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R EMANCIPADO QUES RANCIÈRE

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R EMANCIPADO

QUES RANCIÈRE

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Este livro teve origem no pedido

que me foi feito há alguns anos de

introduzir a reflexão de um grupo

de artistas dedicado ao espectador

a partir das ideias desenvolvidas

em meu livro  O mestre ignorante

De

 iníco

essa proposta causou-me

alguma perplexidade. O mestre

ignorante expunha a teoria excêntrica

e o destino singular de Joseph

Jacotot que causara escândao no

iníco

do

 sécuo

XIX ao afirmar que

um ignorante pode ensinar a outro

ignorante aquilo que ele mesmo não

sabe

ao proclamar a igualdade das

inteligências e opor a emancipação

intelectual à instrução púbica  Suas

ideias caramno esquecimento a

partir de meados de seu

 sécuo.

Achei bom reavvá-as na década

de 1980 para

 baançar

 o coreto dos

debates sobre as finalidades da

Escola

 púbica

com os ventos da

igualdade intelectual. Mas no âmbto

da reflexão artística conemporânea

que uso dar ao pensamento de um

homem cujo universo

 artístico

pode

ser emblematizado pelos nomes de

Demósenes

  Racine e Poussin?

0

  ESPECTADOR EMANCIPADO

m gem

 d

c p

Instalação de Iran do EsprtoSanto sem títuo  7

a

 Bienal do

Mercosul Porto Alegre 2009. Foto de Mauro Restiffe.

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Esta

  obra foi

 publicada

  originalmente

  em francês

  com o

título

LE

  SPECTATEUR  EMANCIPE

por   LaFabriqite-FAÍitions, Paris

Copyright  <$.) La

Fabriqite-Éditions,   2008

Copyright  ©

2012, Editora WMF Martins

  Fontes

  Ltda.,

Sao   Paulo,

  para

 a presente  edição.

V.

  e d i ç ã o

 20/2

T r a d u ç ã o

Ivone

  C.

  Benedetti

companhamento  e d i t o r i a l

Luzia  Aparecida  dos  Santos

R e v i s õ e s g r á f i c a s

Amália  Ursi

Solange  Martins

E d i ç ã o d e

  arte

Adriana

Maria

  Porto

Translatt i

P r o d u ç ã o g r á f i c a

Geraldo Alves

P a g i n a ç ã o

Moacir Katsumi

  Matàasaki

D a d o s I n t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o ( C I P )

( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , S P , B r a s i l )

R a n c i è r e ,  jacques

O

  espectador  e m a n c i p a d o  /  Jacques  R a n c i è r e ; t r a d u ç ã o I v o n e C.

B e n e d e t t i . - S ã o P a u l o  :E d i t o r a W M F

  M a r t i n s

  Fontes,  2012.

T i t u l o o r i g i n a l : Lcspectateur  e m a n c i p e .

I S B N

  978-85-7827-559-4

1.  A r t e

  F i l o s o f i a  2.E s t é t i c a  dar e c e p ç ã o  3. I m a g e m ( 1 i l o s o f i a )

[ . T í t u l o .

12-03180 C D D - 7 0 1

í n d i c e s para  c a t á l o g o s i s t e m á t i c o :

1.   A r t e

 : F i l o s o f i a  701

Todos

 os direitos desta

  edição

  reservados a

Editora  WM Marti ns Fontes

  Ltda

Rua

  Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325.030 São Paulo SP

  Brasil

Tel.  (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042

ntail: [email protected] http://unvw.wmfmartinsfontes.eom.br 

ário

esp ectad o r eman ci p ad o

Desven tu ras d o p en samen to cr í t i co

Paradoxos da arte política

A

  i mag em i n to l erável

A i m a g e m p e n s a t i v a

Origem dos textos

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O

  espectador emancipado

Este

  l ivro  teve origem no pedido que me foi fei to há

alguns

 anos

  de

  int ro d uzir

  a reflexão de um grupo de art i s

tas dedicado ao espectador a  pa r t ir  das ideias desenvolvidas

e m m e u   l ivro  Le Maitre

  ignorant

  [O

 mestre ignorante]

1

*.

  D e

início,  essa  proposta causou-me alguma perplexidade.  O

mestre ignorante  expunha a teoria excêntrica e o destino

  s i n

g u lar

  de

 Joseph Jacotot,

  qu e

 causara

  escândalo no início do

século XIX ao afi rma r que um ignorante pode ens inar a ou

tr o  i gnorante aqui lo que ele mesmo não

 sabe,

 ao proc lamar

a igualdade das inteligências e opor a emancipação intelec

tu al  à instrução pública. Suas  ideias caíram no esquecimen

to   a pa r t ir  de meados de seu século. Achei bom reavivá-las

na década de 1980 para balançar o coreto dos

 debates

  sobre

as finalidades da Escola  pública com os ventos da igualdade

intelectual.

  Mas, no âmbito da reflexão artística contempo

rânea, que uso dar ao pensamento de um hom em cujo

  u n i

verso artístico pode ser emblematizado pelos nomes de De

móstenes ,

 Racine

  e

 Poussin?

O c o n v i t e p ar a abr i r a qu i nt a  Internacional

  Sommer Akademic

  de

 F r a n k f u r t ,

  em

20 de agosto de  2004,  me foi fei to pelo performer  e c o r e ó g r af o

  sueco

  M â r t e n

S p à k n g b e r g .

* T rad. bras.,  L i l i a n  do Valle , Autêntica, 2f ed., 2004.

  [N .

  da T.]

7

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Pensando melhor, porém, pareceu-me que a ausência

de relações evidentes entre reflexões sobre a emancipação

in te lectu al  e a questão do espectador nos dias de hoje tam

bém era uma poss ib i lidade. Poderia ser u ma oportunidade

de distanciamento radical em relação aos pressupostos teó

ricos e pol í t icos que, mesmo na form a pós-moderna, ainda

sustentam o

  essencial

  do debate sobre o teatro, a perfor

mance e o espectador. Mas, para trazer à tona a relação e

dar- lhe

  sentido, seria preciso reconstituir a rede de pressu

postos que põem a questão do espectador no  cerne  da   d is

cussão sobre as relações entre arte e política.  Seria  preciso

delinear o modelo global de racionalidade sobre cujo

  fund o

nos acostumamos a julgar as implicações políticas do  espe-

táculo teatral . Emprego aqui essa  expressão para   inc lu ir  t o

das as formas de espetáculo - ação dramática, dança, per

formance, mímica ou outras - que ponh am corpos em ação

diante  de u m públ ico reunido .

A s

  numerosas críticas às quais o teatro deu

 ensejo

  ao

long o

  de toda a sua história podem ser reduzidas a uma fór

m u l a  essencial.

  Eu lhe daria o nome de paradoxo do  espec

tador,

  paradoxo mais fundamental talvez que o célebre pa

radoxo do ator. Esse paradoxo é simples de  fo rmula r :  não há

teatro sem espectador (mesmo que um espectador único e

oculto,   como na representação fictícia de  Fils naturel  [O filho

natural]  que dá ensejo  aos   Entretien [Colóquios]  de

  Diderot).

O r a ,

  como d ize m os acusadores, é u m mal ser espectador,

po r  duas razões . P rimeiramente, olhar é o contrário de co

nhecer. O espectador mantém-se diante de uma aparência

ig norando

  o

 processo

 de produção

 dessa

 aparência ou a rea

lidade  por ela encoberta. Em segundo lugar, é o contrário de

agir.  O espectador fica imóvel em seu lugar, passivo. Ser es

pectador é  estar  separado ao mesmo tempo da capacidade

de

  conhecer

  e do poder de agir.

Esse  diagnóst ico abre ca minh o para duas conc lusões

diferentes. A

  pr ime ira

  é que o teatro é uma

 coisa

  absoluta

mente  r u i m ,  u m a cena de i lusão e passividade que é preciso

el iminar   em provei to daqui lo que ela impede: o conhec i

mento e a ação, a ação de

  conhecer

  e a ação conduzida pelo

8

saber.  É a conclusão outrora   formu lada por Platão: o teatro é

o  lugar onde ignorantes são convidados a ver sofredores. O

que a

 cena

  teatral lhes

  oferece

  é o espetáculo de um   páthos,

a mani fes tação de um a doença, a doença do desejo  e do so

f r ime nt o ,

  o u seja,  da divisão de si resultante da ignorância.

O   efeito próprio do teatro é   t ra nsmit ir essa doença por meio

de outra: a doença do olhar subjugado por sombras. Ele

t ransmite   a doença da ignorân cia que faz as personagens

sofrer por meio de uma máquina de ignorânc ia, a máquina

óptica que forma os olhares na i lusão e na passividade. A

comunidade correta, portanto, é a que não tolera a media

çã o

  teatral , aquela na qual a medida que governa a com uni

dade é d i retamente incorporada nas at i tudes vivas de

 seus

membros .

E a dedução mais lógica. Contudo, não é a que preva

leceu

  entre os críticos da mimese teatral .

 Estes,

  na maioria

das  vezes,  f i caram com as premissas e mudaram a conc lu

são. Quem diz teatro diz espectador, e

 isso

  é um m al , di sse

ra m eles.

 Esse  é o círculo do teatro que nós conhecemos, que

nossa  sociedade modelou à sua imagem. Portanto, precisa

mos de outro teatro, um teatro sem espectadores: não um

teatro  diante de  assentos  vazios, mas um teatro no qual a

relação  óptica passiva implicada pela própria palavra  seja

submetida

  a outra relação, a relação implicada em outra pa

lavra,

  a palavra que designa o que é

  pro d uzid o

  em  cena,  o

drama.

 Dram a quer dizer ação. O teatro é o lugar onde uma

ação é levada à sua consecução por corpos em movimento

diante

  de corpos vivos por

 mo bi l iza r .

  Estes  ú l t imos podem

ter

  renunciado a seu poder. Mas

 esse

  poder é retomado, rea-

tivado  na performa nce dos prim eiros, na inteligência que

Constrói essa  performance, na energia que ela   pro d uz .  É so

b re

 esse

  poder ativo que  cabe  constru ir um teatro novo, ou

melhor,

 u m teatro reconduzido à sua

  vir t ud e  or ig inal ,

  à sua

essência  verdadeira, de que os espetáculos ass im de nom ina

dos oferecem  apenas  numa versão degenerada. É preciso um

teatro   sem espectadores, em que os  assistentes  aprendam

em

  ve z  de ser seduzidos por imagens, no qual  eles se tornem

participantes  ativos em vez de serem  voyeurs  passivos.

9

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Essa

  inversão conheceu duas grandes fórmulas, anta

gónicas em princípio, embora a prática e a teoria do teatro

reformado

  as tenham frequentemente mis turado. Segundo

a   pr ime ira ,  é preciso arrancar o  espectador  ao embrutec i

mento do parvo fascinado pela aparência e conquistado pela

empatia que o faz identificar-se com as

  personagens

  da

cena.

  A

 este

  será mostrado, portanto, um espetáculo es tra

nho,

  ina bi t ua l ,

  um enigma cujo sentido ele precise buscar.

A s s i m ,  será obrigado a trocar a posição de

 espectador

  passi

vo   pela de   i n q u i r i d o r  ou experimentador c ient í f i co que

observa os fenómenos e procura

 suas causas.

  Ou então lhe

será proposto um di lema exemplar, semelhante aos propos

tos às  pessoas  empenhadas nas decisões da ação.  Desse

m o d o ,  precisará aguçar seu próprio

  senso

  de avaliação das

razões , da discussão e da

 escolha

 decisiva.

De acordo com a segunda fórmula, é essa própria

  d is

tância reflexiva que deve ser abolida. O   espectador  deve ser

retirado

  da posição de observador que examina calmamente

o espetáculo que lhe é oferecido. Deve ser

 desapossado des

se controle i lusório, arrastado para o círculo mágico da ação

teatral, onde trocará o privilégio de observador racional pelo

do

  ser na

 posse

 d e

 suas

  energias vitais integrais.

Tais são as atitudes fundamentais que resumem o tea

tr o  épico de Brecht e o teatro da crueldade de

  A r t a u d .

  Para

u m ,  o

 espectador

  deve ganhar distância; para o   outro,  deve

perder toda e qualquer distância.

  Para

  um, deve refinar o

olhar;  para o   outro,  deve abdicar da própria posição de

observador. As inic iat ivas modernas de reforma do teatro

osc i laram constantemente entre

 esses

  dois poios, da

  i n q u i

rição distante e da participação   vital ,  com o risco de   m i s t u

ra r

 seus  princípios e seus  efeitos . Pretenderam transform ar

o teatro a   pa r t ir  do diagnóstico que levava à sua supressão.

Portanto, não é de surpreender que  elas  t e n h a m r e t o m a d o

não só os considerandos da crítica de Platão, como também

a fórmula positiva que ele opunha ao mal teatral . Platão

queria subst i tui r a comunidade dem ocrát ica e ignorante do

teatro por o utra comunidade, resumida num a outra perfor

mance dos corpos . Opun ha-lhe a comunidade coreográfica,

10

na   qu al  n inguém permanece como  espectador  imóvel, na

qu al

  cada

  um deve mover-se segundo o   r i t m o  comunitário

fixado  pela proporção matemática, mesmo que para  isso

seja  preciso embriagar os velhos recalcitrantes em entrar na

dança coletiva.

Os reformadores do teatro reform ularam a oposição

•platónica entre

 khorea

 e

 teatro

 como oposição entre a verda-

| £ e

  do teatro e o simulacro do espetáculo. Fizeram do teatro

O

  lugar onde o público passivo de

  espectadores

 devia trans-

formar-se em seu contrário: o corpo at ivo de um povo a pôr

em

  ação o seu princípio   vital .  O texto de apresentação da

Sommerakademie

 que me acolhia expressava-o  nos seguintes

termos : " O teatro continua sendo o único lugar de confr on

tação do público consigo mesmo como coletividade." Em

sentido restrito, a frase  quer apenas  d is t inguir  a audiência

coletiva do teatro dos visitantes  ind ivid ua is  de uma exposi

ção ou da simples soma de entradas no cinema. Mas está

c laro que s igni f i ca mais . Signi f i ca que o " teatr o" é um a

  for

ma

  comunitária exemplar.

  Implica

  um a ideia da comu nida

de como presença para si , oposta à distância da representa

ção.

 Desde

  o romanti smo alemão, a reflexão

  sobre

  o teatro

passou a ser  associada  a essa  ideia de coletividade  v iva .  O

teatro mostrou-se como um a forma da const i tuição es tét i ca

- da constituição sensível - da coletividade.

 Entenda-se

  aí a

comunidade como maneira de ocupar um lugar e um tem

po ,

  como o corpo em ato oposto ao simples aparato das leis,

u m  conjunto de percepções , gestos  e atitudes que precede e

pré-forma as leis e instituições políticas. O teatro, mais que

qualquer outra arte, foi

 associado

  à ideia romântica de revo

lução estética, não já no sentido de mudar a mecânica do

Estado e das leis, mas sim as formas sensíveis da experiên

c ia hu man a. Reforma d o teatro s igni f i cava então res taura

ção de sua natureza de

  assembleia

  ou de cerimónia da co

mu nidade.  O teatro é uma

 assembleia

 n a   qu al  as pessoas d o

povo   tomam consciência de sua situação e discutem  seus

interesses,  d iz ia

  Brecht após Piscator.  A r t a u d  afirma que ele

é o   r i tua l

  purificador

  em que uma coletividade se  apossa  de

suas

  próprias energias. Se o teatro encarna assim a

  coletivi-

11

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dade

  viva

  em oposição à i lusão da mimese, não é de sur

preender que a vontade de recondu zir o teatro à sua essên

cia  possa  respaldar-se na própria crítica do espetáculo.

Q u a l  é a essênc ia do espetáculo segundo Guy De-

bord? É a exterioridade. O espetáculo é o reino da vi são, e

a visão é exterioridade, ou   seja,

  desapossamento

  de si . A

doença do

  espectador

  pode resumir-se numa fórmula bre

ve: "Q uanto mais ele contempla, menos ele é . "

2

  A fórmula

parece  antiplatônica. Na verdade, os fundamentos teóricos

da crítica do espetáculo são tomados, através de

 M a r x ,

  à crí

tica feuerbachiana da religião. O princípio de  ambas  as

críticas está na visão romântica da verdade como não  sepa

ração. Mas essa  ideia, por sua vez, é dependente da concep

ção platónica de mimese. A "contemplação" que Debord

denuncia é a contemplação da aparência  separada  de sua

verdade, é o espetáculo de sofrimento

  pro d uzid o

  p or  essa

separação. "A separação é o al fa e o ômega d o espetáculo. "

3

O

  que o hom em contempla no espetáculo é a at ividade que

lhe foi subtraída, é sua própria essência, que se

  t o rno u

  es

t ranha, vol tada contra ele , organizadora de u m mu ndo cole-

tivo  cuja realidade é a realidade desse  desapossamento.

Não há, assim, contradição entre a crítica do espetá

culo e a procura de um teatro reconduzido à sua essênc ia

o r igina l .  O "bom" teatro é aquele que   u t i l i za  sua realidade

separada

  para

  supr imi- la .

  O paradoxo do

  espectador

  per

tence  a

 esse

 di spos i t ivo s ing ular que retoma a favor do tea

tr o  os princípios da proibição platónica do teatro. Portanto,

caberia hoje reexaminar esses  princípios, ou melhor, a rede

de pressupostos, o jogo de equivalências e oposições que

sustenta sua possibil idade: equivalências entre público tea

tr a l

  e comunidade, entre olhar e passividade, exterioridade

e separação, mediação e simulacro; oposições entre coletivo

e

  individu al ,

  imagem e real idade   v iva ,  at ividade e pass ivi

dade,

 posse

  de si e al ienação.

Esse  jogo de equivalênc ias e oposições compõe uma

dramatu rg ia  bastante

  tortuosa de culpa e redenção. O tea-

2 . G u y D e b o r d ,

  La Société du  spectacle,

  G a l l i m a r d ,  1992, p. 16.

3.   Ibiã.,  p. 25.

12

tr o  se acusa  de tornar os

  espectadores

  passivos e de   trair

assim  sua essência de ação comunitária. Por conseguinte,

Outorga-se a missão de inverter seus  efeitos e expiar

 suas

Culpas,

  dev olvendo aos  espectadores  a posse  de sua  cons

ciência e de sua a tividade . A  cena  e a performance teatrais

tornam-se ass im uma mediação evanescente entre o m al do

espetáculo e a

 vir t ud e

  do

 verdadeiro

 teatro.

 Elas

  se propõem

ensinar a

  seus

  espectadores  os meios de deixarem de ser

espectadores

 e tornarem-se  agentes de um a prática coletiva.

Segundo o paradigm a brechtiano, a mediação teatral os

  tor

na conscientes

 da situação social que lhe dá

 ensejo

 e

 desejo

so s  de ag i r para transformá-la. Segundo a lógica de

  A r tau d,

|p la  o s  faz sair de sua posição de

 espectadores:

  em vez de

Jfcarem

  e m

  face

  de um espetáculo, são circundados pela

•erformance, arrastados para o círculo da ação que lhes de-

ipolve   a energia coletiva. Em ambos os  casos,  o teatro apre-

Senta-se  como uma mediação orientada para sua própria

supressão.

É   aqui  que as descrições e as propostas de emancipa

çã o

  intelec tual podem entrar em jog o e a judar-nos a refor

mu lar

  o problema. Pois essa mediação  autoevanescente  não

é algo desconhecido para nós. É a própria lógica da relação

pedagógica: o papel atribuído ao mestre é o de eliminar a

distância entre seu

  saber

  e a ignorânc ia do ignorante. Suas

lições  e os exercícios que ele dá têm a finalidade de

  reduzir

progressivamente o abismo que os

 separa.

 Infel i zm ente, e le

tó pode  redu zir  a distância com a condição de recriá-la in

cessantemente.

  Para

  s ubst i tui r a ignorânc ia pelo

  saber,

  ele

deve

 sempre dar um

 passo

 à frente e repor entre si e o aluno

« m a   ignorância nova. A razão disso é simples. Na lógica

pedagógica, o ignorante não é  apenas  aquele que ainda ig

nora  o que o mestre

 sabe.

 É aquele que não  sabe o que ignora

Hem  como o  saber. O mestre, p or sua vez, não é  apenas aque

le q ue  tem o

 saber

  igno rado pelo ignora nte. E tamb ém aquele

qu e sabe  como torná-lo objeto de

 saber,

 o m o m e n t o d e f a z ê -

»lo e que protocolo segu ir para isso. Pois, na verdade, não há

Ignorante que já não

 saiba

  u m m o n t e d e  coisas,  que não as

tenha aprendido sozinho, olhando e

  o uvind o

  o que há ao

13

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1

seu redor, observando e repet indo, enganando-se  e   c or r i

g i n d o seus  erros. Mas, para o mestre, tal saber é  apenas  sa

ber de  ignorante,

 saber

  incapaz de organizar-se segundo a

progressão que vai do mais simples ao mais complicado. O

ignorante  p rog ride  comparando o que

  descobre

  com o que

  sabe,

  segundo o  acaso  dos encontros, mas também se

g u n d o

  a regra aritmética, a regra democrática que faz da

ignorânc ia um saber  menor. Ele se preocupa apenas  em sa

ber mais ,

 saber

  o que ainda ignorava. O que lhe falta, o que

sempre faltará ao aluno (a menos que este  também se torne

mestre) é o saber da ignorância,  o conhecimento da distância

exata

  qu e

  separa

 o

 saber

  da ignorância.

Essa m e d i d a escapa  precisamente à aritmética dos ig

norantes. O que o mestre

  sabe,

  o que o protocolo de trans

missão do saber  ensina em   pr ime iro  lugar ao aluno é que a

ignorânc ia não é u m saber  menor, é o oposto do saber; p o r

que o

  saber

  não é um conjunto de conhec imentos , é uma

posição. A

 exata

  distância é a distância que nenhuma régua

mede, a distância que se comprova tão somente pelo jogo

das posições ocupadas, que se

  exerce

  pela prática   i n t e r m i

nável do  passo  à frente" que  separa  o mestre daquele que

ele deve ensinar a alcançá-lo. Ela é a metáfora do abismo

radical  qu e

  separa

  a maneira do mestre da do ignorante,

porque

 separa duas inteligências: a que  sabe  em que consis

te a ignorância e a que não o

 sabe.

 Essa distância radical é o

que o ensino progressivo e ordenado ensina ao aluno em

prime iro  lugar. Ens ina-lhe prim eiramen te sua própria inca

pacidade. Assim, em seu ato ele comprova

 incessantemente

seu próprio pressuposto, a desigualdade das inteligências.

Essa

  comprovação interminável é o que  Jacotot  chama de

embrutec imento.

A  essa  prática de embrutecimento ele opunha a práti

ca da emancipação intelec tual . A emancipação intelec tual

é a comprovação da igualdade das inteligências.  Esta  não

sig nif ica  igua l  valor de todas as manifestações da inteligên

cia, mas igualdade em si da inteligência em todas as

  suas

manifestações. Não há dois tipos de inteligência

  separados

po r  um abismo. O animal humano aprende todas as coisas

14

* V W ^ V H , k ~  | ^ V * ^

  (

  " f i U W i - i , , WHUJip,

  LM

  l l i p p i

como aprendeu a l íngua materna, como aprendeu a aventu-

rar-se

 na floresta das

 coisas

  e dos signos que o cercam, a fim

de assumir u m lugar entre os seres  humanos : observando e

c o m p a r a nd o u m a

 coisa

  co m   outra,  um s igno com um fato,

u m  s igno com

  o ut ro

  s igno. Se o i letrado  conhece apenas

um a  prece  de cor, ele pode comparar

 esse

 saber  com o que

ainda

  ig nora :

 as palavras

 dessa

 prece escritas

 no papel .

 Pode

aprender, signo após signo, a relação entre o que ignora e o

qu e sabe. Pode, desde que a cada passo  observe o que está à

sua frente, diga o que viu e comprove o que disse.  Desse

ignorante que soletra os signos ao intelectual que constrói

hipóteses, o que está em ação é sempre a mesma inteligên

cia, uma inteligência que traduz signos em outros signos e

procede por comparações e f iguras para comunicar

  suas

aventuras intelectuais e compreender o que outra inteligên

cia se esforça por comunicar-lhe.

Esse  trabalho poético de tradução está no

  cerne

  de

toda

  aprendizagem. Está no

 cerne

  da prática emancipadora

do   m estre ignorante. O que este i gnora é a di s tância embru -

tecedora, a distância transformada em abismo radical que

SÓ   um especialista pode "preencher". A distância não é um

|Wal  por abolir, é a condição   n o r m a l  de toda comunicação.

Os an imais human os são animais di s tantes que se

  c o m u n i

cam através da floresta de signos. A distância que o

  i g n o

rante precisa transpor não é o abismo entre sua ignorância

| e o  saber do mestre. É s implesmente o ca minh o que vai da

quilo  que ele já sabe  àquilo que ele ainda ignora, mas pode

aprender como aprendeu o resto, que pode aprender não

para ocupar a posição do intelectual, mas para praticar me

lhor

 a arte de   traduzir,  de pôr

 suas

  experiências em palavras

e suas

  palavras à   prova,  de

  t ra d uzir suas

  aventuras intelec

tuais

  para uso dos outros e de contratrad uzir as traduções

qu e eles  lhe apresentam de

 suas

 próprias aventuras. O

 mes

tre

  i gnorante capaz  de ajudá-lo a percorrer esse  c a m i n h o é

ass im chamado não porque nada saiba, mas porque abdicou

do  saber  da ignorância" e assim dissociou sua qualidade de

mestre de seu

  saber.

  Ele não ensina   seu

  saber

  aos alunos,

mas ordena-lhes que se aventurem na floresta das   coisas  e

15

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1

dos s ignos , que dig am o que  v i r a m  e o que pensam do que

v i r a m ,  que o comprovem e o façam comprovar. O que ele

ig nora

  é a desigualdade das inteligências. Toda distância é

u m a  distância factual, e

 cada

  ato intelec tual é um caminh o

traçado entre um a ignorânc ia e u m saber, u m c a m i n h o q u e

abole incessantemente, com

  suas

  fronteiras, a fixidez e a

hierarqu ia

  das posições.

Que relação há entre  essa  história e a questão do es

pectador

 hoje?

  Já não

  estamos

  no tempo em que os drama

tu rg os  qu eriam explicar a seu público a verdade das relações

sociais

  e os meios de

  lutar

  contra a dominação capitalista.

Mas as  pessoas  não perdem obrigatoriamente seus  pressu

postos com  suas  i lusões, nem o aparato dos meios com o

horizonte  do s   f ins . Até pode ocorrer, ao contrário, que a per

da das i lusões leve os artistas a aumentar a pressão

 sobre

  os

espectadores:  talvez

 eles

  saibam o que é preciso fazer, desde

que a performance os   tire  de sua atitude passiva e os trans

forme

  em part i cipantes at ivos de um mun do comum .

 Essa

 é

a  pr ime ira  convicção que os reformadores teatrais comparti

l h a m

  com os pedagogos embrutecedores: a do abismo que

separa

  duas posições. Mesmo que não saibam o que querem

que o  espectador  faça, o dramaturgo e o di retor de teatro

sabem

  pelo menos um a

 coisa: sabem

  que ele deve fazer  uma

coisa,

  transpor o abismo que

 separa atividade

 de passividade.

Mas não seria possível inverter os termos do proble

ma, perguntando se o que cria a distância não é justamente

a vontade de el iminar a di s tânc ia? O que permite dec larar

inativo

  o

 espectador

  que está sentado em seu lugar, senão a

oposição radical , previamente suposta, entre ativo e passi

vo? Por que  identificar  olhar e passividade, senão pelo pres

suposto de que olhar quer dizer comprazer-se com a ima

gem e com a aparênc ia, ignorando a verdade que es tá por

trás da imagem e a realidade fora do teatro? Por que assimi

la r  escuta  e passividade, senão em   vir t ud e  do preconceito

segundo o qual a palavra é o contrário da ação?  Essas o p o

sições - olhar/saber, a parência/realidade, ativida de/pa ssivi-

dade - são

 coisas

  bem diferentes das oposições lógicas entre

termos bem definidos . Elas d e f i n e m p r o p r ia m e n t e u m a d i -

16

visão do sensível , uma distribuição apriorística das posições

e das

 capacidades

  e incapacidades vinculadas a essas p o s i

ções .

  Elas  são alegorias  encarnadas  da desigualdade. Por

isso é poss ível mudar o valor dos termos , tran sforma r o ter

m o

  " b o m " e m   r u i m  e vice-versa, sem mudar o func iona

mento da própria oposição. Assim, desqualifica-se o

 espec

tador

  porque ele não faz nada, enquanto os

  atores

  e m

 cena

{ ou os trabalhadores lá fora põem seu corpo em ação. Mas a

oposição entre ver e fazer se inverte tão logo à cegueira dos

trabalhadores manuais e dos prat i cantes empíricos , mer gu

lhados no imediato terra-a-terra, se oponha a ampla pers

pectiva daqueles que contem plam as ideias, prevêem o fu

t uro   ou adquirem visão g lobal de   nosso  m u n d o . O u t r o r a

eram chamados de cidadãos

  ativos,  capazes

  de

  eleger

  e de

ser eleitos, os proprietários que  v i v i a m  de rendas, e de cida

dãos

  passivos,

  i n d i g n o s dessas  funções ,

  aqueles

  que traba

lhavam

  para ganhar a

  v ida.

  Os termos podem mudar de

sentido, as posições podem ser trocadas, mas o

 essencial

 é a

permanência da estrutura que opõe duas categorias: os que

têm uma capacidade e os que não a têm.

A   emancipação, por sua vez, começa quando se ques

tiona  a oposição entre olhar e agir, quando se compreende

que as evidências que assim estr utu ram as relações do d i

zer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e

da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é

. também um a ação que confi rm a ou transform a essa  d i s tr i -

ibuição das posições. O   espectador  também age, tal como o

alu no  ou o intelectual. Ele observa,

  seleciona,

  c o m p a ra , i n

terpreta.

  Relaciona o que vê com muitas outras

  coisas

  que

vi u  em outras  cenas,  em outros t ipos de lugares . Compõe

seu próprio poema com os elementos do poema que tem

diante de si . Participa da performance refazendo-a à sua

maneira, furtan do-se, por exemplo, à energia  v i ta l  qu e esta

supostamente deve tra nsm it i r para transformá-la em pura

i m a g e m e

 associar

 essa pura imagem a uma his tória que leu

ou   s o n h o u , vive u  ou   inve nt o u.  Ass im, são ao mesmo tempo

espectadores

  distantes e intérpretes ativos do espetáculo

que lhes é proposto.

17

f l i r l | r

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A í e s t á u m p o n t o

  essencial:

  os

  espectadores

  veem,

sentem e compreendem algum coisa  à medida que com

põem seu próprio poema, como o fazem, à sua maneira,

atores ou dram aturgos , di retores , dançarinos ou  performers.

Observemos

  apenas

 a

 mobil idade

  do olhar e das expressões

do s

  espectadores

  de um drama rel ig ioso   xiita  tradicional

que comemora a morte do imã Hussein, captados pela câ-

m e r a d e A b b as K i a r o s t a m i (Tazieh).  O d r a m a t u r g o o u o d i

retor de teatro queria que os

  espectadores

  vissem isto e

 sen

tissem   aquilo,  que compreendessem tal coisa  e que tirassem

ta l

  conclusão. É a lógica do pedagogo embrutecedor, a lógica

da transmissão di reta e   fiel :  h á a l g u m a  coisa,  u m  saber,

u m a

  capacidade, uma energia que está de um lado - num

corpo ou numa mente - e deve

 passar

 para o

  outro.

  O que o

alu no  deve aprender  é aquilo que o mestre o  faz  aprender. O

que o

  espectador

 deve

  ve r

  é aqui lo que o

  d iretor

  o

 faz ver.

O

  que aquele deve sentir é a energia que este lhe com unica.

A essa  identidade de

 causa

  e efeito, que está no

 cerne

 da ló

gica embrutecedora, a emancipação opõe sua dissociação. É

o sentido do paradoxo do mestre ig norante : o aluno aprende

do   mestre algo que o mestre não  sabe. Apren de como efei to

da habil idade que o obriga a  buscar  e comprova essa busca.

Mas não aprende o saber  do mestre.

Dir-se-á que o artista, ao contrário, não quer   inst ruir

o espectador. Ho je ele se defende de usar a cena para   impo r

u m a

  l ição ou

  t ra nsmit ir

  u m a m e n s a g em . Q u e r apenas  pro

d uzir

  um a forma de consc iênc ia, um a intens idade de senti

mento,

  uma energia para a ação. Mas supõe sempre que o

que será percebido, sentido, compreendido é o que ele pôs

em sua d r a m a t u r g i a ou sua performance. Pressupõe sempre

a identidade entre causa e efeito.

 Essa

 i gualdade suposta e n

tr e  a causa  e o efeito baseia-se  num princípio desigualitário:

baseia-se  no privilégio que o mestre se outorga, no conhe

c imento da "boa" di s tânc ia e do meio de el iminá-la . Mas

isso  é

  confu ndir

  duas distâncias bem diferentes. Existe a

distância entre o artista e o espectador, mas   existe  t a m b é m

a distância inerente à própria performance, uma vez que,

como espetáculo, ela se mantém como  coisa  autónoma, en-

18

tr e  a ideia do artista e a sensação ou a compreensão do es

pectador. Na lógica da emancipação há sempre entre o

 mes

tr e

  i gnorante e o aprendiz emancipado uma tercei ra  coisa

- u m  l i v ro ou qualquer

 ou tro

  escrito - estranha a ambos e à

qu al

  eles

  podem recorrer para comprovar juntos o que o

alu no

  v i u ,  o que

  disse

  e o que

  pensa

  a respeito. O mesmo

ocorre com a performance. E la não é a transmissão do

 saber

ou   do sopro do artista ao espectador. É  essa terceira coisa d e

q u e n e n h u m

 deles

  é proprietário, cujo sentido ne nhu m de

les possui, que se mantém entre

  eles,

  afastando qualquer

transmissão   fiel ,  qualquer identidade entre causa  e efeito.

Essa

  ideia de emancipação opõe-se assim claramente

à ideia na  qu al a política do teatro e de sua reform a se apoio u

com frequência : a emancipação como reapropriação de u ma

relação do ser humano consigo mesmo, relação   perdida n u m

processo

  de separação. É

  essa

  ideia da separação e de sua

abolição que

  l iga

  a crítica debordiana do espetáculo à crítica

feuerbachiana da religião através da crítica marxist a da alie

nação.  Nessa  lógica, a mediação de um terceiro termo só

pode ser i lusão fatal de autonomia,

 presa

  na lógica do desa

possamento e de sua dissimulação. A separação entre palco

f e  plateia é um estado  que deve ser superado. É objetivo da

p e r f o r m a n ce e l i m i n a r essa  exterioridade, de diversas ma

neiras : pondo os

  espectadores

  no palco e os

 performers

  na

plateia,

  abolindo a diferença entre ambos, deslocando a per

formance para outros lugares , identi f i cando -a com a tom a-

» da

 d e

 posse

 da rua, da cidade ou da

 vid a .

