ser humano broteria
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O que é ser humano? O desafio das ciências cognitivas
1. Introdução: uma nova revolução paradigmática?
Alguns autores consideram que as grandes revoluções da era
moderna que mudaram a concepção que temos de nós mesmos foram três,
associadas a três grandes nomes da ciência: Copérnico, Darwin e Freud.
As três revoluções tiveram consequências epistemológicas imediatas,
sobre a metodologia científica em diversas áreas, sobretudo em
astronomia, física, biologia, psicologia e sociologia. Mas, elas
exerceram uma influência, que considero ainda mais importante, sobre a
concepção que temos de nós mesmos, das nossas relações sociais, e da
nossa relação com o mundo que nos rodeia. A influência mais profunda
daquelas três revoluções situa-se, de facto, ao nível das nossas
concepções filosóficas e religiosas.
É muito possível que estejamos neste momento no início de uma
nova revolução paradigmática semelhante às que são associadas àqueles
três cientistas, uma revolução provocada pelos rápidos
desenvolvimentos das ciências cognitivas que se têm verificado
sobretudo a partir de meados do século XX, e cujo fim e implicações
não se vislumbram ainda por completo, permanecendo em aberto um vasto
leque de hipóteses quanto a desenvolvimentos futuros. Trata-se, em
alguns casos, de hipóteses altamente perturbadoras, mas ao mesmo tempo
muito estimulantes, já que poderão conduzir a um melhor conhecimento
de nós mesmos. São igualmente hipóteses que nos convidam a prosseguir
um caminho sem regresso. Georges Vignaux afirma a este propósito que
as novas perspectivas paradigmáticas criadas pelas ciências cognitivas
“podem ainda fazer crer aos cépticos, arreigados aos funcionamentos
disciplinares clássicos, que os estudos cognitivos não serão mais do
que uma moda, uma etapa na reestruturação dos saberes. Isso não é
verdade: os confrontos visíveis são também índices de numerosos
intercâmbios invisíveis: estamos perante uma ‘revolução’ no sentido
copernicano, nas formulações dos nossos conhecimentos e dos nossos
métodos”. 1
1 G. Vignaux, As Ciências Cognitivas : uma Introdução, Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 10.Referindo-se à revolução que está a acontecer no domínio das ciências cognitivas,Patricia Churchland afirma que “na sua capacidade de destruir as ‘verdades eternas’ doconhecimento do senso comum, esta revolução será pelo menos igual às revoluções
1
O que se pode desde já dizer é que o impacto desta nova
revolução operada pelas ciências cognitivas é bastante mais radical
que o das revoluções anteriores, já que pretende, em certos aspectos,
englobá-las e, ao mesmo tempo, superá-las numa síntese nova e aberta a
contínuas e inesperadas novidades. Trata-se sobretudo dos aspectos que
se referem à concepção tradicional do ser humano, concepção que
continua a sofrer transformações - talvez possamos dizer mesmo,
radicais transformações. Estas concepções constituem um movimento
cultural e filosófico com início no Renascimento e que parece conhecer
agora desenvolvimentos tão decisivos quanto insuspeitados. O fio
condutor destas revoluções é, de facto, o da naturalização completa do
ser humano, o qual é agora convidado com maior insistência a descer do
pedestal da esfera sobrenatural na qual pensara ter sido colocado por
Deus no acto da sua criação, e que lhe conferia uma natureza que o
distinguia substancialmente de todos os demais seres criados,
constituindo-o a única criatura com uma alma espiritual que lhe
assegurava a imortalidade. As revoluções atrás referidas tenderam a
aproximar tão perigosamente o ser humano dos demais seres vivos, que a
sua dignidade parece diminuir progressivamente. O mesmo ser humano
poderá estar destinado a desaparecer da face da Terra, dando lugar a
uma nova geração de seres vivos radicalmente diferentes: seres que,
para alguns, tanto poderão resultar de uma total simbiose homem-
máquina como da completa substituição dos seres humanos por máquinas
supertinteligentes, ou ainda por uma nove espécie de mamíferos que
conduza ao desaparecimento do homo sapiens.
2. As ciências cognitivas e a pergunta: “O que é ser humano?”
Copernicana e Darwiniana.” Patricia Churchland, Neurophilosophy. Towards a Unified Science of theMind/Brain, Cambridge, Mass.: MIT Press, 1986, p. 481. Por seu lado, António Damásio crêque os animais não humanos têm comportamentos éticos, facto que “pode ser chocante paraos que acreditam que o comportamento ético é uma característica especificamente humana.Como se não fosse suficiente que Copérnico nos dissesse que não estamos no centro douniverso, que Darwin nos dissesse que temos origens humildes, e que Freud nos dissesseque não somos senhores da nossa própria casa, dizem-nos agora que no campo da ética ocomportamento tem origens primitivas”. Apesar de tudo, o autor defende que ocomportamento ético humano tem características específicas, sobretudo no que se refere àmotivação, que não se encontram nos animais não humanos. A. Damásio, “The neural basisof social behavior: ethical implications” in Steven Marcus (ed.), Neuroethics: Mapping theField, New York: The Dana Press, 2002, p. 15.
2
As ciências cognitivas têm sido objecto de diversas definições.
