espectador emancipado - rancière

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O E S P E C T A D E M A N C I P A D O JACQUES RANCIÈRE

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Page 1: Espectador emancipado - Rancière

O E S P E C T A D

E M A N C I P A D O

J A C Q U E S R A N C I È R E

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O ESPECTADOR EMANCIPADO JACQUES RANGIERE

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T R A D U Ç Ã O 0 E S P E C T A D O R E M A N C I P A D O • 5

José A S D E S V E N T U R A S DO P E N S A M E N T O CRITICO • 37

Miranda O S P A R A D O X O S DA A R T E POLÍT ICA • 75 Justo

A I M A G E M I N T O L E R Á V E L - 1 2 3

A I M A G E M PENSATIVA - 1 5 5

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O B R A P U B L I C A D A C O M O S S E G U I N T E S A P O I O S

Cent ro N a c i o n a l do Livro - M I N I S T É R I O D A C U L T U R A F R A N C E S

P r o g r a m a M i g u e l T o r g a - C U L T U R E S F R A N C E / M I N I S T É R I O F R A N C E S

D O S N E G O C I O S E S T R A N G E I R O S

O U V R A G E P U B L I É A V E C L E S S O U T I E N S S U I V A N T S

Cent re N a t i o n a l du l ivre - M I N I S T È R E F R A N Ç A I S C H A R G É D E L A C U L T U R E

P r o g r a m m e M i g u e l T o r g a - C U L T U R E S F R A N C E / M I N I S T È R E F R A N Ç A I S

D E S A F F A I R E S É T R A N G È R E S

T Í T U L O O R I G I N A L

Le spec t a t eu r é m a n c i p é

A U T O R

J a c q u e s R a n c i è r e

T R A D U Ç Ã O

J o s é M i r a n d a Jus to

R E V I S Ã O

L. B a p t i s t a Coe lho

C O N C E P Ç Ã O G R Á F I C A

A l f a i a t a r i a | www.alfaiataria.org

C O N T R A C A P A

I l u s t r a ç ã o de A n d r é L e m o s | www.opuntia-books.blogspot .com

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I M P R E S S Ã O

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C O P Y R I G H T

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© 2 0 1 0 Orfeu Negro

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v m w . o r f e u n e g r o . o r g | i n f o @ o r f e u n e g r o . o r g

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Este livro teve origem num convite que me foi dirigido há alguns anos para, a partir das ideias desenvolvidas no meu livro 0 Mestre Ignorante, introduzir a reflexão de uma academia de artistas dedicada ao espectador. A proposta começou por suscitar-me alguma perple­xidade. O Mestre Ignorante expunha a teoria excêntrica e 0 destino singular de Joseph Jacotot, que fizera escân­dalo no início do século x ix ao afirmar que um igno¬ rante podia ensinar a outro ignorante aquilo que ele próprio não sabia, ao proclamar a igualdade das inteli­gências e ao opor a emancipação intelectual à instrução do povo. As ideias de Jacotot haviam caído no esqueci¬ mento desde meados do século x ix . Pareceu-me ade­quado fazer revivê-las na década de 8o do século xx para fazer emergir o terreno sólido da igualdade inte¬ lectual no meio do pântano dos debates sobre as fina¬ lidades da Escola Pública. Mas que uso fazer, no seio da reflexão artística contemporânea, do pensamento de um homem cujo universo artístico pode ser emblema-tizado pelos nomes de Demóstenes, Racine e Poussin?

1 O convite para abrir a quinta edição da Internat ionale S o m m e r a k a d e m i e de

Frankfurt, em 20 de Agos to de 2004 , foi -me endereçado pelo performer e coreó­

grafo sueco Már ten Spângberg .

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Reflectindo, contudo, quis-me parecer que hoje a ausência de qualquer relação evidente entre a ideia de emancipação intelectual e a questão do especta­dor constituía também uma oportunidade. Podia ser a ocasião para um afastamento radical em relação aos pressupostos teóricos e políticos que sustentam ainda, mesmo sob aformapós-moderna, o essencial do debate sobre o teatro, a performance e o espectador. Porém, para fazer surgir a relação e dar-lhe sentido, era necessário reconstituir a rede de pressupostos que colocam a ques¬ tão do espectador no centro da discussão sobre as rela¬ ções entre arte e política. Era preciso traçar o modelo global de racionalidade acerca do qual, enquanto fundo, fomos habituados a ajuizar das implicações políticas do espectáculo teatral. Neste texto, uso esta última expres¬ são para incluir todas as formas de espectáculo - acção dramática, dança, performance, mímica ou outras - que colocam corpos em acção perante um público reunido.

As numerosas críticas a que o teatro deu azo ao longo de toda a sua história podem de facto ser reconduzidas a uma fórmula essencial. Chamar-lhe-ei o paradoxo do espectador, um paradoxo possivelmente mais funda¬ mental do que o célebre paradoxo do actor. Este para¬ doxo é simples de formular: não há teatro sem especta­dor (ainda que fosse um espectador único e secreto, como na representação fictícia de 0 Filho Natural, que dá lugar cLosDiálogos de Diderot). Ora, dizem os acusadores, ser espectador é um mal; por duas razões. Em primeiro lugar, olhar é o contrário de conhecer. O espectador per-

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manece face a uma aparência, ignorando o processo de produção dessa aparência ou a realidade que a aparên­cia encobre. Em segundo lugar, olhar é o contrário de agir. A espectadora fica imóvel no seu lugar, passiva. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capa¬ cidade de conhecer e do poder de agir.

Este diagnóstico abre caminho a duas conclusões diferentes. A primeira é a de que o teatro é uma coisa absolutamente má, um palco de ilusão e de passivi¬ dade que é necessário suprimir em benefício daquilo que ele interdita: o conhecimento e a acção, a acção de conhecer e a acção conduzida pelo saber. E a conclusão outrora formulada por Platão: o teatro é o lugar onde gente ignorante é convidada a ver homens que sofrem. O que o palco teatral lhes oferece é o espectáculo de um pathos, a manifestação de uma doença, a do desejo e do sofrimento, ou seja, da divisão de si que resulta da ignorância. O efeito próprio do teatro é transmitir essa doença por intermédio de uma outra: a doença do olhar subjugado por sombras. O teatro transmite a doença da ignorância que faz sofrer as personagens por via de uma máquina de ignorância, a máquina óptica que forma os olhares para a ilusão e a passividade. A comu¬ nidade justa é, pois, aquela que não tolera a mediação teatral, aquela em que a medida que governa a comuni¬ dade é directamente incorporada nas atitudes vivas dos seus membros.

É a dedução mais lógica. E no entanto não foi a que prevaleceu nos críticos da mimese teatral. Na maior

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parte dos casos, tais críticos mantiveram as premissas, modificando a conclusão. No dizer deles, quem diz tea­tro diz espectador, e aí reside o mal. E esse o círculo do teatro, tal como o conhecemos, tal como a nossa socie­dade o modelou à sua imagem. Necessitamos, pois, de um outro teatro, um teatro sem espectadores: não um teatro que se desenrole perante assentos vazios, mas um teatro em que a relação óptica passiva implicada pela própria palavra seja submetida a uma outra rela­ção, aquela que está implicada numa outra palavra, a palavra que designa o que se produz em cena, o drama.

Drama quer dizer acção. O teatro é o lugar onde uma acção é conduzida ao seu acabamento por corpos em movimento frente a corpos vivos que se trata de mobi¬ lizar. Estes últimos podem ter renunciado ao seu poder. Mas este poder é retomado, reactivado na performance

dos primeiros, na inteligência que constrói essa per¬

formance, na energia que ela produz. E com base neste poder activo que é necessário construir um teatro novo ou, melhor dizendo, um teatro reconduzido à sua virtude original, à sua verdadeira essência, da qual os espectᬠculos que lhe vão buscar o nome oferecem apenas uma versão degenerada. E preciso um teatro sem espectado¬ res, no qual quem assiste aprenda, em vez de ser sedu¬ zido por imagens, no qual quem assiste se torne partici¬ pante activo, em vez de ser um voyeur passivo.

Esta inversão das coisas conheceu duas grandes fórmulas, antagónicas quanto ao respectivo princípio, ainda que a prática e a teoria do teatro reformado as

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tenham frequentemente amalgamado. De acordo com a primeira, é necessário arrancar o espectador ao embru­tecimento do papalvo fascinado pela aparência e con­quistado pela empatia, que faz com que ele se identifi­que com as personagens em cena. Mostrar-se-lhe-á, portanto, um espectáculo estranho, inusual, um enigma cujo sentido ele deverá procurar. Deste modo forçá-lo-emos a trocar a posição de espectador passivo pela

de alguém que conduz uma investigação ou uma expe­riência científica, alguém que observa os fenómenos e investiga as respectivas causas. Ou então propor-se--lhe-áum dilema exemplar, semelhante aos que se colo¬ cam aos indivíduos empenhados em decisões de acção. Far-se-á, assim, com que aguce o seu próprio sentido de avaliação das razões, da respectiva discussão e da esco¬ lha radical.

De acordo com a segunda fórmula, é precisamente essa distância argumentante que deve ser abolida. O especta­dor deverá ser subtraído à posição de observador que examina calmamente o espectáculo que lhe é proposto. Deverá ser desapossado desse domínio ilusório e arras¬ tado para dentro do círculo mágico da acção teatral onde trocará o privilégio do observador racional pelo de um ser na posse das suas energias vitais integrais.

Estas são as atitudes fundamentais sintetizadas no teatro épico de Brecht e no teatro da crueldade de Artaud. Para o primeiro, o espectador deve ganhar dis­tância; para o segundo, deve perder toda a distância. Para o primeiro, o espectador deve tornar mais fino o

í i

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seu olhar, para o segundo, ele deverá abdicar da própria posição de mero sujeito do olhar. As modernas tenta¬ tivas de reforma do teatro oscilaram constantemente entre estes dois pólos, o da indagação distante e o da participação vital, correndo embora o risco de mistu¬ rar os respectivos princípios e efeitos. Tais tentativas pretenderam transformar o teatro a partir do diagnós¬ tico que conduzia à sua supressão. Por isso mesmo não é espantoso que tenham retomado não apenas os con¬ siderandos da crítica platónica, mas também a fórmula positiva que Platão opunha ao mal teatral. Platão queria substituir a comunidade democrática e ignorante, pró¬ pria do teatro, por uma outra comunidade, epitomizada numa outra performance dos corpos. A primeira opunha a comunidade coreográfica na qual ninguém perma¬ nece espectador imóvel, na qual cada um deverá mover¬ -se segundo o ritmo comunitário fixado pela proporção matemática, correndo-se embora o risco de ser neces¬ sário embriagar os velhos renitentes para os fazer entrar na dança colectiva.

Os reformadores do teatro reformularam a oposi¬ ção platónica entre khoreia e teatro, transformando-a em oposição entre a verdade do teatro e o simulacro do espectáculo. Fizeram do teatro o lugar onde o público passivo devia transformar-se no seu contrário: o corpo activo de um povo pondo em acto o seu princípio vital. Q texto de apresentação da Sommerakademie que me acolhia exprimia isso mesmo nos seguintes termos: «O teatro é o único lugar de confrontação do público

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consigo próprio, enquanto colectivo». Em sentido res­trito, essa frase quer somente distinguir a audiência colectiva do teatro e os visitantes individuais de uma exposição ou o simples somatório das entradas no cinema. Mas é óbvio que quer dizer mais do que isso. Significa que o «teatro» é uma forma comunitária exem­plar. Introduz uma ideia de comunidade como autopre-sença, por oposição à distância da representação. Desde o romantismo alemão que o pensamento em torno do teatro se viu associado a essa ideia de colectividade viva. O teatro surgiu então como uma forma da consti¬ tuição estética - da constituição sensível - da colecti¬ vidade. Entendamos nesta expressão a comunidade como maneira de ocupar um lugar e um tempo, como o corpo em acto oposto ao simples aparelho das leis, como um conjunto de percepções, de gestos e de atitu¬ des que precede e pré-configura as leis e as instituições políticas. O teatro, mais do que qualquer outra arte, foi associado à ideia romântica de uma revolução estética, capaz de transformar já não a mecânica do Estado e das leis, mas as formas sensíveis da experiência humana. A reforma do teatro significava então a restauração da sua natureza de assembleia ou de cerimónia da comu¬ nidade. O teatro é uma assembleia na qual as gentes do povo tomam consciência da sua situação e discutem os seus interesses, diz Brecht depois de Piscator. O teatro, afirma Artaud, é o ritual purificador no qual uma colec¬ tividade é posta na plena posse das energias que lhe são próprias. Ora, se deste modo o teatro encarna a colecti-

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vidade viva, por oposição à ilusão da mimese, não nos surpreenderá o facto de a vontade de reconduzir o teatro à sua essência poder apoiar-se na crítica do espectáculo.

Qual é, de facto, a essência do espectáculo segundo Guy Debord? E a exterioridade. O espectáculo é o reino da visão e a visão é a exterioridade, ou seja, é privação da posse de si. A doença do homem espectador pode resu¬ mir-se numa fórmula breve: «Quanto mais contempla, menos é.»2 A fórmula parece anti-platónica. Na ver¬ dade, os fundamentos teóricos da crítica do espectáculo são tirados, por intermédio de Marx, da crítica feuer-bachiana da religião. O princípio de ambas as críticas encontra-se na visão romântica da verdade como não--separação. Mas esta ideia depende ela própria da con¬ cepção platónica da mimese. A «contemplação» que Debord denuncia é a contemplação da aparência sepa¬ rada da respectiva verdade, é o espectáculo de sofri¬ mento produzido por essa separação. «A separação é o alfa e o ómega do espectáculo.» 3 O que o homem con¬ templa no espectáculo é a actividade que lhe foi rou¬ bada, é a sua própria essência, tornada estranha, virada contra ele mesmo e organizando um mundo colectivo cuja realidade é a desse desapossamento.

Sendo assim, não há contradição entre a crítica do espectáculo e a busca de um teatro restituído à sua essên-

2 Cuy Debord , La Sociétéduspectacle, Ga l l imard , Par is , 1 9 9 2 , p. 16 . [Trad. por tu­

guesa: A Sociedade do Espectáculo, Afrodite, Lisboa, 1 97 2 ] .

3 Ibid., p. 25.

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cia originária. O «bom» teatro é aquele que utiliza a sua realidade separada para a suprimir. O paradoxo do espectador pertence ao dispositivo singular que retoma por conta do teatro os princípios da proibição platónica do teatro. São, pois, esses princípios que conviria hoje voltar a examinar ou, dizendo melhor, a rede de pressu­postos, o jogo de equivalências e de oposições que sus­tenta a possibilidade de tais princípios: equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e pas¬ sividade, exterioridade e separação, mediação e simu¬ lacro; oposições entre o colectivo e o individual, entre a imagem e a realidade viva, a actividade e a passividade, a posse de si e a alienação.

Este jogo de equivalências e de oposições compõe na verdade uma dramaturgia bastante tortuosa entre o erro e a redenção. O teatro acusa-se a si mesmo de tornar os espectadores passivos e de assim trair a sua essência de acção comunitária. Como consequência outorga-se a missão de inverter os seus efeitos e de expiar os seus erros, devolvendo aos espectadores a posse da consciên­cia e da actividade que lhes cabe. O palco e a performance

teatrais passam assim a ser uma mediação evanescente entre o mal do espectáculo e a virtude do verdadeiro tea¬ tro. Cena e performance teatrais propõem-se ensinar aos seus espectadores os meios de deixarem de ser espec¬ tadores e de se tornarem agentes de uma prática colec¬ tiva. De acordo com o paradigma brechtiano, a media¬ ção teatral torna-os conscientes da situação social que dá lugar a essa mesma mediação, e desencadeia neles

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o desejo de agir para transformar a dita situação social. Segundo a lógica de Artaud, fá-los sair da sua posição de espectadores: em vez de estarem perante um espec­táculo, são envolvidos pela performance, arrastados para dentro do círculo da acção que lhes devolve a sua ener¬ gia colectiva. Num caso como no outro, o teatro oferece¬ -se como mediação tendente à sua própria supressão.

É neste ponto que as descrições e as proposições da emancipação intelectual podem entrar em jogo e aju¬ dar-nos a reformular o problema. Porque esta media¬ ção auto-evanescente não nos é desconhecida. Trata¬ -se da própria lógica da relação pedagógica: nela, o papel entregue ao mestre é o de suprimir a distância entre o seu saber e a ignorância do ignorante. As lições do mes¬ tre e os exercícios que dá a fazer têm por finalidade redu¬ zir progressivamente o abismo que os separa. Porém, infelizmente, o mestre só pode reduzir o afastamento na condição de o recriar constantemente. Para subs¬ tituir a ignorância pelo saber, tem de caminhar sem¬ pre um passo mais à frente, reintroduzindo entre ele e 0 aluno uma nova ignorância. A razão para que assim seja é simples. Na lógica pedagógica, o ignorante não é apenas aquele que ignora ainda o que o mestre sabe. E antes aquele que não sabe o que ignora nem como chegar a saber isso que ignora. O mestre, esse, não é apenas o indivíduo que detém o saber ignorado pelo ignorante. E também aquele que sabe como fazer da coisa ignorada um objecto de saber, em que momento e segundo que protocolo. Porque, em boa verdade, não há

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ignorante que não saiba já um conjunto de coisas, que não as tenha aprendido por si próprio olhando e escutando à sua volta, observando e repetindo, enganando-se e cor­rigindo os seus erros. Mas, para o mestre, um tal saber não passa de um saber de ignorante, um saber incapaz de se ordenar segundo a progressão que vai do mais sim¬ ples ao mais complexo. O ignorante progride compa¬ rando o que descobre com aquilo que já sabe, ao sabor do acaso dos encontros, mas também segundo a regra aritmética, a regra democrática que faz da ignorância um menor saber. Preocupa-se apenas em saber mais, em passar a saber aquilo que ainda ignorava. O que lhe falta, o que sempre faltará ao aluno, a não ser que se torne ele próprio mestre, é o saber relativo à ignorância,

o conhecimento da distância exacta que separa o saber da ignorância.

Essa medida escapa precisamente à aritmética dos ignorantes. O que o mestre sabe, o que o protocolo de transmissão do saber começa por ensinar ao aluno, é que a ignorância não é um menor saber. A ignorância é o oposto do saber; porque o saber não é um conjunto de conhecimentos, mas sim uma posição. A distância exacta é a distância que nenhuma regra mede, a distân¬ cia que se prova pelo simples jogo das posições ocupa­das, que se exerce pela interminável prática do «passo mais à frente» que separa o mestre do indivíduo que supostamente o mestre deve trazer até junto de si. A distância é a metáfora do abismo radical que separa o modo de estar do mestre do do ignorante porque separa

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duas inteligências: a que sabe em que consiste a igno­rância e a que o desconhece. E antes de mais este afas¬ tamento radical que é ensinado ao aluno pela ordenação própria do ensino progressivo. Este ensina-lhe antes de mais a respectiva incapacidade. E, assim sendo, trata de verificar constantemente no seu agir o seu próprio pressuposto, a desigualdade das inteligências. Esta interminável verificação é aquilo a que Jacotot chama embrutecimento.

A essa prática do embrutecimento opunha Jacotot a prática da emancipação intelectual. A emancipação intelectual é a verificação da igualdade das inteligências. Esta igualdade não significa um igual valor de todas as manifestações da inteligência, mas a igualdade da inte¬ ligência relativamente a si mesma em todas as suas manifestações. Não há dois tipos de inteligência sepa¬ rados por um abismo. O animal humano aprende todas as coisas como começou por aprender a língua materna, como aprendeu a aventurar-se na floresta das coisas e dos signos que o rodeiam, para assim tomar lugar entre os humanos: observando e comparando uma coisa com outra, um signo com um facto, um signo com outro signo. Se o iletrado conhece de cor somente uma oração, pode comparar esse saber com o que ainda ignora: as palavras dessa oração escritas num papel. Pode apren¬ der, signo após signo, a relação daquilo que ignora com o que'sabe. Pode fazê-lo, se, a cada passo, observar o que tem à sua frente, disser o que viu e verificar o que disse. Deste ignorante que soletra os signos até ao cien-

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tista que constrói hipóteses é sempre a mesma inteli­gência que se encontra em acção, uma inteligência que traduz signos por outros signos e que procede por com­parações e figuras para comunicar as suas aventuras intelectuais e compreender aquilo que uma outra inte¬ ligência trata de lhe comunicar.

Este trabalho poético de tradução está no cerne de toda a aprendizagem. Encontra-se no âmago da prática emancipadora do mestre ignorante. O que este ignora é a distância embrutecedora, a distância transformada em abismo radical que só um perito é capaz de «colma­tar». A distância não é um mal a abolir, é antes a condi¬ ção normal de toda a comunicação. Os animais huma¬ nos são animais distantes que comunicam através da floresta dos signos. A distância que o ignorante tem de transpor não é o abismo entre a sua ignorância e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe àquilo que ainda ignora mas que pode aprender como aprendeu o resto, que pode aprender não para passar a ocupar a posição do sábio, mas para melhor praticar a arte de traduzir, a arte de pôr as suas experiências em palavras e as suas palavras à prova, de traduzir as suas aventuras intelectuais para uso dos outros e de voltar a traduzir as traduções que os outros lhe apresentam das respectivas aventuras. O mestre ignorante, capaz de o ajudar a percorrer este caminho, chama-se assim não porque nada saiba, mas porque abdicou do «saber relativo à ignorância» e deste modo dissociou o ensino que pratica do saber que possui. Não

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ensina aos alunos o seu saber, antes lhes ordena que se aventurem na floresta das coisas e dos signos, que digam o que viram e o que pensam do que viram, que verifiquem o que dizem e que façam os outros verificar o que dizem. Aquilo que este mestre ignora é a desigual­dade das inteligências. A distância é sempre uma dis­tância factual, e cada acto intelectual é um caminho tra¬ çado entre uma ignorância e um saber, um caminho que constantemente trata de abolir, juntamente com as fronteiras da ignorância e do saber, toda a fixidez e toda a hierarquia das posições.

Que relação existe entre esta história e a questão do espectador nos dias de hoje? Já não vivemos no tempo em que os dramaturgos queriam explicar ao seu público a verdade das relações sociais e os meios de lutar con¬ tra a dominação capitalista. Mas não é forçoso que as pessoas percam os seus pressupostos juntamente com as suas ilusões, nem que percam o conjunto dos meios juntamente com o horizonte dos fins. Pode mesmo suceder, inversamente, que a perda das ilusões conduza os artistas a aumentarem a pressão sobre os especta¬ dores: talvez eles, os artistas, saibam afinal o que é pre­ciso fazer, com a condição de que a performance os tire da sua atitude passiva e os transforme em participan¬ tes activos de um mundo comunitário. Esta é a primeira convicção que os reformadores do teatro partilham com os pedagogos embrutecedores: a do abismo que separa Auas posições. Mesmo que o dramaturgo ou o realiza¬ dor não saibam o que querem que o espectador faça, há

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pelo menos uma coisa que sabem: sabem que o espec¬ tador deve fazer uma coisa, transpor o abismo que separa a actividade da passividade.

Mas não seria possível inverter os termos do pro¬ blema, perguntando se não será precisamente a von¬ tade de suprimir a distância que cria a distância? O que é que permite declarar inactivo o espectador sentado no seu lugar a não ser a oposição radical, previamente esta¬ belecida, entre o activo e o passivo? Porquê identificar olhar e passividade, senão por força do pressuposto de que olhar quer dizer comprazer-se na imagem e na apa¬ rência, ignorando a verdade que está por trás da imagem e a realidade exterior ao teatro? Porquê assimilar escuta e passividade, senão por via do preconceito segundo o qual a palavra é o contrário da acção? Estas oposições - olhar/saber, aparência/realidade, actividade/passivi¬ dade - são algo de completamente diferente de oposi¬ ções lógicas entre termos bem definidos. Definem pro¬ priamente uma partilha do sensível, uma distribuição a priori das posições e das capacidades e incapacidades ligadas a essas posições. São alegorias encarnadas da desigualdade. E por isso que se pode mudar o valor dos termos, transformar o termo «bom» no mau termo e reciprocamente, sem mudar o funcionamento da oposi¬ ção em si mesma. Deste modo, desqualifica-se o espec¬ tador, porque nada faz, ao passo que os actores que estão em cena ou os trabalhadores no exterior do teatro põem os seus corpos em acção. Mas a oposição entre o ver e o fazer inverte-se imediatamente quando à cegueira

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dos trabalhadores manuais e dos técnicos entregues a tarefas empíricas, mergulhados no imediato e no terra a terra, se opõe a ampla perspectiva daqueles que con¬ templam as ideias, prevêem o futuro ou alcançam uma visão global do nosso mundo. Noutros tempos, cha¬ mava-se cidadãos activos, detentores da capacidade de eleger e de serem eleitos, aos proprietários que viviam dos seus rendimentos, e cidadãos passivos, indignos de tais funções, àqueles que trabalhavam para ganhar a vida. Os termos podem mudar de sentido, as posições podem ser trocadas, o essencial está no facto de perma¬ necer a estrutura que opõe as duas categorias, os que possuem uma dada capacidade e os que a não possuem.

Quanto à emancipação, essa começa quando se põe em questão a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem elas pró¬ prias à estrutura da dominação e da sujeição. A eman¬ cipação começa quando se compreende que olhar é também uma acção que confirma ou transforma essa distribuição das posições. O espectador também age, como o aluno ou o cientista. Observa, selecciona, com¬ para, interpreta. Liga o que vê com muitas outras coi¬ sas que viu noutros espaços cénicos e noutro género de lugares. Compõe o seu próprio poema com os elemen­tos dA poema que tem à sua frente. Uma espectadora participa na performance refazendo-a à sua maneira, por exemplo, afastando-se da energia vital que esta supos¬ tamente deve transmitir para dela fazer uma pura ima-

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gem e associar essa imagem pura a uma história que leu ou que sonhou, que viveu ou que inventou. Deste modo, ele e ela são ao mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes activos do espectáculo que lhes é proposto.

Este é um ponto essencial: os espectadores vêem, sen¬ tem e compreendem algo na medida em que compõem o seu próprio poema, como, a seu modo, fazem os actores ou os dramaturgos, os realizadores, os bailarinos ou os per¬

formers. Observemos somente a mobilidade do olhar e das expressões dos espectadores de um drama religioso xiita tradicional, comemorando a morte do imã Hussein, cap­tados pela câmara de Abbas Kiarostami (Tazieh). O dra¬ maturgo, ou o realizador, quereria que os espectadores vissem isto e que sentissem aquilo, que compreendessem uma certa coisa e que dela tirassem as consequências. É a lógica do pedagogo embrutecedor, a lógica da transmis¬ são que vai directa ao idêntico: há uma certa coisa, um saber, uma capacidade, uma energia, que está de um lado - num corpo ou num espírito - e que deve passar para outro lado. O que o aluno deve aprender é o que o mestre lhe ensina. O que o espectador deve veré o que o realizador lhe dá a ver. O que deve sentir é a energia que o realiza¬ dor lhe comunica. A esta identidade da causa e do efeito, que está no centro da lógica embrutecedora, a emancipa¬ ção opõe a dissociação dos dois factores. E o sentido do paradoxo do mestre ignorante: o aluno aprende do mestre algo que o próprio mestre não sabe. Aprende algo como efeito de um ensino que o obriga a procurar e a verificar essa procura. Mas não aprende o saber do mestre.

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Dir-se-á que o artista, por seu lado, não quer instruir o espectador. O artista, hoje em dia, recusa-se a utilizar a cena para impor uma lição ou fazer passar uma men­sagem. Quer somente produzir uma forma de consciên¬ cia, uma intensidade de sentimento, uma energia para a acção. Mas continua a supor que o que será percebido, sentido, compreendido é aquilo que ele próprio colo¬ cou na sua dramaturgia ou na sua performance. Conti¬ nua a pressupor a identidade da causa e do efeito. Esta igualdade suposta entre a causa e o efeito assenta por seu turno num princípio não igualitário: assenta no pri­vilégio que o mestre se outorga, i.e. o conhecimento da «boa» distância e da via para a suprimir. Mas com isso confundem-se duas distâncias inteiramente diferen¬ tes. Há a distância entre o artista e o espectador, mas há também a distância inerente à própria performance,

na medida em que esta se encontra - enquanto espec¬ táculo, enquanto coisa autónoma - entre a ideia do artista e a sensação ou compreensão do espectador. No âmbito da lógica da emancipação existe sempre, entre o mestre ignorante e o aprendiz emancipado, uma ter¬ ceira coisa - um livro ou qualquer outro texto escrito -, algo que é estranho tanto a um como ao outro e a que ambos podem remeter-se para verificarem em comum aquilo que o aluno viu, aquilo que diz do que viu e o que pensa do que viu. Passa-se o mesmo com a performance.

A performance não é a transmissão do saber ou do respi¬ rar do artista ao espectador. E antes essa terceira coisa de que nenhum deles é proprietário, da qual nenhum

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deles possui o sentido, essa terceira coisa que se man¬ tém entre os dois, retirando ao idêntico toda e qualquer possibilidade de transmissão, afastando qualquer iden¬ tidade entre causa e efeito.

Assim, esta ideia de emancipação opõe-se clara¬ mente àquela em que se apoiou muitas vezes a política do teatro e da respectiva reforma: a emancipação como reapropriação de uma relação do sujeito a si mesmo, relação essa que se teria perdido no âmbito de um processo de separação. É esta ideia da separação e da sua abolição que une a crítica do espectáculo segundo Debord à crítica da religião segundo Feuerbach, pas¬ sando pela crítica marxista da alienação. Nesta lógica, a mediação de um terceiro termo só pode ser uma fatal ilusão de autonomia, prisioneira da lógica do desapos¬ samento e da respectiva dissimulação. A separação entre o palco e a sala é um estado de coisas que tem de ser ultrapassado. Suprimir essa exterioridade é o pró¬ prio objectivo da performance, o que supostamente acon¬ tece de várias maneiras: colocando os espectadores em cima do palco e os performers na sala, suprimindo a dife¬ rença entre palco e sala, deslocando a performance para outros lugares, identificando a performance com uma apropriação da rua, da cidade ou da vida. E é certo que este esforço no sentido de alterar a distribuição dos lugares produziu enriquecimentos vários da performance

teatral. Mas uma coisa é a redistribuição dos lugares, outra coisa é a exigência de que o teatro assuma como finalidade a reunião de uma comunidade de modo a pôr

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termo à separação do espectáculo. Destas duas coisas, a primeira gera um comprometimento na invenção de novas aventuras intelectuais, ao passo que a segunda traz consigo uma nova forma de atribuição dos corpos ao seu bom lugar, que neste caso é o respectivo lugar de comunhão.

