ser humano broteria

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O que é ser humano? O desafio das ciências cognitivas 1. Introdução: uma nova revolução paradigmática? Alguns autores consideram que as grandes revoluções da era moderna que mudaram a concepção que temos de nós mesmos foram três, associadas a três grandes nomes da ciência: Copérnico, Darwin e Freud. As três revoluções tiveram consequências epistemológicas imediatas, sobre a metodologia científica em diversas áreas, sobretudo em astronomia, física, biologia, psicologia e sociologia. Mas, elas exerceram uma influência, que considero ainda mais importante, sobre a concepção que temos de nós mesmos, das nossas relações sociais, e da nossa relação com o mundo que nos rodeia. A influência mais profunda daquelas três revoluções situa-se, de facto, ao nível das nossas concepções filosóficas e religiosas. É muito possível que estejamos neste momento no início de uma nova revolução paradigmática semelhante às que são associadas àqueles três cientistas, uma revolução provocada pelos rápidos desenvolvimentos das ciências cognitivas que se têm verificado sobretudo a partir de meados do século XX, e cujo fim e implicações não se vislumbram ainda por completo, permanecendo em aberto um vasto leque de hipóteses quanto a desenvolvimentos futuros. Trata-se, em alguns casos, de hipóteses altamente perturbadoras, mas ao mesmo tempo muito estimulantes, já que poderão conduzir a um melhor conhecimento de nós mesmos. São igualmente hipóteses que nos convidam a prosseguir um caminho sem regresso. Georges Vignaux afirma a este propósito que as novas perspectivas paradigmáticas criadas pelas ciências cognitivas “podem ainda fazer crer aos cépticos, arreigados aos funcionamentos disciplinares clássicos, que os estudos cognitivos não serão mais do que uma moda, uma etapa na reestruturação dos saberes. Isso não é verdade: os confrontos visíveis são também índices de numerosos intercâmbios invisíveis: estamos perante uma ‘revolução’ no sentido copernicano, nas formulações dos nossos conhecimentos e dos nossos métodos”. 1 1 G. Vignaux, As Ciências Cognitivas : uma Introdução, Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 10. Referindo-se à revolução que está a acontecer no domínio das ciências cognitivas, Patricia Churchland afirma que “na sua capacidade de destruir as ‘verdades eternas’ do conhecimento do senso comum, esta revolução será pelo menos igual às revoluções 1

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O que é ser humano? O desafio das ciências cognitivas

1. Introdução: uma nova revolução paradigmática?

Alguns autores consideram que as grandes revoluções da era

moderna que mudaram a concepção que temos de nós mesmos foram três,

associadas a três grandes nomes da ciência: Copérnico, Darwin e Freud.

As três revoluções tiveram consequências epistemológicas imediatas,

sobre a metodologia científica em diversas áreas, sobretudo em

astronomia, física, biologia, psicologia e sociologia. Mas, elas

exerceram uma influência, que considero ainda mais importante, sobre a

concepção que temos de nós mesmos, das nossas relações sociais, e da

nossa relação com o mundo que nos rodeia. A influência mais profunda

daquelas três revoluções situa-se, de facto, ao nível das nossas

concepções filosóficas e religiosas.

É muito possível que estejamos neste momento no início de uma

nova revolução paradigmática semelhante às que são associadas àqueles

três cientistas, uma revolução provocada pelos rápidos

desenvolvimentos das ciências cognitivas que se têm verificado

sobretudo a partir de meados do século XX, e cujo fim e implicações

não se vislumbram ainda por completo, permanecendo em aberto um vasto

leque de hipóteses quanto a desenvolvimentos futuros. Trata-se, em

alguns casos, de hipóteses altamente perturbadoras, mas ao mesmo tempo

muito estimulantes, já que poderão conduzir a um melhor conhecimento

de nós mesmos. São igualmente hipóteses que nos convidam a prosseguir

um caminho sem regresso. Georges Vignaux afirma a este propósito que

as novas perspectivas paradigmáticas criadas pelas ciências cognitivas

“podem ainda fazer crer aos cépticos, arreigados aos funcionamentos

disciplinares clássicos, que os estudos cognitivos não serão mais do

que uma moda, uma etapa na reestruturação dos saberes. Isso não é

verdade: os confrontos visíveis são também índices de numerosos

intercâmbios invisíveis: estamos perante uma ‘revolução’ no sentido

copernicano, nas formulações dos nossos conhecimentos e dos nossos

métodos”. 1

1 G. Vignaux, As Ciências Cognitivas : uma Introdução, Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 10.Referindo-se à revolução que está a acontecer no domínio das ciências cognitivas,Patricia Churchland afirma que “na sua capacidade de destruir as ‘verdades eternas’ doconhecimento do senso comum, esta revolução será pelo menos igual às revoluções

1

O que se pode desde já dizer é que o impacto desta nova

revolução operada pelas ciências cognitivas é bastante mais radical

que o das revoluções anteriores, já que pretende, em certos aspectos,

englobá-las e, ao mesmo tempo, superá-las numa síntese nova e aberta a

contínuas e inesperadas novidades. Trata-se sobretudo dos aspectos que

se referem à concepção tradicional do ser humano, concepção que

continua a sofrer transformações - talvez possamos dizer mesmo,

radicais transformações. Estas concepções constituem um movimento

cultural e filosófico com início no Renascimento e que parece conhecer

agora desenvolvimentos tão decisivos quanto insuspeitados. O fio

condutor destas revoluções é, de facto, o da naturalização completa do

ser humano, o qual é agora convidado com maior insistência a descer do

pedestal da esfera sobrenatural na qual pensara ter sido colocado por

Deus no acto da sua criação, e que lhe conferia uma natureza que o

distinguia substancialmente de todos os demais seres criados,

constituindo-o a única criatura com uma alma espiritual que lhe

assegurava a imortalidade. As revoluções atrás referidas tenderam a

aproximar tão perigosamente o ser humano dos demais seres vivos, que a

sua dignidade parece diminuir progressivamente. O mesmo ser humano

poderá estar destinado a desaparecer da face da Terra, dando lugar a

uma nova geração de seres vivos radicalmente diferentes: seres que,

para alguns, tanto poderão resultar de uma total simbiose homem-

máquina como da completa substituição dos seres humanos por máquinas

supertinteligentes, ou ainda por uma nove espécie de mamíferos que

conduza ao desaparecimento do homo sapiens.

