stanislavski - a criação de um papel

158
1\' DO AUTOR A construção da personagem, Rio de Janeiro,' Civilização Brasileira, .1998. " . A preparação do ator, Rio de janeiró.iCivilização Brasileira, 1998. Minha vida na arte, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993. Constantin Stanislavski Prefácio de Robert Letals .Traduçãó de . Pontes de Paula Lima- 7'.! edição º CIVILIZA.ÇÃO BRASIUÚHi\ iiiiiiiiiiiiiii Rió de Janeiro 2000

Upload: gabriel-couto

Post on 21-Dec-2015

231 views

Category:

Documents


9 download

DESCRIPTION

Livro sobre a criação de um papel de Stanislavski

TRANSCRIPT

  • 1\'

    DO AUTORA construo da personagem, Rio de Janeiro,' Civilizao

    Brasileira, .1998. " .A preparao do ator, Rio de janeir.iCivilizao Brasileira,

    1998.Minha vida na arte, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1993.

    Constantin Stanislavski

    Prefcio de

    Robert Letals

    .Tradu de

    . Pontes de Paula Lima-

    7'.! edio

    CIVILIZA.O BRASIUHi\iiiiiiiiiiiiiiiRi de Janeiro

    2000

  • COPYRIGHT 1998 Constantin Samslavski

    CAPAEvdyn Grumacb

    PROJETO GRf'lcOEvelyn Grumach e Joo de Souza Leite

    PREPARAO DEORIGINAISFernanda Abreu

    EDrrOf{AO ELETR6NlCAArt Line

    Sumrio

    PREFAcio 7NOTA DA TRADUTORA NORTE-AMERICANA 11

    oP-BRASIL.CATALOGA()..NA-FONffiSINDICATONAOONAL DEEDITORESDEUVROS, RJ

    S789c7' ed,

    99-0285

    Stanislavski, Constantn, 1863-1938A criao de um papel I Constanrin Stanislavski; prefcio

    de Robert Lewis; traduo de POntes de Paula"Lima. - 7' ed.- Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.

    288p .

    Traduo de: Creatng a roleInclui apndicesISBN 85-200 -0267-6

    1. Representao teatral. 2. Atores. 3. Caracterizaoteatral. I. Ttulo.

    eco - 792.02C])U-792

    PRIMEIRA PARTE

    A desgraa de ter esprito, de Griboyedov lS

    CApITULO "1

    O perodo de estudo 19PRIMEIRO CONTATO COM O PAPEL 21

    " ANLISE 26o ESTUDO D~ CIRCUNSTNOAS EXTERNAS 30DAR VIDA S CIRCUNSTNCIAS EXTERNAS ;36 .I} CRIAO "DE CIHCUNSTNCIAS INTERIORES 43AVALIAO DOS FATOS S2

    Todos os direitos reservados, Proibida a reproduo, armazenamento outransmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prviaautorizao por escrito.

    Direitos "desta edio adquiridos pelaEDITORA CrvIuZAO BRASILEIRAum selo da -, ""' . .DISTRIBUIDOJ,tA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S.A. .Rua Argentina 171, So Cristvo, Rio de Janei.x:o,RJ, Brasil;' 20921-380Telfone.(21) 585-2000 "

    PEDIDOS PELO REEMBOLsO POSTALCaixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

    Impresso no BraSil2000

    CApiTULOU

    O perodo de'experillcia emocional 63IMPULSOS INTERIORES E AO INTERIOR 66OBJETIVOS CRIADORES 72A PARTITURA DE UM PAPEL 77o TOM INTERIOR 84 "o SUPEROBJETIVO E A AO DIR.ETA 99o SUPERCONSCIENTE 103

    CAPITULO '"li

    O perodo da encarnao fsica 107

  • A C R I A O DEU M .p A P E L

    No creiam que s esteja salientado a o "sentimento". Ao con-trrio do que Jazem, alguns soi-disant praticantes modernos daquiloque chamam de "O mtodo" (arrogncia que, de modo algum seencontra nos escritos do prprio Stanislavski), no superficial aateno dispensada beleza da linguagem, leveza do verso, ao rit-mo, imaginao a todos os meios de expresso teatrais e artsticos.Stanislavski no ignorava que, embora sendo verdade que a nossainteno "de no perturbar os que esto l dentro" nos faz baternuma porta'com timidez, tambm verdade que uma batida delicadae cuidadosa na port produz em ns uma sensao de timidez. Ele .acentua, constantemente, a escolha das "aes fsicas", processo que

    .. sempre entrelaa com suas "aes internas"; enquanto elabor umpapel. A pergunta que sempre faz, visando obter a fidelidade do papelem relao a si proprio, : "Que que eu faria se estivesse na situaode fulano (a personagem)?" Sim, sempre asituao da personagem: avida dela, na cidade dela, no tempo dela, e assim por diante; n~ aminha vida, na minha cidade, no meu tempo, como s vezes nos pare-ce estarem pensando os modernos "metodistas".

    No terceiro captulo, Stanislavski fala claramente'da materializa-o fsica do papel. A encontramos trechos como: "recursos sutis de - .expresso dos olhos e da face"; "use a voz, os sons, as palavras, asentonaes e a fala". verdade que ele afirma, com toda razo, que"a voz e a fala devem depender totalmente dos sentimentos interiores,pois so a sua expresso direta, exata e subserviente"; Mas tambm 'conhecia a importncia da voz, da.dico, do movimento etc. Caso.ainda fosse preciso, eis aqui a prova que refuta o argumento de que omtodo de Stanislavski leva, inevitavelmente, a urna dico desleixa-da e um comportamento desmazelador -t'Todo organismo vivo," diz .ele, "tem tambm uma forma exterior, 'um corpo fsico; que usamaquilagem, tem uma voz tpica quanto maneira de falar e ento-nao, um modo tpico de andar, gestos, modos etc. ". Que grande gol-pe desferido nos atores complacentes, sempre ocupados em espre-mer~ pouquinho de sentimento particular, sem ligar a mnima p~raa aparncia, ou para ~ fato de serem ou no ouvidos etc. Que isto res-

    8

    ;.

    PREFCIO

    ponda de uma vez por todas aos que, errnea ou deliberadamente,aceitameste bando marginal delun ticos como expoentes das teoriasde um homem que, 'durante meio sculo, dirigiu de tudo com distin-o, desde peas realistas at peras, em todos os estilos. Nunca serbastante repetir que o mtodo de Stanslavski no um estilo nem seaplica a um estilo particular de teatro, mas , isso sim, a tentativa deencontrar uma atitude lgica em relao ao treinamento de atorespara qualquer pea, e 001 modo artstico de preparao para qualquerpapel.

    A segunda e a terceira partes de A.criao de um papel revertemao estilo usado em A preparao do ator e A construo da persona-gemi, Temos aquela sala de aula fictcia, com Tortsov, o professor,instruindo um grupo'de estudantes. Esta forma de exposio podeparecer UJ:n pouco obscura e menos direta e cristalina do que o modomais direto da primeira parte. Mas o fato que nos d a oportunida-de de ver Stanislavski experimentar O seu mtodo de ensaio em doisoutros papis: o de Otelo e o de Khlestakov em O inspetor geral. Maisuma vez, ele aborda esses papis "de dentro" e "de fora", simultanea-mente. Descobre, de fato, que encontrar averdade fsica do papel melhor para nutrir sua verdade interior do que [orar .os sentimentos.Ele persegue a personagem utilizando justificao das aes fsicasdo papel, colocando-se nas circunstncias de personagem por meio do .famoso' Se-Mgico, e decompondo a linha interior do papel em obje-tivos lgicos. Em outras palavras, urna anlise interior e exterior deleprprio, como ser humano, nas circunstncias da vida do seu papel,sendo os seus prprios sentimentos escolhidos sempre de modo quesejam anlogos aos sentimentos contidos no papel. 'Isso promove a"representao 'verdadeira da vida do papel na pea".

    Particularmente interessante para os drerores , no apndice,urna smula de vinte itens de um plano de ensaio, de~de a primeira lei-tura at a caracterizao final. Certas sugestes (como, por exemplo,a de perguntar aos atores em que ponto do palco eles gostariam de

    I 1 Ambos publicados por esta editora,

    9

  • . ~~:- .

    A CRIAO DE UM PAPEL

    estar em dados momentos) so privilgio 'de diretores que po ssam dis-por de teatros permanentes. Noshow-business, isto ., com produesisoladas, uma de cada vez, reunindo sempre novos grupos de atores,todos eles com anteced entes diversos, dispondo apenas de tempo limi-tado para os ensaios, bem possvel que o diretor queira abrir modessa facilidade. 'Atravs das trs partes deste livro, obtemos o retratode um verdadeiro artista em seu trabalho, fracassando s vezes, massem desespero, e sempre em busca de respostas verdadeiras. (Ele re-formulou seu papel de Satin em Ralt; de Gorki, depois de t-lo repre-sentado durante dezoito anosl) Os admiradores de A preparao doator e de A construo da personagem apreciaro muitssimo A cria-o de um papel. Aqueles para quem a leitura deste Ivro constitui seuprimeiro contato com os escritos de Stanislavski desejaro examinaros outros dois. Um estudo minucioso dos trs livros revelar o impor-tantssimo ponto de como aplicar na preparao dos papis a tcnicaestudada em aula. '

    Temos aqui, portanto, mais as palavras do mestre que 'as de" seusdiscpulos. um livro para todos os profissionais do teatro, bemcomo para seus estudantes. Quer concordando, quer discordando, notodo ou em algumas partes, impossvel no nos sentirmos estimula-dos e enriquecidos por ele.

    RBERT LEWIS1960

    1 Ttulo da encenao brasileira da pea de Gorki, tambm traduzida como Bas-Fonds e, em ingls, Lower Deptbs. (N. do T .)

    10

    Nota da traduto,ra norte-americ:ana

    A criao de um papel o terceiro volume da trilogia planejada porSi:anislavski sobre o treinamento d ator. Os dois primeiros, A prepa-rao do ator e A construo da personagem, embora publicados comUlU intervalo de treze ,anos, visavam a descrever o regime do ator jo-vem, mais ou menos e6 um perodo do seu desenvolvimento: enquan-to treinava suas qualidades interiores de memria afetiva, imaginaoe concentrao, ele ia desenvolvendo tamb m-seus recursos fsicos,com um rigoroso trabalho em sua voz e seu corpo, justamente os ins-trumentos capazes de dar forma vvida e convincentemente concreta

    'quilo que a vida interior pudesse desenvolver. Agora, passados dozeanos, podemos publicar O projetado terceiro volume. Esta fase doensino de Stanislavski que, segundo ele pensava, devia ser atingidapelo ator aps o domnio das duas outras, a preparao de papisespecficos, a partir da primeira leitura da pea e do desenvolvimento

    ~aprimeiracena. O ttulo -em-ingls iCreating a Role) aproxima-se omximo possvel do ttulo russo, bem mais longo, e que literalmentetradUzido seriar O trabalho de um ator num papel.

    Durante 1929 e 1930, quando eu trabalhava com Stanislavski naFrana e na Alemanha na elaborao de A preparao do ator e Aconstruo da personagem (para os quais ele tinha um contrato nosEstados Unidos), ele me falou de sua idia de centralizar no Otelo, deShakespeare, todos os seus trs livros sobre a tcnica da atuao.Sentia que essa pea; que durante longo tempo o preocupara, seriaacessvel ao estudante de muitas nacionalidades, principalmente os delngua inglesa. De fato, justamente naquele perodo, na Frana, ele es~tava mandando aMoscou sugestes para a produo.de Otelo, cuja

    11I

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    direo tivera de abandonar por causa da grave doena que o atacouem 1928. Essas sugestes so a base' de Stanislavski dirige Otelo,caderno de notas com as suas instrues publicadas paralelamente aotexto da pea, volume de enorme valor na demonstrao de como essegrande diretor trabalhava uma pea: Mas neste livro vemos como seuespritO tambm se voltava para Otelo como exerccio por meio doqual os prprios atores poderiam entrar em seus papis, para criarpersonagens dotadas de veracidade e de uma memorvel vividez.

