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nº 1 _ Dezembro/2011 Os Sertões - A terra, o homem e a luta Euclides da Cunha por Adriana Lourencini 2001 - Uma Odisseia no Espaço A obra-prima de Stanley Kubrick na visão de Sandra Ribeiro

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Publicação para os interessados em literatura, artes, cinema. Formato de jornalismo literário, com apresentação de resenhas, artigos, críticas e contos. Abordagem de obras literárias, cinematográficas e fatos históricos.

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Page 1: Revista Literaria

nº 1 _ Dezembro/2011

Os Sertões - A terra, o homem e a lutaEuclides da Cunha por Adriana Lourencini

2001 - Uma Odisseia no Espaço

A obra-prima de Stanley Kubrick na visão de Sandra Ribeiro

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Dezembro/2011 n• 1

Os Sertões - A terra, o homem e a lutaUma análise do livro de Euclides da Cunha por Adriana Lourencini

2_ Editoral/Literatura

4_ Cinema

“Open the pod bay doors, HAL!”2001 Uma Odisseia no Espaço a obra-prima de Stanley Kubrick na visão de Sandra Ribeiro

6_ História

A Mulher no CangaçoAdriana Lourencini conta como Maria Bonita consquistou Lampião e deu o toque feminino no movimento cangaceiro

8_ Ficção

Vermute com AmendoimDesafiamos Sandra Ribeiro a misturar Noel Rosa e uma lhama em um conto, e parece que ela conseguiu!

ExpedienteProjeto Gráfico e Editorial: Sandra Ribeiro e Adriana LourenciniImagens: Google ImagensCapa: Jovem mulher lendo um livro - August Pierre RenoirContatos: [email protected] e [email protected]

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ublicado em 1.902, “Os sertões” trata da Guerra de Canudos (1896-1897), no interior da Bahia.

Euclides da Cunha presenciou uma parte desta guerra como correspondente do jornal O Estado de São Paulo. No entanto, antes de falar sobre o livro é necessário destacar o contexto sócio-cultural em que ele foi es-crito. Com base na seleção natural de Charles Darwin sobre a evolução das espécies – a teoria da evolução – surgiram correntes nas ciências sociais que se apoiavam na tese da sobrevivência da espécie huma-na para instituir o controle demográfico. Mais conhe-cido como darwinismo social, o pensamento susten-tava a idéia de que características biológicas e sociais determinavam que uma pessoa fosse superior a outra. Alguns dos padrões determinantes da superioridade de um indivíduo seriam um maior poder aquisitivo, a habilidade nas ciências exatas e a raça. O Darwin-ismo Social foi empregado para tentar explicar a po-breza pós-revolução industrial, sugerindo que os que estavam pobres eram os menos aptos (segundo in-terpretação da época da teoria de Darwin) e os mais ricos, que cresceram economicamente, seriam os mais aptos a sobreviver, por isso os mais evoluídos. A tendência de se construir explicações biológi-cas para comportamentos considerados como so-

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Os Sertões - A terra, o homem e a luta

Obra-prima de Euclides da Cunha retrata aspectos sócio-culturais do Brasil do século XIX

Adriana Lourencini

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“O pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê.” Mario Quintana

“Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por idéias.” Mário

Vargas Llosa

Pois bem, vamos procurar satisfazer os Mários com uma revista que atraia os que não leem e forneça

matéria-prima aos críticos de plantão. Mas podemos adiantar que, preferimos Leminski

quando diz, “o destino quis que a gente se achasse, na mesma estrofe e na mesma classe, no mesmo

verso e na mesma frase”.Definitivamente, Literária é para quem gosta de

ler, o nome já diz a que viemos. Em nossas páginas o leitor vai encontrar análises dos grandes textos,

resenhas e críticas. Tudo temperado com uma dose de jornalismo livre, não vamos nos ater ao factual,

mas, teremos pés e mãos na atualidade. Neste primeiro número trouxemos dois ícones, um da literatura e outro do cinema, como destaque. Adriana Lourencini mergulhou no universo de

Euclides da Cunha e nos trouxe uma contextual-ização histórica do clássico Os Sertões. O texto vai

ajudar a compreender e aproveitar o máximo desta obra, que é também uma cobertura jornalística. Sandra Ribeiro expõe porque vale a pena rever

2001 Uma Odisseia no Espaço sempre que houver oportunidade. O filme de Stanley Kubrick continua fascinando os cinéfilos, mesmo após mais de duas

décadas de seu lançamento. E ainda, um retrato da mulher no cangaço e um conto bem humorado para

fechar a edição. Use e abuse dos nossos e-mails. Aceitamos críticas, elogios e até declarações de amor, desde que bem

redigidas. Boa leitura!

