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20 CIÊNCIA HOJE • vol. 35 • nº 208 F A R M A C O G E N É T I C A A gené As bulas dos remédios costumam indicar as doses a serem administradas aos doentes para alcançar os efeitos desejados, mas nem sempre as coisas acontecem da forma prevista. Nas últimas décadas, estudos científicos têm revelado que os indivíduos respondem de modos diferentes aos medicamentos: em alguns casos, a mesma droga que cura uma pessoa pode ser tóxica para outra. Isso se deve, em boa parte, às variações genéticas existentes dentro da população humana. Essa constatação levou ao surgimento de uma nova ciência, a farmacogenômica (ou farmacogenética), que busca conhecer melhor as implicações dessas diferenças genéticas para as respostas individuais não só aos remédios, mas também a outras substâncias de uso comum, como o álcool e a nicotina. Guilherme Suarez-Kurtz Instituto Nacional de Câncer (RJ) Farma F A R M A C O G E N É T I C A

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20 • CIÊNCIA HOJE • vo l . 35 • nº 208

F A R M A C O G E N É T I C A

A gené

As bulas dos remédios costumam indicaras doses a serem administradas aos doentespara alcançar os efeitos desejados,mas nem sempre as coisas acontecemda forma prevista. Nas últimas décadas,estudos científicos têm revelado queos indivíduos respondem de modos diferentesaos medicamentos: em alguns casos,a mesma droga que cura uma pessoa pode sertóxica para outra. Isso se deve, em boa parte,às variações genéticas existentes dentroda população humana. Essa constatação levouao surgimento de uma nova ciência,a farmacogenômica (ou farmacogenética),que busca conhecer melhor as implicaçõesdessas diferenças genéticas paraas respostas individuais não só aos remédios,mas também a outras substâncias de usocomum, como o álcool e a nicotina.

Guilherme Suarez-KurtzInstituto Nacional de Câncer (RJ)

Farma F A R M A C O G E N É T I C A

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Farmacogenômica? Farmacogenética? Esses termos e conceitospodem parecer novos, mas é provável que os lei-tores já tenham ouvido relatos ou vivenciado expe-riências associadas a esse tema. São exemplos fra-ses como “aquele remédio foi bom para mim, masnão fez efeito no meu primo”, ou “ela não podetomar remédios com aspirina ou penicilina porquetem alergia”. Tais situações decorrem da variabi-lidade da resposta das pessoas aos medicamentos,o que, em boa parte, se deve a fatores genéticos. Édessa questão que se ocupam a farmacogenéticaou a farmacogenômica, termos usados aqui comosinônimos. A variabilidade da resposta a remédiosafeta os efeitos terapêuticos destes e as reaçõesadversas (indesejadas), de forma que a mesma dosede um mesmo medicamento pode ser benéficapara um paciente mas ineficaz – ou, no pior cená-rio, tóxica – para outro, embora os dois tenhamrecebido o mesmo diagnóstico clínico (figura 1).

A primeira referência à variabilidade da res-posta farmacológica é atribuída ao matemáticogrego Pitágoras (c.580-c.500 a.C.), que descreveu,em 510 a.C, a intoxicação provocada por deter-minadas favas em alguns, mas não em todos osindivíduos que as ingeriam. Mas a farmacogené-tica moderna tem suas origens em meados do sé-culo 20, com a demonstração de associações entrealterações genéticas e efeitos dos medicamentos.Essa área de estudos, que evoluiu muito nas últi-

Figura 1. A resposta aos medicamentos pode ser benéfica(prevenção, melhora e cura de doenças, alívio dosofrimento e da dor), nula (indicação, prescrição ou usoincorretos) ou desfavorável (reações adversas e efeitoscolaterais) – a farmacogenética investiga as causashereditárias da variabilidade individual nessa resposta

mas cinco décadas, foi recentemente rebatizadacomo farmacogenômica, e sua maior promessa écontribuir para a individualização da terapêutica,ou seja, a prescrição do medicamento certo e nadose adequada para cada indivíduo, com base noconhecimento dos fatores genéticos que regulama farmacocinética e a farmacodinâmica dos medi-camentos (ver ‘Definições e Conceitos’).