Porque a recusa da mediação, a recusa do terceiro factor, é a afirmação de uma essência comunitária do teatro enquanto tal. Quanto menos o dramaturgo sabe o que quer que o colectivo dos espectadores faça, mais sabe que devem em qualquer caso agir como colectivo, transformar a sua agregação em comunidade. Contudo, já seria tempo de nos interrogarmos sobre essa ideia de que o teatro é por si só um lugar comunitário. Por haver em cena um conjunto de corpos vivos que se dirigem a outros corpos reunidos num mesmo espaço, parece que tal é suficiente para fazer do teatro o vector de um sen­tido de comunidade radicalmente diferente da situa¬ ção dos indivíduos sentados em frente de um televi¬ sor ou dos espectadores de cinema, sentados diante de sombras projectadas. Curiosamente, a generalização do uso de imagens e de todo o tipo de projecções nas ence¬ nações teatrais parece nada alterar no que toca a esta crença. Há imagens projectadas que podem vir juntar-se aos corpos vivos ou substituir-se a estes. Mas, enquanto houver espectadores reunidos no espaço teatral, pro¬ cede fse como se a essência viva e comunitária do teatro se encontrasse preservada e como se se pudesse evitar a seguinte questão: em rigor, o que é que se passa com

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os espectadores de um teatro que não pudesse passar¬ -se noutras circunstâncias? Haverá algo de mais inte¬ ractivo, de mais comunitário, nestes espectadores do que numa multiplicidade de indivíduos vendo à mesma hora o mesmo espectáculo televisionado?

Estou em crer que este algo é somente o pressuposto de que o teatro é em si mesmo comunitário. Este pres¬ suposto continua a caminhar à frente da performance

teatral e a antecipar os efeitos desta. Mas num teatro, exactamente como num museu, numa escola ou na rua, nada existe que não sejam indivíduos que traçam o seu próprio caminho pelo meio da floresta das coisas, dos actos e dos signos que lhes surgem pela frente ou que os rodeiam. O poder comum aos espectadores não tem a ver com a respectiva qualidade de membros de um corpo colectivo ou com qualquer forma específica de interactividade. E antes o poder que cada um ou cada uma tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de ligar o que percebe à aventura intelectual singular que os torna semelhantes a todos os outros na medida em que essa aventura singular não se assemelha a nenhuma outra. Este poder comum da igualdade das inteligências liga os indivíduos entre si, fá-los proceder à troca das suas actividades intelectuais, ao mesmo tempo que os mantém separados uns dos outros, igualmente capa¬ zes de utilizar o poder de todos para traçar o seu cami¬ nho próprio. O que as nossas performances comprovam - quer se trate de ensinar ou de representar, de falar, de escrever, de fazer arte ou de vê-la - não é a nossa parti-

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cipação num poder encarnado na comunidade. É, sim, a capacidade dos anónimos, a capacidade que faz com que cadaum(a) seja igual a todos (as) os(as) outros(as). Essa capacidade exerce-se através de distâncias irredu­tíveis, exerce-se por intermédio de um jogo imprevisível de associações e dissociações.

É neste poder de associar e de dissociar que reside a emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós enquanto espectador. Ser espectador não é a condição passiva que devêssemos transformar em actividade. É a nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos também enquanto espectadores que ligam constantemente o que vêem com aquilo que já viram e disseram, fizeram e sonharam. Não existe forma privilegiada, tanto quanto não existe ponto de partida privilegiado. Por todo o lado existem pontos de partida, cruzamentos e laços que nos permi¬ tem aprender algo de novo, se recusarmos, em primeiro lugar, a distância radical, em segundo lugar, a distribui¬ ção dos papéis, e em terceiro lugar, as fronteiras entre os territórios. A nossa tarefa não é transformar os espec¬ tadores em actores e os ignorantes em cientistas. Pre¬ cisamos de reconhecer o saber que opera no ignorante e a actividade própria do espectador. Todo o espectador é já actor da sua história; todo o actor, todo o indivíduo de acção, é já espectador da mesma história.

Gostaria de ilustrar este tópico por intermédio de um pequeno desvio pela minha própria experiência política e intelectual. Pertenço a uma geração que em dada altura

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se encontrou espartilhada entre duas exigências opos­tas. De acordo com uma delas, os indivíduos que pos¬ suíam o saber acerca do sistema social deviam ensinᬠ-lo àqueles que eram vítimas desse sistema, de modo a armá-los para a luta; de acordo com a outra, os supostos sabedores eram de facto ignorantes que nada sabiam do significado da exploração e da rebelião e deviam ins¬ truir-se sobre esses assuntos junto desses trabalhado¬ res que eles tratavam como se fossem ignorantes. Para responder a essa dupla exigência, comecei por que¬ rer reencontrar a verdade do marxismo, para armar um novo movimento revolucionário, e depois quis apren¬ der junto dos indivíduos que trabalhavam e lutavam nas fábricas o sentido da exploração e da rebelião. Para mim, como para a minha geração, nenhuma das duas tentativas teve resultados inteiramente convincentes. Esta situação levou-me a investigar no âmbito da histó¬ ria do movimento operário a razão dos encontros ambí¬ guos ou falhados entre os operários e aqueles intelectuais que tinham vindo falar com eles para os instruírem ou para se instruírem junto deles. Deste modo, foi-me dado compreender que a questão não se jogava entre igno¬ rância e saber, como tão-pouco se joga entre actividade e passividade ou entre individualidade e comunidade. Num dia de Maio em que consultava a correspondên­cia de dois operários nos anos 30 do século x ix para nela encontrar informações sobre a condição e as for¬ mas de consciência dos trabalhadores daquele tempo, tive a surpresa de encontrar algo de inteiramente dife-

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rente: as aventuras de dois outros visitantes, noutros dias de Maio, cento e quarenta e cinco anos antes. Um dos dois operários acabava de entrar para a comunidade saint-simonista de Ménilmontant e dava ao amigo uma imagem do modo como empregava o tempo nesses seus dias vividos em utopia: os trabalhos e exercícios durante o dia, os jogos, os coros e recitais ao fim da tarde. O seu correspondente, em resposta, contava-lhe o passeio pelo campo que acabara de fazer com dois companhei¬ ros, aproveitando um domingo de Primavera. Mas o que este lhe contava não tinha semelhança alguma com o dia de repouso do trabalhador que retempera as suas forças físicas e mentais preparando-se para o trabalho da semana seguinte. Tratava-se, antes, de uma incursão numa espécie inteiramente diferente de lazer: o lazer dos estetas, que tiram prazer das formas, das variações de luz e das sombras da paisagem, o lazer dos filósofos, que se instalam num albergue rural para aí desenvolve¬ rem hipóteses metafísicas, o lazer dos apóstolos, que se aplicam na comunicação da sua fé a todos os compa¬ nheiros que encontram ao acaso da caminhada ou do local onde pernoitam4.

Estes trabalhadores que supostamente deviam for¬ necer-me informações sobre as condições do trabalho e as formas da consciência de classe ofereciam-me uma coisa completamente diferente: o sentimento de uma parecença,

4 Cf. L o u i s - G a b r i e l Gauny, LePhilosopheplébéien, P re s se s Univers i ta i res de V i n -

cennes, Paris, 198 5, pp. 1 4 7- 1 58.

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uma demonstração da igualdade. Também eles eram espectadores e visitantes no seio da sua própria classe. A actividade de propaganda que era a sua não podia separar-se dos seus ócios de passeantes e de indiví¬ duos entregues à contemplação. A simples crónica dos seus ócios obrigava a reformular as relações estabele¬ cidas entre ver, fazer e falar. Tornando-se espectadores e visitantes, alteravam completamente a partilha do sen¬ sível que pretende que os que trabalham não dispõem de tempo para deixar correr ao acaso os seus passos e os seu olhares e que os membros de um corpo colectivo não têm tempo para consagrar às formas e aos sinais da individualidade. É este o significado da palavra eman¬ cipação: desmantelar a fronteira entre os que agem e os que vêem, entre indivíduos e membros de um corpo colectivo. Aqueles dias, assim passados, não ofere¬ ciam aos dois correspondentes e aos seus semelhantes um saber acerca da sua condição e a energia necessária para o trabalho da semana seguinte ou para a luta sub¬ sequente. Ofereciam-lhes, sim, a reconfiguração aqui e agora da repartição do espaço e do tempo, do trabalho e do ócio.

Compreender esta rotura operada no próprio inte¬ rior do tempo era desenvolver as implicações de uma semelhança e de uma igualdade, em vez de assegurar um domínio sobre essa rotura por intermédio da interminᬠvel tarefa de reduzir um afastamento irredutível. Aque¬ les dois trabalhadores eram, também eles, intelectuais, como qualquer pessoa o é. Eram visitantes e especta-

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dores, como o investigador que, um século e meio mais tarde, lia as suas cartas numa biblioteca, como os visitan¬ tes da teoria marxista ou os indivíduos que distribuíam panfletos à porta das fábricas. Não havia nenhuma bre¬ cha para ser colmatada entre intelectuais e operários, tal como não existe entre actores e espectadores. Dos factos derivavam algumas consequências em benefí¬ cio do discurso apropriado para dar conta desta expe¬ riência. Contar a história dos dias e das noites daqueles dois homens obrigava a desmantelar outras fronteiras. Esta história, que falava do tempo, da perda do tempo e da sua reapropriação, só ganhava o seu sentido e o seu alcance se fosse posta em relação com uma histó¬ ria semelhante, enunciada num outro sítio, num outro tempo e num género de texto muito diferente: no Livro II da República, no ponto em que Platão, antes de atacar as sombras enganosas do teatro, explicava que numa comunidade bem ordenada cada um devia fazer uma só coisa e que os artesãos não tinham tempo para estar noutro lugar que não o seu local de trabalho, nem para fazer outra coisa que não fosse o trabalho conveniente às (in) capacidades que a natureza lhes havia outorgado.

Assim, para entender a história dos dois visitantes era preciso desmantelar as fronteiras entre a história empírica e a filosofia pura, as fronteiras entre as disci¬ plinas, as hierarquias entre os níveis de discurso. Não havia de um lado o relato dos factos e do outro a expli¬ cação filosófica ou científica capaz de descobrir a razão de uma história ou a verdade escondida por trás dela.

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Não havia os factos e a respectiva interpretação. Havia, isso sim, duas maneiras de contar uma história. E o que me cabia fazer era um trabalho de tradução, mostrando como aqueles relatos de domingos primaveris e os diᬠlogos do filósofo se traduziam mutuamente. Era preciso inventar o idioma próprio para essa tradução e para essa retroversão, correndo embora o risco de esse idioma permanecer ininteligível para todos aqueles que per¬ guntassem pelo sentido daquela história, pela realidade capaz de a explicar e pela lição que essa mesma histó¬ ria pudesse fornecer para a acção. De facto, este idioma não podia ser lido senão por aqueles que o traduzissem a partir da sua própria aventura intelectual.

Este desvio biográfico conduz-me ao centro do meu intento. Na verdade, estas histórias de fronteiras que precisam de ser atravessadas e de distribuições de papéis que têm de ser desmanteladas vêm ao encontro da actua¬ lidade da arte contemporânea na qual todas as com¬ petências artísticas específicas tendem a sair do seu domínio próprio e a trocar os respectivos lugares e poderes. Hoje temos teatro sem palavras e dança falada; temos instalações e performances como obras plásticas; projecções de vídeo transformadas em ciclos de fres¬ cos; fotografias tratadas como quadros vivos ou como pintura histórica; temos escultura metamorfoseada em show multimédia, e muitas outras combinações. Ora, há três maneiras de compreender e de praticar esta mistura dos géneros. Há uma que reactualiza a forma da obra de arte total. A obra de arte total devia supostamente ser

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a apoteose da arte tornada vida. Hoje, tende sobretudo a ser a obra de arte de alguns egos artísticos sobredi-mensionados ou de uma forma de hiperactividade con¬ sumista, quando não é as duas coisas ao mesmo tempo. Em segundo lugar, vem a ideia de uma hibridação dos meios da arte própria da realidade pós-moderna da troca contínua dos papéis e das identidades, do real e do virtual, do orgânico e das próteses mecânicas e infor¬ máticas. Quanto às suas consequências, esta segunda ideia não se distingue minimamente da primeira. Con¬ duz muitas vezes a uma outra forma de embrutecimento que utiliza o apagamento das fronteiras e a confusão dos papéis para incrementar o efeito da performance sem questionar os seus princípios.

Resta uma terceira maneira de compreender a mis¬ tura dos géneros, a qual já não tem em vista a amplifica¬ ção dos efeitos, mas sim pôr em causa a própria relação causa-efeito e o jogo dos pressupostos que sustentam a lógica do embrutecimento. Por oposição ao hiper-tea-tro, que quer transformar a representação em presença e a passividade em actividade, esta terceira perspec¬ tiva propõe, pelo contrário, a revogação do privilégio de vitalidade e de poder comunitário atribuído ao palco de teatro, para colocar o palco em pé de igualdade com a narração de uma história, a leitura de um livro ou o olhar que recai .sobre uma imagem. Propõe-nos, em suma, ser concebida como um novo palco, um palco da igualdade no qual performances heterogéneas se tradu¬ zem umas nas outras. Porque em todas estas performan-

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ces trata-se de ligar o que se sabe com o que se ignora; trata-se de os sujeitos serem ao mesmo tempo perfor¬

mers que põem em jogo as suas competências e espec¬ tadores que observam o que estas competências podem produzir num contexto novo, junto de outros especta¬ dores. Os artistas, como os investigadores, constroem a cena na qual a manifestação e o efeito das suas compe¬ tências se expõem e se tornam incertos nos termos do novo idioma que traduz uma nova aventura intelectual. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Exige dos espectadores que desempenhem o papel de intérpre¬ tes activos, que elaborem a sua própria tradução para se apropriarem da «história» e dela fazerem a sua própria história. Uma comunidade emancipada é uma comuni¬ dade de contadores e tradutores.

Tenho consciência de que relativamente a tudo isto pode sempre dizer-se: palavras, uma vez mais e apenas palavras. Por mim, não o entenderia como insulto. Já ouvimos tantos oradores que procuram fazer passar as suas palavras por mais do que palavras, pela fórmula de entrada numa vida nova; vimos tantas representações teatrais que pretendem ser já não espectáculos, mas cerimónias comunitárias; e mesmo hoje, apesar de todo o cepticismo «pós-moderno» em relação ao desejo de mudar a vida, vemos tantas instalações e espectáculos transformados em mistérios religiosos que não é neces¬ sariamente escandaloso ouvir dizer que palavras são simplesmente palavras. Vermo-nos livres dos fantas¬ mas do verbo feito carne e do espectador tornado activo,

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saber que as palavras são somente palavras e os espec¬

tadores apenas espectadores pode ajudar-nos a com¬

preender melhor como as palavras e as imagens, as his¬

tórias e as performances podem mudar qualquer coisa no

mundo em que vivemos.

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Não sou, por certo, o primeiro a pôr em causa a tradi­ção da crítica social e cultural no seio da qual a minha geração cresceu. Não poucos autores declararam que o tempo dessa crítica passou. Ainda não há muito tempo, dizem eles, qualquer indivíduo podia entreter¬ -se a denunciar a sombria e sólida realidade escondida por trás da estridência das aparências. Porém, nos nossos dias, já não haveria nenhuma realidade sólida que pudesse ser contraposta ao reino das aparências, nenhum reverso sombrio capaz de ser contraposto ao triunfo da sociedade de consumo. Digamo-lo desde já: não é a este tipo de discurso que pretendo dar voz. Pelo contrário, gostaria de mostrar que os conceitos e procedimentos da tradição crítica não são de modo algum obsoletos. Continuam a funcionar muito bem, mesmo no discurso daqueles que declaram o fim do respectivo prazo de validade. Contudo, o uso que pre¬ sentemente é feito de tais conceitos e procedimentos testemunha uma inversão completa da sua orientação e dos fins a que supostamente se destinam. Assim, se queremos comprometer-nos numa verdadeira crítica da crítica, é-nos necessário levar em linha de conta a persistência de um modelo de interpretação e a inver¬ são do seu sentido.

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Com essa finalidade, tratarei de examinar algumas manifestações contemporâneas que ilustram nos domí¬ nios da arte, da política e da teoria a inversão dos modos de descrição e de demonstração próprios da tradição crítica. Para o efeito começarei pelo domínio em que essa tradição ainda hoje se mostra mais viva, o da arte, e em especial o das grandes exposições internacionais em que a apresentação das obras se inscreve aberta¬ mente no quadro de uma reflexão global sobre o estado do mundo. Deste modo, em 2006, o comissário da Bie­nal de Sevilha, Kozui Enwezor, dedicou essa manifesta¬ ção artística ao desmascaramento, na era da globaliza¬ ção, dos «mecanismos que dizimam e arruínam os laços sociais, económicos e políticos» 1. Como é natural, no primeiro plano dos mecanismos devastadores encon¬ trava-se a máquina de guerra americana, e entrava-se na exposição atravessando salas dedicadas às guerras do Afeganistão e do Iraque. A par de imagens da guerra civil no Iraque podiam ver-se fotografias das manifes¬ tações contra a guerra captadas por uma artista alemã instalada em Nova Iorque, Josephine Meckseper. Uma dessas fotografias retinha a atenção: nela via-se em plano recuado um grupo de manifestantes que trans¬ portavam cartazes. Quanto ao primeiro plano, estava ocupado por um caixote de lixo cujo conteúdo transbor­dava, espalhando-se pelo chão. A fotografia intitulava-se

1 O título exacto dessa manifes tação ar t ís t ica era: The Unhomely. PhantomalScenes

in the Global World.

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simplesmente Sem Título, o que, naquele contexto, pare­cia querer dizer: não é necessário título; a imagem, só por si, diz bastante.

Podemos compreender o que a imagem dizia, se fizermos convergir a tensão entre os cartazes políticos e o caixote de lixo com uma forma artística particular¬ mente representativa da tradição crítica em arte, a da colagem. A fotografia da manifestação não é uma cola¬ gem no sentido técnico do termo, mas o efeito desta fotografia resulta de um jogo com elementos que fize¬ ram a fortuna artística e política da colagem e da foto-montagem: o choque, numa mesma superfície, de ele¬ mentos heterogéneos, se não mesmo conflituais. No tempo do surrealismo, este procedimento serviu para manifestar, numa época dominada pelo prosaísmo do quotidiano burguês, a realidade reprimida do desejo e do sonho. O marxismo apoderou-se do mesmo pro¬ cedimento para tornar sensível, por via do encontro incongruente de elementos heterogéneos, a violência da dominação de classe escondida sob as aparências do quotidiano vulgar e da paz democrática. Era este o prin¬ cípio da distanciação brechtiana. Mas era ainda este princípio que governava, nos anos setenta do século xx, as fotomontagens executadas por uma artista ameri¬ cana politicamente comprometida, Martha Rosler, na sua série intitulada Bringing the WarHome, em que em cima de imagens de interiores de lares americanos feli¬ zes colava imagens da Guerra do Vietname. Por exem­plo, uma montagem intitulada Balloons mostrava, sobre

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a imagem de fundo de uma espaçosa vivenda onde apa­reciam a um canto balões insufláveis, um vietnamita transportando nos braços uma criança morta, atingida pelas balas do exército americano. A conexão das duas imagens tratava de produzir um efeito duplo: a consciên¬ cia do sistema de dominação que ligava a felicidade doméstica americana à violência da guerra imperia¬ lista, mas também um sentimento de cumplicidade cul¬ pada com esse sistema. Por um lado, a imagem dizia: eis a realidade escondida que não sabeis ver; deveis tomar consciência dela e agir de acordo com esse conheci¬ mento. Mas não é evidente que o conhecimento duma situação transporte consigo o desejo de a transformar. Por isso, a imagem dizia também uma outra coisa: eis a realidade óbvia que não quereis ver, porque sabeis que sois responsáveis por ela. O dispositivo crítico visava, portanto, um duplo efeito: uma tomada de consciência da realidade oculta e um sentimento de culpabilidade em face da realidade negada.

A fotografia dos manifestantes e do caixote de lixo coloca em jogo os mesmos elementos das fotomonta¬ gens a que nos referimos: a guerra distante e o consumo doméstico. Josephine Meckseper é tão hostil à guerra de George Bush como Martha Rosler o era ém relação à guerra de Nixon. Porém, o jogo de contrários na fotogra¬ fia da artista alemã funciona de modo muito diferente: não liga o hiperconsumo americano à guerra longín¬ qua para reforçar as energias militantes hostis à guerra. Antes lança esse hiperconsumo como uma acusação

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aos manifestantes que pretendem voltar a levar a guerra para casa. As fotomontagens de Martha Rosler acen­tuavam a heterogeneidade dos elementos: a imagem da criança morta não podia integrar-se no belíssimo interior da vivenda sem o fazer explodir. Inversamente, a fotografia dos manifestantes junto do caixote de lixo sublinha a sua homogeneidade fundamental. A fotogra¬ fia sugere-nos assim que a própria marcha dos mani¬ festantes é uma marcha de consumidores de imagens e de indignações espectaculares. Esta maneira de ler a imagem harmoniza-se com as instalações que cele¬ brizaram Josephine Meckseper. Tais instalações, visí¬ veis hoje em muitas exposições, são pequenas vitrinas, inteiramente semelhantes a mostruários comerciais ou publicitários, nas quais a artista reúne, como nas foto¬ montagens de outros tempos, elementos que suposta¬ mente pertencem a universos heterogéneos: por exem¬ plo, numa instalação intitulada À venda, um livro acerca da história de um grupo de guerrilheiros urbanos ingle¬ ses que tinham precisamente querido levar a guerra para dentro das metrópoles imperialistas surge no meio de artigos de moda masculina; numa outra, um manequim para exibição de lingerie feminina aparece ao lado de um cartaz de propaganda comunista; ou então o slogan

de Maio de 68 «Não trabalhes nunca» surge em fras¬ cos de perfume. Aparentemente estes objectos contra¬ dizem-se, mas trata-se de mostrar que eles pertencem à mesma realidade e que o radicalismo político é, tam¬ bém ele, um fenómeno da moda jovem. É disto mesmo

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que, à sua maneira, daria testemunho a fotografia dos manifestantes: estes protestam contra a guerra con¬ duzida pelo império do consumo que larga as suas bombas sobre as cidades do Médio Oriente. Mas essas bombas são uma resposta à destruição das torres gémeas, destruição essa que foi encenada como espec¬ táculo do desmoronamento do império da mercadoria e do espectáculo. Sendo assim, a imagem parece dizer--nos: estes manifestantes estão ali porque consumiram as imagens da queda das torres e dos bombardeamen¬ tos no Iraque. E o que eles nos dão nas ruas é uma vez mais um espectáculo. Em última instância, terrorismo e consumo, protesto e espectáculo são reconduzidos a um mesmo e único processo governado pela lei mer¬ cantil da equivalência.

Mas se esta demonstração visual fosse levada ao extremo, deveria conduzir à própria abolição do proce¬ dimento crítico: se tudo não passa de exibição espec¬ tacular, a oposição entre a aparência e a realidade, que dava fundamento à eficácia do discurso crítico, cai por si só, e com ela desmorona-se igualmente toda a culpa¬ bilidade em relação aos seres situados do lado da rea¬ lidade obscura ou denegada. Neste caso, o dispositivo crítico mostraria simplesmente a sua própria falência. Ora, não é isso que se passa. As pequenas vitrinas que misturam propaganda revolucionária e moda jovem continuam a lógica dupla da intervenção militante de outros tempos. Dizem-nos ainda: eis a realidade que não sabeis ver, o reino ilimitado da exposição mercantil,

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o horror niilista do modo de vida pequeno-burguês de hoje; mas dizem-nos também: eis a realidade que não quereis ver, a participação dos vossos pretensos gestos de revolta nesse processo de exibição de signos de dis¬ tinção governado pela exibição mercantil. Consequen¬ temente, a artista crítica continua a propor-se produ¬ zir o curto-circuito e o desacordo violento que revelam o segredo escondido pela exibição das imagens. Em Mar¬ tha Rosler, o desacordo devia revelar a violência impe¬ rialista por trás da exibição feliz dos bens e das ima¬ gens. Em Josephine Meckseper, a exibição das imagens revela-se idêntica à estrutura de uma realidade em que tudo é exposto segundo o modo da exibição mercantil. Mas continua a tratar-se de mostrar ao espectador o que ele não sabe ver, e de fazer com que ele experimente vergonha em relação àquilo que não quer ver, correndo embora o risco de que o dispositivo crítico se apresente ele mesmo como uma mercadoria de luxo fazendo parte da lógica que denuncia.

Sendo assim, há de facto uma dialéctica inerente à denúncia do paradigma crítico: tal denúncia, ao decla¬ rar a obsolescência do paradigma crítico, mais não faz do que reproduzir-lhe o mecanismo, correndo embora o risco de transformar a ignorância da realidade ou a denegação da miséria em ignorância do facto de que realidade e miséria teriam desaparecido, ou de transfor¬ mar o desejo de ignorar o que culpabiliza em desejo de ignorar que nada existiria de que devêssemos sentir-nos culpados. É este, em substância, o argumento defendido já

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não por um artista, mas por um filósofo. Peter Sloterdijk, no seu livro Ecumes. Tal como Sloterdijk o descreve, o processo da modernidade é um processo de anti-gra-vitação. Claro que o termo se refere em primeiro lugar às invenções técnicas que permitiram aos homens con¬ quistar o espaço e aos inventos que fizeram com que as tecnologias da comunicação e da realidade virtual passassem a ocupar o sólido lugar do mundo indus¬ trial. Mas o termo exprime igualmente a ideia de que a vida teria perdido grande parte da sua gravidade de outros tempos, entendendo-se por esta expressão a sua carga de sofrimento, de severidade e de miséria, e jun¬ tamente com esta carga o seu peso de realidade. Em consequência, os procedimentos tradicionais do pen¬ samento crítico fundados sobre «as definições da rea¬ lidade formuladas pela ontologia da pobreza» teriam deixado de ter razão de ser. Segundo Sloterdijk, se tais procedimentos subsistem, é porque a crença na soli¬ dez do real e o sentimento de culpabilidade em rela¬ ção à miséria sobrevivem à perda do respectivo objecto. Essa crença e esse sentimento sobrevivem no pen¬ samento crítico segundo o modo da ilusão necessᬠria. Marx entendia que os homens projectavam no céu da religião e da ideologia a imagem invertida da sua miséria real. Os nossos contemporâneos, no dizer de Sloterdijk, fazem o contrário: projectam na ficção de uma realidade sólida a imagem invertida deste pro¬ cesso que, de modo generalizado, vai tornando a carga menos pesada.

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Seja qual for a ideia que se exprime no espaço público, é a mentira da miséria que redige o texto. Todos os discursos estão submetidos à lei que consiste em retroverter para o jargão da miséria o luxo chegado ao poder.2

O embaraço culpabilizante experimentado perante o desaparecimento do peso e da miséria exprimir-se-ia de modo invertido no retomar do velho discurso mise-rabilista e de vitimização.

Esta análise convida-nos a libertarmo-nos das for­mas e do conteúdo da tradição crítica. Mas fá-lo à custa de reproduzir a respectiva lógica. Diz-nos uma vez mais que somos vítimas de uma estrutura global de ilusão, vítimas da nossa ignorância e da nossa resistência face a um processo global irresistível de desenvolvimento das forças produtivas: o processo de desmaterializa¬ ção da riqueza, processo que tem como consequência a perda das crenças e dos ideais antigos. Na respec¬ tiva argumentação reconhecemos facilmente a indes¬ trutível lógica do Manifesto Comunista. Não é por acaso que o pretenso pós-modernismo teve de tomar de empréstimo a fórmula canónica do Manifesto: «Tudo o que é sólido dissolve-se no ar.» Tudo se tornaria fluido, líquido, gasoso, e só nos restaria rir dos ideólogos que ainda acreditam na realidade da realidade, da miséria e das guerras.

2 Peter Sloterdijk, Écumes, trad. Olivier Marinoni, Maren Sel] éditeurs, Paris, 2005, p. 5-

[Titulo original: Schàume, Suhrkamp Verlag, Frankfurt a.M., 2004.]

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Estas teses, por mais provocatórias que pretendam ser, permanecem fechadas na lógica da tradição crítica. Continuam fiéis à tese do processo histórico inelutável e do seu efeito necessário: o mecanismo de inversão que transforma a realidade em ilusão ou a ilusão em reali¬ dade, a pobreza em riqueza ou a riqueza em pobreza. Continuam a denunciar uma incapacidade de conhecer e um desejo de ignorar. E continuam a apontar o dedo a uma culpabilidade no cerne da denegação. Sendo assim, esta crítica da tradição crítica continua a empre¬ gar os mesmos conceitos e os mesmos procedimentos dessa tradição. Mas é verdade que alguma coisa mudou. Ainda não há muito, tais procedimentos propunham-se suscitar formas de consciência e energias voltadas para um processo de emancipação. Hoje ou estão completa¬ mente desligadas desse horizonte de emancipação, ou viram-se abertamente contra esse sonho.

