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METÁFORAS DO COTIDIANO DE CIBERCULTURAS ANGLÓFONAS EM TEXTOS MULTIMODAIS DE IMAGEBOARDS BRASILEIRAS Samuel Araujo de Oliveira Alves 1 Orientadora: A. Ariadne Domingues Almeida Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar resultados de um estudo preliminar sobre metáforas de uso cotidiano em ciberculturas anglófonas dentro de imageboards brasileiras em textos multimodais com elementos verbais em português através de uma abordagem da Semântica Cognitiva. O corpus é constituído por textos multimodais de produção verbal espontânea encontrados em chans brasileiros. A proceder à análise recorreu-se à Teoria da Metáfora Conceptual, proposta Lakoff e Johnson (1980, 1999), à Teoria da Mesclagem Conceptual, proposta por Fauconnier e Turner (2002), a estudos de metáfora e cultura (KÖVECSES) e de textos multimodais propostos por Forceville e Urios-Aparisi (2009). Os resultados apontam que a interação com ciberculturas anglôfonas introduz não somente itens léxicos no português, mas também novas metáforas complexas. Palavras-chave: metáfora conceptual, mesclagem conceptual, cibercultura. PARA INICIAR A DISCUSSÃO O seguinte trabalho encontra-se dividido em três partes, a primeira corresponde à fundamentação teórica. A segunda contém breve discussão sobre o corpus selecionado e análises decorrentes das abordagens selecionadas dentre as brevemente apresentadas na primeira secção. Na última parte, se tecerão as considerações finais. 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Sob perspectiva cognitivista de Lakoff e Johnson (1980), a metáfora, analisada através da Teoria da Metáfora Conceptual (doravante TMC), não se restringe à simples figura de linguagem como postulam os retóricos tradicionais, pois está presente em nosso cotidiano como elemento fundamental do próprio sistema conceptual humano. Entendendo-se que, ao lançar mão de expressões como “ele perdeu a discussão, utiliza- se a metáfora estruturada conceptualmente em DISCUSSÃO É GUERRA, que estrutura o domínio alvo discussão(mais abstrato) em função do domínio fonte guerra1 Bacharelando em Língua Inglesa pela UFBa. [email protected].

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Cibercultura / Semântica Cognitiva / Chans

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METÁFORAS DO COTIDIANO DE CIBERCULTURAS ANGLÓFONAS EM

TEXTOS MULTIMODAIS DE IMAGEBOARDS BRASILEIRAS

Samuel Araujo de Oliveira Alves1

Orientadora: A. Ariadne Domingues Almeida

Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar resultados de um estudo preliminar

sobre metáforas de uso cotidiano em ciberculturas anglófonas dentro de imageboards

brasileiras em textos multimodais com elementos verbais em português através de uma

abordagem da Semântica Cognitiva. O corpus é constituído por textos multimodais de

produção verbal espontânea encontrados em chans brasileiros. A proceder à análise

recorreu-se à Teoria da Metáfora Conceptual, proposta Lakoff e Johnson (1980, 1999),

à Teoria da Mesclagem Conceptual, proposta por Fauconnier e Turner (2002), a estudos

de metáfora e cultura (KÖVECSES) e de textos multimodais propostos por Forceville e

Urios-Aparisi (2009). Os resultados apontam que a interação com ciberculturas

anglôfonas introduz não somente itens léxicos no português, mas também novas

metáforas complexas.

Palavras-chave: metáfora conceptual, mesclagem conceptual, cibercultura.

PARA INICIAR A DISCUSSÃO

O seguinte trabalho encontra-se dividido em três partes, a primeira corresponde

à fundamentação teórica. A segunda contém breve discussão sobre o corpus selecionado

e análises decorrentes das abordagens selecionadas dentre as brevemente apresentadas

na primeira secção. Na última parte, se tecerão as considerações finais.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Sob perspectiva cognitivista de Lakoff e Johnson (1980), a metáfora, analisada

através da Teoria da Metáfora Conceptual (doravante TMC), não se restringe à simples

figura de linguagem como postulam os retóricos tradicionais, pois está presente em

nosso cotidiano como elemento fundamental do próprio sistema conceptual humano.

