano?
* Será o embrião humano uma pessoa potencial ou uma pessoa humana
real?
* E a partir de que momento exacto deverá o produto de concepção ser
objecto de toda a protecção implícita a um ser humano?
* Será que ao ovo ou zigoto, ainda antes da nidação uterina, deverão ser
outorgados menos direitos do que a um embrião já implantado no
claustro materno?
* E será o mesmo embrião humano já um sujeito jurídico, devendo por tal
gozar de tutela da lei?
As razões para tais interrogações resultam mais de questões filosóficas do
que propriamente de dúvidas científicas. É razoável admitir que o óvulo
que foi fecundado e ainda não se dividiu, é apenas uma célula totipotente
que não tem, em tal momento, por determinismo único, a formação de
um ser humano. De facto, o desenvolvimento embrionário nesta fase
precoce pode orientar-se noutros sentidos bem diferentes do que é mais
fisiológico: a pura e simples eliminação espontânea, a separação gemelar
em dois indivíduos geneticamente idênticos, ou mesmo, degenerescência
de tipo tumoral. No entanto, numa grande maioria das gestações
detectadas, o desenvolvimento embrionário constitui um processo
evolutivo contínuo que conjuga a celeridade com a segurança e associa a
complexidade à perfeição.
Logo após a fecundação, as células primordiais resultantes da divisão do
ovo - os blastómeros - possuem uma capacidade intrínseca de
totipotencialidade, podendo cada uma delas assegurar uma continuidade
evolutiva independente e individualizada. Só que tal atributo vai ser
precoce e gradualmente perdido, à medida que a diferenciação celular vai
sendo progressivamente assumida. Assim sendo, a potencialidade
geneticamente contida em cada blastómero é inquestionável, muito
embora se deva também reconhecer que de cada uma dessas mesmas
células não pode resultar senão outra coisa que não seja um ser humano,
o que quer dizer uma pessoa. Assim, a célula primeira, fonte e princípio de
todas as células do organismo humano, contém em si mesma a
potencialidade de pessoa.
Nos últimos tempos, conhecimentos progressivos e mais aprofundados,
têm vindo a ser adquiridos na constante pesquisa que envolve os
mecanismos evolutivos dos estádios mais precoces do desenvolvimento
embrionário e do diálogo materno-fetal. Diversos factores intrínsecos do
embrião modificam o metabolismo do útero e de outros órgãos no
período da nidação e durante os primórdios do processo gestacional. Logo
após a implantação uterina, componentes celulares do embrião humano,
originado apenas há alguns dias, produzem uma hormona glicoproteica
complexa - a gonadotrofina coriónica - cuja estrutura é tão elaborada que
não foi ainda sequer conseguida a sua síntese pela mais sofisticada
tecnologia farmacológica. E tal substância, logo que entra na circulação
materna, controla e comanda a actividade endócrina do ovário, impede o
aparecimento do episódio menstrual e assegura a troficidade uterina
propícia à manutenção de uma gravidez.
Mas já mesmo antes da nidação uterina, o embrião humano desenvolve
actividade biológica importante. Está hoje bem demonstrado que o
genoma embrionário se torna activo precocemente, após a fecundação,
iniciando-se a expressão de certos genes num estádio de segmentação
correspondente a quatro ou oito células. A transcrição da sub-unidade
beta da gonadotrofina coriónica, ocorre já quando o embrião é
justamente constituído apenas por oito células. Além disso, embriões
humanos mantidos em sobrevida laboratorial, em ambiente apropriado,
produzem quantidades significativas, embora variáveis, de um factor
activador de plaquetas (P.A.F.), o qual foi já detectado em meios de
cultura logo nas 48 horas após a inseminação in vitro do ovócito, sendo
mesmo relacionado o grau de produção desse factor embrionário com a
qualidade do próprio embrião.