Caro leitor

Sandra Ribeiro

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cialmente indesejados, tais como o alcoolismo, a violência, a tristeza ou a depressão e a infância problemática (ao que hoje damos o diagnóstico de DDA – Distúrbio de Déficit de Atenção), caracter-izou grande parte do discurso da Higiene e da Me-dicina Legal no final do século XIX e inicio do XX. Euclides da Cunha era jornalista, militar e repub-licano, e sua formação ocorreu dentro dessa ma-neira de pensar. Ele acreditava ser o Homem um produto do meio (determinismo – a misci-genação dos povos é contra as ‘leis naturais’). Em “Os sertões” o autor aborda a questão da mis-cigenação no Brasil, fazendo uma distinção entre o sertanejo do litoral e do interior do país. Euclides baseia-se nas teorias raciais da época, compondo uma teoria na qual mostra como é prejudicial à in-tensa mestiçagem, pois pode trazer elementos de uma raça evoluída, degradando-os com os elemen-tos de uma raça que se encontra em estágio inferior:“A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolu-cionismo, ainda quando reaja sobre o produto o in-fluxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indio europeu, o negro e o brasílio-

guarani ou o tapuia, exprimem estágios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um es-timulante a revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado.” (CUNHA, 96, 1985)O livro acaba, mas não termina. Esta obra foi uma das mais importantes reflexões sobre a identidade nacio-nal. O escritor positivista que acreditava na república é o mesmo que denuncia a dor, a fome e a barbárie. Canudos foi um crime cometido para e pela república. O Estado monarquista só chegara tão longe para traz-er a injustiça e a morte. Essa não era a república rec-lamada pelo autor. Euclides não mascarou a realidade porque não pregou uma falsa igualdade social entre as “raças”, o que seria feito por outros. Como identidade nacional, podemos tirar a frase “A nação brasileira é o resultado de uma angústia racial”, e ele, Euclides da Cunha, é o primeiro que se propõe a fazer um estudo a fundo desses cruzamentos todos que nos formam.

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filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, do cineas-ta americano Stanley Kubrick, foi lançado em

1968 sob a análise de alguns críticos como a mais elaborada experiência audiovisual da história do cinema. Baseado no romance homônimo do escri-tor Arthur C. Clarke, que o escreveu paralelamente às filmagens, a película ultrapassa a mera trans-posição de formas. Carregado de metáforas e sim-bologias, a obra vai além da narrativa filmada, é um prato cheio para estudantes de comunicação, audiovisual e semioticistas. Na época o crítico da revista Film Comment, F. A. Macklin, definiu assim esta relação entre a literatura e o cinema, “o modo mais gratificante de encarar o livro de Clarke é vê-lo como o primeiro crítico, extremamente útil na com-preensão de 2001, mas não seu único intérprete.” Lançado no ápice da corrida espacial e sob o signo da Guerra Fria, o conflito ideológico pós Segunda Guerra que mesmo sem ter chego aos finalmentes tirou o sono da humanidade, houve quem disparasse críticas ao partidarismo de Kubrick. Mesmo fazendo alusão ao embate URSS/EUA, o diretor estava ap-enas interessado em criar um filme de ficção cientí-fica com enfoque na busca de vida extraterrestre. Foi esta capacidade de transitar entre os diversos gêneros que fez dele um dos maiores gênios da sétima arte. Em meados de 1964, por sugestão do seu agente,

