estudos linguísticos medievais em portugal

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umanidades Revista Portuguesa de H Est udos Linguíst icos VOL. 16-1 ANO 2012 UNIVERSIDADE CATóLICA PORTUGUESA Faculdade de Filosofia de Braga

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umanidadesRevista Portuguesa deHEstudosLinguísticos

VOL. 16-1ANO 2012Universidade CatóliCa PortUgUesaFaculdade de Filosofia de Braga

DIRECTOR MigUel gonÇalves

SECRETÁRIOS José CÂndido de oliveira Martins; ana PaUla Pinto

CONSELHO DE REDACÇÃO alFredo dinis; aMadeU torres (†); ana PaUla Pinto; antónio Melo; aUgUsto soares da silva; JoÃo aMadeU silva; José CÂndido de oliveira Martins; José gaMa; lUÍs da silva Pereira; ManUel losa; Maria José Ferreira loPes; MÁrio garCia e MigUel gonCalves

COMISSÃO CIENTÍFICA António mArtins de ArAújo, Universidade Federal do rio de Janeiro; clArindA Azevedo mAiA, Universidade de CoiMBra; dieter messner, Universidade de salzBUrg; dirk geerAerts, Universidade de leUven; enrique bernárdez, Universidade CoMPlUtense de Madrid; evAnildo bechArA, Universidade do estado do rio de Janeiro; horácio rolim de freitAs, Universidade estadUal do rio de Janeiro; isAbel hub fAriA, Universidade de lisBoa; joão mAlAcA cAsteleiro, Universidade de lisBoa; jorge morAis bArbosA, Universidade de CoiMBra; josé luis cifuentes honrubiA, Universidade de aliCante; leodegário A. Azevedo filho (†), aCadeMia Brasileira de Filologia; mário vilelA, Universidade do Porto; milton m. Azevedo, Universidade da CaliFórnia, Berkeley; nicole delbecque, Universidade de leUven; oswAld ducrot, ehess - Paris; per AAge brAndt, Universidade de aarhUs; rAmón AlmelA pérez, Universidade de MUrCia; ronAld w. lAngAcker, Universidade de CaliFórnia, san diego; toru mAruyAmA, Universidade de nanzan, naggva

PROPRIEDADE aletheia − associação Científica e CulturalDISTRIBUIÇÃO FaCUldade de FilosoFia de BragaE VENDAS Universidade CatóliCa PortUgUesa PraÇa da FaCUldade, 1 4710‑297 Braga TEL. 253 200 080 • FAX 253 208 081 e‑Mail: [email protected] httP: //www.rphumanidades.com httP: //www.publicacoesfacfil.pt

ASSINATURA assinatUra Por FasCÍCUlo: PortUgal: € 12,5 eUroPa: € 15 oUtros Paises: € 17,5

assinatUra Por volUMe (FasC. 1 + FasC. 2): PortUgal: € 22 eUroPa: € 26 oUtros PaÍses: € 30

ISSN 0874‑0321

DEPÓSITO LEGAL 119141/97

TIRAGEM 500 EXEMPLARES

CAPA roMÃo FigUeiredo

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO graFiCaMares, lda. r. ParqUe indUstrial Monte raBadas, 10 4720-608 Prozelo - aMares

PATROCÍNIOS FUndaÇÃo Para a CiÊnCia e a teCnologia aPoio do PrograMa oPeraCional CiÊnCia teCnologia, inovaÇÃo do qUadro CoMUnitÁrio de aPoio iii