tica dos medicamentoscogenômica

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Evolução dafarmacogenéticaDe início, a farmacogenética explorou processosfarmacocinéticos, principalmente a biotransfor-mação dos medicamentos. Um dos trabalhos maisimportantes desse período foi o do farmacólogoalemão Werner Kalow, da Universidade de Toron-to (Canadá), sobre a ‘apnéia (interrupção da respi-ração) prolongada’, provocada pelo compostosuccinilcolina. Esse medicamento é usado durantea anestesia geral para causar relaxamento (‘para-lisia’) da musculatura esquelética, especialmentedos músculos respiratórios.

Normalmente, os efeitos da succinilcolina du-ram apenas alguns minutos, devido à sua rápidadestruição pela enzima colinesterase, presente noplasma sangüíneo. Para manter a paralisia muscu-lar é preciso injetar continuamente o composto no

sangue. Quando a infusão é interrompida, a grandemaioria dos pacientes volta a respirar espontanea-mente em poucos minutos. No entanto, em algunscasos (raros, felizmente!) isso só ocorre após mui-tas horas, ou seja, há uma ‘apnéia prolongada’.Kalow demonstrou que isso se deve a alteraçõesdo gene da colinesterase, que se torna incapaz dedestruir a succinilcolina.

Em um segundo momento, a farmacogenéticapassou a incluir a farmacodinâmica. Um exemplodestacado tem, novamente, a succinilcolina comoprotagonista e a Universidade de Toronto comoum dos principais cenários. Foi observado, nos anos60, que essa droga causava contraturas muscularesem alguns pacientes (cerca de um em cada 30mil) – efeito oposto ao relaxamento muscular es-perado. O mais grave é que as contraturas vinhamacompanhadas de um aumento intenso da tempe-ratura corporal (hipertermia) e de arritmias cardía-cas, muitas vezes fatais.

Essa síndrome (conjunto de sinais e sintomas)

DEFINIÇÕESE CONCEITOS

A farmacologia é uma ciência quantitativa, base-

ada na relação entre a quantidade do fármaco apli-

cada (a ‘dose’) e a ‘intensidade dos efeitos’ obser-

vados. A relação dose-efeito depende de processos

farmacocinéticos e farmacodinâmicos (figura 2).

A farmacocinética trata dos processos de (a) ab-

sorção (acesso do medicamento à circulação

sangüínea sistêmica); (b) distribuição (transferência

do medicamento do sangue para os tecidos); e (c)

eliminação (exclusão do medicamento do organis-

mo), seja por excreção (na urina, nas fezes, no leite

materno etc.) ou por biotransformação (alterações

químicas da molécula do medicamento por ação de

enzimas orgânicas).

A farmacodinâmica trata das interações do medi-

camento com seus alvos, denominados receptores.

Figura 2. Os efeitos farmacológicos de ummedicamento dependem da dose administradae de processos farmacocinéticos (que determinama relação entre a dose e a concentração domedicamento em seus locais de ação, ou receptores)e farmacodinâmicos (que envolvem a afinidadedo medicamento pelo receptor e a eficácia do complexomedicamento-receptor em modificar o objetobiológico) – setas duplas indicam processosbidirecionais (reversíveis)

A farmacologia trata do estudo dos fármacos (do

grego pharmakon) ou medicamentos, substâncias

que causam modificações (ações e efeitos) em obje-

tos biológicos in vivo (em animais íntegros) ou in

vitro (em tecidos, órgãos ou células isolados do or-

ganismo). Ações e efeitos se referem tanto às res-

postas benéficas (pretendidas por quem prescreve

e por quem recebe o medicamento) quanto às inde-

sejáveis (tóxicas, adversas ou ‘colaterais’).

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foi denominada hipertermia maligna e sua causaé um aumento aberrante da concentração do cál-cio no interior das células que compõem as fibrasmusculares. A ocorrência do problema depende deduas condições: 1) predisposição genética, relacio-nada a polimorfismos (ver ‘Variantes dos Genes’)associados ao receptor de rianodina, proteína queregula a concentração de cálcio dentro das células(ver ‘Cálcio e contração muscular’, em CH nº 12);2) exposição a determinados medicamentos, entreos quais a succinilcolina.