  E sem dúvida

 esse

esforço de subverter a distribuição dos lugares   pro d uziu

mu itos

  enriquec imentos da performance teatral . Mas uma

coisa  é a redistribuição dos lugares, outra é a exigência de

que o teatro adote como   f inal idade  a reunião de uma comu

nidade que ponha f im à separação do espetáculo. A   p r i m e i

ra

  implica

  a invenção de novas aventuras intelectuais; a

segunda, uma nova forma de dar aos corpos seu lugar cor-

roto,

  no  caso  seu lugar comungatório.

Pois

 a

 recusa

  à mediação, a

 recusa

  ao terceiro é a

  afir

mação de uma essência comunitária do teatro como tal .

Q u a n t o m e n o s o d r a m a t u r g o sabe o que quer que a   coletivi-

19

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Aí es tá um ponto

  essencial:

  os

  espectadores

  veem,

sentem e compreendem algum

  coisa

  à medida que com

põem seu próprio poema, como o fazem, à sua maneira,

atores

 ou drama turgos , di retores , dançarinos o u performers.

Observemos  apenas a  mobil idade  do olhar e das expressões

do s

  espectadores

  de um drama rel ig ioso   xiita  tradicional

que comemora a morte do imã Hussein, captados pela câ-

mera de Abbas Kiarostami (Tazieh).  O d r a m a t u r g o o u o d i

retor

 de teatro queria que os

  espectadores

 vissem isto e sen

tissem

  a qui lo ,

  que compreendessem tal

 coisa

  e que tirassem

ta l

  conclusão. E a lógica do pedagogo embrutecedor, a lógica

da transmissão di reta e   fiel :  h á a l g u m a

  coisa,

  u m  saber,

um a

  capacidade, uma energia que está de um lado - num

corpo ou num a mente - e deve passar para o   outro.  O que o

alu no  deve

 aprender

  é aquilo que o mestre o  faz  aprender. O

que o

  espectador

 deve  ve r  é aqui lo que o

  d ire t o r

  o faz ver.

O   que aquele deve sentir é a energia que  este  lhe comunica.

A

 essa

  identidade de

 causa

  e efeito, que está no

 cerne

 da ló

gica embrutecedora, a emancipação opõe sua dissociação. É

o sentido do paradoxo do mestre ign orante : o aluno aprende

do   mestre algo que o mestre não

 sabe.

 Aprend e como efei to

da habil idade que o obriga a buscar  e comprova essa busca.

Mas não aprende o saber  do mestre.

Dir-se-á que o artista, ao contrário, não quer

  inst ruir

o espectador. Ho je ele se defende de usar a cena para  impo r

u m a

  l ição ou

  t ra nsmit ir

  u m a m e n s a g e m . Q u e r apenas  pro

d uzir um a forma de consc iênc ia, uma intens idade de senti

mento,

  uma energia para a ação. Mas supõe sempre que o

que será percebido, sentido, compreendido é o que ele pôs

em sua  dramatu rg ia ou sua performance. Pressupõe sempre

a identidade entre causa e efeito. Essa i gualdade suposta en

tr e

  a

 causa

  e o efeito baseia-se  num princípio desigualitário:

baseia-se  no privilégio que o mestre se outorga, no conhe

c imento da "boa" di s tânc ia e do meio de el iminá-la . Mas

isso  é

  confu ndir

  duas distâncias bem diferentes. Existe a

distância entre o artista e o espectador, mas  existe  também

a distância inerente à própria performance, uma vez que,

como espetáculo, ela se mantém como

 coisa

  autónoma, en-

18

tr e  a ideia do artista e a sensação ou a compreensão do es

pectador. Na lógica da emancipação há sempre entre o mes-

ffê ignorante e o aprendiz emancipado uma tercei ra

  coisa

- u m  l i v ro ou qualquer  o ut ro  escrito - estranha a ambos e à

qu al  eles  podem recorrer para comprovar juntos o que o

i l u n o  v iu ,  o que

  disse

  e o que

  pensa

  a respeito. O mesmo

Ocorre com a performance. E la não é a transmissão do

 saber

9jU  do sopro do artista ao espectador. E essa  terceira

 coisa

 d e

<|Ue ne nh um

 deles

  é proprietário, cujo sentido nenhum de-

^•8 possui, que se mantém entre  eles,  afastando qualquer

transmissão   fiel ,  qualquer identidade entre

 causa

  e efeito.

Essa

  ideia de emancipação opõe-se assim claramente

à ideia na   qual a política do teatro e de sua re form a se apoiou

com frequência : a emancipação como reapropriação de u ma

relação do ser hu man o consigo mesmo, relação perdida nu m

processo

  de separação. É  essa  ideia da separação e de sua

abolição que

  l iga

  a crítica debordiana do espetáculo à crítica

feuerbachiana da religião através da crítica marxista da alie

nação.  Nessa  lógica, a mediação de um terceiro termo só

pode ser i lusão fatal de autonomia, presa  na lógica do desa

possamento e de sua dissimulação. A separação entre palco

e plateia é um

 estado

  que deve ser superado. E objetivo da

performance el iminar essa  exterioridade, de diversas ma

neiras: pondo os

  espectadores

  no palco e os performers  na

plateia,

  abolindo a diferença entre ambos, deslocando a per

formance para outros lugares , identi f i cando-a com a tom a

da de

 posse

 da rua, da cidade ou da  v ida.  E sem dúvida esse

esforço de subverter a distribuição dos lugares   produziu

mu itos

  enriquec imentos da performance teatral . Mas uma

coisa

  é a redistribuição dos lugares, outra é a exigência de

que o teatro adote como final idad e a reunião de uma comu

nidade

 que pon ha f im à separação do espetáculo. A  p r i m e i

ra

  implica

  a invenção de novas aventuras intelectuais; a

segunda, u ma nova form a de dar aos corpos seu lugar cor

reio,  n o caso  seu lugar comungatório.

Pois

 a

 recusa

  à mediação, a

 recusa

  ao terceiro é a   afir

mação de uma essência comunitária do teatro como tal .

Q u a n t o m e n o s o d r a m a t u r g o sabe o que quer que a   coletivi-

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dade dos

  espectadores

  faça, mais sabe q ue  estes devem agir

como colet ividade, transformar sua agregação em comuni

dade. N o entanto, já estaria na hora de indag ar sobre  essa

ideia  de que o teatro é por si mesmo um lugar comunitário.

Visto   que corpos vivos em  cena  se   d ir ige m   a corpos   r e u n i

dos no mesmo lugar, isso  pareceria suficiente para fazer do

teatro o vetor de um sentido de comunidade, radicalmente

diferente

  da situação de indivíduos sentados diante de uma

tevê ou de

  espectadores

  de cinema sentados diante de som

bras projetadas. Curiosamente, a generalização do uso de

imagens e de todos os tipos de projeção nas montagens tea

trais   nã o parece  mudar em nada essa  c rença. Imagens   pro

jetadas

  p o d e m

 somar-se

  aos corpos vivos ou substituí-los.

Ma s , durante todo o tempo em que

  espectadores

  f i cam

  re u

nidos  no espaço teatral , age-se  como se a essência   viva  e

comunitária do teatro estivesse  preservada e como se  fosse

possível evitar a pergunta: o que ocorre exatamente entre os

espectadores

 de um teatro que não poderia ocorrer em outro

lugar? O que haverá de mais   interativo  e comunitário

 nesses

espectadores

  do que numa   multiplicidade  de indivíduos as

sist indo

  na mesma hora ao mesmo show televisionado?

Esse algo, acredito, é apenas  a pressuposição de que o

teatro é comunitário por si mesmo. Essa pressuposição con

t inua

  a preceder a performance teatral e a antecipar   seus

efei tos . Mas num teatro, diante duma performance, ass im

c o m o n u m m u s e u , n u m a  escola  ou numa rua, sempre há

indivíduos a traçarem seu próprio caminho na floresta das

coisas,  do s  atos  e dos signos que estão diante deles ou os

cercam. O poder comum aos

  espectadores

  não decorre de

sua qual idade de membros de um corpo colet ivo ou de

  a l g u

ma forma espec í f i ca de   interatividade.  E o poder que

  cada

u m   tem de  t ra d uzir  à sua maneira o que percebe, de relacio

n ar  isso com a aventura intelec tual s ingular que o torn a se

melhante a qualquer

  outro,

 à med ida que essa aventura não

se assemelha a n e n h u m a outra. Esse p o d e r c o m u m d a

  igua l

dade das inteligências l ig a indivíduos, faz que eles i n t e r c a m

biem

  suas

  aventuras intelectuais, à medida que os mantém

separados uns dos outros, igualmente

 capazes

  de   ut i l iza r  o

2

° V

1 / t

poder

  de todos para traçar seu caminho próprio. O que nos

sas performance s com prov am - que r se trate de ensinar ou

de brincar, de falar, de

 escrever,

  de fazer arte ou de contem

plá-la - não é

 nossa

  part i cipação nu m poder encarnado na

comunidade.

  E a capacidade dos anónimos, a capacidade

que torna

 cada

 u m  igua l a qualquer  outro.

 Essa

  capacidade é

exercida através de distâncias irredutíveis, é exercida por um

jogo imprevisível de associações e dissociações.

E  nesse  poder de  associar  e dissociar que reside a

emancipação do espectador, ou seja,  a emancipação de

 cada

u m  de nós como espectador. Ser espectador não é a con di

çã o  passiva que deveríamos converter em   atividade.  É nossa

situação

  n o r m a l .

  Aprendemos e ens inamos, agimos e co

nhecemos também como  espectadores  que relacionam a

todo

  instante o que veem ao que   v i r a m  e di sseram, f i zeram

e  s o n h a r a m . N ã o h á f o r m a

 pr ivi le gia d a

  como não há ponto

de

  p a r t i d a

  privilegiado.

  Há sempre pontos de part ida,   c ru

zamentos e nós que nos perm item aprender algo novo

 caso

recusemos, em   pr ime iro  lugar, a distância radical ; em se

g u ndo,  a distribuição dos papéis; em terceiro, as fronteiras

entre os territórios. Não temos de transformar os espectado

res   em atores e os ignorantes em intelectuais. Temos de re

conhecer

 o  saber  em ação no ignorante e a atividade própria

ao espectador. Todo espectador é já ator de sua história; todo

ator, todo homem de ação, espectador da mesma história.

Gostaria de exempl i f i car esse  aspecto  c o m u m a p e

quena digressão por minha própria experiência política e

intelectual.  Pertenço a um a geração que  f icou

 d ividida

  entre

duas exigências opostas. Seg undo um a delas, os que t i

n h a m

 entend imento do s i s tema soc ial deviam ens iná-lo aos

q ue   e r a m v i t i m a d o s p o r

  esse

  s i s tema, a f im de armá-los

para

  a   luta;  segundo a outra, os supostos intelectuais na

verdade eram ignorantes que nada sabiam do s ign i f i cado da

exploração e da rebelião e deviam aprender com os mesmos

trabalhadores que eles t ratavam de ignorantes .

 Para

  atender

a  essas duas exigênc ias , primeiramente eu quis encontrar a

verdade do marxismo para armar um novo movimento re

volucionário, depois aprender com  aqueles que trabalhavam

21

Page 13: espectador emancipado.pdf

8/11/2019 espectador emancipado.pdf

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e

  lut a va m

 nas fábricas o s entido da exploração e da rebelião.

Para

  m i m e p a r a a m i n h a g e r a ç ã o n e n h u m a   dessas  duas

tentativas foi plenamente convincente.

  Esse

 estado  de fato

me levo u a

 buscar

  na hi s tória do movim ento operário a ra

zão dos encontros ambíguos ou frustrados entre os operá

rios   e  aqueles  intelectuais que   t i n h a m   ido visitá-los para

instruí-los ou

 serem

  instruídos por

 eles.

 A s s i m , f o i -m e p o s

sível compreender que a questão não

 estava

  entre ignorân

cia e  saber,  nem entre atividade e passividade,  i nd i v i d ua l i

dade e comunidade. N u m  dia de maio em que eu consultava

a correspondência de dois operários nos

  anos

  1830 em bus

ca de informações sobre  a condição e as formas de consciên

cia dos trabalhadores daquele tempo,

  t ive

  a surpresa de en

contrar

  coisa

  bem diferente: as aventuras de outros dois

vis i tantes em o utros dias de maio, cento  e quarenta e cinco

anos

  antes.  U m dos dois operários  t i n h a  acabado  de entrar

na comunidade saint-s imoniana em Méni lmontant e conta

va ao amigo o mod o como empregava o tempo de

 seus

 dias

na   ut o pia :  trabalhos e exercícios durante o dia, jogos,  coros

e narrativas à noite. Seu correspondente, em contrapartida,

lhe relatava o

 passeio

 no campo que f i zera com dois compa

nheiros para aprovei tar um domingo de primavera. Mas o

que ele contava não se parecia em nada com o dia de repou

so do trabalhador que restaura as forças físicas e mentais

para o trabalho da

 semana

  entrante. Era uma intrusão em

outra   espécie totalmente diferente de lazer: o lazer de  este

tas que

  f rue m

  formas, luzes e

 sombras

  da paisagem, de fi ló

sofos

  que se ins talam nu ma hospedaria  campestre  para de

senvolver hipóteses metafísicas e de apóstolos que se

empenham em comunicar sua fé a todos os companheiros

que encontram por acaso  no caminho ou na hospedaria

4

.

Aqueles trabalhadores , que deveriam dar-me   in f or

mações

 sobre

  as condições do trabalho e as formas de  cons

ciência de classe,  d a v a m - m e o u t r a coisa:  a sensação de se

melhança, a demonstração de igualdade.

 Eles

  t a m b é m e r a m

espectadores

  e visitantes dentro de sua própria

  classe.

  Sua

4. C f . G abr i e l G au ny, L e  Philosophe  plébéien,  Presses  U ni v e r s i t a i r e s d e V i nc e nne s ,

1985, pp. 147-58.

22

atividade  de propagandis tas não podia  separar-se  de seu

ócio de passeadores  e de contempladores. A simples crónica

de   seu lazer obrigava a reformular as relações

  estabelecidas

entre   ver, fazer  e

 falar.

  A o s e t o r n a r e m

  espectadores

  e  v i s i

tantes,

 eles

 subvert iam a divisão do sens ível segundo a   qual

os  que trabalh am não têm temp o de deixar que seus

 passos

e

  olhares errem ao

 acaso,

 e os mem bros de um corpo colet i -

vo   não têm tempo para dedicar às formas e às  marcas  d a

individualidade.

Isso  s igni f i ca a palavra emancipação: o embaralha-

mento da frontei ra entre os que agem e os que olha m, entre

indivíduos e membros de um corpo coletivo. O que  aquelas

jornadas traziam aos dois correspondentes e a

 seus

 seme

lhantes não era o

 saber

  de sua condição e a energia para o

trabalho do dia seguinte e a   luta  po r  vir.  Era a reconfigura

çã o  a qui  e agora da divisão entre espaço e tempo, trabalho

e  lazer.

Compreender

 essa

 rupt ura

  realizada no próprio cora

çã o  do tempo era desenvolver as implicações de uma  seme

lhança e de uma igualdade, em vez de exercer  seu domínio

na   tarefa interminável de   re d uzir  a distância irredutível .

Aqueles dois trabalhadores também eram intelec tuais ,

como

  qualquer  u m .  Eram vis i tantes e

 espectadores,

  como o

pesquisador que, um século e meio depois, l ia as

  cartas

  d e

les

  numa biblioteca, como os visitantes da teoria marxista

OU  os  distrib uido res de panfleto s nas portas das fábricas.

N ã o  havia nenhuma distância por preencher entre intelec

tuais  e operários, tanto quanto entre  atores  e  espectadores.

E le

  t irava

 a lgumas conc lusões quanto ao discurso apropria

do

  a  dar conta

  dessa

  experiência. Contar a história de  seus

dias

 e noi tes obrigava a embaralhar outras frontei ras . Aque

la   história que falava do tempo, de sua perda e de sua recu

peração  só ganhava sentido e alcance  ao ser posta em rela

çã o

  co m

  uma his tória

  s imila r ,

  enunciada alhures, em

  outro

tempo  e

 n u m

 o ut ro

  género de escrito, no

  l ivro

  I I d a  Repúbli-

 ,, em qu e  Platão, antes d e atacar as  sombras menti rosas do

i M t r o ,

  expl icava que numa comunidade bem organizada

M d a  u m deve fazer um a única coisa,  e que os artesãos não

23

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têm tempo de

  estar

  em

  o ut ro

  lugar que não o seu lugar de

trabalho

  e de fazer outra

 coisa

  que não o trabalho conve

niente às

  ( in) capacidades

  qu e

  lhes

  foram outorgadas pela

natureza.

Para

  entender a história daqueles  dois visitantes, por

tanto ,  era preciso embaralhar as fronteiras entre a história

empírica e a fi losofia

 pura ,

  as fronteiras entre as disciplinas

e as hierarquias entre os níveis de discurso. Não havia, de

u m   lado, a narrativa dos fatos e, do

  outro,

  a explicação   f i l o

sófica ou científica para descobrir a razão da história ou a

verdade oculta por trás dela. Não havia fatos e sua   in terp re

tação.  Havia  duas maneiras de contar uma história. E o que

m e

  cabia

  fazer era uma obra de tradução, mostrando como

aquelas narrat ivas de dom ingos  p r imaveris   e os diálogos do

filósofo se  t radu ziam   mutuamente. Era prec i so inventar o

id io ma

  próprio àquela tradução e àquela contratradução,

com o risco de que

  esse

  id io ma  fosse  ininteligível a todos

os que perguntassem o sentido daquela história, a realidade

que a explicava e a l ição que ela dava para a ação. Esse

  i d i o

m a,

 de fato, só podia ser

  l ido

  p o r

 aqueles

 que o traduzissem

a  pa r t ir  de sua própria aventura intelectual.

Essa

  digressão biográfica me traz de

 volta

  ao

 cerne

  de

m eu

  texto.  Essas  histórias de fronteiras por transpor e da

distribuição dos papéis por subverter confluem para a atua-

lidade  da arte contemporânea, na  qu al  todas as competên

cias  artísticas específicas tendem a sair de seu domínio pró

prio  e a trocar  seus  lugares e poderes. Hoje temos teatro

m u d o  e dança falada; instalações e performances à guisa de

obras

  plásticas; projeções de vídeo transformadas em ciclos

de  afrescos;  fotografias tratadas como quadros vivos ou ce

nas históricas pintadas; escultura metamorfoseada em show

multimídia, além de outras combinações. Ora, existem três

maneiras de compreender e praticar essa  mis tura de géne

ros.  Existe  aquela que reatualiza a forma da obra de arte to

tal .

 Supunha-se

  qu e

 esta seria

 a  apoteose  da arte convertida

em

  vida.

  Hoje, tende mais a pertencer a alguns

 egos

  artísti

cos superdimensionados ou a um a forma de hiperat ivi smo

consumista, quando não

  ambas

  ao mesmo tempo.  Existe

24

tamb ém ideia de hibridação dos meios d a arte, própria à rea

lidade

  pós-moderna de troca  incessante  de papéis e  identi

dades, de real e  v i r tua l ,  do orgânico e das próteses mecâni

cas e informáticas. Esta  segunda ideia pouco se distingue da

prime ira

  em

 suas

  consequências. Ela frequentemente leva a

outra  form a de embrutec imento, que se vale do em baralha-

mento das fronteiras e da confusão dos papéis para aumen

tar o efeito da performance sem questionar seus  princípios.

Resta

  uma terceira maneira que não visa à   amp lif ica

ção dos efeitos, mas a pôr em  causa a própria relação causa-

-efeito e o jogo dos  pressupostos  qu e  sustenta  a lógica do

embrutec imento. Diante do hiperteatro, que quer transfor

mar a representação em presença e a passividade em   ativi

dade, ela propõe, inversamente, revogar o privilégio de   v i ta

lidade  e de poder comunitário concedido à

 cena

  teatral para

colocá-la em pé de igualdade com a narração de uma his tó

ria,  a

  leitura

  d e u m   l ivro  ou o olhar posto

  sobre

  u m a

  i m a

gem. Ela propõe, em suma, concebê-la como u ma nova

 cena

da igualdade, em que performances heterogéneas se

  t r adu

zem umas nas outras .

  Pois

  em todas

  essas

  performances

busca-se

  u n i r  o que se sabe  ao que se ignora, ser ao mesmo

t e m p o

 performers  a exib i rem  suas  competênc ias e  especta

dores a observarem o que

  essas

  competênc ias podem   pro

d uzir  num contexto novo,  ju nto  a outros

  espectadores.

  O s

artistas, assim como os pesquisadores, constroem a   cena

em que a manifestação e o efeito de  suas  competênc ias são

expostos,

  tornados incertos nos termos do

  id io ma

  novo que

traduz   uma nova aventura intelec tual . O efei to do   id io ma

não pode ser antecipado . Ele

 exige espectadores

 que desem

penhem o papel de intérpretes ativos, que elaborem sua

própria tradução para apropriar-se da "história" e fazer dela

sua própria hi s tória . Um a comunidade emancipada é um a

comunidade de narradores e tradutores .

Es tou  consciente  de que é possível dizer  sobre  tudo

isso:

  palavras, ainda e  apenas  palavras. Não o entenderei

como

  insul t o .

  Já ou vimos tantos oradores  i m p i n g i r

 suas

 p a

lavras como mais que palavras, como fórmula de entrada

n u m a

  vid a  nova; vimos tantas representações teatrais que

25

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p retendiam   nã o  ser espetáculos , e s im cerimónias

  c o m u n i

tárias ;

  e

  mesmo hoje ,

  a

 despeito

  de

 todo

 o

  cet i c i smo "pós-

- m o d e r n o "

  em relação  ao desejo  de  m u d a r a v ida,  vemos

tantas instalações  e  espetáculos transformados  em m i s t é

rios   rel igiosos, que  nã o é

 necessariamente escandaloso

 o u

vi r  dizer  que palavras  são

 apenas

  palavras. Dispensar  as

fantasias

 do verbo feito

 carne

 e

 d o

 espectador

 t o r n a d o

 ativo,

saber  qu e as  palavras são apenas  palavras  e os  espetáculos

apenas espetáculos pode a judar-nos

 a

  compreender melhor

como as palavras e as imagens , as histórias e as  p e r f o r m a n

ces p o d e m m u d a r a l g u m a

 coisa

 no mu ndo em que vivemos.

26

Desventuras

  do

  pensamento

  c r í t i c o

Certamente não sou o primeiro a questionar a  tradição

da crítica social

  e

  cultural

  na

  qual

  minha geração

  cresceu.

Muit o s   autores declararam que seu  tempo passou:  há não

muit o  tempo ainda  era  possível divertir-se denunciando a

sombria

 e

  sólida realidade escondida por trás

  do

 brilho

 das

aparências. Mas hoje já não haveria realidade sólida para opor

ao reino

  das

 aparências

  nem

 avesso  sombrio para opor

 ao

tr iu nf o  da

 sociedade

 de consumo. E bom dize r logo de saída:

nã o  é a esse  discurso  que  pretendo emprestar min ha voz.

Gostaria de mostrar, ao  contrário, que os conceitos e procedi

mentos da tradição crítica não são de modo algum

 obsoletos.

Funcionam ainda  muito  b e m , até no discurso  daqueles que

declaram sua superação. Mas seu uso atual demonstra a com

pleta inversão de sua orientação

 e

 de  seus

 supostos  f ins. Pre

cisamos,

 portanto, levar em conta a persistência de um mod e

lo  de interpretação

 e a

  inversão

 de seu

 sentido,

 se

  quisermos

empreender um a verdadeira crítica da crítica.

Para  tanto, examinarei algumas mani fes tações con

temporân eas que, nos domínios da arte, da política e da teo

ria,  exempl i f i cam a  inversão  dos m o d o s  de descrição  e de

monstração próprios  à  tradição crítica. Partirei do  campo

c m

  que essa  tradição ainda hoje  é a mais   viva,  o campo da

27

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arte e, sobretudo, das grandes exposições internacionais nas

quais a apresentação das obras prefere inscrever-se no âmbi

to   de uma reflexão global

 sobre

  o

  estado

  do

  mund o .

 A s s i m ,

e m 2006,  o comissário da Bienal de Sevilha,   K o z u i  Enwezor,

destinara a referida manifestação a desmascarar, n o m o m e n

to   da globalização, "o maquinário que

  d iz ima

  e arruina os

elos

  sociais, económicos e políticos"

5

. N o pr ime iro  plano das

máquinas devastadoras  estava,  c laro, a máquina de guerra

americana, e entrava-se na exposição por

 salas

  dedicadas às

guerras do Afeganis tão e do I raque. Ao lado de imagens

da guerra  civi l no Iraque, era possível ver fotografias das ma

nifestações antiguerra feitas por uma artista alemã   d o mici

liada   em N ova York ,  Josephine  Meckseper. U ma daquelas

fotos chamava a atenção: via-se ao

  fund o

  u m g r u p o de m a -

Josephine

  Me c kse p e r ,

Sem título,

  2005.

5. O t í t u l o e x at o da m ani f e s t aç ão e r a : T he U nho m e l y . P hant o m a l  Scenes  in the

g lo b a l   W o r l d .

28

nifestantes  p ortando

 cartazes.

 O  pr ime iro plan o, por sua vez,

era ocupado por um a lata de  lixo  cujo conteúdo transbordava

e espalhava-se pelo chão. A foto era simplesmente   intitulada

"Sem título", o que, naquele contexto, parecia querer dizer:

não é preciso tí tulo, a ima gem fala por si mesma.

Podemos compreender o que a imagem   dizia aproxi

mando a tensão entre os

 cartazes

  políticos e a lata de

  l ixo

  de

u m a

  forma art í s t ica p art i cularmente representat iva da

  tra

dição crítica em arte, a da colagem. A fotografia da   m a n i

festação não é uma colagem no sentido técnico do termo,

mas seu efeito se vale dos elementos que ensejaram o

 suces

so artístico e político da colagem e da fotomontagem: o cho

que numa mesma superfície entre elementos heterogéneos,

quando

  não confl i tuosos . N o tempo do surreal i smo,

 esse

procedimento serviu para mani fes tar , sob o prosaí smo da

cot idianidade

  burguesa, a realidade

  re pr imid a

  do   desejo  e

do   sonho. O marx ismo depois a adotou para tornar percep

tível , por meio do encontro incongruente de elementos he

terogéneos, a violência da dominação de  classe,  oculta sob

as aparências do cotidiano ordinário e da paz democrática.

Esse  foi o princípio da estranheza brechtiana. Nos

  anos

1970, f oi também o das fotomontagens real izadas por um a

art i s ta americana engajada, Martha Rosler,  em sua série in

t itulada

  Bringing the War Home, q ue

 sobre

  imagens de fel izes

lares americanos colava imagens da guerra do Vietnã. As

s i m ,

  u m a m o n t a g e m   int i t ula d a  Balloons  mostrava,

  sobre

  o

f u n d o

  de uma ampla

 casa

  de campo, com balões infláveis a

u m   canto, um vietn amita que

  t i n h a

  nos braços uma criança

morta

 pelas balas

 do exército americano. A conexão das duas

imagens devia

  pro d uzir

  dois efeitos: a consciência do

 siste

ma de dominação que l igava a feli c idade domést ica ameri

cana  à violênc ia da guerra imperial i s ta , mas também um

sentim ento de cump licidade culpada com aquele sistema.

Por um lado, a imag em   d iz ia :  eis a realidade oculta que vo

cês não

  sabem

  ver , vocês prec i sam tomar conhec imento

dela e agir de acordo com

 esse

  conhec imento. Mas não há

evidências de que o conhecimento de uma situação

  pro vo

que o

  desejo

  de mudá-la. É por  isso  que a imagem

  dizia

29

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M a r t h a

  Rosler,  Balloons,

1967-72.  F o t o m o n t a g e m

da série   " B r i n g i n g   t he W ar

H o m e :  Ho u se B e au t i f u l " .

© M a r t h a Rosler.

outra

  coisa.

  El a  d iz ia :  eis a realidade óbvia que vocês não

querem ver, porque vocês

  sabem

  que são responsáveis por

ela. O dispositivo crítico visava assim a um efeito   duplo:  a

tomada de consciência da realidade oculta e o sentimento

de culpa em relação à realidade negada.

A

  foto dos manifestantes e da lata de   l ixo  põe em jogo

os

 mesmos

  elementos que

 aquelas

  fotomontagens : a guerra

dis tante e o consumo dom éstico.

 Josephine

  Meckseper é tão

ho st i l  à guerra de George Bush quanto Martha  Rosler  à de

N i x o n .  M as o jogo dos contrários na fotog rafia func iona de

maneira di ferente : não

  l iga

  o superconsumo americano à

guerra dis tante para reforçar as energias mi l i tantes host i s

à guerra. Faz mais é lançar esse  superconsumo ao rosto dos

mani fes tantes que pretendem novamente trazer a guerra

para casa. A s f o t o m o n ta g e n s d e M a r t h a

 Rosler

  acentuavam

a heterogeneidade dos elementos: a imagem da criança

m o r t a

 não p odia integrar-se n o belo

  interior

  doméstico sem

causar  sua explosão. Ao contrário, a fotografia dos manifes-

3

tantes com a lata de   l ixo  ressalta  a homogeneidade   f u n d a

m e n t a l  deles. As latinhas de

  cerveja

  que transbordam da

lata de  l ixo  certamente foram al i

 jogadas

  pelos mani fes tan

tes.   A fotografia sugere  então que a marcha

  deles

  é u m a

marcha de consumidores de imagens e indignações

 espeta-

culares.

  Essa

  maneira de ler a imagem está em harmonia

com as instalações que celebrizaram

  Josephine

  Meckseper.

E s s a s  instalações, visíveis hoje em muitas exposições, são

pequenas vi t r ine s semelhantes

  a

 vi t r ine s

  comerc iai s ou pu

blicitárias, nas quais, tal como nas fotomontagens de   a n t i

gamente, ela reúne elementos supostamente pertencentes a

universos heterogéneo s : por exemplo, numa instalação

  in t i

tulada   "Vende-se" , no meio de art igos de moda mascul ina

h á  u m   l ivro

  sobre

  a hi s tória de um grupo de guerri lhei ros

urbanos ingleses que, justame nte, qu is levar a guerra às me

trópoles imperial i s tas ; em

  outra,

 u m m a n e q u i m d e li n g e r i e

f e m i n i n a

  ao lado de um cartaz de propaganda comunis ta,

ou   o slogan  de maio de 68 "N ão trabalhe nun ca"

 sobre

  fras

cos

  d e p e r f u m e . Essas

  coisas

  aparentemente se

  co nt ra d i

zem,  mas o objetivo é mos trar que pertencem à mesma rea

lidade,

  que o radical i smo pol í t i co também é um fenómeno

de moda jovem . É

 isso

 o que a fotografia dos mani fes tantes

demonstraria a seu modo: eles  protes tam contra a guerra

travada pelo império do consumo que solta

  suas

  bombas

sobre

  as c idades do Oriente Médio. Mas  essas  bombas são

um a

  resposta à destruição das torres que, por sua vez, fora

posta em  cena  como o espetáculo da derrocada do império

da   mercadoria e do espetáculo. A imagem

 parece

  dizer en

tão:

  esses

  mani fes tantes es tão aí porque consumiram as

imagens da queda das torres e dos bombardeios no Iraque.

E é também um espetáculo que   eles  dão nas ruas. Em últi

ma instânc ia, terrori smo e consumo, protes to e espetáculo

sã o

 reduz idos a um único e mesmo

  processo

  governado pela

le i  mercantil da equivalência.

Mas , l evada ao extremo,  essa  demonstração   visua l

deveria conduzir à abolição do procedimento crítico: se

  tudo

nã o passa  de exibição espetacular, a oposição entre aparên

cia e realidade que fundamentava a eficácia do discurso crí-

31

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tico

  cai por terra; e, com ela, toda e qualquer culpa em rela

ção aos  seres  s i tuados do lado da realidade obscura ou

negada.  Nesse

 caso,

  o dispositivo crítico mostraria simples

mente sua própria superação. Mas não se trata disso. As pe

quenas vi t r ine s

  que m is tur am propagand a revoluc ionária e

moda jovem dão prosseguimento à lógica

  dupla

  da inter

venção mi l i tan te de ontem. Diz em também : ei s a real idade

que vocês não

  sabem

  ver, o reino sem   l imi te  da exposição

comerc ial , o horror  n i i l i s t a  d o m o d o d e  vid a  p e q u e n o - b u r -

guês de hoje; mas também: eis a realidade que vocês não

querem ver, a participação de

  seus

 pretensos  gestos  de re

volta

 nesse

 processo

  de exibição de signos de distinção go

vernado pela exibição comercial . Portanto, o artista crítico

sempre se propõe   pro d uzir  o curto-c i rcui to e o choque que

revelam o

  segredo

  ocultado pela exibição das imagens. Em

M a r t h a  Rosler,  o choque devia revelar a violência imperia

lista  por trás da exposição feliz dos  bens  e das imagens . Em

Josephine

  Meckseper, a exibição das imagens  mostra-se

idêntica à estrutura de uma realidade em que

  t ud o

  é expos

to   no modo da exposição comerc ial . Mas o ob jet ivo é sem

pr e mo strar ao espectador  o que ele não sabe ver e envergo

nhá-lo porque ele não quer ver, com o risco de o próprio

dispositivo   crítico se  apresentar  como uma mercadoria de

luxo

  pertencente à lógica que ele denuncia.

Há então de fato uma dialética inerente à denúncia do

p a r a d i g m a

  crítico:

  esta

  declara a sua obsolescência com o

único f im de reprodu zir seu mecanismo, com o ri sco de

t ransformar

  a ignorânc ia da real idade ou a negação da mi

séria em ignorância do fato de que realidade e miséria desa

pareceram, de transformar o

 desejo

  de ignorar o que torn a

cu lp ado  em   desejo  de ignorar que não há nada de que se

sentir culpado. Esse  é , substanc ialmente, o argumento de

fendido  j á não por um art i s ta , mas por um fi lósofo,

  Peter

Sloterdijk,  em seu   l ivro  Écumes [Espumas].  Conforme sua

descrição, o

 processo

 da modernidade é um

 processo

  de an-

tigravitação. O termo refere-se e m  pr ime iro luga r, está claro,

às invenções técnicas que po ssibil i tara m a conquista do es

paço e às que puseram as tecnologias da comunicação e da

32

realidade  v i r t u a l  no lugar do sól ido mundo  indu str ia l .  M a s

t a m b é m expressa  a ideia de que a   vid a  teria perdido   muito

de sua gravidade de

  outrora,

  entendendo com

 isso

 s ua

 carga

de sofrimento, aspereza  e miséria, e com ela seu   peso  de

realidade. Por

 esse

 mo t ivo ,  os procedimentos tradicionais do

pensamento crítico

  baseados

  nas "definições da realidade

formu ladas

  pela ontologia da pobreza" já não teriam razão

de ser. Se subsistem, segundo Sloterdi jk, é porque a crença

na solidez da realidade e o sentimento de culpa em relação à

miséria sobrevivem à perda de seu objeto. Sobrevivem na

modalidade

  de i lusão necessária.  M a r x

 v ia

  os homens proje-

tar no céu da religião e da ideologia a imagem   invertida  de

sua miséria real .