Para alguns, são “o estudo interdisciplinar dos processos cognitivos
envolvidos na aquisição, representação e uso do conhecimento humano,
incluindo em particular o estudo da linguagem natural, memória,
resolução de problemas, aprendizagem, visão e raciocínio”2 Para outros
são “o conjunto de investigações interdisciplinares que procura
explicar a actividade inteligente, quer a que é própria dos seres
vivos (especialmente humanos adultos), quer a das máquinas.”3 Muitas
outras definições se poderiam apresentar, mas vale a pena sublinhar
que praticamente todas elas acentuam a estreita ligação entre cognição
ou conhecimento e acção ou comportamento. Este facto deve-se à
predominância que a inteligência artificial e a psicologia assumiram
no contexto das ciências cognitivas durante várias décadas, desde a
sua ‘pré-história’, a partir dos anos 30, com a concepção por Alan
Turing de uma máquina inteligente, até ao famoso “Symposium on
Information Theory”, realizado em 1956 no não menos famoso
Massachusetts Institute of Technology, e ao “Encontro de Darmouth”,
realizado no mesmo ano. O Simpósio marca o nascimento oficial das
ciências cognitivas.
Os estudos de informática, lógica, linguística e psicologia
constituíram desde o início uma aliança que olhou a acção e o
conhecimento humanos como algo cujos mistérios poderiam ser plenamente
compreendidos a partir da explicação do funcionamento de máquinas
inteligentes. Esta corrente, na qual a lógica assumia um papel
central, ficou conhecida como cognitivismo. Mas há que ter em conta
que as ciências cognitivas só aparentemente se centram no nível
epistemológico ou do conhecimento, e da acção ou comportamento. Com
efeito, a epistemologia não é dissociável de uma ontologia e, no caso
das ciências cognitivas, de uma onto-antropologia. Não se trata apenas
de proceder a investigações sobre a questão de saber quais são os
mecanismos da acção e do conhecimento humanos e como simulá-los, mas
de procurar responder à questão que constitui o título do capítulo
introdutivo da obra de Mark Johnson e George Lakoff Philosophy in the Flesh:
2 Michael Dawson, Understanding Cognitive Science, Oxford : Blackwell Publishers, 1998, p. 4.3 Robert Audi, The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge,1995, p. 128
3
“Quem somos nós? Como a ciência cognitiva reabre questões filosóficas
centrais”.4 Segundo os autores, estas questões são reabertas a partir
de uma nova abordagem paradigmática da mente e da razão humanas, uma
abordagem empírica, corpórea. Johnson e Lakoff consideram que o
conceito de razão “inclui não apenas a nossa capacidade de inferência
lógica, mas também a nossa capacidade para investigar, para resolver
problemas, para avaliar, criticar, deliberar acerca do nosso modo de
agir, e para chegar a uma compreensão de nós mesmos, das outras
pessoas e do mundo.”5 Está feita aqui de um modo explícito a ligação
entre epistemologia e onto-antropologia: “Uma mudança radical na nossa
compreensão da razão”, continuam os autores, “representa por
conseguinte uma mudança radical na compreensão de nós mesmos”.6 Numa
tentativa de resposta à questão “quem somos nós?”, Mark Johnson e
George Lakoff pensam poder adiantar já algumas das transformações que
as ciências cognitivas estão a provocar na compreensão de nós mesmos
como seres humanos. Os autores começam por elencar as principais
descobertas destas ciências que parecem estar a mudar radical e
definitivamente a nossa concepção do que é ser humano:
“A mente é por natureza incarnada. O pensamento é na sua maior
parte inconsciente. Os conceitos abstractos são largamente
metafóricos.
Estas são três das descobertas mais importantes da ciência
cognitiva. Mais de dois mil anos de especulação filosófica
apriorística acerca destes aspectos da razão pertencem já ao passado.
Devido a estas descobertas, a filosofia nunca mais será a mesma.”7
Os autores notam, não sem alguma razão, que estas teses das
ciências cognitivas introduzem uma ruptura paradigmática com toda a
tradição da filosofia ocidental, no que se refere não apenas às
correntes metafísicas aristotélico-tomista e kantiana, mas também à
tradição analítica, anti-metafísica, e até mesmo às correntes
filosóficas pós-modernas. Johnson e Lakoff assumem em relação a estas
tradições uma atitude radical. Propõem, nada mais nada menos, que um
4 George Lakoff e Mark Johnson, Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its Challenge to WesternThought, New York: Basic Books, 1999, p. 3.5 Ibid., pp. 3-4.6 Ibid., p. 4.7 Ibid., p. 3.
4
recomeço a partir do zero. São mais de dois mil anos de pensamento
filosófico que se torna necessário arquivar até que a poeira do tempo
os acabe por cobrir e nós próprios acabemos por deles nos libertarmos.
Quais seriam as consequências de uma atitude tão radical como
esta? “O que aconteceria se começássemos com estas descobertas
empíricas acerca da natureza da mente e elaborássemos a filosofia a
partir do zero?”, perguntam. E continuam: “A resposta é a seguinte:
uma filosofia empiricamente responsável exigiria que a nossa cultura
abandonasse alguns dos seus pressupostos filosóficos mais profundos”
Os autores recusam assim qualquer projecto de continuidade com a
tradição filosófica ocidental. Contudo, esta posição supõe uma visão
dessa tradição que parece desconhecer modificações importantes que se
têm verificado na filosofia e na teologia ocidentais, sobretudo ao
longo do século XX, especialmente no que se refere à auto-compreensão
do ser humano, como veremos mais adiante.
Se a natureza da mente e da razão, bem como dos conceitos que
utilizamos para pensar, conhecer e decidir, é empírica e não
incorpórea, contrariamente ao que a tradição ocidental considerou
durante mais de dois mil anos, então a conclusão a tirar é tão óbvia
quanto surpreendente: “ É, de facto, chocante”, ainda segundo Johnson
e Lakoff, “descobrir que somos muito diferentes daquilo que a nossa
tradição filosófica nos tem dito.”8 O que de início poderia parecer uma
questão meramente epistemológica transformou-se rapidamente numa
questão ontológica, não apenas no que se refere à realidade em geral,
mas também, e muito mais concretamente, à realidade do ser humano.