As duas síndromes farmacogenéticas descritasacima são monogênicas, ou seja, em cada caso éafetado apenas um gene (da colinesterase ou do re-ceptor de rianodina). O fato de a succinilcolina po-der desencadear as duas síndromes indica que elaatua em mais de um receptor. Na verdade, são mui-tas as proteínas (receptores, enzimas metaboliza-doras, transportadores etc.) que interagem com cadamedicamento, e a resposta farmacológica é tipica-mente poligênica. Isso aumenta a complexidade da

Estes são as moléculas do organismo que se

modificam quando se combinam com os medica-

mentos, disso resultando os efeitos farmaco-

lógicos. Na prática é geralmente impossível

medir a concentração do medicamento em seus

locais de ação. Como ter acesso, por exemplo, ao

interior das células tumorais, em cujos núcleos

atuam muitos dos quimioterápicos usados contra

o câncer? Assim, a farmacocinética clínica ba-

seia-se na medida da concentração dos medica-

mentos, principalmente no sangue e na urina,

mas também no leite materno, na saliva e em

outros fluidos orgânicos.

Os medicamentos podem atuar em mais de

um receptor e sua concentração pode variar en-

tre os diferentes locais de ação. Além disso,

uma mesma concentração do medicamento pode

provocar efeitos de intensidade variável em re-

ceptores distintos. Idealmente, as concentrações

que produzem efeitos benéficos não deveriam

causar reações adversas, mas na prática isso

nem sempre ocorre. Quanto maior a diferença

entre as doses que provocam efeitos benéficos

e as que causam reações adversas, tanto melhor

a relação risco/benefício do medicamento.

investigação farmacogenética e de sua aplicação naprática médica. Para complicar ainda mais a esco-lha do medicamento correto para cada paciente, amaioria das doenças também é poligênica.

Assim, a variabilidade da resposta aos medica-mentos não deve surpreender. De fato, ela sempreexistiu, como diz o bioquímico Marco AurélioRomano-Silva, da Universidade Federal de MinasGerais: “Toda vez que uma medicação chega napopulação, uma percentagem de pacientes não vairesponder.” Segundo o renomado geneticista AllenRoses, alto executivo de uma empresa farmacêuti-ca multinacional, o percentual de resposta podevariar de 25% (para alguns quimioterápicos an-titumorais) a 90% (para analgésicos-antitérmicos,como a aspirina). O desafio a ser vencido pelos‘farmacogeneticistas’ é investigar o componentegenético da variabilidade de resposta aos medica-mentos e transferir esses conhecimentos aos pro-fissionais da saúde, aos usuários de medicamentose ao setor produtivo, visando obter, para qualquerremédio, a melhor relação risco/benefício.

Um estudo comantiinflamatóriosDuas estratégias distintas, mas complementares,são usadas nas pesquisas na área da farmacoge-nética. A primeira tem seu ponto de partida nosefeitos farmacológicos: a partir daí investigam-seos polimorfismos genéticos associados. A segundaestratégia tornou-se viável com o desenvolvimentotecnológico da genética molecular, que permitiuidentificar os polimorfismos e, a partir destes,realizar estudos laboratoriais e clínicos visandoavaliar seus efeitos (variações fenotípicas) em re-lação aos medicamentos. Essa segunda estratégiatem maior poder de análise e foi utilizada naDivisão de Farmacologia da Coordenação de Pes-quisa do Instituto Nacional do Câncer (INCa), paraestudar a influência de polimorfismos do geneCYP2C9 na farmacologia dos antiinflamatórios.