Por outro lado, o acontecimento biológico mais precoce no momento da
nidação uterina, é a expressão por parte do embrião, ainda não
implantado, de alguma substância que assinale a sua presença ao
organismo materno. Diversos sinais têm sido invocados para explicar o
reconhecimento materno do embrião e ao mesmo tempo para propiciar
uma implantação embrionária adequada. De todos os factores aduzidos
nenhum parece, porém, ser o principal interveniente no processo, sendo
de admitir uma indispensável acção concertada de diversos agentes
embrionários e uterinos que sincronicamente regulem o reconhecimento
do embrião pelas estruturas maternas e possibilitem a implantação
embrionária.
Diversas razões, alguns factos e variadas circunstâncias têm vindo a
permitir demonstrar as potencialidades biológicas de um embrião desde
as fases iniciais do seu desenvolvimento. Mas será o embrião um ser
humano? Os princípios universais que consagram o respeito pela vida
humana desde o seu início estão claramente expressos em quase todos os
textos constitucionais do mundo civilizado e encontram-se formalmente
contidos nos códigos deontológicos médicos que se inspiram na
Declaração de Genebra de 1948 e que, também reflectem o sentir da
associação Médica Mundial traduzido nos ditames da Conferência de
Veneza de 1983.
Entre nós, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no
parecer que divulgou em 10 de Fevereiro de 1993, ao emitir opinião sobre
a polémica questão do momento a partir do qual o embrião humano
estará já revestido da dignidade de pessoa humana entendeu que
"enquanto a controvérsia não for resolvida e subsistir a dúvida, tem
aplicação, entretanto e sempre, o principio ético que estabelece ser
gravemente ilícito atentar contra uma entidade de que se duvida se, sim
ou não, constitui um sujeito investido de plena dignidade humana".
Só que declarações éticas e princípios deontológicos não são sinónimo de
regulamentação legal, pelo que o embrião humano continua a encontrar-
se, entre nós e em muitos outros Países, sem adequada protecção jurídica,
por inexistência de legislação específica ou por não lhe serem outorgados
os direitos inerentes a um indivíduo, ainda que em fase incipiente do seu
desenvolvimento progressivo.
Toda a questão até agora invocada se vem agravando, nos últimos anos,
desde que os enormes progressos na área da Medicina da Reprodução
permitiram que seres humanos pudessem ser concebidos fora do
organismo materno. E como fruto deste prodigioso feito, que constitui já
marco relevante na História da Medicina e revolucionou clássicos
conceitos antropológicos e sociais, contam-se, hoje, por muitas dezenas
de milhares, os embriões humanos que se preservam congelados em
laboratórios de Procriação Medicamente Assistida e cujo destino biológico
não é sempre conhecido, nem muitas vezes respeitado. A possibilidade de
dispor in vitro e em condições laboratoriais de sobrevivência de embriões
humanos em várias fases do seu desenvolvimento inicial, veio dar azo a
procedimentos eventualmente menos transparentes, surgindo, assim,
algumas nuvens que ensombram o horizonte, nem sempre despido de
contradições, que rodeia as novas tecnologias de reprodução artificial e
em que estão envolvidos aspectos científicos, éticos e jurídicos de uma
questão que tem a ver com o Homem, a Vida Humana e a própria
dignidade da Pessoa.
A circunstância de ser possível congelar, por tempo ainda indeterminado,
embriões humanos poderá revestir-se de aspectos positivos e cumprir
objectivos intrinsecamente louváveis. Só que a existência generalizada e
crescente desses embriões acarreta também situações dramáticas que
vão desde a sua manutenção sob custódia até à experimentação
manipuladora ou à pura e simples eliminação indiscriminada.
As perspectivas enunciadas parecem aconselhar a elaboração de um
estatuto jurídico para o embrião hibernado, uma vez que se prove a
indispensabilidade da sua existência quase sistemática, o que, diga-se de
passagem, não está minimamente demonstrado, pesem embora as
campanhas orquestradas por alguns sectores, que chegam a camuflar a
verdade científica, criando um falso problema ao invocar a necessidade de
dar origem a embriões excedentários para alcançar êxitos terapêuticos
com as técnicas de procriação assistida.
