documentos medievais galegos (5) [2007]

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247 AGÁLIA nº 91-92 / 2º SEMESTRE (2007): 247 - 252 / ISSN 1130-3557 Documentos medievais galegos (5) (*) José-Martinho Montero Santalha (Universidade de Vigo) (*) Da presente série de documentos galegos medievais publicaram-se anteriormente em Agália quatro entregas: a primeira nos núms. 69-70 (1º semestre de 2002), pp. 197-200 (documento procedente do mosteiro de Oia, de 8 de julho de 1253), a segunda nos núms. 75-76 (2º semestre de 2003), pp. 239-244 (documento procedente do mosteiro de Vila Nova de Lourençá, de 2 de janeiro de 1267), e a terceira nos núms. 83-84 (2º semestre de 2005), pp. 255-264 (documento procedente do mosteiro de Monfero, de 6 de março de 1289), e a quarta nos núms. 85-86 (1º semestre de 2006), pp. 231-235 (documento procedente do mosteiro de Montederramo, de junho de 1258). 1. No presente documento não há nenhuma referência explícita a Santa Clara; evidentemente, depois passaria ao arquivo do mosteiro por transmitir-se às freiras a propriedade aqui focada. Sobre a história do mosteiro em geral, fundado na segunda metade do século XIII, podem ver-se, entre outros, os seguintes trabalhos (que indico em ordem cronológica; incluem também referências ou citações de documentos medievais): Manuel de CASTRO (1977-1980): «Santa Clara de Santiago: Origen y vicisitudes», em: Boletín de la Real Academia Gallega (A Corunha) 32 (1977), núm. 359, pp. 207-231; 33 (1980), núm. 360, pp. 373-412; Manuel CASTRO Y CASTRO (1983): «El Real Monasterio de Santa Clara, de Santiago de Compostela», em: Archivo Ibero-Americano (Madrid) 43 (1983), núms. 169-170, pp. 3-62; VÁRIOS (1996): El Real Monasterio de Santa Clara de Santiago: ocho siglos de claridad, Santiago de Compostela 1996. 2. Informação geral sobre os arquivos de São Francisco e de Santa Clara, em: JIMÉNEZ GÓMEZ, Santiago (1973): Guía para el estudio de la Edad Media gallega (1100-1480), Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela (Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Santiago, na série «Monografías de la Universidad de Santiago de Compostela», vol. 23) 1973, 168 pp.; pp. 112-113. [Obra excelente, que, apesar de ficar desactualizada nalguns pontos, segue sendo muito útil; mereceria uma reedição actualizada]. Um inventário esquemático dos mesmos arquivos, em: Ermelindo PORTELA SILVA / María del Carmen PALLARES MÉNDEZ (directores), Inventario das fontes documentais da Galicia Medieval I, Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega, 1988, 124 pp.; p. 59. [Veja-se a recensão desta obra por Eleutino ÁLVAREZ ÁLVAREZ, em Estudios Mindonienses (Ferrol) 5 (1989), pp. 879-880]. 3. Em particular, sobre a documentação medieval do mosteiro de Santa Clara (cito igualmente em ordem cronológica): María Gloria EIJÁN MOYANO (1969): Monasterio de Santa Clara de Santiago de Compostela, Santiago: Universidad de Santiago de Compostela (Facultad de Filosofía y Letras) 1969 [Tese de licenciatura inédita. Edita também, com bastante correcção, o presente documento: doc. 104, pp. 227-228]; José VIADER SERRA (1975): El archivo del monasterio de Santa Clara de Santiago. Estudio diplomático de su documentación durante el siglo XV, Santiago 1975 [Tese de licenciatura inédita]; Clara RODRÍGUEZ NÚÑEZ (1993): «La colección documental de Santa Clara de Santiago (1196 a 1500)», Liceo Franciscano (Santiago de Compostela) 45 (2ª época), núm. 136-138 (janeiro - dezembro 1993), 408 pp. O documento que a seguir apresento, datado em 1290, procede do mosteiro de freiras franciscanas de Santa Clara, de Santiago de Compostela (1) . O pergaminho original conserva-se no arquivo do convento de São Francisco, de Santiago, entre os documentos procedentes de Santa Clara (2) . É o documento 31 do “livro” 28 (embora na margem superior do pergaminho apareça a notação moderna “29 Nº 31”). Não se trata propriamente de um “livro” (que nos podia fazer pensar num cartulário de cópias tardias), mas de uma colecção de pergaminhos medievais, cosidos e encadernados. A signatura antiga era “leg. 2/40” (3) .