Entendendo-se que, ao lançar mão de expressões como “ele perdeu a discussão”, utiliza-

se a metáfora estruturada conceptualmente em DISCUSSÃO É GUERRA, que estrutura

o domínio alvo “discussão” (mais abstrato) em função do domínio fonte “guerra”

1Bacharelando em Língua Inglesa pela UFBa. [email protected].

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(supostamente concreto). Pode-se afirmar que metáfora conceptual é manifestação da

forma que o mundo é compreendido pela mente humana, mais especificamente

conceptualizado. Mesmo assim, há de se fazer ressalvas quanto à consistência da

metáfora conceptual tanto por sua natureza predominantemente inconsciente quanto

pelo aspecto conceptivo da percepção que, em metáforas, revela, porém suprime

aspectos dos fenômenos experienciados, assim:

The very systematicity that allows us to comprehend one aspect of a

concept in terms of another (e.g., comprehending an aspect of arguing

in terms of battle) will necessarily hide other aspects of the concept. In

allowing us to focus on one aspect of a concept (e.g., the battling

aspects of arguing), a metaphorical concept can keep us from focusing

on other aspects of the concept that are inconsistent with that metaphor.

For example, in the midst of a heated argument, when we are intent on

attacking our opponent's position and defending our own, we may lose

sight of the cooperative aspects of arguing. (LAKOFF; JOHNSON,

1980, p.10).

É com a aplicação da TMC que, em Philosophy in The Flesh (1999), Lakoff e

Johnson analisam metáforas conceptuais presentes em distintos sistemas filosóficos

ocidentais, demonstrando como diversas escolas filosóficas que até negam a existência

de metáforas, em suas produções, defendendo a possibilidade de uma literalidade

absoluta, são inerentemente influenciadas e estruturadas por metáforas, já que, nas

palavras de Lakoff e Johnson (1999, p. 3), os três principais achados das ciências

cognitivas são que “The mind is inherently embodied. Thought is mostly unconscious.

Abstract concepts are largely metaphorical.”. Dentre pletora de contribuições para as

investigações sobre metáforas, pode-se afirmar que os estudos desenvolvidos sobre

metáforas primárias e variações na cultura de metáforas complexas apresentados por

Kövecses, em Metaphor in Culture (2005), são de especial relevância para este trabalho,

já que o mesmo distingue as primeiras, mais diretamente ligadas às experiências

corpóreas universais (GRADY, 1997), das segundas que, encontrando-se sob maior

influência da cultura, apresentam grande variação, embora ainda conceptualizadas pela

mente corporificada. Tais achados certamente ampliam o escopo de estudos para

metáforas que não têm o corpo como domínio fonte evidente e, portando, não são – em

sua maioria – universais, como apontado por Kövecses:

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Thinking (by means of affection is warmth) and talking (e.g., “We have a warm relationship”) of affection in terms of warmth arise naturally

from our embodied experience. Probably no one would be surprised to

hear that affection is universally conceptualized as warmth, rather than coldness. To learn such “primary” metaphors is not a choice for us: It

happens unconsciously and automatically. Because this is a universal

bodily experience, the metaphor corresponding to it may well be

universal. In other words, universal primary experiences produce universal primary metaphors. And yet, when we look at metaphors in

the world’s languages, we have the distinct impression that there is a

large number of nonuniversal metaphors as well, and that they may be just as numerous as the universal ones, if not more so. In other words,

variation in metaphor appears to be just as important and common as

universality (as pointed out, for example, by Kienpointner, n.d.).

(KÖVECSES, 2005, p. 22).