E este contexto que é ilustrado pela fábula dos mani¬ festantes e do caixote de lixo. Não há dúvida de que a fotografia não exprime qualquer condenação dos mani¬ festantes. Na verdade, já nos anos 6o, Godard ironi¬ zava sobre os «filhos de Marx e da Coca-Cola»; e con­tudo acompanhava-os nas suas manifestações, porque, quando se manifestavam contra a Guerra do Vietname, os filhos da era da Coca-Cola combatiam - ou pelo menos pensavam que combatiam - ao lado dos filhos de Marx. O que se modificou nos últimos quarenta anos não foi que Marx tivesse desaparecido, absor¬ vido pela Coca-Cola. Marx não desapareceu. Mudou

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de lugar. Está hoje alojado no coração do sistema como voz ventríloqua desse mesmo sistema. Tornou-se o fan¬ tasma infame ou o pai infame que testemunha da inf⬠mia comum dos filhos de Marx e da Coca-Cola. Nou­tro tempo, Gramsci caracterizara a Revolução Soviética como revolução contra O Capital, contra o livro de Marx que se tornara a bíblia do cientismo burguês. Poder-se--ia dizer o mesmo do marxismo em cujo seio a minha geração cresceu: o marxismo da denúncia das mitolo¬ gias da mercadoria, das ilusões da sociedade de con¬ sumo e do império do espectáculo. Há quarenta anos, supunha-se que esse mesmo marxismo denunciava os mecanismos da dominação social para fornecer novas armas aos que a afrontavam. Hoje, tornou-se um saber desencantado do reino da mercadoria e do espectáculo, da equivalência de todas as coisas com todas as outras e de todas as coisas com a sua própria imagem. Esta sabe¬ doria pós-marxista e pós-situacionista não se contenta em dar um quadro fantasmagórico de uma humanidade inteiramente enterrada debaixo dos dejectos do seu consumo frenético. Pinta igualmente a lei da dominação como uma força que se apropria de tudo o que pretende contestá-la. Faz de todo o protesto um espectáculo e de todo o espectáculo uma mercadoria. Faz do protesto expressão de uma vaidade, mas também demonstração de uma culpabilidade. A voz do fantasma ventríloquo diz-nos que somos duas vezes culpados, culpados por duas razões opostas: porque ainda nos agarramos aos tempos idos da realidade e da culpabilidade, fazendo de

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conta que ignoramos que já não há nada de que deva¬ mos sentir-nos culpados; mas também porque contri¬ buímos, por via do nosso próprio consumo de merca¬ dorias, de espectáculos e de manifestações de protesto, para o reino infame da equivalência mercantil. Esta inculpação dupla implica uma notável redistribuição das posições políticas: por um lado, a velha denúncia de esquerda do império da mercadoria e das imagens tor¬ nou-se uma forma de aquiescência irónica ou melancó¬ lica com esse mesmo império inevitável; por outro lado, as energias militantes viraram-se para a direita onde alimentam uma nova crítica da mercadoria e do espec¬ táculo cujos danos se vêem requalificados como crimes dos indivíduos democráticos.

Assim, de um lado, temos a ironia ou a melanco¬ lia de esquerda que nos pressiona no sentido de con¬ fessarmos que todos os nossos desejos de subversão continuam a obedecer à lei do mercado e que mais não fazemos do que comprazer-nos no novo jogo disponí¬ vel no mercado global, o da experimentação sem limi¬ tes da nossa própria vida. Esta perspectiva mostra-nos absortos dentro do ventre do monstro onde mesmo as nossas capacidades de prática autónoma e subversiva e as redes de interacção que pudéssemos usar contra ele servem o novo poder da besta, a besta da produ¬ ção imaterial. A besta, dizem-nos, exerce a sua domi¬ nação sobre os desejos e as capacidades dos seus ini¬ migos potenciais oferecendo-lhes ao melhor preço a mais apreciada das mercadorias, a capacidade de cada

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um experimentar a sua vida como um campo de cultivo de possibilidades infinitas. Oferece assim a cada um aquilo que ele pode desejar: reality shows para os cre¬ tinos e possibilidades acrescidas de autovalorização para os espertos. Aí reside, ao que nos diz o discurso melancólico, a armadilha em que caíram os que acre¬ ditaram que estavam a derrubar o poder capitalista, e que pelo contrário lhe deram os meios de rejuvenescer nutrindo-se à custa das energias contestatarias. Este discurso encontrou o seu alimento em 0Novo Espírito do

Capitalismo de Luc Boltanski e Eve Chiapello. Segundo estes sociólogos, as palavras de ordem das revoltas dos anos 6o e em particular do movimento estudantil de Maio de 68 teriam fornecido ao capitalismo em difi¬ culdades depois da crise petrolífera de 1973 os meios de se regenerar. Com efeito, o Maio de 68 teria privi¬ legiado os temas da «crítica artista» do capitalismo - o protesto contra um mundo desencantado, as rei¬ vindicações de autenticidade, de criatividade e de autonomia - por oposição à crítica «social» do capi¬ talismo, própria do movimento operário: a crítica das desigualdades e da miséria e a denúncia do egoísmo destruidor dos laços comunitários. São esses temas que teriam sido integrados pelo capitalismo contem¬ porâneo, conferindo a tais desejos de autonomia e de criatividade autêntica a sua nova «flexibilidade», o seu enquadramento moldável, as suas estruturas ligei¬ ras e inovadoras, o seu apelo à iniciativa individual e a «cidadania por projectos».

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Em si mesma a tese é muito pouco sólida. Longe dos discursos para seminários de administradores que lhe dão a sua matéria, o que encontramos na realidade são formas de dominação capitalistas contemporâneas em que a «flexibilidade» do trabalho significa a adap¬ tação forçada a formas de produtividade acrescidas sob a ameaça de despedimentos, encerramentos de empre¬ sas ou deslocalizações, muito mais do que o apelo à criatividade generalizada oriundo dos filhos de Maio de 68. De resto, a preocupação com a criatividade no tra¬ balho estava muito distante das palavras de ordem do movimento de 1968 que, pelo contrário, se colocou con¬ tra o tema da «participação» e contra o convite feito à juventude instruída e generosa no sentido de ocupar o seu lugar num capitalismo modernizado e humanizado, que estavam no cerne da ideologia neocapitalista e do reformismo estatal dos anos 60. A oposição entre crí¬ tica artista e crítica social não assenta sobre qualquer análise das formas históricas assumidas pela contes¬ tação. Essa oposição, em conformidade com a lição de Bourdieu, limita-se a atribuir aos operários a luta con¬ tra a miséria e em prol dos laços comunitários, e a atri¬ buir o desejo individualista de criatividade autónoma aos filhos temporariamente rebeldes da pequena ou da grande burguesia. Mas a luta colectiva pela emancipa¬ ção operária nunca se separou de uma experiência nova de vida e de capacidade individuais, obtidas sob o cons¬ trangimento dos antigos laços comunitários. A eman¬ cipação social foi ao mesmo tempo uma emancipação

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estética, uma rotura com as maneiras de sentir, de ver e de dizer que caracterizavam a identidade operária den­tro da antiga ordem hierárquica. Esta solidariedade do social e do estético, da descoberta da individualidade para todos e do projecto de colectividade livre constituiu o núcleo mais central da emancipação operária. Mas, ao mesmo tempo, significou essa desordem das clas¬ ses e das identidades que a visão sociológica do mundo sempre recusou, uma desordem contra a qual ao fim e ao cabo essa visão se constituiu no século x i x . E pois natural que tenha voltado a encontrá-la nas manifesta­ções e nas palavras de ordem de 1968 e compreende-se que tenha a preocupação de liquidar finalmente a per¬ turbação que a dita desordem trouxe à boa distribuição das classes, das respectivas maneiras de ser e formas de acção.

Deste modo, o que pôde exercer sedução não foi nem a novidade nem a força da tese, mas sim o modo como ela volta a pôr em funcionamento o tema «crítico» da ilusão cúmplice. Ela vinha assim alimentar aversão melancó¬ lica do esquerdismo que se nutre da dupla denúncia do poder da besta e das ilusões dos que a servem julgando combatê-la. E verdade que a tese da recuperação das revoltas «artistas» abre a via para várias conclusões: no momento do seu aparecimento vinha dar sustentação à proposta de uma radicalidade que seria finalmente radi¬ cal, a defecção em massa das forças do Intelecto Geral, hoje absorvidas pelo Capital e pelo Estado, avançada por Paolo Virno, ou a subversão virtual posta em opo-

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sição ao capitalismo virtual por Brian Holmes 3. Fomen¬ tava igualmente a proposta de um militantismo inver¬ tido, já não aplicado em destruir, mas sim em salvar um capitalismo que teria perdido o seu espírito 4. Mas o grau mais baixo da dita tese é o da constatação desencantada da impossibilidade de mudar o curso de um mundo em que não haveria nenhum ponto sólido que permitisse uma oposição à realidade da dominação, uma reali¬ dade tornada gasosa, líquida, imaterial. Na verdade, que podem os manifestantes/consumidores fotografados por Josephine Meckseper face a uma guerra assim des¬ crita por um eminente sociólogo do nosso tempo?

Hoje em dia, a técnica fundamental do poder é a esquiva, passar de lado, elidir, evitar, rejeitar efectivamente toda e qualquer delimitação territorial juntamente com o peso dos respectivos corolários de uma ordem a edificar, de uma ordem a manter, e com a responsabilidade das con¬ sequências, tal como a necessidade de pagar os seus cus­tos. [...] Ataques levados a cabo por aviões de combate

3 Vd. Paolo Virno, Miracle, virtuosité et «déjà-vu». Trois essais sur l'idée de «monde»,

Edit ions de l 'Éclat, Par is , 1996, e Brian Ho lmes , «The Flexible Personal i ty .

For a New Cultural Cri t ique», in Hieroglyphs of the Future. Art and Politics in a

Networked Era, B roadcas t ing Project, Pa r i s /Zagreb , 2002 (também disponível em

w w w . g e o c i t i e s . c o m / C o g n i t i v e C a p i t a l i s m / h o l m e s l . h t m l ) , e a inda «Révei l le r

les fantômes col lect i fs . Rés i s t ance ré t icula i re , pe r sonna l i t é flexible» (www.

. republ icar .ne t /d isc /ar t sabotage/holmesO 1 _fr.pdf).

4 Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit y, Aesprit perdu du capitalisme, Gal i lée ,

Paris , 2 0 0 6 .

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furtivos e por mísseis inteligentes teleguiados, dotados de instrumentos de busca dos alvos - ataques executados de

•. surpresa, a partir de lugar nenhum, e imediatamente sub¬ traídos aos olhares -, substituíram os avanços territoriais das tropas de infantaria e o esforço para desapossar o ini¬ migo do seu território. [...] A força militar e a sua estra­tégia de hit-and-run prefiguravam, encarnavam e pressa¬ giavam o que era realmente o modo de funcionamento do novo tipo de guerra na era da modernidade líquida: já não conquistar um novo território, mas sim fazer cair os muros que impediam a progressão dos novos poderes globais e fluidos.5

Este diagnóstico foi publicado no ano 2000. Seria difícil vê-lo plenamente verificado pelas acções milita¬ res dos oito anos subsequentes. Mas a predição melan¬ cólica não diz respeito a factos verificáveis. Diz-nos simplesmente: as coisas não são o que parecem ser. Uma proposição, portanto, que não corre o risco de alguma vez vir a ser refutada. A melancolia alimenta-se da sua própria impotência. Basta-lhe poder convertê-la em impotência generalizada e reservar para si própria a posição do espírito lúcido que lança um olhar desen¬ cantado sobre um mundo no qual a interpretação crítica do sistema se tornou um elemento do próprio sistema.

Face a esta melancolia de esquerda temos visto desenvolver-se um novo furor de direita que reformula a

s Z y g m u n t B a u m a n , LiquidModernity, Polity Press , Cambr idge , 2000 , pp. 1 1 - 1 2 .

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denúncia do mercado, dos media e do espectáculo como denúncia dos danos causados pelo indivíduo democrᬠtico. Noutro tempo, a opinião dominante entendia sob a designação de democracia a convergência entre uma forma de governação fundada nas liberdades públicas e um modo de vida individual baseado na livre esco¬ lha posta à disposição pelo mercado livre. Enquanto durou o império soviético, a opinião dominante opu¬ nha a democracia assim concebida ao inimigo que dava pelo nome de totalitarismo. Mas o consenso acerca da fórmula que identificava a democracia com o somató¬ rio dos direitos do homem, do mercado livre e da livre escolha individual dissipou-se com o desaparecimento do inimigo. Nos anos que se seguiram a 1989, surgiram campanhas intelectuais cada vez mais furiosas denun¬ ciando o efeito fatal da conjunção entre os direitos do homem e a livre escolha dos indivíduos. Sociólogos, filósofos políticos e moralistas revezavam-se na ten¬ tativa de nos explicar que os direitos do homem, como Marx bem vira, são os direitos do indivíduo egoísta bur¬ guês, os direitos dos consumidores de toda a espécie de mercadorias, e que tais direitos, hoje em dia, levavam esses mesmos consumidores a destruir todo e qual¬ quer entrave ao respectivo frenesi e consequentemente a destruir todas as formas tradicionais de autoridade que impunham limites ao poder do mercado: a escola, a reli¬ gião ou a família. Segundo eles, era este o sentido real da palavra democracia: a lei do indivíduo preocupado unicamente com a satisfação dos seus desejos. Os indi-

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víduos democráticos querem a igualdade. Mas a igual¬ dade que querem é a que governa a relação entre o ven¬ dedor e o comprador de uma mercadoria. O que tais indivíduos querem, portanto, é o triunfo do mercado em todas as relações humanas. E quanto mais se mostram inflamados na defesa da igualdade, mais ardentemente contribuem para esse triunfo. Nesta base, era fácil pro¬ var que os movimentos estudantis dos anos 6o e mais particularmente o de Maio de 1968 em França visavam tão-somente a destruição das formas de autoridade tra¬ dicional que se opunham à invasão generalizada da vida pela lei do Capital, e que o efeito único de tais movi¬ mentos foi a transformação das nossas sociedades em livres agregados de moléculas desconectadas, privadas de qualquer afiliação, inteiramente disponíveis para a exclusividade do império da lei do mercado.

Mas esta nova crítica da mercadoria havia de dar ainda mais um passo atribuindo à sede democrática de consumo igualitário, como sua consequência, não apenas o império do mercado, mas também a destruição terrorista e totalitária dos laços sociais e humanos. Noutro tempo estabelecia-se a oposição entre individualismo e totalitarismo. Nesta nova teorização, porém, o totalitarismo passa a ser a consequên¬ cia do fanatismo individualista da livre escolha e do con¬ sumo ilimitado. No momento do colapso das torres gémeas, um eminente psicanalista, jurista e filósofo, Pierre Legen-dre, explicava no jornal Le Monde que o ataque terrorista era o regresso do recalcado ocidental, a sanção pela destrui¬ ção ocidental da ordem simbólica, resumida no casamento

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homossexual. Dois anos mais tarde, um eminente filósofo e linguista, Jean-Claude Milner, imprimia a esta interpreta­ção um cunho mais radical no seu livro Les Penchants crimi­

neis de l 'Europe démocratique. O crime que imputava à Europa democrática era simplesmente a exterminação dos judeus. A democracia, argumentava Milner, é o reino da ilimitação social; a democracia está animada pelo desejo de expansão sem fim deste processo de ilimitação. Como o povo judeu é, pelo contrário, o povo fiel à lei da filiação e da transmissão, representava o único obstáculo a essa tendência inerente à democracia. Por tal razão a democracia tinha necessidade de eliminá-lo e era a única beneficiária dessa eliminação. E nos tumultos dos arredores das cidades francesas, em Novem­bro de 2005, o porta-voz da inteligência mediática francesa, Alain Finkielkraut, via uma consequência directa do terro­rismo democrático do consumo sem entraves:

Estes indivíduos que destroem escolas, declarava Fin-kielkraut, que dizem de facto? A sua mensagem não é um pedido de auxílio, nem uma exigência de mais esco¬ las ou de melhores escolas; é sim a vontade de liquidar os intermediários entre eles e os objectos dos seus desejos. E quais são os objectos dos seus desejos? A resposta é simples: o dinheiro, as marcas e, por vezes, as raparigas, [...] querem tudo já, e o que querem é o ideal da sociedade de consumo. E o que vêem na televisão.6

6 A la in Finkie lkraut em entrevis ta dada ao Haaretz, em 18 de Novembro de

2 0 0 5 , tradução [francesa] de Miche l W a r s c h a w s k i e Michè le Sibony.

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Ora, uma vez que o mesmo autor afirmava que esses jovens tinham sido levados a desencadear os tumul¬ tos por influência de fanáticos islamitas, a demonstra¬ ção fazia afinal convergir numa só figura a democracia, o consumo, a puerilidade, o fanatismo religioso e a vio¬ lência terrorista. Em última instância, a crítica do con¬ sumo e do espectáculo identificava-se com os temas mais crus do choque das civilizações e da guerra contra o terror.

Pus em oposição este furor direitista da crítica pós--crítica e a melancolia de esquerda. Trata-se, porém, de duas faces da mesma moeda. Ambas as posições põem em acção a mesma inversão do modelo crítico que pre¬ tendia revelar a lei da mercadoria como verdade última das belas aparências no intuito de armar os combaten¬ tes da luta social. A revelação segue sempre o mesmo caminho. Mas já não se lhe atribui a função de forne¬ cer armas contra o império que denuncia. A melancolia de esquerda convida-nos a reconhecer que não há alter¬ nativa ao poder da besta e a confessarmos que estamos satisfeitos com tal facto. O furor de direita adverte-nos de que, quanto mais queremos destruir o poder da besta, mais contribuímos para o seu triunfo. Mas esta desco¬ nexão entre os procedimentos críticos e a respectiva finalidade retira-lhes por outro lado toda a esperança de eficácia. Os melancólicos e os profetas envergam os trajes da razão esclarecida que decifra os sintomas de uma doença da civilização. Mas esta razão esclare¬ cida apresenta-se em si mesma como estando privada

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de qualquer efeito em relação aos doentes cuja doença consiste em não saberem que o estão. No final de con¬ tas, a interminável crítica do sistema identifica-se com a demonstração das razões pelas quais essa mesma crí¬ tica se encontra privada de qualquer efeito.

E evidente que esta impotência da razão esclare¬ cida não é acidental. É intrínseca a essa figura da crítica pós-crítica. Os mesmos profetas que choram a derrota da razão das Luzes face ao terrorismo do «individua¬ lismo democrático» fazem cair a desconfiança sobre essa mesma razão. No «terror» que denunciam vêem uma consequência da livre flutuação dos átomos indivi¬ duais desligados dos laços das instituições tradicionais que mantêm os seres humanos em conjunto: família, escola, religião, solidariedades tradicionais. Ora esta argumentação tem uma história bem identificável. Tem a sua origem na análise contra-revolucionária da Revo¬ lução Francesa. Segundo essa análise, a Revolução Fran¬ cesa tinha destruído o tecido das instituições colecti¬ vas que reuniam, educavam e protegiam os indivíduos: a religião, a monarquia, os laços feudais de dependên¬ cia, as corporações, etc. Para a citada análise, uma tal destruição era o produto do espírito das Luzes, que era afinal o espírito do individualismo protestante. Como consequência, estes indivíduos desconectados, cultu¬ ralmente desligados e privados de protecção tinham passado a estar disponíveis quer para o terrorismo de massas quer para a exploração capitalista. A campanha antidemocrática dos nossos dias retoma abertamente

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esta análise da ligação entre democracia, mercado e ter¬ ror. Mas, se consegue reconduzir a esse mesmo ponto a análise marxista da revolução burguesa e do fetichismo mercantil, é porque esta última nasceu do mesmo solo e a ele foi buscar parte substancial do seu alimento. A crítica marxista dos direitos do homem, da revolu¬ ção burguesa e da relação social alienada desenvolveu¬ -se de facto com raízes nesse terreno da interpretação pós-revolucionária e contra-revolucionária da revo¬ lução democrática como revolução individualista bur¬ guesa que tratava de rasgar o tecido da comunidade. E é de modo inteiramente natural que o reverso crítico da tradição crítica saída do marxismo nos reconduz a esse mesmo ponto.

É portanto falso dizer que a tradição da crítica social e cultural está esgotada. Pelo contrário, está de muito boa saúde sob a sua forma invertida que estrutura hoje o discurso dominante. Simplesmente sucede que foi reconduzida ao seu terreno de origem: o da interpreta¬ ção da modernidade como sendo a rotura individualista do laço social e da democracia como individualismo de massas. E, ao mesmo tempo, foi igualmente reconduzida à tensão originária entre a lógica desta interpretação da «modernidade democrática» e a lógica da emancipação social. A actual ausência de conexão entre a crítica do mercado e do espectáculo, por um lado, e toda e qual¬ quer perspectiva emancipadora, por outro, é a forma última duma tensão que sempre habitou no seio do movimento de emancipação social, desde a sua origem.

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Para compreender essa tensão é preciso regressar ao sentido original da palavra «emancipação»: a saída de um estado de menoridade. Ora, este estado de menori¬ dade do qual os militantes da emancipação social qui¬ seram sair é, no seu princípio, a mesma coisa que esse «tecido harmonioso da comunidade» com o qual sonha¬ vam, há dois séculos, os pensadores da contra-revolu¬ ção e com o qual se enternecem hoje em dia os pensado¬ res pós-marxistas do laço social perdido. A comunidade harmoniosamente tecida que constitui objecto de tais nostalgias é aquela em que cada um ocupa o seu lugar dentro da classe a que pertence, ocupado com a fun¬ ção que lhe compete e dotado do equipamento sensí¬ vel e intelectual que convém a esse lugar e a essa fun¬ ção: a comunidade platónica em que os artistas devem permanecer no seu lugar porque o trabalho não espera - não deixa tempo para ir conversar na agora, deliberar na assembleia e ver sombras no teatro -, mas também porque a divindade lhes deu a alma de ferro - o equi¬ pamento sensível e intelectual - que os adapta a essa ocupação e os mantém fixos nela. E aquilo a que chamo a partilha policial do sensível: a existência de uma rela¬ ção «harmoniosa» entre uma ocupação e um equi¬ pamento, entre, por um lado, o facto de se estar num tempo e num espaço específicos, nele exercer uma ocupação definida, e, por outro lado, o facto de se ser dotado de capacidades de sentir, de dizer e de fazer que convêm a essas actividades. Na verdade, a emancipa¬ ção social significou a rotura desta concordância entre

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uma «ocupação» e uma «capacidade» que traduzia a incapacidade de conquistar um outro espaço e um outro tempo. Significou o desmantelamento desse corpo tra¬ balhador adaptado à ocupação do artesão que sabe que o trabalho não espera e cujos sentidos são formatados por essa «falta de tempo». Os trabalhadores emanci­pados formavam para si próprios, Mc etnunc, um outro corpo e uma outra «alma» desse corpo - o corpo e a alma dos que não se encontram adaptados a nenhuma ocupação específica, que põem em acção as capacida¬ des de sentir e de trabalhar, de pensar e de agir que não pertencem a nenhuma classe particular, que pertencem a quem quer que seja.

Mas esta ideia e esta prática da emancipação encon¬ traram-se historicamente misturadas com uma outra ideia muito diferente da dominação e da libertação -e finalmente submetidas a ela: a ideia que ligava a dominação a um processo de separação e, consequen¬ temente, a libertação à reconquista de uma unidade perdida. Segundo esta visão das coisas, exemplarmente resumida nos textos do jovem Marx, a sujeição à lei do Capital era o resultado de uma sociedade cuja unidade tinha sido rompida, cuja riqueza tinha sido alienada, sendo projectada ou para cima ou à sua frente. Nessas condições, a emancipação só podia surgir como reapro-priação global de um bem perdido pela comunidade. E tal reapropriação só podia ser o resultado do conheci¬ mento do processo global da referida separação. Deste ponto de vista, as formas de emancipação daqueles

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artesãos que a si mesmos davam um corpo novo para viver aqui e agora num novo mundo sensível só podiam ser ilusões produzidas pelo processo de separação e pela ignorância deste mesmo processo. A emancipação só podia chegar como fim do processo global que havia separado a sociedade da sua verdade.

A partir daí, a emancipação já não era concebida como construção de novas capacidades; era antes a promessa que a ciência fazia àqueles cujas capacida­des ilusórias só podiam ser a outra face da sua incapa¬ cidade real. Porém, a própria lógica da ciência era a do diferimento indefinido da promessa. A ciência que pro¬ metia a liberdade era igualmente a ciência do processo global que tem como efeito produzir indefinidamente a ignorância relativamente a esse processo. É por isso que a ciência precisava constantemente de se aplicar na decifração das imagens enganadoras e no desmas¬ caramento das formas ilusórias de enriquecimento de si, que, nesta lógica, só podiam fechar um pouco mais os indivíduos nas teias da ilusão, da sujeição e da misé¬ ria. É conhecido o nível de frenesi que alcançou, entre o tempo das Mitologias de Barthes e o de A Sociedade do

Espectáculo de Guy Debord, a leitura crítica das imagens e o desvelar das mensagens enganosas que elas dissi¬ mulavam. E igualmente sabido como este frenesi de decifração das mensagens enganadoras veiculadas por toda e qualquer imagem foi invertido nos anos 8o do século xx com a afirmação desiludida de que tinha dei¬ xado de haver lugar para distinguir entre imagem e rea-

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lidade. Mas esta inversão é somente a consequência da lógica originária que concebe o processo social global como um processo de autodissimulação. Ao fim e ao cabo, o segredo oculto mais não é do que o funciona¬ mento óbvio da máquina. E de facto essa a verdade do conceito de espectáculo tal como ele foi fixado por Guy Debord: o espectáculo não é o mostruário das imagens que escondem a realidade. E antes a existência da activi¬ dade social e da riqueza social como realidade separada. A situação daqueles que vivem na sociedade do espec¬ táculo é assim idêntica à dos prisioneiros agrilhoados na caverna platónica. A caverna é o lugar onde as ima¬ gens são tomadas por realidades, onde a ignorância é tomada por saber e a pobreza por uma riqueza. E quanto mais os prisioneiros imaginam ser capazes de construir a sua vida individual e colectiva de uma outra maneira, mais se enredam na servidão da caverna. Mas esta declaração de impotência volta a recair sobre a ciência que a proclama. Conhecer alei do espectáculo acaba por significar conhecer a maneira segundo a qual o espectᬠculo reproduz indefinidamente a falsificação que é idên¬ tica à sua realidade. Guy Debord resumiu a lógica deste círculo numa fórmula lapidar: «No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.» 7 Deste modo, o conhecimento da inversão pertence também ao

7 Guy Debord , La Sociétéduspéctacle, op. cit., p. 6. [Trad. por tuguesa : A Sociedade

do Espectáculo, Afrodite, Lisboa, 1972.]

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mundo invertido, o conhecimento da sujeição pertence igualmente ao mundo da sujeição. É por isso que a crí­tica da ilusão das imagens pôde ser virada do avesso e transformada em crítica da ilusão da realidade, e a crí¬ tica da falsa riqueza em crítica da falsa pobreza. Neste sentido, a pretensa viragem pós-moderna é somente mais uma volta dentro do mesmo círculo. Não há uma transformação teórica que conduza da crítica moder¬ nista ao niilismo pós-moderno. Trata-se simplesmente de ler num outro sentido a mesma equação da reali¬ dade e da imagem, da riqueza e da pobreza. O niilismo que se atribui ao humor pós-moderno bem pode ter sido desde o início o segredo oculto da ciência que dizia revelar o segredo oculto da sociedade moderna. Esta ciência alimentava-se da indestrutibilidade do segredo e da reprodução indefinida do processo de falsifica¬ ção que denunciava. A presente ausência de conexão entre os procedimentos críticos e qualquer perspectiva de emancipação revela tão-somente a disjunção que estava no cerne do paradigma crítico. Tal falta de cone¬ xão põe a ridículo as ilusões do paradigma crítico, mas reproduz a sua lógica.

É por isso que uma real «crítica da crítica» não pode ser uma vez mais uma simples inversão da lógica da crí¬ tica. Passa antes por reexaminar os conceitos e os pro¬ cedimentos da crítica, a respectiva genealogia e o modo segundo o qual tais conceitos e procedimentos se entre¬ laçaram com a lógica da emancipação social. Passa em particular por um novo olhar sobre a história da ima-

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gem obsessiva em torno da qual se produziu a inversão do modelo crítico, a imagem, totalmente gasta e sempre .pronta para ser usada, do pobre cretino que é o indivíduo consumidor, submerso pela torrente das mercadorias e das imagens e seduzido pelas promessas falaciosas de umas e de outras. Esta preocupação obsessiva em rela¬ ção à maléfica montra das mercadorias e das imagens e esta representação da respectiva vítima cega e compla¬ cente não nasceram na época de Barthes, de Baudrillard ou de Debord. São antes ideias que se impuseram durante a segunda metade do século x ix num contexto bem específico. Tratou-se de uma época em que a fisio¬ logia ia descobrindo a multiplicidade dos estímulos e dos circuitos nervosos no lugar daquilo que havia sido a unidade e a simplicidade da alma, e em que a psicolo¬ gia, com Taine, transformava o cérebro num «polipeiro de imagens». O problema é que esta promoção cientí¬ fica da quantidade coincidia com uma outra, a da mul¬ tidão popular, sujeito da forma de governação chamada democracia, a da multiplicidade desses indivíduos sem qualidades que a proliferação dos textos e das imagens reproduzidas, das vitrinas das ruas comerciais e das luzes da cidade pública transformava em habitantes de direito pleno de um mundo partilhado de conhecimen¬ tos e fruições.

Foi neste contexto que começou a correr um certo rumor: havia demasiados estímulos desencadeados de todos os lados, havia demasiados pensamentos e ima¬ gens a invadir os cérebros não preparados para dominar

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a respectiva abundância, demasiadas imagens de pra¬ zeres possíveis postas em frente dos olhos dos pobres das grandes cidades, demasiados conhecimentos novos vertidos para dentro das frágeis cabeças dos filhos do povo. Essa excitação da energia nervosa dos desti¬ natários era um sério perigo. O que daí resultava era um desencadeamento de apetites desconhecidos que, a curto prazo, produziam novos ataques contra a ordem social, e que, a longo prazo, conduziam ao esgotamento da raça trabalhadora e da sua solidez. O lamento con¬ tra o excesso de mercadorias e de imagens consumíveis começou por ser um quadro da sociedade democrática como sociedade em que há demasiado poucos indi¬ víduos capazes de se apropriar das palavras, das ima¬ gens e de formas de experiência vivida. Era esta de facto a grande angústia das elites do século x i x : a angústia perante a circulação dessas formas inéditas de experiên¬ cia vivida, capazes de dar a qualquer indivíduo que passa na rua, a qualquer visitante ou qualquer leitor os materiais susceptíveis de contribuir para a reconfigura¬ ção do seu mundo vivido. Esta multiplicação de encon¬ tros inéditos representava também o despertar de capa¬ cidades inéditas nos corpos populares. A emancipação, ou seja, o desmantelamento da velha partilha do visível, do pensável e do fazível, alimentou-se dessa multipli¬ cação. A denúncia das seduções enganosas da «socie¬ dade de consumo» começou por ser um facto produzido pelas elites tomadas de pânico perante as duas figuras gémeas e contemporâneas da experimentação popular

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de novas formas de vida: Emma Bovary e a Associação Internacional dos Trabalhadores. E claro está que esse pânico tomou a forma da solicitude paternal em relação à pobre gente cujos cerebros frágeis eram incapazes de dominar essa multiplicidade. Dito de outro modo, essa capacidade de reinventar as vidas foi transformada em incapacidade de julgar as situações.