3. O impacto das neurociências
Esta dimensão onto-antropológica das ciências cognitivas tornou-
se mais evidente sobretudo com o recente desenvolvimento das
neurociências. Patricia Churchland considera que é precisamente a cada
avanço experimental que “a neurociência está a moldar a nossa
concepção sobre quem somos. A evidência hoje acumulada implica que é o
cérebro, e não alguma realidade não física que sente, pensa e
decide...Isto significa que não existe nenhuma alma que viva a sua
8 Ibid., p. 4.
5
eternidade postmortem feliz no Céu ou infeliz no Inferno.”9 Foi de facto
com o surpreendente desenvolvimento das neurociências, sobretudo com o
aperfeiçoamento das técnicas de estudo do funcionamento cerebral nas
décadas de 80 e 90, que a complexidade do comportamento humano, no
qual a razão e a emoção interagem constantemente, provocou uma
significativa mudança nas ciências cognitivas. A partir de um
conhecimento muito mais pormenorizado do funcionamento do sistema
nervoso e, em particular, do cérebro humano, cujas conexões sinápticas
seguem um esquema de distribuição em paralelo e não em série, ao
contrário do que era pressuposto pelos cognitivistas, as máquinas
inteligentes começaram a ser pensadas a partir do conhecimento do
cérebro humano, e não inversamente, como antes sucedia. Nascia o
conexionismo.
A partir deste momento, as ciências cognitivas adquiriram um
carácter mais filosófico ou, dito de outra maneira, começaram a
abordar mais aprofundadamente questões que até então eram consideradas
específicas da filosofia e da teologia. Conceitos como os de alma,
espírito, mente, auto-consciência, pensamento, liberdade, etc.,
designam outros tantos problemas de que as ciências cognitivas se
apropriaram inteiramente. A vertente ontológica relativa à natureza
dos seres que conhecem, acaba por ser compreendida também no mesmo
domínio das neurociências, da psicologia cognitiva e da inteligência
artificial. Estes três campos de estudo parecem fornecer
exaustivamente informações sobre todos os processos cognoscitivos dos
seres vivos e, a partir daí, explicar também as actividades que
realizam, isto é, os seus comportamentos e, em última análise, a sua
própria natureza.
Dado que os processos cognoscitivos realizados pelos seres vivos
em geral, parecem ter muito em comum, já que têm a sua origem no
dinamismo da evolução das espécies, facilmente se conclui que o
substracto ontológico desses processos deve ser também basicamente o
mesmo. Daqui a facilidade com que se crê nas profundas afinidades
entre os seres humanos e os seres vivos em geral, sobretudo os
mamíferos. E se é verdade que todos os seres vivos pertencem pura e
9 Patricia Churchland, Brain-Wise. Studies in Neurophilosophy, Cambridge, MA: The MIT Press,2002, p. 1.
6
simplesmente ao mundo natural, a sua estrutura ontológica, aparece
despida de qualquer sentido metafísico, transcendente ou sobrenatural.
As tradicionais noções de alma, espírito e mente perdem todos os seus
mistérios. Para alguns, estes mistérios poderão continuar, quando
muito, nas abordagens da filosofia e da religião tradicionais,
sobretudo no ocidente. Mas por pouco tempo mais. Dentro em breve, a
resposta à pergunta ‘o que é ser humano’ será esclarecida na sua
totalidade pela conjugação de esforços das diversas ciências
cognitivas. É para aqui que conduzem, segundo Howard Gardner, os
actuais desenvolvimentos interdiscipinares:. “Hoje em dia, a maior
parte dos cientistas cognitivos são oriundos do campo de disciplinas
específicas – em particular, da filosofia, da psicologia, da
inteligência artificial, da linguística, da antropologia e das
neurociências. A esperança é que um dia as fronteiras entre estas
disciplinas possam ser atenuadas ou mesmo desaparecer por completo,
originando uma ciência cognitiva única e unificada.”10 A expressão
‘ciência cognitiva única e unificada’ está longe de ser clara, e
embora possa ser entendida num sentido algo profético mas não
necessariamente apocalíptico, não pode deixar de nos trazer à memória
o fracassado projecto neopositivista de unificação das ciências.
Nesta mesma linha profética de absorção de todos os grandes
domínios do saber pelas ciências cognitivas tendem a pronunciar-se
diversos outros autores. Segundo Patricia Churchland, “nesta fase da
sua história o cérebro e as ciências do comportamento são extremamente
excitantes, porque tudo indica que iniciámos um período no qual
obteremos uma compreensão científica global da relação mente-cérebro,
numa extensão não trivial. Teorias de vasto alcance, do tipo paradigma
orientador, ou contexto unificador, estão a começar a emergir, e
evoluirão e estruturarão tanto o trabalho de investigação como,
indubitavelmente, o nosso modo de pensarmos sobre nós mesmos. E seria
de admirar que as novas teorias e as novas descobertas não contivessem
surpresas de tal magnitude que venham a constituir uma revolução no
nosso modo de entender. (...) Já é evidente que alguns conceitos
profundamente centrais da psicologia do senso comum, tais como a
10 Howard Gardner, A Nova Ciência da Mente. Uma História da Revolução Cognitiva, Lisboa: Relógiod’Água, 2002, p. 27.
7
memória, a aprendizagem e a consciência, ou estão a fragmentar-se ou
serão substituídos por categorias mais adequadas.”11 Que através do
desenvolvimento das ciências cognitivas venhamos a obter
progressivamente um conhecimento mais profundo do que é ser humano
parece claro. Já é menos claro que nova imagem irá emergir dos
constantes e por vezes apressados progressos científicos.