Stanley Kubrick encontra o escritor britânico Ar-thur C. Clarke já consagrado na área da literatura científica ficcional. O diretor encomenda um ro-teiro para um filme de “ETs” e o escritor sugere um dos seus contos A Sentinela. Depois de algu-mas discussões eles resolveram usar a ideia prin-cipal do mesmo, além de desenvolver uma narra-tiva romanceada antes de roteiro cinematográfico. Clarck se instalou numa suíte do hotel Chelsea em Manhattan com a incumbência de trazer 2001 à luz. O Chelsea ficou famoso por abrigar figuras da música como Bob Dylan, Janis Joplin, Iggy Pop e escritores da ordem de Charles Bukowiski, William Burroughs e Allen Ginsberg, estes últimos seus colegas de bar. O primeiro título oficial do filme foi Viagem Além das Estrelas, além de alguns descartados como: Universo, Túnel para as Estrelas, Queda Plan-etária, o definitivo só viria à tona um ano depois. As filmagens de 2001 começaram em dezembro de 1965 nos estúdios da MGM, o orçamento total foi de US 10,5 milhões, sendo que US 6,5 foram gastos em efeitos especiais. Em essência, a estru-tura narrativa de 2001 é simples, chegando à ar-istotélica, as obras de referência são a Odisseia (Homero), O Mito do Herói (Joseph Campbell) e a filosofia da evolução de Friedrich Nietzsche. Cinematograficamente Kubrick imprime a sua marca

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“Open the pod bay doors, HAL!”

Da aurora da humanidade à revolução tecnológica, odiscurso de 2001 Uma Odisséia no Espaço continua

fascinante

Sandra Ribeiro

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na obra, abusa de fades intermináveis, um deles com três minutos de duração, um número astronômico quando falamos de audiovisual. Planos gerais que buscam introduzir o espectador na cena, sequências extensas e uma elipse que faz o filme saltar do perío-do pré-histórico para a era espacial em segundos ge-niais. Esta entrou para a história como a mais longa do cinema. Do monolito encontrado na Terra, na au-rora do homem ao feto dançando no espaço como se fosse um planeta, transcorrem 149 minutos de pura divagação existencial. Tudo isto ao som de Richard Strauss Assim falou Zaratustra, trilha que foi con-cebida como provisória e se tornou ícone do filme. Apesar de o diretor fazer da obra um exercício de subjetividade, ele deu a seguinte interpretação ao crítico de cinema Joseph Gelmis, “Começa com um artefato deixado na Terra há 4 milhões de anos por exploradores extraterrestes, que observavam o com-portamento dos homens macacos da época e decidi-ram influenciar o progresso de sua evolução. Tem-se então um segundo artefato enterrado na superfície lunar e programado para sinalizar os primeiros pas-sos do homem pelo universo – uma espécie de alarme cósmico contra bandidos. Finalmente há um terceiro artefato colocado ao redor de Júpiter e esperando pela hora na qual o homem alcança os limites do seu próprio sistema solar. Quando o astronauta sobrevive

finalmente alcança Júpiter, esse artefato atira-o a um campo de força ou um portal estelar que o arremessa em uma viagem pelo espaço interior e exterior e final-mente o transporta para outra parte da galáxia , onde ele é colocado em uma espécie de zôo humano simi-lar a um esboço de hospital terrestre, retirado de seu próprio sonho e sua própria imaginação. Num estado fora do tempo, a vida dele passa da meia idade, à seni-lidade e morte. Ele renasce um ser desenvolvido, uma criança-estrela, um anjo, um super-homem, como se preferir, e volta à Terra preparado para o próxi-mo salto à frente no destino evolutivo do homem.” Clarke defende uma leitura mais direta do filme, afirmando que se trata de duas buscas importantes na história da humanidade: o desenvolvimento de máquinas inteligentes e o contato com alienígenas. O personagem central e mais complexo da trama é Hal 9000, um supercomputador responsável pela se-gurança e comando da nave espacial. Em certo mo-mento ele começa a desenvolver emoções humanas. Vaidade, orgulho e ira levam o cérebro eletrônico à loucura e fazem com que ele mate a tripulação da Discovery. Em umas das cenas mais emblemáticas do filme, Hal tranca o comandante e único sobre-vivente para fora da espaçonave. “Open the pod bay doors, HAL!” ordena o homem, “I am sorry Dave, but i can not let you do that” responde, im-passível e com uma voz que chega a ser terna. A criança-estrela que fecha o filme bailando no es-paço representa a crença do diretor na evolução da humanidade, no surgimento do super-homem. Uma crítica a supervalorização da tecnologia em detri-mento ao desenvolvimento da mentalidade humana. Anos depois em 1984 este discurso aparece nova-mente em Solaris, filme do diretor russo Andrei Tar-koviski. Também baseado em uma obra literária, do escritor polonês Stanislaw Lem, ele question-ava os motivos que fazia a extinta União Soviética dispensar esforços econômicos acima de suas po-tencialidades, na Guerra Fria e na corrida espa-cial e deixasse o fator humano em segundo plano. Embora alguns críticos até hoje afirmem que So-lares é uma resposta a 2001, o primeiro foi feito com recursos escassos e uma narrativa filosófica forte, o segundo entrou para a história por suas inovações tecnológicas, tanto um como outro acen-dem a mesma discussão humanística. Defendo a ideia que 2001 Uma Odisseia no Espaço seja visto ao menos uma vez por ano, a leitura nunca será a mesma. Já Solaris é para os mais fortes, quase três horas de pura semiótica, porém incrivelmente belo.