    Stanislavski morreu em agosto de 1938: Somente A preparao doator tinha sido publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra (1936), eainda no fora publicado na Unio Sovitica. Ele .corr igira todo Omaterial de A construo da personagem; mas a Segunda GuerraMundial fez adiar sua publicao. Agora, com o lanamento oficial emrusso de todos os manuscritos de Stanislavski, verificamos que ele defato redigiu trs verses do terceiro livro. A primeira fora feita muitosanos antes (1916-1920),. quando ainda no inventara a forma semific-tcia do professor e seus alunos, utilizada em A preparao do ator eAconstruo da personagem, As outras duas situam-se na' dcada de1930, depois de ter aprontado para publicao A preparao do ator ecompletado o material que se intitulouA construo da personagem. . .

    A primeira verso apresentou problemas. Trata, ~specificamente,de uma clssica comdia satrica russa: A desgraa de ter espirito(tambm chamada A desgraa por excesso de espirito.cne, aps centoe cinqenta anos, ainda desconcerta os tradutores). Embora inmerosversos dessa pea se tenham incorporado lngua rpssa literria,como as frases de Shakespeare se incorporaram ao' ingls, nenhumtradutor pode, ainda, transmitir os versos espirituoso~:de Griboyedovem nenhuma lngua da Europa Ocidental. As sruaes e as ' tiradassatricas parecem mesmo escapar . compreenso de todos, a.no serdos especialistas. Entretanto, sua humanidade torna universal essacomdia, e faz, portanto, com que e1 seja uma estrutura significativapara a busca, feita por Stanislavski, dos meios capazes .de ajudar oator a aperfeioar sua arte. Para tomar esta primeira verso'de A cria-o de um papel acessvel aos atores de. lngua irigl~sa, r~corremosa

    12

    NOTA DA TRAOUTORA NORTE-AMERICANA

    pequenos cortes e fizemos breves esclarecimentos, sempre nitidarnen-. te assinalados.

    interessante notar que, em seu trabalho com A 'desgraa de teresprito, Stanislavski demonstra os mtodos que descreveu no incio deMinha vida na arte, dando nfase psicotcnica do ator, preparaodo traado interior do papel como ponto de partida. Nas outras duasverses, baseadas em Otelo e no Inspetor geral, de Gogol, percebemoscomo Stanislavski estava revendo seus mtodos, como era persistente asua busca por melhores caminhos. De fato, sua atitude para com certosproblemas mudou na fim de sua vida, e se ele, aqui, rev algumas dasprticas adotadas em desgraa de ter esprito, isso revela tanto maisexatamente o verdadeiro mtodo de Stanislavski. Publicando todas astrs verses, julga~~5'dar ao leitor a vantagem de ver Stanislavski ela-borando vrios papis; de comparar seu sensvel ajustamento ao mate-rial dado 'em trs peas diferentes; e de compreender que o objetivo detoda a sua existncia permaneceu sempre o mesmo: criar vida no palco, ,em funo daquilo que chamava de naturalismo espiritual.

    Estas trs verses foram-me enviadas, para traduzir e publicar,pelo filho de Stanislavsk, e creio que.ao prepar-las para serem usa-das por atores de lngua inglesa, cumpri mais uma vez a tarefa que mefoi confiada pelo prprio Stanislavski, de eliminar as repeties e cor-tar tudo o 'que no tivesse sentido para atores no .russos. Fizemos 'algumas leves mudanas na ordem das sees em cada verso, quan-do 'nos pareceu que Stanislavski teria feito o mesmo, se lhe fosse dadoo tempo de rever seus manuscritos. Acrescentaram-se notas do orga-'nizador da edio norte-americana fornecendo as informaes neces- .'srias, extradas de A preparab do ator e A construo da persona-gem, e proporcionando uma base que, como a sra. Popper e eu 'espe-ramos, tomar mais compensadora para. todos a leitura de A criao

    , de um papel. .

    ELIZABETH mYNOLDS HAPGOOt>NOVA YORK, i? DE jlJLHO DE 1961

    13

  • PRIMEIRA PARTE A desgraa de ter esprito,de Griboyedy

  • o estudo que se segue sobre a preparao de uin papel, focalizando acom dia clssica de rb yedov, A desgraa de ter esprito j foi sri-to entre 1916 e 1920. Constitui, prtanto, a mais antiga das explora-es de Stanislavski.je um temaque, em seus diversos aspectos, deve-ria preocup-lo por todo resto de su vida. Embora ele no tivesseptado ainda pela forma semificttia de A preparao d ator e Aconstruo da personagem, o estudioso destas obras posterioresencontrar aqui a exp si original de muitas idias que j lhe sofamiliares. Em alguns casos, essas iltias permaneceram est veisnsanos subseqentes. E~ outros sofreram uma 'sutil trnsrnutao medida que Stanislavski l:>rsse'gllia lanando sobre o problema doator a luz de sua imagina criadra, inquieta e livre.

    . .

    o COR:b:NAbOR EDITORIAL (NORTE-AMERICANO)

  • . >

    1

    III

    I

    CApfTUL I : O pcrod de.estudo

    .. .......

    . -

  • 1

    o trabalho preparatrio sobre um papel pode ser dividido em trsgrandes perodos: estud -lo, estabelecer a vida do papel e dar-lheforma.

    PRIMEIRO CONTATO COM O PAPEL

    A familiarizao com o papel constitui, por si s, um perodo prepa-ratrio. Comea com as primeirssimas impresses da primeira leitu-ra da pea. Esse momento importantssimo pode ser comparado como primeiro encontro entre um homem e Ull1a mulher, o contato inicialentre dois seresque se destinam a ser namorados, amantes ou compa-nh eiros. .

    As~rimei.rasiniPJ~..$..e~ tm um frescor virginal. So os melhoresestimu1spssfvis~pra o ctttusiasmo e o fervor artstico, duas condi-es de enorme'importncia no processo criador.. Essas primeiras impresses. so inesperadas e diretas.Muitas

    vezes, deixam no trabalho do ator uma marca permanente, So livres9.e..prem.ePitauJ:u:l.e,.px.econcei.tQ. No sendo filtradas por nenhumacrtica" passam desimpedidamente para as profundezas da alma doator; para os mananciais de sua natureza, e muitas vezes deixam ves- 'tgios inextirpveis, que permanecero como base do papel, o em-brio de uma imagem a ser formada. . . .

    As primeiras impresses so... sementes. Sejam quais fore.in. asvariaes e alteraes que o t r possa fazer medida que avana em

    21

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    seu trabalho, ele muitas vezes to .atrado pelo profundo efeito desuas primeiras impresses, que quer se apegar a seu papel, como estese desenvolve. tanta a fora, a profundidade e o poder de permann-cia dessas impresses, que o atar deve ter especial cuidado ao travarconhecimento pela primeira vez com uma pea.

    Para registrar essas primeiras impresses, preciso que os atoresestejam com uma disposio de esprito receptiva, com um estado inte-rior adequado. Precisam ter a concentrao emocional sem a qualnenhum processo criador possvel. O ator deve saber como prepararuma disposio de esprito que estimule seus sentimentos artsticos eabra sua alma. E, ainda mais, as circunstncias externas para a primei-ra leitura de uma pea devem ser devidamente estabelecidas. Temos deescolher o lugar e a hora. A' ocasio deve ser acompanhada de certacerimnia; j que vamos convidar nossa alma para a euforia, devemosestar eufricos espiritual e fisicamente.

    Qualquer tipo de preconceito constitui um dos obstculos. maisperigosos para a recepo de impresses novas e puras. Os preconcei-tos bloqueiam a alma, como a rolha no gargalo da garrafa. O precon-ceito criado pelas opinies que os outros nos impingem. No come-o, e enquanto a relao do prprio ator com a pea e o seu papel noestiver definida estabelecida em emoes ou idias concretas, elecorre o risco de ser influenciado pelas opinies alheias - sobretudopelas falsas. A opinio dos outros pode distorcer uma rela o estabe-lecida naturalmente entre as emoes do ator. e seu novo papel.Portanto, durante seu primeiro contato com uma pea, O ator deveevitar ao m ximo possvel as influncias estranhas, que poderiamcriar um preconceito e desviar suas prprias prim eir as impressesbem como sua vontade, sua mente e sua imaginao.

    Se o ator forado a buscar auxlio' para esclarecer as circunstn-cias externas e internas e as condies de vida das personagens dapea, dever, de incio, tentar responder sozinho s suas prprias per-guntas, pois s assim poder sentir quais so as perguntas que podefazer a terceiros sem violentar sua prpria relao individual com opapel. ~ ator, por enquantg, deve fechar-se em ~i~esmo, armazenar

    o PERloDO DE ESTUDO

    suas emoes, seus materiais espirituais, suas reflexessobre o papel,at que se cristalizem seus sentimentos e um senso concreto, criador,da imagem do papel. S com tempo, quando a atitude, pessoal doator para com o papel j se estabeleceu, j amadureceu, que ele podeutilizar amplamente Os conselhos e as opinies alheias, sem correr orisco de invadir sua prpria independncia artstica. O ator develembrar-se de que sua prpria opinio melhor que a de um estranho,melhor mesmo que uma opinio excelente, quando nada, porque aopinio de um outro pode apenas somar-se aos seus pensamentos,sem falar nas suas emoes.

    Como, na linguagem do ator, conhecer sinnimo de sentir, ele,na primeira leitura de uma pea, deve dar rdeas soltas s suas emo-es criadoras. Quanto mais calor afetivo tiver, quanto mais palpitan-te e viva for a emoo que possa instilar numa pea ao primeiro con-tato, tanto maior ser a atrao exercida pelas secas palavras do tex-ro sobre seus sentidos, sua vontade criadora, sua mente; sua memriaemotiva. Tanto maior ser sugestividade dessa 'primeira leitura paraa imaginao criadora de suas faculdades visuais, auditivas outras,no que se refere aimagens, quadros e evocaes Sensoriais. A imagi-Ilao do ator .adorna otexto do autor com fantasiosos desenhos ecores de sua prpria paleta invisvel. ., 'Para os-atores, importante descobrir o prisma sob 9 qual o autorencara sua' obra. Quando conseguem.fazerya leitura os transporta.No podem controlar os msculos da face, o que os leva a fazer care-tas ou mmicas, de acordo com o que est ~endo lido. No conseguemcontrolar seus 'm ovim entos, que ocorrem espontaneamente. No podem ficar quietos nolugar, vo se aproximando cada vez mai~ do

    . leitor da pea. Quanto ao leitor que apresenta a pea pela primeiravez, possvel fazer-se algumas, sugestes prticas. .

    Em primeiro lugar, no deve assumir atitude ~xcessivamentelus-. trativa, pois isso poderia impor aos atores sua prpria interpretaopessoal dos papis e, das imagens. Deve-se contentar com uma, claraexposio da idia bsica da pea; d~ linha mestra de desenvolvimentoda ao interior, com o auxlio dos.recursos tcnicos inerentes pea.

    ,2 2 ,. , 1

    23

  • A CRIAO DE : UM PAPEL

    Na primeira leitura, a pea deve ser apresentada com simplicida-de, dareza e compreenso de seus elementos.fundamentais, de suaessncia, da linha-mestra de seu desenvolvimento e do seu mrito lite-rrio. O leitor deve sugerir o ponto de partida do escritor, o pensa-mento, os sentimentos ou experincias que o fizeram escrever a pea.Nesta primeira apresentao, O leitor deve impelir ou conduzir cadaator ao 1011g da linha-mestra do desenvolvimento progressivo davida de um esprito humano na pea.

    - O leitor deve aprender com pessoas de experincia literria a irdireto ao cerne da obra, linha fundamental das emo es, Uma pes-so'a treinada em literatura, que estudou as qu ldades bsicas dasobras literrias, 'cap az de apreender instantaneamente a estruturaque levou o dramaturgo a escrever'. Esta capacidade muito til aoa~or desde que no interfira com sua prpria capacidade de penetrarna alma da pea com sua prpria viso.

    mesmo muitasorte quando o ator pode captar instantaneamen-te a pea com todo,

  • , A CRIAAo DE UM PAPEL

    ANLISE

    o segundo passo, nesse grande perodo preparatrio, o processo deanlise. Pela anlise, o ator passa a conhecer melhor o seu papel. Aanlise , tambm, um meio de famili~rizar-se com a pea toda, peloestudo das suas partes. Como num trabalho de restaurao, a anlisecalcula o todo, fazendo viver vrios dos seus segmentos. .