Na linha de Patricia Churchland, e de um ponto de vista
estritamente neurobiológico, Francis Crick crê que se pode dizer a um
ser humano: “Você não passa de um embrulho de neurónios”. Esta é,
segundo o autor, uma “hipótese espantosa”, tão espantosa que a maior
parte das pessoas, mesmo as mais cultas, se recusarão a aceitá-la. “A
Hipótese Espantosa”, afirma Crick, “é a de que você, as suas alegrias
e as suas tristezas, as suas memórias e as suas ambições, o seu
sentido de identidade pessoal e de livre arbítrio, não sejam de facto
mais do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e
das suas moléculas associadas. ... Esta hipótese é de tal forma
estranha às ideias da maioria das pessoas hoje vivas que bem pode ser
considerada como espantosa.”12
Para autores como Francis Crick, Patricia Churchland, Mark
Johnson e George Lakoff, o movimento de naturalização do ser e do
saber humanos parece ter entrado em contradição insanável com a
perspectiva filosófico-teológica do carácter sobrenatural dos
elementos característicos da humanidade como, por exemplo, a alma, a
mente, a consciência ou o espírito que, segundo a tradição ocidental,
especificam o ser humano. É de facto impressionante que grande parte
das obras de carácter mais filosófico que hoje são publicadas na área
das ciências cognitivas se baseiem numa repetida afirmação da oposição
entre as perspectivas natural/sobrenatural e imanente/transcendente.
Os autores destas obras parecem ignorar que é possível dispensar tais
dualismos sem com isso necessitar de introduzir uma ruptura radical
com a reflexão humana amadurecida no ocidente ao longo de mais de dois
mil anos. O dualismo corpo-alma é um dos que mais suscita críticas
11 Patricia Churchland, Neurophilosophy, A Neurophilosophical Perspective, Cambridge, Mass: MIT,1986, p. 482.12Francis Crick, A Hipótese Espantosa. Busca Científica da Alma, Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p.19.
8
demolidoras. Mas serão elas tão justificadas e destrutivas como
parecem?
4. Quem somos nós? Crick e Flanagan sobre a alma humana
A questão da existência e da natureza da alma humana constitui
actualmente uma das questões mais debatidas pelos autores que
desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências cognitivas, já que
se trata de um conceito no qual converge muito da tradição filosófico-
teológica ocidental, e que aparece tradicionalmente associado ao
conceito de corpo, criando assim um dualismo hoje posto em causa.
Francis Crick, como muitos outros, parece ter ideias claras e
definitivas sobre a questão da alma. O autor considera, não sem razão,
que, cientificamente falando, se trata de um conceito desnecessário
para a compreensão do mesmo ser humano. “Um neurobiólogo moderno”,
afirma ele, “não precisa do conceito religioso de alma para explicar o
comportamento dos humanos e de outros animais.” A afirmação é tão
óbvia que quase parece trivial E, evocando as transformações na
compreensão do cosmos provocadas pelas descobertas de Galileu, Kepler
e Newton, Crick continua: “faz lembrar a pergunta que Napoleão fez,
depois de Pierre-Simon Laplace lhe ter explicado como é que o sistema
solar funcionava: ‘Onde é que Deus entra nisto tudo?’ Ao que Laplace
respondeu: ‘Sire, não preciso dessa hipótese’”. E prossegue:. “Nem
todos os neurocientistas acreditam que a ideia da alma seja um mito -
Sir John Eccles é a excepção mais notável- mas não há dúvida de que a
maioria é dessa opinião. Não é que tenham conseguido provar que a
ideia seja falsa. Mais propriamente, tal como as coisas de momento se
apresentam, não vêem qualquer necessidade dessa hipótese.” E conclui:
“considerado sob a perspectiva da história humana, o principal
objectivo da investigação científica do cérebro não é o de compreender
meramente e de curar várias situações clínicas, por muito importante
que a tarefa possa ser, mas antes abarcar a natureza real da alma
humana. O que se tenta descobrir é se este termo será metafórico ou
literal.”13 Devo dizer que julgo altamente improvável que os
investigadores que estudam o cérebro humano considerem sua tarefa
13 Ibid., p. 23.
9
prioritária esclarecer se o conceito de alma deve ser tomado em
sentido literal ou metafórico. Em todo o caso, há quem pareça, segundo
Crick, ter já resolvido o problema: “Muitas pessoas instruídas,
sobretudo no mundo ocidental, também partilham a convicção de que a
alma é uma metáfora e que não existe vida pessoal antes da concepção,
nem depois da morte. Poderão auto-denominar-se ateus, agnósticos,
humanistas ou apenas crentes apóstatas, mas todos eles negam os
principais argumentos das religiões tradicionais.”14
Na mesma linha de Crick, Owen Flanagan dedicou recentemente uma
obra15 à questão do conflito que, no que se refere à compreensão do ser
humano, parece existir entre a perspectiva das ciências naturais,
particularmente a das ciências cognitivas, e a das humanidades
tradicionais, particularmente a da filosofia e a da teologia. Um dos
pontos em que este conflito surge com maior evidência é segundo o
autor a questão da existência ou não de um “eu” substancial e de uma
alma humana em sentido subsistente e imortal. Flanagan considera que a
questão da alma é muito mais ampla do que habitualmente se supõe,
afirmando que “ ‘o problema da alma’ é uma forma abreviada de
referência a um conjunto de problemas filosóficos centrais na
perspectiva humanista dominante. Estes conceitos incluem, antes de
mais, uma mente não física, a liberdade e um self ou alma permanente,
subsistente e imutável.” Flanagan reconhece com razão que para muitas
pessoas estes conceitos estão ameaçados pelo progresso científico, e é
esta percepção que causa nessas pessoas uma grande resistência à
perspectiva científica, já que daqueles conceitos parece depender
definitivamente para eles o próprio sentido da existência humana. Por
isso, continua Flanagan, para essas pessoas, uma vez que “sem uma
mente não física, a liberdade e a alma não são coisas reais mas apenas
meras aparências, então, é o fim do mundo – pelo menos do mundo tal
como o conhecemos.”16.Tocamos aqui de novo o tema da revolução
paradigmática copernicana que em muitos aspectos parece estar a levar-
nos para um ‘outro mundo’ conceptual e de auto-compreensão, mas que
pode contudo conduzir-nos também a um enorme progresso.