  Nossos

  contemporâneos, segundo Sloter

di jk ,  fazem o contrário: projetam na ficção de uma realidade

sól ida a imagem   invertida  desse

  processo

  generalizado de

perda

  de  peso:  "Q ualquer que seja a ideia expressa n o espa

ço público, é a mentira da miséria que redige o texto. Todos

os discursos são submetidos à lei que

 consiste

 e m   retraduzir

no jargão da miséria o luxo que subiu ao poder."

6

  O embara

ço culpado que se

  sente

  diante do desaparecimento do

 peso

e da miséria se

  expressaria

  inversamente na retomada do

velho   discurso miserabil ista e  vi t imiza nt e .

Essa  análise convida a l ibertar-nos das formas e do

conteúdo da tradição crítica. Mas só o faz à custa de repro

d uzir  sua lógica. Diz, mais uma vez, que  somos  vítimas de

u m a

  estrutura global de i lusão, vítimas de

 nossa

  ignorância

e de nossa  resistência diante de um

 processo

 glo bal irresistí

ve l  de desenvolvimento das forças

 pro d ut iva s :

  o

 processo

  de

desmaterialização da riqueza que tem como consequência a

perda das crenças e dos ideais antigos.

 Reconhecemos

  facil

mente na argumentação a indestrutível lógica do   Manifesto

Comunista.  N ão por acaso  o pretenso pós-modernismo pre

cisou tomar-lhe de empréstimo sua fórmula canónica: "Tudo

o que é sólido se esfuma no ar." Tudo se tornaria   fluido,

líquido, gasoso  e restaria rir dos ideólogos que ainda acredi

ta m   na realidade da realidade, da miséria e das guerras.

6.

  Peter

  S l o t e r d i j k ,

  Écumes,

  t ra d .  fr .  O l i v i e r  M a n n o n i , P a r is , M a r e n S e l l,  2005,

p.

  605.

33

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Por mais provocadoras que pre tendam ser, essas teses

cont inu am   fechadas  na lógica da tradição crítica. Permane

cem fiéis à  tese  do

  processo

  histórico inelutável e de seu

efei to necessário: o mecanismo de inversão que transform a

a realidade em ilusão ou a ilusão em realidade, a pobreza e m

riqueza

  ou a r iqueza em pobreza. Continuam denunciando

a incapacidade de

 conhecer

 e o desejo de ignorar. E cravam

sempre a culpa no coração da negação.

 Essa

  crítica da

  t ra d i

ção crítica, portanto, ainda emprega

  seus

  conceitos e

  seus

p r o c e d im e n t o s . M a s a l g u m a coisa, é verdade,  m u d o u .  A i n

da ontem esses  procedimentos se propunham susc i tar

  for

mas de consciência e energias voltadas para um

 processo

 d e

emancipação. Agora elas  es tão ou intei ramente  desconec

tadas desse horizo nte de emancipação, ou c laramente  volta

das contra seu sonho.

É

  esse

  o contexto i lustrado pela fábula dos manifes

tantes e da lata de  l ixo. Sem dúvida a fotografia não exprime

nenhuma censura aos mani fes tantes .   A f i n a l ,  já na década

de 1960, Godard i ronizava os

  " f i lho s

  de Marx e da

  Coca-

-Cola" . Apesar di sso, marchava com   eles,  porque, quando

eles  marchava m contra a guerra do Vietnã, os

  f i lho s

  da era

da Coca-Cola combatiam ou, em todo caso,  achavam que

combatiam com os

  f i lho s

  de

  M a r x .

  O que

  m u d o u

  e m q u a

renta  anos  não foi o desaparecimento de   M a r x ,  absorvido

pela Coca-Cola. Ele não

 desapareceu.

 M u d o u  de  lugar.  A g o

ra

  está alojado no coração do sistema como sua voz ventrí-

loqua.   Tornou-se o fantasma infame ou o pai infame que

tes temunha a infâmia comum dos

  f i lho s

  d e M a r x e d a C o

ca-Cola. Gramsci já caracterizara a revolução soviética como

revolução contra

  O

  capital,

  contra o

  l ivro

  de Marx que se

tornara  a Bíblia do cientificismo burguês.  Seria poss ível d i

zer o mesmo do marxismo em cujo

  seio

  m i n h a g e r a ç ã o

cresceu:

  o ma rxismo da denúncia das mi tologias da merca

doria,

  das i lusões da

 sociedade

  de consumo e do império do

espetáculo. Há quarenta  anos, esperava-se  que ele denun

ciasse  o maquinado da dominação soc ial para dar armas

novas aos que o enfrentavam . Hoje, tornou-se um  saber d e

sencantado

 do reino da mercado ria e do espetáculo, da

  e q u i -

34

valência de qualquer

 coisa

  com qualquer outra e de qualquer

coisa

 com sua própria imagem .

 Essa

  sabedoria pós-marxista

e  pós-situacionista não se   l imi ta  a apresentar uma  pintura

fantasmagórica de uma hu manidade intei ramente enterrada

debaixo dos dejetos  de seu consumo frenético. Também   p i n

ta a lei da dominação como uma força que se apodera de

t ud o

  o que pretenda contestá-la. Transforma todo e qualquer

protesto em espetáculo e todo espetáculo em mercadoria.

Faz dele a expressão de uma vaidade, mas também a de

monstração de uma culpa. A voz do fantasma ventrí loquo

di z  qu e  somos  duas vezes  culpados, culpados por duas ra

zões opostas : po rque ainda nos

  apegamos

  aos velhos

  capri

chos

 de realidade e culpa,   f ingind o  ignorar que não há mais

nada com que se sentir culpado, mas também porque, com

nosso  próprio consumo de mercadorias, espetáculos e   p r o

testos,

  contribuímos para o reinado infame da equivalência

comercial . Essa  dupla  culpa  implica  uma redistribuição no

tável das posições políticas: de um lado, a velha denúncia

esquerdista do império da mercadoria e das imagens

  tor

nou-se uma forma de aquiescência irónica ou melancólica a

esse  inevitável império; por

  outro,

  as energias militantes

voltaram-se para a  direita,  onde alimentam uma nova crítica

da mercadoria e do espetáculo cujos malefícios são

  requali

ficados como crimes dos indivíduos democráticos.

Por um lado, portanto, há a  i ro nia ou a melancol ia de

esquerda.  Esta  nos insta a  confessar  que todos os  nossos

desejos  de subversão obedecem também à lei de mercado e

que só nos comprazemos com o novo jogo disponível no

mercado global , o da experimentação

  i l imit a d a

  de

  nossa

própria

  v ida.

  Mostra-nos absorvidos no ventre do monstro

onde mesmo as

  nossas  capacidades

  de prática autónoma e

subversiva e as

  redes

  de interação que poderíamos   u t i l i zar

contra ela servem ao novo poder da

  besta,

  o da produção

ima t e r ia l .

  A

 besta,  d i z e m ,

  impõe seu império

 sobre

 o s dese

jos e as

 capacidades

  de

 seus

  inim igos potenc iai s , oferecen-

do-lhes pelo melhor preço a mais aprec iada das mercado

rias,

  a capacidade de experimentar a

  vida

  como um solo de

possibil idades  inf ini t a s .  A s s i m ,

 oferece

 a

 cada

 u m o q u e este

35

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pode

 desejar:

 reality shows  para os cretinos e maiores possi

bilidades

  de autovalorização para os

  espertos. Essa,

  s e g u n

do

  nos diz o di scurso melancól ico, é a armadi lha na qual

caíram os que acreditavam em derrubar o poder capitalista

e deram-lhe, ao contrário, meios de

 rejuvenescer

 a l i m e n t a n -

do-se

  da s

  energias

  contestadoras.  Esse  di scurso encontrou

alento no  L e

  Nouvel

  Esprit du  capitcdisme [O novo  espírito do

capitalismo]

  de Luc Bol tansk i e Eve Chiapel lo* .

  Segundo

esses

  sociólogos, as palavras de ordem das revoltas da dé

cada

  de 1960 e , sobretudo, do movimento es tudanti l de

m a i o de 68 ter iam fornec ido meios de regeneração ao capi

t a l i s m o  em di fi culdades depois da  crise  do petróleo em

1973. Maio de 68, realmente, teria avançado os   temas  da

"crítica estética" ao capitalismo - protesto contra um   m u n

do  desencantado,  reivindicações de autenticidade,

  c r iat iv i

dade e autonomia - em oposição à sua crítica "social", pró

pria

  do movimento operário: crítica às desigualdades e à

miséria e denúncia do egoísmo destruidor dos

 elos

 c o m u n i

tários.

 Esses

 temas

  teriam sido integrados pelo capitalismo

contemporâneo, oferecendo a tais

  desejos

  de autonomia e

criatividade  autêntica uma

  " f le xibi l id a d e "

  nova, um enqua

dramento

  flexível , estruturas

  leves

  e inovadoras, o apelo à

iniciativa   i nd i v i d ua l

  e à "cidade por projetos".

A  tese  é em si mesma  bem pouco sólida. É grande a

distância entre os discursos para seminários de executivos,

que lhe servem de base,  e a realidade das formas contempo

râneas de dominação do capitalismo, em que   " flexibilidade"

do   t rabalho s ign i f i ca bem m ais adaptação forçada a form as

de

  produtividade

  aumentadas sob ameaça de demissões, fe

chamentos e relocações do que apelo à criatividade

 genera

lizada

 dos f i lhos de maio de 68. De qualquer mod o, a preo

cupação com a criatividad e no traba lho

  estava

  bem longe

das palavras de ordem do movimento de 1968, que, inversa

mente, foi contrário ao tema da "participação" e ao convite

feito   à juventude ins truída e

  generosa

  de part i c ipar de um

capitalismo

 mod ernizado e humanizado, que

 estava

 no

 cerne

da ideologia neocapitalista e d o reform ismo estatal dos

 anos

* T r a d . b r a s. , I v o n e C . B e n e d e t t i, W M F M a r t i n s Fontes,  2009.  [ N . d a T . ]

36

1960. A oposição entre crítica estética e crítica social não se

baseia

  em nenhuma análise das formas históricas de

 contes

tação. Lim i ta-se, em conform idade com a l i ção de Bourdieu,

a  atr ibuir  aos operários a

  luta

  contra a miséria e em

  prol

  dos

elos

  comunitários, e aos fi lhos transitoriamente

 rebeldes

  da

grande ou pequena burguesia o

  desejo

  individualista  de

criatividade autónoma. Mas a  luta  coletiva pela em ancipação

operária nunca se afastou da nova experiência de

  vida

  e de

capacidade  individuais,  conquistadas

  sobre

  a coerção dos

antigos

 elos

  comunitários. A emancipação social foi ao  mes

m o  tempo emancipação estética,   r u p tu r a  com as maneiras

de sentir, ver e dizer que caracterizavam a identidade operá

ri a  na ordem hierárquica antiga. Essa solidariedade entre so

cial  e estético, entre  descoberta  da   individualidade  para to

dos e projeto de coletividade   l ivre  const i tuiu o

  cerne

  da

emancipação operária. Mas sig nificou , simultaneam ente, a

desordem das

  classes

  e das identidades que a visão socioló

gica do mundo constantemente recusou, contra a qual ela

mesma

  se constru iu no século XIX. É bem natural que a te

nha reencontrado nas manifestações e nas palavras de or

de m  de 1968 e é compreensível que ten ha ficado preocupada

em  acabar com a perturbação que ela trouxe à boa repartição

da s classes, de  suas maneiras de ser e de suas formas de ação.

Portanto ,

  não foi a novidade nem a força da

 tese

  que

pôde seduzir , mas o m odo como ela põe de novo em funcio

namento o tema "crítico" da i lusão conivente. Assim, ela

dava alento à versão melancólica do esquerdismo, que se

alimentava

  da denúncia do poder da besta  e das i lusões dos

que a servem acreditando combatê-la. É verdade que a tese

da cooptação das revoltas "estéticas"

  abre

  para várias con

clusões: ela

  esteia

  então a proposta de um radicalismo que

seria f inalm ente radical : a defecção em  massa  das forças do

Intelecto geral hoje absorvidas pelo Capital e pelo Estado,

preconizada por Paolo V i r n o ,  ou a subversão  v i r t u a l  oposta

ao capitalismo  v i r t u a l por Brian Holme s

7

. Tam bém al imenta

7. Ver Paolo

  V i r n o ,

  Miracle, virtuosité et "déjà-vu". Trois  essais  sur Viáée de

  monde ,

É d it io n s d e 1 ' É c la t , 1 9 9 6 , e t B r ia n H o lmes , " T h e F lex ib le Per s o n a l i ty . F o r a

N ew

  C u l t u ra l C r i t i q u e " ,  in  Hieroglyphs

  of the Future. Art and Politics hl a net-

37

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a proposta de militância

  inver t ida,

  j á não emp enhada em

destruir,  mas em salvar u m cap ita l ismo qu e ter ia   perdido

seu espírito

8

. Mas seu nível  n o r m a l  é o da constatação de

sencantada  da imp os sibi l idade de mu d ar o cu rso de u m

m u n d o  n o  qua l  faltaria qualquer ponto sólido para uma

oposição à realidade de dominação que se

  tor nou  gasosa,

líquida,  ima t e r ia l .  De fato ,  qua l  o p oder dos m anifestantes/

consu midores fotog rafados p or Josephine Meckseper  d i a n

te de uma guerra assim descrita por um sociólogo eminente

de  nosso  temp o? "A técnica fu n dam ental do p oder hoje é a

esquiva, o desvio, o subterfúgio, o evitamento, a rejeição

efet iva de qu alqu er confinam ento

  territorial ,

  co m  seus coro

lários pesados de ordem p o r edif icar , de ordem p or conser

va r

  e a responsabilidade

 pelas

  consequ ências, tanto qu anto

a necessidade  de  arcar  c o m seus custos  [ . . . ] Ataqu es desfe

chados por aviões de combate f u r t ivos e m ísse is in te l ig entes

guiados e autodirigíveis -

  desfechados

 de surpresa, de parte

alg u m a, e log o su btra ídos ao olhar - su bst i tu íram as  inva

s õ e s

  territoriais

  por tropas de infantaria e o esforço para de

sapossar o

  i n i m i g o

 de seu território [.. .] A força

  mi l i tar

  e sua

estratégia de hit-and-run  pre f igura va m,  encarnavam e p res

sag iavam o qu e

 estava

  rea lmente em jog o no novo

  t ip o

  de

guerra da era da modernidade líquida: não conquistar um

novo terri tório , mas derru bar os m u ros qu e det in ham os n o

vos poderes globais e

  f lu idos . "

9

 Esse d iag nóst ico   fo i p u blica

do   em  2000. N ão  seria difícil perceber que ele   fo i p l e n a m e n

te comp rovado pelas ações

 m i l i t a res

 d os  oito anos  seguintes.

Mas a p revisão melancólica não incide sobre  fa tos comp ro

váveis . Ela di z s imp lesmente : as  coisas  não são o que pare

cem.

 Essa

 é u m a

 frase

  que nunca corre o risco de ser refuta

da .  A melancolia alimenta-se de sua própria impotência.

worked

  era,  B r o a d ca s t in g Pr o j ec t , Pa r is /Za g r eb ,  2002  ( ta mb ém d is po n ív el em

w w w . g e o c i t i e s . c o m / C o g n i t i v e C a p i t a l i s m / h o l m e s l . h t m l ,

  b e m c o m o " R é v e i l -

ler les f a n tô mes co l lec t i f s . Rés is ta n ce r ét icula ir e , per s o n n a l i té f lex ib le" ,

  w w w .

r e p u b l i c a r t .n e t / d i s c / a r t s a bo t a g e / h o l m e s 0 1 _ f r . p d f) 

8. Bern ard Stiegler ,   Mécréance et diserédit 3;  Vespnt  perdu  du capitalisme,  G a l i lée ,

2006.

Z yg m v m t   B a u m . m

  hquid

  Modernity,  P o l i t v

  Press. 2000,

  pp. 11-2 ( tradução

m i n h a ) .

38

Basta-lhe  poder convertê-la em impotência generalizada e

reservar-se  a posição de espírito lúcido que lança um olhar

desencantado sobre u m mu ndo onde a in terp retação cr í t ica

do

 sistema

  se

  tornou

  um elemento do próprio sistema.

D i a n t e  dessa

  melancolia de esquerda,

  assistimos

  ao

desenvolvimento de u m novo

 f u r or

  de   direita,  qu e   r ef or mu

la

  a denúncia dó mercado, da mídia e do espetáculo como

denúncia das devastações do indivíduo democrático. Há al

g u m   temp o a op inião dom inante desig nava com o nom e de

democracia a converg ência entre u ma form a de g overno ba

seada  nas liberdades públicas e o modo de   vida  individual

baseado  na

  l ivre

  escolha  oferecida pelo

  l ivre

  mercado. En

qu anto

  du r ou

  o império soviético, ela opunha

  essa

  d e m o

cracia a o   i n i m i g o  chamado de   t o t a l i ta r ismo .  M a s o consen

so   sobre  a fórmula que identificava democracia e   soma  de

direitos  h u m a n o s ,

  l ivre

  mercado e

  l ivre

  escolha

  individual

dissipou-se com o desaparecimento do

  i n i m i g o .

  N os   anos

seguintes

  a 1989,

  campanhas

  intelectuais cada v e z m a i s f u

riosas

  denu nciaram o efe ito fa ta l da con ju nção entre os d i

re itos hu manos e a

 l ivre

 escolha  dos indivíduos. Sociólogos,

filósofos políticos e moralistas se revezaram para nos

  expli

car que os dire itos hu manos, como M arx bem

 vira,

  sã o

  direi

tos do indivíduo egoísta burguês, direitos dos consumidores

de mercadorias, e que

 esses

 direitos levavam hoje

 esses

 c o n

sumidores a derrubar qualquer entrave a seu frenesi, por

tanto a destruir todas as formas tradicionais de autoridade

qu e  i m p u n h a m   u m

  l imi te

  ao p oder do mercado: escola,  re

ligião ou família.  Esse  é,   d i z e m ,  o sentido real da palavra

democracia: a lei do indivíduo preocupado  apenas  com a

satisfação de seus desejos.  Os indivíduos democráticos que

re m

  a igualdade. Mas a igualdade que querem é a que reina

entre o vendedor e o comprador de uma mercadoria. O que

eles  qu erem, p o rtanto , é o  t r i unfo  do mercado em todas as

re lações hu manas. E, qu anto mais amor têm à ig u aldade,

mais ardorosamente concorrem p ara esse  t r i unfo .  C o m base

nisso, era fácil provar que os movimentos estudantis da dé

cada  1960 e, mais especialmente, o de maio de 68 na França

visavam  apenas  à destruição das formas de autoridade

  t r a

dicional

  qu e se op u nham à invasão g eneral izada da

  vida

39

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pela lei do Capital , e que seu único efeito foi transformar

nossas sociedades

  em livres agregados de moléculas soltas,

isentas

  de qualquer fi l iação, inteiramente disponíveis só

para a lei do mercado.

M as  essa  nova crítica da mercadoria deveria dar mais

u m  passo  e apresentar como consequência da

  sede

  d e m o

crática de consumo igualitário não só o reinado do mercado,

mas também a destruição terrorista e totalitária dos

 elos

  so

c iai s e humanos . Há algum tempo se opunha   individu al i s

m o  a to tal i tari smo. Mas   nessa  nova teorização, o

  totalita

r i s m o  torna-se consequência do fanati smo   ind ivid ua l is t a

da   l ivre

  escolha

  e do consumo   i l imi tado.  N o m o m e n t o d o

desmoronam ento das torres , um em inente ps icanali s ta , ju

r ista  e fi lósofo, Pierre Legendre, explicava no  L e Monde  que

o ataque terrorista era o retorno do recalcado ocidental , a

punição pela destruição ocidental da ordem simbólica,

  des

truição resumida no

  casamento

  homossexual . Dois

  anos

dep ois ,

  um eminente f i lósofo e   l inguist a ,

 Jean-Claude

  M i l

ner, dava um cunho mais radical a

  essa

  interpretação em

se u   l ivro L es

 Penchants crimineis

 de

 1'Europe

 démocratique  [Ten

dências criminosas da Europa democrát ica] . O crime que

ele impu tava à Europa demo crática era simplesmente o ex

termínio dos judeus. A democracia, argumentava ele, é o

re ino

  da i l imitação social , é animada pelo

 desejo

  de expan

s ã o s em f i m  desse

 processo

  de i l imitação. O povo

 j ud e u,

  ao

contrário, sendo o povo   fiel  à lei de fi l iação e transmissão,

representava o único obstáculo a  essa  tendência inerente à

democracia. É

 esse

 o

  mo t ivo

  pelo

  qua l esta

  precisava

  e l i m i

ná-lo e foi a única beneficiária

  dessa

  e l iminação. E nos tu

mu ltos

  dos subúrbios

  franceses

  de novembro de

  2005,

  o

p orta-voz

  da

  intelligentsia

 m idiática

  francesa,  A l a i n  F inkie l -

kraut, v ia a consequência di reta do terrori smo democrát ico

do   consumo sem entraves:  Essa  gente que destrói escolas o

que diz de

 fato?

  Sua mensagem não é um ped ido de a juda

ou

  uma exigência de mais

 escolas

  ou de melhores

 escolas,

  é

a vontade de eliminar os intermediários entre ela e os obje-

tos de seus desejos.  E quais são os  objetos  de  seus desejos?

E s imples :

  d inhe iro ,

  gri fes , mulheres às

 vezes,

  [ . . . ] querem

4

t ud o

 agora, e o que querem é o ideal da

 sociedade

 de consu

m o.

 E o que veem na televisão. "

10

  Como o mesmo autor   afir

mava que aqueles jovens   t i n h a m   s ido  imp elidos  a a m o t i n a r -

-se por fanáticos islamitas, a demonstração reduzia

 a f ina l

  a

u m a

  única  f igura  democracia, consumo,

  puerilidade,

  fana

t i s m o  rel ig ioso eyiolênc ia  terrorista.  A crítica do consumo e

do

  espetáculo identificava-se em última instância com os

temas

  mais crus do choque de civil izações e da guerra con

tr a

 o terror.

O p u s esse  f u r or

  direit ista

  da crítica pós-crítica à me

lancolia

  de esquerda. Mas trata-se de duas

 faces

  da mesma

moeda. Am bas põem em ação a mesma inversão do modelo

crítico que pretendia revelar a lei da mercadoria como ver

dade última das

 belas

  aparências, a

 f i m

  de armar os comba

tentes

  da   luta  social . A revelação continua em curso. Mas

não se

  espera

  que ela forneça nenhum a arma contra o im

pério que denuncia. A melancolia de esquerda convida-nos

a

 reconhecer

 que não há al ternat iva para o poder da besta  e

a

 confessar

  qu e

 estamos

  satisfeitos com isso. O

  f u r or

  d e d i

reita

  nos adverte que, quanto mais tentarmos dobrar o po

der da

  besta,

  mais contribuiremos para seu   t r iu nf o.  M a s

essa  desconexão entre os procedimentos críticos e sua   f i n a

lidade  lhes

  subtrai,

 como contrapart ida, qualquer esperança

de eficácia. Os melancólicos e os profetas envergam os   tra

jes da razão

 esclarecida

 que dec i fra os s intomas de um a do

ença da civil ização. Mas essa  razão esclarecida, por sua vez,

apresenta-se

  desprovida de qualquer efeito

  sobre

  doentes

cuja doença

 consiste

 em não se

 saberem

  doentes. A   i n t e r m i

nável crítica ao sistema identifica-se,

 a f ina l ,

  com a demons

tração das razões

  pelas

  quais

  essa

  crítica é desprovida de

qualquer

  efeito.

Evidentemente,  essa  impotência da razão

  esclarecida

não é acidental . E intrínseca a  essa  f igura  da crítica pós-

-crítica. Os

  mesmos

  profetas que deploram a derrota da

razão do

  I l u m i n i s m o

  em  face do terrori sm o do  " individu a

l i s m o  democrát ico"

  vo l t a m

  as

  suspeitas

  para  essa  mesma

10.   A l a i n  F i n k i e l k r a u t ,  en tr ev is ta d a d a a o  Haaretz,  1 8 d e n o v emb r o d e 2005,  t ra

d uçã o d e  M i c h e l  W a r s ch a w s k i e M ich èle S ib o n y .

41

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razão. N o "te rror" que denunciam, veem a consequência da

l ivre  flutuação dos átomos   individu ais ,  soltos dos

  elos

  das

instituições tradicionais que mantêm juntos os  seres h u m a

nos: família,

 escola,

  religião, solidariedades   tradicionais. Ora,

essa  argumentação tem uma história bem identificável . Re

m o n t a

 à análise contrarrevolucionária da Revolução

 France

sa.

 Segundo

 ela, a Revolução

 Francesa

 destruíra o tecido das

inst ituições coletivas que re uniam , educavam e proteg iam

os indivíduos: a religião, a monarquia, os vínculos feudais

de dependência, as corporações etc.  Essa  destruição, para

ela, era  pro d ut o do espírito  i lu minis ta ,  que era o espírito do

ind ivid ua l ismo

  protestante. Por conseguinte,  esses  indiví

duos desvinculados, desaculturados e sem proteção se ha

v i a m   torn ado disponíveis tanto para o terrori sm o de massa

qu anto

  para a exploração capitalista. A campanha antide

mocrát ica atual retoma abertamente  essa  análise do elo en

tr e  democracia, mercado e terror. Mas, se

  consegue

 inc lu ir  a

análise marxista da revolução burguesa e do fetichismo

me rca nt i l ,

  é porque

  esta  nasceu

  nesse  solo e dele extraiu

mais de u m al imento. A crí t ica marxis ta dos di rei tos huma

nos, da revolução burguesa e da relação social al ienada de-

senvolveu-se  nesse  terreno da interpretação pós-revolucio-

nária e contrarrevolucionária da revolução democrática co mo

revolução  ind ivid ua l is ta  burguesa que dilacerou o tecido da

comu nidade.

 E é bem

  na t ura l

 que a inversão crítica da

  t ra d i

ção crítica

  o r iund a

  do marxismo nos reconduza a isso.

Portanto ,

  é falso dizer que a tradição da crítica social

e  c u l tu r al  está  esgotada.  E la vai  m u i t o  bem, em sua forma

invertida

  que agora es trutura o discurso dominante. Sim

plesmente foi levada de

  volta

  a seu terreno de origem: o da

interpretação da mod ernidade como  r u p tu r a  individualista

do   elo social e da democracia como   ind ivid ua l ismo  de mas

sa. Foi também levada de

  volta

  à tensão originária entre a

lógica

 dessa

  interpretação da "mode rnidade democrát ica" e

a lógica da emancipação social . A atual desconexão entre a

crítica do mercado e do espetáculo e qualquer visão eman-

cipadora

 é a forma úl t ima de uma tensão que habi tou

 desde

a origem o m ovim ento de emancipação soc ial .

42

Para

  compreender  essa  tensão, é preciso

  voltar

  ao

sentido  o r i g i n a l da palavra "emancipação" : saída de um es

tado

  de menoridade. Ora,  esse  estado  de menoridade do

qual  os militantes da emancipação social quiseram sair é,

e m

  princípio, a

  mesma coisa

  que o " tec ido harmonioso da

c o m u n i d a d e "

  com que sonhavam, há dois séculos , os pen

sadores

  da contrarrevolução e com que se emocionam hoje

os pensadores

 pós-marxis tas do elo soc ial

  perdido.

 A c o m u

nidade

  harmoniosamente tec ida, alvo  dessas

  saudades,

  é

aquela em que

  cada

  um tem seu lugar em sua  classe,  fica

ocupado na função que lhe

 cabe

 e é dotado do equipam ento

sensorial e intelectual que convém a

 esse

 lugar e a essa  f u n

ção:

 a comunidade platónica na

  qua l

  os artesãos devem ficar

e m

  seu lugar porque o trabalho não

 espera

  - que não

 sobre

t e m p o

  para ir prosear  na agora, deliberar na

  assembleia

  e

olhar sombras no teatro - , mas tamb ém porque a

  divindade

lhes  deu alma de ferro - o equipamento sensorial e intelec

tual

  - que os adapta e os

  f ixa

  a essa  ocupação. É o que

  cha

m o  de divisão  policial  do sensível : a existência de uma rela

çã o  "harmoniosa" entre uma ocupação e um equipamento,

entre o fato de

  estar

  nu m tempo e nu m espaço espec í f icos ,

de

 nele

 exercer

  ocupações definidas e de ser dotado das ca

pacidades de sentir, dizer e fazer que convêm a  essas a t i -

vidades.

  A emancipação social , na verdade, significou a

r u p t u r a  da concordância entre uma "ocupação" e uma "ca

pacidade" que significava incapacidade de conquistar

  outro

espaço e

  outro

  tempo. Signi fi cou o desmantelamento da

quele corpo trabalhador adaptado à ocupação do artesão

sabedor  de que o trabalho não

  espera,

  de que os sentidos

sã o

 moldados por

 essa

 "ausênc ia de tempo". Os trabalhado

res emancipados f orma vam para s i , hic et nunc,

  o ut ro

  corpo

e outra "alma" desse  corpo - o corpo e a alma dos que não

estão adaptados a nen hum a ocupação espec í f ica, que põem

em

  ação as

  capacidades

  de sentir e falar, de

  pensar

  e agi r

que não pertencem a nenhuma  classe  em part i cular, que

pertencem a qualquer um .

M as  essa ideia e essa  prática da emancipação   h i s tor i

camente  se mesc laram e por f im  acabaram  submetidas a

43

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um a

  outra ideia diferente de dominação e l ibertação: a que

relacionava a dominação com u m processo  de separação e a

libertação, por conseguinte, com a reconquista de uma   u n i

dade perdida.  Segundo essa  visão, exemplarmente resumida

nos textos do jovem Marx, a sujeição à lei do Capital era

efeito de uma  sociedade  cuja unidade fora quebrada, cuja

r iqu eza

  fora alienada, projetada acima ou em

  face

  dela. A

emancipação então só podia

 aparecer

  como reapropriação

g lobal d e u m b e m

  perdido

  pela comunidade. E essa reapro

priação só podia ser resultado do conhecimento do

 processo

g lobal

 dessa

  separação.

  Desse

  ponto de vista, as formas de

emancipação daqueles artesãos que constituíam um corpo

novo  para

  vive r

  aqui e agora nu m novo mun do sens ível só

p o d i a m

  ser i lusões, produz idas pelo

 processo

  de separação

e pela ignorância desse

 processo.

 A emancipação só poderia

chegar

 c o m o o f i m d o

 processo

  global que havia separado a

sociedade

 de sua verdade.

A p ar t i r

  daí , a emancipação deixou de ser concebida

como construção de novas  capacidades  para ser promessa

da ciência àqueles

 cujas capacidades

  i lusórias só podiam ser

a outra

 face

  de sua incapacidade real . Mas a própria lógica

da ciência era a lógica do adiamento   indefinido  da promes

sa. A ciência que prometia a l iberdade era também a ciência

do  processo  global que tem o efeito de   pro d uzir ind e f inid a

mente sua própria ignorância. Por

 esse motivo,

  precisa

 estar

sempre empenhada em dec i frar as imagens

 enganosas

 e em

desmascarar

  as formas i lusórias de enriquecimento de si

mesmo que só podiam encerrar um pouco mais os indiví

duos nas

  redes

 da i lusão, da sujeição e da miséria.

 Sabemos

o nível de frenesi atin gid o, entre o tem po das

  Mythologies

[Mitologias]  de

 Barthes

  e o da  Société du Spetacle [Sociedade

do espetáculo]  de Guy Deb ord, pela lei tura crít i ca das ima

gens

  e o desvendamento das

  mensagens

  enganosas

  que

dissimu lavam.

 Sabemos

  também como

 esse

 frenesi de deci

fração das

 mensagens enganosas

 de toda imagem se inver

te u   na década de 1980 com a afirmação desiludida de que já

não havia por que   d i s t ingu ir  imagem e real idade. Mas essa

inversão não

 passa

 de consequência da lógica originária que

44

concebia o

  processo

  soc ial g lobal como u m

 processo

 de au-

todissimulação. O  segredo ocul to nada mais é , a f ina l ,  que o

f u n c i o n a m e n t o

  óbvio da máquina. E s tá realmente aí a ver

dade do concei to de espetáculo f ixado por Guy Debord: o

espetáculo não é a exposição das imagens que ocultam a

realidade.  É a existência da atividade social e da riqueza so

cial

  como realidade separada. A situação dos que

  v ivem

  na

sociedade

  do espetáculo é então idêntica à dos prisioneiros

amarrad os na caverna platónica. A caverna é o lugar onde as

imagens são tomadas por realidades, a ignorância por  saber

e a pobreza por riqueza. E, quanto mais os prisioneiros se

i m a g i n a m

  capazes

 de constru ir de outro modo sua

  v ida  i n

d i v i d ua l  e coletiva, mais se enleiam na servidão da caverna.

M as   essa  declaração de impotência leva de volta à ciência

que a proc lama. Conhecer a lei do espetáculo equivale a co

nhecer

 a maneira como ele reproduz indefinidam ente a

  fal

sificação que é idêntica à sua realidade. Debord resumiu a

lógica desse c írculo nu ma fórmula

  lapidar:

 " N o m u n d o re a l

mente  inver t ido,  o verdadeiro é um momento do fal so. "

11

A s s i m ,

  o próprio conhecimento da inversão pertence ao

m u n d o

  inver t ido, o conh ec imento da sujeição, ao mu ndo da

sujeição. Por isso, a crítica da i lusão das imagens pôde ser

revertida  em crítica da i lusão de realidade, e a crítica da  fal

sa

  riqueza, em crítica da falsa pobreza. A pretensa

  viravolta

p ó s - m o d e r n a ,

  nesse

  sent ido, nada mais é que uma vol ta a

mais no mesmo c í rculo. N ão há

 passagem

  teórica da crítica

m o d e r n i s t a

  ao   n i i l i smo pós-m oderno. O que se faz é ler em

outro   sent ido a mesma equação da real idade e da image m,

da riqueza e da pobreza. O

  n i i l i smo

  atribuído ao humor

pós-moderno poderia

  m u i t o

  bem ter sido

  desde

  o início o

segredo oculto da ciência que   d iz ia  revelar o segredo ocul to

d a  sociedade  m o d e r n a .  Essa  c iência alimentava-se da in

destrutibilidade

  d o

  segredo

  e da reprodução

  ind e f inid a

  do

processo

  de falsificação que denunciava. A desconexão pre

sente  entre os procedimentos críticos e qualquer perspecti

va   de emancipação revela

 apenas

  a disjunção que

  estava

  n o

11 .  G u y D e b o rd , La société du  spectacle,  op. cit.,  p. 6.

45

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cerne  do p aradig ma cr í t ico . Ela p ode zombar de

  suas  i l u

sões, mas rep rodu z su a lóg ica .

Por isso, uma real "crítica da crítica" só pode ser uma

inversão a mais de sua lógica.  Passa  p o r u m   reexame  de

seus

  conceitos e de

 seus

  procedimentos, de sua genealogia e

do   m o d o c o m o eles  se entre laçaram com a lóg ica da eman

cipação social.