    A palavra "anlise" tem, geralmente, urna conotao de processointelectual. usada em pesquisas literrias, filos ficas, histricas e .outras. Mas em arte, qualquer anlise intelectual, empreendida por sis6 e como nico objetivo, ser prejudicial, pois suas qualidades mate-mticas e secas tendem a esfriar o impulso do lanartstico e do entu-siasmo criador. .

    Em arte, o sentimento que cria, e no o crebro. O papel princi-pal e a iniciativa, em arte, pertencem ao sentimentO. Aqui, o papel damente apenas auxiliai, subordinado. A anlise feita pelo artista muito diferente da que faz o estudioso ou o crtico. Se o resultado deuma anlise erudita o pensamento, o de uma anlise artstica o sen-timento. A anlise do ator sobretudo a de sentimento, e executadapelo sentiment. .

    Esse papel do conhecimento pelo sentimento, ou anlise, ainda, mais importante n processo criador, porque scom o auxlio que

    se pode penetrar no reino do subconsciente, que constitui nove dci- 'mos da vida de uma pessoa ou de uma personagem, sua parte maisvaliosa. Contrastando com os nove dcimos que, o ator utiliza pormeio de sua intuio criadora, de seu instinto artstico, de seu tinosupersensvel, s um dcimo resta para a mente. .

    Os propsitos criadores de uma ~lise so:

    1. O estudo da obra do dramaturgo;2. a 'proctira de material. espiritual ou de outro tipo, para utiliza-

    o no trabalho criador, o que quer que haja na pea, ou em nossopa pel dentro dela;

    3. a procura do mesmo tipo de material nO:.:Rrprio ator (auto-

    26

    o PERloD DE ESTUDO

    anlise). O material aqui considerado consiste de lembranas vivas,pessoais, relacionadas corn os Cinco sentidos, armazenadas na mem-ria afetiva do ator ou adquiridas por meio de estudo e preservadas emsua memria intelectual, e anlogas aos sentimentos do seu papel;

    4. a preparao na alma do ator para a concepo de emoesinconscientes;

    S. a busca de estmulos criadores que forneam impulsos de exci-tao sempre renovados, pores sempre.novas de material vivo parao esprito do papel, nos pontos que no adquiriram vida logo ao pri-meiro contato com a,pea..

    Pushkin pede aodramaturgo, e ns pedimos ao ator, que tenha"sinceridade de emoes, sentimentos que paream verdadeiros emdeterminadas circunstncias". Portanto, O objetivo da anlise deve sero de estudar detalhadamente e preparar circunstncias determinadaspara a pea ou o papel, de modo que por meio delas, numa fase ulte-

    . rior do processo de criao, as emoes do atorsejam instintivamen-te sinceras, e seus sentimentos fiis 'vida.

    Qual o ponto de partida .para uma anlise?Usemos aquela diIila parte de ns mesmos que, tanto na arte

    como na vida; ,atribuda mente, a fim de, com o seu auxlio, poder-mos apelar para..o trabalho de nossos sentimentos, e depois disso,quando nossos sentimentos chegarem ao ponto de expresso, tentar-n10S, compreender sua direo e gui-los discretamente pela verdadei-ra trilha criadora. Em Outras palavras, que a nossa criatividade intui- .tiva, inconsciente, seja .posta emao com o auxlio de um trabalhopreparatrio consciente. Por meio d_~nte,atingir o inconscien-te - ~ o lema de nossa arte e de nossa tcnica. Como usamos o cre-bro nesse processo criador? 'Rac~;;;~im: o primeiro amigo e melhor estimulante da emoo intuitiva O entusiasmo, o ardorartistico, Que seja esteyp rtanro, o primeiro recurso utilizado na an-lise. O ardor pode penetrar at no que no acessvel vista, ao som, conscincia ou mesmo mais requintada percepo artstica. Uma

    .. anlise feita por meio d entusiasmo e d ardor artstico -age como o

    27

  • ,,'

    A CRIAO DE UM PAPEL

    melhor dos meios para trazer tona, Os estmulos criadores de ~aPea e estes' por sua vez, provocam a criatividade do ator. m. edlda.

    ' , I ' ddque o ator se entusiasma, vai entendendo o pape, e a me, 1 .. a que ovai entendendo, fica ainda mais .entusiasmado. Uma COIsa puxa erefora a outra. , _ .

    O 'ardor artstico tem sua .mxima expanso no momento em quese trava conhecimento com a pea pela primeira vez. Por isso ~ue oator deve repetidamente apreciar e deliciar-se com os trechos do ,seupapel que lhe despertaram entusiasmo na prime!ra leitura, as C01:aSque lhe chamaram ateno, e s quais ele sentiu que s~as emooesreagiram desde o incio. A natureza do, tor r.eage a tudo que tem bele-za artstica, elevao, emoo, interesse, alegria. Instantaneamente,ele se deixa transportar pelos lampejos de talento d escritor, espalha-dos na superfcie ou nas profundezasda pea. Todos esses trechos tma qualidade explosiva ,que desperta o fervor artstico. _ '

    Mas o que far o 'ator com os trechos da pea que nao evoc:ramo milagre da compreenso intuitiva instantnea? Todos eles tero deser estudados, para revelaremos materiais neles cdntid?s capaz:s.deincit-lo ao ardor. Ora, corno nossas emoes so silenciosas, o unicorecurso nos voltarmos para a auxiliar e.conselheira mais prximadas emoes: a mente. Que sej~ uma desbravador~,sondando ~ peaem todas'as direes. Que seja urna pioneira, abrmdo nova~ picadaspara as nossas principais foras criadoras, intuiq,es e sen~lmentos,Que, por sua vez, nossos sentimentos procurem novos estimulantesdo entusiasmo, que instiguem a intuio a buscar e enco~trar u~nmero cada vez maior de novos materiais vivos? part~s da vld~ espi-ritual do papel, coisas que no so alcanadas por meIOS conscientes.

    Quanto mais o ator tornar detalhada, v.a~i~da,eprofunda estaanlise pela mente, maiores sero suas posslbIh,dades de e~c~.p.~rar .estmulos para seu entusiasmo, e matria espiritual para a .criativida-de inconsciente. ' . , ' ., . ' ;

    Quando procuramos um objeto perdido, o m~is ifeq~e~t~ e en-contr-lo .num lugar inesperado, O' mesmo se,aplica a criatividade.Temos de buscar por toda parte os impulsos criadores, deixando que

    28

    o PERfDO DE'ESTUDO

    nossos sentimentos, com sua intuio, escolham o que for mais ade-quado ao seu empreendimento. '

    No processo da anlise, fazem-se pesquisas, por assim dizer, emtoda a amplitude, extenso e profundidade da pea e de seus papis,suas pores individuais, as camadas que a compem, todos seus pla-nos, a comear pelos exteriores, mais evidentes, e terminando nosnveis espirituais mais profundos, mais ntimos. .Para isso, preciso .dissecar a pea e os seus papis. preciso sondar suas profundidadss,camada por camada, descer sua essncia, desmembr-la, examinarseparadamente 'cada poro, rever todas as partes que antes noforam cuidadosamente estudadas, encontrar os est mulos ao fervorcriarvo.tplanrar, por assim dizer, semente no corao do ator.

    Urna pea e seus papis tm muitos planos pelos quais vai fluindo asua vid~. Primeiro temos o plano externo dos fatos, acontecimentos,enredo, forma. Contiguamente, h o plano da situao social, subdi-vidido em classe, nacionalidade e ambiente histrico. H um plano li-terrio, com suas idias, seu estilo e outros aspectos. H um planoesttico, com as subcamadas de tudo que teatral, artstico, e tudoque se 'refira ao cenrio e produo. H o plano psicolgico da aointerior, dos sentimentos, da caracterizao interior; e o plano fsico;.com suas leis fundamenras da natureza fsica, objetivos e aes fsi-cas, caractedzao exterior. E, fnalmenre, h o 1Z.!::!!:.c:." dQ..U?t/;titJ:J.fm-~do.r.e.s...p...&4f.., que pertencem ao ator. .

    Nem todos 'esses planos tm igual importncia. Alguns deles sofundamentais .para a criao de U-!Da vida e uma alma para o papel, 'enquanto OUtTQ~ so subordinados e fornecem caracterizao e mat-ria adicional para o corpo e o esprito da Imagem a ser criada.

    Tampouco so todos 'esses planos imediatamente acessveis~., Muitos.deles tm de ser buscados um a Um. Eventualmente, todos' os

    planos se unem em nossos sentimentos criadores e em nossa apresen- 'tao, e assim nos proporcionam, alm de uma forma exteri;~ urna :configurao espiritual interior do papel e da pea, contendo tudo que , acessvel e tambm inacessvel nossa abordagem consciente.

    29

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    Os nveis conscientes de uma pea ou papel so como os nveis ecamadas de terra, areia, argila, rochas etc., que compem a crosta ter-restre. Amedida que as camadas vo se aprofundando em nossa alma,vo se torna~do cada vez mais inconscientes, e l nas profundidadesfinais, nQ mago da terra, onde se acham a lava fundida e o fogo, l sedesericadeiam paixes e instintos humanos invisveis. Esse O reino dosuperconsciente, '6 centro vitalizante e o sacrossanto Eu do ator, ohumano. no artista, a fonte secreta da inspirao. Dessas coisas no

    . ternos conscincia, porm as sentimos com todo o nosso ser.

    o ESTUDO DAS CIRCUNSTNCIAS EXTERNAS

    Assim, o fio de uma anlise tem seu p01?-to de partida na forma exte-rior da pea, no texto impresso do dramaturgo, acessvel nossaconscincia, e da prossegue at a essncia espiritual interior da pea,esse algo invisvel que o escritor inseriu em seu ' trabalho e que, emgrande parte, s acessvel ao nosso subconsciente. Assim,encaminhamo-nos da periferia para O. centro, da forma literal exterior.da pea, para a sua essncia espiritual. Dest~.n::9o, chegamos aconhecer (sentir) as circunstncias propostas pelo escritor, a fim. de;mais tarde, sentirmos (conhecermos) emoes sinceras, ou pelo menossentimentos que pareamverdadeiros. . ' ' .

    Inicio minha anlise com os exteriores da pea, e tomo o textoverbal a fim de extrair dele, em primeira mo, as circunstncias exter-nas sugeridas pelo dramaturgo. No comeo ' de minha anlise, noestou interessado em sentimentos - so intangveis e difceis de defi-nir - mas nas circunstncias, sugeridas pelo escritor, capazes de des-pertar sentimentos.

    Entre as circunstncias exteriores da vida de uma pea, o planomais fcil de estudar o dos fatos. Quando o dramaturgo criou suaobra, toda circunstncia, por menor que fosse, todo fato, era impor-tante. Cada um deles era um elo necessrio na cadeia ininterrupta da .

    30

    o PERloDO DE ESTUDO

    vida da pea. Mas estamos longe d~ apreender todos os fatos de umavez. Os fatos que realmente compreendemos, em sua essncia e ime-diatamente, gravam-se intuitivamente em nossa memria. Outros,que no sentimos logo, que no so descobertos nem corrobor dospor nossos sentimentos, continuam despercebidos, inapreciados,esquecidos, ou ficam n ar, cada um separadamente, sobrecarregandoapea. Deixam-nos confusos, e no conseguimos achar neles nenhu-ma verdade da realidade viva. Tudo isso interfere com a recepo e

    . absoro das nossas primeiras impresses da pea.. . O que se deve fazer em semelhantes casos? Como encontrar nos-so rumo por entre os fatores externos de uma pea? Nemirovitch-

    .Dantchenko props um recurso extremamente simples e inteligente.Consiste em recapitular O contedo da pea. O ator deve memorizar escrever os fatos, sua ordem de seqncia e a relao fsica, exterior,entre eles. Na fase em que travamos conhecimento com a pea, aindano somos capazes de narrar seu contedo muito melhor que nosanncios ou nos libretos resumidos, Mas m~dida que vai aumentan-do a experincia em relao pea e ao seu contedo, este mtodoajuda no s na.seleo dos fatos e em nossa orientao quanto a eles,mas tambm para chegarmos quela substncia interior, s suas inter-

    .r ela es e interdependncia.. Como exemplo, tentarei fazer isso com a pea' mais popular da

    Rssia, A desgraa de ter espirito;de Griboyedov.