A enzima CYP2C9, codificada pelo gene homô-nimo, é a principal via de eliminação dos antiin-flamatórios não-esteroidais. Esse gene é polimórficoe cinco alelos variantes (CYP2C9*2 a CYP2C9*6)já foram identificados. Os alelos *2 e *3 represen-tam, juntos, mais de 98% do total de variantes emdiferentes populações. Nosso estudo, direcionadopara esses dois alelos, teve como alvo farmacológicoo antiinflamatório tenoxicam e o protocolo expe-rimental foi aprovado pelo Comitê de Ética do �

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INCa. Participaram 331 adultos, homens e mulhe-res sadios, que assinaram um termo de consenti-mento, e que se declararam brancos, ‘intermediá-rios’ (pardos e mulatos) ou negros. Esse critério éadotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística (IBGE) nos censos nacionais, mas sabemosde suas limitações diante da extensa miscigenaçãoda população brasileira (ver ‘Retrato molecular doBrasil’, em CH nº 159).

Na primeira etapa do estudo – a caracterizaçãodos alelos do gene CYP2C9 nos 331 voluntários –foram usados os métodos de seqüenciamento auto-mático e de identificação de polimorfismos por ta-manho de fragmentos de restrição (RFLP, na siglaem inglês), junto com o de reação em cadeia da po-limerase (PCR, na sigla em inglês). No método RFLP,enzimas de restrição ‘cortam’ o DNA em pontosespecíficos, produzindo fragmentos de determinado

VARIANTES DOS GENES

Cada um de nossos genes tem duas ‘cópias’ (alelos) no genoma,

pois temos um par de cada cromossomo, e tais alelos podem ser

idênticos ou apresentar variantes (mutações). Os genes que apre-

sentam variantes alélicas com freqüência superior a 1% da popu-

lação são denominados polimórficos. O tipo mais comum de po-

limorfismo é a substituição de apenas um nucleotídeo, ou base (os

‘tijolos’ básicos do DNA). Esses polimorfismos de base única são

conhecidos pela sigla SNP, do inglês single nucleotide poly-

morphism (figura 3).

Estima-se que 1 milhão de SNPs (um para cada mil nucleo-

tídeos) possam existir no genoma humano, dos quais 60 mil estão

nas regiões que codificam as proteínas. Além dos SNPs, outros

polimorfismos com conseqüências farmacogenéticas podem ocor-

rer, como alterações na região promotora (segmento do DNA em

que atuam fatores que estimulam a expressão do gene), defeitos

no processo de recomposição (splicing) da cadeia do DNA ou du-

plicações, multiplicações e amplificações de genes, entre outros.

Os polimorfismos podem afetar um ou os dois alelos de um gene,

resultando em genótipos heterozigotos (alelos diferentes) ou

homozigotos variantes (alelos mutados iguais). Polimorfismos ge-

néticos podem levar à perda ou ao ganho de função das proteínas

codificadas, embora a perda de função seja mais freqüente na

farmacogenética.

Figura 3. Os polimorfismosde base única (SNPs)são aqueles em que apenasuma ‘letra’ (um nucleotídeo)do DNA está alterada – no DNAhumano, com 3 bilhõesde pares de nucleotídeos,ocorrem 3 milhões de SNPs

FREQÜÊNCIA (MÉDIA) DOS ALELOS DO GENE CYP2C9 EM BRASILEIROS

Alelos e freqüência observada (em %)

Indivíduos CYP2C9*1 CYP2C9*2 CYP2C9*3

Total 622 84,9% 8,6% 6,5%

Brancos 272 79,8% 12,1% 8,1%

Intermediários 236 86,0% 7,2% 6,8%

Negros 154 92,2% 4,5% 3,2%

Fonte: Vianna-Jorge e outros, 2004

Figura 4. O gene polimórfico CYP2C9codifica a enzima do mesmo nome,responsável pela biotransformação(metabolização) de cerca de 15%dos medicamentos de uso clínico– a análise genética de uma amostrade brasileiros (662, que se declararamcomo brancos, intermediários ounegros) mostrou que o alelo selvagem(não-mutado) *1 é o mais comumno país, enquanto os alelos variantes(mutações) *2 e *3 são mais raros

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tamanho, mas se o sítio de corte estiver alterado (pormutação), são obtidos fragmentos de tamanhos dife-rentes. No método PCR, a enzima polimerase pro-move a síntese de cópias dos fragmentos gerados,para que os pesquisadores tenham quantidades su-ficientes de cada um para a correta identificação.