Uma tal preocupação paternal e o diagnóstico de incapacidade que ela implicava foram generosamente retomados por aqueles que quiseram utilizar a ciência da realidade social para permitir aos homens e às mulheres do povo tomar consciência da sua situação real disfar¬ çada pelas imagens enganadoras. Responsabilizaram¬ -se por eles porque casavam com a visão que tinham do movimento global da produção mercantil como produ¬ ção automática de ilusões para os agentes que estavam submetidos a essa mesma produção. Deste modo, con¬ verteram também essa transformação de capacidades perigosas para a ordem social em incapacidades fatais. Com efeito, os procedimentos da crítica social têm por finalidade tratar os incapazes, os que não sabem ver, que não compreendem o sentido do que vêem, que não sabem transformar o saber adquirido em energia mili¬ tante. E os médicos têm necessidade destes doentes que precisam de ser tratados. Para tratar dos incapacitados precisam de os reproduzir indefinidamente. Ora, para assegurar essa reprodução basta o movimento de rota¬ ção que, periodicamente, transforma a saúde em doença e a doença em saúde. Há quarenta anos a ciência cn-

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tica fazia-nos rir dos imbecis que tomavam imagens por realidades e desse modo se deixavam seduzir pelas res­pectivas mensagens ocultas. Entretanto, os «imbecis» foram instruídos na arte de reconhecer a realidade por trás da aparência e as mensagens ocultas nas imagens. E agora, como é óbvio, a ciência crítica reciclada faz-nos sorrir dos imbecis que ainda acreditam que há mensa¬ gens ocultas nas imagens e uma realidade distinta da aparência. O mecanismo pode assim continuar a fun¬ cionar até ao fim dos tempos, capitalizando a impo¬ tência da crítica que traz à luz do dia a impotência dos imbecis.

Não pretendi, pois, juntar mais um movimento de rotação às voltas que alimentam interminavelmente a mesma maquinaria. Tratei, antes, de sugerir a necessidade e a direcção de uma mudança de procedimento. No cerne deste procedimento está a tentativa de desatar o laço que liga a lógica da emancipação da capacidade à lógica crí¬ tica da captação colectiva. Sair do círculo significa partir de outros pressupostos, de suposições garantidamente irrazoáveis do ponto de vista da ordem das nossas socie¬ dades oligárquicas e da lógica dita crítica que lhes dá um correspondente teórico. Assim, pressupor-se-ia que os incapazes são capazes, que não há nenhum segredo oculto da máquina que os mantenha fechados na sua posição. Supor-se-ia que não há nenhum mecanismo fatal que transforme a realidade em imagem, nenhumabesta mons¬ truosa a absorver todos os desejos e energias no seu ven¬ tre, nenhuma comunidade perdida para restaurar. O que

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há são simplesmente cenas de dissentimento susceptíveis de ocorrer em qualquer lugar e em qualquer momento.

. O que dissentimento quer dizer é uma organização do sensível na qual não há nem realidade oculta sob as apa¬ rências nem regime único de apresentação e de interpre¬ tação do dado impondo a sua evidência a toda a gente. É que todas as situações são susceptíveis de ser fendidas no seu interior, reconfiguradas sob um outro regime de percepção e de significação. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possí¬ vel e da distribuição das capacidades e das incapacidades. O dissentimento recoloca em jogo ao mesmo tempo a evi¬ dência do que é percebido, pensável e fazível e a repartição daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste um processo de subjectivação política: na acção de capa¬ cidades não calculadas que vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topogra¬ fia do possível. A inteligência colectiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de sujeição. É antes a colectivização das capacidades investidas nes¬ ses cenários de dissentimento. É o pôr em acção da capa¬ cidade de qualquer indivíduo, da qualidade dos homens sem qualidades. Como já deixei dito, trata-se de hipó¬ teses irrazoáveis. Penso contudo que nos nossos dias há muita coisa para procurar e para encontrar na investiga¬ ção deste poder, muito mais do que na interminável tarefa de desmascarar os fetiches ou na igualmente interminável demonstração da omnipotência da besta.

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Depois de passado o tempo da denúncia do paradigma modernista e do cepticismo dominante quanto aos poderes subversivos da arte, vê-se de novo afirmar um pouco por toda a parte uma vocação da arte para respon­der às formas da dominação económica, estatal e ideo­lógica. Mas vê-se igualmente essa reafirmada vocação tomar formas divergentes, quando não contraditórias. Alguns artistas transformam em estátuas monumentais os ícones mediáticos e publicitários para nos fazerem tomar consciência do poder desses ícones sobre a nossa percepção, outros enterram silenciosamente monu¬ mentos invisíveis dedicados aos horrores do século; uns aplicam-se em mostrar-nos os «enviesamentos» da representação dominante das identidades subalter¬ nas, outros propõem-nos a agudização do nosso olhar face a imagens de personagens de identidade flutu¬ ante ou indecifrável; alguns artistas executam as ban¬ deiras ou as máscaras dos manifestantes que se erguem contra o poder mundializado, outros, sob falsas identi¬ dades, introduzem-se nas reuniões dos grandes deste mundo ou nas suas redes de informação e de comuni¬ cação; alguns, nos museus, demonstram o funciona¬ mento de novas máquinas ecológicas, outros colocam nas periferias em dificuldade pequenas pedras ou dis-

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cretos signos de néon destinados a criar um ambiente novo, capaz de desencadear novas relações sociais; um transporta para os bairros desfavorecidos as obras-pri¬ mas de um museu, outros enchem as salas dos museus com os desperdícios deixados pelos visitantes; um paga a trabalhadores imigrados para demonstrarem, abrindo a sua própria cova, a violência do sistema salarial, outra vai trabalhar na caixa de um supermercado para pôr a arte ao serviço de uma prática de restauração dos laços sociais.

Assim, a vontade de repolitizar a arte manifesta-se em estratégias e práticas muito diversas. Esta diversi¬ dade não traduz apenas a variedade dos meios escolhi¬ dos para alcançar o mesmo fim. Dá testemunho de uma incerteza mais fundamental quanto aos fins em vista e quanto à própria configuração do terreno, quanto ao que é a política e quanto ao que a arte faz. Sucede, con¬ tudo, que essas práticas divergentes têm um ponto em comum: em geral têm por adquirido um certo modelo de eficácia; supõe-se que a arte é política porque mos¬ tra os estigmas da dominação, ou então porque coloca em derisão os ícones reinantes, ou ainda porque sai dos seus lugares próprios para se transformar em prᬠtica social, e assim por diante. Depois de um século bem contado de suposta crítica da tradição mimética, é for¬ çoso verificar que esta tradição continua a ser domi¬ nante nas formas que se pretendem artística e politi¬ camente subversivas. Supõe-se que a arte nos torna revoltados ao mostrar-nos coisas revoltantes, que nos

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mobiliza pelo facto de se mover para fora do estúdio do artista ou do museu e que nos transforma em oposito¬ res ao sistema dominante negando-se a si mesma como elemento desse sistema. Coloca-se sempre como uma evidência a passagem da causa ao efeito, da intenção ao resultado, excepto se se supuser que o artista é inábil ou o destinatário incorrigível.

A «política da arte» é deste modo marcada por uma estranha esquizofrenia. Os artistas e os críticos con¬ vidam-nos a situar o pensamento ou a prática da arte num contexto sempre novo. Dizem-nos muito natu¬ ralmente que as estratégias artísticas devem ser intei¬ ramente repensadas dentro do contexto do capitalismo tardio, da globalização, do trabalho pós-fordista, da comunicação informática ou da imagem digital. Mas continuam maciçamente a validar modelos de eficácia da arte que foram porventura abalados um ou dois sécu¬ los antes destas novidades. Gostaria, pois, de inverter a perspectiva habitual e tomar alguma distância histó¬ rica para colocar as questões: a que modelos de eficácia obedecem as nossas expectativas e os nossos juízos em matéria de política da arte? A que era pertencem afinal estes modelos?

Deslocar-me-ei, pois, para a Europa do século x v i n , designadamente para aquele momento em que o modelo mimético dominante se viu contestado de duas manei¬ ras diferentes. Este modelo supunha uma relação de continuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis segundo as quais os

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sentimentos e pensamentos daqueles e daquelas que as recebem são afectados. Deste modo, o palco tea¬ tral clássico era encarado como um espelho ampliador no qual os espectadores eram levados a ver, sob as for¬ mas da ficção, os comportamentos dos homens, as suas virtudes e os seus vícios. O teatro propunha lógicas de situações que deviam ser reconhecidas para os indi¬ víduos se orientarem no mundo e modelos de pensa¬ mento e de acção que deviam ser imitados ou evitados. O Tartufo de Molière ensinava a reconhecer e a desprezar os hipócritas, o Maomé de Voltaire ou o Nathan, o Sábio de Lessing ensinavam a fugir do fanatismo e a amar a tole­rância. Esta vocação edificante está aparentemente dis¬ tante da nossa maneira de pensar e de sentir. E contudo a lógica causal que lhe dá fundamento está muito pró¬ xima de nós. De acordo com tal lógica, o que vemos -num palco, mas também numa exposição de fotografia ou numa instalação - são signos sensíveis de um certo estado, dispostos de uma certa maneira pela vontade de um autor. Reconhecer esses signos significa com-prometermo-nos numa certa leitura do nosso mundo. E esta leitura gera um sentimento de proximidade ou de distância que nos leva a intervir na situação assim sig¬ nificada de acordo com a maneira que é desejada pelo autor. Chamemos a isto o modelo pedagógico da eficᬠcia da arte. Este modelo continua a marcar a produção e o juízo artístico dos nossos contemporâneos. Já não acreditamos com a segurança de outros tempos que o teatro corrija os costumes. Mas continuamos a gostar de

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acreditar que a reprodução em resina acrílica deste ou daquele ídolo publicitário nos moverá contra o império mediático do espectáculo ou que uma série fotográfica sobre a representação dos colonizados pelo colonizador nos ajudará a desmantelar hoje as armadilhas da repre¬ sentação dominante das identidades.

Ora sucede que este modelo foi posto em questão de duas maneiras desde os anos 6o do século x v n i . A pri¬ meira forma de o pôr em questão foi um ataque frontal. Penso na Carta a d'Alembert sobre os Espectáculos de Rous­seau e na denúncia que está no seu centro: a da pre­tensa lição de moral de O Misantropo de Molière. Para lá do processo movido contra as intenções de um autor, a crítica da Carta de Rousseau apontava para algo de mais fundamental: a rotura da linha recta suposta pelo modelo representativo entre a performance dos corpos teatrais, o seu sentido e o seu efeito. Será que Molière dá razão à sinceridade do seu misantropo contra a hipo¬ crisia das gentes mundanas que o rodeiam? Dará, pelo contrário, razão ao respeito dessas gentes pelas exigên¬ cias da vida, contra a intolerância do misantropo? Tam¬ bém neste plano o problema aparentemente ultrapas¬ sado é susceptível de ser transposto com facilidade para a nossa actualidade: que coisa esperar da representa¬ ção fotográfica, apresentada nas galerias de arte, das vítimas desta ou daquela acção de liquidação étnica: a revolta contra os carrascos dessa gente? A simpatia inconsequente por aqueles que sofrem? A cólera con¬ tra os fotógrafos que fazem da desgraça das populações

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uma ocasião para uma manifestação estética? Ou então a indignação contra o olhar cúmplice desses mesmos fotógrafos que nessas populações mais não vê do que o seu estatuto degradante de vítimas?

A questão é indecidível. Não porque o artista tivesse tido intenções duvidosas ou tivesse seguido uma prática imperfeita e tivesse por isso passado ao lado da fórmula adequada à transmissão dos sentimentos e pensamen¬ tos apropriados à situação representada. O problema diz respeito à própria fórmula, ao pressuposto de uma continuidade sensível entre, por um lado, a produção das imagens, gestos ou palavras, e, por outro, a percep¬ ção de uma situação que compromete os pensamentos, sentimentos e acções dos espectadores. Não é espan¬ toso o facto de, há mais de dois séculos, o teatro ter sido o campo que primeiro assistiu à crise de um modelo no qual ainda hoje muitos artistas plásticos acreditam ou fazem de conta que acreditam: é que o teatro é o lugar onde se exibem a nu os pressupostos - e as contradi¬ ções - que guiam uma certa ideia da eficácia da arte. E não é surpreendente que tenha sido 0 Misantropo de Molière a fornecer a ocasião exemplar para tal crise, uma vez que o próprio assunto da peça aponta o para¬ doxo. Como poderia o teatro alguma vez desmascarar os hipócritas, se a lei que o rege é precisamente a que governa os hipócritas: a encenação, por parte de corpos vivos, dos signos de pensamentos e de sentimentos que não são os seus? Vinte anos depois da Carta a dAlembert

sobre os Espectáculos, um dramaturgo que ainda sonhava

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com o teatro como instituição moral, Schiller, fazia a demonstração desse facto ao colocar em oposição, no drama Os Salteadores, o hipócrita Franz Moor e o irmão, Karl, que por seu turno leva até ao crime o sublime da sinceridade em revolta contra a hipocrisia do mundo. Que lição esperar do confronto entre dois heróis que, cada um deles, agindo «conformemente à lei da natu¬ reza», age como um monstro? «Os laços da natureza desfizeram-se», declara Franz. A fábula de Os Salteadores

levava ao ponto de rotura a figura ética da eficácia tea¬ tral. Dissociava os três elementos cujo ajustamento era tido por factor capaz de inscrever essa eficácia dentro da ordem da natureza: a regra aristotélica da construção das acções, a moral dos exemplos à maneira de Plutarco e as fórmulas modernas de expressão dos pensamentos e dos sentimentos pelos corpos.

Assim, o problema não diz respeito à validade moral ou política da mensagem transmitida pelo dispositivo representativo. Diz respeito, sim, a este mesmo dis¬ positivo. A sua fissura deixa transparecer que a eficᬠcia da arte não consiste em transmitir mensagens, for¬ necer modelos ou decifrar as representações. Consiste antes de mais em disposições dos corpos, consiste no recorte de espaços e de tempos singulares que definem maneiras de estar em conjunto ou em separado, frente a ou no meio de, dentro ou fora, na proximidade ou à dis¬ tância. Era isso que a polémica de Rousseau punha em evidência. Mas logo de seguida procedia ao curto-cir¬ cuito dessa eficácia por via de uma alternativa dema-

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siado simples. Porque o que a polémica de Rousseau opunha às duvidosas lições de moral da representação é simplesmente a arte sem representação, a arte que não separa o palco onde decorre a performance artística e o palco da vida colectiva. Opõe ao público dos teatros o povo em acto, a festa cívica em que a cidade se apresenta a si mesma, como faziam os efebos espartanos celebra¬ dos por Plutarco. Rousseau retomava assim a polémica inaugural de Platão opondo à mentira da mimese a boa mimese: a coreografia da cidade em acto, movida pelo seu princípio espiritual interno, cantando e dançando a sua própria unidade. Este paradigma designa o lugar da política da arte, mas fá-lo para de imediato afastar ao mesmo tempo a arte e a política. À duvidosa preten¬ são da representação de corrigir os costumes e os pen¬ samentos substitui um modelo arqui-ético. Arqui-ético no sentido em que os pensamentos já não são objectos de lições transportadas por corpos ou imagens repre¬ sentadas, mas são directamente incarnados em cos¬ tumes, em modos de ser da comunidade. Este modelo arqui-ético nunca deixou de acompanhar aquilo a que chamamos modernidade, enquanto pensamento de uma arte tornada forma de vida. Teve os seus momentos altos no primeiro quartel do século x x : a obra de arte total, o coro do povo em acto, a sinfonia futurista ou construtivista do novo mundo mecânico. Formas que ficaram bastante para trás de nós. Mas o que continua próximo de nós é o modelo da arte que deve suprimir¬ - se a si mesma, do teatro que deve inverter a sua lógica,

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transformando o espectador em actor, da performance

artística que faz a arte sair do museu para transformar esse facto num gesto visível na rua, ou que, dentro do próprio museu, anula a separação entre a arte e a vida. O que assim se opõe à incerta pedagogia da mediação representativa é uma outra pedagogia, a da imediati-cidade ética. Esta polaridade entre duas pedagogias define o círculo dentro do qual se encontra muitas vezes ainda hoje encerrada uma boa parte da reflexão sobre a política da arte.

Ora esta polaridade tende a obscurecer a existência de uma terceira forma de eficácia da arte, a qual merece, em sentido próprio, o nome de eficácia estética, uma vez que é específica do regime estético da arte. Mas trata-se de uma eficácia paradoxal: é a eficácia da própria sepa¬ ração, da descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através das quais essa mesma produção é apropriada por especta¬ dores, leitores ou ouvintes. A eficácia estética é a eficᬠcia de uma distância e de uma neutralização. Este ponto merece um esclarecimento. Com efeito, a «distância» estética foi assimilada por uma certa sociologia à con¬ templação extática da beleza, contemplação essa que ocultaria os fundamentos sociais da produção artística e da respectiva recepção, e que desse modo contraria¬ ria a consciência crítica da realidade e dos meios de agir dentro dela. Mas esta crítica passa ao lado daquilo que constitui o princípio daquela distância e da sua eficᬠcia: a suspensão de toda e qualquer relação determina -

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vel entre a intenção de um artista, uma forma sensível apresentada num lugar dedicado à arte, o olhar de um espectador e um estado da comunidade. Esta disjunção pode ser emblematizada, na mesma época em que Rous -seau escrevia a sua Carta a dAlembert sobre os Espectáculos,

pela descrição aparentemente inofensiva de uma escul¬ tura antiga, a descrição que Winckelmann faz da estátua conhecida como o Torso do Belvedere. A rotura que essa análise opera relativamente ao paradigma representa-cional assenta em dois pontos essenciais. Em primeiro lugar, a estátua está desprovida de tudo aquilo que no modelo representacional permitia definir em simult⬠neo a beleza expressiva de uma figura e o seu carácter exemplar: não tem boca para transmitir uma mensa¬ gem, não tem rosto para exprimir um sentimento, não tem membros para dirigir ou executar uma acção. Ora Winckelmann, apesar de tudo isso, decidiu fazer dela a estátua do herói mais activo de entre todos, Hércules, o herói dos Doze Trabalhos. Mas fez da estátua um Hércules em repouso, acolhido entre os deuses depois dos seus trabalhos. E foi esta personagem ociosa que o autor transformou em representante exemplar da beleza grega, filha da liberdade grega - liberdade perdida de um povo que não conhecia a separação entre a arte e a vida. A estátua exprime, pois, a vida de um povo, como a festividade em Rousseau, mas este povo está agora subtraído, presente apenas nessa figura ociosa que não exprime nenhum sentimento e não propõe nenhuma acção para ser imitada. É este o segundo ponto: a está-

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tua é subtraída a qualquer continuidade que pudesse assegurar uma relação de causa e efeito entre uma intenção de um artista, um modo de relação por parte de um público e uma certa configuração da vida colectiva.

A descrição de Winckelmann esboçava assim o modelo de uma eficácia paradoxal, passando não por um suplemento de expressão ou de movimento, mas, pelo contrário, por uma subtracção - por uma indife¬ rença ou uma passividade radical -, não por um enrai¬ zamento numa forma de vida, mas sim pela distância entre duas estruturas da vida colectiva. É este o para¬ doxo que Schiller havia de desenvolver nas suas Cartas

sobre a Educação Estética do Homem, ao definir a eficácia estética como eficácia de uma suspensão. O «instinto de jogo» próprio da experiência neutraliza a oposição que tradicionalmente caracterizava a arte e o seu enrai¬ zamento social: a arte definia-se pela imposição activa de uma forma à matéria passiva, e este efeito punha-a em concordância com uma hierarquia social em que os homens da inteligência activa dominavam os homens da passividade material. Para simbolizar a suspen¬ são desta concordância tradicional entre a estrutura do exercício artístico e a estrutura de um mundo hierár¬ quico, Schiller descrevia já não um corpo sem cabeça, mas uma cabeça sem corpo, a da Juno Ludovisi, carac¬ terizada também ela por uma radical indiferença, uma radical ausência de preocupação, de vontade e de fins, que neutralizava a própria oposição entre actividade e passividade.

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Este paradoxo definia a configuração e a «política» daquilo a que chamo o regime estético da arte por opo¬ sição ao regime da mediação representacional e ao da imediaticidade ética. A eficácia estética significa pro¬ priamente a eficácia da suspensão de toda e qualquer relação directa entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado. A estátua de que nos falam Winckelmann ou Schiller havia sido a figura de um deus, elemento de um culto religioso e cívico, mas deixou de o ser. Já não ilustra uma fé e já não significa qualquer espécie de grandeza social. Já não produz nenhuma correcção dos costumes nem qualquer mobilização dos corpos. Já não se dirige a um público específico, mas sim ao público anónimo indeterminado dos visitantes de museus e dos leitores de romances. E-lhe oferecida da mesma maneira que o poderá ser uma Virgem florentina, uma cena de cabaré holandesa, uma taça de fruta ou uma banca de peixe; à maneira daquilo que serão mais tarde os ready-mades, as mercadorias desviadas do seu con¬ sumo habitual ou os cartazes descolados das paredes. Tais obras encontram-se agora separadas das formas de vida que haviam dado lugar à sua produção: formas mais ou menos míticas da vida colectiva do povo grego; formas modernas da dominação monárquica, religiosa ou aristocrática que davam aos produtos das belas¬ - artes o seu destino. A dupla temporalidade da estátua grega, que passou a ser arte dentro dos museus, por¬ que o não era nas cerimónias cívicas de outros tempos,

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define uma dupla relação de separação e de não-sepa-ração entre a arte e a vida. É porque o museu - enten¬ dido não como simples edifício, mas como forma de recortar o espaço comum e modo específico de visibi¬ lidade - se constituiu em torno da estátua desafectada que ele pode acolher mais tarde qualquer outra forma de objecto desafectado pertencente ao mundo profano. E é também por isso que o museu pode nos nossos dias prestar-se a acolher modos de circulação da informação e formas de discussão política que tentam opor-se aos modos dominantes da informação e da discussão sobre os negócios comuns.

Deste modo, a rotura estética instalou uma singu¬ lar forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma rotura da relação entre as produções das diver¬ sas modalidades artísticas de saber-fazer e fins sociais definidos, entre formas sensíveis, as significações que nelas podemos ler e os efeitos que podem produzir. Dizendo de outra maneira, trata-se da eficácia de um dissentimento. O que entendo por dissentimento não é o conflito das ideias ou dos sentimentos. E o conflito de vários regimes de sensorialidade. E por esta via que a arte, dentro do regime da separação estética, toca a política. Porque o dissentimento está no âmago da polí¬ tica. A política, na verdade, não é antes de mais o exer¬ cício do poder ou a luta pelo poder. O quadro da polí¬ tica não é em primeiro lugar definido pelas leis e pelas instituições. A primeira questão política é saber a que objectos e a que sujeitos dizem respeito essas institui-

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ções e essas leis, quais as formas de relação que definem propriamente uma comunidade política, quais os objec¬ tos a que estas relações dizem respeito, quais os sujeitos que estão aptos a designar tais objectos e a discuti-los. A política é a actividade que reconfigura os enquadra¬ mentos sensíveis no seio dos quais se definem objectos comuns. A política rompe a evidência sensível da ordem «natural» que destina os indivíduos ou os grupos às tare­fas de comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, ao começar por atribuí-los a um ou outro tipo de espaço, a uma certa maneira de ser, de ver ou de dizer. Esta lógica dos corpos nos seus lugares dentro de uma distribui¬ ção do comum e do privado, que é também uma distribui¬ ção do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é aquilo que propus que se designasse com o termo de polícia. A política é a prática que rompe esta ordem da polícia que antecipa as relações de poder no próprio seio da evidência dos dados sensíveis. Fá-lo por via da invenção de uma ins¬ tância de enunciação colectiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Como Platão nos ensina a contrario, a polí¬ tica começa quando há rotura na distribuição dos espaços e das competências - e incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer dentro do espaço invisí¬ vel do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam em mãos esse tempo que não têm para se afirma¬ rem como gente que partilha também um mundo comum, para fazer ver aquilo que não se via ou para passarem a ouvir como palavra que discute o interesse comum aquilo que era ouvido somente como ruído do corpo.

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Se a experiencia estética se cruza com a política, é porque ela se define também como experiência de dis¬ sentimento oposta à adaptação mimética ou ética das produções artísticas com fins sociais. Aí as produções artísticas perdem a sua funcionalidade, saem da rede de conexões que lhes dava um destino antecipando os seus efeitos; são propostas dentro de um espaço-tempo neutralizado, oferecidas igualmente a um olhar que se encontra separado de qualquer prolongamento senso¬ rio-motor definido. O que daí resulta não é a incorpo¬ ração de uma virtude ou de um habitus. E pelo contrário a dissociação de um certo corpo de experiência. E neste aspecto que a estátua do Torso, mutilada e privada do seu mundo, constitui um emblema de uma forma específica de relação entre a materialidade sensível da obra e o seu efeito. Ninguém resumiu esta relação paradoxal melhor do que um poeta que, contudo, se ocupou muito pouco de política. Penso em Rilke e no poema que consagra a uma outra estátua mutilada, o torso arcaico de Apolo; o poema termina assim:

Não há aí lugar algum

Que te não veja: deves mudar a tua vida.

A vida deve ser mudada porque a estátua mutilada define uma superfície que «olha» o espectador por todos os lados; dito de outro modo, porque a estátua define uma eficácia de um género novo. Para compreen¬ der esta proposição enigmática é porventura necessa-

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rio voltarmo-nos para uma outra historia de membros e de olhar que se passa num cenário inteiramente dife­rente. Durante a Revolução de 1848, um jornal operário revolucionário, Le Tocsin des travailleurs, publica um texto aparentemente «apolítico», a descrição da jornada de trabalho de um operário marceneiro, ocupado em asso¬ alhar uma sala por conta do patrão e do proprietário da casa. Ora o que está no centro desta descrição é uma disjunção entre a actividade manual e a actividade do olhar, de tal modo que essa disjunção subtrai o marce¬ neiro a essa dupla dependência.

Crendo-se em sua casa, enquanto não acabou ainda a sala que está a assoalhar, dá-lhe gosto a disposição das divi­sões; se a janela dá para um jardim ou domina um hori­zonte pitoresco, por um instante pára o trabalho e esvoaça mentalmente até à espaçosa perspectiva para dela desfru­tar melhor do que os donos das casas vizinhas.2

Este olhar que se separa das mãos e fende o espaço da respectiva actividade submissa para aí inserir o espaço de uma livre inactividade define bem um dissenti¬ mento, o choque entre dois regimes de sensorialidade. Este choque marca uma inversão completa da economia «policial» das competências. Apropriar-se da perspec-

1 Em por tuguês , 0 Toque a Rebate dos Trabalhadores. (N.T)

2 L o u i s - G a b r i e l Gauny, «Le travail à la j o u r n é e » , in Le Philosopheplébéien, op.

cit, pp. 45 -46 .

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tiva significa já que o indivíduo define a sua presença num espaço diferente do do «trabalho que não espera». • Significa romper a partilha entre os que estão submeti¬ dos à necessidade do trabalho braçal e os que dispõem da liberdade do olhar. Significa, por fim, a apropriação desse olhar perspectivo tradicionalmente associado ao poder daqueles para quem convergem as linhas dos jar¬ dins à francesa e as do edifício social. Esta apropriação estética não se identifica com a ilusão de que falam os sociólogos como Bourdieu. Define antes a constituição de um outro corpo que já não se encontra «adaptado» à distribuição policial dos lugares, das funções e das com¬ petências sociais. Não é, pois, por engano que o citado texto «apolítico» surge num jornal operário numa pri¬ mavera revolucionária. A possibilidade de uma voz colectiva dos operários passa naquele momento por esta rotura estética, por esta dissociação das maneiras de ser operárias. Porque, para os dominados, a ques¬ tão nunca foi tomar consciência dos mecanismos da dominação, mas sim constituir um corpo votado a outra coisa distinta da dominação. Aquele mesmo marce¬ neiro indica-nos que não se trata de adquirir um conhe¬ cimento da situação, mas sim das «paixões» que sejam inapropriadas a essa situação. O que produz estas pai¬ xões, estas inversões quanto à disposição dos corpos, não é esta ou aquela obra de arte, mas antes as formas do olhar que correspondem às formas novas de exposi¬ ção das obras, às formas da respectiva existência sepa¬ rada. O que forma um corpo operário revolucionário

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não é a pintura revolucionária, seja ela revolucionária no sentido de David ou no de Delacroix. E pelo contrᬠrio a possibilidade de que essas obras sejam vistas no espaço neutro do museu, porventura nas reproduções das enciclopédias baratas, onde se tornam equivalentes às que noutro tempo contavam a história do poderio dos reis, da glória das cidades antigas ou dos mistérios da fé.