2. As ciências cognitivas e a pergunta: “O que é ser humano?”

Copernicana e Darwiniana.” Patricia Churchland, Neurophilosophy. Towards a Unified Science of theMind/Brain, Cambridge, Mass.: MIT Press, 1986, p. 481. Por seu lado, António Damásio crêque os animais não humanos têm comportamentos éticos, facto que “pode ser chocante paraos que acreditam que o comportamento ético é uma característica especificamente humana.Como se não fosse suficiente que Copérnico nos dissesse que não estamos no centro douniverso, que Darwin nos dissesse que temos origens humildes, e que Freud nos dissesseque não somos senhores da nossa própria casa, dizem-nos agora que no campo da ética ocomportamento tem origens primitivas”. Apesar de tudo, o autor defende que ocomportamento ético humano tem características específicas, sobretudo no que se refere àmotivação, que não se encontram nos animais não humanos. A. Damásio, “The neural basisof social behavior: ethical implications” in Steven Marcus (ed.), Neuroethics: Mapping theField, New York: The Dana Press, 2002, p. 15.

2

As ciências cognitivas têm sido objecto de diversas definições.

Para alguns, são “o estudo interdisciplinar dos processos cognitivos

envolvidos na aquisição, representação e uso do conhecimento humano,

incluindo em particular o estudo da linguagem natural, memória,

resolução de problemas, aprendizagem, visão e raciocínio”2 Para outros

são “o conjunto de investigações interdisciplinares que procura

explicar a actividade inteligente, quer a que é própria dos seres

vivos (especialmente humanos adultos), quer a das máquinas.”3 Muitas

outras definições se poderiam apresentar, mas vale a pena sublinhar

que praticamente todas elas acentuam a estreita ligação entre cognição

ou conhecimento e acção ou comportamento. Este facto deve-se à

predominância que a inteligência artificial e a psicologia assumiram

no contexto das ciências cognitivas durante várias décadas, desde a

sua ‘pré-história’, a partir dos anos 30, com a concepção por Alan

Turing de uma máquina inteligente, até ao famoso “Symposium on

Information Theory”, realizado em 1956 no não menos famoso

Massachusetts Institute of Technology, e ao “Encontro de Darmouth”,

realizado no mesmo ano. O Simpósio marca o nascimento oficial das

ciências cognitivas.

Os estudos de informática, lógica, linguística e psicologia

constituíram desde o início uma aliança que olhou a acção e o

conhecimento humanos como algo cujos mistérios poderiam ser plenamente

compreendidos a partir da explicação do funcionamento de máquinas

inteligentes. Esta corrente, na qual a lógica assumia um papel

central, ficou conhecida como cognitivismo. Mas há que ter em conta

que as ciências cognitivas só aparentemente se centram no nível

epistemológico ou do conhecimento, e da acção ou comportamento. Com

efeito, a epistemologia não é dissociável de uma ontologia e, no caso

das ciências cognitivas, de uma onto-antropologia. Não se trata apenas

de proceder a investigações sobre a questão de saber quais são os

mecanismos da acção e do conhecimento humanos e como simulá-los, mas

de procurar responder à questão que constitui o título do capítulo

introdutivo da obra de Mark Johnson e George Lakoff Philosophy in the Flesh:

2 Michael Dawson, Understanding Cognitive Science, Oxford : Blackwell Publishers, 1998, p. 4.3 Robert Audi, The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge,1995, p. 128

3

“Quem somos nós? Como a ciência cognitiva reabre questões filosóficas

centrais”.4 Segundo os autores, estas questões são reabertas a partir

de uma nova abordagem paradigmática da mente e da razão humanas, uma

abordagem empírica, corpórea. Johnson e Lakoff consideram que o

conceito de razão “inclui não apenas a nossa capacidade de inferência

lógica, mas também a nossa capacidade para investigar, para resolver

problemas, para avaliar, criticar, deliberar acerca do nosso modo de

agir, e para chegar a uma compreensão de nós mesmos, das outras

pessoas e do mundo.”5 Está feita aqui de um modo explícito a ligação

entre epistemologia e onto-antropologia: “Uma mudança radical na nossa

compreensão da razão”, continuam os autores, “representa por

conseguinte uma mudança radical na compreensão de nós mesmos”.6 Numa

tentativa de resposta à questão “quem somos nós?”, Mark Johnson e

George Lakoff pensam poder adiantar já algumas das transformações que

as ciências cognitivas estão a provocar na compreensão de nós mesmos

como seres humanos. Os autores começam por elencar as principais

descobertas destas ciências que parecem estar a mudar radical e

definitivamente a nossa concepção do que é ser humano:

“A mente é por natureza incarnada. O pensamento é na sua maior

parte inconsciente. Os conceitos abstractos são largamente

metafóricos.

Estas são três das descobertas mais importantes da ciência

cognitiva. Mais de dois mil anos de especulação filosófica

apriorística acerca destes aspectos da razão pertencem já ao passado.

Devido a estas descobertas, a filosofia nunca mais será a mesma.”7

Os autores notam, não sem alguma razão, que estas teses das

ciências cognitivas introduzem uma ruptura paradigmática com toda a

tradição da filosofia ocidental, no que se refere não apenas às

correntes metafísicas aristotélico-tomista e kantiana, mas também à

tradição analítica, anti-metafísica, e até mesmo às correntes

filosóficas pós-modernas. Johnson e Lakoff assumem em relação a estas

tradições uma atitude radical. Propõem, nada mais nada menos, que um

4 George Lakoff e Mark Johnson, Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its Challenge to WesternThought, New York: Basic Books, 1999, p. 3.5 Ibid., pp. 3-4.6 Ibid., p. 4.7 Ibid., p. 3.