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AGÁLIA nº 91-92 / 2º SEMESTRE (2007): 247 - 252 / ISSN 1130-3557

Documentos medievais galegos (5) (*)José-Martinho Montero Santalha

(Universidade de Vigo)

(*) Da presente série de documentos galegos medievais publicaram-se anteriormente em Agália quatroentregas: a primeira nos núms. 69-70 (1º semestre de 2002), pp. 197-200 (documento procedente domosteiro de Oia, de 8 de julho de 1253), a segunda nos núms. 75-76 (2º semestre de 2003), pp. 239-244(documento procedente do mosteiro de Vila Nova de Lourençá, de 2 de janeiro de 1267), e a terceira nosnúms. 83-84 (2º semestre de 2005), pp. 255-264 (documento procedente do mosteiro de Monfero, de 6 demarço de 1289), e a quarta nos núms. 85-86 (1º semestre de 2006), pp. 231-235 (documento procedente domosteiro de Montederramo, de junho de 1258).

1. No presente documento não há nenhuma referência explícita a Santa Clara; evidentemente, depois passariaao arquivo do mosteiro por transmitir-se às freiras a propriedade aqui focada. Sobre a história do mosteiroem geral, fundado na segunda metade do século XIII, podem ver-se, entre outros, os seguintes trabalhos(que indico em ordem cronológica; incluem também referências ou citações de documentos medievais):Manuel de CASTRO (1977-1980): «Santa Clara de Santiago: Origen y vicisitudes», em: Boletín de la RealAcademia Gallega (A Corunha) 32 (1977), núm. 359, pp. 207-231; 33 (1980), núm. 360, pp. 373-412;Manuel CASTRO Y CASTRO (1983): «El Real Monasterio de Santa Clara, de Santiago de Compostela», em:Archivo Ibero-Americano (Madrid) 43 (1983), núms. 169-170, pp. 3-62; VÁRIOS (1996): El Real Monasteriode Santa Clara de Santiago: ocho siglos de claridad, Santiago de Compostela 1996.

2. Informação geral sobre os arquivos de São Francisco e de Santa Clara, em: JIMÉNEZ GÓMEZ, Santiago (1973):Guía para el estudio de la Edad Media gallega (1100-1480), Santiago de Compostela: Universidad deSantiago de Compostela (Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Santiago, na série«Monografías de la Universidad de Santiago de Compostela», vol. 23) 1973, 168 pp.; pp. 112-113. [Obraexcelente, que, apesar de ficar desactualizada nalguns pontos, segue sendo muito útil; mereceria umareedição actualizada]. Um inventário esquemático dos mesmos arquivos, em: Ermelindo PORTELA SILVA /María del Carmen PALLARES MÉNDEZ (directores), Inventario das fontes documentais da Galicia MedievalI, Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega, 1988, 124 pp.; p. 59. [Veja-se a recensão desta obrapor Eleutino ÁLVAREZ ÁLVAREZ, em Estudios Mindonienses (Ferrol) 5 (1989), pp. 879-880].

3. Em particular, sobre a documentação medieval do mosteiro de Santa Clara (cito igualmente em ordemcronológica): María Gloria EIJÁN MOYANO (1969): Monasterio de Santa Clara de Santiago de Compostela,Santiago: Universidad de Santiago de Compostela (Facultad de Filosofía y Letras) 1969 [Tese delicenciatura inédita. Edita também, com bastante correcção, o presente documento: doc. 104, pp. 227-228];José VIADER SERRA (1975): El archivo del monasterio de Santa Clara de Santiago. Estudio diplomático desu documentación durante el siglo XV, Santiago 1975 [Tese de licenciatura inédita]; Clara RODRÍGUEZNÚÑEZ (1993): «La colección documental de Santa Clara de Santiago (1196 a 1500)», Liceo Franciscano(Santiago de Compostela) 45 (2ª época), núm. 136-138 (janeiro - dezembro 1993), 408 pp.

O documento que a seguir apresento, datado em 1290, procede domosteiro de freiras franciscanas de Santa Clara, de Santiago deCompostela(1).