O CONTEÚDO DOS ARTIGOS É DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES

umanidadesRevista Portuguesa deHEstudosLinguísticos

Estudos linguísticos medievaisem Portugal

GONÇALO FERNANDESUTAD / [email protected]

abstract

The prevailing manuscripts in the funds of the monasteries of Santa Cruz de Coimbra (Order of Regular Canons of St. Augustine) and Alcobaça (Cistercian Order) show that in Middle Ages in Portugal were studied the modern grammatici juniori, such as Alexander of Villedieu (c. 1170 - c. 1250), Eberhardus Bethuniensis (? - c. 1212), Hugutio Pisanus (1130 / 1140-1210), Papias Vocabulista of Lombardy (d. 1050) and Isidore of Seville (c. 560-636), and the previous grammatici antiqui, mainly Elius Donatus (d. mid 4th century) and Priscianus Caesariensis (d. 500).However, there are two unpublished medieval Portuguese manuscripts, both considered anonymous until now: the Reglas pera enformarmos os menỹos en latin [Rules for us to inform the boys in Latin], a fourteenth century handwritten copy from, probably, the monastery of Alcobaça, which we can find in Bodleian Library of Oxford University (Digby 26: ff. 76r-82v); and the Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis [Here begin the Noteworthy things he made for everyone], a 1427 handwritten copy by the Spaniard Cistercian friar Juan Rodríguez de Caracena from the monastery of Alcobaça, which is preserved in the Biblioteca Nacional de Portugal, in Lisbon (Cod. Alc. 79: ff. 5r-93v).Thus, in this paper we intend to demonstrate that these manuscripts are both pioneering texts in Linguistic Historiography and in Latin teaching in the Late Middle Ages in Portugal by ‘Portuguese’ scholars.

keywords : Late Middle Ages, Linguistic Historiography, Monastery of Alcobaça, Nota- bilia, Reglas pera enformarmos os menỹos en latin,

1. Introdução

A investigação linguística sobre a Idade Média (476-1453) em Portugal é ainda bastante reduzida, em virtude, sobretudo, da dificuldade de acesso às fontes manuscritas, mas também porque continua a ser um campo de estudos bastante negligenciado (Bursill-Hall 1977: 3), especialmente pela linguística

revista Portuguesa de humanidades | estudos linguísticos, 16‑1 (2012), 123-136

revista Portuguesa de humanidades | estudos linguísticos124

sincrónica, que prepondera no panorama científico em Portugal. Contudo, no território que viria a constituir Portugal,1 houve uma considerável atividade pedagógica a partir das igrejas paroquiais, das sés catedrais, das colegiadas e dos mosteiros das ordens religiosas (Carvalho 1986: 16),2 sendo que as mais importantes foram os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho (Sacer et Apostolicus Ordo Canonicorum Regularium Sancti Augustini), que fundaram o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra nos anos de 1131-1132, e os Monges de Cister (Ordo Cisterciensis), que fundaram o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça ou Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça em 1153.

Quer nas escolas catedrais quer nos mosteiros, além da formação estri-tamente religiosa, estudavam-se as sete artes liberais, divididas em trivium (gramática, retórica e dialética/lógica) e quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). Contudo, não há prova evidente de que todas as artes liberais tenham sido estudadas concomitantemente em Portugal, sendo a gramática a única disciplina universalmente ensinada (Saraiva 1950: 90). O termo gramática significava, contudo, (ensino do) Latim “and many people expressed the view that grammatical regulation of a vernacular dialect was a difficult if not impossible venture” (Percival 1975: 247-248). Černý (1998: 76-77) apresenta duas razões fundamentais para o aumento da importância do Latim durante a Idade Média: era a língua litúrgica da Igreja ocidental e em que estava escrita a Patrística. Por seu turno, Bursill-Hall (1972: 16) aponta uma 3.ª razão: era a língua franca de comunicação internacional.

Na Idade Média em Portugal estudaram-se quer os grammatici juniori, como Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Papias Vocabulista da Lombardia (fl. 1050), Petrus Helias (c. 1100 - post 1166), Alexandre de Villedieu (c. 1170 - c. 1250), Evrard de Béthune (? - c. 1212), Uguccione da Pisa (1130 / 1140-1210), Robert kilwardby (1215-1279) e Giovanni Balbi de Génova (fl. 1286-1298), quer os gramáticos latinos tardios ou grammatici antiqui, como Élio Donato (fl. séc. IV) e Prisciano da Cesareia (fl. séc. V) (Torres 1998: 45-48, 105-107). Há, contudo, dois manuscritos de autores “portugueses”, um em Oxford e outro na Biblioteca Nacional de Portugal, que merecem ser conhecidos, não só pelos conceitos linguísticos veiculados mas também pelos princípios pedagógico-

1 O Tratado de Zamora, entre Portugal e Castela, que reconhece Portugal como Estado independente, foi assinado em 5 de outubro de 1143, por D. Afonso I de Portugal (1109-1185), mais conhecido por D. Afonso Henriques, e D. Afonso VII (1105-1157), Rei de Leão e Castela.