Observamos que os alelos *2 e *3 do genecorrespondiam a, respectivamente, 8,6% e 6,5%do total de alelos no grupo estudado (os restantes84,9% tinham apenas o alelo selvagem – nãomutado – CYP2C9*1). A comparação entre os gru-pos ‘étnicos’ revelou diferença significativa nadistribuição dos alelos entre brancos e negros, commaior freqüência de *2 e *3 nos brancos (figura4). Já a comparação com os resultados obtidos emoutras populações mostrou que, apesar da formade classificação utilizada, não havia diferençassignificativas na distribuição dos alelos do geneCYP2C9 entre brancos brasileiros, europeus ounorte-americanos, nem entre brasileiros negros,africanos ou norte-americanos de origem africana.

A segunda etapa do estudo incluiu 21 voluntá-rios, com distintos pares de alelos para o geneCYP2C9 (12 indivíduos com alelos *1/*1, quatrocom *1/*2 e cinco com *1/*3), e cada um recebeuuma dose oral de tenoxicam. A seguir, foram co-letadas amostras de sangue para dosar a concen-tração desse medicamento no plasma (figura 5). Aeliminação do tenoxicam, devido à sua biotrans-formação pela enzima CYP2C9 (figura 6), é maislenta nos voluntários heterozigotos – ou seja, comalelos diferentes (*1/*2 ou *1/*3) – do que noshomozigotos (*1/*1). Isso indica que a exposiçãodo organismo ao tenoxicam está aumentada nessesindivíduos heterozigotos, e é razoável anteciparque a exposição será ainda maior em indivíduoscom duas cópias dos alelos variantes (*2/*2, *3/*3

ou *2/*3). A maior exposição ao tenoxicam au-menta o risco de toxicidade, que afeta, no caso,principalmente o aparelho digestivo.

A enzima CYP2C9 promove a biotransformaçãode cerca de 15% dos medicamentos de uso clínico,entre os quais se destacam o anticoagulante varfa-rina, o anticonvulsivante fenitoína, o hipoglice-miante (antidiabético) glibenclamida e vários an-tiinflamatórios, além do tenoxicam. Estudos clíni-cos têm mostrado que os efeitos terapêuticos e asreações adversas desses medicamentos são modifi-cados pelos polimorfismos do gene CYP2C9 e que,em alguns casos, o ajuste da dose individual combase na informação genética melhora a relaçãorisco/benefício. Essa transferência do conhecimen-to farmacogenético para a prática clínica tem sidoexplorada principalmente na escolha da dose ini-cial de varfarina, a fim de reduzir o risco de he-morragias nos primeiros dias de tratamento.

Farmacogenéticae bebidas alcoólicasO espectro de ação da farmacogenética é muitoamplo, pois os medicamentos são usados com ou-tros objetivos, além de sua indicação primordialna prevenção, tratamento e cura de doenças e noalívio de sofrimento e dor. Assim, as drogas deabuso (tranqüilizantes, antidepressivos, analgési-cos como a morfina e outras) e as de ‘uso recrea-tivo’ (como álcool, nicotina, alucinógenos, entorpe-

Figura 5. Concentrações do antiinflamatório tenoxicamno plasma de 21 indivíduos (em miligramas por litro)entre 72 e 264 horas após a administração de dose oral(20 mg), para os três diferentes conjuntos de alelosdo gene CYP2C9 (12 indivíduos com alelos *1/*1,quatro com *1/*2 e cinco com *1/*3). A inclinaçãodas retas indica a taxa (velocidade) de eliminaçãodo tenoxicam (por ação da enzima CYP2C9),menor nos indivíduos heterozigotos (*1/*2 e *1/*3)

Figura 6. Valores individuais (em cores) e valoresmédios (traços em preto) da taxa de eliminaçãoou depuração (em mililitros por hora e por quilode peso corporal) para os três diferentes conjuntosde alelos do gene CYP2C9 encontradosnos 21 indivíduos estudados

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centes e outras) têm sido objeto de estudosfarmacogenéticos.