4

recomeço a partir do zero. São mais de dois mil anos de pensamento

filosófico que se torna necessário arquivar até que a poeira do tempo

os acabe por cobrir e nós próprios acabemos por deles nos libertarmos.

Quais seriam as consequências de uma atitude tão radical como

esta? “O que aconteceria se começássemos com estas descobertas

empíricas acerca da natureza da mente e elaborássemos a filosofia a

partir do zero?”, perguntam. E continuam: “A resposta é a seguinte:

uma filosofia empiricamente responsável exigiria que a nossa cultura

abandonasse alguns dos seus pressupostos filosóficos mais profundos”

Os autores recusam assim qualquer projecto de continuidade com a

tradição filosófica ocidental. Contudo, esta posição supõe uma visão

dessa tradição que parece desconhecer modificações importantes que se

têm verificado na filosofia e na teologia ocidentais, sobretudo ao

longo do século XX, especialmente no que se refere à auto-compreensão

do ser humano, como veremos mais adiante.

Se a natureza da mente e da razão, bem como dos conceitos que

utilizamos para pensar, conhecer e decidir, é empírica e não

incorpórea, contrariamente ao que a tradição ocidental considerou

durante mais de dois mil anos, então a conclusão a tirar é tão óbvia

quanto surpreendente: “ É, de facto, chocante”, ainda segundo Johnson

e Lakoff, “descobrir que somos muito diferentes daquilo que a nossa

tradição filosófica nos tem dito.”8 O que de início poderia parecer uma

questão meramente epistemológica transformou-se rapidamente numa

questão ontológica, não apenas no que se refere à realidade em geral,

mas também, e muito mais concretamente, à realidade do ser humano.

3. O impacto das neurociências

Esta dimensão onto-antropológica das ciências cognitivas tornou-

se mais evidente sobretudo com o recente desenvolvimento das

neurociências. Patricia Churchland considera que é precisamente a cada

avanço experimental que “a neurociência está a moldar a nossa

concepção sobre quem somos. A evidência hoje acumulada implica que é o

cérebro, e não alguma realidade não física que sente, pensa e

decide...Isto significa que não existe nenhuma alma que viva a sua

8 Ibid., p. 4.

5

eternidade postmortem feliz no Céu ou infeliz no Inferno.”9 Foi de facto

com o surpreendente desenvolvimento das neurociências, sobretudo com o

aperfeiçoamento das técnicas de estudo do funcionamento cerebral nas

décadas de 80 e 90, que a complexidade do comportamento humano, no

qual a razão e a emoção interagem constantemente, provocou uma

significativa mudança nas ciências cognitivas. A partir de um

conhecimento muito mais pormenorizado do funcionamento do sistema

nervoso e, em particular, do cérebro humano, cujas conexões sinápticas

seguem um esquema de distribuição em paralelo e não em série, ao

contrário do que era pressuposto pelos cognitivistas, as máquinas

inteligentes começaram a ser pensadas a partir do conhecimento do

cérebro humano, e não inversamente, como antes sucedia. Nascia o

conexionismo.

A partir deste momento, as ciências cognitivas adquiriram um

carácter mais filosófico ou, dito de outra maneira, começaram a

abordar mais aprofundadamente questões que até então eram consideradas

específicas da filosofia e da teologia. Conceitos como os de alma,

espírito, mente, auto-consciência, pensamento, liberdade, etc.,

designam outros tantos problemas de que as ciências cognitivas se

apropriaram inteiramente. A vertente ontológica relativa à natureza

dos seres que conhecem, acaba por ser compreendida também no mesmo

domínio das neurociências, da psicologia cognitiva e da inteligência

artificial. Estes três campos de estudo parecem fornecer

exaustivamente informações sobre todos os processos cognoscitivos dos

seres vivos e, a partir daí, explicar também as actividades que

realizam, isto é, os seus comportamentos e, em última análise, a sua

própria natureza.

Dado que os processos cognoscitivos realizados pelos seres vivos

em geral, parecem ter muito em comum, já que têm a sua origem no

dinamismo da evolução das espécies, facilmente se conclui que o

substracto ontológico desses processos deve ser também basicamente o

mesmo. Daqui a facilidade com que se crê nas profundas afinidades

entre os seres humanos e os seres vivos em geral, sobretudo os

mamíferos. E se é verdade que todos os seres vivos pertencem pura e

9 Patricia Churchland, Brain-Wise. Studies in Neurophilosophy, Cambridge, MA: The MIT Press,2002, p. 1.

6

simplesmente ao mundo natural, a sua estrutura ontológica, aparece

despida de qualquer sentido metafísico, transcendente ou sobrenatural.

As tradicionais noções de alma, espírito e mente perdem todos os seus

mistérios. Para alguns, estes mistérios poderão continuar, quando

muito, nas abordagens da filosofia e da religião tradicionais,

sobretudo no ocidente. Mas por pouco tempo mais. Dentro em breve, a

resposta à pergunta ‘o que é ser humano’ será esclarecida na sua

totalidade pela conjugação de esforços das diversas ciências

cognitivas. É para aqui que conduzem, segundo Howard Gardner, os

actuais desenvolvimentos interdiscipinares:. “Hoje em dia, a maior

parte dos cientistas cognitivos são oriundos do campo de disciplinas

específicas – em particular, da filosofia, da psicologia, da

inteligência artificial, da linguística, da antropologia e das

neurociências. A esperança é que um dia as fronteiras entre estas

disciplinas possam ser atenuadas ou mesmo desaparecer por completo,

originando uma ciência cognitiva única e unificada.”10 A expressão

‘ciência cognitiva única e unificada’ está longe de ser clara, e

embora possa ser entendida num sentido algo profético mas não

necessariamente apocalíptico, não pode deixar de nos trazer à memória

o fracassado projecto neopositivista de unificação das ciências.