Num certo sentido, o que opera é uma vacatura. É isso que nos ensina um empreendimento artístico--político aparentemente paradoxal que se desenvolve actualmente num desses arrabaldes de Paris cujo carác¬ ter explosivo ficou patente na rebelião de 2005: um des¬ ses arrabaldes marcados pela despromoção social e pela violência das tensões interétnicas. Numa dessas cidades de periferia, um grupo de artistas, sob o nome de Acampamento Urbano, pôs em prática um projecto estético que ataca pela retaguarda o discurso domi¬ nante, esse discurso que explica a «crise das periferias» por meio da perda do laço social causada pelo indivi¬ dualismo de massa. Com o título de «Eu e Nós», o dito projecto tratou com efeito de mobilizar uma parte da população para criar um espaço aparentemente para¬ doxal: um espaço «totalmente inútil, frágil e improdu¬ tivo», um lugar aberto a todos e sob protecção de todos, mas que não pudesse ser ocupado por ninguém senão para a contemplação e a meditação solitária. O aparente paradoxo desta luta colectiva por um lugar único é sim¬ ples de resolver: a possibilidade de estar só surge como a forma de relação social, a dimensão da vida social que

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é precisamente tornada impossível pelas condições de vida nessas periferias. Aquele lugar vazio fornece inver¬ samente o esboço de uma comunidade de pessoas que tenham a possibilidade de estar sós. Um tal lugar signi¬ fica a igual capacidade dos membros de uma colectivi¬ dade para serem um Eu cujo juízo possa ser atribuído a qualquer outro indivíduo e criarem assim, com base no modelo da universalidade estética kantiana, uma nova espécie de Nós, uma comunidade estética ou de dissen¬ timento. O lugar vazio, inútil e improdutivo define um corte na distribuição normal das formas da existência sensível e das «competências» e «incompetências» que lhe andam associadas. Num filme ligado a este projecto, Sylvie Blocher mostrou habitantes com uma tee-shirt

exibindo a frase escolhida por cada um deles ou cada uma delas, algo a que se poderia chamar portanto uma divisa estética. De entre essas frases retenho uma em que uma mulher usando um véu diz nos seguintes ter¬ mos aquilo a que o lugar se propõe dar forma: «Quero uma palavra vazia que eu possa preencher.»

A partir deste caso é possível enunciar o paradoxo da relação entre arte e política. Arte e política estão ligadas entre si como formas de dissentimento, como opera¬ ções de reconfiguração da experiência comum do sen¬ sível. Há uma estética da política no sentido em que os actos da subjectivação política redefinem o que é visível, o que pode dizer-se sobre o visível e quais os sujeitos que são capazes de o fazer. Há uma política da estética no sentido em que as formas novas de circulação da pala-

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vra, de exposição do visível e de produção dos afectos determinam capacidades novas em rotura com a antiga configuração do possível. Há assim uma política da arte que precede as políticas dos artistas, uma política da arte como repartição singular dos objectos da experiên­cia comum, que opera por si mesma independente¬ mente dos desejos que possam ter os artistas de servir esta ou aquela causa. O efeito do museu, do livro ou do teatro, antes de dizer respeito ao conteúdo desta ou daquela obra, tem a ver com as partilhas de espaço e de tempo e com os modos de apresentação sensível que essas partilhas instituem. Mas este efeito não define nem uma estratégia política da arte enquanto tal nem um contributo calculável da arte para a acção política.

Aquilo a que se chama política da arte é pois o entre¬ laçamento de lógicas heterogéneas. Há em primeiro lugar aquilo a que podemos chamar a «política do esté­tico», ou seja, o efeito no campo político das formas de estruturação da experiência sensível próprias de um regime da arte. Tal significa, no regime estético da arte, a constituição de espaços neutralizados, a perda da des¬ tinação das obras e a sua disponibilidade indiferente, o encavalgamento das temporalidades heterogéneas, a igualdade dos sujeitos representados e o anonimato daqueles a quem as obras se dirigem. Todas estas pro¬ priedades definem o domínio da arte como o de uma forma de experiência própria, separada das outras for¬ mas de conexão da experiência sensível. Elas determi¬ nam o complemento paradoxal dessa separação esté-

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tica, a ausência de critérios imanentes às próprias produções da arte, a ausência de separação entre as coi¬ sas que pertencem à arte e as que não pertencem a esse domínio. A relação destas duas propriedades define um certo democratismo estético que não depende das intenções dos artistas e que não tem efeito determinável em termos de subjectivação política.

De seguida, no interior deste quadro, há as estratégias dos artistas que se propõem transformar as demarca¬ ções daquilo que é visível e susceptível de ser enunciado, que querem dar a ver aquilo que não era visto, fazer ver de outra maneira o que era visto de modo demasiado fácil, pôr em relação o que não surgia relacionado, tudo isto com a finalidade de produzir roturas no tecido sen¬ sível das percepções e na dinâmica dos afectos. É o tra¬ balho da ficção. A ficção não é a criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É antes o trabalho que opera dissentimentos, que modifica os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, alte¬ rando os quadros, as escalas ou os ritmos, construindo relações novas entre a aparência e a realidade, o singu¬ lar e o comum, o visível e a sua significação. Este tra¬ balho muda as coordenadas do representável; altera a nossa percepção dos acontecimentos sensíveis, a nossa maneira de os pôr em relação com os sujeitos, o modo segundo o qual o nosso mundo está povoado de aconte¬ cimentos e de figuras. Assim, o romance moderno levou a cabo uma certa democratização da experiência. Anu¬ lando a hierarquia entre os sujeitos, os acontecimen-

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tos, as percepções e os encadeamentos que governavam a ficção clássica, o romance moderno contribuiu para uma nova distribuição das formas de vida possíveis para todos. Mas não há princípio de correspondência determinado entre estas micropolíticas da re-descri-ção da experiência e a constituição de colectivos políti¬ cos de enunciação.

As formas da experiência estética e os modos da fic¬ ção criam assim uma paisagem inédita do visível, for¬ mas novas de individualidades e de conexões, ritmos diferentes de apreensão do dado, escalas novas. Não o fazem à maneira específica da actividade política que cria um novo nós, novas formas de enunciação colectiva. Mas formam este tecido de dissentimento no qual se recortam as formas de construção de objectos e as pos­sibilidades de enunciação subjectiva próprias da acção dos colectivos políticos. Se a política propriamente dita consiste na produção de sujeitos que dão voz aos anóni¬ mos, a política própria da arte no regime estético con¬ siste na elaboração do mundo sensível do anónimo, dos modos do isso e do eu, dos quais emergem mundos, o mundo próprio de cada nós político. Mas, na medida em que este efeito passa pela rotura estética, não se presta a nenhum cálculo determinável.

Foi esta indeterminação que as grandes metapolí-ticas que atribuíram à arte uma tarefa de transforma¬ ção radical das formas da experiência sensível quiseram ultrapassar. Quiseram fixar a relação entre o trabalho da produção artística do isso e o trabalho da criação polí-

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tica de cada nós, pagando para tanto o preço de fazer das duas coisas um mesmo e único processo de transforma­ção das formas da vida e de fazer com que a arte dê a si própria a tarefa de se suprimir na realização da sua pro¬ messa histórica.

Deste modo, a «política da arte» é resultante do entrelaçamento de três lógicas: a das formas da experi¬ ência estética, a do trabalho ficcional e a das estratégias metapolíticas. Este entrelaçamento implica igual¬ mente um imbricamento singular e contraditório entre as três formas de eficácia que tentei definir: a lógica representativa que quer produzir efeitos por intermédio das representações, a lógica estética que produz efeitos pela suspensão dos fins representativos e a lógica ética que quer que as formas de arte e as da política se identi¬ fiquem directamente umas com as outras.

A tradição da arte crítica quis articular estas três lógicas numa mesma fórmula. Tentou assegurar o efeito ético de mobilização das energias encerrando os efeitos da distância estética na continuidade da relação repre¬ sentativa. Brecht deu a essa tentativa o nome emble¬ mático de Verfremdung - um devir-estranho geralmente traduzido por «distanciação». A distanciação é a inde¬ terminação da relação estética repatriada para o interior da ficção representativa, concentrada como potência de choque de uma heterogeneidade. Esta heterogenei¬ dade - uma história bizarra da venda de um falso ele¬ fante, de mercadores de couve-flor conversando em verso, ou outras - deveria, por si mesma, produzir um

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duplo efeito: por um lado, a estranheza experimentada devia dissolver-se na compreensão das suas razões; por outro, devia transmitir intacto o seu poder de afecto para transformar essa compreensão em potên¬ cia de revolta. Tratava-se, portanto, de fundir num único e mesmo processo o choque estético das sen-sorialidades diferentes e a correcção representativa dos comportamentos, a separação estética e a continui¬ dade ética. Mas não há razão para que o choque de dois modos de sensorialidade se traduza em compreensão das razões das coisas nem para que esta compreensão produza a decisão de mudar o mundo. Porém, esta con¬ tradição que vive no seio do dispositivo da obra crítica não faz com que ela não tenha efeito. Esse dispositivo pode contribuir para transformar o mapa do perceptí¬ vel e do pensável, para criar novas formas de experiên¬ cia do sensível, novas distâncias face às configurações existentes do dado. Mas este efeito não pode ser uma transmissão calculável entre choque artístico sensí¬ vel, tomada de consciência intelectual e mobilização política. Não se passa da visão de um espectáculo para uma compreensão do mundo, e de uma compreensão intelectual para uma decisão de acção. Passa-se de um mundo sensível para outro mundo sensível que define outras tolerâncias e intolerâncias, outras capacidades e incapacidades. O que efectivamente opera são dissocia¬ ções: a rotura de uma relação entre o sentido e o sentido, entre um mundo visível, um modo de afecção, um regime de interpretação e um espaço de possibilidades; é a

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rotura das referências sensíveis que permitiam ocupar um lugar próprio dentro de uma ordem das coisas.

. O afastamento entre os fins da arte crítica e as suas formas reais de eficácia foi sustentável enquanto o sis¬ tema de compreensão do mundo e as formas de mobi¬ lização política que esse afastamento devia favorecer eram em si mesmas suficientemente poderosas para o sustentar. A partir do momento em que esse sistema perdeu a sua evidência e essas formas perderam o seu poder, tal afastamento apresenta-se a olho nu. Os ele¬ mentos «heterogéneos» que o discurso crítico colocava em conjunto encontravam-se de facto já agregados pelos esquemas interpretativos existentes. As performances da arte crítica alimentavam-se da evidência de um mundo de dissentimento. Põe-se então a seguinte questão: que acontece à arte crítica quando esse horizonte de dissenti¬ mento perdeu a sua evidência? Que lhe acontece dentro do contexto contemporâneo do consenso?

A palavra consenso significa de facto bastante mais do que uma forma de governo «moderna» que dá priori¬ dade à especialização, à arbitragem e à negociação entre os «parceiros sociais» ou entre os diferentes tipos de comunidades. O consenso significa o acordo entre sen¬ tido e sentido, ou seja, entre um modo de apresentação sensível e um regime de interpretação dos respectivos dados. Significa que, sejam quais forem as nossas diver¬ gências de ideias e de aspirações, percebemos as mesmas coisas e damos-lhes a mesma significação. O contexto da globalização económica impõe esta imagem de um

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mundo homogéneo no qual o problema para cada colec¬ tividade nacional é adaptar-se a um certo estado de coisas relativamente ao qual não tem controlo, adap-tando-lhe o seu mercado de trabalho e as suas formas de protecção social. Neste contexto, a evidência da luta contra a dominação capitalista mundial que dava sus¬ tentação às formas da arte crítica ou da contestação artística desaparece. As formas de luta contra a necessi¬ dade mercantil identificam-se cada vez mais com reac¬ ções de grupos que defendem os seus privilégios arcai¬ cos contra as necessidades do progresso. E a extensão da dominação capitalista global surge assimilada a uma fatalidade da civilização moderna, da sociedade demo¬ crática ou do individualismo de massas.

Nestas condições, o choque «crítico» dos elemen¬ tos heterogéneos já não encontra uma analogia no cho¬ que político entre mundos sensíveis opostos. Antes tende a girar sobre si mesmo. As intenções, os procedimen¬ tos e a retórica justificativa do dispositivo crítico não variaram minimamente de há decénios a esta parte. Nesse plano, hoje como ontem, pretende-se denunciar o império da mercadoria, dos respectivos ícones ideais e dejectos sórdidos por intermédio de estratégias bem rodadas: filmes publicitários parodiados, adaptações irónicas do registo da banda desenhada japonesa, sons disco tratados, personagens de ecrãs publicitários passa¬ das a estátuas de resina acrílica ou pintadas à maneira heróica do realismo soviético, personagens da Disneylân-dia transformadas em perversos polimorfos, montagens

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de fotografias vernaculares de interiores semelhantes a anuncios de revista, de passatempos tristes ou de restos da civilização consumista; instalações gigantescas de tubos e máquinas representando o intestino do meca­nismo social que tudo absorve e transforma em excre­mento, etc., etc. Estes dispositivos continuam a ocupar as nossas galenas e museus, acompanhados por uma retórica que pretende fazer-nos descobrir deste modo o poder da mercadoria, o imperio do espectáculo ou a por­nografia do poder. Porém, como ninguém neste nosso mundo anda suficientemente distraído para precisar de que lhe façam notar tais coisas, o mecanismo gira sobre si mesmo e goza da própria indecidibilidade do seu dis¬ positivo. Esta indecidibilidade foi alegorizada de forma monumental numa obra de Charles Ray chamada Revo­

lução. Conira-Revolução. A obra tem toda a aparência de um carrossel de feira. Mas o artista modificou o meca­nismo do carrossel. Desarticulou do mecanismo rota­tivo do conjunto o dos cavalos, de tal modo que estes se deslocam muito lentamente para trás enquanto o car¬ rossel se desloca para a frente. Este duplo movimento dá ao título o seu sentido literal. Mas este título fornece também a significação alegórica da obra e do respectivo estatuto político: uma subversão da máquina do enter­

tainment que é indiscernível do funcionamento dessa mesma máquina. O dispositivo alimenta-se então da equivalência entre a paródia como crítica e a paródia da

crítica. Joga com a indecidibilidade da relação entre os dois efeitos.

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O modelo crítico tende assim para a sua auto-anu-lação. Mas há várias maneiras de fazer o respectivo balanço. A primeira consiste em diminuir a carga polí¬ tica colocada sobre a arte, em reconduzir o choque dos elementos heterogéneos ao inventário dos signos de per¬ tença comum e o corte polémico da dialéctica à ligeireza do jogo ou à distância da alegoria. Não me debruçarei aqui sobre estas transformações que comentei nou­tro lugar3. Vale a pena, pelo contrário, determo-nos na segunda, uma vez que esta diz respeito ao suposto eixo do processo, a consciência do espectador. Esta via pro¬ põe a supressão da mediação entre uma arte produtora de dispositivos visuais e uma transformação das rela¬ ções sociais. Nela, os dispositivos da arte apresentam-se directamente como proposições de relações sociais. E esta a tese popularizada por Nicolas Bourriaud sob a designação de estética relacional: o trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga produ¬ ção de objectos destinados a serem vistos. A partir de agora esse trabalho produz directamente «relações com o mundo», consequentemente formas activas de comuni­dade. Tal produção pode hoje englobar «os meetings, as reuniões, as manifestações, os diferentes tipos de cola¬ borações entre as pessoas, os jogos, as festas, os lugares de convivialidade, o conjunto dos modos de encontro e

3 Sobre es tes p rob lemas remeto para as aná l i ses de a lgumas expos ições emble ­

mát i cas desta v i ragem apresen tadas em Le Destin des images (La Fabr ique, Par is ,

2003) e Malaisedansl'esthétique (Gali lée, Par i s , 2 0 0 5 ) .

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de invenção de relações» 4. O interior do espaço museo­lógico e o exterior da vida social surgem então como dois lugares equivalentes de produção de relações. Mas esta banalização mostra de imediato o seu reverso: a dispersão das obras de arte na multiplicidade das rela¬ ções sociais só vale se for vista; seja porque o lado vulgar da relação na qual não há «nada para ser visto» surge exemplarmente alojado no espaço normalmente desti¬ nado à exposição das obras, seja porque, inversamente, a produção de laços sociais no espaço público se vê pro¬ vida de uma forma artística espectacular. O primeiro caso está emblematizado nos célebres dispositivos de Rirkrit Tiravanija, que põem à disposição dos visitan¬ tes um fogão de campismo, uma chaleira e saquetas de sopa, destinados a despoletar acção, reunião e dis¬ cussão colectivas, ou então uma reprodução do apar¬ tamento do artista em que os visitantes podem fazer uma sesta, tomar um duche ou preparar uma refeição. O segundo caso poderá ilustrar-se com as roupas modi¬ ficáveis de Lucy Orta, disponíveis para serem transfor¬ madas em tendas de socorro ou para ligar directamente uns aos outros os participantes de uma manifestação colectiva, como era o caso desse espantoso dispositivo insuflável que não apenas ligava entre si os fatos, deco¬ rados com inscrições, de um grupo de manifestantes dispostos em quadrado, mas também exibia a própria palavra «ligação» (link) para significar assim a unidade

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4 Nicolas Bourr iaud, Esthétique relationelle, Les Presses du réel, Dijon, 1998 , p. 29 .

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dessa multiplicidade. O devir-acção ou o devir-ligação que se substitui à «obra vista» só tem eficácia quando é precisamente visto como saída exemplar da arte para fora de si mesma.

Este movimento de ida e volta entre a saída da arte em direcção ao real das relações sociais e a apresen¬ tação que exclusivamente lhe assegura a eficácia sim¬ bólica foi bem clarificado por uma obra de um artista cubano, René Francisco, apresentada há quatro anos na Bienal de São Paulo. Este artista utilizou o dinheiro de uma fundação artística para realizar um inquérito sobre as condições de vida num bairro desfavorecido e decidiu, juntamente com outros artistas seus amigos, reconstruir a casa de uma velha família desse bairro. Assim, a obra dava a ver um ecrã de tule no qual estava impressa a imagem de perfil da idosa virada para um monitor no qual um vídeo mostrava os artistas que tra¬ balhavam como pedreiros, pintores ou canalizadores. O facto de esta intervenção ocorrer num dos últimos países do mundo que se reclamam do comunismo pro¬ duzia evidentemente um conflito violento entre dois tempos e duas ideias da realização da arte. Tal conflito fazia desta intervenção um sucedâneo daquela grande vontade que Malevitch exprimia no tempo da Revolução Soviética: deixar de fazer quadros e passar a construir directamente as formas da vida nova. Esta constru¬ ção encontra-se hoje reconduzida à relação ambígua entre uma política artística provada pelo seu auxílio a uma população em dificuldade e uma política artís-

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tica simplesmente provada pela saída da arte dos luga¬ res da arte, pela sua intervenção no real. Mas a saída para o real e o serviço prestado aos desfavorecidos não ganham sentido senão quando a sua exemplaridade se manifesta no espaço de exposição. E neste espaço o olhar que recai sobre o relato visual das ditas saídas não se distingue daquele de que são objecto os grandes mosaicos ou painéis com que muitos artistas nos repre¬ sentam hoje a multidão dos anónimos ou dos respec¬ tivos quadros de vida. Como é o caso desse painel de mil e seiscentas fotografias tipo passe agregadas pelo artista chinês Bai Yiluo num conjunto que pretende evocar - cito - «os laços delicados que unem as famí¬ lias e as comunidades». O curto-circuito da arte que cria directamente formas de relação em lugar de for¬ mas plásticas é afinal o da obra que se apresenta como a realização antecipada do seu efeito. Supostamente a arte deveria unir as pessoas da mesma maneira que o artista agregou as fotografias que tirara noutro tempo, quando era empregado de um estúdio fotográfico. A reunião das fotografias toma a função de uma escul¬ tura monumental que torna presente hic etnunc a comu¬ nidade humana que é o seu objecto e a sua finalidade. O conceito de metáfora, omnipresente hoje em dia na retórica dos comissários de exposição, tende a concep-tualizar essa identidade antecipada entre a represen¬ tação de um dispositivo sensível de formas, a mani¬ festação do respectivo sentido e a realidade encarnada deste sentido.

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O sentimento deste impasse alimenta a vontade de dar à política da arte um objectivo que seja não a pro¬ dução de laços sociais em geral, mas uma subversão de laços sociais bem determinados, designadamente aqueles que são prescritos pelas formas do mercado, pelas decisões dominantes e pela comunicação mediᬠtica. A acção artística identifica-se então com a produ¬ ção de subversões pontuais e simbólicas do sistema. Em França esta estratégia surgiu emblematizada pela acção de um artista, Matthieu Laurette, que decidiu tomar à letra as promessas dos produtores de bens alimentares: «Satisfeito ou reembolsado». O artista tratou então de comprar sistematicamente esses produtos nos super¬ mercados e de exprimir a sua insatisfação, a fim de ser reembolsado. E utilizou a televisão para incitar todos os consumidores a seguirem o seu exemplo. Deste modo, a exposição intitulada «A Nossa História», apresentada no espaço de arte contemporânea de Paris, Palais de Tokyo, em 2006, mostrava-nos o trabalho do artista sob a forma de uma instalação composta por três elementos: uma escultura de cera que o mostrava a empurrar um carrinho de supermercado transbordando de mercadorias; uma parede de televisores que reproduziam toda a sua inter¬ venção televisionada; e ampliações fotográficas de recortes de imprensa que relatavam o seu empreendi¬ mento. Segundo o comissário da exposição, esta acção artística invertia ao mesmo tempo a lógica mercantil do aumento do valor e o princípio do show televisivo. Porém, a evidência desta inversão teria sido considera-

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velmente menos perceptível se houvesse um só televisor em vez de nove e se as fotografias das acções do artista e dos comentários de imprensa tivessem um tamanho vulgar. A realidade do efeito encontrava-se uma vez mais antecipada na monumentalização da imagem. Trata-se de uma tendência de muitas obras e exposições contemporâneas que reporta uma certa forma de acti¬ vismo artístico à velha lógica representativa: a impor¬ tância do lugar ocupado no espaço expositivo serve para provar a realidade de um efeito de subversão no âmbito da ordem social, tal como noutro tempo a monumenta¬ lidade da pintura histórica provava a grandeza dos prín¬ cipes cujos palácios ornamentava. Acumulam-se assim os efeitos da ocupação escultural do espaço, da perfor­

mance viva e da demonstração retórica. Preenchendo as salas dos museus com reproduções dos objectos e ima¬ gens do mundo quotidiano ou com relatos monumen-talizados das suas próprias performances, a arte activista imita e antecipa o seu próprio efeito, correndo o risco de se tornar uma paródia da eficácia que reivindica.

O mesmo risco de uma eficácia espectacular fechada na sua própria demonstração ocorre quando os artistas atribuem a si mesmos como tarefa específica «infiltra¬ rem-se» nas redes da dominação. Estou a pensar nas performances dos Yes Men, que, sob falsas identidades, se inserem nos lugares fortes da dominação: congres¬ sos de homens de negócios - em que um dos artistas mistificava a assistência fazendo a apresentação de um inverosímil equipamento de vigilância -, comissões de

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campanha pela eleição de George Bush ou emissões de televisão. A performance mais espectacular dos Yes Men dizia respeito à catástrofe de Bophal, na índia. Um deles conseguiu fazer-se passar junto da BBC por um res­ponsável da companhia Dow Chemical que entretanto havia comprado a sociedade responsável pelo desastre, a Union Carbide. Nessa qualidade, numa hora de grande audiência, anunciou que a companhia reconhecia a sua responsabilidade e que se comprometia a indemnizar as vítimas. Como seria de esperar, duas horas mais tarde, a companhia reagia e vinha declarar que não tinha res¬ ponsabilidades senão perante os seus accionistas. Era o efeito pretendido e a demonstração era perfeita. Resta saber se esta bem-sucedida performance de mistificação dos media tem o poder de desencadear formas de mobi¬ lização contra as potências internacionais do capital. Ao fazerem o balanço da sua infiltração nas comissões de campanha para a eleição de George Bush em 2004, os Yes Men falavam de um sucesso total que havia sido ao mesmo tempo um fracasso total: sucesso total, uma vez que tinham enganado os seus adversários ao abra¬ çarem as suas ideias e as suas maneiras de agir; fracasso total, já que a sua acção tinha permanecido perfeita¬ mente indiscernível5. De facto, a acção não era discer-nível senão fora da situação em que se inscrevia, exposta

s Intervenção dos Yes Men na conferência Klartext! Der Status des Politischen in

aktuellerKunst undKultur [Texto-claro! O estatuto do politico na arte e na cultura

ac tua i s ] , Ber l im, 16 de Janei ro de 2 005 .

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num outro contexto enquanto performance de um grupo de artistas.

Estamos perante o problema inerente a essa polí¬ tica da arte como acção directa no coração do real da dominação. Essa saída da arte para fora dos seus luga¬ res toma o aspecto de uma demonstração simbólica, semelhante às que a acção política levava a cabo noutro tempo visando alvos simbólicos do poder do adversᬠrio. Mas precisamente o golpe desferido no adversário por uma acção simbólica deve ser julgado como acção política: não se trata, pois, de saber se essa acção é uma saída bem-sucedida da solidão artística para o domínio real das relações de poder, mas sim de saber que forças ela dá à acção colectiva contra as forças da dominação que toma por alvo. Trata-se de saber se a capacidade que nesse momento se exerce significa uma afirmação e uma ampliação da capacidade seja de quem for. Esta ques¬ tão é elidida quando se cruzam os critérios de avaliação identificando directamente como uma nova forma polí¬ tica de acção colectiva as performances individuais dos virtuosos da infiltração. O que sustenta esta identifica¬ ção é a visão de uma nova era do capitalismo na qual a produção material e imaterial, o saber, a comunicação e a performance artística se fundiriam num único processo de realização do poder da inteligência colectiva. Porém, tal como há muitas formas de realização da inteligência colectiva, também há muitas formas e palcos de perfor­

mance. A visão do novo artista imediatamente político pretende opor o real da acção política aos simulacros

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da arte encerrada no fechamento dos museus. Mas, ao anular a distância estética inerente à política da arte, essa visão tem porventura um efeito inverso. Ao apa¬ gar o afastamento entre política da estética e estética da política, apaga também a singularidade das operações por intermédio das quais a política cria um palco de subjectivação própria. E paradoxalmente vem ampliar a visão tradicional do artista como virtuoso e estratego, voltando a identificar a efectividade da arte com a exe¬ cução das intenções dos artistas.

Assim, a política da arte não pode solucionar os seus paradoxos, sob a forma de uma intervenção fora dos seus lugares, no «mundo real». Não existe um mundo real que fosse o lado de fora da arte. O que existe são pregas e dobras do tecido sensível comum nas quais se encontram e desencontram a política do estético e o estético da política. Não existe real em si, mas sim con¬ figurações daquilo que nos é dado como o nosso real, como objecto das nossas percepções, dos nossos pen¬ samentos e das nossas intervenções. O real é sempre o objecto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço onde se entrelaçam o visível, o dizível e o fazível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que denega o seu carácter de ficção fazendo-se passar pelo pró¬ prio real e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e das apa¬ rências, das opiniões e das utopias. A ficção artística como a acção política atravessam esse real, fractu-ram-no e multiplicam-no segundo um modo polémico.

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O trabalho da política que inventa novos sujeitos e introduz objectos novos e uma outra percepção dos dados comuns é também um trabalho ficcional. De igual modo, a relação da arte com a política não é uma passagem da ficção ao real, mas sim uma relação entre duas maneiras de produzir ficções. As práticas da arte não são instrumentos que forneçam formas de consciên¬ cia ou energias mobilizadoras em benefício de uma política que lhes fosse exterior. Mas também não saem de si mesmas para se tornarem formas de acção política colectiva. Contribuem para desenhar uma paisagem nova do visível, do dizível e do fazível. Contra o con­senso de outras formas do «senso comum», forjam for¬ mas de um senso comum polémico.

A involução da fórmula crítica não deixa, pois, lugar à simples alternativa da paródia desencantada ou da auto-demonstração activista. O recuo de certas evi¬ dências abre igualmente a via para um vasto conjunto de formas de dissentimento: as que se dedicam a fazer ver o que, na pretensa torrente das imagens, permanece invisível; as que põem em jogo, sob formas inéditas, as capacidades de representar, de falar e de agir que per¬ tencem a todos; as que deslocam as linhas de distribui¬ ção entre os regimes de apresentação sensível, as que reexaminam e recolocam em ficção as políticas da arte. Existe lugar para a multiplicidade de formas de uma arte crítica entendida de uma maneira diversa. No seu sen¬ tido original, o adjectivo «crítico» quer dizer: que diz respeito à separação, à discriminação. Crítica é a arte

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que desloca as linhas de separação, que introduz sepa¬ ração no tecido consensual do real e que, precisamente por essa via, baralha as linhas de separação que confi¬ guram o campo consensual do dado, como é o caso da linha que separa o documentário da ficção: uma distin¬ ção em géneros que separa com suposta naturalidade dois tipos de humanidade, a que sofre e a que age, a que é objecto e a que é sujeito. A ficção é para os Israelitas e o documentário para os Palestinianos, dizia ironicamente Godard. E esta linha que se vê baralhada por vários artis -tas palestinianos ou libaneses - mas também israe¬ litas - que, para tratar da actualidade da ocupação e da guerra, tomam de empréstimo formas ficcionais de diversos géneros, populares ou sofisticados, ou criam falsos arquivos. Pode dizer-se que são críticas as ficções que assim põem em causa as linhas de separação entre regimes de expressão, e de igual modo as performances

que «invertem o ciclo de degradação produzido pela vitimização» 6, manifestando as capacidades de falar e de representar que pertencem àqueles e àquelas que uma sociedade rejeita para as suas margens «passivas». Mas o trabalho crítico, o trabalho acerca da separação, é também aquele que examina os limites próprios da sua prática, que recusa antecipar o seu efeito e leva em conta a separação estética, por intermédio da qual este

6 Entrevis ta com John M a l p e d e , w w w . i n m o t i o n m a g a z i n e . c o m / j m l .html (John

Malpede é o director do Los A n g e l e s Pover ty Depar tmen t , inst i tuição teatral

a l ternat iva que re tomou i ronicamente as cé lebres iniciais L A P D ) .

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efeito se encontra produzido. É em suma um trabalho que, em vez de querer suprimir a passividade do espec¬ tador, reexamina a actividade deste.