  Passa

  esp ecia lmente p or u m olhar novo so

bre a h istór ia da imag em  obsedante e m t o r n o da  qua l  ocor

re u  a inversão do modelo cr í t ico , a imag em, tota lmente

su rrada e semp re p ronta p ara o u so, do p obre e cret ino con

sumid o r ,  su bmerso p ela vag a das mercadorias e imag ens e

sedu zido p or suas promessas falaciosas. Essa  preocupação

obsessiva  em relação à exposição maléfica das mercadorias

e das imag ens e

  essa

  rep resentação de su a vít ima

  cega

  e

comp lacente não nasceram no temp o de Barthes,

  Baudrillard

ou   D ebord. I mp u seram -se na seg u nda metade do sécu lo

X I X nu m contex to bem esp ecíf ico . Era o temp o em qu e a

fisiologia

  descobria a  m u l t ip l icidade  de estímulos e circuitos

nervosos, em lu g ar do qu e fora u nidade e s imp licidade da

alma, e em qu e a p sicolog ia , com Taine , t ransformava o cé

rebro em u m  " po l ipe iro de imag ens" . O p roblema é qu e

 essa

p romoção cient íf ica da qu ant idade coincidia com  o ut ra ,  c o m

a da m u lt idão  po pula r ,  su je i to da forma de g overno chama

da democracia, com a de

 m u l t ip l ic idade

  de indivíduos sem

qualidade que a proliferação de textos e imagens

  r e p r o d u z i

dos, de   vi t r ine s  de rua comercial e das luzes da cidade pú

blica t ransformavam em habitantes p lenos de u m mu ndo

comp art i lhado

  de conhecimentos e g ozos.

Fo i nesse

  contexto que o   r u m o r  começou a

 elevar-se:

havia est ímu los em dem asia ,

 desfechados

 de todos os lados,

p ensamentos e imag ens em demasia ,   inva d ind o   cérebros

não p rep arados p ara dominar su a abu ndância , imag ens de

prazeres possíveis em demasia,  expostas  à visão dos pobres

das grandes cidades, conhecimentos novos em demasia,

lançados dentro do crânio fraco das crianças do po vo . Essa

excitação de energia nervosa era um sério

 pe r igo .

  O resu lta

do   é uma explosão de apetites desconhecidos

  produzindo,

em cu rto p razo, novos  assaltos  contra a ordem social e, a

46

ílongo prazo, o esgotam ento da raça trabalha deira e sólida. A

deploração do

 excesso

  de mercadorias e de imag ens consu

míveis fo i de in ício u m qu adro da   sociedade  democrát ica

c o m o sociedade  em que há em demasia indivíduos  capazes

de apropriar-se de palavras, imagens e formas de vivência.

Fo i essa, de fato, a. g rande ang ú st ia das e l i tes do sécu lo X I X :

t

  ang ú st ia diante da circu lação

  dessas

  formas inéditas de

jprivência, apropriadas a dar a qualquer passante, v isi tante ou

,'itora  o mater ia l capaz  de   co nt r ibuir  para a reconfiguração

' e seu mu ndo vivenciado. Essa  multiplicação de encontros

inéditos era também o despertar de capacidades  inéditas nos

corp os p op u lares. A emancip ação, ou   seja,  o desmantela

mento da velha divisão do visível, do pensável e do factível,

a l imentou -se dessa  multiplicação. A denúncia das seduções

ment irosas da  sociedade d e c o n s u m o "   fo i

 in ic ia lmente

  obra

daquelas elites apavoradas diante das duas figuras gémeas e

contemp orâneas da ex p erimentação p op u lar de novas

  for

mas de

 v ida :

 Em ma Bovary e a Associação I nternacional dos

Trabalhadores. Evidentemente ,

 esse

 p avor assu miu a forma

da solicitude paternal para com os pobres cujos cérebros frá

geis

 eram

 incapazes

 d e d o m i n a r

 essa  multiplicidade.

 E m o u

tras palavras,

 essa

 capacidade d e reinve ntar a

 v ida

 fo i t rans

formada em incapacidade de julgar as situações.

Esse

  cu idado p aternal e o diag nóst ico de incap acida

de que ele   implicava  foram g enerosamente retomados p elos

qu e qu iseram

 u t i l i zar

  a ciência da realidade social para pos

s ib i l i t a r  qu e homens e mu lheres do p ovo tomassem   cons

ciência de sua situação real disfarçada pelas  imag ens   m e n t i

rosas. Ass u m iram-n os p orqu e desp osavam su a p róp ria v isão

do

  movimento g lobal de p rodu ção comercia l como

  p r odu

ção automática de ilusões para os   agentes  que lhe estavam

sujeitados. Desse  m o d o , a s s u m i r a m t a m b é m a q ue la t r a n s

formação de

  capacidades

  p er ig osas p ara a ordem socia l em

incapacidades fatais. Os procedimentos da crítica social têm

como f inal idade cu idar dos incap azes, dos qu e não   sabem

ver,

  dos qu e não comp reendem o sent ido do qu e veem, dos

que não

  sabem

  t r a n s f o r m a r o

  saber  adquirido

  em energ ia

mil i tante .

  E os médicos p recisam

  desses

  doentes para cui-

47

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dar.

  Para  cuidar das incapacidades, precisam reproduzi-las

ind e f inid a me nt e .  Ora , p ara g arant ir essa reprodução, basta

u m a

  volta qu e , p eriodicamente , t ransforme saú de em d oen

ça e doença em saúde. Há quarenta anos, a ciência crítica

nos fazia

 r ir

 dos imbecis qu e tomava m imag ens p or realida

des e se deixavam assim seduzir por

 suas

 mensagens  oc u l

tas. Entrementes, os "imbecis" foram instruídos na arte de

reconhecer a realidade por trás da aparência e as mensagens

ocultas nas imagens. E agora, evidentemente, a ciência crí

tica reciclada nos faz   sorrir  daqueles imbecis que ainda acre

ditam

  haver

 mensagens

  ocultas nas imagens e uma realida

de   d i s t in ta  da aparência. A máquina pode funcionar assim

até o f im dos temp os, cap ita l izando em cima da im p otência

da crítica que desvenda a impotência dos imbecis.

Portanto, eu não quis  acrescentar  u m a   volta  a essas

reviravoltas  qu e su stentam inf ind avelmen te o mesmo ma

q u i n a r i a  M i n h a  intenção foi sugerir a necessidade  e a

  d i r e

ção de u ma mu dança de

  at itude.

  N o

 cerne

 dessa

  atitude há

a tentativa de desamarrar o elo entre a lógica emancipadora

da capacidade e a lógica crítica da captação coletiva.

 Sair

 d o

círculo é

 p ar t i r

  de outros pressupostos, de suposições segu

ramente  insensatas  do p onto de v ista da ordem de nossas

sociedades  oligárquicas e da chamada lógica crítica que é

seu duble. Pressuporíamos assim que os incapazes são ca

pazes, que não há nenh um segredo oculto da máquina que os

mantenha encerrados em sua posição. Suporíamos que não

há nen hu m mecanism o fata l a t ransformar a real idade em

i m a g e m ,

  n e n h u m a  besta  monstruosa a absorver todos os

desejos

  e energ ias em seu estômag o, nenhu m a comu nidade

perdida   por restaurar. O que há são simplesmente  cenas  de

dissenso,

  capazes

  de sobrevir em qualquer lugar,  a qualquer

mo me nt o .   Dissenso quer dizer uma organização do sensível

na   qua l  não há realidade oculta sob as aparências, nem re

g i m e

  único de apresentação e interpretação do dado que

i m p o n h a   a todos a sua evidência. É que toda situação é pas

sível de ser fendid a no

  interior ,

 reconfig u rada sob

  ou tr o

  re

gime de percepção e significação. Reconfigurar a paisagem

do

 perceptível e do pensável é  mo d if ica r o território do pos-

48

sível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O

dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que

é percebido, pensável e factível e a divisão daqueles que s ão

capazes

  de perceber, pensar e modificar as coordenadas do

m u n d o  com um . É nisso que consiste o  processo  de subjeti-

vação política: na ação de capacidades não contadas que

vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para

desenhar u ma nova top og raf ia do p ossível . A in te lig ência

coletiva

  da emancip ação não é a comp reensão de u m

  p r o

cesso  global de sujeição. E a coletivização das capacidades

investidas nessas cenas  de dissenso. É a aplicação da capa

cidade de qualquer

 u m ,

  da qu alidade dos homens sem qu a

lidade.   Como eu disse, nada mais que hipóteses  insensatas.

N o  entanto, acredito que há mais que procurar e mais que

encontrar hoje na investigação desse poder do que na   inter

minável tarefa de

 desmascarar

  os fetiches ou na interminá

ve l  demonstração da onipotência da besta.

49

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Paradoxos

  d a a r t e p o l í t i c a

Passado  o tempo da denúncia do paradigma moder

nista e do ceticismo dominante quanto aos poderes subver

sivos da arte, vê-se de novo a afirmação mais ou  menos  g e

neralizada de sua vocação para responder às formas de

dominação económica, estatal e ideológica. Mas vê-se  t a m

bé m  essa  vocação reafi rmada assumindo formas   d iverg en

tes, se não contraditórias.  A l g u n s  art i s tas transformam em

estátuas monumentais os ícones midiáticos e publicitários

para nos fazerem tomar consciência do poder desses  ícones

sobre

  nossa  percepção; outros enterram silenciosamente

monumentos invisíveis dedicados aos horrores do século;

uns se empenham em mostrar-nos os

  vieses

da represen

tação dominante das identidades subalternas, outros nos

propõem afinar o olhar diante das imagens de

 personagens

com identidade  f lu tu ante  ou indecifrável ; alguns artistas fa

zem os banners  e as m áscaras dos mani fes tantes que se in

surgem contra o poder g lobal izado, outros se

  int ro d uze m

co m

  falsas

  identidades nas reuniões dos poderosos  desse

m u n d o   ou em

 suas redes

 de informação e comu nicação; al

guns fazem em museus a demonstração de novas máquinas

ecológicas, outros põem nos subúrbios

  carentes pequenas

pedras ou discretos sinais de néon destinados a criar um

51

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ambiente novo,  desencadeando  novas relações sociais; um

transporta

  para bairros desfavorecidos as obras-primas de

u m   museu, outros enchem as salas  dos museus do   l ixo  dei

xado por seus vi s i tantes ; um paga trabalhadores imigra ntes

para que, abrindo seu próprio túmulo, demonstrem a

  v i o

lência do sistema salarial , enquanto outra vai trabalhar

como caixa de supermercado para empenhar a arte na prá

tica de restauração dos

 elos

  sociais.

A  vontade de  rep oli t izar  a arte manifesta-se assim em

estratégias e práticas   muit o  diversas.

  Essa

  divers idade não

t radu z apenas  a variedade dos meios escolhidos para

  a t ingir

o mesmo

  f i m .  Reflete

  uma incerteza mais fundamental so

bre o

 f im

  em vis ta e sobre a própria configura ção d o terreno,

sobre  o que é a política e  sobre  o que a arte faz. Contudo,

essas

 práti cas divergentes têm um p onto em co mu m: geral

mente consideram ponto pacífico certo modelo de eficácia: a

arte é considerada política porque mostra os estigmas da

dominação, porque  r id icula r iza  os ícones reinantes ou por

que sai de  seus  lugares próprios para transformar-se em

prática social etc. Ao

  cabo

  de um bom século de suposta

crítica da tradição mimética, é forçoso constatar que   essa

tradição continua domina nte até nas formas que se q uerem

artística e politicamente subversivas. Supõe-se que a arte

nos torna revol tados quando nos mo stra

  coisas

  revoltantes,

que nos mobiliza pelo fato de mover-se para fora do ateliê

ou

  do museu, e que nos transform a em oponentes do

 siste

ma dominante ao se negar como elemento  desse  s istema.

Apresenta-se sempre como evidente a  passagem  da   causa

ao efeito, da intenção ao resultado, a não ser que se suponha

o artista inábil ou o destinatário incorrigível .

A   "pol í t i ca da arte" é ass im marcada por uma es tra

nha esquizofrenia. Art i s tas e c rí t icos nos convidam a s i tuar

o pensamento e as práticas da arte num contexto sempre

novo.  Gostam de nos dizer que as estratégias artísticas de

v em

  ser intei ramente

  repensadas

  no contexto do capitalis

m o  tardio,  da g lobal ização, do trabalho pós-fordis ta , da

comunicação informática ou da imagem

  d ig i ta l .

  M as   co nt i

n u a m   a  va l idar  em   massa  modelos de eficácia da arte que

52

talvez tenh am s ido abalados um século ou dois antes d e t o

da s

 essas

 novidades . Gostaria , po rtanto, de inverter a p ers

pectiva habitual e ganhar certa distância histórica para fa

zer algumas perguntas: a que modelos de eficácia obedecem

nossas

  expectativas e  nossos  juízos em matéria de política

da  arte?  A que era

 esses

 mod elos pertencem?

Transporto-me então à Europa do século

  X V I I I ,

  no

momento em que o modelo mimético dominante  fo i

 contes

tado

  de duas maneiras.  Esse  modelo supunha uma relação

de continuidade entre as formas sensíveis da produção ar

tística e as formas sensíveis segundo as quais são afetados

os sentimentos e os pensamentos de quem as   recebe.  A s

s i m ,  supunha-se que a cena  teatral clássica deveria ser um

espelho ampl iador em que os

  espectadores

  eram convida

dos a ver, nas formas da ficção, os comportamentos, as   v i r

tudes e os víc ios humanos . O teatro propunha lógicas de

situações que deveriam ser reconhecidas para a orientação

no mundo e modelos de pensamento e ação por

  imit a r

  o u

evitar.

 Tartufo  de Molière ensinava a

 reconhecer

  e a odiar os

hipócritas;  Maomé  de  Voltaire  ou   Natã, o Sábio  de Less ing, a

f u g ir  do fanati smo e amar a tolerânc ia. Essa vocação

  edi f i

cante

  está aparentemente distante de

  nossa

  maneira de

pensar  e sentir. N o entanto, a lógica causal que lhe subjaz

está   muit o  próxima de nós . Segundo  essa  lógica, o que ve

mos - num palco de teatro, mas também numa exposição

fotográfica ou numa instalação - são os signos sensíveis de

certo estado, dispostos pela vontade de um autor.  Reconhe

cer

  esses

  s ignos é empenhar-se em certa

  leitura

  de   nosso

m u n d o .

  E essa

 leitura

  engendra um sentimento de  p r o x i m i

dade ou de distância que nos impele a

  int e rvir

  na situação

ass im s ign i fi cada, da maneira desejada pelo autor. Daremos

a  isso  o nome de modelo pedagógico da eficácia da arte.

Esse modelo continua marcando a produção e o julgamento

de

 nossos

  contemporâneos. Sem dúvida já não acreditamos

na correção dos costumes pelo teatro. Ma s ainda gostamos de

acreditar que a representação de resina deste ou daquele ído

lo

  publicitário nos erguerá contra o império midiático do es

petáculo ou que uma série fotográfica sobre  a representação

53

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dos colonizados pelo colonizador nos ajudará a

 escapar

  hoje

das ci ladas da representação dominante das identidades.

O r a ,

  esse

  modelo foi quest ionado já nos  anos  1760

de duas forma s . A

  pr ime ira

  é a do ataque   frontal.  Penso  na

Lettre sur les

 spectacles [Carta

  sobre os espetáculos]  de Rous

seau

  e na denúncia que está em seu cerne: a da pretensa   l i -

ção de

  mo ra l

  d o

 M isantropo

  de Mo lière. Alé m do ataque às

intenções de um autor, sua crítica designava alguma  coisa

mais  f u n d a m e n t a l :  a

 rupt ura

  da

 l i n h a

 reta suposta pelo mo

delo

  representativo entre a performance dos corpos teatrais,

seu sentido e seu efeito. Molière dará razão à sinceridade

de seu misan tropo contra a hipocri s ia dos munda nos que o

cercam?

  Dará razão ao respeito

  deles pelas

  exigências da

vid a  em   sociedade  contra sua intolerância? Aí também o

problema aparentemente superado é fácil de transpor para a

nossa

 atual idade: que

  esperar

  da representação fotográfica,

nas paredes das galerias, das vítimas

  desta

  ou daquela

  i n i

ciativa  de extermínio étnico: revolta contra seus carrascos?

Simpatia sem consequência pelos que sofrem? Cólera con

tr a  os fotógrafos que fazem da afl i ção de populações uma

op ortu nidade de mani fes tação es tét i ca? O u indignação con

tr a  seu olhar conivente, que naquelas populações só vê a

situação degradante de vítimas?

A   questão é indecidível . Não que o artista

 tivesse

 i n

tenções duvidosas ou prática  im p erfe ita,  deixando assim de

acertar

  na boa fórmula para

  t ra nsmit ir

  os sentimentos e

pensam entos apropriad os à situação representada. O   pro

blema está na própria fórmula, na pressuposição de um  con-

tinuum   sensível entre a produção de imagens,

  gestos

  o u

palavras e a percepção de uma s i tuação que empenhe pen

samentos, sentimentos e ações dos

  espectadores.

 N ão é sur

preendente que o teatro tenha sido o

  pr ime iro

  a

  perceber

qu e

  estava

  em crise, há mais de dois séculos, um modelo no

qu al

  numerosos artistas plásticos ainda hoje acreditam ou

f i n g e m   acreditar: é porque o teatro é o lugar onde se ex

põem nuamente as pressuposições - e as contradições - que

g u i a m   certa ideia de eficácia da arte. E não é surpreendente

qu e  O Misantropo  tenha dad o a ocasião exemplar para isso,

54

visto  que seu próprio tema aponta para o paradoxo. Como o

teatro poderia

 desmascarar

  os hipócritas, se a lei que o

 rege

é a le i que g overna o comp ortamento dos hipócritas : a ence

nação por corpos vivos dos sinais de pensamentos e senti

mentos que não são seus? V i n t e anos  depois da

 Carta

 sobre

os espetáculos,

  um dram aturg o que ainda sonhava com o

teatro como instituição

  mo ra l ,

  Schil ler, fazia a demonstra

ção teatral de tais  coisas  opondo em Os

 bandoleiros

 o hipó

crita  Franz Moor a seu i rmão   Kar l ,  que leva ao ponto do

crime

  o sublime da sinceridade revoltada contra a hipocrisia

do

  m u n d o .

  Q ual l i ção

  esperar

  do confronto de dois heróis

que, agindo "em conformidade com a natureza" , agem como

monstros? "Os

  elos

  da natureza estão rompidos", declara

Franz. A fábula de Os bandoleiros  levava ao ponto de   ruptura

a   f igura  ética da eficácia teatral . Dissociava os três elemen

tos cujo

 ajuste

  supostamente inseria essa  eficácia na ordem

da natureza: a regra aristotélica de construção das ações, a

m o r a l  dos exemplos à Plutarco e as fórmulas modernas de

expressão de pensamentos e sentimentos pelos corpos.

O   problema então não se refere à validade

  mo ra l

  o u

pol ít i ca da m ensagem transm it ida pelo dispos i t ivo repre

sentativo.

 Refere-se  ao próprio

  dispositivo.

  Sua fissura põe à

mostra que a eficácia da arte não  consiste  e m

  t ra nsmit ir

mensagens,

  dar modelos ou contramodelos de comporta

mento ou ensinar a decifrar as representações. Ela

  consiste

sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços

e tempos s ingulares que definem maneiras de ser , juntos

ou

  separados, na frente ou no meio , dentro ou fora, perto ou

longe. É o que a polémica de

 Rousseau

 pun ha em evidência.

Mas ela imediatamente pu nha em curto-c i rcui to o

  pensa

m e n t o dessa  eficácia por meio de uma alternativa demasia

do   s imples.

 Pois

  o que ela opõe às duvidosas l ições de

  mo ra l

da representação é simplesmente a arte sem representação,

a arte que não

 separa

  a cena  da performance artística e a da

vid a  coletiva. Ao público dos teatros ela opõe o pov o em ato,

a

 festa

  c ívica em que a cidade se apresenta a si mesma, como

faziam   os efebos  espartanos celebrados por Plutarco. Rous

seau  retomava assim a polémica   inau g u ral de P latão, opon -

55

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do  à menti ra da mimese teatral a boa mim ese: a  coreografia

da cidade em ato,

  movida

  po r

 seu

 princípio

  espiritual inter

no ,  cantando  e  dançando  sua  própria unidad e. Esse  para

d i g m a  des igna  o  lugar da  política  da  arte,  mas  para logo

depois subtrai r a arte e a  política juntas. Substitui a  du vido

sa pretensão

  da

  representação

  a

  co rr igir

  os

  costumes

  e os

pensamentos por um mod elo arquiét i co. Arquiét i co no

 sen

t ido  de que os  pensamentos  já não são ob jeto  de  l ições

dadas por corpos o u imagens representados ,  mas e s tã o d i -

retamente encarnados  em  costumes,  em m o d o s  de ser da

comunidade. Esse  modelo arquiético não deixou de acompa

n h a r o que chamamos  de modernidade, como pensamento

de uma arte que

 se

 t o rno u f o r m a d e  vida. Teve

 seus

  grandes

m o m e n t o s no pr ime iro  quartel do século XX: a obra de arte

total, o  coro do povo em ato, a s infonia

 fut ur is t a

 o u c o n s t r u

t ivis t a

 do novo mun do mecânico. Essas  formas f i caram bem

longe,

  para trás.

  Mas o que

 continua perto

  é o

 m o d e l o

 de

arte  que  deve su primir-se a si  mesma,  de  teatro  que deve

inverter

  sua lógica, transformand o

 o

 espectador

  em ator,

 da

performance artística que faz a arte sair do museu para fazer

dela um

 gesto

 na

  rua, ou anula dentro do próprio museu

 a

separação entre arte e vida. O qu e se opõe então à pedagogia

incerta da  mediação representativa  é outra pedagogia, a da

imediatez ética. Essa polaridade entre duas pedagogias   def i

ne  o c írculo no  qu al  ainda hoje está frequentemente encerra

da boa parte da reflexão

 sobre

 a  política da arte.

O r a ,

  essa po laridade tende  a

 obscurecer

 a  existência

de uma tercei ra forma de eficácia da arte,  que merece  pro

priamente o n o m e de eficácia estética, pois é própria do re

gime estético

 da

  arte. Mas trata-se

  de

 uma efi các ia parado

xal:

  é a

  eficácia

  da

  própria separação,

  da

 d escontinuidade

entre  as  formas sensíveis  da produção artística e as  formas

sensíveis através das quais os

 espectadores,

 os leitores o u os

ouvintes se ap ropriam desta.  A  eficácia estética é a eficácia

de uma distância

 e

 de uma neutral ização.

 Esse

  ponto mere

ce  esclarecimento.  A  "distância" estética  na verdade f oi as

sociada por certa sociologia  à  contemplação extática da be

leza,  que  esconderia  os  f u n d a m e n t o s

  sociais

  da  produção

56

artística e de sua rece pção e con trariaria , ass im, a consc iên

cia crítica  da realidade e dos meios  de  agir nela.  Mas essa

crítica deixa escapar

 o que

 c o n s t i t u i

 o

  princípio

  dessa

  d is

tância e de sua  eficácia:  a  suspensão  de  qualquer relação

determinável entre  a  intenção  do art i s ta ,  a  forma sens ível

apresentada nu m lugar de arte , o  olhar de um

 espectador

 e

u m  estado

 da

 c o m u n i d a d e .

 Essa

  disjunção pode

 ser

  emble-

matizada, na época em que

 Rousseau

 escrevia s ua

 Carta

 so

bre   os espetáculos,  pela descrição aparentemente inofensiva

de uma escul tura antiga, descrição fei ta por Winck elmann

da estátua conhecida como  Torso  do Belvedere.  A  ruptura

qu e essa  análise realiza em relação  ao paradigm a represen

tativo  consiste

  em  dois pontos  essenciais.  Primeiramente,

essa

  es tátua es tá desprovida

 de

 t ud o

  o

  que,

  no

 m o d e l o

 re

presentativo, possibil i tava   d e f inir  a

  beleza

  expressiva  e o

caráter exemplar de um a  f igura :  não tem  boca para

  proferir

u m a

 mensagem, ros to para

 expressar

 u m s e n t i m e n to , m e m

bros para comandar

  ou

 executar um a ação. Apesar disso,

W i n c k e l m a n n

  decidiu

  convertê-la

 na

  estátua do herói ativo

entre todos, Hércules, o  herói dos Doze Trabalhos . Mas fez

dela um Hércules em repouso, acolhido depois de seus

  t ra

balhos

  no

 â m a g o

  dos

 deuses.

  E dessa

  personagem  ociosa

ele fez o  representante exemplar  da

 beleza

  grega,  f i lha da

l iberdade grega  -  l iberdade perdida de um  p o v o  que não

conhecia  a  separação entre arte  e

  vida.

 A es tátua exprime,

p ois,  a vid a d e u m  povo,  como a festa d e Rousseau, m as  esse

p ovo  já  foi subtraído, está presente  apenas  naquela  f igura

ociosa,

  que não expressa n e n h u m s e n t i m e n to e não propõe

nenhuma ação por  imitar. Este

 é o

 s e g u n d o p o n t o :

 a

  estátua

está subtraída

 a

 todo

 e

 qualquer

 continuum

 que garanta uma

relação de causa e  efeito entre a  intenção de um art i s ta , um

m o d o

  de  recepção por u m públ ico  e  certa configuração da

vid a  coletiva.

A   descrição  de  Win ck e lma nn desenhava, ass im,  o

modelo de uma eficácia paradoxal, que não passava p o r u m

suplemento de expressão ou de  m o v i m e n t o ,  mas , ao contrá

rio,  por uma subtração

 -

  por indiferença ou passividade

 ra

dical - , n ã o p o r u m e n r a iz a m e n t o n u m a f o r m a d e vida, mas

57

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pela distância entre duas estruturas da   vid a  coletiva. Esse

paradoxo Schil ler desenvolveria em

  suas Lettres

  sur 1'éduca-

tion esthétique de

 Vhomme

 [Cartas

 sobre

 a educação estética do

homem],  def inin do eficácia estética como eficácia de uma

suspensã o. O " ins t into de jog o" próprio à experiênc ia neu

t ra l iza a oposição que tradic ionalm ente carac terizava a arte

e seu enraizamento social : a arte se definia pela imposição

ativa

 de um a forma à matéria pass iva, e

 esse

  efeito a coadu

nava com um a hierarquia social na qual os hom ens de inte

l igênc ia ativa dom inava m os homens da pass ividade mate

rial .

  Para

  s imbol izar a suspensão  desse acordo tradic ional

entre a es trutura do exerc íc io art í s t i co e a de um mundo

hierárquico, Schil ler já não descrevia um corpo sem cabeça,

mas uma cabeça sem corpo, a da  Juno  Ludovisi,  caracteriza

da também por uma indi ferença radical , por uma ausênc ia

radical  de preocupação, vontade e  f inal idade,  qu e   ne ut ra l i

zava a própria oposição entre atividade e passividade.

Esse  paradoxo define a configuração e a "política" da

quilo

  que chamo regime estético da arte, em oposição ao

regime da mediação representativa e ao da imediatez ética.

Eficácia estética significa propriamente a eficácia da

  sus

pensão de qualquer relação direta entre a produção das

  for

mas da arte e a produção de um efei to determinado sobre

u m

  públ ico determinado . A es tátua de que W inck elm ann

ou   Schil ler nos falam  f oi   a   f igura  de um deus, o elemento de

u m  culto religioso e cívico, mas já não o é. Já não i lustra

nenhuma fé e não s igni f i ca nenhuma grandeza soc ial . Já

n ão   produz   nenhuma correção dos costumes n e m n e n h u m a

mobilização dos corpos. Já não se

  d ir ige

  a nenhum públ ico

espec í fi co, mas ao públ ico anónimo indeterm inado dos

  v i

sitantes  de museus e dos leitores de romances. Ela   lhes  é

oferecida da mesma  maneira como é poss ível

  oferecer

  u m a

V i r g e m

  f lorent ina ,  u m a

 cena

 de cabaré holandês , uma t ige

la de frutas ou uma

 banca

  de peixes; da maneira como serão

oferecidos mais tarde os

  ready-made,

  mercadorias desvia

das ou cartazes  descolados. Essas obras  agora estão  sepa

radas

  das formas de

 vid a

 que haviam dado

 ensejo

 à sua   pro

dução: formas mais ou  menos  míticas da   vida  coletiva do

58

p ovo

  grego; formas modernas da dominação monárquica,

religiosa ou aristocrática que conferiam uma destinação aos

p rodu tos  da s

 belas-artes.

 A

  dupla

  temp oral idade da es tátua

grega, que agora é arte nos museus porque não o era nas

cerimónias c ívicas de o utrora, define um a  dupla  relação de

separação e não separação entre arte e   vid a .  É por  ter-se

constituído ao redor da estátua desvinculada de sua desti

nação

  pr ime ira

  que o museu - entendido não como s imples

construção, mas como fo rma de recorte do espaço comu m e

m o d o  específico de

  visibilidade

  - poderá acolher mais tarde

qualquer outra form a de ob jeto do mu ndo profano, também

ass im desvinculado. É também por isso  que em

 nossos

  dias

ele poderá prestar-se  a acolher modos de circulação de in

formação e formas de discussão política que tentam opor-se

aos modos dominantes de informação e di scussão

  sobre

  as

questões comuns .

A  rupt ura  es tét i ca ins talou, ass im, uma s ingular

  for

ma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma   r u p

t ura

  da relação entre as produções das habil idades artísticas

e dos f ins

 sociais

 definido s , entre formas sens íveis ,  s igni f i

cações que podem

 nelas

  ser lidas e efeitos que

  elas

  p o d e m

produzir.  Pode-se  dizer de outro modo: a efi các ia de um

dissenso.  O que entendo por

  dissenso

  não é o confl i to de

ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de

sensorialidade. É por isso  que a arte, no regime da

 separa

ção estética, acaba por tocar na p olítica. Pois o  dissenso  es tá

no

  cerne

 da política. Política não é, em   pr ime iro  lugar,

 exer

cício do poder ou

  luta

  pelo poder. Seu âmbito não é   def in i

do,   e m

  pr ime iro

  lugar,

 pelas

  leis e instituições. A prim eira

questão política é

 saber

  qu e

 objetos

  e que sujeitos são visa

dos por

 essas

  instituições e

 essas

  leis, que formas de relação

definem

  prop riamente uma comu nidade pol ít i ca, que o b je

to s

  essas

  relações visam, que sujeitos são aptos a designar

esses

 objetos  e a discu ti-los. A política é a atividade que re

config u ra   os âmbitos sensíveis nos quais se definem

 objetos

comuns. E la rompe a evidência sens ível da ordem "na tur al "

que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à

obediência, à  vid a pública ou à  vida privada,  votando-os so-

59

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bretu do

  a certo   t ipo  de espaço ou tempo, a

  certa

  maneira

de ser, ver e dizer. Essa  lógica dos corpos tem seu lugar

n u m a  di s tr ibuição do comum e do   privado,  que é também

u m a  distribuição do visível e do invisível , da palavra e do

ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A polí

tica é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as

relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis.

Ela o faz por meio da invenção de uma instânc ia de enun

ciação coletiva que

 redesenha

  o espaço das

  coisas

  comuns .

T al   como Platão nos  ensina  a  contrario,  a política começa

quando há   rupt ura  na distribuição dos espaços e das com

petênc ias - e incompetênc ias . Começa quando seres  des t i

nados a

  permanecer

  no espaço invisível do trabalho que

não d eixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não

têm para afi rmar-se copart i c ipantes de um mundo comum,

para mostrar o que não se via, ou fazer   o uvir  como palavra

a discuti r o comu m aqui lo que era

  o uvid o  apenas

  como ruí

do   dos corpos.

Se a experiência estética

 toca

 a política, é porqu e

  t a m

bém se define como experiência de

 dissenso,

 oposta à adap

tação mimética ou ética das produções artísticas com fins

sociais. As produções artísticas perdem  funcionalidade,

 saem

da rede de conexões que lhes dava uma dest inação anteven

do  seus  efeitos ; são propostas nu m espaço-tempo   ne ut ra l i

zado, oferec idas igualmente a um olhar que es tá

  separado

de qualquer prolongamento sensório-motor  definido.  O r e

sultado não é a incorporação de um  saber,  d e u m a   vir t ud e

ou

 d e u m habitus.  Ao contrário, é a dissociação de certo cor

po

  de experiência. E

 nisso

  que a estátua do  Torso,

  mut i la d a

  e

privada

  de seu

  m u n d o ,

  emblematiza uma forma espec í f i ca

de relação entre a materialidade sensível da obra e seu efei

to . N i n g u é m r e s u m i u m e l h o r essa  relação paradoxal do que

u m

  poeta que, no entanto, pouco   cuid o u  de política.  Penso

em Rilke e no poema por ele dedicado a outra estátua   m u t i

lada, o Torso

 arcaico

  de  A p o l o ;  o poema termina ass im:

N e l a

 não há lugar

Q ue não te

  m i r e :  precisas

 m u d a r d e  vida.

6

A   vid a  deve ser mudada porque a estátua   mut i la d a

define uma superfície que   " m i r a "  o

  espectador

  de todos os

lugares; em outras palavras, porque a passividade da está

tu a

  define uma efi các ia de género novo.

 Para

  compreender

essa frase  enigmática, talvez seja  preciso atentar para outra

his tória de membros e de olhar que ocorre num a outra

 cena

bem di ferente. Durante a revolução

  francesa

  de 1848, um

jornal

  revolucionário operário,

  Le Tocsin des travailleurs,

  p u

blicou   um texto aparentemente "apolítico", a descrição da

jornada de trabalho de u m operário marceneiro, ocupado a

taquear um  aposento  por conta do patrão e do dono do lu

gar. Ora, o que está no

 cerne

  da descrição é a disjunção en

tr e

  a atividade dos braços e a do olhar, que subtrai o marce

neiro  a

 essas

  duas dependências.

"Acredi tando-se em  casa,  enquanto não termina o

aposento que está taqueando, ele gosta de sua disposição; se

a

  janela

  se

  abre

  para um

  j a rd im

  o u d o m i n a u m h o r i z o n t e

pi toresco, por um instante  seus  braços param e em   pensa

mento ele plana para a espaçosa perspectiva, a fim fruí-la

melhor que os donos das habi tações vizinhas . "

1 2

Esse  olhar que se

  separa

  dos braços e fende o espaço

da at ividade submissa  destes  para nela inserir o espaço de

u m a

  inatividade  l ivre  define bem um

 dissenso,

  o choque de

dois regimes de sensorialidade.  Esse  choque marca uma

subversão da economia

  " po l ic ia l"

  das competênc ias . Apo-

derar-se  da perspectiva é já   d e f inir  sua presença num espa

ço que não é o do "trabalho que não  espera .  É romper a

divisão entre os que estão submetidos à necessidade d o   tra

balho dos braços e os que dispõem da l iberdade do olhar. E,

po r  f im, apropriar-se  desse  olhar perspectivo

  t ra d ic io na l

mente

  associado

  ao poder

  daqueles

  para os quais conver

gem as l inhas dos jardins à

 francesa

  e as do edifício social.

Essa

  apropriação estética não se identifica com a i lusão de

que falam soc iólogos como

 Bou rdieu .

  Ela define a

  co nst i t ui

ção de ou tro  corpo que já não está "adaptado" à divisão po

l ic ial

  de lugares, funções e competências  sociais.  Portanto,

12. G abr i e l G au ny , "L e

  travaill

  à l a j o u r né e " i n   Le Phiíosophe plébéien, op. cif.,

pp .