Nesta mesma linha profética de absorção de todos os grandes

domínios do saber pelas ciências cognitivas tendem a pronunciar-se

diversos outros autores. Segundo Patricia Churchland, “nesta fase da

sua história o cérebro e as ciências do comportamento são extremamente

excitantes, porque tudo indica que iniciámos um período no qual

obteremos uma compreensão científica global da relação mente-cérebro,

numa extensão não trivial. Teorias de vasto alcance, do tipo paradigma

orientador, ou contexto unificador, estão a começar a emergir, e

evoluirão e estruturarão tanto o trabalho de investigação como,

indubitavelmente, o nosso modo de pensarmos sobre nós mesmos. E seria

de admirar que as novas teorias e as novas descobertas não contivessem

surpresas de tal magnitude que venham a constituir uma revolução no

nosso modo de entender. (...) Já é evidente que alguns conceitos

profundamente centrais da psicologia do senso comum, tais como a

10 Howard Gardner, A Nova Ciência da Mente. Uma História da Revolução Cognitiva, Lisboa: Relógiod’Água, 2002, p. 27.

7

memória, a aprendizagem e a consciência, ou estão a fragmentar-se ou

serão substituídos por categorias mais adequadas.”11 Que através do

desenvolvimento das ciências cognitivas venhamos a obter

progressivamente um conhecimento mais profundo do que é ser humano

parece claro. Já é menos claro que nova imagem irá emergir dos

constantes e por vezes apressados progressos científicos.

Na linha de Patricia Churchland, e de um ponto de vista

estritamente neurobiológico, Francis Crick crê que se pode dizer a um

ser humano: “Você não passa de um embrulho de neurónios”. Esta é,

segundo o autor, uma “hipótese espantosa”, tão espantosa que a maior

parte das pessoas, mesmo as mais cultas, se recusarão a aceitá-la. “A

Hipótese Espantosa”, afirma Crick, “é a de que você, as suas alegrias

e as suas tristezas, as suas memórias e as suas ambições, o seu

sentido de identidade pessoal e de livre arbítrio, não sejam de facto

mais do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e

das suas moléculas associadas. ... Esta hipótese é de tal forma

estranha às ideias da maioria das pessoas hoje vivas que bem pode ser

considerada como espantosa.”12

Para autores como Francis Crick, Patricia Churchland, Mark

Johnson e George Lakoff, o movimento de naturalização do ser e do

saber humanos parece ter entrado em contradição insanável com a

perspectiva filosófico-teológica do carácter sobrenatural dos

elementos característicos da humanidade como, por exemplo, a alma, a

mente, a consciência ou o espírito que, segundo a tradição ocidental,

especificam o ser humano. É de facto impressionante que grande parte

das obras de carácter mais filosófico que hoje são publicadas na área

das ciências cognitivas se baseiem numa repetida afirmação da oposição

entre as perspectivas natural/sobrenatural e imanente/transcendente.

Os autores destas obras parecem ignorar que é possível dispensar tais

dualismos sem com isso necessitar de introduzir uma ruptura radical

com a reflexão humana amadurecida no ocidente ao longo de mais de dois

mil anos. O dualismo corpo-alma é um dos que mais suscita críticas

11 Patricia Churchland, Neurophilosophy, A Neurophilosophical Perspective, Cambridge, Mass: MIT,1986, p. 482.12Francis Crick, A Hipótese Espantosa. Busca Científica da Alma, Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p.19.

8

demolidoras. Mas serão elas tão justificadas e destrutivas como

parecem?

4. Quem somos nós? Crick e Flanagan sobre a alma humana

A questão da existência e da natureza da alma humana constitui

actualmente uma das questões mais debatidas pelos autores que

desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências cognitivas, já que

se trata de um conceito no qual converge muito da tradição filosófico-

teológica ocidental, e que aparece tradicionalmente associado ao

conceito de corpo, criando assim um dualismo hoje posto em causa.

Francis Crick, como muitos outros, parece ter ideias claras e

definitivas sobre a questão da alma. O autor considera, não sem razão,

que, cientificamente falando, se trata de um conceito desnecessário

para a compreensão do mesmo ser humano. “Um neurobiólogo moderno”,

afirma ele, “não precisa do conceito religioso de alma para explicar o

comportamento dos humanos e de outros animais.” A afirmação é tão

óbvia que quase parece trivial E, evocando as transformações na

compreensão do cosmos provocadas pelas descobertas de Galileu, Kepler

e Newton, Crick continua: “faz lembrar a pergunta que Napoleão fez,

depois de Pierre-Simon Laplace lhe ter explicado como é que o sistema

solar funcionava: ‘Onde é que Deus entra nisto tudo?’ Ao que Laplace

respondeu: ‘Sire, não preciso dessa hipótese’”. E prossegue:. “Nem

todos os neurocientistas acreditam que a ideia da alma seja um mito -

Sir John Eccles é a excepção mais notável- mas não há dúvida de que a

maioria é dessa opinião. Não é que tenham conseguido provar que a

ideia seja falsa. Mais propriamente, tal como as coisas de momento se

apresentam, não vêem qualquer necessidade dessa hipótese.” E conclui:

“considerado sob a perspectiva da história humana, o principal

objectivo da investigação científica do cérebro não é o de compreender

meramente e de curar várias situações clínicas, por muito importante

que a tarefa possa ser, mas antes abarcar a natureza real da alma

humana. O que se tenta descobrir é se este termo será metafórico ou

literal.”13 Devo dizer que julgo altamente improvável que os

investigadores que estudam o cérebro humano considerem sua tarefa

13 Ibid., p. 23.

9

prioritária esclarecer se o conceito de alma deve ser tomado em

sentido literal ou metafórico. Em todo o caso, há quem pareça, segundo

Crick, ter já resolvido o problema: “Muitas pessoas instruídas,

sobretudo no mundo ocidental, também partilham a convicção de que a

alma é uma metáfora e que não existe vida pessoal antes da concepção,

nem depois da morte. Poderão auto-denominar-se ateus, agnósticos,

humanistas ou apenas crentes apóstatas, mas todos eles negam os

principais argumentos das religiões tradicionais.”14

Na mesma linha de Crick, Owen Flanagan dedicou recentemente uma

obra15 à questão do conflito que, no que se refere à compreensão do ser

humano, parece existir entre a perspectiva das ciências naturais,

particularmente a das ciências cognitivas, e a das humanidades

tradicionais, particularmente a da filosofia e a da teologia. Um dos

pontos em que este conflito surge com maior evidência é segundo o

autor a questão da existência ou não de um “eu” substancial e de uma

alma humana em sentido subsistente e imortal. Flanagan considera que a

questão da alma é muito mais ampla do que habitualmente se supõe,

afirmando que “ ‘o problema da alma’ é uma forma abreviada de

referência a um conjunto de problemas filosóficos centrais na

perspectiva humanista dominante. Estes conceitos incluem, antes de

mais, uma mente não física, a liberdade e um self ou alma permanente,

subsistente e imutável.” Flanagan reconhece com razão que para muitas

pessoas estes conceitos estão ameaçados pelo progresso científico, e é

esta percepção que causa nessas pessoas uma grande resistência à

perspectiva científica, já que daqueles conceitos parece depender

definitivamente para eles o próprio sentido da existência humana. Por

isso, continua Flanagan, para essas pessoas, uma vez que “sem uma

mente não física, a liberdade e a alma não são coisas reais mas apenas

meras aparências, então, é o fim do mundo – pelo menos do mundo tal

como o conhecemos.”16.Tocamos aqui de novo o tema da revolução

paradigmática copernicana que em muitos aspectos parece estar a levar-

nos para um ‘outro mundo’ conceptual e de auto-compreensão, mas que

pode contudo conduzir-nos também a um enorme progresso.

14 Ibid.15 Owen Flanagan, The Problem of the Soul, New York: Basic Books, 2002. 16 Ibid., p. XI.

10

Flanagan propõe-se resolver o conflito entre as imagens do ser

humano que nos são dadas pelas ciências naturais, por um lado, e as

que nos vêm das humanidades, por outro, sugerindo que devemos desistir

de acreditar na existência quer de um eu, quer de uma alma, no sentido

subsistente que lhes dão as humanidades tradicionais, particularmente

a filosofia e a teologia ocidentais, dado não haver qualquer base para

uma tal crença. No entanto, o autor evita assumir uma posição

demasiado radical. Há que preservar as referências fundamentais que

nos têm permitido compreender o sentido da vida. Podemos pois, segundo

ele, continuar a utilizar os termos antropológicos fundamentais desde

que deixemos de lhes atribuir o sentido substancial tradicional:

“podemos preservar muito daquilo que queremos significar quando

falamos de ‘mente’, ‘alma’, ‘self’ e ‘liberdade’, sem continuar a

atribuir-lhes aqueles aspecto de significado procedentes das suas

raízes religiosas e teológicas.”17. Há que aceitar, continua Flanagan,

que “a nossa dimensão animal é a nossa única dimensão. Somos todos

animais e o cérebro é a nossa alma.18” Mas esta solução do problema da

nossa identidade e auto-compreensão parece demasiado simples e

desfundamentada para poder ser tomada acriticamente

Flanagan considera que, não existindo uma alma humana

subsistente e imortal, também não terá sentido qualquer discurso sobre

um Deus igualmente subsistente e imortal. O autor parte do princípio

que a única forma de defender a imortalidade do ser humano consiste em

acreditar que existe nele uma alma, e que esta alma é subsistente e

imortal. Mas será este pressuposto necessário para se falar da

imortalidade do ser humano? Poder-se-á conceber a imortalidade em

termos relacionais?

5. O ser humano como relação

A concepção substancial do ser humano era sem dúvida, e ainda é,

o pressuposto tradicional da filosofia e da teologia cristãs, que

continuam a ter um discurso cuja linguagem pertence a um paradigma – o

paradigma aristotélico-tomista - que em muitos aspectos se afigura

17 Ibid., p. XV.18 Ibid.

11

cada vez mais inadequado para a compreensão de quem somos nós. Embora

sem negar a importância relacional do ser humano, este paradigma

baseia-se na categoria de “substância” como sua trave mestra. Creio

porém que num paradigma mais actual, o conceito de “relação” é muito

mais adequado para exprimir aquilo que existe de fundamental no ser

humano e que desejaríamos fosse eterno, - a relação com os outros

vivida como amor. S. Tomás considera que embora em Deus se deva

afirmar que existem relações subsistentes entre as três pessoas

divinas, dado que essas relações não poderiam ser consideradas

acidentais, no ser humano, pelo contrário, não há relações

subsistentes. Mas não poderemos abandonar o dualismo

substância/acidente, e considerar que aquilo que nos dá “alma”, que

nos dá vida, é a nossa experiência de relação interpessoal? Para os

que acreditam que Deus estabelece uma relação pessoal com cada ser

humano, porque não considerar que essa relação é subsistente, isto é,

eterna, sem que para isso tenhamos que recorrer necessariamente ao

conceito de substância?

É evidente que esta nova perspectiva paradigmática onto-

epistemológica parte de um pressuposto antropológico muito diferente

daquele que nos foi legado não apenas pela tradição aristotélico-

tomista mas também pela modernidade. Em ambas as tradições, o ser

humano é definido fundamentalmente pela sua estrutura ontológica e

pelas suas competências epistemológicas e práticas, isto é, mais como

indivíduo autónomo e racional do que como ser de relação. O tema do

ser humano como ser-em-relação foi desenvolvido no século XX

particularmente pelas correntes existencialistas e fenomenológicas.19

Mas agora essa abordagem já não é realizada apenas no contexto do

pensar filosófico como um domínio separado da ciência. Trata-se de uma

abordagem que é hoje realizada no interior das próprias ciências

cognitivas. Um novo paradigma emerge. Com efeito, recentes publicações

sobre a empatia e a chamada perspectiva da segunda pessoa20 (distinta

quer da perspectiva da primeira pessoa, a da introspecção, quer da

perspectiva da terceira pessoa, a científica) têm posto em evidência a19 Referi-me com algum desenvolvimento a este tema no ensaio “Ética e identidade pessoalna perspectiva das ciências cognitivas” in Brotéria 156: 2 (2003) 119-140.20 Evan Thompson, Between Ourselves. Second-Person Issues in the Study of Consciousness, Thorverton:Imprint Academic, 2001.