Gostaria de ilustrar esta ideia com duas ficções que, da própria distância em que nos surgem sobre a super¬ fície plana de um ecrã, podem ajudar-nos a reformular a questão das relações entre os poderes da arte e a capaci¬ dade política do maior número. A primeira é um traba¬ lho de vídeo de Anri Sala, intitulado Dammii Colori. Esta obra coloca em cena uma figura mestra de entre as polí¬ ticas da arte: a ideia da arte como construção das formas sensíveis da vida colectiva. Há alguns anos, o presidente da Câmara da capital albanesa, Tirana, ele próprio pin¬ tor, decidiu mandar repintar com cores vivas as facha¬ das dos prédios da sua cidade. Tratava-se não apenas de transformar o quadro de vida dos habitantes, mas também de suscitar um sentido estético da apropriação colectiva do espaço, numa altura em que a liquidação do regime comunista dera lugar ao mero desenven-cilhamento individual. Trata-se, pois, de um projecto que se inscreve no prolongamento do tema schilleriano da educação estética do homem e de todas as formas que a essa «educação» deram os artistas das Arts and

Crafts, do Werkbunde do Bauhaus: a criação, por intermé¬ dio do sentido da linha, do volume, da cor ou do orna¬ mento, de uma maneira apropriada de habitar em con¬ junto o mundo sensível. O vídeo de Anri Sala dá-nos a ouvir o presidente da Câmara artista falando do poder da cor para antecipar uma comunidade e fazer da capi-

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tal mais pobre da Europa a única onde toda a gente fala de arte nas ruas e nos cafés. Mas ao mesmo tempo os longos travellings e os planos aproximados fazem explo¬ dir a exemplaridade desta cidade estética, fazem surgir outras superfícies coloridas, outras cidades que colo¬ cam em confronto com as afirmações do orador. Umas vezes, a câmara, fazendo desfilar as fachadas azuis, ver¬ des, vermelhas, amarelas ou alaranjadas, parece levar¬ mos de visita a um projecto urbanístico posto em prática. Outras vezes, dá a ver essa cidade-modelo atravessada por uma multidão indiferente, ou então desce para con¬ frontar a policromia feérica das paredes com a lama das calçadas intransitáveis e cobertas de detritos. Outras ainda, aproxima-se e transforma os rectângulos de cor em superfícies abstractas, indiferentes a qualquer pro¬ jecto de transformação da cidade. Deste modo, a super¬ fície da obra organiza a tensão entre a cor que a vontade estética projecta sobre as fachadas e a que as fachadas lhe reenviam. Os recursos de uma arte da distância ser¬ vem para expor e para problematizar a política que quer fundir a arte e a vida num único processo de criação de formas.

E outra função da cor e outra política da arte que se

encontra no cerne dos três filmes (Ossos, No Quarto da Vanda

e Juventude em Marcha) que o cineasta português Pedro Costa

consagrou a um pequeno grupo de marginais lisboetas e de

imigrantes cabo-verdianos, deambulando entre a droga e

os pequenos biscates, no bairro de lata das Fontainhas.

Esta trilogia é obra de um artista profundamente empe¬

no

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nhado. Contudo, para ele não se trata de dar uma ajuda no que diz respeito ao habitat de gente em más condições de alojamento, do mesmo modo que não se trata de for­necer uma explicação da lógica económica e estatal glo¬ bal que preside à existência do bairro de lata e depois à respectiva liquidação. E, contrariamente à moral geral¬ mente admitida que nos proíbe de «estetizar» a miséria, Pedro Costa parece agarrar todas as oportunidades de valorizar os recursos artísticos oferecidos por aquele cenário de vida mínima. Uma garrafa de água em plás¬ tico, uma faca, um copo, alguns objectos espalhados em cima de uma mesa de madeira em bruto dentro de um apartamento ilegalmente ocupado, e eis que, à custa da luz rasante que investe este cenário, se proporciona a ocasião de uma bela natureza-morta. Cai a noite nesse quarto sem electricidade, e duas pequenas velas em cima da mesma mesa dão a uma conversa miserável ou a uma sessão de chuto uma aparência de claro-escuro holan¬ dês do Século de Ouro. E o trabalho das escavadoras na demolição do bairro de lata dá ocasião para pôr em des¬ taque, por entre o desmoronamento das casas, pedaços de betão de aspecto escultórico ou vastas zonas de cor, azuis, rosa, amarelas ou verdes. Porém, a «estetiza-ção» significa precisamente que o território intelectual e visualmente banalizado da miséria e da margem é ele¬ vado à sua potencialidade de riqueza sensível partilhá-vel. À exaltação por parte do artista das áreas coloridas e das arquitecturas singulares responde, pois, estri¬ tamente a sua exposição àquilo que ele não domina:

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a errância das personagens entre os lugares fechados da droga e o lado de fora onde se entregam a pequenos ofícios, mas também as lentidões, as aproximações, as. suspensões e os actos de retoma da palavra por inter¬ médio da qual os jovens drogados arrancam à tosse e ao acabrunhamento a possibilidade de dizerem e de pen¬ sarem a sua própria história, de submeterem a sua vida a exame e de assim, ainda que minimamente, retoma¬ rem posse dela. A natureza-morta luminosa, composta por uma garrafa de plástico e alguns objectos recupera¬ dos do lixo em cima da mesa branca de uma casa ilegal¬ mente ocupada surge assim em harmonia com a teimo¬ sia «estética» de um desses ocupantes que, apesar dos protestos dos seus companheiros, vai limpando meti¬ culosamente com uma faca as manchas do tampo dessa mesa destinada a ser triturada pelos dentes da escavadora.

Pedro Costa põe deste modo em acção uma política da estética igualmente afastada da visão sociológica para a qual a «política» da arte significa a explicação de uma situação - ficcional ou real - pelas condições sociais e da visão ética que pretende substituir a «impo¬ tência» do olhar e da palavra pela acção directa. No cen¬ tro do seu trabalho encontra-se inversamente o poder do olhar e da palavra, o poder da suspensão que o olhar e a palavra instalam. Porque a questão política é antes de mais a da capacidade de quaisquer corpos tomarem em mãos o seu destino. Pedro Costa concentra-se tam¬ bém na relação entre a impotência e a potência dos cor¬ pos, na confrontação das vidas com aquilo que podem.

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Coloca-se assim no cerne da relação entre uma polí¬ tica da estética e uma estética da política. Mas assume também a separação das duas, o desfasamento entre a proposição artística que dá potencialidades novas à paisagem da «exclusão» e as potencialidades próprias da subjectivação política. À reconciliação estética que No Quarto da Vanda parecia encarnar na relação da bela natureza-morta com o esforço dos corpos que reto¬ mam as suas vozes, o filme seguinte, Juventude em Mar¬

cha, opõe uma nova cisão. Com os marginais tornados sensatos, reconvertidos, uma em mãe de família elo¬ quente, o outro em empregado-modelo, o filme con¬ fronta a silhueta trágica de Ventura, o imigrante cabo--verdiano, antigo pedreiro que a queda de um andaime tornou inapto para o trabalho e que uma febre cerebral tornou incapaz para a vida social comum. Com Ventura, a sua alta silhueta, o seu olhar selvagem e a sua pala¬ vra lapidar, não se trata de oferecer o documentário de uma vida difícil; trata-se antes de recolher ao mesmo tempo toda a riqueza de experiência contida na história da colonização, da rebelião e da imigração, mas também de afrontar o impartilhável, o rasgão que, no final dessa história, separou um indivíduo do seu mundo e de si próprio. Ventura não é um «trabalhador imigrado», um homem humilde a quem fosse preciso restituir a digni¬ dade e a fruição do mundo que ele ajudou a construir. É uma espécie de errante sublime, de Édipo ou de rei Lear, que interrompe por iniciativa própria a troca e a comu¬ nicação, expondo a arte ao confronto com a sua força e a

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sua impotência. É isto que o filme faz ao intercalar uma estranha visita ao museu entre duas leituras de uma carta de amor e de exílio. Na Fundação Gulbenkian, cujas paredes Ventura ajudou noutro tempo a erguer, a silhueta negra surge entre um Rubens e um Van Dyck como um corpo estranho, um intruso que um compa¬ triota que encontrou refúgio nesse «mundo antigo» empurra lentamente para a saída, mas também uma interrogação colocada a essas superfícies de cor fecha¬ das na sua moldura, incapazes de restituir aos que as olham a riqueza sensível da sua experiência. Na miserᬠvel habitação, onde o cineasta soube compor com qua¬ tro garrafas frente a uma janela uma outra natureza--morta, Ventura lê uma carta de amor dirigida à mulher que ficou no seu país, carta na qual o ausente fala do tra¬ balho e da separação, mas também de um encontro pró¬ ximo que há-de dar beleza a duas vidas durante vinte ou trinta anos, do sonho de oferecer à amada cem mil cigarros, vestidos, um automóvel, uma pequena casa de pedra vulcânica e um ramo de flores de quarenta cênti¬ mos, e do esforço para aprender todos os dias palavras novas, palavras de beleza talhadas à rigorosa medida de dois seres, como um pijama de seda fina. Esta carta, que serve de refrão ao filme, surge propriamente como a performance de Ventura, a performance de uma arte da partilha que não se separa da vida, da experiência dos deslocados tanto quanto dos seus meios de colmatar a ausência e de se aproximarem do ser amado. Mas a pureza da oposição entre a grande arte e a arte viva do

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povo desarticula-se de imediato. Pedro Costa compôs a carta a partir de duas fontes diferentes: cartas verdadeiras de gente emigrada e uma carta de um poeta, uma das últi­mas cartas enviadas do Campo de Flõha por Robert Des¬ nos a Youki, no trajecto que o levava a Terezín e à morte.

A arte ligada à vida, a arte entretecida a partir das expe¬ riências partilhadas do trabalho da mão, do olhar e da voz, essa arte não existe senão sob a forma deste patchwork.

O cinema não pode ser o equivalente da carta de amor ou da música partilhada dos pobres. E também já não pode ser a arte que simplesmente restitui aos humildes a riqueza sensível do mundo. E-lhe necessário separar-se, consentir em ser apenas a superfície na qual um artista procura traduzir em figuras novas a experiência daqueles que foram relegados para a margem das circulações eco¬ nómicas e das trajectórias sociais. O filme que põe em questão a separação estética em nome da arte do povo permanece um filme, um exercício do olhar e da escuta. Permanece um trabalho de espectador, dirigido sobre a superfície plana de um ecrã a outros espectadores rela¬ tivamente aos quais o sistema de distribuição existente se encarregará aliás de restringir estritamente o número e a diversidade, enviando as histórias de Vanda e de Ven¬ tura para a categoria de «filmes de festival» ou das obras de museu. Um filme político hoje talvez queira dizer tam¬ bém um filme que se faz em lugar de um outro, um filme que mostra a sua distância face ao modo de circulação das palavras, dos sons, das imagens, dos gestos e dos afectos no seio do qual pensa o efeito das suas formas.

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Ao evocar estas duas obras não quis propor mode­los do que deva ser uma arte política hoje. Espero ter mostrado suficientemente bem que tais modelos não existem. O cinema, a fotografia, o vídeo, as instalações e todas as formas de performance do corpo, da voz e dos sons contribuem para uma refundição do quadro das nossas percepções e do dinamismo dos nossos afec¬ tos. Deste modo abrem passagens possíveis para novas formas de subjectivação política. Mas nenhuma dessas modalidades artísticas pode evitar o corte estético que separa os efeitos das intenções e proíbe qualquer cami¬ nho privilegiado em direcção a um real que fosse o outro lado das palavras e das imagens. Não existe esse outro lado. Uma arte crítica é uma arte que sabe que o seu efeito político passa pela distância estética. Esta arte sabe que um tal efeito não pode ser garantido, que ele comporta sempre uma parte de indecidível. Mas há duas manei¬ ras de pensar este indecidível e de produzir obra com ele. Há uma que o considera um estado do mundo em que os opostos se equivalem e que faz da demonstração desta equivalência a ocasião para um novo virtuosismo artístico. E há uma outra que reconhece no indecidível o entrelaçamento de várias políticas, dá a este entrela¬ çamento novas figuras, explora as respectivas tensões e desloca assim o equilíbrio dos possíveis e a distribuição das capacidades.

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Que faz com que uma imagem se torne intolerável? A primeira vista a questão parece perguntar apenas quais são os traços característicos que nos tornam inca­pazes de olhar para uma imagem sem experimentar dor ou indignação. Mas há uma segunda questão que surge imediatamente inserida na primeira: será tolerável fazer tais imagens e propô-las à visão dos outros? Pense­mos numa das últimas provocações do fotógrafo Oli-viero Toscani: o anúncio que mostra uma jovem anoré-xica nua e descarnada e que foi exibido em placarás por toda a Itália por altura da Semana da Moda de Milão, em 2007. Uns saudaram nessa imagem uma denúncia corajosa, mostrando a realidade de sofrimento e de tor­tura escondida por trás das aparências da elegância e do luxo. Outros denunciaram nessa exibição da verdade do espectáculo uma forma ainda mais intolerável do impé­rio desse mesmo espectáculo, uma vez que, sob a más­cara da indignação, a imagem oferecia ao olhar dos voyeurs não apenas a bela aparência, mas também a rea­lidade abjecta. O fotógrafo opunha à imagem da aparên­cia uma imagem da realidade. Ora, é a imagem da reali­dade que por seu turno é alvo de suspeita. Acha-se que o que ela mostra é demasiado real, demasiado intolera-velmente real para ser proposto sob o modo de imagem.

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Não se trata de um simples caso de respeito pela digni­dade das pessoas. A imagem é declarada inapta para a crítica da realidade porque releva do mesmo regime de visibilidade que essa realidade, a qual exibe alternada­mente a sua face de aparência brilhante e o seu reverso de verdade sórdida, compondo as duas coisas um único espectáculo.

Esta deslocação do intolerável na imagem para o intolerável da imagem surgiu em dada altura nb cerne das tensões que afectam a arte política. É conhecido o papel que ao tempo da Guerra do Vietname certas foto­grafias puderam desempenhar, como a da menina nua gritando na estrada à frente dos soldados. E é sabido como os artistas politicamente empenhados se entre­garam à tarefa de confrontar a realidade dessas ima­gens de dor e de morte com as imagens publicitárias que mostravam o prazer da vida nos belos apartamentos modernos e bem equipados no país que enviava os seus soldados para queimarem com napalm as terras vietna­mitas. Comentei atrás a série Bringing the WarHome de Martha Rosler e em particular aquela colagem que nos mostrava, no meio de um apartamento claro e espa­çoso, um vietnamita transportando nos braços uma criança morta. A criança morta era a intolerável reali­dade escondida pela confortável vida americana, a into­lerável realidade que a vida americana se esforçava por não ver e que a montagem da arte política lhe atirava à cara. Sublinhei como é que este choque entre a realidade e a aparência se encontra anulado nas práticas contem-

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porâneas da colagem que fazem do protesto político uma manifestação da moda jovem ao mesmo nível das mercadorias de luxo e das imagens publicitárias. Teria, pois, deixado de haver uma intolerável realidade que a imagem pudesse opor ao prestígio das aparências, tendo passado a existir apenas um mesmo fluxo de ima­gens, um único regime de exibição universal, e seria este regime que constituiria hoje o intolerável.

Esta reviravolta não é simplesmente causada pelo desencantamento de um tempo que já não acreditasse nem nos meios de atestar uma realidade nem na neces­sidade de combater a injustiça. Ela testemunha antes uma duplicidade já presente no uso militante da ima­gem intolerável. Acreditava-se que a imagem da criança morta rasgava a imagem da felicidade artificial da vida americana; tinha por função abrir os olhos daqueles que gozavam dessa felicidade, dando-lhes a ver o into­lerável dessa realidade e da sua própria cumplicidade, com o intuito de os empenhar na luta. Mas a produção desse efeito permanecia indecidível. A visão da criança morta dentro do belo apartamento de paredes claras e amplas proporções é decerto difícil de suportar. Mas não há razão particular para que faça com que os que a vêem se tornem conscientes da realidade do impe­rialismo e fiquem desejosos de se lhe oporem. A reac­ção vulgar a tais imagens é fechar os olhos ou olhar para outro lado. Ou então poderá ser a de incriminar os hor­rores da guerra e a loucura assassina dos homens. Para que a imagem produza o seu efeito político, o especta-

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dor deverá estar já convencido de que o que ela mostra é o imperialismo americano e não a loucura dos homens em geral. E deverá estar igualmente convencido de que ele próprio é culpado por partilhar a prosperidade baseada na exploração imperialista do mundo. E deverá ainda sentir--se culpado de estar ali sem nada fazer, a olhar para aque­las imagens de dor e de morte em vez de lutar contra as potências que são responsáveis pelo que vê. Resumindo, deverá sentir-se já culpado por olhar para a imagem que deve provocar o sentimento da sua culpabilidade.

É esta a dialéctica inerente à montagem política das imagens. Uma de entre elas deve desempenhar o papel da realidade que denuncia a miragem da outra. Mas denuncia no mesmo momento a miragem como sendo a realidade da nossa vida na qual ela mesma se encon­tra incluída. O simples facto de olhar para as imagens que denunciam a realidade de um sistema surge já como uma cumplicidade no interior desse sistema. Na mesma época em que Martha Rosler produzia a sua série de colagens, Guy Debord realizava o filme extraído do seu livro A Sociedade do Espectáculo. O espectáculo, dizia o autor, é a inversão da vida. E o filme mostrava tam­bém a encarnação em todas as imagens desta realidade do espectáculo como inversão da vida: na imagem dos governantes - capitalistas e comunistas -, como na das vedetas de cinema, dos manequins de moda, dos mode­los publicitários, das starlettes nas praias de Cannes ou dos consumidores vulgares de mercadorias e de ima­gens. Todas estas imagens eram equivalentes, diziam

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da mesma maneira a mesma realidade intolerável: a da nossa vida separada de nós próprios, transformada pela

.máquina do espectáculo em imagens mortas, face a nós, contra nós. Deste modo, parecia doravante impossível conferir a uma imagem, fosse ela qual fosse, o poder de mostrar o intolerável e de nos levar a lutar contra ele. A única coisa a fazer parecia ser opor a acção viva à passividade da imagem, à vida alienada da imagem. Mas para tanto não seria necessário suprimir as ima­gens, mergulhar o ecrã na obscuridade para assim ape­lar à acção, única instância capaz de se opor à mentira do espectáculo?

Ora, Guy Debord não instalava a obscuridade no ecrã 1. Pelo contrário, fazia do ecrã o teatro de um jogo estratégico singular entre três termos: a imagem, a acção e a palavra. Esta singularidade surge clara­mente nos extractos de westerns ou de filmes de guerra de Hollywood inseridos em A Sociedade do Espectáculo.

Quando aí vemos aparecer John Wayne ou Errol Flynn, dois ícones de Hollywood e dois campeões da extrema-- direita americana, quando um recorda os seus feitos no Shenandoah ou o outro, no papel do general Custer, comanda uma carga de cavalaria com a espada desem­bainhada, somos inicialmente tentados a ver nes ­ses extractos uma denúncia paródica do imperialismo americano e da respectiva glorificação pelo cinema de

1 Recordemos que, pelo contrário, Debord o havia feito num filme anterior,

Urros a favor de Sade.

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Hollywood. É neste sentido que muita gente entende o «desvio» advogado por Guy Debord. Ora, trata-se de um contra-senso. E com toda a seriedade que Debord introduz a carga de cavalaria comandada por Errol Flynn tomada de empréstimo de Todos Morreram Calçados, de Raoul Walsh, para ilustrar uma tese acerca do papel his­tórico do proletariado. O realizador não nos pede que nos riamos desses orgulhosos yankees que carregam' de sabre desembainhado e que tomemos consciência da cumplicidade de Raoul Walsh ou de John Ford com a dominação capitalista. Pede-nos, pelo contrário, que tomemos para nós o heroísmo do combate, que trans­formemos aquela carga cinematográfica, representada por actores, num assalto real contra o império do espec­táculo. E esta a conclusão aparentemente paradoxal, mas completamente lógica, da denúncia do espectá­culo: se qualquer imagem mostra simplesmente a vida invertida, tornada passiva, bastará voltar a invertê-la para libertar o poder activo que ela desviou. É a lição que, mais discretamente, nos é dada pelas primeiras imagens do filme. Nelas vemos dois corpos femininos, jovens e belos, exultantes de alegria no meio da luz. O espectador apressado arrisca-se a ver aí uma denún­cia da posse imaginária oferecida e s imultaneamente roubada pela imagem, a posse que mais adiante é ilustrada por outras imagens de corpos femininos -strippers, manequins, starlettes desnudadas. Ora, esta aparente semelhança esconde uma oposição radical. Porque estas primeiras imagens não foram tiradas de

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espectáculos, de filmes publicitários ou de actualidades. Foram feitas pelo artista e representam a sua compa­nheira e uma amiga. Surgem assim como imagens acti­vas, imagens de corpos empenhados nas relações activas do desejo do amor, em vez de estarem encerradas na relação passiva do espectáculo.

Assim sendo, são necessárias imagens de acção, ima­gens da verdadeira realidade, ou então imagens imedia­tamente susceptíveis de ser invertidas na sua realidade verdadeira, para nos mostrar que o simples facto de ser um espectador, o simples facto de olhar imagens, é uma coisa má. A acção é apresentada como a única resposta face ao mal da imagem e à culpabilidade do especta­dor. E contudo são ainda imagens que são apresentadas a este mesmo espectador. Este aparente paradoxo tem a sua razão de ser: se não olhasse as imagens, o espec­tador não seria culpado. Ora, a demonstração da sua culpabilidade importa talvez mais ao acusador do que a sua conversão à acção. É aqui que a voz que formula a ilusão e a culpabilidade ganha toda a sua importância. Ela denuncia a inversão da vida, que consiste em ser um consumidor passivo de mercadorias que são imagens e de imagens que são mercadorias. Essa voz diz-nos que a única resposta face a este mal é a actividade. Mas diz--nos igualmente que nós, que olhamos as imagens que ela comenta, nós nunca agiremos, que permaneceremos eternamente espectadores de uma vida passada den­tro da imagem. A inversão da inversão fica assim a ser o saber reservado daqueles que sabem porque perma-

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neceremos sempre sem saber e sem agir. A virtude da actividade, oposta ao mal da imagem, é então absorvida pela autoridade da voz soberana que estigmatiza a vida falsa dentro da qual essa mesma voz sabe que permane­cemos condenados a aí nos comprazermos.

A afirmação da autoridade da voz surge, assim, como o conteúdo real da crítica que nos reconduzia do intole­rável na imagem ao intolerável da imagem. É esta des­locação que é totalmente posta à luz do dia pela crítica da imagem feita em nome do irrepresentável. A ilus­tração exemplar disto mesmo foi fornecida pela polé­mica desencadeada a propósito da exposição Memó­

rias dos Campos apresentada há alguns anos em Paris. No centro da exposição encontravam-se quatro peque­nas fotografias feitas a partir de uma câmara de gás de Auschwitz por um membro dos Sonderkommandos. Essas fotografias mostravam um grupo de mulheres nuas a serem conduzidas para a câmara de gás e a incineração dos cadáveres ao ar livre. No catálogo da exposição, um longo ensaio de Georges Didi-Huberman sublinhava o peso de realidade representado por aqueles «Qua­tro pedaços de película arrancados ao Inferno» 2. Este ensaio provocou na revista Les Temps modemes duas res­postas muito violentas. A primeira, assinada por Eli­sabeth Pagnoux, utilizava o argumento clássico: estas

2 Este ensaio encontra-se reproduzido - acompanhado de comentários e res­

postas às críticas - em Georges Didi-Huberman, lmages malgrétout, Éditions de

Minuit, Paris, 2003.

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imagens eram intoleráveis porque eram demasiado reais. Ao projectarem sobre o nosso presente o horror de Auschwitz, capturavam o nosso olhar e impediam toda e qualquer distância crítica. Mas a segunda crítica, assi­nada por Gerard Wajcman, invertia o argumento. Estas imagens - e o comentário que as acompanhava - eram intoleráveis porque mentiam; as quatro fotografias não representavam a realidade da Shoah por três razões: em primeiro lugar, porque não mostravam a exterminação dos judeus dentro das câmaras de gás; depois, porque o real nunca é inteiramente solúvel no visível; por último, porque no cerne do acontecimento da Shoah há um irre-presentável, algo que estruturalmente não pode coagu­lar-se numa imagem.

As câmaras de gás são um acontecimento que constitui

em si mesmo uma espécie de aporia, um real não suscep­

tível de ser desarticulado que trespassa e põe em ques­

tão o estatuto da imagem e em perigo todo o pensamento

acerca das imagens.3

A argumentação seria razoável se tivesse em vista apenas contestar que as quatro fotografias tivessem a capacidade de representar a totalidade do processo de extermínio dos judeus, o seu significado e a sua resso­nância. Mas estas fotografias, nas condições em que

3 Gérard Wajcman, «De la croyance photographique», Les Temps modernes,

Março-Abril-Maio d e 2 0 0 1 , p . 63.

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foram captadas, não tinham evidentemente tal preten­são e o argumento visa de facto algo de inteiramente diferente: instaurar uma oposição radical entre duas espécies de representação, a imagem visível e o relato por intermédio da palavra, e duas espécies de certifi­cação, a prova e o testemunho. As quatro imagens e o comentário são condenados porque aqueles que as captaram - correndo risco de vida - e aquele que as comenta viram nelas testemunhos da realidade de um extermínio cujos autores tudo fizeram para lhe apagar os vestígios. E-lhes criticado o facto de terem acredi­tado que a realidade do processo precisava de ser pro­vada e que a imagem visível fazia prova. Ora, retorque o filósofo:

A Shoah ocorreu. Sei-o e cada um sabe-o. É um saber. Cada sujeito é interpelado. Ninguém pode dizer: «não sei». Este saber funda-se no testemunho, que configura um novo saber [...]. Não reclama prova alguma.4

Mas o que é em rigor este «novo saber»? Que coisa distingue a virtude do testemunho da indignidade da prova? Quem dá testemunho por intermédio de um relato daquilo que viu num campo de extermínio põe em prática uma representação precisamente como alguém que procurou registar um vestígio visível da mesma coisa. A palavra do primeiro também não diz o

4 Ibid., p. 53.

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acontecimento no seu carácter único, não é o seu hor­ror" manifestado directamente. Dir-se-á que é esse o mérito da palavra: não dizer tudo, mostrar que não se pode dizer tudo. Mas este aspecto não fundamenta a diferença radical relativamente à «imagem» a não ser que se atribua arbitrariamente a esta última a pretensão de mostrar tudo. A virtude conferida à palavra do teste­munho é portanto inteiramente negativa: não tem a ver com o que essa palavra diz, mas sim com a sua própria insuficiência, oposta à suficiência atribuída à imagem, ao carácter enganador desta suficiência. Mas esta é uma mera questão de definição. Se nos ativermos à sim­ples definição da imagem como duplo, retirar-se-á daí certamente a simples consequência de que este duplo se opõe à unicidade do Real e deste modo não poderá senão apagar o horror único da exterminação. A ima­gem tranquiliza, diz-nos Wajcman. Prova disso é o facto de olharmos estas fotografias quando parece certo que não suportaríamos a realidade que elas reproduzem. A única falha deste argumento de autoridade é que aqueles que viram essa realidade e antes de mais os que captaram as ditas imagens foram capazes de as supor­tar. Mas é precisamente isso que o filósofo critica ao fotógrafo de ocasião: ter querido testemunhar. A verda­deira testemunha é aquela que não quer testemunhar. É essa a razão de ser do privilégio atribuído à sua pala­vra. Mas esse privilégio não é o da testemunha. É o da palavra que força a testemunha a falar apesar da sua vontade.

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É o que é ilustrado por uma sequência exemplar do filme que Gérard Wajcman opõe a todas as provas visu­ais e a todos os documentos de arquivo: Shoah de Claude Lanzmann, um filme fundado no testemunho de alguns sobreviventes. A referida sequência mostra um salão de cabeleireiro em que o antigo barbeiro de Treblinka, Abraham Bomba, conta a chegada e a derradeira tosquia daqueles e daquelas que estavam prestes a entrar nas câma­ras de gás. No centro do episódio está o momento em que Abraham Bomba, ao evocar o destino que era dado aos cabelos cortados, se recusa a continuar e enxuga as lágri­mas que começam a escapar-lhe. Nesse momento, a voz do realizador pressiona-o para que continue: «Deve continuar, Abe.» Mas se ele deve, não é para revelar uma verdade que fosse ignorada e que fosse necessário opor aos que a negam. E, em qualquer dos casos, Abraham também não dirá o que se passava dentro das câmaras de gás. Deve dizer, simples­mente porque deve. Deve, porque não quer fazê-lo, por­que não pode. Não é o conteúdo do seu testemunho que importa, mas sim o facto de a sua palavra ser a de alguém a quem o intolerável do acontecimento que deve ser contado retira a possibilidade de falar; é o facto de ele falar, apenas porque a tanto é obrigado pela voz de um outro indivíduo. No filme, esta voz do outro é a do realizador, mas esta pro­jecta atrás de si uma outra voz, na qual o comentador, a seu bel-prazer, reconhecerá a lei da ordem simbólica lacaniana ou a autoridade do deus que dita a proscrição das imagens, fala ao seu povo envolto pela nuvem e exige ser acredi­tado em função da sua palavra e absolutamente obedecido.

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A palavra da testemunha é sacralizada por três razões nega­tivas: primeiro, porque é o oposto da imagem, que é idola­tria; depois, porque é a palavra do homem incapaz de falar; finalmente, porque é a palavra do homem obrigado à pala­vra por uma palavra mais poderosa do que a sua. A crítica das imagens não lhes opõe em definitivo nem as exigências da acção nem a retenção da palavra. Opõe-lhes a autoridade da voz que faz alternativamente calar e falar.

Mas também neste plano a oposição não é colo­cada senão para ser imediatamente revogada. A força do silêncio que traduz o irrepresentável do aconteci­mento não existe senão por via da sua representação. O poder da voz que se opõe às imagens tem de exprimir-se em imagens. A recusa de falar e a obediência à voz que ordena têm, pois, de ser tornadas visíveis. Quando o barbeiro suspende o seu relato, quando não consegue continuar a falar e a voz off o manda continuar, o que entra em jogo, o que serve de testemunho, é a emoção estampada na sua figura, são as lágrimas que ele tenta reter e as que tem de enxugar. Wajcman comenta o tra­balho do cineasta nos seguintes termos:

[...] Para fazer surgir câmaras de gás, o realizador filma gente e palavras, testemunhas captadas no acto actual de se recordarem, nos rostos das quais as recordações pas­sam como sobre um ecrã de cinema, nos olhos das quais se discerne o horror que viram [... ] .5

s Ibid., p. 55.