  45- 6 .

61

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não é por erro que

 esse

  texto "apolítico" aparece n u m

 jornal

operário durante um a primav era revoluc ionária. A poss ib i

lidade  de uma voz coletiva dos operários

  passa

  então por

essa

  rupt ura

  estética, por  essa  dissociação das maneiras

operárias de ser.  Pois  para os dominados a questão nunca

fo i  tomar consc iênc ia dos mecanismos  de dominação, mas

criar um corpo votado a outra

 coisa,

  que não a dominação.

Como nos indica o mesmo marceneiro, não se trata de

a d quir ir  conhecimento da situação, mas das "paixões" que

sejam

  inapropriadas a  essa  s i tuação. O que  p rodu z

  essas

paixões ,  essas  subversões na disposição dos corpos não é

esta  ou aquela obra de arte, mas as formas de olhar corres

pondentes às formas novas de exposição das obras, às   for

mas de sua existência separada. O que forma um corpo ope

rário revolucionário não é a

  p int ura

  revolucionária, quer ela

seja  revolucionária no sentido de   D a v i d ,  quer no de Dela

croix.  É bem mais a possibil idade de tais obras serem  vistas

no espaço neutro do museu ou mesmo nas reproduções das

enciclopédias por preço módico, onde são equivalentes às

que ontem contavam o poder dos reis, a glória das cidades

antigas ou os mistérios da fé.

O   que func iona, em certo sentido, é uma vacânc ia. É

o que nos  ensina  u m a

  iniciativa

  artístico-política aparente

mente paradoxal que atualmente se desenvolve num dos

subúrbios de Paris  cujo caráter explosivo se manifestou na

rebel ião do outono de 2005:  u m daqueles  subúrbios marca

dos pela relegação social e pela violência das tensões interé-

tnicas.

  N u m a

  dessas c idades , um grup o de art i s tas ,

 Campe-

tnent

 urbain  [ A c a m p a m e n t o u r b a n o ] ,  montou   um projeto

estético na contramão do discurso dominante, que explica a

crise

  dos subúrbios" pela perda do elo social

 causada

  pelo

ind ivid ua l ismo   de  massa.  Com o t í tulo "Je et N ous" [Eu e

N ó s ] ,  o

  in tu i to

  foi mobi l i zar uma parte da população para

criar um espaço aparentemente paradoxal : um espaço "to

talmente inútil , frágil e  i m p r o d u t i v o " ,  um lugar aberto a

todos e sob a proteção de todos, mas que só possa  ser ocu

pado por uma pessoa  para a contemplação ou a meditação

solitária. O aparente paradoxo  dessa

  luta

  colet iva por um

62

lu g ar  único é simples de resolver: a possibil idade de   estar

s o z i n h o

 (a) aparece

  como forma de relação social , a

  d i m e n

são da  vid a  social que, precisamente, é  imp ossibi l i tada pelas

condições de  vid a  naqueles  subúrbios . Aquele lugar vazio

desenha

  ao inverso uma comunidade de  pessoas  que te

n h a m   a possibil idade de ficar sozinhas. Significa a  i g u a l  ca

pacidade dos membros de uma coletividade para ser um  E u

cujo juízo

 possa

  ser atribuído a qua lquer

 outro

  e criar assim,

co m  base  no modelo da universal idade es tét i ca k antiana,

u m a nova espéc ie de N ós , uma comunidade es tét i ca ou dis -

sensual. O lugar vazio, inútil e   impro d ut ivo  define uma

rupt ura  na distribuição   n o r m a l  das formas da existência

sens ível e das "competên c ias" e " incom petênc ias" a ela

  v i n

c u la d a s. N u m   f i lme  l igado a

  esse

  projeto, Sylvie Blocher

m o s t r o u  habitantes com   camisetas  os tentando uma

  frase

qu e

  cada  pessoa

  havia escolhido, portanto, algo como um

lema estético. Entre

  aquelas frases,

  l e m b r o - m e

  desta,

  em

que um a mulhe r velada diz com suas palavras o que o lugar

se propõe

  fo rmula r :

  "Q uero um a palavra vazia que eu

 possa

preencher."

A   pa r t ir daí , é possível enunciar o parado xo da relação

entre arte e política.

  A r t e

  e política têm a ver uma com a

ou tra  como formas de  dissenso,  operações de reconfigura

ção da experiência comum do sensível . Há uma estética da

política no sentido de que os

  atos

  de subjetivação política

redefinem

  o que é visível , o que se pode dizer dele e que

sujeitos são capazes  de fazê-lo. Há uma política da estética

no sentido de que as novas formas de circulação da palavra,

de exposição do visível e de produção dos

  afetos

  determi

n a m

 capacidades

  novas, em

  rupt ura

  com a antiga

  c o n f i g u

ração do possível . Há, assim, uma política da arte que pre

cede  as políticas dos artistas, uma política da arte como

recorte singular dos

  objetos

  da experiênc ia comum, que

fu nciona

 por s i mesma, independentemente dos

 desejos

 que

os artistas possam ter de servir esta ou aquela causa. O efei

to  do museu, do   l ivro  ou do teatro tem a ver com as divisões

de espaço e tempo e com os modos de apresentação sensível

qu e  i n s t i t u e m , antes  de dizer respeito ao conteúdo  desta o u

63

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daquela obra. Mas esse  efei to não define nem uma es traté

gia política da arte como tal nem uma contribuição calculá-

ve l  da arte para a ação política.

A q u i l o  que se

  chama

  política da arte,  p ortanto ,  é o

entrelaçamento de lógicas heterogéneas . Há, em   pr ime iro

lugar, aquilo  que se pode chamar "política da estética", ou

seja,  o efeito, no campo político, das formas de estruturação

da experiência sensível próprias a um regime da arte. No

regime estético da arte, isso quer dizer constituição de  espa

ços neutralizados, perda da destinação das

  obras

  e sua

  d is

p onibil idade

  indi ferente, encavalamento das temporal ida

des heterogéneas, igualdade dos sujeitos representados e

a n o n i m a t o

 daqueles

  a quem as

  obras

  se   d ir ige m.

  Todas

  es

sas propriedades definem o domínio da arte como domínio

de uma forma de experiência própria,

  separada

  das outras

formas de conexão da experiênc ia sens ível . Determinam o

complemento paradoxal dessa  separação estética, a ausên

cia de critérios imanentes às próprias produções da arte, a

ausência de separação entre as

  coisas

  que pertencem à arte

e as que não pertencem. A relação dessas duas propriedades

define certo democratismo estético que não depende das in

tenções dos artistas e não tem efeito determinável em ter

mos de subjetivação política.

Nesse  quadro, há, em segundo   lugar,  as estratégias

dos artistas que se propõem mudar os referenciais do que é

visível e enunciável , mostrar o que não era   visto,  mostrar de

o ut ro

  jeito o que não era facilmente

  visto,

  correlacionar o

que não

  estava

  correlacionado, com o objetivo de

  pro d uzir

rupturas   no tecido sensível das percepções e na dinâmica

do s

  afetos.

 Esse

  é o trabalho da ficção. Ficção não é criação

d e u m  m u n d o  imaginário oposto ao   m u n d o  real . É o traba

lh o

  que realiza

 dissensos,

  que mud a os modos de   apresenta

ção sensível e as formas de enunciação, mudando quadros,

escalas  o u   r i t mo s,  construindo relações novas entre a apa

rência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua

significação.  Esse  t rabalho muda as coordenadas do repre-

sentável; mu da nossa  percepção dos acontecimentos sensí

veis, nossa  maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo

64

como nosso m u n d o  é povoado de acontecimentos e   figuras.

O   romance moderno, ass im, real izou certa  democrat ização

da experiência. Transgredindo as hierarquias entre sujeitos,

acontecimentos, percepções e

 encadeamentos

  que governa

v a m   a ficção clássica, ele   co nt r ibuiu  para uma nova   d i s tr i

buição das formas de  vida  possíveis para todos. Mas não há

princípio de correspondência determinado entre

  essas

 m i -

cropolíticas da redescrição da experiência e a constituição

de coletivos políticos de enunciação.

A s

  formas da experiência estética e os modos da

  f ic

ção criam assim uma paisagem inédita do visível , formas

novas de

  individualidades

  e conexões ,  r i tmos   diferentes de

apreensão do que é dado,

 escalas

  novas . N ão o fazem da

maneira específica da atividade política, que cria formas de

enunciação coletiva  (nós).  M as   f o r m a m   o tecido dissensual

no   qual

  se recortam as formas de construção de  objetos  e as

possibil idades de enunciação subjetiva próprias à ação dos

coletivos políticos. Enquanto a política propriamente

  dita

consiste

  na produção de sujeitos que dão voz aos anónimos,

a política própria à arte no regime estético

  consiste

  na ela

boração do  m u n d o  sens ível do anónimo, dos modos do

 isso

e do  e u,  do  qu al  emergem os mundos próprios do n ós políti

co. Mas, à medida que

 passa

 pela   rupt ura  estética,

 esse

 efei

to   não se presta a nenhum cálculo determinável.

Fo i

 essa indeterminação que pretenderam ul trapassar

as grandes metapolíticas que atribuíram à arte a tarefa de

transformação radical das formas da experiência sensível .

Elas  quiseram   fixar  a relação entre o trabalho de produção

artística do isso e o trabalh o de criação política do  nós,  à cus

ta de fazer

  deles

  um único e mesmo

  processo

  de transfor

mação das formas da  v ida,  à

 custa

  de a arte assumir a tarefa

de se  supr imir  na realização de sua  promessa histórica.

A   "política da arte" é, assim, feita do entrelaçamento

de três lógicas: a lógica das formas da experiência estética, a

do   trabalho ficcional e a das estratégias metapolíticas. Esse

entrelaçamento também

  implica

 u m e n t r a n ç a m e n to   s i n g u

la r  e contraditório entre as três formas de eficácia que tentei

d e f inir :  a lógica representativa que quer  pro d uzir  efeitos

65

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pelas

 representações , a lógica estética que

  produz

  efeitos pela

suspensão dos   f ins   representativos e a  lógica ética, que quer

qu e as formas da arte e as formas da política se id e nt i f ique m

diretamente umas com as outras.

A   tradição da arte crítica quis articular essas  três lógi

cas numa mesma fórmula. Tentou  pro d uzir o efeito ético de

mobi l ização das

  energias

  encerrando os  efeitos da distância

estética

  na

  continuidade

 da

  relação represen tativa. B recht

de u a essa  tentat iva o  nome em blemático  de  r fremdung  

u m

  tornar-se-es tranho, geralmente   traduzido  em  francês

po r mtí  *->Odis tanc iamento  é a  indeterminação

da relação estética repatriada para o

 interior

  da ficção repre

sentativa, concentrada em poder de choque de uma hetero

geneidade.  Essa  heterogeneidade  -  uma his tória es tapafúr

di a

 de venda de  u m   falso elefante, de vendedores de couve-f

 lor

dialog ando,  e outras -  devia   pro d uzir  dois efeitos: por um

lado, a estranheza  sentida devia dissolver-se  na  compreen

sã o de

 suas

  razões ; por

  outro,

  devia

  t ra nsmit ir

  intacta a sua

força

 de

 afeto para transfor mar

 essa

  compreensão em força

de   revolta.  Tratava-se, pois, de

  f u ndir

  n u m ú n i co  e  mesmo

processo

 o  choque estético  das  sensorialidades diferentes e

a correção representat iva dos comp ortamentos , a separação

estética e a continuidade éti ca. Mas não há razão para que o

choque  de  dois modos  de  sensorialidade  se  t r a d u z a em

compreensão das razões das coisas, nem para que

 esta

  p r o

du za  a  decisão  de m u d a r o

  m u n d o .

  Essa  contradição que

habita o d isp osit ivo  da obra crítica, porém, não  a t o r n a sem

efeito.

 Pode  co nt r ibuir

  para transformar o mapa do percep

tível e  do pensável, para criar novas formas de  experiência

do   sensível , novas distâncias  em relação  às  configurações

existentes

 do que

 é

 dado. Mas

 esse

  efeito não pode

 ser

 u m a

transmissão calculável entre choque artístico sensível , to

m a d a de consc iência intelec tual e  mobilização política. Não

se passa da vi são de um espetáculo à compreensão do   m u n

do

  e da  compreensão intelec tual a uma decisão  de  ação.

Passa-se de um  m u n d o  sensível a

 o ut ro

  m u n d o  sensível que

define outras tolerâncias e  intolerâncias, outras  capacidades

* E m p o r t u g u ê s , d i s t anc i am e n t o o u e s t r anham e nt o . [ N . d a T.]

66

e incapacidades.  O que es tá  em f u n c i o n a m e n t o são di sso

c iações :  rupt ura  de uma relação entre sentido  e  sentido, en

tr e  u m

  m u n d o

  vi s ível , um modo de afeição, um regime de

interpretação   e um espaço  de  possibil idades;  rupt ura dos

referenciais sensíveis  que poss ib i l i tavam a

  cada

  u m o seu

lu g ar  numa ordem das coisas.

A   distância entre  as f inal idades da  arte crítica e

 suas

formas

  reais

 de

  eficácia foi sustentável enquanto

  o

 sistema

de compreensão do   m u n d o e as  formas de mobil i zação po

lítica que ele supostam ente favorecia eram suficientem ente

fortes  por si

  mesmos

  para suportá-la . Mostrou-se  a nu a

pa rt ir

  do momento em que esse

 sistema

  perdeu evidência e

essas formas perderam força. Os elementos  " h e t e r o g é n e o s "

qu e o  discurso crítico reunia na verdade estavam

  int e r l iga

dos pelos  esquemas  interpretat ivos  existentes.  As  perfor

mances

 da  arte crítica alimentavam-se  da evidência de u m

m u n d o

  dissensual.  A  pergunta então  é: o que aconteceu

co m a  arte crítica quando esse horizo nte dissensual perdeu

evidência?

 O que lhe

 ocorre

  no

  contexto contem porâneo

de  consenso?

A   palavra consenso s igni f i ca  muit o  mais que uma  for

m a d e g o v e r n o " m o d e r n o " q u e dê

 prioridade

 à  especialida

de , à arb i tragem e à negoc iação entre os  "parceiros  sociais

ou

  os  diferentes tipos de  comunidade.

  Consenso

  s ign i f i ca

acordo entre sentido e sent ido, ou

 seja,

  e n t r e u m m o d o de

apresentação sensível e um reg ime de interpretação de seus

dados. Significa que, quaisquer que

  sejam nossas

 divergên

cias de ideias e  aspirações,

  percebemos

 as

 mesmas

 coisas e

lhes

  d a m o s  o  mesmo s igni fi cado. O  contexto  de g lobal iza

ção económica impõe

  essa

  i m a g e m

 de

 m u n d o

  h o m o g é n e o

no

  qua l

 o problema de

 cada

 colet ividade nac ional é adaptar-

-se a u m d a d o sobre o qua l  ela não tem poder, adaptar a ele

seu mercado  de t rabalho e

 suas

  formas  de  proteção social .

Nesse

  contexto,

  desvanece-se

  a  evidência  da

 luta

  contra a

dominação capitalista m u n d i a l  que sustentava  as formas da

arte crítica ou da  contestação artística.  As  formas  de

  luta

contra a  inevitabilidade m ercanti l são

 cada

 vez mais   identi

ficadas  a reações  de g r u p o s que defendem seus  privilégios

67

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arcaicos  contra as exigências do progresso. E a extensão da

dominação capitalista global é equiparada a uma fatalidade

da c ivi l i zação moderna, da

  sociedade

  democrática ou do

ind ivid ua l ismo   de  massa.

Nessas

  condições, o choque "crítico" dos elementos

heterogéneos já não encontra analogia no choque político

de mundos sensíveis opostos. Tende então a voltar-se para

si

 mesmo. As intenções , os procedimentos e a retórica

  ju s t i

ficativa   do

 d ispo si t ivo

  crítico

 quase

  nã o

  va r ia m

  há décadas.

Hoje

 como ontem , pretende-se denunciar o reinado da mer

cadoria, de

 seus

 ícones ideais e de

 seus

 detritos sórdidos por

meio

 de es tratégias bem surradas : f i lmes publ ic i tários paro

diados,

  mangas desvirtuados , sons  aposentados de dance-

terias, personagens  de telas  publicitárias transformadas em

estátuas de resina ou pintadas no esti lo heróico do realismo

soviético, personagens  da Disneylândia transformadas em

perversos

  po l imo rfo s ,

  montagens de fotografias vernacula-

res de interiores domésticos

 semelhantes

  a publicidades de

lojas de d epartamento,

  lazeres

  tristes e detritos da

  c iv i l iza

ção consumista; instalações

  gigantescas

  de mangueiras e

máquinas a representarem o intes t ino da máquina soc ial

que absorve todas as

  coisas

  e as transform a em excremento

etc, etc. Esses di spos i t ivos continu am ocupando

 nossas

  g a

lerias e nossos  museus, acompanhados de uma retórica que

pretende levar-nos assim a descobrir o poder da mercado

ria,  o reino do espetáculo ou a porno grafia do poder. Mas ,

como ninguém em

  nosso  m u n d o

  é tão distraído que

  seja

preciso chamar-lhe a atenção para tais  coisas,  o mecanis

m o

  g ira

  e m   torno  de si mesmo e se vale da própria  ind e ci -

dibilidade

  de seu

  d ispo si t ivo .

 Essa

 ind e cid ibi l id a d e

  fo i ale-

g orizada   de forma mon um enta l na obra de Charles Ray

d e n o m i n a d a  Revolução. C ontrarrevolução. A   obra tem toda a

aparência de um carrossel . Mas o artista   mo d if ico u  o

 meca

n i s m o  do carrossel . Desconectou do mecanismo   rotativo   de

con ju nto

  o mecanismo dos cavalos, que andam para trás

muit o  devagar enquanto o carrossel avança. Esse duplo m o

v i m e n t o  confere sentido  l i teral  ao tí tulo. Mas  esse  título

também transmite o significado alegórico da obra e de seu

68

estatuto político: uma subversão da máquina do

  entertain-

ment,  que é indiscernível do funcionamento da própria má

quina .

  O

  d ispo si t ivo

  al imenta-se então da equivalência en

tr e  a paródia como crítica e a paródia  da   crítica.

 Vale-se

  da

indecidibilidade

  da relação entre os dois efeitos.

O   modelo crítico tende, assim, à autoanulação. Mas

há várias maneiras de extrair um balanço. A   pr ime ira  con

siste

  e m

  d i m i n u i r

  a

 carga

 política posta

 sobre

  a arte, em re

d u z i r  o choque dos elementos heterogéneos ao inventário

dos s ignos de pertença com um e

  re d uzir

  o peremptório po

lémico da dialética à leveza do jogo ou à distância da alego

ria.

  N ão   voltarei aqui  às transformações que comentei em

o ut ro

  l u g a r

13

. E m compensação, vale a pena demo rar-nos na

segunda, pois ela  ataca  o suposto pivô do modelo, a cons

ciência espectadora. Propõe  e l iminar essa  mediação entre a

arte

  produtora

  de dispositivos visuais e a transformação das

relações sociais. Os dispositivos da arte

 nesse caso

  apresen-

tam-se

  diretamente como propostas de relações sociais.

Essa

  é a

  tese

  popularizada por N icolas

  B o urr ia ud

  com o

nome de estética relacional : o trabalho da arte, em

 suas  for

mas novas, superou a antiga produção de objetos  para ver.

A g o r a  pro d uz

  di retamente "relações com o

  mund o " , po r

tanto

  formas at ivas de comunidade.

  Essa

  produção hoje

pode englobar  meetings,  reuniões , mani fes tações ,  d i fe re n

tes tipos de colaboração entre

 pessoas,

  jogos,

  festas,

  lugares

de convívio, em sum a, o conjunto dos mod os do encontro e

da invenção de relaçõe s"

14

. O

  interior

  do espaço dos museus

e o exterior da vida  social aparecem então como dois lugares

equivalentes de produção de relações. Mas essa banal ização

log o

  mostra seu

  avesso:

  a dispersão das obras de arte na

multiplicidade   das relações

  sociais

  só vale para ser vista,

seja

  porque o ordinário da relação na

  qua l

  não há "nada a

v e r "

  es tá exemplarmente alojado no espaço normalmente

destinado à exibição das obras,  seja  porque, inversamente, a

13.  Remeto  às anál i se s d e a l g u m as e x p o si ç õ e s e m bl e m át i c as  dessa  v i ra d a ,  ap r e

sentadas e m

 L ÊS

  Destin ães  images ( L a Fabr i qu e , 2003) e  M alaisc  dont  1'esthétique

( G al i l é e , 2005).

14. Nicolas

 B o u r r i a u d ,  Esthétiquc  relationnelle,

  L es

  Presses

  du réel , 1998, p. 29.

69

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produção dos

  elos sociais

  no espaço públ ico é munida de

u m a  forma artística espetacular. O   pr ime iro  caso  é emble-

matizado

  pelos célebres dispositivos de

  R i r kr i t

  Ti ravani ja

que põem à dispos ição dos vi s i tantes de uma exposição um

fog areiro ,

  uma chaleira e saquinhos de sopa, destinados a

p romover

  a ação, a reunião e a discussão coletiva, ou

 mes

m o

  uma reprodução de seu apartamento, onde é possível

t irar

  u m a

 soneca,

  tomar u m banho de chuveiro ou preparar

u m a  refeição. O segundo poderia ser   ilustrado pelas  roupas

transformáveis de Lucy Orta, disponíveis para que as  pes

soas

  se troquem, se for o

  caso,

  em tendas de socorro, ou

para l igar di retamente os part i c ipantes de uma mani fes ta

ção coletiva, como o surpreenden te disp ositivo inflável que

não se   l imit a va  a interlig ar as combina ções, decoradas de

números , de um gru po de mani fes tantes di spostos em qua

drado,  mas também exibia a própria palavra l igação   (link)

para s igni f i car a unidade daquela

  multiplicidade.

  O t o r n a r -

-se-ação ou tornar-se-elo que  su bst i tu i a "obra vi s ta" só tem

eficácia em ser visto como saída exemplar da arte para fora

de si mesma.

Esse  vai-e-vem entre a saída da arte para a realidade

das relações  sociais  e a exibição que, só ela, garante sua

  e f i

cácia simbólica era  muit o bem mani fes tada pela obra de um

art i s ta

  cubano, René Francisco, apresentada há quatro  anos

na Bienal de São Paulo*. Esse art i s ta   u t i l i zou  o dinheiro de

u m a  fundação artística para uma pesquisa   sobre  as condi

ções de

  vida

 n u m b a i r ro

 carente

  e , com outros amigos art i s

tas , dec idiu reformar a

 casa

 de um a idosa daquele b ai rro. A

obra nos mostrava um a tela de tule

 sobre

  a q u a l

 estava

 i m

pressa a i m a g e m d e

 p er f i l

  da  mu lher voltada para um  m o n i

to r

  no qual um vídeo exib ia os art i s tas trabalhando como

pedreiros, pintores ou

 encanadores.

 O fato de essa  in terven

ção ter ocorrido num dos úl t imos países do mu ndo a

  identi -

f i car-se com o com unismo evidentemente prod uzia um

conflito   entre dois tempos e duas ideias de realização da

arte . Criava um su cedâneo da grande vontade  expressa por

Malevitch   no tempo da revolução soviética: não fazer qua-

* Bienal de 2004.  [ N . d a T . ]

7

dros,  mas construir di retamente as formas da   vid a  nova.

Essa

 construção hoje es tá red uzida à relação ambígua entre

u m a

  política da arte provada pela ajuda à população em   di

ficuldades e uma política da arte simplesmente provada

pelo ato de sair dos lugares da arte, por sua intervenção no

real.  Mas a saída para o real e o serviço para os   carentes  só

ganham sentido quando sua exemplaridade é mani fes tada

no espaço do museu.

 Nesse

  espaço, o olhar voltado para o

relato   visua l dessas saídas não se di s t ing ue do olhar  voltado

para os grandes

  mosaicos

  ou tapeçarias com os quais nu

merosos

  art i s tas hoje representam a mul t idão de a nónimos

ou   o âmbi to da   vid a  deles. Tal como a tapeçaria de mil e

seiscentas  fotografias de identidade costuradas juntas pelo

art i s ta chinês Bai  Yi luo  num conjunto que quer

 evocar

  - eu

o cito - "os

  elos

  del i cados que unem as famí l ias e as co

munidades" .

  O curto -c i rcui to da arte que cria di retamente

formas de relações em vez de formas plás t i cas é ,   a f ina l ,  o

cu rto-circu ito   da obra que se apresenta como realização an

tecipada de seu efeito. Supõe-se que a arte una as

 pessoas

da mesma maneira como o art i s ta costurou juntas as   fo t o

grafias que ele pegara num estúdio em que trabalhava. A

assemblage das fotografias assume a função de uma escul tu

ra

  m o n u m e n t a l  que torna presente  hic et nunc a comunidade

humana que é seu objeto e seu objetivo. O conceito de me

táfora, onipresente hoje na retórica dos comissários de ex

posição, tende a conceitualizar  essa  identidade antecipada

entre a apresentação de um dispos i t ivo sens ível de form as ,

a manifestação de seu sentido e a realidade encarnada  des

se sentido.

O

  sent imento

  desse

  impasse al imenta a vontade de

dar à política da arte u m objetivo que não  seja a produção de

elos sociais  em geral , mas uma subversão de   elos sociais

b e m d e t e r m i n a d o s ,

  aqueles

  que prescrevem as formas do

mercado, as dec i sões dos dom inantes e a comunicação m i-

diática. A ação artística identifica-se então com a produção

de subversões tópicas e simbólicas do sistema. Na França,

essa  es tratégia foi emblematizada pela ação de u m art i s ta ,

M a t t h i e u

 L aurette , que dec idiu tomar ao pé da letra as pro-

71

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messas  dos fabricantes de produtos alimentícios: "Sua

  satis

fação ou seu   d inhe iro  de   volta."  Ass im, ele começou a com

prar

 esses

  produtos sistematicamente nos supermercados e

a

  expressar

  insatisfação para  receber  o

  d inhe iro

  de

  volta.

U t i l i z o u

  os estímulos da televisão para incitar todos os con

sumidores a seguir seu exemplo. Como consequência, a ex

posição  int i t ula d a

  Nossa

 His tória" no Espaço de  A r t e  C o n

temporânea de

  Paris

  em

 2006

 apresentava

  seu trabalho na

f o r m a  de uma instalação que compreendia três elementos:

u m a  escultura de cera que o mostrava a empu rrar um   carri

nho atulhad o de mercadorias ; uma parede coberta por

 telas

de tevê, todas   rep rodu zindo  sua intervenção televisionada;

e ampliações fotográficas de  recortes  de

  jornal

  que relata

v a m   su a  iniciativa.  Segundo  o comissário da exposição, essa

ação artística

  inve r t ia

  ao mesmo tempo a lógica comerc ial

de aumento do valor e o princípio do show televisionado.

Mas a evidência

 dessa

 viravolta  teria sido   muit o menos per

ceptível se

 houvesse

  uma única tela de tevê em vez de nove,

e se as fotografias de

 suas

  ações e dos comentários dos jor

nais t ivessem dimensões normais . A real idade do efei to

t a m b é m

  estava

  antec ipada na monumental ização da

  i m a

g e m .  Essa  é uma tendência de mui tas

  obras

  e exposições

hoje em dia, que leva

  certa

  forma de at ivi smo art í s t i co de

volta   à antiga lógica representativa: a importância do lugar

ocupado no espaço do museu

 serve

  para provar a realidade

de um efeito de subversão na ordem social , assim como a

monum ental idade dos quadros hi s tóricos provava outrora a

grandeza dos príncipes  cujos  palác ios ornavam.  A c u m u -

lam-se  assim os efeitos da ocupação escultural do espaço,

da performance

  viva

 e da dem onstração retórica. Ao

 encher

as

 salas

  dos museus de reproduções de objetos e imagens do

m u n d o  cot idiano ou de relatos monumental izados de  suas

próprias performances, a arte ativista   imit a  e antecipa seu

próprio efeito, com o risco de tornar-se a paródia da eficácia

qu e   reivindica.

O

  mesmo risco de eficácia

  espetacular

  encerrada em

sua própria demonstração  apresenta-se  quando os artistas

assumem a tarefa específica de

  " inf i l t ra r -se "

  na s

  redes

  de

72

dominação. Penso aqu i  nas performances dos Yes Me n que,

co m falsas identidades , se ins inua m em praças-fortes da do

m i n a ç ã o :  congressos  de

  gente

  de negóc ios , onde um

 deles

mist i f ico u   a plateia apresentando um inverossímil equipa

mento de vigilância, comités de campanha de

 George

  Bush

ou   programas de televisão. Sua performance mais  espeta

cular refere-se  à catás trofe de Bhopal na índia. U m

  deles

conseguiu

 fazer-se passar

  na BBC por u m dos responsáveis

da companhia Dow Chemical , que naquele ínterim havia

a d quir id o

  a empresa responsável ,  U n i o n  Carbide. Com essa

identidade,  anunciou em horário nobre que a companhia

reconhecia

  sua responsabil idade e comprometia-se a   inde-

n i z a r  as vítimas. Duas horas depois, evidentemente, a com

panhia reagia e declarava que só   t i n h a  responsabil idade

perante seus  acionistas. Era  exatamente

 esse

 o efeito busca

do ,

  e a demonstração era perfei ta .

 Resta saber

  se  essa  per

formance bem-sucedida de mis t i fi cação da mídia tem o po

der de provocar formas de mobilização contra as potências

internacionais do capital . Ao fazer o balanço de sua   i nf i l t ra

ção dos comités de campanha para a eleição de George Bush

em   2004,  os Yes M en falavam de um sucesso

  total

  que fora

a o m e s m o t e m p o u m  fracasso  total: sucesso  total  porque

  t i -

n h a m

  mis t i f i cado seus  adversários ao assumirem as razões

e as maneiras  deles. Fracasso  t o t a l  porque a ação

  deles

  fora

perfei tamente indiscern íveF. Só era discernível, realmente,

fora  da situação na   qu al  se inseria, exposta  em ou tros luga

res como performance de artistas.

Esse  é o problema inerente a tal política da arte como

ação direta no coração da realidade da dominação.  Essa

saída da arte para fora de  seus  lugares  assume ares  de

demonstração s imból ica,

 semelhante

  às que a ação política

fazia há algum tempo quando mirava alvos s imból icos do

poder

  do adversário. Mas precisamente o golpe desferido no

adversário por uma ação simbólica deve ser julgado como

ação política: não se trata então de saber  se ela é uma saída

bem-sucedida da solidão artística em direção à realidade

15. In t e r v e nç ão d o s Y e s M e n na c o nf e r ê nc i a   Klartext Der Status des  politischen  in

aktueller  Kunst und Kultur,

  B e r l i m ,

  16 de janeiro de 2005.

73

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das relações de poder, mas sim que forças ela dá à ação co

letiva

  contra as forças da dominação que toma como alvo.

Trata-se

  de  saber  se a  capacidade  então exercida significa a

afirmação e a ampliação da  capacidade  de qualquer um.

Essa  questão é obliterada quando se cruzam os critérios de

juízo ao se   ident if icarem  di retamen te as performances   in d i

viduais   dos vi rtuoses da infi l tração com uma nova forma

política de ação coletiva. O que

 sustenta

 essa

  identificação é

a visão de uma nova era do capitalismo em que a produção

materia l   e ima t e r ia l ,  o saber, a comunicação e a   p e r f o r m a n

ce artística se   f u n d i r i a m  n u m ú n i c o e m e s m o

  processo

  de

realização do poder da inteligência coletiva. Mas, assim

como há mu itas formas de realização da inteligência coletiva,

há também muitas formas e cenas de performance. A vi são

do

  novo artista imediatamente político pretende opor a rea

lidade  da ação política aos simulacros da arte encerrada nos

recintos dos museus. Mas, ao revogar a distância estética

inerente à política da arte, o efeito talvez seja inverso. Ao   el i

m i n a r

 a distância entre política da estética e estética da polí

tica,

  e la també m el im ina a s ingularidade das operações por

meio das quais a política cria uma cena  de subjetivação pró

pria.  E, paradoxalmente,

 exagera

 a visão   tradicional do art i s

ta como virtu ose e estrategista, ao identificar de novo a efe-

t ividade  da arte com a execução das intenções dos artistas.

A

  política da arte, portanto, não pode resolver  seus

paradoxos na forma de intervenção fora de seus  lugares, no

" m u n d o   real " . N ão há mundo real que   seja  o exterior da

arte . Há

 pregas

 e dobras do tec ido sens ível comum nas quais

se jungem e desjungem a política da estética e a estética da

política. Não há real em si , mas configurações

  daqu ilo

  que é

dado como nosso  real , como o objeto de nossas  percepções,

de

  nossos pensamentos

  e de  nossas  intervenções. O real é

sempre objeto de uma ficção, ou

 seja,

 de uma construção do

espaço no   qu al  se en trelaçam o visível , o dizível e o factível .

É a ficção dominante, a ficção consensual, que

  nega

  seu ca-

ráter de ficção

  fazendo-se passar

  por realidade e traçando

um a  l i n h a  de divisão simples entre o domínio  desse real e o

das representações e aparências, opiniões e utopias. A ficção

74

artística e a ação política sulcam,   f ra t ura m   e  mult ipl ica m

esse

  real de um mo do polémico. O trab alho da pol ít i ca que

inventa

  sujeitos novos e

  int ro d uz  objetos

 novos e ou tra per

cepção dos dados comuns é também um trabalho f i ccional .

Po r isso,  a relação entre arte e política não é uma

 passagem

da ficção para a realidade, mas uma relação entre duas ma

neiras de

  pro d uzir

  ficções. As práticas da arte não são ins

t r u m e n t o s  que forneçam form as de consc iênc ia ou

 energias

mobi l izadoras

  em   proveito  de uma política que lhes seja  ex

terior.  M a s t a m p o u c o saem  de si

 mesmas

  para se tornarem

formas de ação pol ít i ca colet iva. Contr ibuem para

 desenhar

um a  paisage m no va do visível , do dizível e do factível . For

ja m  contra o  consenso  outras formas de  senso  c o m u m " ,

f o r m a s d e u m senso  comu m polémico.

A

  involução da fórmula crítica não deixa lugar  apenas

à alternativa da paródia

  desencantada

  ou da autodemons-

tração at ivi s ta . O refluxo de certas  evidências abre  t a m b é m

caminho para uma mul t idão de formas  dissensuais:  as que

se empenham em mostrar o que

 permanece

  invisível na su

posta enxurrada de imagens ; as que põem em ação, com

formas inéditas, as  capacidades  de representar, falar e agir

que pertencem a todos; as que deslocam as l inhas de

  d i v i

são entre os regimes de apresentação sensível , as que

 reexa

m i n a m

  e reconvertem em ficção as políticas da arte. Há   l u

gar para a  multiplicidade  das formas de uma arte crítica,

entendida de  ou tro  mo do. Em seu sentido  o r ig ina l ,  "crítica"

quer dizer : o que

  concerne

  à separação, à discriminação.