Seja como for, a possibilidade de manipulação laboratorial de embriões
humanos, com todo o cortejo de consequências imagináveis daí
resultantes - diagnósticos precoces in vitro antes da implantação, selecção
do sexo, eliminação de indesejáveis, tentações eugénicas, análises
preditivas, modificações da identidade genética - quase obriga ou pelo
menos aconselha a que se estabeleça um verdadeiro estatuto para um ser
humano não vivo mas com promessa de vida.
Em nosso entender, importa que o respeito que é devido ao ser humano,
desde a sua concepção, seja garantido através da explicitação de alguns
dos seus direitos.
* O embrião humano concebido fora do organismo materno deverá ser
gerado com amor e apenas como alternativa de procriação de um casal
sem outra possibilidade de dar expressão a um projecto de vida;
* Ao embrião humano mantido em condições laboratoriais de
sobrevivência, deverá ser propiciada transferência para o seio materno
sempre e logo que as condições lhe sejam mais favoráveis, não devendo
sofrer manipulações de qualquer natureza, salvo se visarem o seu próprio
benefício;
* Deve outorgar-se ao embrião humano o direito a ser respeitado de
forma integral e com a dignidade que, no mínimo, deve ser garantida a um
ser humano, ainda que numa fase incipiente do seu processo evolutivo
contínuo, sendo desejável que lhe venha a ser reconhecido direito a
protecção legal e jurídica como sujeito de pleno direito.
Este é um verdadeiro desafio que os juristas têm de enfrentar com
prudência e razoabilidade, mas também com eficácia. A inércia legislativa,
em certas áreas, representa, à partida e por si só, já uma escolha de
valores. Mas também se reconhece que um figurino legal não pode ser
aceitável se não encontrar uma adesão de opiniões que caucione as
escolhas que, mesmo assim, serão sempre objecto de contestação por
alguns.
Importa, nesta matéria, anular algumas tensões actualmente existentes
entre os avanços da ciência e os inalienáveis direitos fundamentais do ser
humano. O respeito pela pessoa humana é um dever fundamental e
constante de todo o cidadão. E deve ser o pilar que alicerça o
comportamento dos médicos, dos biólogos, dos especialistas de medicina
da reprodução, para que não se repitam algumas catástrofes hediondas
que a história não deixará esquecer como testemunho da indignidade
totalitária e da pérfida tentação eugénica.
A nossa responsabilidade é, afinal, o imperativo de consciência, individual
e colectivamente expresso, através do inequívoco respeito pela liberdade
do Homem e sobretudo pela intransigente defesa da dignidade da pessoa
humana em toda a sua enorme dimensão.
A Esterilização
HENRIQUETA ALEXANDRA COIMBRA E SILVA E AGOSTINHO ALMEIDA
SANTOS
A liberalização dos costumes, nomeadamente no respeitante à
sexualidade, as tentativas de controlo do crescimento demográfico, a
exigência do conforto económico, a par da inocuidade e fácil acesso aos
novos métodos de contracepção definitiva, levaram à esterilização de
milhões de indivíduos em todo o mundo. Após anos de extensa
propaganda, com a criação de numerosas associações em defesa da
esterilização voluntária, assiste-se hoje à preocupação internacional pelo
envelhecimento da população e estudam-se métodos legais de protecção
da família e de incentivo ao alargamento da prole. A problemática da
esterilização coloca-se hoje não só no campo da ética, como no plano
biológico e económico da sobrevivência da espécie e da civilização.
A esterilização, definida como a "supressão deliberada e reflectida da
fecundidade sem lesão das outras funções sexuais ou endócrinas" (R.
Palmer), opõe-se à castração, que é a ablação das gónadas, e à
contracepção temporária. Proposta inicialmente pelo inglês Blundell em
1824, a primeira esterilização tubar foi realizada no decurso de uma
cesariana em 1880 pelo americano Lundgren.