    (Nota do editor norte-americano: As principais .personagens desta 'pea clssica em verso so: Famusov, rico proprietrio de terras e deservos, mas que.no pertence alta aristocracia. Tem uma grande casaem Moscou, onde se desenrola a ao da pea, na dcada de 1820. .pai de Sofia, moa cuja formao se fez custa da literatura europia,principalmente novelas sentimentais e romnticas. Gosta de ter apai-xonados e sente-se Iisonjeada com a corte que lhe faz seu amigo deinfncia, Chatski. Mas quando este se ausenta, numa viagem ao exte-rior, ela desc~bre que adr do secretrio de seu pai, Molchaln,

    : 31

  • . \

    \I;!

    " .

    A CRIAO DE UM PAPEL

    muito mais servil que a do independente Chatski. Estimula as aten-es de M lchalin. Quando se inicia a pea, eles acabam de passar anoite juntos, tocando duetos e recitando poemas. Liza a criada-confidente de' Sofia, camponesa e serva domstica. Famusov a perse-gue com suas atenes, mas ela est apaixonada pelo lacaio Petruch-ka. Molchalin, um "capacho", um homem servil, apaixonado porSofia, bajula todos que esto acima dele na escala sociakEmboraansioso por se conservar nas boas graas de Famusov, por fim insultaSofia e despedido pelo patro. um fraco e serve de realce paraChatski, homem brilhante, simptico, educado, que antes de partirpara o exterior foi quase uni irmo para.Sofia, Logo que regressa, vaiprocur-la, descobre que ela.agora cresceu e se apaixona por ela. Sofiarecebe-o friamente e Chatski fica revoltado ao ver que ela prefere a eleo insignificante Molchalin. Fica ainda mais .indignado ao constatar asuperficialidade da cultura que encontra em Mos~~u. Sente que Sofiafoi corrompida por tudo isso.' Sua mordaz denncia da sociedade deMoscou faz com que Sofia espalhe o boato de que ele enlouqueceu.No fim da pea, Chatski torna a deixar O pas. A Princesa MariaAlexeyevna, decana da famlia, o rbitro das maneiras e do espritotradicional da conservadora SOciedade moscovita. A frase final de Adesgraa de ter esprito, "Que dir Maria Alexeyevna?", ficou prover- .bial na Rssia. Skatozub um militar que Famusov favorece como 'futuro genro. muito rico, de boa famlia, e provavelmente alcanar' ,a mais alta patente no exrcito. Mas seus modos so speros e milita-res, sua .inteligncia limitada, e Sofia o despreza.) .

    Eis os fatos do primeiro ato:1. Um encontro entre Sofia e Molchaln prolongou-se por toda a .

    noite.2. 'madrugada. Eles tocam um dueto para piano e flauta no

    salo ao lado; .3. Liza, a criada, dorme. Devia estar de vigia. : . .4. Liza desperta, v que o dia est raiando, suplica aosnama"rados

    que se separem logo .

    32

    o PERfoDO DE ESTUDO

    5. Liza adianta o relgio a fim de assustar os namorados echamar-lhes ateno para o perigo.

    6. Quando o relgio bate, o pai de Sofia, Famusov, entra.7. Ele v Liza, flerta com ela.S. Liza, habilmente, escapa-lhe s atenes e convence-o a ir-se

    embora..9. Com o rudo, Sofia entra. V a aurora e espanta-se da rapidez

    com que sua noite de amor passou.10. Os amantes no tiveram tempo de se separar 'antes de

    Farnusov encontr-los.11. Espanto, perguntas, furor.12. Com 'esperteza, Sofia ivra-se do embarao e do perigo.13. Seu pai deixa-a livre e sai com Molchalin para assinar uns

    papis : " .14. Liza censura Sofia, e Sofia fica deprimida com o prosaico do

    dia, depois da poesia do seu encontro noturno. .15. Lza tenta lembrar Sofia do seu amigo de infncia, Chatski,

    que, ao que parece, est enamorado de Sfia.16. Isso irrita Sofia e faz com que ela pense ainda mais em

    .Molchalin. . ., 17. A cheiada inesperada de Chatski, seu entusiasmo, o encon-

    tro. ? embarao de Sofia, um beijo. A perplexidade de Chatski, que.3.acusa de frieza. Falam ds velhos tempos. Chatski espirituoso emsua palestra amistosa. Faz a Sofia uma declarao de amor. Sofia custica.

    18. Volta Famusov. Fic atnito. Seu encontro com Ch~tski.19. Sofia sai. Faz uma observao astuciosa a propsito de estar '

    "longe do olhar paterno". . .' .: 20. Famusov interroga Chatski. Suas desconfianas quanto sintenes de Chatskipara Com Sofia. . ' .

    21. Chatski louva Sofia C~Ih lirismo. Saiabruptamente.22. A perplexidade e as suspeitas do pai.

    33

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    A est uma-lista dos Jatos do primeiro ato. Usando-a como modelopara anotaros fatos dos ,atos subseqentes, ter-se-. urncatlogo davida exterorno lar dos Famusov num dia determinado. .

    Todosesses fatos, tomados em conjunto, fornecem o tempopre-sente da' pea.

    Mas no pode haver presente sem passado. O presente decorrenaturalmente do passado. O passado a raiz da qual nasceu O presen-te. O presentesem passado murcha como urna planta cujas razesforam cortadas. O ator deve sempre sentir que tem atrs de si o pas-sado de seu papel, como a cauda de um traje que levasse:

    Tampouco existe qualquer presente sem uma perspectiva de futu-ro, sonhos, conjeturas, indcios.

    O presente, privado do passado e do futuro, como um meio semcomeo ou fim, um captulo de livro, acidentalmente arrancado e lido.O passado e os sonhos do futuro perfazem o presente. O ator deve tersempre a conduzi-lo pensamentos sobre -o futuro, que excitem. o seuardor e sejam, 'ao mesmo tempo, compatveis com os sonhos da per-sonagem' que ele est interpretando; Esses sonhos do futuro. devemacenar ao ator, devem lev-lo avante em todas as suas aes. ,110 palco.Ele deveselecionar na pea insinuaes, sonhos, do futuro: .

    Umalgaodreta do tempo presente deum papel com o seu pas-sado e futuro d .corpo vida interior desse papele. ser interpretado.

    .Apoiando-se no passado e no futuro do seu papel, Q ator poder apre-ciar melhor o seu presente.

    Muitas vezes, os fatos de uma pea decorrem de uma espcie e um,modo de vida, de. uma situao social: Portanto, no difcil,calcando-os, mergulhar num nvel de existncia mais profundo. Aomesmo tempo; as circunstncias que, compem um modo de vida

    . devem ser estudadas. no s6 no prprio texto da pea, mas tambmnuma variedade de comentrios, textos literrios, textoshistricosreferentes ao perodo, e assim por diante.

    Assim, em'A"desgraa de ter esprito, no plano social, temos aquiuma lista dos fatos que requerem estudo:

    34

    o PER[ODO DE ESTUDO

    . 1.0 encontro entre Sfia e Molchalin, Que que nos mostra?Corno veio a ocorrer? Ser devido influncia da educao e doslivros franceses? Sentimentalismo, langor, ternura e pureza por partede uma jovem; mas, ao mesmo tempo, a frouxido de sua moral.

    2. -Liza guarda Sofia. Deve-se compreender o perigo que ameaaLiza: ela pode ser mandada para a Sibria ou relegada ao trabalho nocampo. Deve-se compreender a dedicao de Liza.

    3. Famusov flerta com Liza, ao mesmo tempo que finge manteruma conduta digna de um monge. um exemplar dos fariseus daque-la poca.

    4. Famusov receia qualquer casamento inconveniente. H quepensar na Princesa Maria Alexeyevna. Qual a posio de MariaAlexeyevna? Sua famlia teme suas crticas. Pode-se perder o bomnome..o prestgio, e at mesmo o lugar.

    5. Liza protege Chatski. Ser ridicularizada se Sofia desposarMolchalin.

    6. Chatski regressa do exterior. Que significava regressar ptria,naqueles tempos, viajando em diligncias com muda de cavalos?

    Sondando a peamais profundamente, chegamos ao plano literrio.No coisa que, se possa apreender logo de uma vez. Isto vem com o

    estudo, Mas deincio pdemos apreciar, ern termos gerais, o estilo deescrever, a formulao em palavras, o-verso. Podemos apreciar, por

    exemplo, a beleza da linguagern de Griboyedov, a leveza de seus ver-sos, a nitidez de seu ritmo, a propriedade de suas palavras.

    Podemos dissecar urna pea em suas partes componentes, a fim de enterider sua estrutura, admirar a harmonia e a combinao de suas,diferentes partes, sua elegncia, fluidez de desenvolvimento, .a quali-dade cnica da ao, a inventividade da .exposio, a caracterizaodo elenco de personagens, o passad dessas personagens, os indciosde seu futuro;

    Pode:mos apreciar a originalidade com queodramatur~oma-quinou motivos,razes para precipitaraes, que por sua vez reve-lam a essncia ntima e esprito humano da pea. Podemosavaliar

    35

  • ! , -

    A CRIAO DE UM PAPEL: . .

    e estabelecer um confronto entre a frma exterior' e o contedointe-rior da pea'. .

    Descendo ainda mais fundo, chegamos aplano esttico, com assubcamadas de tudo aquilo que teatral, artstico, referente ao cen- 'rio e produo, tudo que plstico, musical. Pode-se descobrir eanotar tudo o que O escritor nos diz sobre a cena, o cenrio, a dispo-sio dos cmodos, a arquitetura, a luz, os agrupamentOs, gestos,maneiras. Alm disso, pode-se ouvir o que o diretor 'da pea e O cen-grafo tm a dizer sobre isso. Podem-se examinar Os diferentes mate-riais reunidos para serem usados na encenao e pode-se participar datarefa de reunir esses materiais, acompanhando o diretor e o cengra-fo em visitas a museus, galerias de pintura, velhas residncias particu-lares daquele perodo. E, finalmente, podemos percorrer os jornais eas gravuras da poca. Em outras palavras, ns mesmos podemos estu-dar a pea em relao' aos seus fatores 'artsticos, plsticas, arquter-nic os e outros.

    Todas as anotaes que tiverem sido feitas sobre as circunstnciasexternas constituem um grande volume de material, que alimeritarno sso trabalho criador subseqente.

    DAR VIDA S CIRclJNSTNCIAS EXTERNAS

    Por enquanto, apenas estabelecemos a existnci de certos fatos ;Agora, preciso descobrir O que jaz sob eles, o que lhes deu origem, 6que se esconde atrs deles. Acumulamos material sobre as circunstn-cias externas da pea, por meio de uma anlise intelectual bem ampla.At O momento, ela consistiu quase somente da anotao dos fatos -passados, presentes e futuros - trechos do texto da pea, 'com en t -rios; em suma, apenas um registro das circunstncias determinadas davida, na pea e em suas partes. Em qualquer estudo intelectual dessetipo, os acontecimentos de uma pea carecem'de si~nificao viva,

    36

    O PERloDO DE ESTUDO

    autntica. Permanecem como aes inertes, meramente teatrais. Comuma atitude assim, puramente exterior, em relao s-circunstnciasdeterminadas de uma pea, seria impossvel reagir com "emoes sin-ceras" ou "sentimentos que paream verdadeiros".

    A fim de amoldar esse material seco aos propsitos' criadores,temos de dar-lhe vida e contedo espiritual, os fatos e circunstnciasteatrais tero de ser transformados de fatores mortos em fatores vivose vivificantes. Nossa atitude para com eles tem de passar da teatral

    .para a humana. O seco registro dos fatos e acontecimentos deve serinsuflado com o esprito da vida, pois s O que vivo pode gerar vida.E assim temos de recriar em forma viva as circunstncias propostaspelo dramaturgo ....

    Essa transformao efetuada com O auxlio de 'uma das princi-pais foras criadoras da nossa arte: aimaginao artstica. Neste pon-to, nosso trabalho se eleva do planada razo para a esfera dos sonhosartsticos.