2 O P.e Avelino de Jesus da Costa aponta o ano de 1072 para a fundação da Escola Bracarense e de 1080 para a Escola Conimbricense (Costa 1997: 312-319).

estudos linguísticos medievais em Portugal 125

-didáticos aí patentes. Trata-se das Reglas pera enformarmos os menỹos en latin e dos Notabilia gramaticais alcobacenses.

2. Reglas pera enformarmos os menỹos en latin

As Reglas pera enformarmos os menỹos en latin são um texto anónimo com 7 fólios colocados entre o 76 recto e o 82 verso do manuscrito Digby 26, oferecido à Bodleian Library em Oxford, em 1634, por Sir Kenelm Digby (1603-1665), juntamente com toda a sua coleção de 236 manuscritos. Trata-se de um membranáceo in-8o, com 142 fólios, mede 12,3 × 17,3 cm e a mancha gráfica tem 10,0 × 13,5 cm. O manuscrito Digby 26 tem marcas de 9 mãos diferentes, 4 portuguesas e 5 inglesas. As quatro mãos portuguesas são anónimas e incapazes de nos dar qualquer informação adicional (Thomson 1979: 268). Particularmente importante para a datação do manuscrito são os paratextos e notas manuscritas das mãos inglesas, todas do século XV, de Wymunde Stonewell (fls. 3r, 5r-v, 6v, 62v, 63r-v, 64v), Thomas Wodehowse (fls. 3r, 4v, 137r-v, 138r-v, 139r-v, 140r-v), Richard Conesborugh (fls. 3r, 64v, 138r), Davyd Breknoke (fls. 6v, 137v) e Thomas Jolyffe (fls. 4r, 84v, 85r, 137r, 138r-v, 139v, 140r-v) (Thomson 1979: 268-269).

Contudo, há uma referência muito importante a Thomas Chapleyn, que era um monge cisterciense da Abadia de Rewley, em Oxford, tomou todas as ordens sagradas em 20 de novembro de 1417 (Emden 1957: I, 388) e a quem Thomas Jolyffe comprou o manuscrito: “Iste liber constat M[agister] T[homas] Iolyff quem M[agister] T[homas] emit ab exsequtoribus M[agister] Chapleyn cuius anime propicietur Deus. Amen.” (Digby 26: 4 r). Há ainda uma menção aos reis Richard II de Inglaterra (1367-1400)3 e Duarte I de Portugal (1391-1438),4 filho do rei D. João I (1358-1433) e da rainha D. Philippa of Lancaster (1359-1415), irmã do rei Henry IV (1367–1413), que depôs Richard II em 1399. Estas alusões aventam os limites temporais compreendidos entre 1377 (coroação do rei Richard II) e 1438 (morte do rei D. Duarte).

Com efeito, estamos convencidos de que o manuscrito Digby 26 foi escrito no último quartel do século XIV no Mosteiro de Alcobaça, do qual foi levada uma cópia para Inglaterra ainda nos finais do século XIV ou, mais provavelmente, na primeira metade do século XV, tendo possivelmente como primeiro possuidor

3 “Ricardus Dei gracia rex Anglie et Francie dominus Hibernie” (Digby 26: 6r).4 “Edwardus Dei gracia rex Portugalie et dominus Algarbie salut” (Digby 26: 6r).

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em Inglaterra o monge cisterciense Thomas Chapleyn, que, depois passou para as mãos dos professores de gramática, em meados do século XV, pela mão de Thomas Jolyffe. Depois disso, o manuscrito foi possuído pelo matemático e bibliófilo Thomas Allen (1542-1632), que o vendeu, em 1632, a Sir Kenelm Digby (Fernandes 2010, 2012 e 2012).