Além, dentre outros tópicos abordados em Philosophy in The Flesh (1999), há

de se mencionar a refutação de tautologia em Metaphors We Live By (1980) através de

um estreitamento das relações entre Linguística Cognitiva, achados das neurociências e

da experimentação psicológica. Assim restabelecendo sólidas bases no princípio do

desenvolvimento de uma ciência empiricamente responsável.

Em complementaridade, pode-se apontar que, após quase vinte anos da

publicação de Metaphors We Live By (1980), Lakoff e Johnson (1999) arrolam entre os

resultados fundamentais das investigações da Semântica Cognitiva a percepção de que

os conceitos nascem e são compreendidos através de corpo e cérebro pela mente

corporificada, principalmente, através das funções motoras e sensoriais e que

conceptualizações movimentam aspectos mentais criativos cruciais para o pensamento,

como frames, metáfora, metonímia, protótipos, espaços mentais e mesclagem

conceptual. Essas breves considerações abrem espaço para a próxima teoria a ser

abordada e utilizada neste trabalho.

Em Mental Spaces – Aspects of Meaning Construction in Natural Language

(1985), Fauconnier desenvolve contribuição de considerável influência para as ciências

cognitivas, com a Teoria dos Espaços Mentais, que tem escopo, posteriormente,

alargado com a Teoria da Mesclagem Conceptual (blending), desenvolvida por

Fauconnier e Turner e já apresentada em Conceptual Projection and Middle Spaces

(1994). Como dispõem Falconnier e Turner (2002) sobre os propósitos desses processos

cognitivos:

We do not establish mental spaces, connections between them, and

blended spaces for no reason. We do this because it gives us global

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insight, human-scale understanding, and new meaning. It makes us both

efficient and creative. One of the most important aspects of our

efficiency, insight, and creativity is the compression achieved through

blending. (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 92).

Um dos estudos fundamentais para a compreensão desses processos envolve a

categorização baseada em uma teoria de protótipos que, nas palavras de Lakoff (1993)

em Women, Fire and Dangerous Things (1993), tem relevância intrínseca, pois:

The approach to prototype theory that we will be presenting here

suggests that human categorization is essentially a matter of both

human experience and imagination–of perception, motor activity, and

culture on the one hand, and of metaphor, metonymy, and mental

imagery on the other. As a consequence, human reason crucially

depends on the same factors, and therefore cannot be characterized

merely in terms of the manipulation of abstract symbols. Of course,

certain aspects of human reason can be isolated artificially and modeled

by abstract symbolmanipulation, just as some part of human

categorization does fit the classical theory. But we are interested not

merely in some artificially isolatable subpart of the human capacity to

categorize and reason, but in the full range of that capacity. As we shall

see, those aspects of categorization that do fit the classical theory are

special cases of a general theory of cognitive models, one that permits

us to characterize the experiential and imaginative aspects of reason as

well. (LAKOFF, 1993, p. 8, 9).

A Teoria da Mesclagem Conceptual opera com projeções e mappings

(correspondências), que permitem construir novos espaços mentais na mesclagem, que é

largamente inconsciente e cria espaços de novos significados.

Assim temos, sucintamente: espaços mentais que correspondem a pacotes

conceptuais de construção online. Espaços de input, que podem substituir domínio-fonte

e domínio-alvo e são estruturas parciais. Espaços genéricos, que são espaços onde é

mapeado o que há de comum em cada input. O espaço mental do blend, onde reside o

novo espaço mental. E por fim a estrutura emergente, onde o blend é finalmente

integrado.

Ressalta-se, não obstante, que trabalho crucial para o desenvolvimento deste é

Multimodal Metaphor (Applications of Cognitive Linguistics) de Forceville e Urios-

Aparisi (2009), que fornece suporte para estudo de elementos imagéticos e verbais no

texto multimodal.

O seguinte gráfico, retirado da comunicação Conceptual Blenging, Form and

Meaning (FAUCONNIER; TURNER, 2003), ilustra e servirá de modelo para as

análises aqui presentes.