    Todo ser humano vive uma vida de fatos cotidianos, mas pode 'tambm viver a vida de sua imaginao. A natureza do ator de talordem quc.freqentemente, essa vida da imaginao muito maisagradvel e interessante que a outra. A imaginao de um ator podeatrair.para si a vida de Outra pessoa, adapt-la, descobrir qualidadese traos mtuos e excitantes. Sabe como criar uma existncia de faz-de-conta a seu gosto, e portanto bem chegada ao corao do ator,uma .vida que o faz vibrar, que bela, cheia de significado interior,especialmente para ele, uma vida de estreito parentesco com a prprianatureza do ator. ' . .

    Essa vida imaginria criada vontade, com .0 auxlio 'do prpriodesejo do ator, e proporcionalmente intensidade' criadora do mate-rial espiritual que ele p'0ssua ou que tenha acumulado em si. portan-to ligada a ele, e por ele prezada, porque no 'foi casualmente coibida'no exterior. Nunca est. em conflito com os seus desejos 'interiores,nem resulta de algum mau golpe da sorte, como tantas vezes ocorre navida real. Tudo isto faz com que essa vida Imaginriaseja muito maisatraente para o ator do que a realidade cotidiana. Assim, n o de sur- '

    37

  • I ;'

    A CRIAO DE UM PAPEL

    preender.que O seu sonho desperte 'uma ressonncia genuinamenteardoros~ em sua natureza criadora.

    O ator deve amar os sonhos e saber us-los. Essa uma das maisimportantes f~culdades criadoras. Sem imaginao no pode havercriatividade. Um papel que no passou pela esfera da imaginaoartstica nunca se tornar atraente. O ator ,precisa saber aplicar suafantasia a toda espcie de temas. Deve saber como criar em sua ima-ginao uma vida verdadeira com qualquer material que lhe sejadado. Como uma criana, ele deve saber brincar com qualquer brin-quedo, e achar prazer ern seu jogo. O ator tem plena liberdade de criaro seu sonho, desde que este no se extravie-muito do pensamento etema bsico do dramaturgo,

    H vrios aspectos da vida da imaginao e de seu funcionamen-to artstico. Podemos usar nossa viso interior para ver todo tipo deimagens visuais, criaturas vivas, rostos humanos, suas feies, paisa-gens, o mundo material dos objetos, cenrios, e assim por diante.Com o .nosso ouvido interior, podemos ouvir toda sorte de melodias,vozes, entonaes etc. Podemos sentir as coisas na imaginao, impe-lidos por nossa memria de sensaes e emoes. ,

    H atores de coisas vistas e atores de coisas ouvidas. Os primeirosso dotados de uma viso interior especialmente boa, e os segundosde uma 'sensvel audio interior. Para o primeiro 'tipo, ao qual eumesmo perteno, O meio mais fcil decriar uma vida imaginria -com o auxlio de imagens visuais. Aos do segundo tipo, o que ajuda a imagemdo som. '

    Podemos amar todas essas imagens visuais, auditivas, ou outras.Podemos goz-las passivamente, de fora, semsentir nenhum impulsopara uma ao direta; numa palavra: com a imaginao passiva'pode-o_mos ser a platia de nossos prprios sonhos. Ou podemos tomar par-te ativa nesses sonhos com a imaginao ativa. , -

    Comearei pela imaginao passiva. Com-minha viso interior,tentarei visualizar PavelFamusov, noponto em que ele aparece pelaprimeira vez em A desgraa de ter -esprito. O material 9ue acumuleina minha anlise dos fatos sobre a arquitetura e os mveis da dcadade 1820 ser agora utilizado. : ;,

    38

    o PERIODb DE ESTUDO

    - Qualquer ator com poder deobservao e memria para asimpresses recebidas (pobre do ator que no tiver estas qualidades!),qualquer ator que viu, estudou, leu, viajou bastante (ai do ator queno fez estas coisasl), pode erigir em sua prpria imaginao, diga-mos, a casa onde ~ivia Farnusov. Ns russos, principalmente os quesomos provenientes de Moscou, .corihecernos essas casas - se nocomo prdios completos, pelo menos em parte, como remanescnciasdos tempos dos nossos antepassados.

    Suponhamos que vimos, numa dessas velhas residncias particu-lares de Moscou, um vestbulo com a escadaria frontal da poca. Emoutra casa, talvez nos recordemos de ter-visto colunas. De uma tercei-

    -, ta; retivemos a imagem de um porra-bibel s chins, uma gravura,digamos, de um interior da dcada de 1820, uma poltrona 11a qualFarnusov podia ter-se sentado. Muitos de ns, possivelmente, aindatemos velhas peas de trabalho manual, um pedao de tecido borda-do com continhas e seda. Contemplando-o com admirao, pensamosem Sofia: quem sabe ela teria feito algum desses-bordados no campo,onde era forada a "enlanguescer, sentada com seus bastidores debordar e bocejando ante o calendrio da igreja"?

    Todas as nossas lembranas, reunidas durante a anlise da pea eem vrias outras ocasies e lugares, lembranas da vida real ou imagi-nria, todas elas voltam; atendendo ao nosso apelo, e ocupam seuspostos, restaurando para ns uma-velha e senhorial manso particu-lar da dcada de 1820.

    Depois de vrias sesses desse tipo de trabalho, podemos erguerinentalmente toda uma casa e, tendo-a, construdo, podemos estud-la, admirar-lhe a arquitetura, examinar o arranjo de seus aposentos.Enquanto O fazemos, 6s objetos imaginrios tomam seus lugares, egradativamente toda a casa adquire um clima de algo familiar e cara.Tudo se congrega para formar, nconscentemenre, uma vida interiorda casa. Se alguma cisa nessa vida imaginria parece errada, causatdio, podemos instantaneamente construir outra'casa ou reformar avelha, ou simplesmente consert-la. A vida da imaginao tem a van-tagem de no conhecer obstcul s nemdemoras. Ela no reconhece o

    ' 3 9

  • ,'.

    A CRIAO DE UM PAPEL

    impossvel. Tudo o que lhe agrada .disponvel, tudo o que ela deseja logo executado. .

    Admirando passivamente essa casa vrias vezes por 'dia, o ator sefamiliariza com ela at o seu ltimo detalhe. O hbito, que nossasegunda natureza, encarrega-se do resto.

    Mas uma casa vazia enjoa. Precisamos de gente dentro dela. Aimaginao tentar criar, tambm, essa gente. Antes 'de maisnada, oprprio cenrio tende a produzir pessoas. Freqentemente, o mundodas"cosas reflete a alma daqueles que o criaram: os habitantes dacasa.

    . verdade que a nossa imaginao noproduz logoe~saspessoas,e tampouco a sua aparnciapess al. Tudo o que faz mostrar seustrajes, talvez seus penteados. Com a nossa viso interior, vemos comoelas se movem dentro de suas roupas, mesmo que por enquanto aindano tenham rostos. Algumas vezes, preenchemos'alacuna com umvago esboo.

    Entretanto, enquanto euolho, um dos lacaios sobressai comextraordinria nitidez. Com minha viso interior, vejo claramente seurosto, seus olhos, seus .modos. Ser por acaso o lacaio Petruchka?Bobagem, aquele alegre marinheiro que eu vi urna vez zarpando doporto de Novorossisk. Como ele entrou aqui, na ~

  • ifA CRIAAo DE UM PAPEL

    da casa, e sinto-me feliz por ter sido posto em.lugar to honroso. Ou,quando-vejoque me colocaram l embaixo, no p da mesa, ao lado dotraje de Molchalin, fico preocupado por me haverem rebaixado dessejeito.

    E assim adquiro um sentimento de simpatia para com as pessoasde minha imaginao. um bom sinal. Est claro que simpatia no sentimento. Mas j um passo nessa direo.

    Estimulado por minha experincia, tento imaginar minha cabeasobr-e os ombros dos trajes de Famusov e de outros. Tento evocar-mequando jovem e ponho minha cabea juvenil nos ombros. do traje deChatski, do de Molchalin, e at certo ponto sou bem-sucedido.Ponhomaquilagem, mentalmente, e adapto essa maquilagem a: uma varieda-de de personagens da pea, tentando visualiz-los como habitantesdessa casa que me so apresentados pelo autor da pea. Mas emboraeu tenha nisso algum xito, no obtenho ajuda substancial. Mais tar-de, recordo toda uma galeria de rostos de pessoas vivas, das minhasrelaes. Olho todo tipo de quadros, gravuras, fotografias. Fao omesmo tipo de experincia com cabeas de pessoas vivas emortas,mas todas essas experincias finalmente fracassam.

    A experincia fracassada, com a cabea de outras pessoas, meconvence. de que esse tipo de trabalho infrutfero. Percebo que osentido de meu trabalho no conseguir visualizar maquilagens, tra-jes, a aparncia exterior dos habitantes da casa de Famusov, do pon-to de vista de um observador passivo, mas , antes, sentir que elesesto de fato presentes, senti-los bem ao meu lado. No so vista e som, mas sim a sensao de proximidade de um objeto qu nos aju-da a sentir a.realidade existente. .Mais ainda, percebo que no possoalcanar esse sentimento de proximidade, senti-lo 'de fato, se ficarescavando. o texto da pea sentado minha mesa. preciso formaruma imagem mental da relao pessoal de Famusov com. os membrosde sua famlia. . . . .

    Como poderei fazer a transferncia? Tambm ela se faz com oauxlio da imaginao. Mas, desta vez, a imaginao representa umpapel mais ativo do que passivo. .

    42

    o PERfOOo DE ESTUDO

    Podemos ser observadores de nosso sonho, mas tambm podemosparticipar ativamente dele, isto , podemos nos achar mentalmente no

    . centro de circunstncias e condies, de um modo de vida, de ummobilirio, de objetos erc., que ns mesmos imaginamos. J no nosvemos como um espectador de fora, mas vemos o que 110S rodeia.Com o tempo, quando essa sensao de "ser" reforada, podemosnos tornar a principal personalidade atuante, nas circunstnciasambientes do nosso sonho. Podemos comear, mentalmente, a agir, ater vontades, fazer esforos, atingir uma meta.

    Esse o aspecto ativo da imaginao.

    A CRIAODECIRCUNSTNCIAS INTERIORES

    A criao das circunstncias interiores da vida de uma pea umacontinuao do processo geral de anlise e infs" de vida no material .j acumulado. Agora, o processo se aprofund mais, mergulha, do rei-no da vida exterior, intelectual, no reino da vida interior, espiritual. Eisto se promove com o auxlio dasemoes criadoras do ator.

    A dificuldade desse aspecto da percepo emocional que o atoragora est se aproximando de seu papel no por meio do texto, daspalavras desse papel, e tampouco pela anlise intelectual ou outromeio de conhecimento consciente, mas por meio de suas prprias sen-saes, suas prprias emoes reais, sua experincia pessoal da vida.

    Para faz-lo; tem de colocar-se bem no centro da vida daquelacasa, tem de estar aliem pessoa, e no apenas se olhando como obser-vador, como eu estava fazendo antes. Sua imaginao tem de ser ati-va, e no passiva como antes. Esse um momento psicolgico dif~il eimportante no perodo total de preparao.Exige uma ateno excep-

    .cional, Esse momento 'o que ns atores, em nosso jargo, chamamosde estado do "eu: sou", 6 ponto em que eucomeo a me sentir den-tro dos acontecimentos, corneo.a mesclar-me com todas' as circuns-

    t~ncias sugeridas pelo dramaturgo e pelo ator, comeo a ter o.direito

    43

  • A C R IA Ao DEU M' P A P E L

    de fazer parte delas. Esse direito no se adquire logo de .um a vez. obtido gradtivamente.

    A essa altura da preparao de ,A desgraa de ierespirito, porexemplo, procuro me transferir do posto de observador para ode par-

    . ticipante .ativo, membro da famlia Pamusov.-No posso ter preten-ses a efetu-lo de uma vez. O que posso fazer deslocar minha aten-o'de mim mesmo para o que me cerca. Recomeo,a,percorrer a casa.Agora, passo pela porta, subo a escadaria, abro a porta que d para afileira de salas de estar. Entro agora na sala de recepes, empurro aporta de uma antecmara. Algum bloqueou a porta com~a p jtro-na pesada, que eu afasto para 'entrar no..salo de baile. -. .