As várias técnicas de esterilização feminina têm em comum a interrupção
da permeabilidade tubar, por laqueação, secção, ou destruição dos
tecidos por electrocoagulação. As vias de acesso mais usadas são a
celioscópica e a minilaparotomia. A obstrução do ostium tubar por via
histeroscópica nunca teve grande popularidade. Os riscos, mínimos,
dependem da técnica utilizada e as contra-indicações são essencialmente
anestésicas e cirúrgicas. A eficácia é excelente, com taxas de gravidez
inferiores a 0.4%. As dores pélvicas são o sintoma pós-operatório mais
frequente. O curto internamento e a ausência de necessidade de
consultas de vigilância, tornam o processo economicamente atractivo. A
repermeabilização tubar é possível mas requer uma microcirurgia para
plastia tubar, técnica onerosa, disponível em muito poucos centros, e
cujos resultados dependem largamente do dano tubar provocado pela
técnica utilizada na esterilização. Nos casos em que a repermeabilização é
possível, as taxas de gravidez intra-uterina rondam os 70%. A gravidez
ectópica, situação de risco da vida materna, é um espectro permanente.
A esterilização masculina consiste na laqueação ou secção dos canais
deferentes, a vasectomia. Efectuada com anestesia local, é um processo
rápido e de riscos mínimos. A eficácia é quase de 100%. As técnicas
microcirúrgicas de vaso-vasostomia asseguram a repermeabilização em 70
a 90% dos casos, mas com taxas de gravidez de apenas 50 a 60%. Mesmo
a normalização do espermograma, que pode demorara até dois anos, não
assegura a fertilidade.
As técnicas de procriação medicamente assistida, reforçam o carácter não
definitivo da esterilização, mas as taxas de sucesso que não ultrapassam
os 20% (recém-nascido/ciclo iniciado), os altos custos e a dificuldade de
acesso, transformam-nas apenas em soluções de recurso. É pois
consensual que, sem excluir estas informações aos requerentes de
esterilização, eles devem ser informados de que o processo deve ser
considerado e assumido, em princípio, como irreversível.
Esterilização coerciva
O século XX tem, na sua história, inúmeros exemplos da aplicação da
esterilização coerciva, com objectivos punitivos, eugénicos ou
demográficos. A castração penal ou punitiva foi aplicada em diversos
países aos responsáveis por crimes sexuais de particular gravidade e
reincidência para prevenir as recidivas, mas a sua licitude foi sempre
questionada e a sua aplicação não é permitida nos Estados em que, de
acordo com o direito internacional, proscrevem as penas corporais.
Com a finalidade de impossibilitar a procriação de pessoas supostamente
portadoras de genes "patogénicos", doentes mentais e outros, a
esterilização foi imposta não só em países de regimes totalitários como
também nos ditos democráticos. Em 1920, a esterilização eugénica era
praticada em 19 países e em 1930 o número era já de 25. Na Alemanha,
entre 1934 e 1944 terão sido efectuadas 200.000 esterilizações, 13.000 na
Suécia entre 1941 e 1975; na Dinamarca, as mulheres com Quociente de
Inteligência inferior a 75 deveriam ser esterilizadas; nos Estados Unidos, o
Estado de Indiana proclamava, em 1907, uma lei que previa a esterilização
dos "criminosos incorrigíveis, dos imbecis e dos alienados", posição
posteriormente seguida por numerosos outros Estados (Sutter, 1950). A
condenação da Igreja Católica, feita por PioXI, na Encíclica Casti Connubi
(31 de Dezembro de 1930) foi várias vezes reforçada, por decretos do
Santo Ofício em 1931 e em 1940, e ulteriormente retomada por Pio XII.
Com a finalidade de controlo demográfico, houve a legislação na Índia, em
1973, que teve como resultado 13 milhões de indianos esterilizados. A
reacção dos bispos indianos foi manifestada e expressa pelo cardeal
Pichachy (19 de Março de 1976) e também pelo Comité Permanente, em
1976. Esta posição pode encontrar-se noutros documentos posteriores da
Igreja1.