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e canga ou cangalho: uma junta de madeira car regada pelos bois para facilitar o trabalho na

lavoura – deste termo deriva a expressão cangaço. E o destemido guerreiro da caatinga nordestina que leva seu rifle às costas é denominado cangaceiro. No início do século passado já desbravava os sertões com seu chapéu de couro, imitando aquele do boia-deiro, porém, o seu era todo enfeitado, pois era “ca-bra” vaidoso. Assim como exibia sua valentia e virili-dade, gostava de ostentar seus vários anéis, a maioria de ouro, e junto ao seu embornal carregava tudo o de que necessitava para a rude vida peregrina sob o sol.Movimento de cunho social, o cangaço antecede mesmo o período republicano, sendo citado como o primeiro fora da lei do sertão o lendário cangaceiro José Gomes (vulgo Cabeleira) que, após atacar Rec-ife, foi preso e enforcado. Mais tarde, outro valentão marcou época: Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesu-íno Brilhante, espécie de “Robin Hood” do Nordeste – que distribuía entre os pobres os alimentos saquea-dos dos comboios do governo. Muitos outros vieram posteriormente, já que a atividade havia se tornado

bastante lucrativa, tendo então surgido vários grupos que roubavam e matavam nas caatingas. No começo da história, esses grupos eram compostos de homens armados a mando de poderosos coronéis. Até na arte popular, os feitos dos cangaceiros encontram farto repertório na literatura de cordel e no canto simples dos repentistas, muito apreciados até os dias atuais.No princípio, e durante muito tempo de sua existên-cia, o cangaço, pela brutalidade que o envolvia, era um universo exclusivo dos homens. A mulher per-manecia sempre em lugar fixo, com a identidade resguardada, esperando um dia poder ver, mesmo por alguns minutos, seu amor guerreiro. Porém, este cenário iria mudar completamente a partir de 1930.Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião, reinou no cangaço entre 1920 e 1938. Em 1922 as-sume o bando de Sinhô Pereira, e rapidamente se dis-tingue pela valentia, ferocidade e inteligência. Exímio estrategista chegou a comandar um exército nômade de mais de 100 homens, sempre distribuídos em sub-grupos de 10 ou 15 liderados, o que lhes dava maior mobilidade e dificultava a ação das volantes (policiais

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A Mulher no Cangaço

Com charme, perfume e muito chamego elas revolucionaram e humanizaram o movimento

Adriana Lourencini

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da caatinga). A capacidade de despistar o inimigo e escapar de emboscadas lhe conferiu a fama de pos-suir poderes sobrenaturais, de ter o “corpo fechado”. Lampião não era um demônio nem um herói, era cangaceiro. Sempre afirmou que entrou para a vida de bandido para vingar a morte do pai, José Ferreira, assassinado por questões de terra com o vizinho. Naqueles tempos, vingança e honra ofendida caminhavam juntas, e não ir à forra era con-siderado frouxidão moral, e frouxo Virgulino não era!Mas, em 1929 uma sertaneja amolece o coração do mais temido bandoleiro das selvas nordestinas. Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, foi a primeira mul-her a entrar para o cangaço. Separada do antigo mari-do, o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé Neném, ela conheceu Lampião na casa dos pais, em Malhada de Caiçara (BA), quando tinha apenas 17 anos. Logo em seguida, em 1930, ela largou tudo para seguir a pisada do chefe supremo do bando, e por isso coube-lhe a alcunha de “rainha do cangaço”; no entanto, a História prefere chamá-la de Maria Bonita, carinho recebido de seu novo companheiro. Entretanto, no bando sempre se dirigiam a ela como dona Maria.Depois dela, muitas outras Marias ingressaram nos desconhecidos caminhos do cangaço, entre elas: Lí-dia (de Zé Baiano), Adília (de Canário), Catarina (de Nevoeiro), Nenê (de Luiz Pedro), Naninha (de Gavião), Durvinha (de Moreno), Sila (de Zé Sereno), Inacinha (de Gato), Aristéia (de Catingueira), Dulce (de Criança), Maria (de Juriti), Maria (de Pancada) e Dadá (de Corisco). Este último, também apelidado de Diabo Louro que, logo após a morte de Lampião tenta assumir por dois anos o lugar de chefe dos cangaceiros; porém, em 1940 sofre uma embosca-da e não resiste aos ferimentos, encerrando defini-tivamente uma saga que durou mais de 200 anos. Quando soube da notícia, o velho mestre de Virgu-lino, Sinhô Pereira, estranhou, e fez a seguinte de-claração: “Eu fiquei muito admirado quando soube que Lampião havia consentido que mulheres ingres-sassem no cangaço. Eu nunca permiti, e nem per-mitiria. Afinal, o padre Cícero havia profetizado: Lampião será invencível enquanto não houver mul-her no seu bando.” Para alguns cangaceiros a entrada de mulheres nos bandos foi vista como a decadência e a desgraça do cangaço; para outros, elas chegaram para aplacar a fúria assassina e o desejo sexual dis-forme que feria e humilhava as famílias nordestinas.O ex-cangaceiro Balão declarou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo: “Enquanto não apareceu mul-her no cangaço o cangaceiro brigava até enjoar. Depois disso, eles passaram a evitar tiroteios e batiam logo em retirada para resguardar a integridade física das com-