As Reglas pera enformarmos os menỹos en latin são um texto precursor na linguisticografia latino-portuguesa, podendo ser caraterizado como um manual para o ensino elementar do Latim, escrito em português, com as regras extraídas maioritariamente do Doctrinale de Alexandre de Villa-Dei. Não demonstram qualquer influência especulativa dos gramáticos modistas, com mais interesse na correta construção da frase e um cariz fortemente didático, para os estudantes dos rudimentos gramaticais, simulando o ato pedagógico e a práxis letiva, com a colocação das reglas em verso, para facilitar a sua memorização.

Em síntese, apresenta-nos as seguintes reglas:

[Regla dos casos] (76r)

Como se rege o nominativo do verbo (76r)

Regla dos nomes (76r)

Como se semela o ageytiuo e o sustãtiuo (76r)

Como se o relatiuo e o antecedens deue asemelhar (76r)

Regla do verbo com o nominativo (76r)

Como se entende entõ per esta regla ena pessoa do uerbo (76v)

Qual é o uerbo persoal e qual é enpesoal (76v)

[Verbo acusativo] (76v)

Regla de opus est (76v)

[Participio passado] (76v)

[Regla do conparativo] (76v)

Regla do superlatiuo (76v)

De regimine ex ui excellencie <do> genitivo (77r)

Como se rege o genitiuo ex ui possessionis (77v)

Como se rege o genitiuo ex ui exellencie (77v)

Como todo sobrenome domẽ é genitiuo (77v)

Regla de interest et refert (77v)

Como se rege o datiuo (78r)

Todos estes uerbos se querem cõ datiuo (78r)

Como se rege o acusatiuo do uerbo (78r)

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Como se construe o gerũdiuo (78r)

Das proposições (78v)

Regla que rege a proposiçõ (78v)

Das proposições (78v)

Dos participios e dos gerundiuos cũ acusatiuo e cũ ablatiuo (78v)

Da deferẽça antre os supĩos e os gerundiuos (79r)

Como se rege o uocativo (79r)

Do ablatiuo (79r)

Responde d’egeo eges (79v)

[Dos ablatiuos absolutos] (79v)

Dos uerbos uocativos (79v)

Comho sabhas pregũtar e responder destes iiii.ro verbos (80r)

Dos iiii nomees apellatiuus (80v)

Apellatiuos (80v)

Do nomen primitiuo e deriuatiuo (80v)

Como se declina o nomen (80v)

Como sabhas respõder e preguntar da conparaçon (81r)

Regla pera saber declinar (81r)

Como sabhas declinar os patronimicos e os gregos (81v)

[Coniugaciones uerborum] (82r)

3. Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis

Os Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis, provavelmente o manus-crito gramatical mais importante de toda a Idade Média em Portugal, são uma cópia manuscrita de 1427, oriunda do mosteiro de Alcobaça e conservada na Biblioteca Nacional de Portugal (cód. Alc. 79), em Lisboa. Ainda não existe uma análise paleográfico-linguística completa dos seus 89 fólios (ff. 5r-93v), trabalho que está a ser levado a cabo por uma equipa de investigadores do Centro de Estudos em Letras, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real. Os fólios do códice Alc. 79 são em papel e medem 212 × 150 mm, a mancha gráfica varia, em altura, entre 155 e 160 mm e, em largura, entre 95 e 100 mm sensivelmente, e a encadernação tem 233 × 155 mm. Trata-se aparentemente de uma cópia, pois parecem existir marcas de, pelo menos, dois copistas diferentes.