A esterilização coerciva ofende dois direitos fundamentais reconhecidos
não apenas pela moral racional mas também pelo direito internacional, ou
seja, o direito à integridade física e o direito à liberdade fundamental de
constituir família (DUDH, 1948). O consentimento informado é, aliás,
considerado um direito de quem vai ser submetido a um acto médico e
um dever daquele que o presta.
Não obstante a veemente condenação internacional, a licitude do acto
tem sido defendida como meio para evitar um mal maior, como a difusão
de doenças genéticas graves ou a pobreza consequente à explosão
demográfica. Alguns concluem mesmo que se pode estabelecer um
paralelo entre a esterilização eugénica coerciva e as disposições legais
que, por motivos genéticos, interditam o casamento e punem as relações
sexuais entre consanguíneos. Os países democráticos, "desenvolvidos",
chegaram a condicionar a ajuda económica aos países pobres, à prática de
uma drástica redução da natalidade. Em termos científicos, não é
defensável o extermínio das doenças genéticas pela esterilização dos
indivíduos doentes, e a história prova que o progresso económico estável
e duradoiro não se constrói à custa dos direitos do homem.
O princípio invocado do mal menor para justificar a esterilização coerciva
eugénica ou malthusiana abre caminho ao aborto coercivo com o mesmo
objectivo, ou mesmo à eliminação dos doentes - prática, por enquanto,
limitada à vida intra-uterina - ou dos menos úteis ou dispensáveis ao
"bem-estar" económico dos grupos. A Convenção Europeia de Bioética, no
artigo 2, diz a este propósito: "Os interesses e o bem-estar do ser humano
deverão prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade ou da
ciência" (CPHRDHB, 1996).
Esterilização do doente mental
A esterilização não consentida da mulher doente mental com a finalidade
de prevenir uma gravidez não desejada, tem levantado problemas éticos e
legais. Os direitos dos doentes mentais são os mesmos dos restantes seres
humanos e devem ser protegidos. Mas o exercício de um direito acarreta
responsabilidades e exige determinadas capacidades que alguns
deficientes mentais de facto não possuem. Por vezes, a incompreensão da
realidade e a desinibição própria da sua deficiência, colocam-nas em
situações de risco que devem ser prevenidas.
A Resolução A/3-0231/92 aprovada pelo Parlamento Europeu em 16 de
Setembro de 1992 sobre os direitos dos deficientes mentais, assim se
pronuncia no que diz respeito aos problemas da esterilização: "O
Parlamento Europeu no que concerne aos direitos civis... solicita que a
esterilização seja considerada como uma última ratio e que seja praticada
somente quando não haja disponibilidade de outros instrumentos ou
métodos de controlo, ou quando eles não ofereçam garantias de
segurança" (art.6). Os próprios documentos da Igreja, quando definem a
esterilização como ilícita, referem-se constantemente ao exercício livre e
consciente da sexualidade. Numa passagem de um seu discurso, Pio XII diz
textualmente: "Quando o portador de uma tara hereditária não é capaz de
se comportar humanamente, nem, consequentemente, de contrair
matrimónio, ou quando se torna mais tarde incapaz de reivindicar com um
acto livre o direito adquirido pelo matrimónio válido, pode ser impedido
licitamente de procriar uma nova vida" (Pio XII, 1944).
A capacidade de manter uma relação afectiva, de procriar ou de educar os
filhos, varia com o grau de deficiência mental. Há deficientes mentais com
capacidade para exercer estes direitos, desde que auxiliados. Estes
indivíduos compreendem a relação entre a sexualidade e a procriação.
Será lícita a esterilização sem consentimento, provando-os de um direito
fundamental?