A ‘síndrome do rubor’ provocada por bebidasalcoólicas é um exemplo da variabilidade indivi-dual relacionada a fatores genéticos. Essa síndrome,decorrente do aumento exacerbado da concentra-ção de aldeído acético no sangue, consiste em‘vermelhidão’ (rubor), aumento da temperatura dapele (mais notável no rosto), tonteira, taquicardia(aumento da freqüência cardíaca), sudorese e náu-seas, e tem como causa polimorfismos que alte-ram duas enzimas que metabolizam o etanol (fi-gura 7). As mutações que aumentam a atividadeda enzima álcool-desidrogenase elevam a produ-ção do aldeído acético e as que reduzem a ativi-dade da aldeído-desidrogenase diminuem a elimi-nação desse composto. Em ambos os casos, háacúmulo de aldeído acético no sangue. Como taispolimorfismos ocorrem com freqüência significa-tiva nos indivíduos de origem asiática, a síndromeé geralmente observada neles. Seus efeitos desa-gradáveis têm uma contrapartida favorável: ofere-cem proteção contra o abuso de bebidas alcoólicase o risco de alcoolismo!

Farmacogenéticae cigarrosA dependência à nicotina é outro alvo importanteda farmacogenética. Entre as milhares de substân-cias químicas presentes no tabaco, a nicotina é aresponsável pela dependência física do fumante.Isso se deve aos efeitos estimulantes e de ‘recom-pensa’ que a nicotina provoca ao se combinar com

Figura 7. Biotransformaçãodo álcool etílico (etanol):após a ingestão de bebidasalcoólicas, o etanol étransformado em aldeído acéticoe depois em acetato e água,mas polimorfismos genéticos(setas vermelhas) queaumentam a atividade da enzimaálcool-desidrogenaseou reduzem a da aldeído-desidrogenase resultamem acúmulo do aldeído acéticono sangue, o que levaà ‘síndrome do rubor’

receptores específicos no sistema nervoso central.O fumante regula o consumo de cigarros de formaa manter relativamente constante a concentraçãode nicotina em seus receptores (figura 8). Um fatorimportante nessa regulação é a rapidez com que anicotina é eliminada do organismo, por bioinati-vação catalisada pela enzima CYP2A6. O geneCYP2A6 é polimórfico, sendo conhecidos 18 alelosvariantes que codificam enzimas com atividadenormal, aumentada, reduzida ou nula.

A farmacologista canadense Rachel Tyndale,também da Universidade de Toronto, vem realizan-do estudos de farmacogenética do tabagismo, tendocomo base a seguinte premissa: os indivíduos queinativam a nicotina mais lentamente mantêm ní-veis ativos dessa substância no sistema nervosocentral por tempo mais longo e, em função disso, (a)têm menor risco de se tornarem dependentes ànicotina, pois os efeitos desagradáveis da primeiraexperiência com o fumo são mais acentuados, e (b)quando se tornam fumantes, consomem menornúmero de cigarros por dia. A distribuição dos alelosvariantes do CYP2A6 depende da etnia e, assim,resultados obtidos em outros grupos populacionaisnão podem ser extrapolados linearmente para apopulação brasileira, heterogênea e miscigenada.

A bióloga Gisele Vasconcelos, da Coordenaçãode Pesquisa do INCa, investigou, em sua tese demestrado (orientada pelo autor deste artigo), a in-fluência de polimorfismos do CYP2A6 no hábitotabagístico em brasileiros. Participaram do estudo342 adultos, fumantes, não-fumantes e ex-fuman-tes (há pelo menos um ano), que se identificavamcomo brancos, intermediários ou negros. Os alelosvariantes investigados codificam enzimas com ati-vidade nula (CYP2A6*2 e *4), reduzida (*9) oucontroversa (*1B).

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SUGESTÕESPARA LEITURA

EVANS. W. E.& RELLING M. V.‘Pharmacogenomics:translatingfunctional genomicsinto rationaltherapeutics’,in Science,v. 286, p. 487,1999.

KALOW, W.‘Pharmacogeneticsand personalisedmedicine’, inFundam ClinPharmacol,v. 16, p. 337,2002.

ROSES, A.‘Pharmacogeneticsplace in modernmedical scienceand practice’,in Life Science,v. 70, p. 1.471,2002.