12

importância central da relacionalidade como constituinte do ser

humano.

O que muda então se se definir o ser humano mais como ser-em-

relação, isto é, como ser constituído por relações inter-subjectivas,

do que como substância individual?

Antes de mais, muda o conceito de corpo, o qual não pode ser

considerado apenas na sua dimensão biológica como se de uma simples

substância individual se tratasse. Seria regressar a uma ontologia

substancialista que se pretende superar. A dimensão relacional do

corpo humano e de todas as suas capacidades, nomeadamente as de

natureza neurobiológica, é que permite superar o simples ponto de

vista individual e ver o ser humano como pessoa. Nesta perspectiva,

domínios como a filosofia, a ética e a religião aparecem não pouco

transformados, mas não no sentido proposto pelas ciências cognitivas

que são, também elas, substancialistas, já que se baseiam num

substancialismo de tipo neurobiológico.

Muda também o conceito de alma e o correspondente conceito de

imortalidade. Em diálogo com as ciências cognitivas, Warren Brown

considera que “a alma sendo uma dimensão da experiência humana, emerge

da relacionalidade pessoal”.21 Além disso, “a capacidade de

relacionalidade pessoal pode, por seu lado, ser vista como uma

propriedade emergente de determinadas competências cognitivas

críticas.”22 Considerar a alma como propriedade emergente não significa

necessariamente considerá-la como uma substância espiritual, nem

sequer como um princípio substancial do corpo, à maneira de S. Tomás.

Isso seria regressar aos dualismos onto-epistemológicos que se

pretende hoje superar. É na relação com Deus que o autor vê a

possibilidade de falar na imortalidade da alma, e não num seu

espiritual de natureza substancial: “Enquanto que a cognição contribui

para (a emergência de) a alma, é, em última análise, o acto relacional

de Deus que cria a alma em cada ser humano.”23

Não deixa de ser curioso constatar que esta perspectiva não é

21 Warren Brown, “Cognitive contributions to soul”, in Warren Brown et al., WhateverHappened to the Soul? Scientificand Theological Portraits of Human Nature, Minneapolis: Fortress Press,1998, p. 101.22 Ibid., p. 102. 23 Ibid., p. 125. Inseri na citação a expressão entre parêntesis.

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inteiramente nova nem específica do diálogo com as ciências

cognitivas. Ela encontra-se, por exemplo, em textos mais alinhados com

a tradição filosófico-teológica da Igreja Católica. Joseph Ratzinger,

por exemplo, considera que “ ‘ter alma espiritual’ significa

exactamente ser objecto de um bem-querer especial, de um especial

conhecimento e amor de Deus; ter uma alma espiritual denota: ser um

ente chamado por Deus para o diálogo eterno e, por isso, estar em

condições de conhecer Deus e de responder-lhe.”24 Por conseguinte, “a

imortalidade concebida pela Bíblia não é fruto da própria capacidade

daquilo que, por si mesmo, é indestrutível, mas da participação no

diálogo com o Criador... Trata-se de uma ‘imortalidade dialógica’ “.25

É verdade que Ratzinger não recusa a perspectiva substancialista, mas

não deixa de ser significativa a análise que o autor faz da alma e da

sua imortalidade em termos relacionais no contexto da historicidade do

ser humano, uma perspectiva que para ele parece ser complementar da

primeira.

6. As ciências cognitivas contra o ser humano?

Depois de tudo o que ficou dito, parece lícito perguntar:

estarão as ciências cognitivas contra o ser humano, desenhando um

futuro em que a sua dignidade acabará por desaparecer completamente?

Patricia Churchland não o crê. Pelo contrário, acredita que estas

ciências nos ajudarão a compreender o mesmo ser humano de uma forma

mais objectiva e profunda. “Os que supõem que a ciência e o humanismo

devem estar necessariamente em conflito”, afirma a autora, “saudarão

esta previsão do futuro sem entusiasmo. Eles podem tender a ver a

revisão da teoria do senso comum e a emergência da teoria psicológica

neural como a perda irreparável da nossa humanidade. Mas podemos ver

isto de outro modo. Pode ser uma perda, não de algo necessário para a

nossa humanidade, mas apenas de algo meramente familiar e habitual.

Pode ser a perda de algo que, apesar de constituir uma segunda

natureza, ilumina o nosso entendimento e reorienta a nossa

compreensão.” A autora considera que o que se ganha na compreensão do

24 Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, S. Paulo: Herder, 1970, pp. 306-307.25 Ibid., pp. 302-303.

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ser humano proporcionada pelas ciências cognitivas compensará em muito

o desconforto provocado em nós pela perda de muitas ideias a que

estávamos habituados mas que, segundo ela, não têm qualquer

fundamento. E continua: “o que vamos ganhar pode, por conseguinte, ser

um enorme progresso na compreensão de nós mesmos, progresso que, no

seu sentido mais profundo, contribuirá para aumentar e não para

diminuir, o valor da nossa humanidade. Além disso, a perda pode

incluir certos pressupostos do senso comum e mitos que, do ponto de

vista da justiça e da decência, nós acabamos por considerar inumanos.

E entre as perdas desejáveis podem ser incluídas também certas doenças

generalizadas e horríveis relacionadas com a mente-cérebro.” E

procurando, tal como Flanagan, resolver o conflito entre a perspectiva

científica do ser humano e a perspectiva tradicional das humanidades,

a autora conclui: “Libertarmo-nos de coisas como estas está claramente

no espírito do humanismo e da ciência. Em todo o caso, é um engano ver

a ciência como estando em oposição ao humanismo. Pelo contrário, são

os abusos políticos e empresariais do conhecimento científico que

revelaram um descuido catastrófico por princípios humanísticos. E nós

teremos que nos defender de semelhantes abusos do conhecimento

neurocientífico.”26 Embora esteja basicamente de acordo com esta

afirmação de Patricia Churchland, devo dizer que os critérios para se

identificar aquilo a que a autora chama “abusos do conhecimento

neurocientífico” estão longe de merecer um generalizado consenso.