panheiras”. As mulheres tinham a resistência e valen-tia dos homens, mas, muitas vezes atrapalhavam na fuga por ficarem doentes ou grávidas - (Neno Canuto).Assim como ocorreu com Lampião, foi criado um mito em torno da história de Maria Bonita. Rompedo-ra de princípios seculares e padrões mantidos através de gerações em que a mulher deveria ser submissa ao marido, afeita ao trabalho doméstico e geradora de dezenas de filhos, ela ousou deixar o marido com quem se casara na adolescência, abandonando cos-tumes e tradições e ferindo a honradez da família. Todavia, há que se reconhecer a presença feminina e a influência que exerceu na trajetória do cangaço, nas veredas, nos coitos, nas brenhas das caatingas ou nas cidades por onde cangaceiros e policiais de-ixaram seus rastros, nos sete estados nordestinos em que lutaram, amaram e pereceram. Como as demais sertanejas nordestinas, as mulheres recebiam a pro-teção paternalista dos seus companheiros, mas o seu cotidiano era bem difícil. Levar a termo as gestações, por exemplo, no desconforto da caatinga, significava muito sofrimento para elas. Às vezes, precisavam andar várias léguas, logo após o parto, para fugir das volantes. E caso não possuíssem uma resistên-cia física incomum, não conseguiriam sobreviver.

Mulher cangaceira não lavava, não passava e não tinha que cozinhar – isso era tarefa para os homens. Tam-pouco tinham que cumprir outras tarefas domésticas, nem mesmo cuidar dos filhos – estes eram entregues assim que nasciam para serem criados por coiteiros (pessoas que davam guarida ao bando) ou por padres. Elas também não participavam dos combates, à ex-ceção de Sila, mulher de Zé Sereno. Seu papel era o de fazer companhia e dar carinho a seus homens. Além disso, a mulher facilitava a comunicação com a população e impunham alguns limites à violên-cia. Alguns consideram que as mulheres representa-ram um atraso para os cangaceiros; outros, afirmam que sua presença foi de vital importância por alivi-ar muitos dos sofrimentos causados aos sertanejos. Para a historiadora Carla Alberta González, não houve mulheres no cangaço, e sim cangaço nas mul-heres - a entrada de Maria Déa no bando de Lampião foi uma afronta a sociedade sertaneja patriarcal da época. Ao introduzir a mulher no cangaço, ele que-brou uma regra a muito arraigada e legitimada no senso comum: de que a mulher é apenas objeto e se-quer tem o direito de exercer qualquer papel que não seja o de esposa e dona de casa. E isso é revolução.