14 Ibid.15 Owen Flanagan, The Problem of the Soul, New York: Basic Books, 2002. 16 Ibid., p. XI.
10
Flanagan propõe-se resolver o conflito entre as imagens do ser
humano que nos são dadas pelas ciências naturais, por um lado, e as
que nos vêm das humanidades, por outro, sugerindo que devemos desistir
de acreditar na existência quer de um eu, quer de uma alma, no sentido
subsistente que lhes dão as humanidades tradicionais, particularmente
a filosofia e a teologia ocidentais, dado não haver qualquer base para
uma tal crença. No entanto, o autor evita assumir uma posição
demasiado radical. Há que preservar as referências fundamentais que
nos têm permitido compreender o sentido da vida. Podemos pois, segundo
ele, continuar a utilizar os termos antropológicos fundamentais desde
que deixemos de lhes atribuir o sentido substancial tradicional:
“podemos preservar muito daquilo que queremos significar quando
falamos de ‘mente’, ‘alma’, ‘self’ e ‘liberdade’, sem continuar a
atribuir-lhes aqueles aspecto de significado procedentes das suas
raízes religiosas e teológicas.”17. Há que aceitar, continua Flanagan,
que “a nossa dimensão animal é a nossa única dimensão. Somos todos
animais e o cérebro é a nossa alma.18” Mas esta solução do problema da
nossa identidade e auto-compreensão parece demasiado simples e
desfundamentada para poder ser tomada acriticamente
Flanagan considera que, não existindo uma alma humana
subsistente e imortal, também não terá sentido qualquer discurso sobre
um Deus igualmente subsistente e imortal. O autor parte do princípio
que a única forma de defender a imortalidade do ser humano consiste em
acreditar que existe nele uma alma, e que esta alma é subsistente e
imortal. Mas será este pressuposto necessário para se falar da
imortalidade do ser humano? Poder-se-á conceber a imortalidade em
termos relacionais?
5. O ser humano como relação
A concepção substancial do ser humano era sem dúvida, e ainda é,
o pressuposto tradicional da filosofia e da teologia cristãs, que
continuam a ter um discurso cuja linguagem pertence a um paradigma – o
paradigma aristotélico-tomista - que em muitos aspectos se afigura
17 Ibid., p. XV.18 Ibid.
11
cada vez mais inadequado para a compreensão de quem somos nós. Embora
sem negar a importância relacional do ser humano, este paradigma
baseia-se na categoria de “substância” como sua trave mestra. Creio
porém que num paradigma mais actual, o conceito de “relação” é muito
mais adequado para exprimir aquilo que existe de fundamental no ser
humano e que desejaríamos fosse eterno, - a relação com os outros
vivida como amor. S. Tomás considera que embora em Deus se deva
afirmar que existem relações subsistentes entre as três pessoas
divinas, dado que essas relações não poderiam ser consideradas
acidentais, no ser humano, pelo contrário, não há relações
subsistentes. Mas não poderemos abandonar o dualismo
substância/acidente, e considerar que aquilo que nos dá “alma”, que
nos dá vida, é a nossa experiência de relação interpessoal? Para os
que acreditam que Deus estabelece uma relação pessoal com cada ser
humano, porque não considerar que essa relação é subsistente, isto é,
eterna, sem que para isso tenhamos que recorrer necessariamente ao
conceito de substância?
É evidente que esta nova perspectiva paradigmática onto-
epistemológica parte de um pressuposto antropológico muito diferente
daquele que nos foi legado não apenas pela tradição aristotélico-
tomista mas também pela modernidade. Em ambas as tradições, o ser
humano é definido fundamentalmente pela sua estrutura ontológica e
pelas suas competências epistemológicas e práticas, isto é, mais como
indivíduo autónomo e racional do que como ser de relação. O tema do
ser humano como ser-em-relação foi desenvolvido no século XX
particularmente pelas correntes existencialistas e fenomenológicas.19
Mas agora essa abordagem já não é realizada apenas no contexto do
pensar filosófico como um domínio separado da ciência. Trata-se de uma
abordagem que é hoje realizada no interior das próprias ciências
cognitivas. Um novo paradigma emerge. Com efeito, recentes publicações
sobre a empatia e a chamada perspectiva da segunda pessoa20 (distinta
quer da perspectiva da primeira pessoa, a da introspecção, quer da
perspectiva da terceira pessoa, a científica) têm posto em evidência a19 Referi-me com algum desenvolvimento a este tema no ensaio “Ética e identidade pessoalna perspectiva das ciências cognitivas” in Brotéria 156: 2 (2003) 119-140.20 Evan Thompson, Between Ourselves. Second-Person Issues in the Study of Consciousness, Thorverton:Imprint Academic, 2001.
12
importância central da relacionalidade como constituinte do ser
humano.
O que muda então se se definir o ser humano mais como ser-em-
relação, isto é, como ser constituído por relações inter-subjectivas,
do que como substância individual?
Antes de mais, muda o conceito de corpo, o qual não pode ser
considerado apenas na sua dimensão biológica como se de uma simples
substância individual se tratasse. Seria regressar a uma ontologia
substancialista que se pretende superar. A dimensão relacional do
corpo humano e de todas as suas capacidades, nomeadamente as de
natureza neurobiológica, é que permite superar o simples ponto de
vista individual e ver o ser humano como pessoa. Nesta perspectiva,
domínios como a filosofia, a ética e a religião aparecem não pouco
transformados, mas não no sentido proposto pelas ciências cognitivas
que são, também elas, substancialistas, já que se baseiam num
substancialismo de tipo neurobiológico.