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2. METÁFORAS CONCEPTUAIS E MESCLAGENS CONCEPTUAIS EM TEXTOS

MULTIMODAIS NOS CHANS BRASILEIROS

Os chans – ou imageboards – podem ser parcialmente definidos como fóruns de

discussão que permitem publicação anônima de imagens e textos sob enforced

anonymity (ORAVEC, 1996), em boards seccionadas em pletora de temas – política,

videogames, pornografia, drogas, literatura entre outros – que, desde a fundação em

2003 do 4chan, versão estadunidense do japonês 2chan, indo de encontro ao princípio

da vedação ao anonimato da Constituição do Brasil e de leis análogas em diversos

outros países, tem constituído uma das ciberculturas (LEVY, 1997) mais prolíficas na

criação de memes da Internet. Com versões em dezenas de línguas, que trazem consigo

empréstimos e calques do inglês, essas imageboards caracterizam-se pela presença de

abundantes processos de construções metafóricas multimodais (FORCEVILLE, 2009),

em sua maioria complexas (KÖVECSES, 2005) e em dada frequência inadimplentes

para com a percepção de um mundo de verdades instituídas por metáforas canonizadas

(NIETZSCHE, 1873). Em plena vanguarda da liquidez pós-moderna (BAUMAN,

2000), imagens de profundidades iconográficas e iconológicas (PANOFSKY, 1939) e

crípticos neologismos, são produzidos, contra a vontade expressa dessas comunidades,

difundidos – com frequência emergindo à superfície através das redes sociais – e, por

desuso, em célere obsolescência tacitamente programada, dados ao fugaz esquecimento.

Em geral os usuários de chans apresentam-se em complexidade, inteiros, como

dificilmente seria possível em uma rede social em cujo nome e imagem são mandatórios

para que se estabeleçam credibilidade e confiabilidade. No chan, o anônimo – ou anão

como é sarcasticamente traduzido o termo anon para o português – o indivíduo, muitas

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vezes, se apresenta com explosividade, em todas suas multiplicidades, uma vez em parte

desfeitas as amarras de representação social. Nos chans, toda ordem estabelecida pelo

nome e foto do perfil da rede social é suprimida. Um indivíduo, identificado somente

por um número de postagem, pode discutir consigo mesmo, assumir quantas identidades

quiser, ser um homem de vinte anos e se comportar como uma linda jovem de quinze,

sofrer privações e se arrogar de riquezas, ser preterido na vida amorosa por compleição

esteticamente pouco agradável à norma vigente e, no chan, criar uma thread – ou fio

nos chans brasileiros – para humilhar a todos com a sua exemplar beleza. É

integralmente válida a citação de Hadj Garm’ Oren feita por Morin (2000) quanto à

condição humana:

todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das vidas, constitui,

em si mesmo, um cosmo. Traz em si suas multiplicidades internas, suas

personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos,

uma poliexistência no real e no imaginário, o sono e a vigília, a

obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto, pululâncias

larvares em suas cavernas e grutas insondáveis. Cada um contém em si

galáxias de sonhos e de fantasias, de ímpetos insatisfeitos de desejos e

de amores, abismos de infelicidade, vastidões de fria indiferença,

ardores de astro em chamas, ímpetos de ódio, débeis anomalias,

relâmpagos de lucidez, tempestades furiosas... (MORIN, 2000, p. 43).