Crítica é a arte que  desloca  as l inhas de separação, que in

t ro d uz

  separação no tecido  consensual  do real e, por  isso

mesmo, embaralha as l inhas de separação que configuram

o campo consensual  do que é dado, como a  l i n h a  qu e sepa

ra  o documentário da ficção: distinção em géneros que se

para princ ipalmente dois tipos de hum anidade, a que sofre

e a que age, a que é objeto e a que é sujeito. A ficção é para

os   israelenses  e o documentário, para os palestinos,   dizia

i ronicamente Godard. É essa a   l i n h a  embaralhada por inú

meros artistas palestinos ou

 libaneses

  - mas também i srae

lenses

  -, que, para tratar da atualidade da ocupação e da

75

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g u erra ,

  tomam formas ficcionais a

  pa r t ir

  de diversos géne

ros, populares ou sofisticados, ou criam falsos arquivos. Po

d em   ser

  chamadas

  de críticas as ficções que assim questio

n a m   as l inhas de separação entre regimes de expressão,

tanto

  quan to as performances que " inv ertem o cic lo de

degradação

  pro d uzid o

  pela vi t imização"

16

, mani fes tando as

capacidades  de falar e representar que pertencem àqueles e

àquelas que dada

 sociedade

  relega às

 suas

  margens "pass i

vas". Mas o trabalho crítico, o trabalho

 sobre

  a separação é

também o que examina os l imites próprios à sua prática,

que se

  recusa

  a antecipar seu efeito e leva em conta a  sepa

ração estética através da   qua l

 esse

 efeito é  pro d uzid o .  É, em

suma, um trabalho que, em vez de pretender

  supr imir

  a

passividade do espectador, reexamina a sua atividade.

Gostaria de

  i lustrar

  essa

 frase

  com duas ficções que,

da própria distância em que estão

 sobre

  a superfície plana

de um a tela , pod em ajudar-nos a reform ular a questão das

relações entre os poderes da arte e a capacidade política da

maioria .

  A

  pr ime ira

  é o vídeo de

  A n r i

  Sala,

 Dammi

  i Colori.

Este

  põe de novo em  cena u m a  f igura  mestra entre as polí

ticas da arte: a reflexão sobre  a arte como construção de   for

mas sensíveis da

 vid a

  coletiva. Há algu ns

 anos,

 o prefeito da

capital albanesa,

  Ti rana, que é   pintor,

  decidiu

  m a n d a r r e

pint a r

  de  cores vivas as

  fachadas

  dos prédios de sua cidade.

A   intenção era não só transform ar o ambiente  v i ta l  dos ha

bi tantes , mas também provocar um

 senso

  estético de apro

priação colet iva do espaço, quando o desmantelamento do

regime comunis ta dava lugar apenas  a expedientes   i n d i v i

duais.  Era, porta nto, um projeto que se inscrevia no   pro lo n

gamento do tema schil leriano da educação estética do ser

h u m a n o

  e de todas as formas dadas a

 essa

 "educação" pelos

artistas das

  Arts

  and Crafts,  d o

  Werkbund

  o u d o

 Bauhaus:

  a

criação de um a maneira apropriada de habi tar em conjunto

o m und o sens ível, por meio do sentido da

  l inha ,

  d o

 vo lume ,

da cor ou do ornamento. O vídeo de   A n r i  Sala  deixa-nos

16. E nt r e v i s t a c o m J o hn Mal p e d e ,

  w w w . i n m o t i o n m a g a z i n e . c o m / j m l

  h t m l  ( John

M a l p e d e

  é

  d i r eto r

  d o L o s Ang e l e s P o v e r t y D e p ar t m e nt , i ns t i t u i ç c ão t e at r al

a l ter n a t iv a

  qu e , i r o ni c am e nt e , r e t o m o u as famosas  i n i c i a i s  L A

 P D ) .

76

o uvir  o prefeito artista falar do poder da cor para antecipar

u m a

  comunidade e fazer da capital mais pobre da Europa a

única onde todos falam de arte nas ruas e nos cafés. Mas,

também, os longos  travellings  e os  doses  es t i lhaçam a exem

plaridade  dessa

  c idade estética, põem à mostra outras su

perfícies coloridas, outras cidades que são confrontadas com

as palavras do orador. A câmera, fazendo desfi lar

 fachadas

azuis, verdes, vermelhas, amarelas ou alaranjadas,

  parece

levar-nos a visitar um projeto urbanístico em implantação.

O u t r a s

 vezes,

 e la põe um a mul t idão indi ferente a atravessar

aquela cidade-modelo, ou então se abaixa para confrontar a

p olicromia  feérica das paredes à lama das calçadas esbura

cadas  e

 cobertas

 d e d e t r it o s . A l g u m a s  vezes  também apro-

xima-se e transform a os quadrados coloridos em áreas

 abs

traías , indi ferentes a qualquer projeto de transformação da

vida.  A superfí c ie da obra organiza ass im a tensão entre a

cor projetada pela vontade estética nas   fachadas  e a cor res

tituída

 pelas

  fachadas. Os recursos de uma arte da distância

servem para expor e problematizar a política que quer

  f u n

di r  arte e

 vid a

 n u m ú n i c o

 processo

  de criação de formas.

É outra função da cor e outra política da arte que se

encontram no

  cerne

  dos três fi lmes  (Ossos,  N o

  quarto

  da

Vanda e Juventude  em  marcha)  que o cineasta  português Pe

dr o Costa

 dedicou a um pequeno g rup o de margina is l i sbo

etas e imigran tes cabo-verdianos , que   f l u t u a m   entre drogas

e b icos no "bai rro de lata" de Fontainhas .  Essa  t r i lo gia  é a

obra de um art i s ta profundamente engajado. N o entanto,

nem lhe

  passa

  pela cabeça dar uma mãozinha no habi tat

dos mal-alojados, tampouco apresentar alguma explicação

para a lógica económica e estatal global que governa a exis

tência do "bairro de lata" e depois a sua extinção. E, contra

r iando  a   m o r a l  aceita, que nos veda "estetizar" a miséria,

Pedro

 Costa parece

 aprovei tar a oportun idade para  valor i

zar os recursos artísticos apresentados por aquele cenário

de   vida

  m i n i m a l i s t a .

  U ma g arrafa de água de plás t ico, uma

faca,  um copo, alguns  objetos  largados  sobre  u m a mesa  de

madeira branca num apartamento   invadido,  mais a luz ra

sante sobre

  o tam po, aí es tá a op ortunidad e para uma bela

77

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n a t u r e z a - m o r t a .

  Q uando a noi te cai naquele alojamento

sem eletricidade, duas

  pequenas

 velas

  sobre

  a mesma  mesa

darão à conversa miserável ou à sessão de heroína na veia

certo ar de claro-escuro holandês do Século de

  O u r o .

  E o

trabalho das

 escavadeiras

  demol indo o bai rro é a   o p o r t u n i

dade de pôr em destaque, com o desmoronamento das ca

sas, os blocos esculturais de concreto ou largas paredes con

trastantes em

  cores

  a zul ,

  rosa, amarelo ou verde. Mas

  essa

"es tet izaçã o" s ig ni f i ca jus tamente que o terri tório intelec

t u a l  e vi sualmente banal izado da miséria e da margem é

devolvido   à sua potencialidade de riqueza sensível compar-

ti lhável. A exaltação das áreas coloridas e das arquiteturas

s ingulares pelo a rt i s ta corresponde, porta nto, es tri tamente

sua exposição àquilo que ele não domina: as idas e vindas

da s

 pessoas

  entre os lugares fechados da droga e o exterior

onde  elas  se entregam a diversos pequenos

  afazeres,

  mas

também a lentidão, as aproximações, as paradas e as reto

madas da fala por meio da

  q u a l

 os jovens drogados extraem

da

 tosse

  e do abatimento a possibil idade de dizer e

 pensar

sua própria história, de pôr a   vid a  em

  exame

  e de, assim,

retomar sua  posse,  por pouco que  seja.  A natureza morta

l u m i n o s a ,  composta com uma garrafa de plás t i co e alguns

objetos

  reaproveitados

  sobre

  a mesa  de madeira branca de

u m   apartamento

  inva d id o

  es tá ass im em harmonia com a

obstinação "estética" de um daqueles invasores que, a  des

peito

  dos protestos de seus  companheiros ,

  l i m p a

 m e t i c u l o

samente  com sua

  faca

  as manchas da mesa  fadada aos den

tes da escavadeira.

Pedro

  Costa

  põe assim em ação uma política da esté

tica tão afastada da visão sociológica segundo a

  q u a l

  "polí

t ica"

  da arte significa explicação de uma situação - ficcional

ou   real -  pelas  condições sociais, quanto da visão ética que

pretende subst i tui r a " impotênc ia" do olhar e da palavra

pela ação direta. Ao contrário, o que está no

  cerne

  de seu

trabalho é o poder do olhar e da palavra, o poder do sus-

pense  qu e eles  i n s t a u r a m .

 Pois

  a questão política é, em

  pr i

m e i r o  lugar, a capacidade de corpos quaisquer se apodera

r e m   de seu destino. Por isso,

  Costa

  se concentra na relação

78

entre a impotênc ia e o poder dos corpos , no co nfronto das

vidas  com aquilo que elas p o d e m . Coloca-se  assim no nó da

relação entre uma política da estética e uma estética da po

lítica. Mas também

  assume

  sua separação, a distância entre

a proposta artística que confere potencialidades novas à

paisagem da "exclusão" e os poderes próprios da subjetiva-

ção política. À recon cil iação estética que  N o quarto d a Vanda

parecia

  encarnar-se

  na relação entre a bela nature za-m orta

e o esforço dos corpos a recuperarem sua voz, o   f i lme  se

g u inte ,

  Juventude

  em  marcha,  opõe uma c i são nova. Aos

marg inais regenerados, reconvert idos - um a, mãe de famí

li a  bem falante,  outro,  empregado-modelo - e le confronta a

s i lhueta trágica de Ventura, imigrante cabo-verdiano, ex-

-p edreiro  incapac i tado para o trabalho por uma queda do

andaime e para a   vid a  social

  n o r m a l

  por uma fi ssura men

tal .

  Com Ventura, sua si lhueta alta, seu olhar selvagem e

sua fala

 lapidar,

  o   in tu i to  não é

  oferecer

  o documentário de

u m a vid a

  difíci l ; trata-se, ao mesmo tempo, de colher toda a

riqueza de experiência contida na história da colonização,

da rebelião e da imigração, mas tam bém de enfrentar o in -

comparti lhável, a fissura que, no

  f im

 dessa  história, separou

u m   indivíduo de seu mundo e de si mesmo. Ventura não é

u m

  " t r a b al h a d o r i m i g r a n t e " , u m   h u m i l d e  a quem caberia

devolver  a dignidade e o gozo do mundo que ele a judou a

constru ir .

 Ele é uma espécie de errante sublime, de Édipo ou

de rei Lear, que interrompe por si mesmo a comunicação e o

intercâmbio e expõe a arte a confrontar seu poder e sua

  i m

potência. É o que o   f i lme  faz quando enquadra uma es tra

n h a

  vis i t a

  ao museu entre duas leituras de uma carta de

amor e de exí l io. N a fundação Gulbenk ian,

 cujas

  paredes

Ventu ra a judou outrora a construir , sua s i lhueta negra, e n

tr e

  u m

  Rubens

  e u m V a n D y c k ,

  aparece

  como um corpo

estranho, u m intruso del i cadamente em purrado para a saí

da por um compatriota que encontrou refúgio naquele

" m u n d o  ant igo " , mas também um a interrogação fei ta àque

las áreas coloridas

  encerradas

  e m m o l d u r a s ,

  incapazes

  de

devolver   aos que as olham a riqueza sensível de sua expe

riência. N o alojamento miserável onde o

 cineasta soube

 c o m -

79

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po r  outra natureza-morta com quatro garrafas diante de

u m a

  janela, Ventura lê uma carta de amor endereçada àque

la  q ue   f icou na terra, carta em que o  ausente  fala do trabalho

e da separação, mas tam bém de um reencontro próximo que

embelezará duas vidas por

 vint e

  o u   t r in ta

 anos,

 do sonho de

oferecer  à amada cem   m i l  c igarros , ves t idos , um carro, uma

casinha de lava e um buque de quatro tostões, e do esforço

de aprender a

 cada

  dia palavras novas, palavras bonitas, ta

lhadas na medida única de dois   seres  como um pi jama de

seda  f ina .  Essa  carta que

  serve

  de refrão ao   f i lme  aparece

p rop riamente

  como a performance de Ventura, performan

ce de uma arte da divisão, que não se

  separa

  d a  v ida,  da

experiência dos

 deslocados

  e de  seus  meios de preencher a

ausência e aproximar-se do ser amado. Mas a pureza da

oposição entre a grande arte e a arte   viva  do povo logo se

embaralha. Pedro

  Costa

  compôs a carta a

  partir

  de duas

fontes diferentes: verdadeiras  cartas  de emigrantes e uma

carta de poeta, uma das últimas

 cartas

  enviadas por Robert

Desnos

 a

 Y o u k i

 de u m campo de concentração em Flõha, no

caminh o que o levava a Terezin e à morte.

A   arte l igada à   v ida,  a arte tecida de experiências

compart i lhadas do trabalho da mão, do o lhar e da voz, essa

arte só

 existe

 n a f o r m a desse

 patchwork.

  O c inema não pode

ser o equivalente da carta de amor ou da música comparti

lhada dos pobres. Também não pode ser a arte que simples

mente devolve aos hum ildes a riqueza sensível de seu

  mund o .

Ele precisa

 separar-se,

  consentir em ser  apenas a su perfície

em que um art i s ta procura

 t ra d uzir

  em figuras novas a ex

periência daqueles que foram relegados à margem das cir

culações económicas e das trajetórias sociais. O

  f i lme,

  que

põe em questão a separação estética em nome da arte do

p ovo  continua sendo um   f i lme,  um exercício do olhar e da

audição. Contin ua sendo u m trabalho de espectador, en de

reçado na superfície plana de uma tela a outros

 espectado

res, cujo número e diversidade será estritamente restringido

pelo sistema de distribuição existente, arrolando a história

de Vanda e de Ventura na categoria dos "fi lmes de festival"

ou   de obras de museu. Filme político hoje em dia talvez

8

também queira dizer   f i lme  que se faz em lugar de

  outro,

f i lme

  que mostra sua distância com o modo de circulação de

palavras,

 sons,

  imagens ,  gestos  e afetos, em cujo âmago ele

pensa

  o efeito de

 suas

  formas .

A o  citar essas  duas obras, eu não quis propor modelos

daqu ilo  que deve ser arte política hoje.

 Espero

  ter mostrado

sufic ientemente que tai s modelos não exi s tem. C inema, fo

tog raf ia ,

  vídeo, instalações e todas as formas de

 p e r f o r m a n

ce do corpo, da voz e dos

 sons

 con tribuem para reconstruir

o âmbito de  nossas  percepções e o dinamismo de  nossos

afetos. Com isso, abrem passagens possíveis para novas   for

mas de subjetivação política. Mas nenhum

 deles

 pode evitar

a   rupt ura  estética que

 separa

  os efeitos das intenções e veda

qualquer

  via larga para uma realidade que estaria do   outro

lado

  das palavras e das imagens. Não há

  o ut ro

  l ado.  Ar t e

crítica é uma arte que sabe que seu efeito político passa pela

distância estética. Sabe  qu e esse  efeito não pode ser garan

tido,  que ele sempre comporta uma parcela de indecidível .

Mas há duas maneiras de pensar

 esse

  indecidível e de   tra

balhar com ele. Há aquela que o considera um

  estado

  d o

m u n d o   em que os opostos se equ ivalem e transform a a de

monstração  dessa  equivalênc ia em oportunidade para um

novo

  vi rtu os i sm o art í s ti co. E há aquela que

  reconhece

  aí o

entrelaçamento de várias políticas, confere figuras novas a

esse  entrelaçamento, explora

 suas

  tensões e

 desloca

  assim o

equilíbrio dos possíveis e a distribuição das capacidades.

81

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8/11/2019 espectador emancipado.pdf

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A  imagem  i n t o l e r á v e l

O   que torna uma imag em intolerável? A perg unta pa

rece de início indag ar

 apenas

  que características nos tornam

incapazes

 de olhar uma imag em sem senti r dor ou

  i n d i g n a

ção.

  Mas uma segunda pergunta logo se mostra impl icada

na

  pr ime ira :

  será tolerável criar tais imagens ou propô-las à

visão

  alheia?

  Pensemos  em uma das últimas provocações

do   fotógrafo  Ol ivie ro  Toscani : o  cartaz  que mostrava uma

jovem  anoréxica nua e descarnada,  afixado por toda a Itália

du rante

  a

  semana

  da Moda de Mi lão em

  2007.  A l g u n s

  a

saudaram como denúncia

  corajosa,

  mostrando a real idade

do  sofrimen to e da t o r t ura  oculta por trás das aparências da

elegância e do  luxo.  O u t r o s d e n u n c ia r a m essa  exibição da

verdade do espetáculo como uma forma ainda mais   int o le

rável de seu reinado, pois, sob a máscara da indignação, ela

oferecia ao olhar dos observadores não só a

 bela

  aparência,

mas tam bém a real idade

 abjeta.

  O fotógrafo opunha à

  i m a

gem da aparênc ia uma imag em da real idade. Ora, a imagem

da realidade é que é suspeita, po r sua vez. Considera-se  que

o que ela mostra é real demais, intoleravelmente real demais

para ser proposto no m odo da imag em. N ão é uma s imples

questão de respeito pela dignidade das

  pessoas.

  A i m a g e m

é declarada inapta para criticar a realidade porque faz parte

83

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do

 mesmo regime de

 visibilidade

 daquela realidade, que

  e xi

be alternadamente sua

  face

  de aparência brilhante e seu

avesso

  de verdade sórdida que compõem um único e

 mes

m o

  espetáculo.

Esse  deslocamento do intolerável na imagem para o

intolerável da imagem esteve  n o cerne  das tensões que afe-

taram   a arte política. Todos conhecem o papel que, no tem

po

  da guerra do Vietnã, desempenharam algumas fotogra

fias, como a da menina nua a   gr i t a r  na rua diante dos

soldados. Todos

 sabem

  como os artistas

  engajados

 s e esme

raram  em confrontar a realidade daquelas imagens de dor e

m o r t e  com as imagens publicitárias que mostravam a ale

g ria  de

 viver

  em

 belos

  apartamentos modernos e bem

  e q u i

pados no país que enviava soldados para incendiarem as

terras vietnamitas com napalm. Comentei ac ima a série

Bringing the War

 Home

  d e M a r t h a

 Rosler,

  sobretudo aquela

colagem que nos mostrava, no meio de um apartamento

c laro e espaçoso, um vietnamita com uma criança morta

nos braços. A criança m orta era a intolerável realidade

  o cul

tada pela confortável  vid a  americana, a intolerável realidade

que ela se esforçava por não ver e que a montagem da arte

política lhe lançava ao rosto. Ressaltei q ue

 esse

  choque entre

real idade e aparênc ia é anulado em prát icas contemporâ

neas  da colagem, que fazem do protesto político uma

  m a n i

festação da moda jovem no mesmo nível das mercadorias de

luxo

  e das imagens publicitárias. Não haveria então nenhu

ma intolerável realidade que a imagem

  pudesse

  opor ao

prestígio das aparências, mas um único e mesmo   f luxo  de

imagens , u m único e mesmo regime de exib ição universal ,

e é

 esse

 regime que

  const i tu ir ia

 hoje o intolerável .

Essa

  viravolta

  não é s implesmente

  causada

  pelo de

sencanto de um m und o que já não acreditasse  nos meios de

comprovar uma real idade nem na

 necessidade

  de combater

a injustiça. Ela reflete uma  duplicidade que já

 estava

  presen

te no uso   mi l i t a nt e  da imagem intolerável . Esperava-se  que

a imagem da criança morta

 dilacerasse

  a imagem de   felici

dade factícia da

 vida

 americana;

  esperava-se

  que ela

 abrisse

os olhos daqueles que gozavam tal fel icidade com  base  n o

84

intolerável daquela re alidade e de sua própria   cumplicidade,

para engajá-los na   luta. M as a produção desse efeito perma

necia indecidível . A visão da criança morta no belo aparta

mento de paredes

  claras

  e grandes dimensões por certo é

difíci l de suportar. Mas não há razão

 p art icu lar

  para que ela

torne

  os que a veem

 conscientes

 da realidade do

  impe r ia l is

m o

 e

 desejosos

 de opor-se a ele. A reação co mu m a tais

  i m a

gens

  é fechar os olhos ou desviar o olhar. Ou então

  i n c r i m i

nar os horrores da guerra e a loucura

 assassina

 dos homens .

Para

  que a imagem produza efei to pol í t i co, o

  espectador

deve  estar  já convencido de que aquilo que ela mostra é o

imp eria l ismo   americano, e não a loucura dos homens em

geral.

  D e v e t a m b é m

  estar

  convencido de que ele mesmo é

cu lp ado  de co mpa rt i lhar a prosperidade baseada  na explo

ração impe rial i s ta do

  m u n d o .

  Deve também senti r-se  c u l

pado

 d e estar lá a nada fazer, a o lhar aquelas imagens de dor

e morte em vez de   lutar  contra as potências responsáveis

po r elas.  Em suma, deve sentir-se já culpado de olhar a

  i m a

gem que deve provocar o seu sentimento de culpa.

T al   é a dialética inerente à montagem política das

imagens . U ma delas deve desempenhar o papel da real ida

de que denuncia a miragem da

 outra.

 M as denuncia ao mes

m o   temp o a mirage m como real idade de nossa vida  na   qual

ela mesma está incluída. O simples fato de olhar as imagens

que denunciam a real idade de um s i s tema já se mo stra como

cu mp licidade nesse  s i s tema. N a época em que Martha Ros

ler construía sua série, Guy Debord rodava o

  f i lme

  extraído

de seu   l ivro A  sociedade do espetáculo.  D i z i a  ele que o espetá

cu lo

  é a inversão da   v ida.  Em seu

  f i l m e

  essa  realidade do

espetáculo como inversão da

  vid a

  era mostrada encarnada

também em toda e qualquer imag em: a dos governantes -

capitalistas ou comunistas -, a dos

  astros

  do c inema, dos

modelos de moda, de modelos publicitários, das  starlets  nas

praias de

 Cannes

  ou de consumidores comuns de mercado

rias e imagens. Todas

  essas

  imagens eram equivalentes , d i

z i a m   de modo semelhante a mesma realidade intolerável : a

de  nossa vid a

  separada

  de nós mesmos, transformada pela

máquina do espetáculo em imagens mortas , diante de nós ,

85

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contra nós. A   pa r t ir  daí parecia impossível conferir a

  qua l

quer imagem o poder de mostrar o intolerável e de nos levar

a   lutar  contra ele. A única coisa  por fazer parecia ser opor a

ação

  viva

  à passividade da imagem, à sua

  vid a

  al ienada.

Mas, para isso,  acaso  não seria preciso abolir as imagens,

m e r g u l h a r  a tela no preto, a fim de convocar à ação, única

capaz

 de opor-se à m enti ra do espetáculo?

O r a ,

  Guy Debord não mergulhava a tela no preto

17

.

A o

  contrário, fazia da tela o teatro de um jogo estratégico

sing u lar

  entre três termos : imagem, ação e palavra.

  Essa

sing u lar idade

  aparece  bem nos trechos de

 westerns

  ou de

f i lmes   de guerra hol lywoodianos inseridos na

 Sociedade

  do

espetáculo.  Q ua ndo vemos o desfi le de John Wayne ou   Errol

F l y n n ,

  dois ícones de   H o l l y w o o d  e dois campeões da extre

m a

  direita

  americana, quando um lembra

  seus

  feitos em

Shenandoah, ou quando o   outro,  de

  espada

  em

  p u n h o ,

  ar

remete n o papel do general C uster, de início somos tentados

a ver uma denúncia paródica do imperial i sm o americano e

de sua glorificação pelo cinema

  ho l lyw o o d ia no .

  É

  nesse

sentido que mui tos compreendem o "desvio" preconizado

po r G u y D e b o r d . O r a ,

  isso

  é um contrassenso. E com

  muita

seriedade que ele   int ro d uz   a arreme tida de  Erro l F lynn,  ex

traída de  O intrépido  General  Custer  de Raoul Walsh, para

ilustrar

 u m a tese sobre o papel histórico do

  proletariado.

  Ele

não nos pede que zombemos daqueles bravos ianques arre

metendo de sabre e m

  p u n h o ,

  e que tomemos consciência da

cu mp licidade de Raoul Walsh ou de John Ford com a   d o m i

nação imperial i s ta .

 Pede-nos

  qu e

  acatemos

  o heroísmo do

combate e transformemos aquela arremetida c inematográ

fica,

  desempenhada por atores, em

 assalto

  real contra o im

pério do espetáculo. É a conclusão aparentemente parado

xal,  m as   muit o  lógica, da denúncia do espetáculo: se toda

i m a g e m

 s implesmente mostra a

 vida invertida,

  tornada pas

siva,  basta

  virá-la para

  desencadear

  o poder ativo que ela

desviou .

 Essa

  é a l ição dada, de man eira mais discreta, pelas

p rimeiras   imagens do   f i lme.  N elas vemos duas jovens e

17. Cabe  l e m br ar qu e e l e f i ze r a i sso , e m c o nt r ap ar t i d a, nu m   f i l m e  ant e r i o r ,  Hur-

lements

 enfaveur  de

 Sade

  [ U i v o s   para Sade],

86

belos corpos femininos

  i r ra d ia nd o

  alegria na luz. O   espec

tador

  apressado corre o risco de ver nisso a denúncia da

posse  imaginária oferec ida e subtraída pela imagem,  i lu s

trada

  mais adiante por outras imagens de corpos feminino s

- strippers,  m a n e q u i n s ,

  starlets

  nuas . Ora,  essa  aparente

semelhança encobre um a oposição radical . Pois

  essas  pr i

meiras imagens não foram extraídas de espetáculos ,  publ i

cidades ou atualidades cinematográficas. Foram feitas pelo

art i s ta e representam sua companheira e uma amiga.   A p a

recem, ass im, como imagens at ivas , imagem de corpos em

penhados nas relações ativas do desejo  amoroso, em vez de

estarem fechados na relação passiva do espetáculo.

A s s i m ,  é prec i so imag ens de ação, imagens da verda

deira

  real idade ou imagens imediatamente invert ívei s em

sua realidade verdadeira, para nos mostrar que o simples

fato

  de ser espectador, o simples fato de olhar imagens é

u m a

 coisa

 r u i m .  A ação é apresentada como única resposta

ao mal da imagem e à culpa do espectador. N o entanto, o

que se apresenta a

 esse

  espectador ainda são imagens.

 Esse

aparente paradoxo tem sua razão: se não  olhasse  imagens, o

espectador não seria culpado. Ora, ao acusador  impo rt a

mais a demonstração de sua culpa do que sua conversão à

ação. É aí que ganha toda a importância a voz que   fo rmula a

i lusão e a culpa. Ela denuncia a inversão da

 vida

  que consis

te em ser consumidor passivo de mercadorias que são   i m a

gens  e de imagens que são mercadorias. Diz que a única

resposta a

 esse

 m a l é a  atividade.  Mas também nos diz que

nós, que olhamos as imagens por ela comentadas, nunca

agiremos , permaneceremos eternamente

  espectadores

  de

u m a vid a

 que passou para a im agem . A inversão da inversão

fica,  assim, como  saber  reservado daqueles que sabem por

que ficaremos sempre a não

 saber,

  a não agir. A   v i r tu de  da

atividade, oposta ao m al da imagem , é então absorvida pela

autoridade

  da voz soberana que estigmatiza a

 vid a

  falsa na

qua l

  ela  sabe q ue

 estamos

  condenados a nos comprazer.

A  afirmação da autoridade da voz  aparece  assim como

o conteúdo real da crítica que nos levava do intolerável na

i m a g e m

  ao intolerável da imagem. Esse  deslocamento é to-

87

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talmente ac larado pela crí ti ca da imag em em n ome d o   i r r e-

presentável. A i lustração exemplar disso foi dada pela polé

mica ocorrida em torno da exposição   M émoires des camps*,

apresentada há algun s anos  em Pari s . N o centro da exposi

ção havia quatro

  pequenas

  fotografias t i radas de uma câ

mara de gás em  A u s c h w i tz  p o r u m m e m b r o d os S o n d e r k o m -

mandos . As fotografias mostravam um grupo de mulheres

nuas empurradas para a câmara de gás e a incineração dos

cadáveres ao ar   l ivre.  N o catálogo da exposição, um longo

ensaio

  de   Georges

  D i d i - H u b e r m a n

  ressaltava o  peso  da

realidade representada por

 aqueles

  "Q uatro pedaços de pe

l í cula arrancados do Inferno"

1 8

. Esse

  ensaio

  provocava em

Les  Temps modernes  duas

 respostas  muit o

  violentas. A

  pr i

meira ,  assinada  por El i sabeth Pagnoux, val ia-se do argu

mento c láss ico: as imagens eram intoleráveis porque dem a

s iadamente reai s . Ao projetarem em  nosso  presente o horror

de

 A u s c h w i t z ,

  capturavam nosso olhar e  imp ediam   qualquer

distância crítica. Mas a segunda,  assinada por Gerard Wajc -

m a n ,

 inve r t ia

 o a r g u m e n t o :

 aquelas

  imagens e o comentário

que as acompanhava eram intoleráveis porque me ntiam ; as

qu atro

  fotos não representavam a realidade da

  Shoah

  por

três razões :  pr ime iro ,  porque não mostravam o extermínio

dos judeus na câmara de gás; segundo, porque o real nunca

é inteiramente solúvel no visível ; terceiro, porque no

  cerne

do

 acontec imento da

 Shoah

  há um irrepresentável, algo que

não pode ser es truturalmente congelado numa imagem.

"A s   câmaras de gás são um acontec imento que const i tui em

si   mesmo uma espéc ie de aporia, um real infrangível que

transpassa e põe em xeque o es tatuto da imag em e em

  p er i

go qualquer reflexão

 sobre

  as i m a g e n s . "

19

A   argumentação seria razoável se

  pretendesse  s i m

plesmente contestar que as quatro fotografias tivessem o

poder

  de apresentar a totalidade do

 processo

  de extermínio

* Me m ó r i as d o s c am p o s d e c o nc e nt r aç ão , j ane i r o - m ar ç o d e 2001.

  [N .

  da T.]

18 .

 Esse

 ensaio  é

  r epr o d uz id o ,

  c o m c o m e nt ár i o s e respostas  às c r í t ic as , e m G e o r

ge s   D i d i - H u b e r m a n .

  Images  malgré  tout.

  Édit ions de  M i n u i t ,  P ar i s ,  2003.

19. G e r ar d W aj c m an, " D e l a c r o yanc e

  p h o t o g r a p h i q u e " ,

 L es Temps modernes,  m a r -

ç o - abr i l - m ai o d e 2001, p . 63 .

88

dos judeus , seu s igni f i cado e sua ressonância. M as  aquelas

fotografias , nas condições em que foram tomadas , evidente

m e n t e n ã o t i n h a m  essa  pretensão, e o argumento vi sa de

fato algo bem di ferente : visa ins taurar um a oposição radical

entre dois tipos de representação, a imagem visível e a nar

rativa pela palavra, dois tipos de atestação, a prov a e o

 teste

m u n h o .  A s quatro imagens e o comentário são condenados

porque

 aqueles

  qu e

  t i ra ra m

  as fotos - com risco de

  vid a

  - e

aquele que as comenta   v i r a m

  nelas

  tes temunhos da

  re a l i

dade de um extermínio cujos vestígios

 seus

 autores f i zera m

de

  t ud o

  para apagar. Foram criticados por terem acreditado

que a realidade do

 processo

 t i n h a necessidade de ser prova

da ,

  e que a imag em vis ível const ituía uma prov a. Ora - re

torque o fi lósofo - "A

 Shoah

  ocorreu. Sei disso e todos sa

b e m .

  É u m saber.  Cada sujeito é chamado a ela. Ninguém

pode dizer: 'não sei ' .  Esse

 saber

 baseia-se  no tes temunho,

que const i tui um novo  saber  [. . . ] Não exige prova   a l g u

m a "

2 0

. Mas o que é exatamente  esse  " n o v o saber ?  O que

dist ing u e   a  vir t ud e  do tes temunho da  indig nidade  da   pro

va? Aquele que tes temunha com u m relato aqui lo que vi u

n u m   campo de extermínio trabalha com uma representa

ção, tanto quanto aquele que  p rocu rou regi s trar a l g u m  ves t í

g io   visível dele. Sua palavra tampouco diz o acontecimento

em sua unic idade, não é seu h orror di retamente man i fes ta

do .

 Haverá quem diga que

 esse

 é seu méri to: não dizer tudo,

mostrar que nem   t ud o   pode ser

  dito.

  M a s  isso  n ã o f u n d a

menta a di ferença radical em relação à " im agem ", a não ser

que atribuamos arbi trariamen te a esta  a pretensão de mos

trar  t ud o .  A   vir t ud e  conferida à palavra da tes temunha é

então totalmente negativa: não está naquilo que ela disse,

mas em sua própria insuficiência, em oposição à suficiência

atribuída à imagem , ao engodo dessa  suficiência. Mas

 esta

 é

pura

  questão de definição. Se nos

  l i m i t a r m o s

  à simples de

finição de imagem como   duplo,  sem dúvida

 chegaremos

  à

simples conclusão de que

 esse

 duplo  se opõe à unicidade do

Real

  e, assim, só pode apagar o horror inigualável do exter

m í n i o . A i m a g e m   t ra nqui l iza ,  diz Wajcman. A prova é que

20 .  Ibiã.,  p. 53.

89

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o l h a m o s essas  fotografias, ao

 passo

  que não suportaríamos

a realidade que elas  rep rodu zem.  A única falha desse a r g u

mento de autoridade é que

 aqueles

  qu e  v i r a m  aquela

  reali

dade, sobretudo os que fizeram as imagens, devem tê-la

su p ortado.  M a s é isso,  justamente, o que o fi lósofo critica no

fotógrafo casual : o fato de ter desejado  tes temunhar. A ver

dadeira testemunha é aquela que não quer testemunhar.

Essa

  é a razão do privilégio atribuído à sua palavra. Mas

esse privilégio nã o é dela. É o da palavra que a o briga a falar

contra a vontade.

E isso  o que i lustra uma sequência exemplar do

  f ilme

que Gerard Wajcman opõe a todas as provas vi suais e a to

dos os documentos de arquivos ; trata-se d e Shoah  de Claude

L a n z m a n n ,  f i lme

  baseado  no tes temunho de alguns

  sobre

viventes.

  A sequência é a do salão de cabeleireiro onde o

ex-cabeleirei ro de T rebl ink a, Ab raha m Bomba, conta a

 che

gada e a última

  tosa daqueles

  que se preparavam para en

trar  na câmara de gás . N o centro do episódio es tá o mo

mento em que Abraham Bomba, l embrando o dest ino dos

cabelos

  cortados,

  recusa-se

  a continuar e , com um a toalha,

enxuga as lágrimas que começam a cai r . A voz do diretor

insiste para que ele continue: "Você precisa, Abe". Mas, se

precisa, não é para revelar uma verdade ignorada que

 cabe

ria   opor àqueles que a negam. E, de qualquer  m o d o ,  nem ele

sequer

  dirá o que ocorria na câmara de gás. Precisa s imples

mente porque precisa.  Precisa porque não quer, porque não

pode.