Até agora pensávamos tratar-se de um documento anónimo, mas a análise do cólofon clarificou a sua autoria, isto é, do monge cisterciense espanhol

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alcobacense Juan Rodríguez de Caracena, filho de Mendo Rodríguez, e natural da vila de Caracena, que pertencia à Diocese de Sigüenza do Reino de Castela 5 (Rodríguez de Caracena 1427: 93v):

finito libro redantur grates Christo amem. finitus fuit / iste liber in sexta feria in primo die mensis setẽ - / bris ano milleº [millesimo] iiiiº [quatrocen-tesimo] xxº [vigesimo] viiº [septimo] anativitate Christii quis / futatus fuerit in pattibulo Sancte Barbare suspendatur 6 / Et Jsta notabilia sunt Johannis Roderici de caracena / filius Melendi rrodrici diocis ciguncie hoc est Jn rre- / gno castelle proprie aragonjam

Johannes / Rroderici 7

Thomas Amos (1988: 116), contudo, referiu que o autor teria sido Melchior Mederis e Rodríguez de Caracena apenas o seu proprietário. Contudo, a análise de Amos está claramente errada, uma vez que a sua conclusão parte de um equívoco na transcrição paleográfica, ao ler “melcor mederis” no fólio 90r, quando, na realidade, o autor estava a descrever o verbo depoente “medeor, mederis” (Rodríguez de Caracena 1427: 90r).

Os Notabilia foram redigidos em Latim para ensinar Latim aos estudantes do mosteiro de Alcobaça e o seu autor teve a preocupação de ir explicitando em “romancio” os vários exemplos. Um outro aspeto importante é o facto de o autor se dirigir ao estudante maioritariamente na segunda pessoa do singular, com o verbo notare e debere, na forma do presente ou futuro do indicativo e

5 Para Juan Rodríguez de Caracena, a Diocese de Sigüenza deveria pertencer ao Reino de Aragão e não ao reino de Castela, a quem foi atribuída, em 1127, depois das guerras internas entre as coroas de Castela (D. Afonso VII de Castela [1105-1157)]) e de Aragão (D. Afonso I de Aragão [c. 1073-1134]). Atualmente a cidade de Sigüenza pertence à província de Guadalajara, da comunidade autónoma de Castilla-La Mancha.

6 Gostaríamos de prestar uma sentida homenagem e agradecer publicamente, ainda que postumamente, ao Mestre Prof. Doutor Amadeu Torres (1924-2012), pela sua prestimosa ajuda na análise paleográfico-linguística e na interpretação da oração “quis futatus fuerit in pattibulo Sancte Barbare suspendatur”. Sem a sua sabedoria, altruísmo e amizade, possivelmente ainda hoje pensaríamos tratar-se do local onde os Notabilia teriam sido escrito…

7 Tradução nossa: “terminado o livro sejam dadas graças a Cristo. Amem. Este livro foi terminado na sexta-feira no primeiro dia do mês de setembro no ano 1427 desde o nascimento de Cristo. Quem se apoderar [dele] seja enforcado no patíbulo de Santa Bárbara. E estes Notabilia são de Juan Rodríguez de Caracena filho de Mendo Rodríguez da diocese de Sigüenza em que está neste reino de Castelo propriamente de Aragão. Juan Rodríguez”.

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oração completiva substantiva (debes notare quod, notabis quod / quomodo), imperativo (nota quod) e mesmo com o gerundivo (est notandum quod), indicando a obrigatoriedade de ser tido em conta ou anotado pelo estudante e, tal como nas Reglas, uma intenção didática e um tom de oralidade.

Embora ainda estejamos numa fase incipiente do seu estudo, parece que o autor dos Notabilia sofreu influência dos De re grammatica Notabilia do italiano Giovanni da Soncino (? - c. 1363), o introdutor do modismo na Universidade de Bolonha, de dois gramáticos/filósofos especulativos de Paris, Robert de Kilwardby (1215-1279) e Petrus Helias (c. 1100 - post 1166), e da Grammatica Proverbiandi espanhola (Calvo Fernández 1995 e 2000).