O chan é o lugar onde o indivíduo não tem responsabilidades para com o mundo

lá fora, onde nem mesmo seu próprio discurso precisa ser responsável, pois, em vinte ou

trinta minutos, tudo que o mesmo escreveu será apagado, só restando as imagens e os

textos que outro anônimo possa ter salvado em seu computador, isso sem nunca ter

tomado notícia que quem os produziu. É um ambiente por excelência contemporâneo,

desolador, mas onde todos se riem de suas desgraças, líquido como define Bauman,

onde o resto do mundo pode se desfazer em pedaços, desde de que o “anão” possa ainda

acessar o chan e se divertir enquanto a cictícia ilusão de nenhuma responsabilidade o

demanda. Daí o imaginário nos chan de uma elite a Internet e o desprezo até pelos

outros diversos sítios virtuais, redes sociais, que não são suas casas – já que o chan é

frequentemente conceptualizado como uma casa. Com o que é posto pelo próprio

Bauman (2007) ao tratar das elites urbanas isoladas fisicamente em seus condomínios

pode-se refletir sobre esses anônimos que se isolam com suas ilusões de grandeza em

seus ambientes puramente virtuais:

As pessoas da "camada superior" não pertencem ao lugar que habitam,

pois suas preocupações estão (ou melhor, flutuam e navegam à deriva)

em outro lugar. Pode-se imaginar que, além de ficarem sozinhas, e

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portanto livres para se dedicarem totalmente a seus passatempos, e

terem os serviços indispensáveis a seu conforto diário assegurados

(como quer que seja definido), elas não têm outros interesses investidos

na cidade em que se localizam suas residências. A população da cidade

não é sua área de pastagem, a fonte de sua riqueza e, portanto, também

uma ala sob sua guarda, cuidado e responsabilidade, como costumava

ser para as elites urbanas de outrora, os donos de fábricas ou os

mercadores de bens de consumo e de idéias. Em conjunto, as atuais

elites urbanas são despreocupadas em relação aos assuntos de "sua"

cidade, que vem a ser apenas uma localidade entre outras, todas elas

sendo pequenas e insignificantes do ponto de vista do ciberespaço – seu

lar verdadeiro, ainda que virtual. Pelo menos não precisam preocupar-

se, e aparentemente nada os pode obrigar a se preocuparem, se

resolverem não fazê-lo. (BAUMAN, 2007, p. 80, 81).

Por questões metodológicas e para cumprir a proposta deste texto, manter-se-á

uma perspectiva holística no âmbito das análises que abaixo seguem, embora focadas

nas teorias de metáfora e mesclagem conceptual aplicadas a textos multimodais

encontrados em chans brasileiros que apresentam em português metáforas recorrentes

em sites e chans anglófonos, mas que são escassas ou inexistentes em sites em

lusófonos. Também, em esquemas de mesclagem conceptual, os inputs serão limitados

a dois, embora redes muito mais complexas possam ser elaboradas a partir dessa teoria.

Para constituição do corpus deste breve estudo foram analisadas quarenta

threads, que envolveram mais de quinhentas postagens. Para a análise optou-se por

recorte que levou em conta predominantemente frequência de ocorrências para a análise

o texto multimodal 1, frequência e extensão para 2 e aspectos criativos e frequência para

3. Esses textos foram retirados, respectivamente, das boads /b/ – Random, para assuntos

considerados aleatórios, /comp/ – Computarias em geral, reservada para postagens

envolvendo informática e /high/ – Drogas, para discussões que envolvam drogas. Um

fator determinante para a escolha dos textos multimodais seguintes foi o uso corrente de

itens léxicos da língua inglesa e o uso cotidiano de grande parcela das metáforas anal-

isadas em chans anglôfonos.

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(1)

O texto multimodal acima foi retirado recentemente de um chan brasileiro, nele,

apresenta-se imagem de um homem que sorri – correspondente ao elemento visual do

texto multimodal – e texto verbal que beira o ininteligível, ainda que se clarifique que

OP é Original Poster, o responsável pelo início do tópico que no caso possuía tom

jocoso, e que pica é uma tradução sarcástica para picture. Porém a expressão “MEUS