Creio que a autora, e outros na mesma linha de pensamento, poderão

estar a cometer semelhantes abusos, ainda que com a melhor das

intenções.

Também Owen Flanagan crê que mesmo esvaziando do seu significado

tradicional os conceitos que definem o ser humano (alma, mente, eu,

liberdade), isso não significa o fim do mundo e da civilização. “Há

amor e amizade. Há benevolência e compaixão que se exprimem num

sentimento de ligação a todas as criaturas, e até mesmo ao admirável e

inanimado universo”. Flanagan revela aqui a sua inspiração budista, e

é dessa perspectiva que se compreende melhor a sua afirmação de que “a

perspectiva científica deixa um amplo espaço para um conceito humano e

26 Patricia Churchland, Neurophilosophy, A Neurophilosophical Perspective, Cambridge, Mass: MIT,1986, p. 482.

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digno da pessoa.”27

Parece-me que um dos domínios em que se decide a nossa

humanidade e dignidade é o dos critérios de decisão, sobretudo em

ética. Tais critérios têm sido profundamente reformulados pelas

ciências cognitivas, ao proporem o abandonado dos critérios de decisão

tradicionais. Todavia, não me parece que as ciências cognitivas possam

orientar-nos nas nossas escolhas éticas, ainda que nos possam explicar

o funcionamento das estruturas e mecanismos neurobiológicos que tornam

possíveis essas escolhas. Com efeito, ainda que se conheçam os

processos neurobiológicos que permitem ao ser humano pensar, as mesmas

ciências pouco nos podem ajudar quando chega o momento de tomar

decisões éticas, por vezes muito complexas e subjectivas, sobretudo

nas chamadas situações-limite.28

Tendo em conta tudo o que ficou dito acerca da revolução

cognitiva em curso, uma revolução que não é possível ignorar, mas

acerca da qual há que manter um esclarecido espírito crítico, não nos

resta então outra alternativa senão enfrentar corajosamente os grandes

desafios que nos são lançados pelas ciências cognitivas.

7. Dez grandes desafios colocados pelas ciências cognitivas

actuais

1º- Poderão as ciências humanas aceitar que a estrutura do

pensamento, da mente, da consciência, da razão, se compreenderá por

uma metodologia que proceda “de baixo para cima” (bottom-up), isto é,

que elabore os conceitos psicológicos, éticos, estéticos e religiosos

fundamentais a partir da estrutura neurobiológica do ser humano? De que

modo esta perspectiva se harmoniza com a mais tradicional, que procede

“de cima para baixo” (top-down), isto é, a partir dos princípios

racionais abstractos e universais em filosofia e dos princípios

baseados na revelação de Deus, em teologia?

2º O que teremos que mudar na nossa maneira de compreender o ser

humano se considerarmos que a mente, o pensamento, a razão e a

27 Owen Flanagan, The Problem of the Soul, p. XIV.28 É esta a posição, por exemplo, de Virgínia Held, “Whose agenda? Ethics versusCognitive Science” em Larry May et al. (eds.), Mind and Morals, Cambridge, MA: The MITPress, 1996, pp. 69-87.

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consciência são realidades que têm uma natureza fundamentalmente

neurobiológica?

3º Dado o conhecimento cada vez mais pormenorizado dos

condicionalismos neurobiológicos do nosso comportamento pessoal e

social, poderemos ainda falar de uma ética de liberdade e de

responsabilidade?

4º Poderemos aceitar que ao dualismo tradicional corpo-alma não

correspondem duas entidades separadas nem separáveis e que, de facto,

deveremos repensar o ser humano sem recorrer a este dualismo?

Poderemos, por exemplo, pensar a imortalidade do ser humano sem o

conceito de uma alma subsistente e tão radicalmente diferente do corpo

que tenha a capacidade de permanecer depois da desintegração do mesmo

corpo?

5º Poderemos renunciar a um conceito substancial do eu, e passar

a considerar-nos a nós mesmos como “processos”, como seres em mudança

e sem um substracto permanente, como “eus” identificados simplesmente

com a sucessão dos nossos estados passageiros – estados cognoscitivos,

emocionais, estéticos, etc. no contexto de uma vida pessoal que é

essencialmente relacional?

6º Deveremos reconhecer que o paradigma filosófico-teológico de

inspiração aristotélico-tomista e kantiana deixou de ser adequado para

pensar o ser humano hoje, e que um novo paradigma – não

necessariamente um novo neotomismo ou um neokantismo– se torna

possível, necessário e urgente?

7º Teremos que voltar a ler de uma forma nova algumas passagens

da Bíblia, desde o Génesis ao Apocalipse (e até mesmo algumas

passagens dos livros sagrados de outras grandes religiões),

particularmente as que se referem à natureza do ser humano e às suas

relações com o universo e com Deus, tal como aconteceu depois das

revoluções galilaica e darwiniana?

8º Considerando que a nossa natureza evolutiva nos aproxima dos

outros animais, até que ponto podemos insistir numa radical diferença

entre nós e eles?

9º Poderemos admitir que as máquinas inteligentes do futuro

possam vir a ter consciência, emoções, liberdade, e até o mesmo desejo

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de eternidade que possuem os seres humanos? Poderemos aceitar a

hipótese de a evolução da vida continuar para formas radicalmente

novas, biológicas ou não, que superarão definitivamente a humanidade

tal como a conhecemos hoje?

10º Finalmente, quais são as características do ser humano que o

tornam especificamente humano?

8. Responder aos desafios: por onde começar?

Creio que para se poder começar a responder a estes desafios há

que resolver definitivamente um problema mais fundamental, o da

natureza e relevância onto-epistemológica dos inúmeros dualismos que

herdámos do passado, dualismos como corpo/alma, matéria/espírito,

natural/sobrenatural, imanente/transcendente, matéria/forma,

substância/acidente, etc. Para se resolver esta questão, deveremos

compreender melhor a origem de tais dualismos.