VIANNA-JORGE, R.;PERINI, J. A.;RONDINELLI, E. &SUAREZ-KURTZ, G.‘CYP2C9genotypesand thepharmacokineticsof tenoxicamin Brazilians’, in ClinPharmacol Ther,v. 76, p. 18, 2004.

tradicional de criar remédios de uso universal (ouseja, para o maior número possível de pacientes),e os primeiros frutos já vêm sendo colhidos. Exis-tem hoje medicamentos antitumorais que só têmefeito benéfico nos pacientes com alterações gené-ticas específicas em suas células cancerosas. Antesde iniciar o tratamento, é indispensável demons-trar a presença dessas alterações.

Essa exigência tem extensas implicações. Sãoafetadas a relação médico-paciente, a legislaçãopara o registro de medicamentos nas agências re-guladoras – no Brasil, a Agência Nacional de Vi-gilância Sanitária (Anvisa) –, a competência tec-nológica do país para realizar os testes genéticos,as estratégias de marketing das empresas farma-cêuticas e, ainda, as decisões político-administra-tivas de inclusão de medicamentos nas listas depadronização dos sistemas de saúde, como o Siste-ma Único de Saúde (SUS) em nosso país.

Os pesquisadores brasileiros com interesse emfarmacogenética/farmacogenômica criaram umarede nacional (Refargen – www.refargen.org.br),que se propõe a coordenar projetos integrados emnossa população, na qual convivem em harmoniaos genes dos indígenas nativos, dos europeus queaqui chegaram e dos africanos trazidos como es-cravos. As implicações farmacogenéticas dessaconvivência certamente resultarão em descobertascapazes de contribuir para terapêuticas individua-lizadas mais eficazes e menos tóxicas para a nossapopulação. Oferecemos assim uma contrapartidacientífica à proposição de Pedro Archanjo, o heróido romance Tenda dos milagres, de Jorge Amado,que escrevia: “Se o Brasil concorreu com algumacoisa válida para o enriquecimento da cultura uni-versal, foi com a miscigenação – ela marca nossapresença no acervo do humanismo, é a nossa con-tribuição maior para a humanidade.” ■

Figura 8. Biotransformaçãoda nicotina: após a inalaçãoda fumaça do cigarro, a nicotinaé transformada, pela enzimaCYP2A6, em cotinina, incapazde ativar os receptoresnicotínicos no cérebro – como acotinina é eliminada lentamente,pode ser detectada na urinamuitos dias após a pessoa terfumado apenas um cigarro,o que permite acompanhar osucesso dos programasde controle do tabagismo

Observamos que os alelos variantes correspon-diam a 40% do total e que, entre eles, o maisfreqüente era o *1B. Os alelos ‘nulos’ CYP2A6*2 e*4 foram raramente encontrados (menos de 2%) eo alelo *9 ocorreu em 5% da população. A únicadiferença estatisticamente significativa entre ostrês grupos ‘étnicos’ foi em relação ao alelo *1B,mais freqüente em brancos que em negros. A fre-qüência desse alelo também variou entre não-fu-mantes (56,9%), ex-fumantes (39,3%) e fumantes(26,5%). Calculou-se, usando o método de análiseestatística denominado regressão logística, que oalelo *1B está associado a um risco 20 vezes menorde criar dependência à nicotina nos indivíduosbrancos e sete vezes menor nos ‘intermediários’.Nos brasileiros negros, no entanto, não se observouassociação entre o alelo *1B e a dependência aotabagismo. Estamos agora investigando os meca-nismos envolvidos na associação entre CYP2A6*1B

e hábito tabagístico e a possível aplicação disso naprevenção e no tratamento do tabagismo.

Aplicações dafarmacogenômicaAs possibilidades de aplicação da farmacogenômicasão variadas. Os estudos nessa área permitem aidentificação de novos alvos terapêuticos, a revisãodos protocolos de estudo e das exigências para aaprovação de novos fármacos, o desenvolvimentode testes genéticos para a escolha de medicamen-tos, a revisão das doses preestabelecidas e outrasrealizações. Para a indústria farmacêutica, a tera-pêutica individualizada baseada na informaçãofarmacogenética constitui um desafio à estratégia