LADOS” encontra possível correspondente no inglês. Em verbete do Urban Dictionary,

encontra-se a seguinte descrição: “An exclamation of the pain one's sides are

experiencing as a result of laughing so hard.” Reelaborando tem-se: dor na região dos

flancos devido a ataque de risos. Conforme a Teoria da Metáfora Conceptual, pode-se

postular a metáfora conceptual RISO É VEÍCULO, que transportaria as contrações

musculares do rosto para os flancos que por sua vez seriam conceptualizadas através

da dor, o que não cria exatamente um movimento do mais concreto para o mais

abstrato, pois como disposto por Forceville (2009):

[...] we should not forget that a metaphor can also conceptualize the

concrete in terms of the concrete. Lakoff and Turner, to be fair, are

aware of this. They discuss at some length the Elizabethan notion of the

“Great Chain of Being” (see e.g., Tillyard 1976 [1943]), which

endorsed the idea of “natural” hierarchies within various types of

creatures – angels, humans, birds, mammals, etc. – and state that “the

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GREAT CHAIN METAPHOR can apply to a target domain at the

same level on the Great Chain as the source domain” (Lakoff and

Turner 1989: 179, emphasis in original). Put differently, metaphors

may have targets as well as sources that are directly accessible to the senses. (FORCEVILLE & URIOS-APARISI, 2009, p. 42).

Pode-se observar que a TMC, como encontrado em Lakoff e Johnson (1980), é

unidirecional e não permite inversão de domínio-fonte e domínio-alvo.

Em esquema proposto em Conceptual Blenging, Form and Meaning

(FAUCONNIER; TURNER, 2003), temos mais algumas relações:

Contrações

musculares

Rir – prazer

buscado

Dor nos flancos

– normalmente

evitada

Prazer mesmo que

acompanhado de dor ainda é

desejado

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(2)

Já neste texto multimodal, tem-se postagem comum em chans anglófonos, onde

os locais de uso do computador são battlestations. Tais postagens são geralmente

acompanhadas de fotos de quartos diversos, dos mais luxuosos e organizados até os que

podem ser considerados inabitáveis por apresentarem duvidoso estado de conservação.

E assim como variam as características dos quartos também são várias as dos

equipamentos de informática, que podem ser dos mais avançados e caros até os mais

obsoletos. No texto verbal pode-se observar que a resposta “Joguem ratos”, que advém

de “rateiem” e que, por sua vez, vem do inglês “to rate” – avaliar. Esse elemento verbal,

também, traz consigo conceptualizações, pois o anônimo 2 – se for estabelecido o OP

como anônimo 1 – solicita avaliação que será dada em forma de opinião que, como é de

praxe nos chans, é pouco valorizada por motivos vários, ratificando a profícua metáfora

SER HUMANO É ANIMAL, sendo que os avaliadores seriam conceptualizados como os

próprios ratos, animais que, em geral, integram o conhecimento enciclopédico de

mundo ocidental como algo de pouco valor e até evitado. O próprio “atirar” pode

corresponder ao ato postar, que é coerente com metáforas correntes como “lançar na

rede”. Por outro lado, pode-se observar outra metáfora complexa na postagem do

anônimo 1, que pode ser estruturada pela metáfora conceptual INTERNET É GUERRA,

que se justificaria pelo hábito de se entabular longas discussões nos chans, o que então

remeteria a metáfora conceptual DISCUSSÃO É GUERRA com mesclagem dos inputs

QUARTO É CAMPO DE BATALHA e ainda QUARTO É ESTAÇÃO.

Page 11: METÁFORAS DO COTIDIANO DE CIBERCULTURAS ANGLÓFONAS EM TEXTOS MULTIMODAIS DE IMAGEBOARDS BRASILEIRAS

Por esquema Teoria a Mesclagem Conceptual. Pode-se observar outras relações:

Cômodo de

casa onde se

discute

Computador é

máquina

através da qual

se discute

Campo de

guerra

Máquina que

é utilizada

para a guerra

Máquinas operadas

pelo homem

Cômodo de casa é campo de guerra

Computador é arma de guerra

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(3)