O pergaminho original conserva-se no arquivo do convento de SãoFrancisco, de Santiago, entre os documentos procedentes de SantaClara(2). É o documento 31 do “livro” 28 (embora na margem superior dopergaminho apareça a notação moderna “29 Nº 31”). Não se tratapropriamente de um “livro” (que nos podia fazer pensar num cartuláriode cópias tardias), mas de uma colecção de pergaminhos medievais,cosidos e encadernados. A signatura antiga era “leg. 2/40”(3).

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5) 1290, abril, 22 (Melide)Maria Viviãez de Maaros e o seu filho Rui Fernández vendem a Martim

Fernández de Artonho e a Maria Núnez quanta herdade Maria Viviãez possuía(ganhada do seu defunto marido Pedro Aras e de um filho que dele lhe ficara, aqual herdade correspondia à metade do que ali possuíra Marinha Suárez, mãe dodito Pedro Aras) no lugar de Meixide e em toda a freguesia de São Cristóvão deBorrageiros, salvo o igrejário, por 310 maravedis.

a) Edição paleográfica

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b) Edição filológica

\1 Em nome de Deus. Amém.Sub era Mª CCCª XXª VIIIª [= millesima trecentesima vigesima octava] e

\2 quot XXII dias d’ abril andados.Eu Maria Viviãez de \3 Maaros, com meu filho Rui Fernández, de

bom coraçom e de boa voon- \4 -tade, por nós e por toda nossa voz porsempre vendemos \5 e firme[mente] outorgamos a vós MartimFernández d’ Artonho e a Maria N- \6 únez quanta herdade eu MariaViviãez gaanhei de meu \7 marido Pedro Aras, dum filho que me delficou após sa \8 morte (e ést’ a média da que ende i houvo MarinhaSuárez, m- \9 adre do dito Pedro Aras), com casas e com entradas e seí-\10 das, a montes e a fontes, em Meixide e em toda-la flegrisia \11 deSam Cristóvao de Borra[g]eiros, seinte o egrejário: vendemos- \12 -vosassi como dito é por trezentos e dez moravediis d’ alfon- \13 siis, qualpreço de vós recebemos e que nos outorgamos por \14 bem pagados.

Seja maldito quem vos nunca sobr’ ela contrariar, \15 e peite-vos porpea, a vós e a quem veer em vossa voz, \16 o preço dobrado; e valha acarta em firme revor pera \17 sempre. E nós outorgamos de vosamparar per nós e per \18 todas nossas boas.

\19 Testes: Pedro Martïiz, alcaide de Milide, e Pedro Eanes, \20 joiz,e Martim Pêrez, clérigo de Sam Pedro de Milide, e Domingo \21Domínguez, mercador; Joám Gordo, cavaleiro de Sancibrao, \22 e JoámMartïiz, mercador de Santiago, e Pedro Reimúndez, ’scu- \23 deiro, eoutros que o virom e oírom.

\24 Eu Pedro Domínguez, notário jurado do con- \25 celho deMilide, presente foi, e de meu \26 mandado ’scriviu meu filho DomingoPêrez; \27 e eu sobrescrivi, e confirmo, e meu sinal \28 fiz i emtestemonho.

\29 Eu Domingo Pêrez, per mandado de Pedro Domínguez ’scrivi.

c) ComentáriosEste documento, apesar de proceder do fundo arquivístico do

mosteiro de Santa Clara, de Santiago, e de conservar-se ainda hoje noarquivo compostelano de São Francisco, segundo se deduz do própriotexto não deveu de ser redigido na zona de Santiago mas em Melide, nocentro da Galiza, pois daí procedem tanto o notário que o ditou (“Pedro

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4. Aparece também entre as testemunhas “Joám Gordo, cavaleiro de Sancibrao”, que deve de ser da mesmazona: Sancibrao é uma das freguesias que conformam o actual concelho de Melide. Podemos concluir queoutras testemunhas que se citam no documento sem indicar a sua procedência geográfica (“DomingoDomínguez, mercador”, “Pedro Reimúndez, ’scudeiro”) deviam de ser igualmente da zona de Melide; estasuposição vê-se confirmada pelo facto de que outra testemunha é “Joám Martïiz, mercador de Santiago”:neste caso, a explícita indicação “de Santiago” (que parece óbvio devemos subentender como “Santiago deCompostela”) supõe que esta personagem é forânea.

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Domínguez, notário jurado do concelho de Milide”, e seguramentetambém o amanuense que o escreveu, o seu filho Domingo Pêrez) comoa maioria das testemunhas presentes (entre as quais se encontram oalcaide, o juiz e um clérigo de Melide: “Pedro Martïiz, alcaide de Milide,e Pedro Eanes, joiz, e Martim Pêrez, clérigo de Sam Pedro de Milide”)(4).