Muda também o conceito de alma e o correspondente conceito de
imortalidade. Em diálogo com as ciências cognitivas, Warren Brown
considera que “a alma sendo uma dimensão da experiência humana, emerge
da relacionalidade pessoal”.21 Além disso, “a capacidade de
relacionalidade pessoal pode, por seu lado, ser vista como uma
propriedade emergente de determinadas competências cognitivas
críticas.”22 Considerar a alma como propriedade emergente não significa
necessariamente considerá-la como uma substância espiritual, nem
sequer como um princípio substancial do corpo, à maneira de S. Tomás.
Isso seria regressar aos dualismos onto-epistemológicos que se
pretende hoje superar. É na relação com Deus que o autor vê a
possibilidade de falar na imortalidade da alma, e não num seu
espiritual de natureza substancial: “Enquanto que a cognição contribui
para (a emergência de) a alma, é, em última análise, o acto relacional
de Deus que cria a alma em cada ser humano.”23
Não deixa de ser curioso constatar que esta perspectiva não é
21 Warren Brown, “Cognitive contributions to soul”, in Warren Brown et al., WhateverHappened to the Soul? Scientificand Theological Portraits of Human Nature, Minneapolis: Fortress Press,1998, p. 101.22 Ibid., p. 102. 23 Ibid., p. 125. Inseri na citação a expressão entre parêntesis.
13
inteiramente nova nem específica do diálogo com as ciências
cognitivas. Ela encontra-se, por exemplo, em textos mais alinhados com
a tradição filosófico-teológica da Igreja Católica. Joseph Ratzinger,
por exemplo, considera que “ ‘ter alma espiritual’ significa
exactamente ser objecto de um bem-querer especial, de um especial
conhecimento e amor de Deus; ter uma alma espiritual denota: ser um
ente chamado por Deus para o diálogo eterno e, por isso, estar em
condições de conhecer Deus e de responder-lhe.”24 Por conseguinte, “a
imortalidade concebida pela Bíblia não é fruto da própria capacidade
daquilo que, por si mesmo, é indestrutível, mas da participação no
diálogo com o Criador... Trata-se de uma ‘imortalidade dialógica’ “.25
É verdade que Ratzinger não recusa a perspectiva substancialista, mas
não deixa de ser significativa a análise que o autor faz da alma e da
sua imortalidade em termos relacionais no contexto da historicidade do
ser humano, uma perspectiva que para ele parece ser complementar da
primeira.
6. As ciências cognitivas contra o ser humano?
Depois de tudo o que ficou dito, parece lícito perguntar:
estarão as ciências cognitivas contra o ser humano, desenhando um
futuro em que a sua dignidade acabará por desaparecer completamente?
Patricia Churchland não o crê. Pelo contrário, acredita que estas
ciências nos ajudarão a compreender o mesmo ser humano de uma forma
mais objectiva e profunda. “Os que supõem que a ciência e o humanismo
devem estar necessariamente em conflito”, afirma a autora, “saudarão
esta previsão do futuro sem entusiasmo. Eles podem tender a ver a
revisão da teoria do senso comum e a emergência da teoria psicológica
neural como a perda irreparável da nossa humanidade. Mas podemos ver
isto de outro modo. Pode ser uma perda, não de algo necessário para a
nossa humanidade, mas apenas de algo meramente familiar e habitual.
Pode ser a perda de algo que, apesar de constituir uma segunda
natureza, ilumina o nosso entendimento e reorienta a nossa
compreensão.” A autora considera que o que se ganha na compreensão do
24 Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, S. Paulo: Herder, 1970, pp. 306-307.25 Ibid., pp. 302-303.
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ser humano proporcionada pelas ciências cognitivas compensará em muito
o desconforto provocado em nós pela perda de muitas ideias a que
estávamos habituados mas que, segundo ela, não têm qualquer
fundamento. E continua: “o que vamos ganhar pode, por conseguinte, ser
um enorme progresso na compreensão de nós mesmos, progresso que, no
seu sentido mais profundo, contribuirá para aumentar e não para
diminuir, o valor da nossa humanidade. Além disso, a perda pode
incluir certos pressupostos do senso comum e mitos que, do ponto de
vista da justiça e da decência, nós acabamos por considerar inumanos.
E entre as perdas desejáveis podem ser incluídas também certas doenças
generalizadas e horríveis relacionadas com a mente-cérebro.” E
procurando, tal como Flanagan, resolver o conflito entre a perspectiva
científica do ser humano e a perspectiva tradicional das humanidades,
a autora conclui: “Libertarmo-nos de coisas como estas está claramente
no espírito do humanismo e da ciência. Em todo o caso, é um engano ver
a ciência como estando em oposição ao humanismo. Pelo contrário, são
os abusos políticos e empresariais do conhecimento científico que
revelaram um descuido catastrófico por princípios humanísticos. E nós
teremos que nos defender de semelhantes abusos do conhecimento
neurocientífico.”26 Embora esteja basicamente de acordo com esta
afirmação de Patricia Churchland, devo dizer que os critérios para se
identificar aquilo a que a autora chama “abusos do conhecimento
neurocientífico” estão longe de merecer um generalizado consenso.
Creio que a autora, e outros na mesma linha de pensamento, poderão
estar a cometer semelhantes abusos, ainda que com a melhor das
intenções.