Nesse texto, pode-se notar uma inversão, caso se defina o domínio-fonte como

mais concreto, pois o usuário conceptualiza os viciados que vê ao longo da rua como

personagens de um MMORPG. A tradução da imagem para a linguagem verbal, que

sempre será somente uma aproximação, como se encontra em Forceville (2009), dá a

ideia de que o usuário de drogas pode, sob influência, ter tentativos raciocínios geniais,

sendo que a imagem traz uma montagem na qual Carl Sagan, renomado astrobiólogo,

astrônomo, astrofísico, cosmólogo e escritor norte-americano, conhecido por seus

documentários e por assumir-se publicamente usuário de maconha, exortaria, à frente de

um fundo que evoca estrelas no espaço em alusão ao seu famigerado aforismo e vestido

como o próprio papa, para que se fume maconha diariamente. Com o foco deslocado

para o texto verbal, pode-se inferir a metáfora conceptual (N)PC DE MMORPG É

ADICTO EM CRACK, o que seria curioso, pois fica claro que experiências “reais”

estão sendo estruturadas por experiências “virtuais”. No emprego do neologismo

“crackudo”, pode-se identificar um esquema de CONTAINER e ainda é plausível a

inferência das conceptualizações SER HUMANO É MÁQUINA, quando o texto verbal

trata da rotina dos adictos em crack, ROUBAR É TRABALHAR, quando o anônimo

trata do fruto do saque – loot – e da quest, que traz conceptualização do roubo como

aventura de caça, assim remetendo a metáfora conceptual SER HUMANO É ANIMAL,

que se encontra em metáforas canonizadas como homo homini lupus, instaurada a partir

do Leviatã de Hobbes. O próprio ato de se drogar pode vir a ser conceptualizado como

uma expansão perceptiva quando o anônimo diz “realizo”, fazendo uso de anglicismo

provavelmente advindo do verbo “to realize” que remete à metáfora conceptual VER É

COMPREENDER.

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Em esquema da Teoria a Mesclagem Conceptual, podemos observar as

seguintes relações:

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem de Semântica Cognitiva, através da Teoria da Metáfora

Conceptual e da Teoria da Mesclagem Conceptual, pôde demonstrar que há de se

considerar a hipótese de que a acentuada interação com a língua inglesa em ambientes

virtuais, mais especificamente Internet, não só introduz novidades na língua através de

itens lexicais, mas trás mudanças na própria cultura e pensamento através de novas

metáforas no português, embora essas possam não necessariamente introduzir novas

conceptualizações. Neste estudo, a opção por espaços virtuais mais permissíveis para a

mudança linguística retornou resultados profícuos. Em estudos posteriores e de maior

Aparência humana

Comportamento

autômato

Videogames

Quest

Loot

(N)PCS

Compreender

Ruas

Vagar

Roubo

Adictos em

crack

Ver

Adictos têm objetivos de

sobrevivência, porém funções

limitadas como a de roubar, que

pode ser trabalho

Page 14: METÁFORAS DO COTIDIANO DE CIBERCULTURAS ANGLÓFONAS EM TEXTOS MULTIMODAIS DE IMAGEBOARDS BRASILEIRAS

extensão, poder-se-á adentrar a seara das redes sociais, onde as influências culturais

anglófonas em novas metáforas podem vir a ser consideravelmente mais sutis.

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REFERÊNCIAS:

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Cambridge University Press.

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Natural Language. Cambridge University Press.

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FAUCONNIER, G.; TURNER, M. (2002). The Way We Think. New York: Basic

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FORCEVILLE, C. J.; URIOS-APARISI, E. (2009). Multimodal Metaphor. Berlin:

Deutsche Nationalbibliothek.

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Cambridge University Press.

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Chicago Press.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. (1980). Metaphors We Live By. Chicago: University of

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LAKOFF, G.; Johnson, M. (1999). Philosophy in the Flesh. New York: Basic Books.

LEVY, P. Cibercultura (2000). Rio de Janeiro: Editora 34.

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