Fundamentalmente, estes dualismos correspondem à necessidade

sentida por filósofos e teólogos ao longo dos últimos dois ou três

milénios de distinguir dois níveis de realidade. A ontologia apareceu

como uma exigência epistemológica, isto é, de inteligibilidade do

mundo na sua complexidade antropológica, cosmológica e teológica. As

distinções ontológicas entre corpo e alma, matéria corruptível e

matéria incorruptível, e entre a habitação dos homens e a dos deuses,

permitiram uma visão onto-epistemológica integrada de toda a

experiência e conhecimento humanos. E não é demais repetir que a

introdução destas diferenças ontológicas foi uma condição de

possibilidade epistemológica de progresso no conhecimento dos seres

humanos, da natureza e dos deuses. Este facto parece-me da maior

relevância, já que ele implica que mudanças significativas nestas

condições de possibilidade epistemológicas no que se refere aos três

domínios atrás referidos – antropológico, cosmológico e teológico -

acabam por provocar, mais tarde ou mais cedo, mudanças ontológicas

igualmente significativas.

Creio que essas mudanças têm estado a acontecer sobretudo desde

as revoluções galilaica e darwiniana, e que o seu ritmo se

intensificou com a revolução cognitiva actualmente em curso. A

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revolução galilaica terminou com o esquema cosmológico medieval que

integrava não só o dualismo corruptível-incorruptível em relação aos

corpos terrestres e celestes, como também a existência do empíreo, o

mundo transcendente onde habitavam Deus, os anjos e os santos, por

detrás da esfera de água cristalina que se seguia à esfera das

estrelas fixas, de acordo com a narração do Genesis. Uma transformação

epistemológica no domínio cosmológico arrastou uma mudança ontológica

no mesmo domínio, e uma mudança igualmente ontológica no domínio

teológico. Os céus aproximaram-se perigosamente da Terra, o mundo

transcendente pareceu fundir-se com o mundo imanente. Mas também no

domínio antropológico a mudança ontológica tinha começado. O facto de

o ser humano não continuar no centro do universo retirou-lhe alguma da

sua dignidade ontológica.

Mas foi com Darwin que esta dignidade pareceu desvanecer-se. Foi

mais uma vez uma significativa mudança epistemológica, a da explicação

do aparecimento da vida sobre a terra, incluindo naturalmente a vida

humana através da teoria da evolução das espécies, que arrastou

mudanças ontológicas em antropologia, sobretudo no que se refere ao

dualismo alma-corpo, duas realidades que se uniram perigosamente numa

completa fusão. O abismo ontológico que separava matéria e espírito

tornou-se de súbito epistemologicamente desnecessário. A mente, que

era para S. Tomás uma potência da alma, acabou por ser considerada por

António Damásio um produto do cérebro. E assim, os dualismos

ontológicos criados por esquemas epistemológicos igualmente dualistas

estão a ser rapidamente transformados no sentido de uma unificação

radical, unificação em que o ser humano e Deus se tornam radicalmente

co-presentes na imanência do universo criado. Parece assim não ter

mais sentido falar seja epistemológica, seja ontologicamente, de “este

mundo” e de um “outro mundo”, a não ser de “um outro mundo dentro

deste mundo”, isto é, o mundo das relações interpessoais que decorrem

no mundo espácio-temporal em que vivemos, e do qual Deus não está

ausente, mas onde se torna acessível através de uma presença que é ela

também inter-relacional.

No mundo da era pré-moderna, filosofia, teologia e conhecimento

da natureza implicavam-se reciprocamente. Com a modernidade estes três

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domínios do saber pareceram afastar-se uns dos outros, olhando-se com

algum temor e suspeita, levando ao afirmar da autonomia, senão mesmo

da independência de cada um. Hoje só muito descuidadamente podemos

dizer que a modernidade pertence ao passado. Ela convive com aquilo a

que se convencionou chamar pós-modernidade, um movimento cultural

muito mais aberto à convivência dos saberes. Daqui as ambiguidades e

conflitos que não foram ainda resolvidos, como o da relação entre a

ciência e as humanidades. Esta questão foi objecto de um recente

colóquio na prestigiada Academia das Ciências de New York, cujos

textos foram publicados sob o significativo título Unity of Knowledge. The

Convergence of Natural and Human Science. Neste colóquio Edward Wilson afirmou

acreditar na completa integração de todo o género de conhecimento

humano numa perspectiva de absorção das ciências humanas pelas

ciências naturais.29 Mas nem todos os participantes partilharam esta

perspectiva. Henry Moss, procedendo a um balanço das várias

intervenções concluiu que “o debate acerca dos primeiros princípios

não terminará a curto prazo. O homem pode ser uma máquina bioquímica,

mas a percepção de que ele é mais do que uma máquina está baseada em

veneráveis interpretações históricas acerca da actividade humana que

conduzem a concepções tais como a liberdade e a responsabilidade moral

que não são facilmente redutíveis a normas epigenéticas”.30

Considero que cada uma das três áreas do saber atrás referidas

deverá evoluir no sentido de reconhecer que não só influencia como

também é influenciada pelas outras, algo que é mais difícil de se

conseguir do que poderá parecer à primeira vista. Por outro lado, há

que reconhecer que é no estudo do ser humano que as três áreas se

intersectam da forma mais estimulante e prometedora. Creio que se a

dimensão relacional do ser humano se tornar central na investigação

quer no domínio das ciências naturais, quer no das humanidades,

encontraremos um ponto em comum que se revelará fundamental na

incessante peregrinação que fazemos à procura de respostas cada vez

29 O autor já defendeu esta posição em publicações anteriores, especialmente em Consilience:The Unity of Knowledge, New York: Knopf, 1998.30 Henry Moss, “Unity of Knowledge, circa 2000” in António Damásio et al., Unity ofKnowledge. The Convergence of Natural and Human Science, New York: The New York Academy ofSciences, 2001, p. 9.

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mais adequadas para a grande questão que continuará em aberto: o que é

ser humano?

Alfredo Dinis

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