Também Owen Flanagan crê que mesmo esvaziando do seu significado
tradicional os conceitos que definem o ser humano (alma, mente, eu,
liberdade), isso não significa o fim do mundo e da civilização. “Há
amor e amizade. Há benevolência e compaixão que se exprimem num
sentimento de ligação a todas as criaturas, e até mesmo ao admirável e
inanimado universo”. Flanagan revela aqui a sua inspiração budista, e
é dessa perspectiva que se compreende melhor a sua afirmação de que “a
perspectiva científica deixa um amplo espaço para um conceito humano e
26 Patricia Churchland, Neurophilosophy, A Neurophilosophical Perspective, Cambridge, Mass: MIT,1986, p. 482.
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digno da pessoa.”27
Parece-me que um dos domínios em que se decide a nossa
humanidade e dignidade é o dos critérios de decisão, sobretudo em
ética. Tais critérios têm sido profundamente reformulados pelas
ciências cognitivas, ao proporem o abandonado dos critérios de decisão
tradicionais. Todavia, não me parece que as ciências cognitivas possam
orientar-nos nas nossas escolhas éticas, ainda que nos possam explicar
o funcionamento das estruturas e mecanismos neurobiológicos que tornam
possíveis essas escolhas. Com efeito, ainda que se conheçam os
processos neurobiológicos que permitem ao ser humano pensar, as mesmas
ciências pouco nos podem ajudar quando chega o momento de tomar
decisões éticas, por vezes muito complexas e subjectivas, sobretudo
nas chamadas situações-limite.28
Tendo em conta tudo o que ficou dito acerca da revolução
cognitiva em curso, uma revolução que não é possível ignorar, mas
acerca da qual há que manter um esclarecido espírito crítico, não nos
resta então outra alternativa senão enfrentar corajosamente os grandes
desafios que nos são lançados pelas ciências cognitivas.
7. Dez grandes desafios colocados pelas ciências cognitivas
actuais
1º- Poderão as ciências humanas aceitar que a estrutura do
pensamento, da mente, da consciência, da razão, se compreenderá por
uma metodologia que proceda “de baixo para cima” (bottom-up), isto é,
que elabore os conceitos psicológicos, éticos, estéticos e religiosos
fundamentais a partir da estrutura neurobiológica do ser humano? De que
modo esta perspectiva se harmoniza com a mais tradicional, que procede
“de cima para baixo” (top-down), isto é, a partir dos princípios
racionais abstractos e universais em filosofia e dos princípios
baseados na revelação de Deus, em teologia?
2º O que teremos que mudar na nossa maneira de compreender o ser
humano se considerarmos que a mente, o pensamento, a razão e a
27 Owen Flanagan, The Problem of the Soul, p. XIV.28 É esta a posição, por exemplo, de Virgínia Held, “Whose agenda? Ethics versusCognitive Science” em Larry May et al. (eds.), Mind and Morals, Cambridge, MA: The MITPress, 1996, pp. 69-87.
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consciência são realidades que têm uma natureza fundamentalmente
neurobiológica?
3º Dado o conhecimento cada vez mais pormenorizado dos
condicionalismos neurobiológicos do nosso comportamento pessoal e
social, poderemos ainda falar de uma ética de liberdade e de
responsabilidade?
4º Poderemos aceitar que ao dualismo tradicional corpo-alma não
correspondem duas entidades separadas nem separáveis e que, de facto,
deveremos repensar o ser humano sem recorrer a este dualismo?
Poderemos, por exemplo, pensar a imortalidade do ser humano sem o
conceito de uma alma subsistente e tão radicalmente diferente do corpo
que tenha a capacidade de permanecer depois da desintegração do mesmo
corpo?
5º Poderemos renunciar a um conceito substancial do eu, e passar
a considerar-nos a nós mesmos como “processos”, como seres em mudança
e sem um substracto permanente, como “eus” identificados simplesmente
com a sucessão dos nossos estados passageiros – estados cognoscitivos,
emocionais, estéticos, etc. no contexto de uma vida pessoal que é
essencialmente relacional?
6º Deveremos reconhecer que o paradigma filosófico-teológico de
inspiração aristotélico-tomista e kantiana deixou de ser adequado para
pensar o ser humano hoje, e que um novo paradigma – não
necessariamente um novo neotomismo ou um neokantismo– se torna
possível, necessário e urgente?
7º Teremos que voltar a ler de uma forma nova algumas passagens
da Bíblia, desde o Génesis ao Apocalipse (e até mesmo algumas
passagens dos livros sagrados de outras grandes religiões),
particularmente as que se referem à natureza do ser humano e às suas
relações com o universo e com Deus, tal como aconteceu depois das
revoluções galilaica e darwiniana?
8º Considerando que a nossa natureza evolutiva nos aproxima dos
outros animais, até que ponto podemos insistir numa radical diferença
entre nós e eles?
9º Poderemos admitir que as máquinas inteligentes do futuro
possam vir a ter consciência, emoções, liberdade, e até o mesmo desejo
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de eternidade que possuem os seres humanos? Poderemos aceitar a
hipótese de a evolução da vida continuar para formas radicalmente
novas, biológicas ou não, que superarão definitivamente a humanidade
tal como a conhecemos hoje?
10º Finalmente, quais são as características do ser humano que o
tornam especificamente humano?
8. Responder aos desafios: por onde começar?
Creio que para se poder começar a responder a estes desafios há
que resolver definitivamente um problema mais fundamental, o da
natureza e relevância onto-epistemológica dos inúmeros dualismos que
herdámos do passado, dualismos como corpo/alma, matéria/espírito,
natural/sobrenatural, imanente/transcendente, matéria/forma,
substância/acidente, etc. Para se resolver esta questão, deveremos
compreender melhor a origem de tais dualismos.