A esterilização contraceptiva dos deficientes mentais deve ter em conta
"os deveres, as responsabilidades e as capacidades dessas pessoas... do
ponto de vista ético, ela apenas se poderá justificar se pretender o bem-
estar do próprio e não de outrém, quer se trate dos pais ou da sociedade
em geral (Roy, 1994). Tratando-se de um método cirúrgico, com riscos
inerentes, a sua prescrição tem de ser justificada pela elevada
probabilidade de ocorrência de gravidez e pela não aplicabilidade de
outras medidas preventivas. Põe-se igualmente o problema de saber a
quem cabe a decisão. Ao tribunal? Será suficiente a prescrição médica e o
consentimento do tutor?
Esterilização terapêutica
É considerada como esterilização terapêutica directa aquela que é
efectuada com o objectivo de prevenir uma gravidez para a qual existe
uma contra-indicação médica absoluta e permanente. A esterilização
terapêutica indirecta resulta como consequência não desejada, mas
inevitável, de um acto médico terapêutico como a histerectomia por
patologia uterina ou a quimioterapia que frequentemente destroi as
células germinais.
Embora a lista de patologias que contra-indicam a gravidez possa ser
extensa - cancro estrogénio-dependente, antecedentes trombo-embólicos
graves, cardiopatias com hipertensão pulmonar crónica, existência de
múltiplas cicatrizes uterinas, etc. - cada vez mais o seu carácter absoluto e
sobretudo permanente é questionável. É o caso das insuficientes renais
jovens que após transplante renal poderão, em muitos casos, engravidar.
A indicação do acto médico exige, geralmente, a intervenção de uma
equipa multidisciplinar, envolvendo o especialista da área da patologia em
causa, o ginecologista, o obstetra e o anestesista, dada a complexidade e
gravidade da decisão que implica, frequentemente em mulheres jovens, a
exclusão do direito à procriação. A informação deve ser cuidadosamente
transmitida e discutida com os interessa dos, que darão, posteriormente,
o seu consentimento. O imperativo da presença do casal é tanto maior
quanto mais elevado o risco operatório, situações que dificultam a
avaliação do risco/benefício da intervenção, e podem aconselhar outras
opções, incluindo a esterilização masculina.
A licitude da esterilização terapêutica é-lhe garantida enquanto meio mais
adequado para assegurar o direito à vida e à saúde, sem os quais não se
pode falar de integridade física e liberdade.
Esterilização voluntária
Actualmente, em muitos países, a esterilização voluntária, dita opcional
ou de comodidade, é admitida como um método anticoncepcional, sendo
frequentemente gratuita. Em 14 de Janeiro de 1995, o Conselho da
Europa reconheceu a esterilização humana voluntária como um acto
médico englobado nos métodos que permitem aos casais ter o número de
filhos desejados; esta resolução foi votada, na altura, por todos os países
da comunidade, com a excepção da Irlanda. Em todo o mundo, até ao
início de 1976, havia 65 milhões de esterilizados, dos quais 42 milhões na
China, 8 milhões nos EUA, 7 milhões na Índia e 4.5 milhões na Europa.
Estes dados foram confirmados por novos dados publicados nos fins dos
anos 80, que revelavam que, nesse período, a esterilização era praticada
por 30% dos casais que recorriam à contracepção, com o envolvimento de
99 milhões de casais em todo o mundo (Sgreccia, 1988). Entre 1990 e o
ano 2000, prevê-se a esterilização de 159 milhões de indivíduos (Ross,
1992).
Não obstante a sua evidente popularidade, as controvérsias éticas e
mesmo legais são reconhecidas e delicadas.