  O que importa não é o conteúdo de seu tes temunho,

mas o fato de sua palavra ser a palavra de alguém cuja pos

sibilidade   de falar é truncada pelo intolerável do aconteci

m e n t o ;  é o fato de que ele fala

 apenas

  porque é obrigado a

tanto pela voz de

  o ut ro .

  Essa  voz do outro no

  f i l m e

  é do

diretor,  mas ela projeta atrás de si uma outra voz em que o

comentador, a seu talante, reconhecerá a lei da ordem

  s i m

bólica lacaniana ou a autoridade do deus que proscreve as

imagens , fala a seu povo na coluna de nuvem, p edind o-lhe

que acredite nele  co m base  na palavra e o obedeça   inco nd i

c ionalmente. A palavra da tes temunha é sacral izada por

três razões negat ivas :  pr ime iro  porque se opõe à imagem,

9

que é

  idolatria;

  segundo, porque é a palavra do homem in

capaz  de falar; terceiro porque é a palavra do homem   ob r i

gado à palavra por uma palavra mais poderosa que a sua. A

crítica às imagens não

  lhes

  opõe, d efini t ivamente, nem as

exigênc ias de ação nem a retenção da palavra. Opõe-lhes a

autoridade

 da voz que faz, al ternadamente,

  calar

 e falar.

M a s , t a m b é m  nesse

 caso,

  a oposição é posta à

  custa

de ser logo revogada. A força do si lêncio que traduz o

  i r r e -

presentável do acontecimento só

 existe

  por sua representa

ção.  O poder da voz oposta às imagens deve exprimir-se em

imagens . A  recusa  de falar e a obediência à voz que coman

da,   portanto, devem tornar-se vi s ívei s . Q uando o barbei ro

in terromp e  a narrat iva, quando já não

  consegue

  falar, e a

voz   em   off lhe  pede que continu e, o que entra em jogo , o que

serve

  de testemunho, é a emoção em seu rosto, as lágrimas

que ele retém e precisa enxugar. Wajcman comenta assim o

trabalho do

 cineasta:

  " [ . . . ]  para fazer surgir câmaras de gás,

ele   f i lma  pessoas  e palavras, testemunhas no ato atual de

lembrar-se, em cujo rosto as lembranças passam c o m o n u m a

tela de cinema, em

 cujos

  olhos se discerne o horror que

  v i

ram [ . . . ] "

2 1

.  O argumento do i rrepresentável cai então num

j o g o  duplo.  Por um lado, opõe a voz da tes temunha à men

tira  da imagem. Mas , quando a voz  cessa,  é a imagem do

rosto sofrido que passa a ser a evidência visível daqu ilo que

os olhos da tes temunha   v i r a m ,  a image m vis ível do horror

do  extermínio. E o comentador, que declarava ser impossí

vel   fazer a distinção, na fotografia de   A u s c h w i t z ,  e n t r e m u

lheres

 enviadas para a morte e um g rupo de nudis tas a

 pas

seio, parece

  não ter di f i culdade algum a em   d is t inguir  o

p ranto  que reflete o horror das câmaras de gás do pranto

que em geral

 expressa

 uma lembrança dolorosa para um co

ração sensível . A diferença, na verdade, não está no conteú

do  da imagem : es tá s implesmente no fato de que a pr ime ira

é um tes temunh o voluntário, enquanto a segunda é um

 tes

t e m u n h o   involuntário. A   vir t ud e  da (boa) testemunha é ser

aquela que

 obedece

  s implesmente a dois golpes: o da Reali

dade que horro riza e o da palavra do Outr o que obriga.

2\.lbíd.,p.  55.

91

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t rui r  u m a i m a g e m , o u

 seja,

  certa conexão entre o verbal e o

visua l .  O poder dessa  imagem, então, consiste  em desorga

n i z a r

  o regime ordinário

 dessa

  conexão, como o que é  p r at i

cado pelo sistema

  oficial

  de informação.

Para  entendê-lo, é preciso pôr em  causa a opinião cor

rente segundo a

 qua l

 esse  s istema nos submerge numa vaga

de imagens em geral - e imagens de

 ho rro r

  e m  p art icu lar  - ,

tornando-n os ass im insens ívei s à real idade banal izada

 des

ses horrores.

 Essa

 opinião é amplamente

  aceita

 porque con

f i r m a  a tese

  t ra d ic io na l

  de que o mal das imagens está em

seu número, na profusão que invade sem possibil idade de

defesa

  o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão

de consumidores democráticos de mercadorias e imagens.

Essa

  visão pretende ser crítica, mas está perfeitamente de

acordo com o func ionam ento do s i s tema.  Pois  os meios de

comunicação dominantes não nos afogam de modo algum

sob a torrente de imagens que dão testemunho de  massa

cres,  fugas em   massa  e outros horrores que constituem o

presente de

  nosso

  planeta. Bem ao contrário,

 eles

 r e d u z e m

o seu número, tomam bastante  cuidado para selecioná-las e

ordená-las .

  E l i m i n a m t u d o

  o que

  possa  exceder

  a simples

ilustração redundante de sua significação. O que vemos, so

bretu do  na s  telas  de informação de televisão, é o rosto de

governantes ,

  especialistas

  e jornalistas a comentarem as

imagens , a dizerem o que  elas  mostram e o que devemos

pensar

  a respeito. Se o

 ho rro r

 es tá banal izado, não é porque

vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofre

re m   na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos

demais

  incapazes

  de nos devolver o olhar que lhes

  d i r i g i

mos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra.

O

  s istema de Informação não funciona pelo

 excesso

 de

  i m a

gens,

  funciona selecionando  seres  que falam e rac ioc inam,

que são capazes  de "descriptar" a vaga de informações refe

rentes às multidões anónimas. A política  dessas  imagens

consiste

 em nos ens inar que não é qualquer um que é

 capaz

de ver e falar. E  essa  l ição é confirmada de maneira prosaica

pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela

televisão.

94

A   falsa querela das imagens, portanto,

 encobre

  u m a

questão de contas. É aí que ganha sentido a política das cai

xas pretas. Essas

 caixas

 fechadas

  m as

 cobertas

  de palavras,

dão um nome e uma his tória

  pessoal

 àqueles cujo massacre

fo i  tolerado não por excesso  ou falta de imagens, mas por

que at ingia seres sem nome, sem his tória

  i nd i v i d ua l .

  A s p a

lavras assumem o lugar das fotografias porque estas  a inda

seriam fotografias de vítimas anónimas de violências em

massa,  a inda es tariam em consonância com o que banal i

za  massacres  e vítimas. O problema não é opor as palavras

às imagens visíveis. E subverter a lógica dominante que faz

do

  visua l

  o quinhão das multidões e do verbal o privilégio

de alguns. As palavras não estão no lugar das imagens. São

imagens , ou

 seja,

  formas de redistribuição dos elementos da

representação. São f iguras que subst i tuem uma imag em por

outra,

  formas visuais por palavras, ou palavras por formas

visu ais .

 Essas f i g u r a s  redistr ibu em   ao mesmo tempo as re

lações entre o único e o múltiplo, o pequeno número e o

grande número. Por

  isso

  são políticas, se é que a política

consiste

 princ ipalmen te em m udar os lugares e a conta dos

corpos. A   f igura  política por excelência,  nesse  sentido, é a

metonímia que mostra o efei to pela

  causa

  ou a parte pelo

t o d o .

  Realmente, é uma política da metonímia que se

  p r at i

ca em outra instalação de

 Al fre d o

 Jaar dedicada ao

 massacre

de Ruanda,  The Eyes of

 Gutete

 Emerita.  Esta  é organizada em

t o rno

 de uma única fotog raf ia dos olhos de uma mu lher que

vi u

  o massacre  de sua família: o efeito pela causa, portanto,

mas tam bém dois olhos por um mi lhão de corpos chac ina

dos . Mas , por

  t ud o

  o que   v i r a m ,  esses  olhos não dizem o

que Gutete Emeri ta

 pensa

 e

 sente.

 São os olhos de uma

 pes

soa dotada do mesmo poder daqueles que os olham, mas

também do mesmo poder do

  qua l seus

  i rmãos e i rmãs fo

ra m

  privados pelos carniceiros, o de falar ou

 calar-se,

  de

mostrar os próprios sentimentos ou ocultá-los. A metoní

m ia   que põe o olhar

 dessa

 mu lher no lugar do espetáculo de

ho rro r

 também subverte a conta do

 individu al

 e do múltiplo.

Por isso,

  antes

  de ver os olhos de Gutete Emerita num cai

xote luminoso , o  espectador  deveria ler um texto que fazia

95

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se podia esquecer, mas no q ual não devíamos demorar-nos ,

s u m a ,

  t ud o

  o que fazia parte de sua rotina diária na época.

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c o n f i r m a n d o  que o problema não é

 saber

  se cumpre ou não

fazer e olhar tais imagens, mas sim dentro de que   d ispo si t i

vo   sensível isso é f e i t o

22

.

O u t r a  es tratégia é prat i cada por um

  f i l m e

  dedicado

ao genoc ídio do Camboja,  S21, M áquina de morte

 khmer

 ver

melho.  Seu autor, Ri thy Panh, compart i lha pelo   menos

duas opções

  essenciais

  c o m C l a u d e L a n z m a n n . E l e t a m

bém optou por representar a máquina, em vez de  suas  v í

t i m a s ,

  e por fazer um   f i l m e  no presente. Mas dissoc iou

essas escolhas  de qualquer discussão em torno da palavra

eda imagem. N ão opôs as tes temunhas aos arquivos . Isso

sig nif icar ia

 perder

  indubitavelmente

 a especificidade de um a

máquina de morte cujo func ionamento   passava  p o r u m

aparato discurs ivo e por um dispos i t ivo de arquivamento

bem programados . Portanto, era prec i so tratar esses

  a rqui

vos como parte do

  disposit ivo,

  mas também mostrar a rea

lidade  f í s ica da máquina pondo o discurso em ação e fazen

do

  os corpos falar. Rithy Panh

  re uniu

  no próprio local dois

t ip os  de tes temunha: alguns dos rarí ss imos sobreviventes

do   campo S21 e alguns ex-guardas. E os fez reagir a

  diver

sos tipos de arquivo: relatórios diários, atas  de interrogató

rios,  fotografias de

 presos

 mortos e  torturados, pinturas   feitas

de cor por um dos ex-prisioneiros que pede aos

  ex-carcerei-

ros que confi r me m a sua exat idão. Desse mod o, a lógica da

máquina é reativada: à medida que os ex-guardas percor

re m aqueles

  documentos , vão  readqu ir indo  atitudes,

 gestos

e até entonações que t inham quando es tavam a serviço da

tortura

  e da morte. N uma sequência aluc inante, um

 deles

começa a reco nst i tui r a ronda  notu rna,  o retorno dos presos

depois do "interrogatório", para a

 cela

 com um , os ferros que

os prendem , a

 sopa

 e o   u r inol  solicitados pelos prisioneiros,

o dedo apontado para

  eles

  através das grades, os gritos, in

sul tos e ameaças a qualquer  p r isioneiro  que se mexesse,  em

22 . A n a l i s e i  c o m m ai s d e t al he s a l g u m as d as

  obras

  aqu i m e nc i o nad as e m m e u

ensaio  "L e T hé ât r e d e s i m ag e s" , p u bl i c ad o no c at ál o g o

 Alfredo

  Jaar.  La  poli

tique  des  images,  j r p / r i n g i e r -  Mu sé e C ant o nal d e s B e au x - Ar t s d e L au sanne ,

2007.

98

Sem dúvida é um espetáculo intolerável essa  reconstituição

feita

  sem aparente emoção, como se o

  torturador

  de ontem

estivesse  pronto para desempenhar amanhã o mesmo pa

pel.  Mas toda a es tratégia do   f i lme

  consiste

  e m   re d ist r ibuir

o intolerável ,

 valer-se

  de

 suas

  diversas representações: rela

tórios , fotografias , pin turas , reconst i tuições .  Consiste  em

m u d a r

  as posições, pondo

 aqueles

  qu e

 acabam

  de mani fes

tar novamente seu poder de torturadores na pos ição de   a lu

no s  ensinados  por sua ex-vítima. O   f i lme  interl iga diversos

tipos de palavras, ditas ou

 escritas,

 diversas formas de visua

lidade  - cinematográfica, fotográfica, pictórica, teatral - e

várias formas de temporal idade para nos dar um a represen

tação da máquina que mostre ao mesmo tempo como ela

pôde funcionar e como hoje é possível a  carrascos  e vítimas

vê-la, pensá-la e senti-la.

O

  tratamento do intolerável é, assim, uma questão de

disp osit ivo d e   visibilidade. A q u i l o  qu e chamamos i m a g e m é

u m

  e lemento num

  dispositivo

  que cria certo

 senso

  de

  reali

dade, certo

 senso

  c o m u m . U m

  senso

  comum" é, ac ima de

t ud o ,  uma comunidade de dados sens ívei s : coisas  cuja  v i s i

bilidade

  considera-se

  parti lhável por todos, modos de per

cepção  dessas  coisas  e significados também parti lháveis

qu e lhes  são conferidos. É também a forma de convívio que

l iga

  indivíduos ou grupos com  base nessa  comunidade

  pr i

m e i r a  entre palavras e  coisas.  O   sistema  de informação é

u m

  senso

  c o m u m " desse t ip o :  u m  d isp osit ivo  e s p a ç o - t e m -

po ra l

  dentro do qual palavras e formas visíveis são reunidas

em dados comuns, em maneiras comuns de perceber,  de ser

afetado e de dar sentido. O problema não é opor a realidade

a

 suas

  aparências. É construir outras realidades, outras

  for

mas de

 senso

 c o m u m , o u seja, outros  dispositivos  espaçotem-

p orais ,

  outras comunidades de palavras e coisas,  formas e

significados.

Essa

  criação é trabalho da ficção, que não

 consiste

  e m

contar histórias, mas em

 estabelecer

  relações novas entre as

palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui

e um alhures , um então e um agora.  Nesse  sent ido,  The

99

Sound  of Silence  é uma fi cção, Shoah  o u  S 21   são ficções. O

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problema não é saber  se o real desses  genocídios pode ser

posto em imagens e em ficção. É

 saber

  como é posto e   qual

espécie de

 senso

  comum é tec ido por esta  ou aquela ficção,

pela construção  desta  ou daquela imagem. É saber  que es

péc ie de ser humano a imagem nos mostra e a que espéc ie

de ser humano ela é destinada, que espécie de olhar e de

consideração é criada por

 essa

  ficção.

Esse  des locamento na abordagem da imagem   t a m

bém é um deslocamento na ideia de política das imagens. O

uso clássico da imagem intolerável traçava uma

  l i n h a

  reta

do

  espetáculo insuportável à consciência da realidade que

ele  expressava  e desta  ao  desejo  de agi r para mudá-la . Mas

esse

  elo entre representação,  saber  e ação era pura pressu

posição. A imagem intolerável de fato extraía seu poder da

evidência dos roteiros teóricos que possibil i tavam   identi f i

car seu conteúdo e da força dos movimentos políticos que os

t radu ziam   em prát ica. O enfraquec imento  desses  roteiros e

desses

 m o v i m e n t o s  pro d uziu  um divórcio que opôs o poder

anestesiante

  da imagem à capac idade de compreender e à

decisão de agir. A crítica do espetáculo e o discurso do ir-

representável passaram a ocupar a cena, a l i m e n t a n d o u m a

suspeita global em torno da capacidade política de toda e

qualquer

  imagem. O cet i c i smo atual é resul tado de um ex

cesso

  de fé. Nasceu da crença

  desenganada

 n u m a  l i n h a  reta

entre percepção, emoção, compreensão e ação. A confiança

nova na capacidade política das imagens pressupõe a crítica

desse  esquema  es tratégico. As imagens da arte não forne

cem armas de combate. Co ntribuem para

  desenhar  co nf i

gurações novas do visível , do dizível e do pensável e, por

isso

  mesmo, uma paisagem nova do poss ível . Mas o fazem

com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.

A   resistência à antecipação pod e ser i lustra da por

u m a  fo tografia t i rada por uma art i s ta francesa,  Sophie Ris-

telhueber.  Escombros  de pedras integram-se harmoniosa

mente numa paisagem idíl ica de colinas

  cobertas

  de   o l ivei

ras , pai sagem semelhante às fotografadas por  Victor  Bérard

há cem anos  para mostrar a permanência do Medi terrâneo

t o o

das viagens de Ul i sses . Mas  esse  pequeno amontoado de

pedras numa paisagem pastoral ganha sentido no conjunto

ao   qu al  pertence: como todas as fotografias da série  W B

(West  Bank),  representa uma barrei ra

  israelense

  numa es

t rada

  palestina. Sophie Ristelhueber

  recusou-se

  a f o t o g r a

far o grande

  m u r o

  de separação que é a encarnação da po

lítica de um Estado e o ícone midiático do "problema do

Oriente Médio" . Preferiu   d i r i gi r  sua objetiva para

  aquelas

pequenas  barreiras que as autoridades israelenses  construí

ra m   à beira das

 estradas

 d o

 int e r io r

  com os meios ao alcan

ce. Ela fez isso na m aioria das vezes e m  plongée,  d e u m   p o n

to   de vista que transforma os blocos das barreiras em

elementos da paisagem. N ão fotogra fou o emblema da

guerra, mas as feridas e as cicatrizes que ela deixa no

  te rr i

tório. Desse mo do, talvez produ za um des locamento do

 des

gastado afeto da indignação para um afeto mais discreto, um

afeto de efeito   indeterminado, a curiosidade, o desejo de ver

mais de perto . Falo

  aqu i

 de curios idade,

 falei

 ac ima de aten

ção.

 Trata-se

  realmente de

 afetos

  que embaralham as falsas

evidências dos  esquemas  estratégicos; são disposições do

corpo e do espírito em que o olho não   sabe  de antemão o

que es tá vendo, e o pensamento não sabe  o que deve fazer

co m   aquilo.  Sua tensão aponta, assim, para outra política do

sensível , po lítica baseada  na variação da distância, na resis

tência do visível e na

  indecidibi l idade

 do efei to. As imagens

101

m u d a m  nosso

  olhar e a paisagem do poss ível quando não

^ . 1

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são antecipadas por

  seus

  sent idos e não antec ipam

  seus

efeitos. Essa  poderia ser a conclusão suspensiva

  deste

 breve

estudo  sobre  o intolerável nas imagens.

102

A

  imagem pensativa

A

  expressão " imagem pensat iva" não é

  in tu i t iva .

  E m

geral,

  o que qualificamos de pensativos são os indivíduos.

Esse

 adjet ivo des igna u m

 estado

 s ingular : quem está

 pensa

tivo

  está "cheio de pensamentos", mas

  isso

  não quer dizer

que os

 pensa.

 N a pensat ividade, o ato do pensamento pare

ce eivado por certa pass ividade. A

 coisa

  se complica quando

dizemos que uma imagem é pensat iva. N ão se supõe que

um a

  i m a g e m

  pense.

  Supõe-se que ela é  apenas  objeto de

pensamento. Imagem pensat iva, então, é uma imagem que

encerra pensamento não pensado, pensamento não atribuí

ve l à intenção de qu em a cria e que

 pro d uz

  efeito

 sobre

 q u e m

a vê sem que  este  a l igue a um objeto determinado. Pensa

t ividade   des ignaria, ass im, um  estado  indeterminado entre

o ativo e o passivo.

  Essa

  indeterminação põe em xeque a

distância que tentei marcar alhures entre duas ideias de

i m a g e m :

  a noção comum de imagem como   duplo  de uma

coisa

  e a imagem concebida como operação de uma arte.

Falar de imagem pensativa, ao contrário, é marcar a existên

c ia de um a zona de indeterminação entre

 esses

 dois tipos de

i m a g e m .

 É falar de uma zona de indeterminação entre pen

samento e não pensamento , entre atividad e e passividade,

mas também entre arte e não arte.

1 3

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pensat ividade da ima gem era  identificada  com u m poder de

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afetar que se subtraía aos cálculos do pensamento e da arte.

Essa

  vi são foi exemplarmente form ulada por Roland

Barthes . Em   L e

 Chambre

 claire  [A câmara  clara]  ,  ele opõe a

força de pensatividade do punctum  ao  aspecto  info rma t ivo

representado pelo

 studium.

  Mas para isso  ele precisa reduzir

o ato fotográfico e o olhar para a foto a um

 processo

  único.

A s s i m ,  e le faz da fotogra fia um tran sporte : t ransporte para

o sujeito observador da qualidade sensível única da coisa o u

do   ser fotografado.

 Para

  d e f inir  assim o ato e o efeito   fo t o

gráficos, precisa fazer três coisas:  deixar de lado a intenção

do   fotógrafo, redu zir o di spos i t ivo técnico a u m

  processo

químico e identificar a relação óptica com uma relação táti l .

A s s i m   se define certa visão do afeto fotográfico: segundo

Barthes, o sujeito que observa deve repud iar todo e   qua l

quer

  saber

  e referência àquilo que na imagem é objeto de

u m   conhecimento, para deixar que se produza o afeto do

transporte. Contrapor imagem e arte não é apenas  negar o

caráter da imagem como objeto de fabricação; é, em última

análise, negar seu caráter de

 coisa

 vista.

 Barthes

  fa la em de

sencadear uma loucura do olhar. Mas essa loucura do olhar

é na verdade seu desapossamento, sua submissão a um

 pro

cesso

 de transporte " tát i l " da qual idade sens ível do  mo t ivo

fotografado.

A   oposição entre punctum  e  studium,  ass im, es tá bem

defin ida no discurso. Mas se em baralha naqu i lo que deveria

confi rmá-lo: na material idade das imagens com as quais

Barthes  tenta exemplificá-lo. A demonstração  baseada nes

ses exemplos é, de fato, surpreendente. Diante da fotografia

de duas crianças com retardo mental fei ta por Lewis Hine

n u m a

  ins t i tuição de N ew

 Jersey,

 Barthes

  declara dispensar

qualquer saber e  cul t ura . D ec ide então ignorar a inserção da

fotog raf ia

 no trabalho de u m fotógrafo em sua invest igação

sobre

  os explorados e os excluídos da

 sociedade

  americana.

Mas não é só isso.

  Para

  validar sua distinção,

 Barthes

  deve

também fazer uma es tranha divisão no próprio âmago da

quilo que l iga a es trutura  visua l

 dessa

 fotogr afia a seu

  m o t i -

* T r ad . br as ., J ú l i o C ast af i o n G u i m ar ãe s , N o v a Fr o nt e i r a , 2011. [ N . d a T . ]

1 6

vo ,  o u  seja,  a desproporção.

  Barthes

  escreve: Quase  não

vejo as cabeças monstruosas e os perfis lastimáveis   (isso  faz

parte do studium);  o que vejo [. . . ] é o detalhe descentraliza

do ,  a imensa gola Dan ton do garoto, o curat ivo no dedo da

m e n i n a . "

24

 Mas aquilo que ele diz ver, na qualidade de

 punc

tum,  pertence à mesma lógica do   studium,  que ele diz não

ver: são características de desproporção: uma gola imensa

para uma criança anã e , para uma menina de cabeça enor

me, um curat ivo tão minúsculo, que o lei tor do   l i v ro  não

d ist inguir ia   sozinho com   base  na reprodução. Se

  Barthes

f ixou

 essa  gola e

 esse

  curativo, sem dúvida é por sua  qua l i

dade de detalhes, ou seja,  de elementos destacáveis.

  Esco-

lheu-os porque correspondem a uma noção bem determi

nada, a noção lacaniana de objeto parcial . Mas aqui não se

trata  de qualquer ob jeto parc ial . Com   base  numa vis ta de

perf i l ,

  é difíci l decidir se a gola do menino é realmente

  a qui

lo   que os camisei ros chamam de gola Danton. Em compen

sação, é indubi tável que Dan ton é nome de uma

 pessoa

  d e

capitada. O

 punctum

  da imagem é, de fato, a morte evocada

pelo nome próprio Danton. A teoria do punctum  pretende

a f i r m a r  a s ingularidade res i s tente da imagem. Mas no f im

acaba por deixar de lado essa especificidade, ao  identificar  a

produção e o efei to da imagem fotográfica com a maneira

como a morte ou os mortos nos toca m.

24 .

 L a  Chambre

  claire,  Édit ions de 1'Étoi le ,  G a l l i m a r d ,  Le Seuil , 1980, p. 82.

1 7

associa

 a foto à imago  latina, à efígie que garantia a prese nça

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A lex a n d er   G ar d ne r ,  Portrait

of Lewis  Payne,  1865.

Esse

  curto-circuito é ainda mais perceptível em outro

exemplo de Barthes, a fotografia de um jovem algemado. Aí

também a distribuição do  studium  e do  punctum  é

 desconcer

tante. Barthes diz o seguinte:  "A  foto é boni ta, o rapaz tam

b é m :

 isso

 é o

 studium.

  M a s o

 punctum

  é:

 ele vai morrer.

  Leio ao

m e s m o t e m p o :

 isto

 será e

 isto foi.

25

  Ora, nada na foto nos diz

que o jovem  v ai   morrer.

 Para

  sermos afetados po r sua morte,

precisamos  saber  que a foto representa L ewis Payne, conde

nado à morte em 1865 pela tentativa de assassinato d o secre

tário de Estado americano. Também é preciso

  saber

  que se

trata

  da

 pr ime ira

 vez em que um fotógrafo, Alexander Gard

ner, foi autorizado a fotografar uma execução capital .

 Para

fazer  coincidir o efeito da foto com o afeto da mor te, Barthes

precisou realizar um  cu rto-circu ito  entre o

 saber

 histórico do

mo t ivo

  representado e a textura material da fotografia. As

cores  pardacentas, de fato, são  cores  de uma fotografia do

passado, de um a fotogra fia sobre a qual se pode g arantir em

1980 que o autor e o   mo t ivo  estão mortos. Barthes, assim,

25 .

  Ibid.,

  pp . 148-50.

1 8

do   morto, a presença do ancestral entre os  vivos.  Reaviva as

s im

  uma antiquíssima polémica sobre a imagem. No século

I  de  nossa  era em Roma, Plínio, o Velho, irritava-se com os

colecionadores que enchiam

  suas

  galerias de estátuas que

não sabiam o.  que representavam, estátuas que

 estava

 a l i em

vir tu de  de sua arte, de sua bela aparência, e não como

 ima

gens

  dos ancestrais. Sua posição era característica daquilo

que chamo de regime ético das imagens.

 Nesse

  regime, um

retrato  ou uma es tátua é sempre uma imagem de alguém e

sua legitimidade provém de sua relação com o homem ou o

deus que representa. O que Barthes opõe à lógica represen

tativa

  do  studium  é essa  antiga função

  i m a g i n a i ,

 essa  função

de efígie, que garante a perma nência d a presença sensível de

u m  indivíduo. No entanto, ele  escreve  n u m m u n d o e n u m

século em que não só as obras de arte, mas também as ima

gens  em geral , são apreciadas por si mesmas, e não como

almas de ancestrais. Portanto, ele precisa transformar a efí

gie do ancestral em

 punctum

  da morte, ou

 seja,

 em afeto

  p r o

duzido   diretamente sobre nós pelo corpo daquele que  esteve

diante

  da objetiva, que já não está lá e cuja fixação sobre a

i m a g e m

  significa o domínio da morte sobre o

  vivo.

Barthes realiza assim um  cu rto-circu ito  entre o passa

do

 d a i m a g e m e a i m a g e m d a m o r t e . O r a , esse

  cur t o -c ircui

to   apaga os traços característicos da fotografia apresentada

po r  ele, que são traços de indeterminação. A singularidade

da fotografia de Lewis Payne, na verdade, decorre de três

formas de indeterminação. A prim eira diz respeito à seu

dispositivo   visua l :  o jovem está sentado segundo uma   d is

posição bem pictórica, l igeiramente inclinado, na fronteira

de uma zona de luz e uma zona de sombra. Mas não pode

m os

  saber

  se a localização foi escolhida pelo fotógrafo e,

caso  a tenha escolhido, se o fez preocupado com a   v i s i b i l i

dade ou por reflexo estético. Tampouco  sabemos  se ele

  s i m

plesmente reg istrou as irregula ridad es e os traços d esenha

dos nas paredes ou se os

  va lo r izo u

  intenc ionalmente. A

segunda indeterminação d iz respei to ao trabalho do tempo .

A   textura da foto traz a marca de um tempo passado. Em

1 9

compensação, o corpo, a roupa, a p ostura e a intens idade do

— -o íct^v-vtxy

W v C » > <*U .

  N

-

  1

  ~ °

pressar

 diante da objetiva. Portanto, estamos diante deles na

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olhar

 do jovem po dem ser s i tuados sem  dificuldade  em nos

so presente, negando a distância  temp oral .  A tercei ra inde

terminação diz respei to à at i tude da personagem. Mesmo

sabendo que ele vai morrer e por quê, é imposs ível ler nesse

olhar as razões de sua tentativa de assassinato  e seus sent i

mentos perante a morte im inente. A pensat ividade da

  fo t o

g raf ia

 pod eria então ser definida como

 esse

  nó entre várias

indeterminações. Poderia ser caracterizada como efeito da

circulação entre o   mo t ivo ,  o fotógrafo e nós , do intenc ional

e do não

  in tencional ,

 do sabido e do não sabido, do

 expresso

e do não expresso, do presente e do passado. Ao contrário

do   que diz Barthes ,  essa  pensat ividade consis te aí na im

possibil idade de criar coincidência entre duas imagens, a

imagem soc ialmente determinada do condenado à morte e

a imagem de um jovem com uma curios idade um tanto ne

gl igente,

 a f ixar um ponto que não vem os.

A   pensatividade da fotografia seria, então, a tensão

entre vários modos de representação. A fotog rafia de L ewis

Payne apresenta-nos três imagens, ou melhor, três funções-

- imagens numa única imagem: há a carac terização de uma

identidade;   há a disposição plástica intencional de um corpo

n u m  espaço; e há os  aspectos que o regi s tro da máquina nos

revela sem que saibamos se foram intencionais. A fotografia

de Lew is Payne não é do domínio da arte , mas permite-nos

compreender outras fotografias que se jam intenc ionalmente

obras de arte ou apresentem simultaneamente caracteriza

ção social e indeterminação estética. Se voltarmos à adoles

cente  de Rineke Dijkstra, compreenderemos por que ela é

representativa do lugar da  fotog raf ia  na arte contemporânea.

Por um lado, ela pertence a uma série que representa

  seres

do   mesmo género:

 adolescentes

 f lut ua nd o  um pouco em seu

próprio corpo, indivíduos representando identidades em

transição, entre idades, condições sociais e modos de  vid a  -

mu itas

 dessas  imagens foram fei tas em ex-países comunis

tas . Mas , por o utro lado, elas  nos impõem presenças brutas,

seres  sobre os quais não  sabemos  o que os levou a posar

diante de uma art i s ta , nem o que pretendem mostrar e ex

i l o

mesma posição em que ficamos diante das pinturas do pas

sado que representam nobres floren tinos ou venezianos que

n ão  sabemos quem eram ne m que pensamento habi tava seu

olhar

  captado pelo  pintor.  Barthes opun ha à semelhança se

g u n d o  as regras do  studium  aquilo que chamei de arquisse-

melhança, presença de u m afeto di reto do corpo. Mas o que

podemos ler na imagem da adolescente polonesa não é nem

u m a

  coisa

  nem o utra. É o que chamarei de semelhança de

sapropriada.

 Essa

  semelhança não nos remete a nen hum ser

real com o qual pudéssemos comparar a imag em. Mas tam

bém não é a presença do ser único de que fala Barthes. E a

presença do ser qualquer, cuja  identidade não tem importân

cia, ser que   fur t a seus  pensamentos ao oferecer seu rosto.

Podemos ser tentados a dizer que  esse  t ipo  de efeito

estético é próprio do retrato, segundo Benjamin o último

refúgio do "valor cul t ua l" .  Em compensação, diz ele , quan

do  o ho me m está ausente, o valor de exposição da fotografia

prevalece decididamente. Mas a distinção entre

  cul t ua l

  e

exposicional que estrutura a análise de Benjamin talvez

 seja

tão problemática quanto a do  studium  e d o punctum  de Bar

thes. Vejamos, por exemplo, uma fotografia feita na época

em que Benjamin escrevia por um fotógrafo que, como ele,

inc luía Atget e  Sander  entre  suas  referências favoritas, ou

seja,  Walk er Evans . É um a foto de um pedaço de parede de

madeira de uma cozinha no Alabama.

  Sabemos

  qu e  essa

foto faz parte do contexto geral de uma   iniciativa  social com

a qual Walk er Evans colaborou por alg um tempo - a grande

pesquisa sobre as condições de vid a  do s camponeses  pobres

que atuavam so^ç on ^a nd j j^ no f i m da década de 1930, da

Farm   Security

 A d m i n i s t r a t io n

  - e do contexto mais preciso

do   l ivro  feito em colaboração com

 James

 A g e e ,  Let US Now

Praise

 Famous Men.  Pertence  agora a um

 corpus

  de fotogra

fias vi s to nos museus como obra autónoma de um art i s ta .

M a s , o l h a n d o a   foto,  percebemos que a tensão entre arte e

reportagem soc ial não decorre s implesmente do trabalho do

tempo que transform a em obras de arte os tes temunhos so

bre a sociedade. A tensão já está no  cerne  da imagem. Por

111

/> W *v «&"»<_ , C TT-VMS

possível

  saber

  se o aparelho simplesmente os registrou de

passagem

 ou se o fotógrafo os enquad rou e

 va lo r izo u cons

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W a lk er   Evans,

  Kitchen

  Wall

in

  Bud Fields

  House,  1936.

I m a g e

  co py r ig h t

  © The

M e t ro p o l i t a n   M u s e u m o f

A r t .  Im ag e so u r c e : Ar t

Resource, N Y .

u m   lado,

 esse

 pedaço de parede feito de tábuas com sarrafos

pregados de través e

  seus

  talheres e utensíl ios de folha de

flandres sustentados por travessas  representa bem o cená

ri o

  de   vid a  miserável dos fazendeiros do Alabama. Mas ,

para mostrar essa  miséria, o fotógrafo precisava realmente

t irar  essa  foto em   pr ime iro  p lano de quatro tábuas e uma

dúzia de

 talheres?

  Os elementos sinaléticos da miséria com

põem ao mesmo tempo certa decoração artística. As tábuas

ret i líneas lem bram os cenários quase  abstratos que na

 mes

ma época eram vistos nas fotografias, sem objetivo social

específico, de Charles  Sheeler e   Ed w a rd  Weston. A   s implic i

dade do sarrafo pregado que

 serve

  para organizar os talhe

res lembra à sua maneira a ideologia dos arqui tetos e  de

signers

  modernistas, apreciadores de materiais simples e

brutos

  e de soluções racionais de organização, que possibi

l i tam   al i jar o   horror  dos bufes burgueses. A disposição dos

objetos de través parece obedecer a uma es tét i ca do ass imé

trico.