Os Notabilia estão divididos em 31 capítulos, que analisam questões de morfologia, como os nomes verbais terminados em –or e –bilis, a formação dos verbos, os pretéritos, gerúndios e particípios, de sintaxe, como o ablativo absoluto, o nominativo, figuras como a prolepse e a sinédoque, e temas de natureza especulativa, que hoje classificaríamos como semânticos, como a conceção das pessoas e do género, por exemplo. Em síntese, Rodríguez de Caracena apresenta os seguintes capítulos:

De nominibus uerbalibus masculinis in or (5v)De nominibus uerbalibus terminatis in bilis (7r)Sequitur de gerundijs et primo de primo (10v)Sequitur de participijs (13r)De participio preteriti temporis (14r)De participio uerbi impersonalis (15r)De participio futuri temporis actiue uocis (16r)De isto romancio de comer et de beuer (16v)De isto romancio por amar (18r)De participio pro ut ponitur absolute (19r)Sequitur de comparacone (20v)Sequitur de superlatiuo (25r)De defectu superlatiui (27r)De formacione uerborum (29r)De uerbis neutris passiuis (33r)De uerbis neutris passiuis [sic] (34v)Sequitur de uerbis communibus (36r)Sequitur de uerbis defectiuis (37r)Sequitur de regimine (38v)Sequitur de substantiuis et uocatiuis (44r)De uerbis uocatiuis <Sequitum> (46r)

revista Portuguesa de humanidades | estudos linguísticos130

De absolucione nominatiui (48v)Sequitur de figuris primo de figura aposicionis (50v)De figuracio en oracionis (53v)De concepcione personarum (56r)De concepcione generum (59r)De prolensis figura (64r)De sinodochica figura (69r)De relacione explicita (77r)De materia participiorum (83v)

Nota de medeor mederis notabile (90r)

3. Conclusão

Os manuscritos descritos sucintamente neste artigo, as Reglas pera enformarmos os menỹos en latin e os Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis, são dois dos mais importantes documentos medievais portugueses para a análise linguística da época e o ensino-aprendizagem do latim. Ambos são de origem portuguesa, ainda que o primeiro ainda permaneça anónimo, mas há uma forte probabilidade de ter sido escrito no mosteiro cisterciense de Alcobaça, como o segundo.

As Reglas foram escritas no século XIV, em português, com a apresen-tação das regras e dos exemplos em Latim. O seu maior mérito é o facto de, pela primeira vez na história portuguesa, as Reglas utilizarem toda a metalinguagem latina em português. Isto é, de facto, notável, uma vez que a primeira gramática latina escrita em português só seria publicada mais de 200 anos mais tarde, particularmente em 1610, a Arte de Grammatica pera em breve saber Latim, da autoria de Pedro Sánchez (? - 1635), primo do gramático espanhol Francisco Sánchez de las Brozas (1523-1600). Contudo, as Reglas não demonstram qualquer influência especulativa e o seu objetivo é a correta construção da frase. Fundamentam-se nas regras do Doctrinale de Alexandre de Villedieu (c. 1170 - c. 1250) e têm um cariz didático, com a colocação das reglas em verso, para facilitar a sua memorização, e dirigindo-se ao aluno maioritariamente na segunda pessoa, simulando, assim, o ato pedagógico.

O manuscrito Hic incipiunt notabilia que fecit cunctis foi escrito em 1427 por um monge espanhol cisterciense do mosteiro de Alcobaça, Juan Rodríguez de Caracena. Devido à sua complexidade e extensão (89 fólios), trata-se, efeti-vamente, da mais importante obra linguística medieval portuguesa. As suas fontes principais já detetadas são dois gramáticos / filósofos especulativos de

estudos linguísticos medievais em Portugal 131

Paris, Robert de Kilwardby (1215-1279) e Petrus Helias (c. 1100 - post 1166), do frade dominicano Giovanni Balbi da Genova (fl. 1286) e de Alexandre de Villedieu (c. 1170 - c. 1250). Contudo, parece haver uma similaridade muito acentuada com os De re grammatica Notabilia do italiano Giovanni da Soncino (? – c. 1363), o introdutor do modismo na Universidade de Bolonha, e com a Grammatica Proverbiandi espanhola. Rodríguez de Caracena teve também uma forte preocupação didática, com a apresentação dos exemplos em “romancio” e o tratamento do estudante maioritariamente na segunda pessoa do singular, simulando também a práxis letiva.

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