A esterilização, enquanto irreversível - facto não absoluto mas que assim
deve ser assumido na prática - pode ser considerada não só como uma
mutilação, um dano à integridade física, como também um atentado à
liberdade do indivíduo, princípios gerais da ética, do direito internacional
e consignados nas Constituições dos Estados democráticos. De facto, o
indivíduo, integrado num universo, numa espécie, a espécie humana,
numa sociedade, para já não falar num plano divino da criação, embora
lhe seja Outorgado o direito à autodeterminação, não é senhor absoluto
do seu corpo nem da sua liberdade; veja-se a penalização do suicídio e da
automutilação. Há uma obrigação moral à participação e à construção da
sociedade. Serge Regourd (1944) refere-se aos "direitos da humanidade":
"a liberdade dos seres opõe-se ao respeito da espécie humana em si
mesmo, à sua salvaguarda...". A sobrevivência da espécie depende do
exercício do direito à procriação. Não se trata aqui, sequer, de um
princípio teórico, filosófico, sem consequências práticas, pois que dos
temores neomalthusianos da superpopulação, passámos para a eminência
do colapso dos sistemas económicos por envelhecimento da população. O
mesmo autor, Serge Regourd, e outros como Jean-Christophe Galloux,
apresenta argumentos de ordem individual, considerando a contracepção
definitiva um atentado à liberdade pessoal, pois que o indivíduo perde,
definitivamente, a liberdade de optar por procriar ou não procriar
(Rejourd, 1994).
Interroga-se Elio Sgreccia (1988): "...Se o homem tivesse o domínio
arbitrário de si mesmo, se fosse seu dono despótico, por que não poderia
ter o mesmo domínio sobre os outros? Será que a vida do outro deve ter
mais valor do que a própria e ter uma tutela superior? E de quem?"
O princípio da inviolabilidade absoluta ou da não disponibilidade da
pessoa humana, mesmo perante a própria vontade do sujeito, é
igualmente defendido pela Igreja Católica, como podemos ler na Humanae
Vitae: "Portanto, se não se quiser expor ao arbítrio do homens a missão
de gerar vida, devem necessariamente ser aceites limites intransponíveis à
possibilidade de domínio do homem sobre o próprio corpo e sobre as suas
funções; limites que nenhum homem, quer particular, quer revestido de
autoridade, pode romper...".
Em Portugal, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, na mesma
linha de pensamento, preceitua: "É vedada a prática de processos que
conduzam à esterilização, excepto quando a conservação da vida do
doente os imponha".2
O direito à constituição da família, da determinação do número de filhos e
seu espaçamento, ou o direito ao acesso aos métodos de planeamento
familiar, como referido no artigo 67 da Constituição da República
Portuguesa, deverão submeter-se aos direitos básicos e superiores do
direito à vida, à integridade física e à liberdade? A pergunta é pertinente e
motivou o pedido de um parecer à Procuradoria-Geral da República. A
resposta, publicada em DR. II série-n.36-12.2.1982, remete-se ao artigo 81
do Estatuto da Ordem do Médicos aprovado pelo Decreto-Lei nº. 40651
de 21 de Junho de 1956, ainda em vigor, dado que o novo Código
Deontológico, publicado na Revista da Ordem dos Médicos, nº.6 (Junho)
de 1981, não foi publicado em Diário da República.
Numa atitude de compromisso perante os interesses envolvidos, em
Portugal, muitos hospitais adoptaram os critérios recomendados noutros
países, que limitam o acesso à esterilização voluntária, sem contudo a
abolirem. Visam estes critérios tornar pouco provável o desejo de
devolução da capacidade de procriar - idade do indivíduo, número de
filhos, idade do filho mais novo, prática de abortamento - e avaliar a
inadequação dos métodos reversíveis - contra-indicações, objecções éticas
e religiosas, má adesão aos outros métodos. O critério social da falta de
meios económicos não pode ser considerado isoladamente, já que neste
caso o Estado teria o dever de assegurar os meios ao exercício do direito à
constituição da família. A necessidade da aplicação criteriosa dos métodos
irreversíveis é cada vez mais evidente dada a perenidade crescente da
família, sendo frequentes os pedidos de repermeabilização tubar aquando
de um segundo casamento.
Embora com uma elevada taxa de sucesso, os métodos de contracepção
irreversíveis não são, como vimos, infalíveis, e a ocorrência de gravidez vai
levantar novos problemas éticos e legais. É que em grande parte a
persecução da queixa e a obtenção de compensação, pressupõem que a
criança seja considerada um prejuízo.