  Mas é imposs ível

  saber

  se todos

 esses

  elementos "es

téticos" são efeito dos  acasos  da   vid a  pobre ou se resul tam

do   gos to dos ocupantes do lugar

26

. D o m e s m o m o d o , é i m -

26

  James

  Ag e e , qu e , a l i ás , d e se nv o l v e anál i se s br i l hant e s  sobre  a p r e se nç a o u a

au sê nc i a d e p r e o c u p aç õ e s e s t é t i c as no  habitat  dos pobres, remete-nos aí ao

t e s t e m u nho nu d a

  f o to g r a f ia :

  " D o

  o utr o

  l ad o d a c o z i nha há u m a m e si nha nu a

o n d e  eles  fazem as refeições; e , nas paredes, aquilo que os   senhores  p o d e m

v e r nu m a d as f o t o g r af i as

  deste

  l i v r o . "  Louons  maintenant  les  grands  hommes,

t ra d .

 Jean Q u e v a l , T e r re H u m a i n e Poche, 2003,  p. 194.

112

cientemente, se viu aquela decoração com o índice de u m

m o d o   de   vid a  ou como uma reunião s ingular e quase abs

traía de l inhas e objetos.

N ão   sabemos  o que exatamente Walker Evans   t inha

em mente ao

  t irar

 essa

 foto.

 M as a pensat ividade da foto não

se reduz a essa i gnorânc ia. Pois t a m b é m sabemos que Walk er

Evans  t i n h a  uma ideia precisa

  sobre

  fotografia , uma ideia

sobre

  arte, que, significativamente, não era extraída de um

artista

  visua l ,  mas de um romancis ta por ele admirado,

Flaubert .

 Essa

  ideia é que o artista deve ser invisível em sua

obra, tal como Deus na natureza. Esse  olhar

 sobre

 a d i s p o

s ição es tét ica s ingu lar dos acessórios de um a cozinha pobre

do   Alabama pode lembrar-nos o olhar que Flaubert   atr ibui

a Charles Bovary ao descobrir nas paredes   escamadas  da

fazenda de Rouault a cabeça de  M i n e r v a  desenhada pela

colegial Em ma para seu  p ai .  Mas , sobretudo, na imagem fo

tográfica da cozinha d o Alabam a, ass im como na descrição

l iterária da cozinha n orma nda,

 existe

  a mesma relação entre

a qualidade estética do

  mo t ivo

  e o trabalho de impessoal i -

zação da arte. Não nos deve enganar a expressão "qualidade

estét i ca" . N ão se trata de subl imar um   mo t ivo  banal por

meio do trabalho de es t i lo ou de enquadramento. O que

Flaubert e Evans fazem não é uma adjunção artística ao ba

na l .  Ao contrário, é uma supressão: o que o banal adquire

neles  é certa indiferença. A neutralidade da

 frase

  ou do en

quadramen to cria uma flutuação nas propriedades de

  id e n

ti ficação social . Essa  flutuação criada é, assim, resultado de

u m   trabalho da arte para tornar-se invisível . O trabalho

da imagem prende a banalidade social na impessoalidade da

arte, retira-lhe o que faz dela a simples expressão de uma

si tuação o u de u m caráter determ inado.

Para

 compreender a "pensat ividad e" que es tá em jogo

nessa  relação entre banal e impessoal, vale a pena dar mais

u m

  passo

  atrás no caminho que nos leva da

 adolescente

  de

Rinek e Di jk s tra à cozinha de Walk er Evans e da cozinha

de Walk er Evans à de Flaubert. Esse passo  nos leva àquelas

113

pinturas   de pequenos m endigos sevi lhanos feitas por M u

ri l lo  e conservadas na Galeria Real de

  M u n i q u e .

  D e t e n h o -

passou para um movimento imóvel , semelhante à radical

r

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-m e

  nelas

  em razão de um comentário s ingular que Hegel

lhes dedicou em seu   Curso de estética.  Ele fala incidentemen

te sobre  elas  no desenvolvimento de um texto dedicado à

pint ura

  de género flamenga e holandesa, no qual se empe

nha em inverter a clássica avaliação do valor dos géneros de

pint ura em função da  d ig nidade  de

 seus

 mot ivos. M a s H e g e l

não se

  l imi ta

  a dizer que todos os motivos são igualmente

apropriados

  à  p int ura . Estabelece  uma relação estreita entre

a   vir t ud e  dos quadros de  M u r i l l o  e a atividade daqueles pe

quenos mendigos, que consiste precisamente em não fazer

nada, em não se preocupar com nada. Há neles, segundo

nos diz, total  despreocupação com o exterior, uma l iberdade

interior  no exterior que é exatamente aquilo que o conceito

de ideal artístico reivindica. Eles  d e m o n s t r a m u m a b e m -

-aventurança  quase  semelhante à dos deuses ol ímpicos

27

.

Para

  fazer

 esse

  comentário, Hegel já precisa ter como

evidente que a   vir t ud e  essencial  do s  deuses  é não fazer

nada, não se preocupar com nada e não querer nada. Preci

sa ter como evidente que a suprema   beleza  é a beleza  que

expressa essa  indiferença. Essas c renças não são óbvias . Ou

melhor ,  só se tornam óbvias em função de uma   rupt ura  já

efetuada na economia da expressividade, bem como na re

flexão sobre a arte e o  d ivino. A

 beleza

 "ol ímpica" que Hege l

atr ib u i  aos pequenos mendigos é a

 beleza

  do

 A p o l o

  do Bel

vedere que sessenta anos antes  fora celebrada por  W i n c k e l

m a n n ,  a  beleza  da divindad e despreocupada. A im agem

pensat iva é a imag em de uma suspensão de  atividade,

  a qui

lo   qu e W i n c k e l m a n n ,  por outro lado, ilustrava  na análise do

Torso

  do Belvedere: para ele, aquele torso era de um Hércu

les em repouso, um Hércules a pensar serenam ente em seus

feitos passados,  mas cujo pensamento se expressava por

  i n

teiro   nas pregas do dorso e do ventre, cujos músculos fluíam

uns para os outros como

  vagas

  que se elevam e caem. A

atividade  tornou-se pensamento, mas o próprio pensamento

27. He g e l ,  Cours d'esthétique,

  t ra d .

  fr .

  Jean-Pierre

  L e f e bv r e e V e r ó ni c a v o n

Schenck,  Aubier, 1995, t . 1, p. 228.

114

indiferença das vagas do mar.

O   que se manifesta na serenidade do  Torso ou dos pe

quenos men digos , o que confere  vir t ud e  pictórica à fotogra

fi a  da cozinha do Alabama ou da adolescente polonesa é

u m a  mudan ça .de estatuto nas relações entre pensam ento,

arte , ação e ima gem . É essa mudança que marca a

 passagem

de um regime representat ivo da expressão a um regim e es

tético. A lógica representativa dava à imagem o estatuto de

complemento expressivo. O pensamento da obra -  seja  ela

verbal  ou vi sual - real izava-se na forma de "hi s tória" , ou

seja,  de composição de uma ação. A imagem dest inava-se

então a intensificar a força

  dessa

  ação.

  Essa

  intensificação

t i n h a  duas grandes formas: por um lado, a dos traços de

expressão di reta, que tradu zem na expressão dos ros tos e na

atitude

  dos corpos os pensamentos e os sentimentos que

a n i m a m   as personagens e determinam suas  ações ; por ou

tr o  l ado, a das f iguras poét icas que põem um a expressão no

lu g ar

 de outra. Nessa  tradição, a imagem era, portanto, duas

coisas:  representação direta de um pensamento ou de um

sentimento; e  f igura  poét ica que subs t i tui um a expressão

po r  outra para aumentar sua força. Mas a

  f igura

  podia de

sempenhar  esse  papel porque exis t ia uma relação de com

patibilidade   entre o termo "próprio" e o termo   " f igura d o " ,

po r  exemplo entre águia e majestade ou entre leão e cora

gem. A presentação direta e des locamento  f igu r ai  eram as

s im   uni f i cados sob um mesmo regime de semelhança. E

essa  homogeneidade entre as di ferentes semelhanças que

define propriame nte a mimese c láss ica.

É em relação a

  esse

  regime homogéneo que ganha

sentido aqui lo que chamei de sem elhança desapropriada. É

frequente  descrever-se  a

  rupt ura

  es tét i ca moderna como

passagem  do regime da representação a um regime de pre

sença ou apresentação.

  Essa

  vi são deu ensejo  a duas gran

des vi sões da modernidade art í s t i ca : há o modelo fel i z de

autonomia da arte em que a ideia artística se traduz em

  for

mas materiai s , com um   cu rto-circu ito  na mediação da ima

gem; e há o m odelo trágico do "sub l ime" em que a presença

115

sensível manifesta, ao contrário, a ausência de qualquer re

no exato mom ento em que a narrat iva chega a o   f i m ,  a " p e n

sat iv idade"

  vem negar  esse  f im ; vem suspender a lógica

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lação comensurável entre ideia e materialidade sensível .

O r a ,  nossos

  exemplos poss ib i l i tam conceber  uma terceira

maneira de pensar a  rupt ura  estética: esta  não é a supressão

da imagem na presença di reta, mas sua emancipação em

relação à lógica u nif icadora  da ação; não é a   rupt ura  da rela

ção entre inteligível e sensível , mas um novo estatuto da   i -

g u ra .

  Em sua acepção clássica, a

 f igura

 cojnjungia dois

  s i g n i

ficados: era uma presença sensível e era uma operação de

des locamento que punh a uma expressão no lugar de  outra.

Ma s, no regime es tét i co, a

 f igura

 j á não é s implesmente um a

expressão que vem para o lugar de  outra.  São dois regimes

de expressão que se encontram entrelaçados sem relação

d e f inid a .

  É isso  que a descrição de Winck elmann emblema-

t iza :

  o pensamento es tá nos músculos , que são como

 vagas

de pedra; mas não há nenhuma relação de expressão entre

o pensamento e o movim ento das vagas . O pensamento

passou para alguma coisa  que não se lhe assemelha por ne

n h u m a

  analogia

  d e f inid a .

 E a at ividade orientada dos mús

culos passou para seu contrário: a repetição   ind e f inid a ,  pas

s iva, do movimento.

A   pa r t ir  daí é possível

 pensar

 pos i t ivamente a

 pensa

t ividade

  da imag em. Ela não é a aura ou o

 punctum

  do apa

rec imento único. Mas também não é s implesmente   nossa

ignorância do pensamento do autor ou a resistência da

  i m a

g e m à

  nossa

  interpretação. A pensat ividade da imagem é

pro d ut o

  desse  novo es tatuto da

  f igura

  que conjunge dois

regimes de expressão sem os homogeneizar.

 Para

  compreen

dê-lo, voltemos à

  l iteratura,

  a

  pr ime ira

  qu e

  t o rno u

  explícita

essa  função da pensatividade. Em S/Z, Roland

 Barthes

  co

mentava a úl t ima

 frase

  de

 Sarrasine

  de

 Balzac:

 " A

 marquesa

ficou  pensat iva. " O adjet ivo "pensat iva" chamava com razão

a sua atenção: parece des ignar um

 estado

 de espírito da per

sonagem. M as , no lugar onde é posto por

 Balzac,

 na real ida

de faz exatamente outra coisa.  Real iza u m des locamento do

estatuto do texto. Isto porque estamos n o   f i m  d e u m a n a r r a

t iva :  o

 segredo

 da história foi revelado, e essa  revelação pôs

f im   às esperanças do narrador em relação à marquesa. Ora ,

116

narrativa   em favor de uma lógica expressiva   indeterminada.

Barthes

 v ia  nessa  "pensat ividad e" a marca do "texto c láss i

co" , uma maneira como  esse  texto significava que ainda   t i -

nha sentidos-de reserva, ainda um

 excedente

  de   plenitude.

Acredito  ser possível fazer uma análise totalmente diferente

e ver

 nessa

  "pensatividade", ao contrário de Barthes, uma

marca do texto moderno, ou seja,  do regime estético da ex

pressão.  A  p e n sati vi d ad e ve m real me n te co n trari ar a l ó g i ca

d a ação . P o r u m l ad o , p ro l o n g a a ação qu e estava p aran d o .

M a s , p o r o u t r o , s u s p e n d e q u a l q u e r c o n c l u sã o ;   O q ue s e in

terrompe é a relação entre narração e expressão. A história

fica

  b loqueada num quadro. Mas

  esse

  quadro marca uma

inversão da função da imagem. A lógica da vi sual idade já

não vem suplementar a ação. Vem suspendê-la , ou melhor,

substituí-la.

É  isso  o que   outro  romancista, Flaubert, pode fazer-

-nos compreender. Cada um dos momentos amorosos que

p o n t u a m  Madame  Bovary  é marcado por um quadro, por

u m a

 pequena  cena

 visua l :

 um a gota de neve  fund id a  caindo

sobre

 a s o m b r i n h a d e E m m a , u m i n se t o

 sobre

 um a folha de

nenúfar, gotas  de água ao sol , nuvem de poeira de uma di

l igência. São

 esses

 quadros ,

 essas

  impressões fugazes e pas

sivas que desencadeiam os acontecimentos amorosos. E

como se a

  p int ura  viesse

  tomar o lugar do encadeamento

narrativo   do texto. Esses  quadros não são simples cenários

da   cena  amorosa; também não s im bol iza m o sentimento

amoroso: não há nenhuma analogia entre um inseto

  sobre

u m a  folha e o nasc imento de um amor. Portanto, não são

complementos de express ividade trazidos à narração. A n

tes, trata-se de uma troca de papéis entre a descrição e a

narração, entre a

  p int ura

  e a

  l iteratura.

  O

  processo

  d e i m -

pessoalização pode ser aí

 formu lado

  como a invasão da ação

literária pela passividade pictórica. Em termos deleuzianos,

seria possível falar em heterogênese. O

  visua l

  suscitado pela

frase

 j á não é u m complemento de express ividade. Tam pou

co é simples suspensão, como a pensatividade da marquesa

117

de

 Balzac.

  É o elemento da construção de outra

 cadeia

  n a r

ra t iva :

  um encadeamento de microeventos sens ívei s que

ou

  espirais abstraías

  sobre

  um território. Seu

  f i lme

 Roads  of

Kiarostami  o r g a n i z a u m a passagem  notável entre

 esses

 dois

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v e m   sub st i tui r o encadeamento c láss ico das  causas  e dos

efeitos, dos fins projetados, de

 suas

  real izações e

 suas

  c o n

sequências . O romance constrói -se então como a relação

sem relação entre duas cadeias  fac tuais : a cadeia d a n a r r a

t iva   orientada do começo para o

  f i m ,

  com nó e desfecho, e

a

  cadeia

  dos microeventos que não

  obedece

  a

 essa

  lógica

orientada, mas se di spersa de maneira aleatória sem co

meço ne m fi m , sem relação entre

  causa

  e efeito.  Sabe-se

que Flaubert foi representado ao mesm o tem po como papa

do   natural i smo e decantador da arte pela arte . Mas

  n a t u

r a l i s m o

  e arte pela arte são apenas  maneiras uni laterai s de

des ignar uma única e mesma   coisa,  a  saber,  o entrelaça

mento de duas lógicas que é como a presença de uma arte

na   outra.

Se vol tarmos à fotografia de Walk er Evans , podere

mos compreender a referência do fotógrafo ao romancista.

Essa

  fotografia não é nem o regi s tro

 brut o

 de um fato social ,

nem a composição de um   esteta  que faça arte pela arte à

custa dos pobres camponeses  cuja miséria ele deve mostrar.

Marca a contaminação de duas artes, de duas maneiras de

"mostrar" : o excesso  literário, o excesso  daqui lo que as p a

lavras projetam

 sobre

  aqui lo que des ignam vem habi tar a

fotog raf ia de W alk er Evans , ass im como o m uti sm o pic tóri

co habitava a narração l i terária de Flaubert. O poder de

transformação do bana l em impessoal , for jado pela  l iteratu

ra ,  sulca a  pa r t ir  d o   interior  a aparente evidência, a aparente

imediatez da

  foto.

  A pensat ividade da imagem é então a

presença latente de um reg ime de expressão em

  outro.

  U m

b o m

  exemplo contemporâneo

 dessa

  pensatividade pode ser

dado pelo trabalho de Abbas   K i a r o s t a m i entre c inema,

  fo t o

g raf ia

  e poesia.  Sabe-se  da importância que as

  estradas

  têm

em  seus f i lmes. Sabe-se  também que ele lhes   dedicou  várias

séries fotográficas. Essas imagens são, exemplarmente,

  i m a

gens  pensativas pela maneira como conjung em dois modos

de representação: a es trada é um tra jeto orientado de um

p onto

  a

 o ut ro

  e é, inversamente, um

 puro

  traçado de l inhas

118

t ip os  de estrada. A câmara de início

  parece

  percorrer as fo

tografias do art i s ta . Como   f i l m a  em preto e branco fotogra

fias coloridas, ela acusa  seu caráter gráfico, abstraio; trans

f o r m a  as

  paisagens

  fotografadas em

  desenhos

  ou mesmo

em cal igrafias . Mas a certa al tura o papel da câmara se in

verte.

  E la

  parece

  tornar-se um instrumento cortanie que

rasga aquelas

  superfícies

 semelhantes

  a folhas de desenho,

devolvendo   aqueles

  grafi smos à paisagem da   qu al

  t i n h a m

sido

  abstraídos . Ass im, f i lme,  fotogra fia , desenho, cal igrafia

e p o e m a v ê m m i s t u r a r seus  poderes e intercambiar

  suas

singularidades. Já não é simplesmente a

  l iteratura

 q ue

 cons-

í rói seu tornar-se-piníura imaginário, nem a fotografia que

evoca

  a metamorfose l i terária do banal. São os regimes de

expressão que se entrecruzam e criam combinações s ingu

lares de trocas, fusões e afastamentos.  Essas  combinações

cr iam   formas de pensat ividade da imagem que refutam a

oposição entre o studium  e o  punctum,  entre a operativida de

da arte e a imediatez da imagem. A pensat ividade da

  i m a

gem não é então privilégio do si lêncio fotográfico ou pictó

rico.  O próprio si lêncio é certo í ipo de   f igura l id a d e ,  certa

tensão entre regimes de expressão que é íambém um jogo

de trocas entre os poderes de mídias diferentes.

Essa  tensão pode então caracterizar modos de   p r o d u

ção de imagens cuja   artificialidade

  parece,  a priori,

  vedar a

pensatividade da frase, do quadro ou da   foto. Penso aqu i  na

imagem de vídeo. N a época do desenvolvimento da arte do

vídeo, na década de 1980, alguns artisías pensaram a técni

ca nova como meio de uma aríe desembaraçada de ioda e

qualquer submissão passiva ao espetáculo do visível . De

fato, a matéria  v i s u a l  já não era  pro d uzid a  pela impressão de

u m   espetáculo

  sobre

  uma película sensível , mas pela ação

de um sinal eletrônico. A arte do vídeo devia ser a arte de

formas visíveis engendradas diretamente pelo cálculo de

u m  pensamento art í s íi co, di spondo de uma matéria  i n f i n i -

tamente m aleável. Ass im, a imag em de vídeo já não era re

a l m e n te u m a i m a g e m . C o m o  d iz ia u m d o s defensores dessa

119

arte : "Es tri tamente, não  existe  nenhum instante no tempo

du rante

  o

  qua l

  se

  possa

  dizer que a imagem de vídeo exi s

pincel  d e u m  pintor:  um a personagem a usar um boné, uma

espécie de criatura mitológica que

  aparece

  no topo de um

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t e . "

28

  Em suma, a imagem de vídeo parec ia destruir o que

era pecul iar na image m, ou seja,  sua parcela de passividade

resistente ao cálculo técnico dos fins e dos meios e à   leitura

adequada dos significados no espetáculo do visível .

 Parecia

destru ir o poder de suspensão pecul iar à imag em. N isso al

g u n s   v i a m   o meio de uma arte inteiramente senhora de seu

materia l

  e de

 seus

  meios; outros, ao contrário,

  v i a m

  a perda

da pensatividade cinematográfica. Em seu   l ivro  L e  Champ

aveugle  [O campo cego],  Pascal  Bonitzer denunciava  essa

superfície maleável em perpétua metamorfose. O que desa

parecia eram os

  cortes

  organizadores da imagem: o quadro

cinematográfico, a unidade do plano, os

  cortes

  entre o den

tr o e o fo ra, o antes  e o depois, o campo e o fora de campo , o

próximo e o distante. Portanto, era também toda a economia

afetiva l igada a  esses

  cortes

  qu e

  desaparecia.

  O cinema,

como a   l iteratura,

  vivia

  da tensão entre uma temporal idade

do   encadeamento e uma tempora lidade do corte. O vídeo

fazia

 desaparecer

 essa

 tensão em

 proveito

  de uma circulação

in f in i ta  das metamorfoses da matéria dócil .

O r a , ocorreu com a arte do vídeo o mesmo que com a

fotog raf ia .  Sua evolução desm entiu o di lema entre antiarte

ou

  arte radicalmente nova. A imagem de vídeo também

soube

 conquis tar o lugar de um a heterogênese, de uma ten

são entre diversos regimes de expressão. É o que nos leva a

compreender uma obra característica dessa época. The Art of

Memory,

  de Woo dy Vasulk a, realizada em 1987, é obra de

u m   artista que se

 concebia

  então como escul tor a manip ular

a argi la da imagem. N o entanto, aquela escul tura da   i m a

gem cria uma forma inédi ta de pensat ividade. A homoge

neidade do ma terial e do tratamento videográfico

 presta-se

a várias di ferenciações . Por um lado, temos um a mistu ra de

dois   t ipos de imag em: há imagens que podem ser cons ide

radas analógicas, não no sentido técnico, mas no sentido de

apresentarem

  paisagens

  e

 personagens

  do modo como es

tas poderiam

 aparecer

  na abertura de uma objetiva ou sob o

28 . H o l l i s  F r a m p t o n ,

 UÉcliptiquc du

 savoir,  C e nt r e

 Georges

 P o m p i d o u ,

  1999, p. 92.

12

rochedo, um cenário de deserto  cujas cores  foram trucadas

eletronicamente, mas que nem por

 isso

  deixa de apresentar-

-se como o análogo de uma paisagem real . Ao lado disso, há

toda

  uma série de formas metamórficas dadas expl ic i ta

mente como artefatos, como produções do cálculo e da má

qu ina.

 Pela

  forma , mostram-se como escul turas m oles ; pela

textura,

  como

 seres

  feitos de puras vibrações luminosas. São

como

 vagas

  e letrônicas , puros comprimentos de ondas sem

correspondência com nenhuma forma

  na t ura l

  e sem ne

n h u m a  função expressiva. Ora, essas

 vagas

  eletrônicas so

f re m

  duas metamorfoses que as convertem no teatro de

u m a  pensatividade inédita. Em  pr ime iro  lugar, a form a mole

se

 estende

  numa tela, no meio da paisagem desértica. Nessa

tela, vemos projetar-se imagens características da memória

de um século: o cogumelo da bomba de

  H i r o s h i m a

  ou os

episódios da g uerra  civi l  espanhola. Mas a forma-tela , com

os meios de tratam ento do vídeo, sofre outra metamorfose.

Torna-se

 o c a m i n h o m o n t a n h o s o p o r o n d e

 passam

  os com

batentes,  o ^enotá fio dos soldados m ortos ou u ma rotat iva

de imprensa da

  qua l saem

  retratos de  D u r r u t i .  A forma ele-

trônica torna-se ass im um teatro da mem ória.

 Torna-se

 u m a

máquina de transformar o representado em representante,

o suporte em

  mo t ivo ,

 o d o c u m e n t o e m m o n u m e n t o .

Mas , ao realizar essas operações , essa form a se

 recusa

a reduzir-se à pura expansão da matéria metamórfica. M es

m o  quando se torna suporte ou teatro de ação, continua a

fu ncionar

  como tela, em   seus  dois sentidos. A tela é uma

superfície de manifestação, mas também uma superfície

opaca

  que impede as identif i cações . Ass im, a forma eletrô-

nica

  separa

  as imagens cinzentas do arquivo das imagens

coloridas da paisagem de western.  Portanto,

 separa

  dois re

g imes de imagens analógicas . Ao separá-los ,  divide  sua

própria hom ogeneidade.  Descarta  a pretensão a uma arte

em que o cálculo artístico se traduz exatamente na matéria

vis ível . A pensat ividade da imagem é  essa  distância entre

duas presenças : as formas abstraías engendradas pelo pi n-

121

cel e letrônico criam u m espaço menta l em que as imagens e

os  sons  da Alemanha nazis ta , da guerra   civi l  espanhola ou

matográfica. É o que Godard chama de fraternidade das

metáforas : a poss ib i l idade de uma at i tude desenhada pelo

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da explosão de   H i r o s h i m a

  recebem

 a form a visual que cor

responde àquilo que elas são para nós : imagens de arquivos ,

objetos  de  saber  e memória, mas também obsessões , pesa

delos ou saudades . Vasu lk a cria um espaço m emo rial cere

bral

  e, alojando nele as imagens das guerras e dos horrores

do

  século,

  descarta

  os

  debates

 sobre

  o irrepresentável

  m o t i

vados pela desconfiança em relação ao real ismo da ima gem

e seus  poderes emocionais. Mas, inversamente, os aconteci

mentos do século

  pr iva m

  o vídeo do sonho da ideia a en

gendrar sua própria matéria . Impõem -lhe as formas v i suais

que são

 aquelas

  nas quais se conservam e const i tuem uma

memó ria colet iva: f ilmes , te las ,  l ivros,  cartazes  o u

  m o n u

mentos . A pensat ividade da imagem é então  essa  relação

entre duas operações que põe fora de si  mesmos  a forma

p u ra  demais ou o acontecimento carregado demais de

  reali

dade. Por um lado, a forma  dessa  relação é determinada

pelo

 art i s ta . Ma s , por outro,  é só o espectador que pode f ixar

a medida da relação, é só o seu olhar que confere realidade

ao equi l íbrio entre as metamorfoses da "matéria" informá

tica e a encenação da história de um século.

E tentador comparar essa forma de pensat ividade com

a que é posta em jog o por outro mon ume nto edi fi cado pelo

vídeo para a história do século XX,   Histoires du

  cinema

  de

G o d a r d .

  Este

  ú l t imo sem dúvida trabalha de maneira to

talmente di ferente de Vasulk a. N ão constrói nenhuma má

qu ina  de memória. Cria uma superfície na qual todas as

imagens podem des l izar umas

  sobre

  as outras . Define a

pensatividade das imagens com dois traços

  essenciais.

  Por

u m

  l ado,

 cada

  u m a g a n h a

  ares

  d e u m a f o r m a , u m a

  a t i t u

de, um

  gesto

  parado. Cada um  desses  gestos  contém, de

alguma m aneira, o poder que Balzac atr ibuía à sua mar que

sa - o de condensar uma his tória num quadro - , mas tam

bém o de pôr outra hi s tória a caminho. Cada um  desses

ins tantâneos pode então ser

  destacado

  de seu suporte par

t icular,

  deslizar

 sobre

 o u t r o o u

 acoplar-se

  co m

  o ut ro :

  o

  pla

n o

  de c inema com o quadro, a foto ou a atual idade c ine-

122

lápis de Goya associar-se  com o desenho de um plano c ine

matográfico ou com a forma de um corpo supl ic iado nos

campos de concentração nazistas, captado pela objetiva fo

tográfica; a possibil idade de escrever  de múltiplos modos a

história do século, em   vir t ud e  dos dois poderes de

  cada

imagem: o de condensar uma

  multiplicidade

  de

 gestos

  s ig

nificativos

  de um tempo e o de

  associar-se

  com todas as

imagens dotadas do mesmo poder. Ass im , no f i m do

  pr i

meiro   episódio das  Histórias,  o jovem da Cena  de  banho  de

Asnières   de  Seurat  ou os  passeantes  de  Tarde d e domingo n a

Grande Jatte

  tornam-se f iguras da França de maio de 1940, a

França do Front Popular e das férias pagas,  apunhalada por

u m a

 A l e m a n h a n a z i st a s i m b o l i z a d a po r u m a devassa  po l i

cial  extraída de  O Vampiro de Dusseldorf de  Fri tz Lang, após

o que vemos b l indados , extraídos de atual idades c inem ato

gráficas, enfiar-se nas

  paisagens

  impress ionis tas , enquanto

alguns planos extraídos de f i lmes -

  A Morte de Siegfried,  O

Testamento

 do

  Doutor Mabuse,

  Ser ou não ser

  - vêm mostrar

que as imagens do c inema já t inh am desenhado as formas

daqu ilo  que, com a guerra e os campos de extermínio, se

tornaria  imagens de atual idade c inematográfica. N ão  volta

re i  à anál i se dos procedimentos de Godard

29

. O que me in

teressa  aqui é a maneira como ele põe em prática o trabalho

da

  f igura

  em três níveis. Em

  pr ime iro

  lugar, ele radicaliza a

f o r m a  de  f ig u ral idade  qu e

  consiste

  em entrelaçar duas lógi

cas de encadeamento:

  cada

 e lemento é art i culado a

 cada

 u m

dos outros segundo duas lógicas, a do encadeamento narra

tivo

  e a da m etaforização

  in f in i ta .

 N u m s e g u n d o n ív e l, a

  i -

g u ral idade  é o modo como várias

  artes

  e várias mídias in

tercambiam

  seus

  poderes. Mas, num terceiro nível , é o

m o d o

  como uma arte

  serve

 para const i tui r o imaginário de

outra.  G odar d quer fazer com as imagens do c inema aqui lo

que o próprio cinema não fez, porque   t r a iu  sua vocação ao

29. T o m o a l i be r d ad e d e r e m e t e r , a p r o p ó si t o , às anál i se s qu e ap r e se nt e i e m  Fable

cinématographique,   P ar i s , Se u i l , 2001, e  Le Destin des  images,  P ar i s , L a Fabr i

qu e , 2003.

123

sacrificar a fraternidade das m etáforas ao  comércio das his

tórias. Ao desligar as metáforas  das  histórias para com elas

outras, de assumir seu papel e de  criar assim figuras novas,

redespertando poss ib i l idades sens ívei s que ha viam

 esgota

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fazer outra "hi s tória" , Godard  faz esse  c inema que não foi .

M as  o faz co m  os  meios  da m o n t a g e m de  vídeo. Constrói ,

na tela  de vídeo, com os  meios  do vídeo,  um  c inema que

j amais

  existiu.

Essa

  relação de uma arte consigo  mesma  pela media

ção de outra pode fornecer uma conclusão provisória

 a

 esta

reflexão. Tentei dar alg um conteúdo a essa noção de pensa

t ivid a d e

 que na  imagem des igna algo  que

 resiste

 ao p e n

samento,  ao pensamento daquele que a p r o d u z i u e daquele

que procura identi f i cá-lo. Ao explorar algumas formas

 des

sa resistência, quis mostrar que

 ela

 nã o

 é

 uma propriedade

const i tu t iva  da natureza  de certas  imagens ,  mas  u m j o g o

de separações entre várias funções-imagens

  presentes

 na

mesma  superfície.

 Entende-se

  então po r que o  mesmo jogo

de separações  apresenta-se  t a n t o na  arte quanto fora dela,

e como  as  operações art í s t i cas podem construir essas  for

mas de pensat ividade

 pelas

  quais a arte

 escapa

 a si mesma.

Esse

  problema

 não é

  n o v o . K a n t

  já

  apontava

  a

  separação

entre  a form a art í s t ica,  a  forma determinad a pela intenção

da arte, e a  forma estética, aquela que é  percebida sem con

ceito  e  rechaça qualquer ideia  de  f inal idade intenc ional .

K a n t

  chamava de ideias estéticas as  invenções da arte

 capa

zes de estabelecer a junção entre duas "form as" , que é

  t a m

bém um sal to entre dois regimes  de  apresentação sensível .

Tentei pensar  essa  arte  das  " ideias es tét i cas" ampl iando o

conceito  de f igura ,  para fazê-la s igni f i car não mais  a

 subs

ti tuição  de  u m t e r m o p o r   outro, mas o  entrelaçamento de

vários regimes  de expressão  e do t rabalho de várias

  artes

e várias mídias . Inúmeros comentadores quiseram ver

 nas

novas mídias eletrônicas e informáticas  o f im da al teridade

das imagens , quando não

 o

  f im das invenções da arte . M as

o computador, o s intet izador e as  tecnologias novas em seu

conjunto não s igni f i caram o f i m d a i m a g e m e  da arte tanto

quanto  a  fotografia ou o  c inema em seu t e m p o . A arte da

era estética  não  deixou de se  valer  da  poss ib i lidade que

cada

  mídia podia oferecer de m i s t u r a r seus  efeitos aos das

24

do . A s técnicas e os  suportes novos oferecem possibil idades

inéditas a essas  metamorfoses .  A  imagem não deixará tão

cedo

 de ser  pensativa.

25

Origem  d o s t e x t o s

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Os textos aqui reunidos representam a última versão

de conferências cujas  versões anteriores foram apresentadas

em francês ou em inglês , depois de vários remanejamen-

tos, em diversas instituições universitárias, artísticas e

  c u l

turais   nos últimos quatro anos.

Agradeço pela contribuição para este

  l ivro

  a todas as

pessoas que me convidaram e acolheram, d iscutindo as di

versas

  versões  desses  textos nas seguintes instituições:

Q u i n t a A cademia Interna c ional de Verão em   F r a n k f u r t - a m -

- M a i n (2004); SESC Belenzinho em São Paulo (2005);

 Esco

la

  de Belas-Artes de

 L yo n (2005),

 C A P C d e B o rd e a ux

  (2005);

Fest ival Home Work s em Beyrouth (2005);  Inst i t ut o

  C u l t u

ra l  Francês de Estocolmo  (2006);  Segunda Bienal de

 A r t e

  de

M o s c o u  (2006);  Univers idade Internac ional Menendes Pe

layo

  de Cuenca

  (2006);

  Fundação Serralves de Porto

  (2007);

Hochschule der Kunste de

  Zur ique  (2007);

  palácio Bozar de

Bruxelas  (2007);  Pacific

  N o r t h

  College of   A r t s  de Port land

(2008);

  M u m o k

  em Viena (2008).

Sódertõrn U n i v e r s it y Col lege  (2006); U nivers idade de

Trondheim   em Paris  (2006);  Univers idade de Copenhague

(2007);  W i l l i a m s  College em   W i l l i a m s t o w n  (2007);  D a r t -

m o u t h  Col lege  (2007);  Univers idade Europeia de São-Pe-

127

J_SPTPA>

tersburgo  (2007);  Centro Eik ones da Univers idade de  Basi

leia (2007); U nive rs i ty of Califórnia,  I rvine  (2008);  Unive rs i t y

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of

  Brit ish

  Columbia, Vancouver  (2008);

  U n i v e rs i t y

  of

  Ca l i

fórnia, Berkeley  (2008).

" O   espectador emancipado " fo i publ icado em sua sua

versão  o r ig ina l  inglesa no  Art Fórum,  XLV, n°. 7,  março de

2007.

U m a

 versão inglesa das "Desventuras do pensam ento

crítico" foi publicada em

  Aporia,

  Dartmouth

  Undergraduate

Journal  of Philosophy, outono de 2007.

Por f im, a reflexão

  sobre

  a imagem pensat iva deve

muit o  ao seminário real izado em   2005-2006  no museu do

Jeu de Paume.

128

Arte e i lusão

Curso de

 eséc

2 vols.)

O devir das artes

A educação pela pintura

A fotograf ia como arte

 conemporâne

Hermenêut ica da obra de arte

O mundo do graf i te

Para o ator

Teimosia da imaginação