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Sendo assim, o argumento do irrepresentável envolve--se num jogo duplo. Por um lado, opõe a voz da testemu­nha à mentira da imagem. Mas quando a voz se suspende, é a imagem do rosto em sofrimento que se torna a evi­dência sensível daquilo que os olhos da testemunha viram, a imagem visível do horror do extermínio. E o comentador que declarara que era impossível distinguir na fotografia de Auschwitz as mulheres enviadas para a morte de um grupo de naturistas em passeio parece já não ter dificuldade alguma em distinguir o choro que reflecte o horror das câmaras de gás de qualquer outro que em geral exprima uma recordação dolorosa por parte de um coração sensível. De facto, a diferença não se encontra no conteúdo da imagem: está simplesmente no facto de que a primeira é um testemunho voluntário, ao passo que a segunda é um testemunho involuntário. A virtude da (boa) testemunha é ser aquela que obedece simplesmente à dupla marca do Real, que horroriza, e da palavra do Outro, que obriga.

É por isso que a oposição irredutível da palavra à imagem pode, sem problema, tornar-se a oposição entre duas imagens, a imagem que é objecto de um querer e a que não é. Mas, como é evidente, a segunda é que­rida por um outro. E querida pelo cineasta que, pelo seu lado, não pára de afirmar que é antes de mais um artista e que tudo o que vemos e ouvimos no seu filme é pro­duto da sua arte. O jogo duplo do argumento ensina-nos então a pôr em causa, juntamente com a falsa radica­lidade da oposição, o simplismo das ideias de repre-

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sentação e de imagem sobre as quais a dita oposição se apoia. A representação não é o acto de produzir uma fornia visível, é sim o acto de dar um equivalente, coisa que a palavra faz tanto quanto a fotografia. A imagem não é o duplo de uma coisa. E um jogo complexo de rela­ções entre o visível e o invisível, entre o visível e a palavra, entre o dito e o não-dito. Não é a simples reprodução do que surgiu em frente do fotógrafo ou do cineasta. É sempre uma alteração que ocorre numa cadeia de imagens que por seu turno a altera também. E a voz não é a manifestação do invisível, por oposição à forma visí­vel da imagem. Ela própria é captada no decurso do pro­cesso de construção da imagem. É a voz de um corpo que transforma um acontecimento sensível num outro, esforçando-se por nos fazer «ver» o que esse corpo viu, por nos fazer ver o que ele nos diz. Trata-se de algo que a retórica e a poética clássica nos ensinaram: tam­bém na linguagem há imagens. São todas essas figuras que substituem uma expressão por uma outra para nos fazerem experimentar a textura sensível de um acon­tecimento melhor do que o poderiam fazer as palavras «próprias». De igual modo, existem figuras de retó­rica e de poética no visível. As lágrimas em suspenso nos olhos do barbeiro são a marca da sua emoção. Mas esta emoção é ela mesma produzida pelo dispositivo do cineasta e, a partir do momento que este filma essas lágrimas e liga esse plano com outros planos, elas já não podem ser a presença nua do acontecimento recor­dado. Pertencem a um processo de figuração que é um

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processo de condensação e de deslocação. Estão ali em lugar das palavras que elas mesmas estavam em lugar da representação visual do acontecimento. Tornam-se uma figura de arte, o elemento de um dispositivo que visa dar uma equivalência figurativa do que aconteceu dentro da câmara de gás. Uma equivalência figurativa é um sistema de relações entre semelhança e disseme-lhança que põe em jogo várias espécies de intolerável. As lágrimas do barbeiro ligam o intolerável daquilo que ele viu noutro tempo com o intolerável daquilo que lhe exigem que diga no presente. Mas sabemos que vários foram os críticos que julgaram intolerável o próprio dis­positivo que exerce constrangimento sobre essa palavra, que provoca esse sofrimento e dela oferece uma imagem a espectadores susceptíveis de a olharem como olham a reportagem de uma catástrofe na televisão ou os episó­dios de uma série de ficção sentimental.

Pouco interesse terá acusar os acusadores. Mas, pelo contrário, vale a pena subtrair a análise das ima­gens à atmosfera de processo inquisitorial em que ela continua a estar tantas vezes mergulhada. A crítica do espectáculo identificou-a com a denúncia platónica do embuste das aparências e da passividade do especta­dor; os doutrinários do irrepresentável assimilaram--na à querela religiosa contra a idolatria. E preciso que coloquemos em questão estas identificações do uso das imagens com a idolatria, a ignorância ou a passividade, se queremos fazer recair um novo olhar sobre aquilo que as imagens são, o que fazem e os efeitos que produzem.

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Com este intuito, gostaria de examinar algumas obras que colocam de modo diferente a questão de saber quais as imagens que são apropriadas para a representação de acontecimentos monstruosos.

Assim, o artista chileno Alfredo Jaar consagrou várias obras ao genocídio do Ruanda de 1994. Nenhuma des­sas obras mostra um único documento visual atestando a realidade dos massacres. Deste modo, a instalação intitulada Real Pictures é constituída por caixas negras. Cada uma delas contém uma imagem de um tutsi mas­sacrado, mas a caixa está fechada e a imagem é invisível. Apenas é visível o texto que descreve o conteúdo oculto da caixa. À primeira vista, portanto, estes objectos opõem também o testemunho das palavras à prova por intermédio das palavras. Mas esta semelhança esconde uma diferença essencial: as palavras surgem aqui inde­pendentemente de qualquer voz, são elas próprias usa­das como elementos visuais. E claro, pois, que não se trata de as pôr em oposição à forma visível da imagem. Trata-se, antes, de construir uma imagem, ou seja, uma certa conexão do verbal e do visual. O poder desta ima­gem é então o de perturbar o regime vulgar dessa cone­xão, tal como ele é posto em prática pelo sistema oficial de informação.

Para o entender é preciso pôr em questão a opi­nião adquirida, segundo a qual este sistema nos sub­merge debaixo de uma torrente de imagens em geral - e de imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horro-

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res. Tal opinião é amplamente aceite porque confirma a tese tradicional que diz que o mal das imagens é afinal o seu número, a sua profusão que invade sem remedio o olhar fascinado e o cerebro amolecido da multidão dos consumidores democráticos de mercadorias e de ima­gens. Esta visão pretende ser crítica, mas encontra-se em perfeito acordo com o funcionamento do sistema. Porque os media dominantes estão longe de nos sub­mergir com uma torrente de imagens testemunhando massacres, deslocações maciças de populações e outros horrores que constituem o presente do nosso planeta. Bem pelo contrário, reduzem o número de tais ima­gens, tomam todo o cuidado para as seleccionar e dar--lhes uma determinada ordenação. Eliminam das ima­gens tudo o que pudesse exceder a simples ilustração redundante da respectiva significação. O que vemos, sobretudo nos ecrãs da informação televisiva, é o rosto dos governantes, dos especialistas e dos jornalistas que comentam as imagens, que dizem o que elas mostram e o que sobre elas devemos pensar. Se o horror se bana­lizou, não é porque dele vejamos demasiadas imagens. Não vemos no ecrã demasiados corpos em sofrimento. Mas vemos, isso sim, demasiados corpos sem nome, demasiados corpos incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objecto de palavra sem terem eles mesmos direito à palavra. O sistema da Informação não funciona pelo excesso das imagens, funciona seleccionando os seres falantes e raciocinan­tes capazes de «desencriptar» o fluxo de informação

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que diz respeito às multidões anónimas. A política pró­pria destas imagens consiste em ensinar-nos que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E esta lição que é confirmada muito servilmente por aqueles que pre­tendem criticar a explosão televisiva das imagens.

A falsa querela das imagens encobre portanto uma questão de cálculo. É aqui que ganha sentido a política das caixas negras. Estas caixas, fechadas mas cobertas de palavras, dão um nome e uma história pessoal àque­les e àquelas cujo massacre foi tolerado não por excesso ou por falta de imagens, mas porque dizia respeito a seres sem nome, sem história individual. As palavras tomam o lugar das fotografias porque estas seriam ainda foto­grafias de vítimas anónimas de violências maciças, ainda em acordo com aquilo que banaliza os massacres e as vítimas. O problema não é opor as palavras às imagens visíveis. E, sim, transformar a lógica dominante que faz do visual o quinhão das multidões e do verbal o privi­légio de alguns. As palavras não estão em vez das ima­gens. São imagens, ou seja, são formas de redistribuição dos elementos da representação. São figuras que subs­tituem uma imagem por outra, formas visuais por pala­vras ou palavras por formas visuais. Estas figuras redis­tribuem simultaneamente as relações entre o único e o múltiplo, entre o pequeno número e o grande número. E nisto que elas são políticas, supondo que a política consiste ante de mais em mudar os lugares e o cálculo dos corpos. Neste sentido, a figura política por excelên­cia é a metonímia, que mostra o efeito em vez da causa

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ou a parte pelo todo. E é de facto uma política da meto­nimia que é posta em prática por uma outra instalação consagrada por Alfredo Jaar ao massacre do Ruanda, The Eyes of Guíete Ementa. Esta instalação encontrava--se organizada em torno de uma fotografia única que mostrava os olhos de uma mulher que viu o massacre da família: trata-se, pois, do efeito em substituição da causa, mas também de dois olhos em vez de um milhão de corpos massacrados. Porém, não obstante o muito que viram, estes olhos não nos dizem o que Gutete Eme­rita pensa e sente. São os olhos de uma pessoa dotada do mesmo poder dos que os olham, mas também do mesmo poder de que os seus irmãos e irmãs foram pri­vados pelos autores dos massacres, o de falar ou de se calar, de mostrar os sentimentos ou de os guardar. A metonimia que põe o olhar desta mulher no lugar do espectáculo de horror instabiliza igualmente o cál­culo do individual e do múltiplo. É por isso que, antes de ver os olhos de Gutete Emerita numa caixa de luz, o espectador devia começar por ler um texto que surgia na mesma moldura e que contava a história daqueles olhos, a história daquela mulher e da sua família.

A questão do intolerável deverá então ser deslocada. O problema não é saber se se deve ou não mostrar os hor­rores sofridos pelas vítimas desta ou daquela violência. Diz antes respeito à construção da vítima como ele­mento de uma certa distribuição do visível. Uma ima­gem nunca está sozinha. Pertence a um dispositivo de visibilidade que regula o estatuto dos corpos represen-

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A L F R E D O J A A R , The Eyes of Guíete Emérita, 1 9 9 6

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tados e o tipo de atenção que merecem. A questão é a de saber qual o tipo de atenção que é provocado por este ou aquele dispositivo. Há uma outra instalação de Alfredo Jaar que pode ilustrar este tópico; refiro-me à instalação que o artista inventou para reconstruir o espaço-tempo de visibilidade de uma única imagem, uma fotografia captada no Sudão pelo fotógrafo sul-africano Kevin Cár­ter. A fotografia mostra uma menina subnutrida arras­tando-se no chão, à beira de perder as forças, ao mesmo tempo que atrás dela se encontra um abutre à espera de poder lançar-se sobre a presa. O destino da ima­gem e do fotógrafo ilustram a ambiguidade do regime dominante da informação. A fotografia valeu o Prémio Pulitzer para o homem que fora ao deserto sudanês bus­car uma imagem tão impressionante, tão própria para derrubar o muro de indiferença que separa o espectador ocidental dessas fomes distantes. Mas valeu-lhe tam­bém uma campanha de indignação: não se tratava afinal do gesto de uma abutre humano ficar assim à espera do momento de captar uma fotografia espectacular, em vez de socorrer a criança? Incapaz de suportar esta campa­nha, Kevin Cárter suicidou-se.

Contra a duplicidade do sistema que solicita e rejeita ao mesmo tempo tais imagens, Alfredo Jaar construiu um outro dispositivo de visibilidade na sua instala­ção The Sound of Silence. Usou as palavras e o silêncio da parte para inscrever o intolerável da imagem da criança no todo de uma história mais ampla de intolerância. Se Kevin Cárter, naquele dia, parou, se o seu olhar foi

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captado pela intensidade estética de um espectáculo monstruoso, é porque havia antes sido não apenas um espectador, mas um actor empenhado na luta contra o apartheid no seu país. Convinha, pois, fazer sentir a tem­poralidade no âmbito da qual este momento de excep­ção se inscrevia. Mas, para a sentir, o espectador devia penetrar ele mesmo num espaço-tempo específico, uma cabina fechada na qual só podia entrar no início e sair no final de uma projecção de oito minutos. E o que o espectador via no ecrã eram ainda palavras, palavras que se juntavam numa espécie de balada poética para contar a vida de Kevin Cárter, a sua passagem por den­tro do apartheid e pelas revoltas dos negros na Africa do Sul, a sua viagem aos confins do Sudão até ao momento

daquele encontro e a campanha que o tinha conduzido ao suicídio. Só perto do fim da balada surgia a própria fotografia, num intervalo de tempo idêntico ao do botão que havia disparado a câmara para a captar. Surgia como alguma coisa que não se podia esquecer, mas na qual não nos devíamos demorar, confirmando, assim, que o problema não é o de saber se se devem produzir e olhar tais imagens, mas sim no seio de que dispositivo sensível o fazemos 6.

Uma estratégia diferente é posta em jogo por um filme consagrado ao genocídio cambojano, S21, A Máquina de

6 Analisei com mais pormenor algumas das obras aqui evocadas no meu ensaio

«Le Thêatre des images», publicado no catálogo Alfredo Jaar. La politique des images,

jrp/ringier-Musée Cantonal des Beaux-Arts de Lausanne, 2007.

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Morte Khmer Vermelha. O autor, Rithy Panh, partilha pelo menos duas escolhas essenciais com Claude Lanzmann. Também ele escolheu representar a máquina em vez das respectivas vítimas e fazer um filme no presente. Mas dissociou estas escolhas de qualquer querela sobre a palavra e a imagem. E não opôs as testemunhas aos arquivos. Se o tivesse feito, teria decerto passado ao lado da especificidade de uma máquina de morte cujo funcionamento passava por um aparelho discursivo e um dispositivo de arquivamento bem programados. Era preciso, pois, tratar esses arquivos como uma parte do dispositivo, mas também fazer ver a realidade física da máquina de pôr o discurso em actos e de fazer falar os corpos. Assim, Rithy Panh reuniu no próprio local duas espécies de testemunhas: alguns dos raríssimos sobre­viventes do campo S21 e alguns antigos guardas. E fê--los reagir a diversos tipos de arquivos: relatos do quo­tidiano, actas de interrogatórios, fotografias de detidos mortos e torturados, quadros pintados de memória por um dos antigos detidos, que pede aos carcereiros que verifiquem a respectiva exactidão. É, assim, que a lógica da máquina se encontra reactivada: à medida que os antigos guardas percorrem estes documentos reencon­tram as atitudes, os gestos e mesmo as entoações que eram os seus quando prestavam o seu serviço de tortura e de morte. Numa sequência alucinante, um deles põe--se a reproduzir a ronda do fim do dia, o regresso dos detidos ao cárcere comum após o «interrogatório», as grilhetas que os prendem, o caldo ou o balde insistente-

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mente pedidos pelos detidos, o dedo que lhes é apontado através das grades, os gritos, insultos e ameaças dirigi­dos a qualquer detido que se mexa, em resumo, tudo o que na época era parte integrante da sua rotina quoti­diana. E sem dúvida um espectáculo intolerável esta reconstituição levada a cabo aparentemente sem esta­dos de alma, como se o torcionário de ontem estivesse pronto a desempenhar amanhã o mesmo papel. Mas toda a estratégia do filme é redistribuir o intolerável, trabalhar sobre as suas diversas representações: rela­tórios, fotografias, pinturas, reconstituições encenadas. É alterar as posições, remetendo aqueles que acabam de manifestar de novo o seu poder de torcionários para a posição de alunos instruídos pela sua antiga vítima. O filme liga diversos tipos de palavras, ditas ou escritas, diversas formas de visualidade - cinematográfica, foto­gráfica, pictórica, teatral - e várias formas de tempora­lidade para nos dar uma representação da máquina, uma representação que nos mostra ao mesmo tempo como a máquina pôde funcionar e como é hoje possível aos car­rascos e às vítimas vê-la, pensá-la e senti-la.

O tratamento do intolerável é assim uma questão de dispositivo de visibilidade. Aquilo a que se chama ima­gem é um elemento dentro de um dispositivo que cria um certo sentido de realidade, um certo senso comum. Um «senso comum» é antes de mais uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade supostamente é partilhada por todos, modos de percepção dessas coi­sas e significações igualmente partilháveis que lhes são

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conferidas. É depois a forma de estar em comum que liga entre si indivíduos ou grupos na base dessa comu­nidade primeira entre as palavras e as coisas. O sistema da Informação é um «senso comum» deste género: um dispositivo espácio-temporal no seio do qual palavras e formas visíveis estão reunidas em dados comuns, em maneiras comuns de perceber, de ser afectado e de atri­buir sentido. O problema não é opor a realidade às suas aparências. E, sim, construir outras realidades, outras formas de senso comum, ou seja, outros dispositivos espácio-temporais, outras comunidades das palavras e das coisas, das formas e das significações.

Esta criação é o trabalho daquela ficção que não con­siste em contar histórias, mas sim em estabelecer rela­ções novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um algures, um então e um agora. Neste sentido, The Sound ofSilence é uma ficção, Shoah ou S21 são ficções. O problema não é saber se o real des­tes genocídios pode ser posto em imagens e em ficção. E saber como pode fazer-se isso e qual o tipo de senso comum que é constituído por esta ou aquela ficção, pela construção desta ou daquela imagem. E saber que tipo de humanos a imagem nos mostra e a que tipo de huma­nos ela é destinada, que tipo de olhar e de consideração é criado por essa ficção.

Esta deslocação na maneira de abordar a imagem é também uma deslocação quanto à ideia de uma polí­tica das imagens. O uso clássico da imagem intolerável traçava uma linha recta do espectáculo insuportável

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à consciência da realidade que ele exprimia e desta ao desejo de agir para modificar a dita realidade. Mas este laço entre representação, saber e acção era um puro pressuposto. Na verdade, a imagem intolerável ia buscar o seu poder, por um lado, à evidência das argumenta­ções teóricas que permitiam identificar o seu conteúdo e, por outro, à força dos movimentos políticos que as traduziam em prática. O enfraquecimento dessas argu­mentações e desses movimentos produziu um divórcio que opôs o poder anestesiante da imagem à capaci­dade de compreender e à decisão de agir. A crítica do espectáculo e o discurso do irrepresentável puderam então ocupar o palco, alimentando uma desconfiança global em relação à capacidade política de toda e qual­quer imagem. O cepticismo presente é resultado de um excesso de fé. Nasceu da crença desiludida numa linha recta entre percepção, afecção, compreensão e acção. Uma nova confiança na capacidade política das ima­gens pressupõe a crítica deste esquema estratégico. As imagens da arte não fornecem armas para os combates. Contribuem, sim, para desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável, e, por essa via, uma nova paisagem do possível. Mas fazem-no com a condição de não anteciparem nem o seu sentido nem o seu efeito.

Esta resistência à antecipação é algo que pode­mos ver ilustrado por uma fotografia captada por uma artista francesa, Sophie Ristelhueber. Nessa imagem, um monte de pedras aparentemente resultante de uma derrocada integra-se harmoniosamente numa paisa-

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S O P H I E R I S T E L H U E B E R , WB, 2 0 0 5

gem idílica de colinas cobertas de oliveiras, uma pai­sagem semelhante às que fotografava Victor Bérard há cem anos para mostrar a permanência do Mediterrâ­neo das viagens de Ulisses. Mas este pequeno monte de pedras no meio de uma paisagem pastoril ganha sentido no conjunto a que pertence: como todas as fotografias da série WB (WestBank), representa uma barreira israe­lita numa estrada palestiniana. Sophie Ristelhueber recusou-se de facto a fotografar o grande muro de sepa­ração que é a encarnação da política de um Estado e o ícone mediático do «problema do Médio Oriente». Pre­feriu dirigir a sua objectiva para estas pequenas barrei­ras que as autoridades israelitas, com os meios mais à

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mão, levantaram no meio de estradas que atravessam os campos. E na maior parte dos casos fê-lo em plano panorâmico, a partir de um ponto de vista que trans­forma os blocos das barreiras em elementos da pai­sagem. Fotografou não o emblema da guerra, mas as feridas e as cicatrizes que a guerra imprime na face de um território. A artista produz assim porventura uma deslocação do afecto gasto da indignação para um afecto mais discreto, um afecto de efeito indeterminado, a curiosidade, o desejo de ver de mais perto. Falo aqui de curiosidade, mais acima falei de atenção. Trata-se de facto de afectos que baralham as falsas evidências dos esquemas estratégicos; são disposições do corpo e do espírito nas quais o olhar não sabe antecipadamente o que vê, do mesmo modo que o pensamento não sabe o que deve fazer com o que é visto. A tensão destes afec­tos aponta assim para uma outra política do sensí­vel, uma política fundada na variação da distância, na resistência do visível e na indecidibilidade do efeito. As imagens mudam o nosso olhar e a paisagem do possí­vel se não forem antecipadas pelo seu sentido e se não antecipam os seus efeitos. Tal poderia ser a conclusão suspensiva desta breve inquirição acerca do intolerável nas imagens.

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A expressão «imagem pensativa» não é evidente. São os indivíduos que costumam ser classificados, em cer­tas situações, como pensativos. Este adjectivo designa um estado singular: a pessoa pensativa está «plena de pensamentos», mas tal não significa que os pense. No estado de pensatividade, o acto do pensamento parece estar afectado por uma certa passividade. E a coisa complica-se se dizemos que uma imagem é pensa­tiva. Supostamente uma imagem não pensa. Vulgar­mente supomos que uma imagem é apenas objecto de pensamento. Sendo assim, uma imagem pensativa é uma imagem que contém pensamento não pensado, um pensamento que não é susceptível de ser atribuído à intenção daquele que a produz e que causa um efeito naquele que a vê, sem que este a ligue a um objecto determinado. Deste modo, a pensatividade designa­ria um estado indeterminado entre o activo e o passivo. Esta indeterminação põe em causa o afastamento que, em circunstância diferente, procurei vincar entre duas ideias da imagem: a imagem como duplo de uma coisa e a imagem concebida como operação de uma arte. Falar de imagem pensativa é, inversamente, assinalar a exis­tência de uma zona de indeterminação entre estes dois tipos de imagens. E falar de uma zona de indetermina­

i s ?

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ção entre pensamento e não-pensamento, entre activi­dade e passividade, mas também entre arte e não-arte.

Para analisar a articulação concreta entre estes ter­mos opostos, partirei das imagens produzidas por uma prática que é exemplarmente ambivalente, entre a arte e a não-arte, entre a actividade e a passividade: a fotogra­fia. E conhecido o destino singular da fotografia em rela­ção à arte. Na década de 50 do século xix, estetas como Baudelaire viam nela uma ameaça mortal: a reprodução mecânica e vulgarizada ameaçava suplantar os poderes da imaginação criativa e da invenção artística. Nos anos 30 do século xx, Benjamin invertia o jogo. Fazia das artes da reprodução mecânica - a fotografia e o cinema - o princípio fundamental de uma radical alteração do próprio paradigma da arte. Para ele a imagem mecânica era aquela que rompia com o culto, religioso e artístico, do único. Era a imagem que existia apenas pelas rela­ções que mantinha quer com outras imagens, quer com outros textos. Assim, as fotografias de August Sander de tipos sociais alemães eram para Benjamin os elemen­tos de um vasto catálogo fisionómico social que podia responder a um problema político prático: a necessi­dade de reconhecer amigos e inimigos no seio da luta de classes. De igual modo, as fotografias das ruas parisien­ses da autoria de Eugène Atget estavam desprovidas de qualquer aura; surgiam privadas da auto-suficiên­cia das obras de arte «cultual». E em simultâneo apre­sentavam-se como peças de um enigma a ser decifrado. Faziam apelo à legenda, ou seja, a um texto que explici-

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Di]KSTRA,Kolobrzeg,Poland,July26,

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tasse a consciência do estado do mundo que elas expri­miam. Para Benjamin, estas fotografias eram «peças probatórias no processo histórico» 1. Eram os elemen­tos de uma nova arte política da montagem.

Assim se opunham duas grandes maneiras de pen­sar a relação entre arte, fotografia e realidade. Ora, esta relação foi negociada de uma maneira que não responde a nenhuma destas duas visões. Por um lado, os nossos museus e exposições tendem cada vez mais a refutar ao mesmo tempo Baudelaire e Benjamin ao concederem

0 lugar da pintura a um tipo de fotografia que assume o formato do quadro e que mima o seu modo de presença. E o caso das séries nas quais a fotógrafa Rineke Dijkstra representa indivíduos de identidade incerta - soldados captados imediatamente antes ou após a incorporação, toureiros amadores ou adolescentes um pouco desajei­tados, como é o caso de uma adolescente polaca foto­grafada na praia numa pose desengonçada e com uma fato de banho fora de moda -, seres quaisquer, pouco expressivos, mas por isso mesmo dotados de uma certa distância, de um certo mistério, semelhante ao dos retratos que enchem os museus, esses retratos de per­sonagens outrora representativas e que se tornaram anónimas para nós. Estes modos de exposição tendem

1 Walter Benjamin, L'Œuvre d'art à l'époquedesa reproductibilité technique, trad. Rai­

ner Rochlitz, in Œuvres, Folio/Gallimard, Paris, 2000, tomo 3, p. 82, [Trad. por­

tuguesa: «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica»,

in W. Benjamin, A Modernidade, edição e tradução de João Barrento, Assírio &

Alvim, Lisboa, 2006, p. 218.]

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a fazer da fotografia o vector de uma identificação reno­vada entre a imagem como operação da arte e a ima­gem como produção de uma representação. Mas, ao mesmo tempo, certos discursos teóricos novos vinham desmentir essa identificação. Sublinhavam, inversa­mente, uma nova forma de oposição entre fotografia e arte. Faziam da «reprodução» fotográfica a emana­ção singular e insubstituível de uma coisa, correndo embora o risco de por isso mesmo lhe recusarem o esta­tuto de arte. A fotografia vinha então encarnar uma ideia da imagem como realidade única resistente à arte e ao pensamento. E a pensatividade da imagem encontrava --se identificada com um poder de afectar que frustrava os cálculos do pensamento e da arte.

Esta visão recebeu a sua formulação exemplar por parte de Roland Barthes. Em A Câmara Clara, Barthes opõe a força de pensatividade do punctum ao aspecto infor­mativo representado pelo studium. Para tanto, porém, é-lhe necessário reconduzir a um processo único o acto fotográfico e o olhar que recai sobre a fotografia. Deste modo, Barthes faz da fotografia um transporte: trans­porte da qualidade sensível única da coisa ou do ser fotografado para o sujeito que olha. Para definir desta maneira o acto e o efeito fotográficos, o autor tem de fazer três coisas: deixar de lado a intenção do fotógrafo, reconduzir o dispositivo técnico a um processo químico e identificar a relação óptica com uma relação táctil. Assim se define uma certa visão do afecto fotográfico: o sujeito que olha, diz Barthes, deve repudiar todo e qual-

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L E W I S H i N E , Deficientes Mentais numa Instituição, Newjersey, 1 9 2 4

quer saber, toda e qualquer referência àquilo que na imagem possa ser objecto de um conhecimento, para deixar que se produza o afecto do transporte. Sendo assim, jogar a imagem contra a arte não é apenas negar o carácter da imagem como objecto de fabricação; é, no limite, negar o seu carácter de coisa vista. Barthes fala de desencadear uma loucura do olhar. Mas esta loucura do olhar é de facto o seu desapossamento, a sua sub­missão a um processo «táctil» da qualidade sensível do assunto fotografado.

A oposição entre o punctum e o studium fica assim bem nítida no discurso. Mas essa oposição confunde-se no seio daquilo que devia confirmar o discurso, ou seja, na mate­rialidade das imagens por intermédio das quais Barthes

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procura ilustrá-la. Na verdade, a demonstração feita com base nesses exemplos é surpreendente. Face à fotogra­fia de duas crianças deficientes mentais tirada por Lewis Hine numa instituição de New Jersey, Barthes declara pôr de lado todo o saber, toda a cultura. Decide, pois, ignorar a inscrição desta fotografia no âmbito do trabalho de um fotógrafo que indagava a sorte dos explorados e abandona­dos da sociedade americana. Mas não é tudo. Para validar a sua distinção, Barthes tem igualmente de pôr em prá­tica uma estranha partição precisamente no seio daquilo que liga a estrutura visual desta fotografia ao respectivo assunto, ou seja, a desproporção. Barthes escreve:

Não vejo de todo as cabeças monstruosas e os lastimo­sos perfis (isso faz parte do studium); o que vejo [...] é o pormenor descentrado, o enorme colarinho Danton do miúdo, a ligadura no dedo da rapariga.2

Mas o que o autor nos diz ver enquanto punctum

releva da mesma lógica do studium que, segundo nos diz, não vê: são traços de desproporção, um colari­nho enorme à volta do pescoço de um rapaz anão e, no caso da rapariga com uma cabeça desproporcionada, uma ligadura tão pequena que o leitor do livro não seria capaz de distingui-la sozinho na reprodução. Se Barthes reteve este colarinho e esta ligadura é manifestamente

2 La Chambre claire, Éditions de l'Étoile, Gallimard, Le Seuil, 1980, p. 82. [Trad. por­

tuguesa: A Câmara Clara, trad. Manuela Torres, Edições 70, Lisboa, 1981, p. 77.]

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pela respectiva qualidade de pormenores, ou seja, de elementos destacáveis. Escolheu-os porque correspon­dem a uma noção bem determinada, a noção lacaniana do objecto parcial. Mas aqui não se trata de um objectp parcial qualquer. Numa imagem de perfil é-nos difícil decidir se o colarinho do rapaz é efectivamente aquilo a que os profissionais de camisaria chamam um cola­rinho Danton. Inversamente, não há dúvida de que o nome de Danton é o de uma pessoa decapitada. O punc­

tum da imagem é afinal a morte que é evocada pelo nome próprio de Danton. A teoria do punctum pretende afirmar a singularidade resistente da imagem. Mas afi­nal equivale a deixar cair essa especificidade, identifi­cando a produção e o efeito da imagem fotográfica com a maneira como a morte ou os mortos nos tocam.