    Mas chega! Por que me iludir? O ,que estou sentindo, enquantofao este percurso, no resultado da imaginao ativa ou de um ver-

    dadeir~ sentimento de estar dentro da situao. No passa de milengano imposto' a mim.~esmo. Est u apenas me forando a ter erno- :es, me forando a sentir que estou vivendo uma coisa ou outra. Amaioria dos atores comete esse erro. Apenas imaginam que estovivos numa situao; no a sentem de fato. Temos de ser extr'aordina-riamente severos com ns mesmos nessa questo de sentir o "eu sou"no palco. H uma enorme diferena entre o verdadeiro sentimento davida do papel e algumas' emoes acidentalmente imaginadas. peri-goso cair .nas malhas dessas falsas iluses. Elas tendem a desviar oator para uma atuao forada e mecnica. ;, .

    Ainda assim, durante a minha perambulao Infrutfera pela casa 'de Fam:us~v, houve um instante em que eu senti realmente que estavaali e acreditei em meus prprios sentimentos. Foi quando abri a por-ta 'da antecmara e afastei uma grande poltrona. Senti realmente oesforo fsico que est ao envolvia. D~~U vrios segundos. Senti averdade de estar ali. Isto se dissipou logo que me afastei da poltrona ecaminhei novamente-no espao, entre objetos indefinidos.

    , Essa experincia me ensina a importncia excepcional do papel .representado por um objeto para me ajudar a opor-me n estado,do"eu sou". . "

    Repito as minhas experincias. .com outros 9~jetos inanimad9s..

    44

    . !

    , I'

    o PER IODO DE ESTUDO '

    Mudo mentalmente o arranjo de todos os ~nveis em diversos cmo-dos, transporto objetos para l e para c, espano-os, examino-os.Estimulado, levo a experincia um passo adiante: entro agora em con-tato mais ntimo com objetos animados. Com quem? Com Petruchka,naturalmente, pois ele, por enquanto, a nica personalidade viva

    . nessa casa de fantasmas e trajesambulantes. E assim, encontramo-nos, por exemplo, no corredor pouco iluminado, perto da escadariaque leva ao 'andar de cima e aos aposentos das moas.

    "Vai ver que ele-est esperando Liza", penso, enquant sacudo odedo para ele, brincalhonamente.

    Ele me d um sorriso agradvel, simptic~.Nesse momento, sin-tO n apenas a presena dele no meio de todas as circunstncias ima-ginadas, mas tambm sinto, nitidamente, que o mundo das coisasadquiriu vida, por assim dizer. As paredes, 6 ar, as coisas esto banha-das numa luz viva: Algo de verdadeiro se criou e eu crei~ nisso, e por-tanto o meu sentimento de "eu sou" se refora. Ao mesmo tempo medou conta de urnaespcie de alegria criadora. Aconteceque um obje-to vivo uma fora, na criao do sentimento de ser; Percebo muitobem que esta situao no secriou diretamente, mas por meio do meusentimento pata com um objeto, sobretudo um objeto vivo. '

    Quanto mais vezes experimento criar 'p essoas mentalmente,encontr-las; sentir sua proximidade, sua presena concreta, mais meconveno de que, para alcanar o estado de "eu sou", a imagem fsi-ca; externa (a viso de uma cabea, corpo, modos de uma pessoa),no to importante como a sua imagem interior, o teor de sua enti-dade interior. Venho tambm a compreender que, em qualquer inter-cmbio co~ outras pessoas, importante no s conhecer a sua psi...

    . cologia, mas tambm a de ns mesmos. .Por isso qu meu encontro com Petruchka deu certo. Senti como

    ele' era por dentro. Pude ver sua imagem interior.' Reconheci o mari-nheiro na imagem de Petruchka, no por causa de qualquer semelhan-a externa, mas por causa daquilo que eu .imaginava que fosse a suanatureza interior. Eu gostaria- de dizer sobre o marujo o que Liza dissesobre Petruchka: "Como que a gente pode no ,se,apaixonar por ele?"

    45

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    A prxima pergunta como usar a nossa prpria experincia'devida para sentir como a ,vida de todos os outros integrantes da casade Famusov, e.principalmente para estabelecer a nossa prpria rela-o com eles. Essa tarefa parece complexa. Realiz-la seria quase omesmo que criar' toda uma pea. Minhas intenes no vo to longe.Sua escala niuito mais simples. Bastar encontrar almas vivas entreos fantasmas na casa de Famusov. No preciso que sejam exatamen-te as criaturas pretendidas por Griboyedov. Mas, como creio que osmeus prprios sentimentos, minha imaginao e toda a minha nature-za artstica tero sido influenciados pelo trablho .j feito, estou con-vencido de que esses objetos vivos, pelo menos em parte, tero algunsdos traos que devem animar aspersonagens de Griboyedov.

    A fim de treinar-me para encontrar esses objetos vivos, empreen-do toda uma sri~ de visitas imaginrias aos integrantes da casa deFamusov, sua famlia, seus amigos. Agora estou pronto para ba~er emqualquer porta da casa, pedindo licena para entrar. '

    Sob o impacto vivo da leitura recente da pea, eu naturalmentequero visitar, antes de mais' nada, os habitantes da casa de ,Famusov.com os quais o autor me ps em contato. Quero, sobrerudo.ver o che-fe da casa, Pavel 'Famusov, em pessoa, depois a jovem dona da casa"Sofia depois LizaMo1chalin e assim por diante; Vou pelo 'corredor 'familiar, tentand~ no trope~ar em nenhum objeto na obscuridade. .-Vou contando as portas at a terceira direita. Bato e, com cautela,abro. '

    Graas ao hbito adquirido, creio rapidamente no que estoufazendo, no fato de realmente estar l. Entro no quarto de Farnusov,e que vejo? No meio do quarto est o, dono da casa em camisola .dedormir cantando um cntico de quaresma: "Oh, a minha prece queeu me' torne um menino melhor", e O tempo todo fazendo gestos deregente de coro. Diante dele est um garotinho cujo rosto se contorceem infrutferos esforos 'para compreender: Esgania-se num falsetefino e infantil, tentando pegar e reter as palavras da prece. Em seusolhos, h vestgios de lgrimas. Levo uma,cadeira para um lado do

    46

    I1

    . 1~i

    O PERloDO DE ESTUDO

    quarto. O velho no se encabula nada com seu estado seminu e conti-nua a cantar. Ouo-o com o meu ouvido interior, e pareo sentir suaproximidade fsica. Entretanto, a percepo fsica no basta, devotentar sentir sua alma:

    , Como isso n pode ser feito de modo fsico, tenho de usar outrasvias de aproximao. Afinal, as pessoas se comunicam umas com asoutras no s por meio de palavras e gestos, mas principalmente atra-vs das radiaes invisveis da vontade, vibraes que fluem entreduas almas, reciprocamente. O sentimento descobre o sentimento,assim corno uma alma descobre outra. No h outro meio. Para ten-tar atingir a alma do meu objeto vivo, preciso descobrir a, sua quali-'dade, e acima de tudo a minha relao com ela.

    Tento dirigir os raios ~a minha vontade ou sentimentos, urna par-te do meu prprio ser, para ele, e tomar uma parte de sua alma. EmOutras palavras, estou fazendo um exerccio de emisso e recepo deraios. Mas que posso tirar dele ou lhe dar, quando o prprio Famusovainda no existe para mim, ainda est sem ~ln1(i? Sim, verdade queele no existe, mas eu conheo a sua posio de chefe da casa, conhe-o 'a sua espcie..seugrupo social, mesmo sem conhec-lo como indi-vduo. nisto que a minha experincia pessoal me ajuda. Ela me

    ,recorda que ,ajulgarpor sua aparncia exterior, suas maneiras, hbi-: tos,' sua seriedade infantil, sua f profunda, sua reverncia pela rnsi-

    ca sacra, ele deve ' ser um tipo familiar de excntrico de bom gnio;divertido, teimoso, que inclui em sua composio obrbaro fato deser um senhor de servos.

    Embora isto ~ossa no me ajudar a penetrar: na atina de uma pes-soa e compreend-la, d-me, entretanto, a possibilidade de encontrar,dentro de mim mesmo, a atitude certa em relao a Famusov. Agora 'sei como receber seus gracejos 'e suas aes. Durante algum tempo,essas observaes me absorvem, mas logo comeam a cansar. Minhaateno se dispersa, domino-me e torno a me concentrar, mas logoestou divagando, emeus pensamentos abandonam Famusov, nadamais tenho a ver com ele. Apesar de tudo, creio que' essa experinciadeu mais ou menos certo e, assim animado, passo para Sofia.

    :4 7

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    Encontro-a no vestbulo. Est pronta para sair, e pe apressada-mente um casaco de.peles. Liza se agita em tomo dela, ajudando-a aabotoar o casaco, e correndo pra c e pra l com todos os ernbrulhi-'nhos que uma jovem provavelmente leva consigo. A prpria Sofia estse arrumando diante de um espelho. O pai foi para o seu gabinete noministrio - raciocinei - e a filha' corre cidade, para ver, nas lojasfrancesas, "chapus, toucas, agulhas ealfinetes'tvpara visitar "livra-rias e confeitarias" e talvez "fazer outras coisas".

    Desta vez, o resultado o mesmo. O objeto da minha: ateno med uni. vivo sentimento de "ser". Mas no consigo ret-lo por muitotempo. Meuspensa~entoslogo divagam, Concentro-me de novo~ edepois, finalmente, sem nada a ' fazer, dexoSofla e parto paraMo1chalin.

    Enquanto ele escreve, a meu pedido, a lista de parentes e amigosde Famusov que pretendo visitar, sinto-me vontade; Entretenho-mecom a floreada caligrafia com a qual Molchalin traa suas letras. Mas,quando ele acaba, sinto tdio para fazer minhas visitas...

    Basta a gente imaginar que saiu de casa, e a curiosidade de nossanatureza artstica j no tem limites. Onde quer que eu v, em minhasvisitas imaginrias, sinto a presena de objetos animados, e posso mecomunicar com eles quando h uma base qualquer para-isso. E a cada 'vez minha sensao de ser se refora. Mas, infelizmente, cada novoconhecido s6 meprende ateno por pouco tempo.por qu? fcilcompreender: todos esses encontros no tm propsito. So criadoscomo exerccios, e par sentir a presena fsica dos objetos escolhidos.Esse sentimento foi adquirido' em funo dele mesm'o,a simples sen-sao fsica no nos pode interessar por ~uito tempo. Seria bem outracoisa se essas visitas tivessem uma finalidade, ainda que fosse exterior.Portanto, repito minhas experincias, tendo antes formulado um pro-psito definido. Entro no salo :de baile e digo a mim mesmo: vairealizar-se logo' o casamento de Sofia e Skalozub, e'eu fui encarregadode organizar umgrande almoo nupcial para cem convidados. Qualser O melhor modo de dispor a prataria, as mesas etc.P .

    Isso evoca todo tipo de consideraes: por exemplo, o coronel do

    48

    O PERJODO DE ESTUDO

    regimento de Skalozub, e talvez todoo seu estado-maior, comparece-ro ao casamento. Tero de sentar-se de acordo com 'a hierarquia,para que ningum fique ofendido p6r no estar o mais perto possveldo lugar de honra, perto dos noivos. O mesmo problema quanto aosparentes. Podem melindrar-se com a mxima facilidade. Tendo reuni-d tantos convidados de honra, estou num dilema, pois no tenholugares suficientes para eles. Que tal colocar o casal de noivos no cen-tro, e fazer com que as outras mesas partam da em todas as dir~es?Isso viria aumentar automaticamente o nmero de lugares de honra;

    :E: quanto mais lug~res houver, mais fcil ser a colocao das pes- -soas segundo sua importncia. Preocupo-me durante muito tempo.cm esse proble,I1J.!l) e quando ele comea a perder interesse, algumaoutra coisa vem logoocupar seu lugar: a preparao d comida _agora, par:;t o casamento de Sofia, no mais com Skalozub, e sim comMlchali.