Fundamentalmente, estes dualismos correspondem à necessidade
sentida por filósofos e teólogos ao longo dos últimos dois ou três
milénios de distinguir dois níveis de realidade. A ontologia apareceu
como uma exigência epistemológica, isto é, de inteligibilidade do
mundo na sua complexidade antropológica, cosmológica e teológica. As
distinções ontológicas entre corpo e alma, matéria corruptível e
matéria incorruptível, e entre a habitação dos homens e a dos deuses,
permitiram uma visão onto-epistemológica integrada de toda a
experiência e conhecimento humanos. E não é demais repetir que a
introdução destas diferenças ontológicas foi uma condição de
possibilidade epistemológica de progresso no conhecimento dos seres
humanos, da natureza e dos deuses. Este facto parece-me da maior
relevância, já que ele implica que mudanças significativas nestas
condições de possibilidade epistemológicas no que se refere aos três
domínios atrás referidos – antropológico, cosmológico e teológico -
acabam por provocar, mais tarde ou mais cedo, mudanças ontológicas
igualmente significativas.
Creio que essas mudanças têm estado a acontecer sobretudo desde
as revoluções galilaica e darwiniana, e que o seu ritmo se
intensificou com a revolução cognitiva actualmente em curso. A
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revolução galilaica terminou com o esquema cosmológico medieval que
integrava não só o dualismo corruptível-incorruptível em relação aos
corpos terrestres e celestes, como também a existência do empíreo, o
mundo transcendente onde habitavam Deus, os anjos e os santos, por
detrás da esfera de água cristalina que se seguia à esfera das
estrelas fixas, de acordo com a narração do Genesis. Uma transformação
epistemológica no domínio cosmológico arrastou uma mudança ontológica
no mesmo domínio, e uma mudança igualmente ontológica no domínio
teológico. Os céus aproximaram-se perigosamente da Terra, o mundo
transcendente pareceu fundir-se com o mundo imanente. Mas também no
domínio antropológico a mudança ontológica tinha começado. O facto de
o ser humano não continuar no centro do universo retirou-lhe alguma da
sua dignidade ontológica.
Mas foi com Darwin que esta dignidade pareceu desvanecer-se. Foi
mais uma vez uma significativa mudança epistemológica, a da explicação
do aparecimento da vida sobre a terra, incluindo naturalmente a vida
humana através da teoria da evolução das espécies, que arrastou
mudanças ontológicas em antropologia, sobretudo no que se refere ao
dualismo alma-corpo, duas realidades que se uniram perigosamente numa
completa fusão. O abismo ontológico que separava matéria e espírito
tornou-se de súbito epistemologicamente desnecessário. A mente, que
era para S. Tomás uma potência da alma, acabou por ser considerada por
António Damásio um produto do cérebro. E assim, os dualismos
ontológicos criados por esquemas epistemológicos igualmente dualistas
estão a ser rapidamente transformados no sentido de uma unificação
radical, unificação em que o ser humano e Deus se tornam radicalmente
co-presentes na imanência do universo criado. Parece assim não ter
mais sentido falar seja epistemológica, seja ontologicamente, de “este
mundo” e de um “outro mundo”, a não ser de “um outro mundo dentro
deste mundo”, isto é, o mundo das relações interpessoais que decorrem
no mundo espácio-temporal em que vivemos, e do qual Deus não está
ausente, mas onde se torna acessível através de uma presença que é ela
também inter-relacional.
No mundo da era pré-moderna, filosofia, teologia e conhecimento
da natureza implicavam-se reciprocamente. Com a modernidade estes três
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domínios do saber pareceram afastar-se uns dos outros, olhando-se com
algum temor e suspeita, levando ao afirmar da autonomia, senão mesmo
da independência de cada um. Hoje só muito descuidadamente podemos
dizer que a modernidade pertence ao passado. Ela convive com aquilo a
que se convencionou chamar pós-modernidade, um movimento cultural
muito mais aberto à convivência dos saberes. Daqui as ambiguidades e
conflitos que não foram ainda resolvidos, como o da relação entre a
ciência e as humanidades. Esta questão foi objecto de um recente
colóquio na prestigiada Academia das Ciências de New York, cujos
textos foram publicados sob o significativo título Unity of Knowledge. The
Convergence of Natural and Human Science. Neste colóquio Edward Wilson afirmou
acreditar na completa integração de todo o género de conhecimento
humano numa perspectiva de absorção das ciências humanas pelas
ciências naturais.29 Mas nem todos os participantes partilharam esta
perspectiva. Henry Moss, procedendo a um balanço das várias
intervenções concluiu que “o debate acerca dos primeiros princípios
não terminará a curto prazo. O homem pode ser uma máquina bioquímica,
mas a percepção de que ele é mais do que uma máquina está baseada em
veneráveis interpretações históricas acerca da actividade humana que
conduzem a concepções tais como a liberdade e a responsabilidade moral
que não são facilmente redutíveis a normas epigenéticas”.30
Considero que cada uma das três áreas do saber atrás referidas
deverá evoluir no sentido de reconhecer que não só influencia como
também é influenciada pelas outras, algo que é mais difícil de se
conseguir do que poderá parecer à primeira vista. Por outro lado, há
que reconhecer que é no estudo do ser humano que as três áreas se
intersectam da forma mais estimulante e prometedora. Creio que se a
dimensão relacional do ser humano se tornar central na investigação
quer no domínio das ciências naturais, quer no das humanidades,
encontraremos um ponto em comum que se revelará fundamental na
incessante peregrinação que fazemos à procura de respostas cada vez
29 O autor já defendeu esta posição em publicações anteriores, especialmente em Consilience:The Unity of Knowledge, New York: Knopf, 1998.30 Henry Moss, “Unity of Knowledge, circa 2000” in António Damásio et al., Unity ofKnowledge. The Convergence of Natural and Human Science, New York: The New York Academy ofSciences, 2001, p. 9.
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