O texto portanto deverá reflectir a língua da área de Melide. Mas háque advertir que não oferece particularidades locais ou comarcaisnotáveis que a distingam do que devia de ser na altura o portuguêscomum à maioria do território de língua portuguesa, tanto na Galizacomo em Portugal.

O documento aparece escrito por duas mãos diferentes. Como se podever pelo conteúdo das linhas finais do documento (linhas 24-29), oamanuense fundamental foi Domingo Pêrez, que escrevia por mandadode seu pai Pedro Domínguez, notário de Melide. Somente as linhas 24-28apresentam letra diferente: pelo que na mesma passagem se diz, sabemosque são da mão do próprio notário Pedro Domínguez, que, depois deditar o texto ao seu filho, escreveu esse trecho. A linha final dodocumento (linha 29) volta a ser da mesma mão que escreveu todo ocorpo do texto (linhas 1-23), isto é, do filho Domingo Pêrez, como nessamesma linha se adverte.

Linhas 1-2. Como se vê, parte da data aparece ainda em latim, o queera frequente nos documentos mais antigos.

Linha 5. firme[mente]: no manuscrito aparece unicamente firme, masdeve de ser lapso do amanuense.

“Martim Fernández d’ Artonho”: Artonho é freguesia (que tem comoadvocação Santa Eulália) do concelho de Agolada (na actual província dePontevedra); é também o nome de um lugar da freguesia (e esse lugarseria o que deu origem à denominação de toda a freguesia, como tantasvezes aconteceu).

Linhas 10-11. “em Meixide e em toda-la flegrisia de Sam Cristóvao deBorra[g]eiros”. Efectivamente, Meixide é ainda hoje lugar da freguesia deBorrageiros (que tem como advocação São Cristóvão), no mesmoconcelho de Agolada.

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No que se refere ao nome da freguesia, o amanuense Domingo Pêrezescreveu borraleyros (com y com ponto por cima, como costuma), quedeveríamos interpretar como Borralheiros. Hoje esta freguesia chama-seBorrageiros (que na normativa gráfica isolacionista se escreve, comohabitualmente, com x em vez de g: Borraxeiros).

À primeira vista, observando a grafia deste documento, poderiapensar-se que a pronúncia actual Borrageiros fosse uma pseudo-castelhanização de uma forma originária Borralheiros (que seria a usadapor Domingo Pêrez no documento). De facto existem vários topónimosprocedentes da raiz borralh-, começando por um Borralheiros (lugar dafreguesia de Vieiro [que mais correctamente se grafaria Veeiro], noconcelho de Viveiro, da província de Lugo), e ademais A Borralha, ABorralhada, As Borralhas, O Borralheiro, Borralhinhos. Nessa hipótese ter-se-ia seguido no uso popular um processo de castelhanização do topónimotomando como critério a frequente equivalência entre português lh ecastelhano g, j (por exemplo: port. filho = hijo, mulher = mujer, abelha =abeja, espelho = espejo).

Mas não é isso: Borrageiros é a forma correcta, pois noutrosdocumentos da mesma época e da mesma zona aparece repetidamentecom grafias que correspondem à forma Borrageiros (por exemplo,Borraieyros: assim na mesma documentação de Santa Clara emdocumentos dos anos 1287 e, por duas vezes, em 1291). Devemosconcluir, portanto, que neste caso houve erro do amanuense, explicáveltalvez por tratar-se de um topónimo algo afastado de Melide, que eleidentificaria erradamente com a citada raiz borralh-. No caso deBorrageiros é outra a raiz que está na origem, que inclui também váriostopónimos: ademais doutros Borrageiros, existem A Borrageira, OBorrageiro, Borrajas e Borrajos. Todos procedem de borragem s. f. ‘plantaherbácea’, de etimologia discutida, provavelmente do lat. tardio*BURRAGINEM, acusat. de BURRAGO / *BURRAGINIS s. f. (derivado do lat.tardio BURRA / BURRAE s. f. ‘lã grosseira’, por meio do sufixo -AGO / -AGINIS, frequente na formação de nomes de plantas herbáceas), emreferência à pelugem que cobre as suas folhas.

Linha 21. Como se indicou antes, Sancibrao é freguesia (hoje com aadvocação de São João) do concelho de Melide (e também um doslugares que a constituem).

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