    Isso altera tudo! Casar-se com o secretrio de seu pai seria urnam salliance, um casamento desigual, a cerimnia seria muito mais

    .discreta, s6 viriam os membros nais prximos da famlia e nem todosestariam dispostos a prestigiar o acontecimento. No haveria nenhumcoronel, visto que-o chefe de M lchalin o pr prio Famusov.

    Novas combinaes fermentam dentro de mim, e eu j no penso~a proximidade dos- objetivos, nem em estar em comunicao commeu objeto. Estou em ao! Minha cabea, meus sentimentos, minhavontade, a imaginao, tudo isso se ocupa to atarefadarnente comose as coisas estivessem acontecendo na vida real. Animado pela expe-rincia, resolvo fazer outra, agora no com objetos inanimados, e simcom objetos vivos. . ' ,

    Para isso, volto mais urna vez casa de Famusov. Ele ainda estensinando o menino a cantar O hirto religioso, eainda rege a msicatrajando apenas sua camisola de dormir.

    Resolvo irritar esse velho excntric~. Entro, sento-me do outrolado do quarto, e por assimdizer aponto a espingarda'para ele; bus-cando um pretexto de discusso para provocar o velho senhor.

    ':-9ue isso que est cantando? - pergunto.

    49

  • . . .._-- _.. - -.._ _........ ..._~--,-

    A CRIAO DE UM PAPEL

    Mas Famusov no se digna a responder, talvez'por no ter chega-do ao fjIncr~torao. Finalmente, acaba.

    ---:-:Muito bonita essa melodia - declaro calmamente._ NO era' uma melodia, mas uma orao sacra ---:responde.com

    nfase. .. -:- Oh, perdo, eu tinha esquecido!. .. Quando que .cantada?---:Se freqentasse a igreja, saberia.

    . O velho j est amolado, mas isso s serve para me divertir, e meanima a provoc-lo ainda mais.

    _ Eu iria. S que no posso, ficar tanto tempo de p --:-digo sua-vemente: - E depois, l faz tanto calor! ' .

    -Calor? - retruca o velho gentil-homem. ---:- E que me diz daGehena. No Jaz calor, l?

    _ Isso outra-cilisa -:- respondo, ainda com mais suavidade. ..""':- Como assim? - pergunta Famusov, dando um passo para

    . mim._ Porque na Gehena a gente pode andar sem roupa, corno Deus

    . nos fez.~ digo.com pretensa burrice - e podemos nos deitar e tomarbanho de vapor, como nos banhos russos. Mas na igreja foram-no aficar suando, de pe dentro de nosso capoto de peles.. .

    _ Oh, voc... voc um pecador terrvel. -.-,- E o velho senhorretira-se depressa, para "no abalar seus alicerces", com algumarisada. .. : .... . . ' . . ' . .' :< . . . : .

    Essa nova tarefa me parece.t0 importante' que resolvo con-firm-la. Saio outra vez.para fazer visitas, m~s agora tenho em rnen- .

    . te o ' propsito defnido de anunciar' aos parentes e amigos .d e..Famusovo prximo casamento de Sfia eSkalozub. A experinia.d certo, embora nem sempre com o mesmo grau de sucesso. Ainda.assim, percebo.a alma viva dos.objetos com os .quais estive me comu-nicando..E cada novo teste refora a minha .sensao .de fazer partedos. conrecmentos .

    medida que meu trabalho vai se desenvolvendo, meu proP9sitofinal e as .circunstncias subseqentes vo se .tornan do mais. difceis e

    50

    O PERloDO DE ESTUDO

    complexos. Acontecimentos completos Ocorrem. Por exemplo, emminha imaginao; Sofia mandada para fora, para bem longe no

    .campo. Que far Molchalin, seu noivo secreto? Buscando uma solu-o, chego at mesmo a planejar o rapto da moa. Em outra ocasio,assumo a defesa de Sofia na reunio de famlia, depois que ela foi des-coberta com Molchalin. O juiz da famlia nesse transe aquelebaluarte do convencionalism, a Princesa Maria Alexeyevna. No fcil discutir com essa formidvel representante das tradies da fam-lia. Numa terceira ocasio, acho-me presente quando se anuncia, desurpresa, o no ivado de Sofia com Skalozub... e atiro nele!

    Fazendo essas experincias paraatingir o estado de "eu sou",convenci-me de que a simples ao no basta. Tem de haver inciden-tes. Desse modo, no s comeamos a existir em nossa vida imagina-da, como tambm percebemos mais nitidamente os sentimentos dasoutras pessoas, nossas relaes com elas e as delas conosco. Passamosa conhecer as pessoas quando esto felizes ou-infelizes. Conhecendogente, dia a dia, no turbilho da vida, avanando juntos para enfren-'tar os acontecimentos, enfrentando-ns uns aos outros, esforando-nos, lutando, alcanando a meta ou desistindo dela, ns no temosapenas conscincia de nossa prpria existncia, mas tambm de nos-sas relaes com ~sses outros e com os prprios fatos da vida.

    Quando n~e vicapaz de tornar-me plenamente envolvido na aoimaginria e em minhas lutas corn s acontecimentos iminentes, sentique uma espcie de milagrosa metamorfose ocorrera em mim.

    A essa altura, podemos apreciar plenamente as circunstncias. internas. So compostas de atitudes pessoais para comacoiltecimen..,

    tos da vida exterior e interior, e de relaes mtuas com outras pes-SOas. Quando o ator tem. tcnica do estado criador interno, esseestado de "eu sou", quando tem a verdadeira sensao' de um objetode ateno..animadovpodend mover-se entre os fantasmas da sua .imaginao e comunicar-se com eles, ser capaz de dar vida s cir- :cunstncias externas e internas, de insuflar num papel um espritovivo. Em outras palavras, pode realizar a tarefa que nos propomos ria

  • ,".'

    A CRIAO DE UM PAPEL

    primeira fase de estudo de uma nova pea. Os fatos e as pessoaspodem mudar. Em ~ez daqueles que ele criou'com a sua prpria ima-ginao, pode ser que proponham ao ator outr-os, novos. Mesmoassim, sua cap 'acidade de lhes dar vida um fator importante em seutrabalho subseqente. .

    Corn esse momento de metamorfose miraculosa, conclui-se provi-so~iarrtente a 'nossa primeira fase de trabalho. Essa elaborao, esselavrar da alma do ator, preparou o terreno para produzir emoes eexp-erincias criadoras. A anlise da pea l?elo ator fez viver para eleas circunstncias, propostas pelo dramaturgo, nas quais a sincerida-de 'de emoes" pode agora desenvolver-sede modonatural . Isso nosignifica que 6 ator pode deixar de rever, mais tarde," o que j foi fei-to. Todo este trabalho continuar, ser desenvolvido e ampliadoincessantemente, at que ele esteja em contato total com seu papel.

    AVALIAO DOS FATOS

    A avaliao dos fatos de uma pea realmente a,continuao, e atmesmo repetio, daquilo que ainda agora

  • A CRIAO DE UM PAPEL'

    cao interior e nova atitude de sentimento em: relao aos fatosdados pel~dramaturgo. o o

    - E se Sofia - sugere minha imaginao - estiver to corrom-pida por sua educao, pelos romances franceses, que justamente otipo de amor preferido por ela O de uma criatura insignificante comoesse inferior Molchalin? .

    o _ Como isso revoltante! Como isso 'p ato l gico !~ dizemmeus sentimentos, indignados. ~ Onde voc ir busc~r inspiraopari emoes desse tipo?

    - Na prpria repulsa que eles provocam ':":-vem o frio coment-rio de minha razo. o

    - E Chatski? - protestam meus sentirnenros. - Ser possvelque ele possa amar uma Sofia to perversa? No quero acreditar. Issoarruna a imagem de Chatski e de toda a pea.

    Vendo que no encontro nenhumavia deacesso para meus senti-mentos sob esse prisma, imaginao busca novos motivos, outrascircunstncias, capazes de evocar reaes diferentes.

    - E se Mo1chalin - diz, tentadoramente, minha imaginao -for mesmo uma pessoa extraordin ria, justamente como Sofia o des-creve: potico, gentil, afetuoso, cheio de considerao, sensvel, e aci-ma de tudo dcil e cordato?

    ~Ento, ele no seria Mo1chalin, mas outraflessoa, alis exce-lente - responde meu sentimento, capciosamente. o'

    - Ento est bem - concorda minha imaginao. - Mas serpossvel gostar de algum assim?

    claro que minhas emoes so derrotadas. o- Alm disso - insiste minha imaginao, sem consentir q~e

    minhas emo es recobrem o equilfbro c->, devemos lembrar.que todoser humano; sobretudo uma mulhe~mimada, inclina-se para a auto-admirao, e para isso precisa ver-se corno gostaria de ser, e no comorealmente . Se ela faz esse jogo quandoest sozinha, bem mais a~advel deve ser ele quando praticado o com outra pessoa; com algum

    o . I o

    como Mo1chalin, que, est claro, acredita sinceramenteem tudo que

    54.

    O PER IODO DE ESTUDO

    os Outros queiram. Que prazer, para.urna mulher, bancar uma criatu-ra bondosa, de esprito elevado, potica, humilhada por todos! Quedelciater pena de si mesma e despertar a compaixo e o entusiasmodos outros! A presena de UITJa platia a impele a novas proezas, arepresentar outro papel bonito, a se contemplar novamente comadmirao. Sobretudo se o espectador algum que sabe, comoMolchalin, dar-lhe rplicas animadoras .

    . - Sim, mas essa interpretao dos sentimentos de Sofia arbitr-ria, e entra em choque com Griboyedov. .

    - De modo algum. Griboyedov insiste na automistificao de So-fia, na descarada falsidade de Mo1chalin-- conclui meu crebro.

    ~No creia nos professores de literatura - insiste minha imagi -nao, com mais vigor ainda. - Confie nos seus o pr pri os sentimen-tos.

    Agora que o fato do amor entre Sofia e Molchalin convenceumeus sentimentos de que isso tem UIiJa base justificvel, ele passa a tervida para mim, e perfeitamente aceitvel. Creio na veracidade de suaexistncia. Minha anlise. emocional cumpriu sua primeira misso,criou circunstncias internas importantes para a pea e para o meupapel de Chatski. Alm disso; o fato da sincera afeio entre Sofia eMolchalinr esclarece logo muitas Outras cenas. Explica todaa linha doamor entre Sofiae Molchalin, eas circunstncias que interferem comesse amor. E tambm atua como um circuit~eltrico, emitindo Cor-rentes para todas as outras partes da pea que tenham com ele o qual-quer relao.

    Agora, de repente; Famusov entra e encontra os .namorados emseu .tte- -t te , A situao de Sofia toma-se muito mais difcil, e euno posso deixar de sentir urna vibrao emocional idia de estar em

    .seu lugar. o oDar asshnde cara-com um .tipo desptico como Fa~usov,quan-

    do se est em circunstncias to comprometedoras, faz a gente pen-sar na necessidade de alguma sada surpreendente e ousada, paraabalar o equilbrio de riss advers rio. Numa-hora dessas, ternos de.

    ss

  • ! , ...

    A CRIA DE UM PAPEL

    conhecer bem adversrio, temos de conhecei suas peculiaridadesindividuais. 'Mas eu no conheo Famusov s'eno por algumas insi-nuaes a seu respeito, que ainda 'recordo da primeira leitura dapea. Nem o diretor nem Oator que interpretar Famusov podem medar qualquer ajuda, pois ambos sabem to pouco corno eu a seu res- .peito: Meu nico recurso definir seu carter -para mim, suas pecu-liaridades individuais, a forma interior dessa velha e volu~tariosacriatura. Quem ele?

    ~ um burocrata, um proprietrio de servOs - informa rpidomeu crebro, que se lembra das minhas aulas de leitura no colgio.

    - Esplndidol - Minha" imaginao j pegoufogo. - Isso querdizer que Sofia uma herona! "

    - E porque isso? - indaga miriha mente, perplexa.- Porque s uma herona pode levar umtirano.assim pelo beio

    com tanta calma e firmeza - diz minha excitada imaginao. - Eisaqui um choque entre os costumes antigos e os novos I A liberdade deamar! um tema moderno!