Como qualquer acto médico, ele carece do consentimento informado
do/dos interessados. Quando existe um cônjuge, ele deverá participar da
decisão e do consentimento, já que a procriação é um bem do casal3. Esta
presença do casal, deveria ser, aliás, o habitual nas consultas de
planeamento familiar, o que constituiria uma corresponsabilização dos
dois e do reafirmar da tão alardoada igualdade dos direitos e dos deveres.
A esterilização é uma acto médico, o consentimento dos interessados não
constitui uma indicação de esterilização; a decisão é do médico e do
âmbito da sua responsabilidade profissional. Mesmo que legalmente lícita,
o que não implica que o seja do ponto de vista ético, o médico tem direito
à objecção de consciência nos termos da lei.
Bibliografia
Artigos 5 e 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada
pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948; Artigos 25 e 36 da
Constituição da República Portuguesa
Convenção Europeia de Bioética, subscrita por 21 países a 4 de Abril de
1997
Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human
Being with Regard to the Application of Biology and Medicine: Convention
on Human Rights and Biomedicine, Council of Europe, Directorate of Legal
Affairs, Strasbourg, November, 1996
Pio XII: Discurso à União Médico-Biológica "S. Lucas" (12.11.1944), in
Discorsi e Radiomessaggi, VI, p.192
Rejourd S: Citado em: Les droits de l'être humain sur son corps, Presses
Universitaires de Bordeaux, 1994
Ross JÁ: Sterilization: past, present, future. Stud Fam Plann 1992; 23: 187-
198
Roy DJ, William JR, Dickens BM, Baudouin JL: La Bioéthique, ses
fondements et ses controverses. ERPI-Éditions Du Renouveau
Pédagogique Inc.,1995. Tradução de Catherine Ego do original "Bioethics
in Canada" dos mesmos autores, publicado em 1994 por Prentice Hall
Canada Inc.
Sgreccia E: Manual de Bioética I. Fundamentos e ética biomédica. Edições
Loyola, São Paulo. Tradução de Orlando Soares Moreira do original
"Manuale di bioetica I. Fondamenti ed etica biomedica", 1988 Vita e
Pensiero
Sutter VJ: "L'eugénique" Cahier, Travaux de l'INED, nº11, PUF, 1950
1 Cf. Contre um projet de loi sur la stérilistion obligatoire en Inde, "La
Documentation Catholique", 1976, pp. 420-421; "L'Osservatore Romano",
de 30.05.1976, p.2, e 01.03.1978; Paulo VI, Discurso aos participantes da
25ª Assembleia Geral da Federação Internacional Farmacêutica e do 34º
Congresso Internacional de Ciências Farmacêuticas (07.09.1974),
Insegnamenti di Paolo VI, Xii, p.800; Sínodo dos Bispos, Messaggio alle
famiglie cristiane (24.10.1980), in Enchiridion Vaticanum, 7, pp. 743-759.
2 Artigo 81 do estatuto da Ordem dos Médicos aprovado pelo Decreto-Lei
nº. 40651, de 21 de Junho de 1954, mantido em vigor do Estatuto
aprovado pelo Decreto-Lei nº. 282/77 de 5 de Julho. O novo Código
Deontológico, publicado na Revista da Ordem dos Médicos, nº. 6 (Junho)
de 1981, mas não publicado em Diário da República, diferencia a
"esterilização irreversível", permitida enquanto terapêutica e eugénica, da
"esterilização reversível", "permitida perante situações que
objectivamente a justifiquem". Os termos utilizados são dúbios e não
esclarecem como classificar métodos como a laqueação tubar ou a
vasectomia que, actualmente, não criam uma impossibilidade absoluta à
procriação, levando a situações de dupla interpretação e conduta.
3 Esta co-gestão da fertilidade coloca-se igualmente na disposição dos
gâmetas no âmbito da medicina da reprodução.