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“Eu não busco as tentações, elas é que esbarram em mim lançam um sorriso convidativo, um olhar desafiador e fogem a passos lentos. Nunca pude re-sistir ao toc toc dos saltos, o farfalhar das saias, a profusão de cores e aromas! Hoje sei que errei, mas naquele momento foi como se um demônio me to-masse, vi a razão se tornar cada vez mais débil e por fim me entreguei. Tu bem sabes como sou sonhador, tem algo a ver com meu signo, é o que sempre diz minha mãe!” Raul abaixou a cabeça e fixou os ol-hos no copo de vermute, desejou ter cianureto para despejar ali algumas gotas. “Ora bolas, cianureto?! O máximo que poderei arrumar nesta baiuca mal cheirosa é uma porção de chumbinho e olhe lá!” Reuniu todas as forças para levantar o rosto e encarar Maria Luisa em pé a sua frente, o esforço sobre hu-mano durou longos segundos, mas mal encontrou os olhos dela e sentiu uma rajada de ar deslocado e o tabefe sonoro que tatuou cinco dedos em sua face. Com um carrilhão de sinos tocando em seus ouvidos ele mal escutava os impropérios que lhe eram dirigidos. Ela arrancou a aliança de noivado e atirou sobre a mesa. A joia quicou várias vezes e saiu rolando pelo chão imundo do boteco, enquan-to ia embora apressada, com seu andar de exag-erados requebros e a saia farfalhando alto, tão alto que ele mal podia ouvir os próprios pensamentos. Refeito da agressão ele engoliu a última dose da be-bida, ajoelhou-se no chão em busca da aliança, mas ela havia rolado para baixo de uma jukebox no canto do bar. “Infernoooo!”, praguejou se arrastando para perto da máquina. E la estava o símbolo do seu amor, dividindo o lugar com baratas mortas, teias de ara-nhas e bitucas de cigarro. Tentou alcançá-la, mas a

mão não cabia no pequeno espaço e ela continuou ali inacessível. “Maldição, mil vezes maldição e agora Deus? Não tens mais nenhuma idéia para tornar meu dia pior?” Neste momento toda fauna do bar já estava atenta à cena patética. Foi quando ele ouviu uma voz que veio de cima. “Oi camarada, precisa de ajuda?” Raul olhou e se deparou com um cara vestido de ma-riachi e outro ruivo, metido numa estúpida fantasia de amendoim, este último sorriu e estendeu a mão. “Venha camarada, vamos te pagar uma bebida!”, ele torceu o nariz desconfiado. “Quem são vocês? Uma espécie nova de viados aliciadores? Deixem-me em paz!” O homem vestido de amendoim se irritou e olhou para o amigo. “Ta vendo Afonso, o mundo esta perdido! A gente oferece ajuda e o morfético ainda ofende. Meu amigo levanta daí, você esta parecendo pano de chão, o que ta pegando?” Raul desistiu de argumentar e em poucas palavras explicou o ocorrido para a estranha dupla. O mariachi tirou uma caneta do bolsinho do colete e entregou a ele que usou para alcançar a alian-ça, apertou-a no punho e sorriu. “Agora levanta que vamos te pagar aquela dose”, disse sorrindo o amen-doim, que agora reparando melhor, era extremamente branco, quase albino. “Tudo bem, estou duro mes-mo!”, ele levantou-se e acompanhou-os até o balcão.Sentaram-se nos banquinhos amarelos e altos, o ma-riachi pediu uma cachaça, o amendoim uma vodka e Raul mais um vermute. O segundo falava pelos co-tovelos, enquanto o amigo apenas concordava com ahans e uhuns, vez ou outra soltava um é mesmo. Eram divulgadores de uma marca de amendoins e castanhas que vinham em saquinhos compridos e com a foto de uma lhama. “O que tem a ver lhamas com amendoins?” “Não são lhamas são vicunhas.” Saiu em defesa o moço branco que se chamava Leon. “Na verdade não é Leon, é Luís, mas prefiro que me chamem assim!” E continuou a explicação. “O presidente da empresa plantava amendoins no Peru, mas teve que fugir do país por causa do regime de Velasco. Chegou aqui e descobriu que a mistura de amendoim salgado com cerveja gelada agradava a população, então montou um império. Sofria de sat-iríase e morreu de gonorréia ano passado, agora os herdeiros estão brigando pela sua fortuna. A ganân-cia ainda vai dizimar a humanidade!”, filosofou. “É mesmo”, refletiu o mariachi . Neste momento al-guém colocou Candy para tocar na Jukebox e um travesti de longos cabelos loiros começou a dançar. Enquanto Iggy Pop cantava e aquela figura plin-iana se contorcia, os três continuaram a beber, até o amanhecer. Raul encaixou o chapéu Panamá na ca-beça, que só matutava. “Onde estaria Maria Luisa?”

Vermute com Amendoim

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