    - Mas e se Famusov s6 for prepotente na aparncia, para preser-var os costumes da famlia, as tradies de sua classe, visandofavorecer-se aos .olhos da Princesa Maria Alexeyevna? -.:. Esta umanova fantasia. - E se Famusov for UIl velhote.bonacho, hospitalei-ro, irascvel mas facilmente aplacvel? Se for o tipo de pai de quem afilha faz de gato e sapato? . .

    - 'Nesse cas,? .. as coisas seriam muito diferentes! Ento a sadad situao criada ficaria perfeitamente clara. No difcil lidar comum pai assim, sobretudo quando Sofia astuta, como sua falecidame - o que me informa o meu crebro.

    Uma vez sabendo corno lidar com' Famusov, pode-se encontrarvias de acesso interiores para formar a base de muitas outras cenas 'relacionadas com ele, bem corno de muitas conversaes com ele.

    O mesmo tipo de avaliao 'deve ser feito quanto ao regresso deChatski, que quase um irmo para Sofia, quase um noivo; que j foi,

    , outrora, o beJ?-amado; .que sempre ousadcgtempestuoso, livre e

    56

    ' r ,o PERloDO DE ESTUDO

    enamorado. Seu regresso do exterior, aps anos de ausncia, estavalonge de ser uma coisa comum, naqueles tempos em que no haviaestradas de ferro, em que as pessoas viajavam em pesadas carruagens,e uma viagem podia levar meses para seconcluir. Por 'm sorteChatski chega inesperadamente, e logo no momento errado. Isso tor-lia a;inda mais compreensvel o embarao de Sfia, bem como o seusentimento de que deve erguer uma fachada qualquer para Ocultarseu enleio; a ferroada em sua conscincia, Explica, finalmente asinvestidas de Sofia contra Chatsk. Se considerarmos a situao deChatski, sua amizadecom Sfia desde ainfncia, e se a Compararmoscom a frieza da atitude que ela agora assume para.com o seu amigode antes, poderemos compreender qual foi a mudana e avaliar aex~enso do e~panto de Charski, Por outro lado, vendo as coisas peloprisma .d e Sofia, tendemos a desculpar sua atitude irritvel, e Com-preeridemos que a infeliz impresso que lhe causaram as acusaes eo ~sprito ~erino de Chatski se deve ao encontro amoroso daquelanoite, seguido pela celi~ prosaica com seu pai, e tambm porque aconduta .de Chatski faz tamanho contraste com a gentileza compla-cente de Molchalin.

    Se nos pusermos no lugar de Outras personagens, parentes de~fia? tambm .poderemos compreeild-Ias. Poderiam tais pessoasjamais tolerar' a'linguagem e os rndos. livres do ocidentalizadoChatski? Vivendo num pas em que ainda existia a servido no sese~ltiriam antes alarmadas com seus discursos; que visam a solapar os .alicerces da sociedade? S um 'louc ousaria falar e agir comoChatski, Portanto, com esse pano de fundo, a vingana de Sofia ain-da mais astuta-e sem remorsos, quando faz com que os outros creiamque o seu ex-amigo' e noivo est louco. E tambm, no lugar de Sofia,compreendemos quanto pesa o golpe que a duplicidade insultuosa deMolchalin desfere contra o seu amor-prpr-io excessivamente mima-do .. preciso ter.vivido, iim'iginar~amente;entre os proprietrios deservos, conhecendo seus h bits, costumes, modo de vida, para com-preender, e portanto sentir" a fra da infinita indigna~o da filha de

    57

  • A CRIAO DE UM PAPEL.

    Famusov, e seu sofrimento ante a vergonhosa demisso de Molchalin,corno se,ele/f~sse um Iacaio de aluguel. E tambm temos de nos pr nolugar de Farnusov, para compreender a extenso de sua raiva, sua ani-mosidade, o senso de represlia e horror que se cristaliza em sua fra -se final: "Oh, Santo Deus, que dir a Princesa Maria Alexeyevnal"

    O resultado que, depois de testar todo~ os fatos isoladamente,todas 'as circunstncias externas e internas, por experincia prpria,podemos compreender (e, portanto, sentir) como emocionante;como est cheio de acontecimentos inesperados esse dia na vida dafamlia Famusov, escolhido por Griboyedov para a sua comdia. S6ento nos daremos conta de uma qualidade especial dessa comdia,um aspecto que os encenadores de A desgraa de ter esprito muitasvezes esquecem: o movimento, o temperamento, o ritmo. De fato,para incluir e justificar a abundncia de fatos - profundamente sig-nificativos - que se desenrolam nos quatro atos da pea, o que repre-senta vrias horas de atuao, preciso marcar um andamento rpi-do. Os atores tm de manter uma atitude alerta para com tudo o qu~acontece no palco. Mais ainda, .p r eciso calcular o ritmo interior doesprito humano subjacente no lar Famusov - isto obrigatrio paratodas as personagens da pea.

    . . Quanto mais coisas o ator tiver observado .e .conhecido, quantomaior for sua experincia, sua acumulao de impresses e Iernbran- .as vivas, mais sutil ser seu modo de pensar e sentir, mais ampla, .variada. e substancial ser a vid~ de sua imaginao; mais profundasua' compreenso dos fatos e acontecimentos, mais clara sua percep-o das circunstncias internas e externas da vi?a na, pea e no seupapel. Com 'o exerccio dirio, sistemtico, da imaginao sobre ummesmo e nico tema, tudo o que se refere s circunstncias propostas'na pea 'torna-se habitual em sua vida imaginria. Por sua vez, esseshbitos se transformaro numa segunda natureza. .

    De fato, qual a diferena entre o rido catlogo de .fatos, comome foi lido ao travar conhecimento com a pea, e a presente avaliaodesses mesmos fatos? A princpio, todos eles par~ciam teatraisyexte-

    ,~:

    O PERloDO DE ESTUDO

    riores, meros acess rios do enredo eda estruturada pea. Mas agoraso acontecimentos vivos, num dia infinitamente emocionante,impregnados de vida, realmente meus.

    A princpio, a rubrica' simples e seca dizia: "En tr a Famusov."Agora, essas mesmas palavras encerram uma grave arneaa aos aman-tes descobertos: Sofia corre o risco de ser mandada "para os confinsda roa", e Mo1chalin est ameaado de ser despedido.

    . O queera, de incio, uma simples deixa para entrada em cena-"Entra Chatsk" - torna-se, agora, a VOlta do filho pr6digo ao seiode sua famlia e a re~nio- por ele esperada h anos - com a suabem-amada. Quanta imaginao, quantas circunstncias interiores eexterior~s, quantos pedacinhos individuais de vida interior, suposi-es, imagens, anseios, aes, esto agora includos naquela seca ins-truo de cena, e em cada palavra que o dramaturgo escreveu!

    Agora que submeti os fatos da pea minha pr6pria experinciapessoal, toda a vida e as circunstncias externas e internas do meupapel j no parecem estranhas COmoantes, mas presentes, verdadei-ras. Todas as circunstncias da vida na casa de Fa~usov ganharamimportncia e sentido. Aceito-as no urna a uma, mas sim como par-te indivisvel de toda a complicada concatenao de circunstncias da .pea..Minha 'atitude para com elas torna-se realidade. .

    Transmitindo-os fatos'eo.enredo de uma pea, o ator involunta-'riamente transmite o seu conte do interior.jud que nela se inclui.Transmiteaqueh- esprito vivo, que corre sob os fatos exteriores comoum rio subterrneo. No palco, s precisamos de fatos de contedointerno, fatos que representem O resultado final de sentimentos inter-nos, ou fatos 'que atuem como foras motrizes para pr em ao asemoes. Um fato, s6 por ser fato, por si, s6 um fato que no passe deum simt.>les episdio divertido,nada vale. Na verdade, at prejudi-cial, porque desvia da vida interior verdadeira.

    A importncia'.da apreciao dos fatos que' fora as pessoas aestabelecer contato mentalmente, umas com as outras, fazendo-asagir, lutar, ' sobrepujar, ou ceder ao destino ou a outras pessoas.

    58.,'

    59

  • A CRIAO DE UM PAPEL

    Revela seus objetivos, sua vida pessoal, as atitudes recprocas do pr-prio ator, como organismo vivo num papel, com outras personagensda pea. Em outras palavras, esclarece as circunstncias da vida inte-rior da pea, ' isto o que estamos buscando.

    Que mais significa essaapreciao dos fatos e acontecimentos?Significa que temos de escavar sob os acontecimentos externos eencontrar, nas profundidades, aquele outro acontecimento, interior,mais importante, que talvez tenha dado origem aos fatos exteriores.Significa, tambm, que temos de seguir o fio de desenvolvimento des-se acontecimento interno, e apreender a natureza e Ograu de 'seu efei-to, a direo e linha de esforo de cada personagem, discernir o traa-do das mitas linhas interiores das personagens, os -pontosem queelas se entrecruzam e divergem, medida que cada um se dirige suameta particular na vida.

    Em suma, avaliar os fatos significa cornpreender'{e portanto sen-tir) o traado interior d'vida de um ser humano. Avaliar os fatos tornar toda a vida estranha criada pelo dramaturgo e torn-la nossa,Avaliar os fatos encontrar a chave do enigma da .vida interior deuma personagem, chave que se esconde sob o texto da pea.

    Seria erro fixar de uma vez por todas a avaliao dos fatos e acon-tecimentos de uma pea. medida que o trabalho vai progredindo,torna-se necessrio voltar sempre a novas reestimatvas, que contri- .buem para a substncia interior. Alm disso, os fatos' devem ser rea-valiados'cada vez que repetimos nossa criao de um papel, O homemno uma mquina. No pode sentir o papel da mesma forma cadavez que o interpreta. No pode ser movido cada vez'; pelos mesmosestmulos criadores, A avaliao de ontem no exatamente a mesmade hoje. Haver mudanas infinitesimais de atitude, quase impercep-:tveis e isso, freqentemente, o. estnulo principal para a criativida-de de hoje. A fora desse estmulo est em sua novidade, em seu car-ter inesperado. .

    Todas as inmeras complexidades da casualidade, pelainflunciado tempo, da temperatura, da luz, da comida, a combinao de cir-'

    '60

    O PERlDO DE ESTUDO

    cunstncias externas e internas afetam em ' .d . ." maior ou menor grau oesta o mteror do ator. Por sua vez Oestado' , t ' d 'I - 'In enor Oator afeta SUa

    re aao co~ o~ fatos. SU: capacidade de aproveitar-se todo o tem odessas mutveis complexidades seu poder d ~ P

    . .' . ' e renovar seus estImulaspo.r novas sendas, tudo ISSO parte importante da t I11' , , d

    S ~~m~~oator. em esta faculdade, o ator pode perder o I' t .d . n eresse em seu papelepois ~e pouca~.repres~f1taes, pode perder contato com os fatos e

    aCOntecImentos VIVOS e ficar privado de sua n - ... , . ....cia deles. oao quanto a Importan

    61

  • ......... ....

    , "

    CApfTULO /I O-perodo de experinciaemocional

    .. ~ .- .

  • ti

    Enquanto o primeiro perodo de elaborao do papel foi apenas pre-paratrio, este segundo uni. perodo de criao. Se o primeiro pode-ria ser comparado ao incio da 'corte entre dois' amantes, o segundorepresenta a consumao de seu amor, a concepo e a formao do .fruto de sua unio.

    Nernirovitch-Dantchenko exemplificou esse momento de criao,fazendo"um paralelo: para produzir uma planta, temos de plantar nosolo a semente. Essa semente dever dec mp r-se, e dela sairo as ra-zes da futura planta. Da mesma forma, a semente da criao do autordeve ser plantada na alma do ator, deve passar pela fase de decompo-sio, e depois lanar suas razes, das quais surgir uma nova criao. .Esta pertencer ao ator, mas, em esprito, ser frutc'"do autor.

    Se.o .perodo 'prep aratrio produziu as circunstncias determina-das, esse segundo'per odo criar a sinceridade das emoes, O coraodo, papei, sua imagem interior, sua vida espiritual. Essa experinciaemocionai do papel a fase fundamental, a fase mais importante denossa criatividade. .

    O processo criador de viver e experimentar O papel um proces-so orgnico, baseado nas leis fsicas e espirituais que governam ana