Este curto-circuito é ainda mais sensível num outro exemplo de Roland Barthes, a fotografia de um jovem algemado. Também neste caso a repartição do stu-

dium e do punctum é desconcertante. Barthes diz-nos o seguinte:

A fotografia é bela, o rapaz também: isso é o studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isto será

e istofoi.3

Ora, na fotografia, nada diz que o jovem vai morrer. Para ser afectado pela sua morte é preciso saber que esta

3 Ibiã., pp. 148-150. [Trad. portuguesa: pp. 133-135.]

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fotografia representa Lewis Payne, condenado à morte em 1865 pela tentativa de assassínio do secretário de Estado norte-americano. E é preciso saber igualmente que se tratou da primeira vez que um fotógrafo, Alexan­der Gardner, foi autorizado a fotografar uma execução capital. Para fazer coincidir o efeito da fotografia com o afecto da morte, Barthes teve de fazer um curto-circuito entre o saber histórico acerca do assunto representado e a textura material da fotografia. De facto, estas cores obscurecidas são as de uma fotografia do passado, de uma fotografia relativamente à qual podemos garan­tir que o autor e o fotografado já morreram. Barthes remete assim a fotografia para a imago latina, essa efí­gie que assegurava a presença do morto, a presença do antepassado entre os vivos. Reanima, pois, uma muito antiga polémica acerca da imagem. No século 1 da nossa era, em Roma, Plínio, o Velho, enfurecia-se contra os coleccionadores que enchiam as suas galerias de está­tuas na total ignorância de quem elas representavam, estátuas que estavam ali pelo seu lado artístico, pela sua bela aparência e não como imagens dos antepassados. A posição de Plínio era característica daquilo a que chamo o regime ético das imagens. De facto, neste regime um retrato ou uma estátua é sempre uma imagem de alguém e vai buscar a sua legitimidade à relação que mantém com o homem ou o deus que representa. O que Barthes opõe à lógica representativa do studium é esta antiga função imagética, esta função de efígie que asse­gura a permanência da presença sensível de um indiví-

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duo. Porém, o autor escreve no interior de um mundo e de um século em que não apenas as obras de arte, mas as imagens em geral são apreciadas por si mesmas e não como almas dos antepassados. Tem portanto de trans­formar a efígie do antepassado em punctum da morte, ou seja, em afecto produzido directamente em nós pelo corpo daquele que esteve perante a objectiva, que já aí não está e cuja fixação na imagem significa a captura do vivo pela morte.

Barthes faz assim um curto-circuito entre o passado da imagem e a imagem da morte. Ora, este curto-cir­cuito apaga os traços característicos da fotografia que nos apresenta e que são traços de indeterminação. Com efeito, a fotografia de Lewis Payne vai buscar a sua sin­gularidade a três formas de indeterminação. A primeira diz respeito ao seu dispositivo visual: o jovem está sen­tado segundo uma disposição muito pictórica, ligeira­mente inclinado, na fronteira de uma zona de luz com uma zona de sombra. Mas não podemos perceber se o lugar foi escolhido pelo fotógrafo, nem, no caso de o ter sido, se o escolheu por uma questão de maior visi­bilidade ou por um reflexo estético. Também não sabe­mos se simplesmente registou as manchas e traços que se desenham nas paredes ou se intencionalmente lhes deu destaque. A segunda indeterminação diz res­peito ao trabalho do tempo. A textura da fotografia tem a marca de um tempo passado. Pelo contrário, o corpo do jovem, o seu vestuário, a sua postura e a intensidade do seu olhar tomam lugar sem dificuldade no nosso pre-

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sente, negando a distância temporal. A terceira indeter­minação diz respeito à atitude da personagem. Ainda que saibamos que vai morrer e porquê, não nos é possí­vel ler naquele olhar as razões da tentativa de assassínio de que é responsável nem os seus sentimentos perante a morte iminente. A pensatividade da fotografia pode­ria então ser definida como este nó entre várias inde­terminações. Poderíamos caracterizá-la como efeito da circulação entre o assunto, o fotógrafo e nós, do inten­cional e do não-intencional, do sabido e do não-sabido, do exprimido e do não-exprimido, do presente e do passado. Inversamente àquilo que nos diz Barthes, esta pensatividade tem aqui a ver com a impossibilidade de fazer coincidir duas imagens, a imagem socialmente determinada do condenado à morte e a imagem de um jovem de curiosidade um pouco indolente que fixa um ponto que não vemos.

A pensatividade da fotografia seria então a tensão entre vários modos de representação. A fotografia de Lewis Payne apresenta-nos três imagens ou, melhor dizendo, três funções-imagens numa só imagem: há a caracterização de uma identidade; há a disposição plás­tica intencional de um corpo num espaço; e há os aspec­tos que o registo mecânico nos revela sem que saibamos se foram voluntários. A fotografia de Lewis Payne não releva da arte, mas permite-nos compreender outras fotografias que ou são intencionalmente obras de arte ou apresentam simultaneamente um carácter social e uma indeterminação estética. Se regressarmos à ado-

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lescente de Rineke Dijkstra, compreendemos por que motivo ela é representativa do lugar da fotografia na arte contemporânea. Por um lado, pertence a uma série que representa seres do mesmo género: adolescentes que de algum modo flutuam nos seus corpos, indivíduos que representam identidades em transição, entre idades, entre estatutos sociais e entre modos de vida - muitas destas imagens foram captadas em países ex-comunis­tas. Mas, por outro lado, essas imagens impõem-nos presenças brutas, seres dos quais não sabemos nem o que os levou a posar perante um artista nem o que entendem mostrar e exprimir frente à objectiva. Esta­mos, pois, perante eles na mesma posição em que nos encontramos face àqueles quadros do passado que nos representam nobres florentinos ou venezianos dos quais já não sabemos quem foram nem que pensamento habi­tava o olhar captado pelo pintor. Barthes opunha à pare­cença segundo as regras do studium aquilo a que chamei uma arqui-parecença, uma presença e um afecto directos do corpo. Mas o que podemos ler na imagem da jovem polaca não é nem uma coisa nem outra. É antes aquilo a que chamarei uma parecença desapropriada. Esta pare­cença não nos remete para nenhum ser real com o qual possamos comparar a imagem. Mas também não é essa presença do ser único de que nos fala Barthes. É a pre­sença de um ser qualquer, cuja identidade não importa, e que oculta os seus pensamentos ao oferecer o seu rosto.

Pode ser-se tentado a dizer que este tipo de efeito estético é próprio do retrato, que é, segundo Walter Ben-

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jamin, o último refúgio do «valor cultual». Pelo contrá­rio, diz-nos Benjamin, quando o homem está ausente, o valor de exposição da fotografia triunfa decidida­mente. Mas a distinção entre o cultual e o exposicional que estrutura a análise de Benjamin é porventura tão problemática quanto a do studium e do punctum de Bar-thes. Vejamos, por exemplo, uma fotografia da mesma época em que Benjamin escrevia feita por um fotógrafo que, como ele, tinha entre as suas referências favoritas Atget e Sander, de seu nome Walker Evans. É uma foto­grafia de uma área de parede em madeira de uma cozi­nha no Alabama. Sabemos que esta fotografia se ins­creve no contexto geral de um empreendimento social em que Walker Evans colaborou durante algum tempo - e mais especificamente no âmbito do livro produ­zido em colaboração com James Agee, Let Us now Praise

FamousMen. Pertence hoje a um corpus de fotografias que é visto nos museus como obra autónoma de um artista. Mas, olhando a fotografia, apercebemo-nos de que essa tensão entre arte e reportagem social não tem simples­mente a ver com o trabalho do tempo que transforma os testemunhos relativos à sociedade em obras de arte. A tensão encontra-se já no cerne da imagem. De um lado, este pano de parede de tábuas com as ripas prega­das de través e uns quantos talheres e utensílios de ferro suspensos das travessas representa de facto o cenário da vida miserável dos camponeses do Alabama. Mas será que o fotógrafo, para mostrar essa miséria, tinha verdadeiramente necessidade de captar a imagem em

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W A L K E R E V A N S , Kitchen Wall in Bud Field's House, 1 9 3 6

grande plano concentrando a objectiva sobre quatro tábuas e uma dúzia de talheres? Os elementos sinalé-ticos da miséria compõem ao mesmo tempo um certo cenário artístico. As tábuas rectilíneas recordam-nos os cenários quase abstractos que surgem na mesma época nas fotografias sem intenção social de Char­les Sheeler ou Edward Weston. A simplicidade da ripa pregada que serve para arrumar os talheres evoca à sua maneira a ideologia dos arquitectos e designers moder­nistas, apaixonados por materiais simples e rudes e por soluções de arrumação racionais que permitam fazer

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desaparecer o horror dos aparadores burgueses. E a dis­posição enviesada dos objectos parece obedecer a uma estética de dissimetria. Mas, quanto a todosestes ele­mentos «estéticos», é-nos impossível saber se são um efeito dos acasos da vida pobre ou se resultam do gosto dos ocupantes dos lugares 4. De igual modo, é-nos impossível saber se a câmara os registou simplesmente de passagem ou se o fotógrafo os enquadrou e destacou conscientemente, se viu este cenário como índice de um modo de vida ou como reunião singular e quase abs­tracta de linhas e de objectos.

Não sabemos o que exactamente se passava na cabeça de Walker Evans quando captou esta fotogra­fia. Mas a pensatividade da fotografia não se reduz a esta ignorância. Porque sabemos também que Walker Evans tinha uma ideia precisa sobre a fotografia, uma ideia sobre a arte que, significativamente, ele tomava de empréstimo não de um artista visual, mas de um romancista que admirava, Flaubert. A ideia de que o artista deve ser invisível na sua obra, como Deus é invi­sível na natureza. Aquele olhar sobre a disposição esté­tica singular dos acessórios de uma cozinha pobre do Alabama pode de facto recordar-nos o olhar que Flau-

4 James Agee, que noutros casos se entrega a brilhantes análises sobre a pre­

sença ou ausência de preocupação estética no habitat dos pobres, remete-nos

neste caso para o testemunho nu da fotografia: «Do outro lado da cozinha encon­

tra-se uma pequena mesa despida onde tomam as suas refeições; e nas pare­

des aquilo que podeis ver numa das fotografias deste livro.» Louons maintenant les

grandshommes, trad. Jean Queval, coll. Terre Humaine, Pocket, Paris, 2003, p. 194.

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bert confere a Charles Bovary, quando este desco­bre pendurado nas paredes carcomidas da quinta do velho Rouault o desenho da cabeça de Minerva feito por Emma, quando aluna do colégio, para o pai. Mas sobre­tudo, na imagem fotográfica da cozinha do Alabama tal como na descrição literária da cozinha normanda há a mesma relação entre a qualidade estética do assunto e o trabalho de impersonalização da arte. E não devemos deixar-nos enganar pela expressão «qualidade esté­tica». Não se trata de sublimar um assunto banal por via do trabalho do estilo ou do enquadramento. O que Flaubert e Evans fazem não é uma adjunção artística ao banal. É, pelo contrário, uma supressão: o que o banal adquire neles é uma certa indiferença. A neutralidade da frase ou do enquadramento põe em flutuação as pro­priedades de identificação social. Este pôr em flutuação é assim o resultado de um trabalho da arte para se tor­nar invisível. O trabalho da imagem absorve a banali­dade social na impersonalidade da arte, retira-lhe o que faz dela a simples expressão de uma situação ou de um carácter determinado.

Para compreender a «pensatividade» que se joga nesta relação do banal com o impessoal vale a pena recuar um pouco no trajecto que nos conduziu da ado­lescente de Rineke Dijkstra até à cozinha de Walker Evans e desta à cozinha de Flaubert. O passo atrás que daremos conduzir-nos-á a essas pinturas de pequenos mendigos sevilhanos executadas por Murillo e conser­vadas na Galeria Real de Munique. Detenho-me nelas

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por causa de um singular comentário que Hegel lhes consagrou nas suas Lições de Estética. Hegel fala delas circunstancialmente no decurso de considerações sobre a pintura de género flamenga e holandesa, nas quais trata de rebater a avaliação clássica do valor dos géne­ros de pintura em função da dignidade dos respectivos assuntos. Mas Hegel não se contenta em dizer-nos que todos os assuntos são igualmente próprios para a arte pictórica. Estabelece uma relação estreita entre as virtu­des dos quadros de Murillo e a actividade própria desses pequenos mendigos, actividade que consiste precisa­mente em nada fazerem, em não se preocuparem com nada. Há neles, diz Hegel, uma total despreocupação no que toca ao exterior, uma liberdade interior no seio do exterior que é exactamente o que o conceito do ideal artístico reclama. Essas personagens dão testemunho de uma béatitude que é quase semelhante à dos deuses do Olimpo 5.

Para fazer um tal comentário, Hegel tem de tomar já por evidente que a virtude essencial dos deuses é nada fazerem, não se preocuparem com nada e nada quere­rem. E tem de lhe parecer igualmente evidente que a suprema beleza é aquela que exprime essa indiferença. Tais crenças, porém, não são óbvias. Ou, dito de outra

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s Hegel, Cours d'esthétique, tradução de Jean-Pierre Lefebvre e Verónica von

Schenk, Aubier, Paris, 1995, tomo I, p. 92. [Trad. port.: Estética, sete volumes,

trad. de Orlando Vitorino, Guimarães Ed., Lisboa, 1959 e sgs., vol. II, «O belo

artístico ou o ideal», 1964, p. 37.]

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maneira, só são óbvias em função de uma rotura já efec­tuada na economia da expressividade, tanto quanto no pensamento da arte e do divino. A beleza «olímpica» que Hegel atribui aos pequenos mendigos é a beleza do Apolo do Belvedere celebrada sessenta anos antes por Winckelmann, a beleza da divindade despreocupada. A imagem pensativa é a imagem de uma suspensão da actividade, é a que Winckelmann por outro lado ilus­trava na análise do Torso do Belvedere: para ele, esse torso era o de um Hércules em repouso, um Hércules pensando serenamente nos seus trabalhos passados, mas cujo pensamento se exprimia integralmente nas pregas das costas e do ventre, cujos músculos desliza­vam uns para dentro dos outros como as vagas que se elevam e voltam a cair. A actividade tornou-se pensa­mento, mas em si mesmo o pensamento passou para um movimento imóvel, semelhante à radical indife­rença das vagas do mar.

O que se manifesta na serenidade do Torso ou dos pequenos mendigos, o que confere à fotografia da cozi­nha do Alabama ou à da adolescente polaca a sua vir­tude pictural é uma modificação do estatuto das rela­ções entre pensamento, arte, acção e imagem. E esta modificação que marca a passagem de um regime representativo da expressão para um regime estético. A lógica representativa dava à imagem o estatuto de complemento expressivo. Nela, o pensamento da obra - fosse ele verbal ou visual - realizava-se sob a forma da «história», ou seja, sob a forma da composição de

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uma acção. A imagem destinava-se então a intensificar a potência dessa acção. Esta intensificação tinha duas grandes formas: por um lado, a dos traços de expres­são directa, traduzindo na expressão dos rostos e na ati­tude dos corpos os pensamentos e os sentimentos que animam as personagens e determinam as respectivas acções; por outro lado, a das figuras poéticas que colo­cam uma expressão no lugar de outra. Nesta tradição, a imagem era pois duas coisas: a representação directa de um pensamento ou de um sentimento; e a figura poética que substitui uma expressão por outra para lhe aumentar a potência. Mas a figura podia desempe­nhar este papel porque existia uma relação de confor­midade entre o termo «próprio» e o termo «figurado», por exemplo, entre uma águia e a majestade ou entre um leão e a coragem. Deste modo, a apresentação directa e a deslocação figurai encontravam-se unificadas sob um mesmo regime de parecença. É esta homogeneidade entre as diferentes parecenças que define propriamente a mimese clássica.

É na relação com este regime homogéneo que ganha o seu sentido específico aquilo a que chamei uma pare­cença desapropriada. A rotura estética moderna é muitas vezes descrita como a passagem do regime da representação para um regime de presença ou de apre­sentação. Esta visão deu lugar a duas grandes concep­ções da modernidade artística: há o modelo feliz da autonomia da arte, no qual a ideia artística se traduz em formas materiais, com o curto-circuito da mediação da

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imagem; e há o modelo trágico do «sublime», no qual, inversamente, a presença sensível manifesta a ausên­cia de toda e qualquer relação comensurável entre ideia e materialidade sensível. Ora, os nossos exemplos per­mitem conceber um terceiro modo de pensar a rotura estética: um modo que não é a supressão da imagem na presença directa, mas a sua emancipação em rela­ção à lógica unificadora da acção; que não é a rotura da relação do inteligível com o sensível, mas sim um novo estatuto da figura. Na sua acepção clássica, a figura conjugava duas significações: era uma presença sensí­vel e era uma operação de deslocação que colocava uma expressão em lugar de outra. Trata-se de dois regimes de expressão que se encontram entrelaçados sem rela­ção definida. É disso que a descrição de Winckelmann é emblemática: o pensamento está nos músculos que são, por assim dizer, vagas de pedra; mas não há qual­quer relação de expressão entre o pensamento e o movi­mento das vagas. O pensamento passou para dentro de algo que não tem parecença com ele por via de uma analogia definida. E a actividade orientada dos múscu­los passou para o seu contrário: a repetição indefinida, passiva, do movimento.

A partir daí é possível pensar positivamente a pen-satividade da imagem. Ela não é a aura ou o punctum do surgimento único. Mas também não é simplesmente a nossa ignorância do pensamento do autor ou a resistên­cia da imagem à nossa interpretação. A pensatividade da imagem é o produto desse novo estatuto da figura que

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conjuga dois regimes de expressão sem os homogenei­zar. Para o compreendermos, regressemos à literatura, que foi a primeira a tornar explícita esta função da pen-satividade. Em S/Z, Roland Barthes comentava a última frase de Sarrasine de Balzac: «A marquesa permaneceu pensativa.» O adjectivo «pensativo» retinha, com boas razões, a atenção de Barthes: parece designar um estado de espírito da personagem. Mas, no lugar em que Bal­zac o coloca, o adjectivo efectua realmente algo de intei­ramente diferente. Opera uma deslocação do estatuto do texto. Na verdade, encontramo-nos no final de uma narrativa: o segredo da história foi revelado, e essa reve­lação pôs fim às esperanças do narrador relativamente à marquesa. Ora, no próprio momento em que a narrativa acaba, a «pensatividade» vem denegar esse fim; vem suspender a lógica narrativa em benefício de uma lógica expressiva indeterminada. Barthes via nessa «pensati­vidade» a marca do «texto clássico», uma maneira de que o texto se serve para significar que tinha sempre algum sentido de reserva, que tinha sempre um suple­mento de plenitude. Creio que pode fazer-se uma aná­lise inteiramente diferente e ver nessa «pensatividade», inversamente ao que faz Barthes, uma marca do texto moderno, ou seja, do regime estético da expressão. Com efeito, a pensatividade vem contrariar a lógica da acção. Por um lado, ela prolonga a acção que chegava ao fim. Mas, por outro lado, ela suspende toda e qualquer con­clusão. O que se encontra interrompido é a relação entre narração e expressão. A história bloqueia-se num certo

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quadro. Mas este quadro assinala uma inversão da fun­ção da imagem. A lógica da visualidade já não vem dar um suplemento à acção. Vem suspendê-la ou, dizendo melhor, vem ultrapassá-la.

E isto que um outro romancista, Flaubert, nos pode ajudar a compreender. Cada um dos momentos apai­xonados que pontuam Madame Bovary é, com efeito, marcado por um quadro, uma pequena cena visual: uma gota de neve derretida que cai sobre o chapéu de chuva de Emma, um insecto em cima da folha de nenú­far, gotas de água ao sol, a nuvem de poeira levantada por uma diligência. São estes quadros, estas impressões fugidias passivas, que desencadeiam os acontecimentos no plano do amor. E como se a pintura viesse tomar o lugar do encadeamento narrativo do texto. Esses qua­dros não são um mero cenário da cena de amor; como também não simbolizam o sentimento de amor; não existe qualquer analogia entre um insecto em cima de uma folha e o despertar do amor entre duas pessoas. Já não estamos, pois, perante complementos de expressi­vidade acrescentados à narração. Trata-se antes de uma troca de papéis entre a descrição e a narração, entre a pintura e a literatura. O processo de impersonalização pode formular-se aqui como a invasão da acção lite­rária pela passividade pictural. Em termos deleuzia-nos poder-se-ia falar de uma heterogénese. O visual suscitado pela frase deixou de ser um complemento de expressividade. E também não é uma simples suspen­são como a pensatividade da marquesa de Balzac. E o

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elemento da construção de uma outra cadeia narrativa: um encadeamento de micro-acontecimentos sensíveis que vem ultrapassar o encadeamento clássico das cau­sas e dos efeitos, dos fins projectados, das respectivas realizações e consequências. O romance constrói-se então como relação sem relação entre duas cadeias de acontecimentos: a cadeia da narrativa orientada do iní­cio ao fim, com um enredo e um desenlace, e a cadeia dos micro-acontecimentos que não obedece a essa lógica orientada, mas que se dispersa de uma maneira alea­tória, sem começo nem fim, sem relação entre causa e efeito. E sabido que Flaubert foi simultaneamente visto como papa do naturalismo e como panegirista da arte pela arte. Mas o naturalismo e a arte pela arte mais não são do que maneiras unilaterais de designar uma única coisa, a saber, esse entrelaçamento de duas lógicas que é algo como a presença de uma arte dentro de outra.

Se regressarmos à fotografia de Walker Evans, pode­mos compreender a referência do fotógrafo ao roman­cista. Essa fotografia não é nem o registo bruto de um facto social nem a composição de um esteta que fizesse arte pela arte à custa dos pobres camponeses cuja misé­ria mostrava. Essa imagem assinala a contaminação de duas artes, de duas maneiras de «dar a ver»: o excesso literário, o excesso daquilo que as palavras projectam em relação àquilo que designam vem habitar a fotogra­fia de Walker Evans como o mutismo pictural habitava a narração literária de Flaubert. O poder, forjado pela literatura, de transformação do banal em impessoal

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vem corroer por dentro a aparente evidência, a aparente imediaticidade da fotografia. A pensatividade da ima­gem é então a presença latente de um regime de expres­são dentro de outro. Um bom exemplo contemporâneo desta pensatividade é-nos dado pelo trabalho de Abbas Kiarostami entre cinema, fotografia e poesia. É conhe­cida a importância que nos seus filmes têm as estradas. E igualmente sabido que lhes consagrou várias séries fotográficas. Tais imagens são exemplarmente imagens pensativas pela maneira como conjugam dois modos de representação: a estrada é um trajecto orientado de um ponto para outro e é, inversamente, um puro traçado de linhas ou de espirais abstractas num território. O filme Roads of Kiarostami organiza uma notável passagem entre estas duas espécies de estradas. No filme, a câmara parece inicialmente percorrer as fotografias do artista. Como este filma a preto e branco fotografias a cores, a câmara acusa o carácter gráfico, abstracto, das ima­gens; transforma as paisagens fotografadas em dese­nhos ou mesmo em caligrafias. Mas, num certo momento, o papel da câmara inverte-se. Ela parece tornar-se um instrumento cortante que rasga essas superfícies seme­lhantes a folhas desenhadas e que devolve esses grafis­mos à paisagem de que tinham sido abstraídos. Deste modo, o filme, a fotografia, o desenho, a caligrafia, o poema vêm misturar os respectivos poderes e trocar entre si as respectivas singularidades. Já não é apenas a literatura que constrói o seu devir-pintura imaginá­rio ou a fotografia que evoca a metamorfose literária do

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banal. São os regimes de expressão que se entrecruzam e criam combinações singulares de trocas, de fusões e de afastamentos. Estas combinações criam formas de pensa-tividade da imagem que refutam a oposição entre studium e punctum, entre a operatividade da arte e a imediaticidade da imagem. A pensatividade da imagem deixa então de ser o privilégio do silêncio fotográfico ou pictórico. Este silêncio é ele próprio um certo tipo de figuralidade, uma certa ten­são entre regimes de expressão que é também um jogo de trocas entre os poderes de diferentes meios.

Esta tensão pode então caracterizar modos de produ­ção de imagens cuja artificialidade parece a priori proibir a pensatividade da frase, do quadro ou da fotografia. Penso aqui na imagem de vídeo. Na época do desenvolvimento da arte vídeo, na década de 8o do século xx, alguns artis­tas pensaram a nova técnica como o meio de uma arte livre de toda a submissão passiva ao espectáculo do visível. Com efeito, no vídeo a matéria visual já não era produzida pela impressão de um espectáculo numa película sen­sível, mas sim por acção de um sinal electrónico. A arte vídeo tinha de ser a arte de formas visíveis geradas direc­tamente pelo cálculo de um pensamento artístico dis­pondo de uma matéria infinitamente maleável. Assim, a imagem vídeo já não era realmente uma imagem. Como dizia um dos promotores desta arte: «Em sentido estrito não existe no tempo nenhum instante no decurso do qual se possa dizer que a imagem vídeo existe.»6 Resumindo,

6 Hollis Frampton, UEcliptique du savoir, Centre George Pompidou, Paris, 1999, p. 92.

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a imagem vídeo parecia destruir aquilo que constituía a própria especificidade da imagem, ou seja, a sua parte de passividade resistindo ao cálculo técnico dos fins e dos meios tanto quanto à leitura adequada das signi­ficações no espectáculo do visível. Parecia destruir o poder de suspensão próprio da imagem. Uns viam na imagem vídeo o meio de uma arte inteiramente dona do seu material e dos seus meios; outros, pelo contrário, viam nela a perda da pensatividade cinematográfica. Pascal Bonitzer, num livro intitulado Le Champs aveugle,

denunciava esta superfície maleável em perpétua meta­morfose. O que aí desaparecia eram as cesuras organi­zadoras da imagem: o enquadramento cinematográfico, a unidade do plano, as separações entre o lado de dentro e o lado de fora, o antes e o depois, o campo e o que está fora do campo, o próximo e o distante. E era portanto também toda a economia afectiva ligada a essas cesu­ras que desaparecia. O cinema, como a literatura, vivia da tensão entre uma temporalidade do encadeamento e uma temporalidade da cesura. O vídeo fazia desapare­cer essa tensão em benefício de uma circulação infinita de metamorfoses da matéria dócil.

Ora, o que se passou com a arte vídeo é o mesmo que aconteceu com a fotografia. A sua evolução des­mentiu o dilema entre anti-arte ou arte radicalmente nova. A imagem vídeo soube também ela tornar-se o lugar de uma heterogénese, de uma tensão entre diver­sos regimes de expressão. É o que podemos compreen­der com base numa obra característica dessa época.

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The Art of Memory, de Woody Vasulka, de 1987, é a obra de um artista que se via nesse tempo como um escul­tor que manipulava o barro da imagem. E contudo essa escultura da imagem cria uma forma inédita de pensa-tividade. A homogeneidade do material e do tratamento videográfico presta-se com efeito a várias diferencia­ções. Por um lado, temos uma mistura entre dois tipos de imagens: há imagens a que podemos chamar analó­gicas, não no sentido técnico, mas na medida em que nos apresentam paisagens e personagens como pode­riam aparecer numa objectiva ou na acção do pincel de um pintor; uma personagem com um capacete, espé­cie de criatura mitológica que nos surge no cimo de um rochedo, um cenário de deserto cujas cores foram adul­teradas electronicamente, mas que nem por isso deixa de se apresentar como o análogo de uma paisagem real. Paralelamente há toda uma série de formas metamór­ficas que se apresentam explicitamente como artefac­tos, como produções do cálculo e da máquina. Pela sua forma surgem-nos como esculturas moles, pela sua textura surgem-nos como seres feitos de puras vibra­ções luminosas. São, por assim dizer, vagas electrónicas, puros comprimentos de onda sem correspondência com nenhuma forma natural e sem qualquer função expres­siva. Ora, estas vagas electrónicas sofrem uma dupla metamorfose que faz delas o teatro de uma pensativi-dade inédita. Inicialmente a forma mole estende-se em ecrã no meio da paisagem desértica. Neste ecrã vemos projectarem-se imagens características da memória de

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um século; o cogumelo da bomba de Hiroxima ou epi­sódios da Guerra Civil de Espanha. Mas a forma-ecrã sofre ainda uma outra metamorfose à custa dos meios de tratamento videográfico. Ela torna-se o caminho de montanha por onde passam os combatentes, o mauso­léu dos soldados mortos ou uma rotativa de tipografia da qual saem retratos de Durruti. A forma electrónica torna-se assim um teatro da memória. Passa a ser uma máquina de transformar o representado em represen­tante, o suporte em assunto, o documento em monumento.

Porém, ao levar a cabo tais operações, essa forma recusa reduzir-se à simples expansão da matéria meta­mórfica. Mesmo quando se assume como suporte ou teatro da acção, continua a fazer de ecrã no duplo sen­tido do termo. O ecrã é uma forma de manifestação, mas também é uma superfície opaca que impede as identi­ficações. Desta maneira, a forma electrónica separa as imagens cinzentas de arquivo das imagens coloridas da paisagem de western. Separa, pois, dois regimes de ima­gens analógicas. E, ao separá-las, desarticula a sua pró­pria homogeneidade. Põe de lado a pretensão de uma arte em que o cálculo artístico se traduzisse exacta­mente na matéria visível. A pensatividade da imagem é este afastamento entre duas presenças: as formas abs­tractas geradas pelo pincel electrónico criam um espaço mental no qual as imagens e os sons da Alemanha nazi, da Guerra Civil de Espanha ou da explosão de Hiroxima recebem a forma visual que corresponde ao que elas são para nós: imagens de arquivos, objectos de saber e de

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memória, mas também obsessões, pesadelos ou nos­talgias. Vasulka cria um espaço memorial cerebral e, ao alojar nesse espaço as imagens das guerras e dos hor­rores do século, afasta os debates sobre o irrepresen-tável motivados pela desconfiança face ao realismo da imagem e aos respectivos poderes emocionais. Mas, inversamente, os acontecimentos do século arrancam o vídeo ao sonho da ideia que gera a sua própria maté­ria. Fazem com que o vídeo se curve perante as formas visuais que são aquelas segundo as quais se conser­vam esses mesmos acontecimentos, constituindo uma memória colectiva: filmes, ecrãs, livros, cartazes ou monu­mentos. A pensatividade da imagem é então esta rela­ção entre duas operações que coloca a forma demasiado pura ou o acontecimento demasiado carregado de rea­lidade fora de si mesmos. Por um lado, a forma desta relação é determinada pelo artista. Mas, por outro lado, é o espectador sozinho que pode fixar a medida da rela­ção, é apenas o seu olhar que dá realidade ao equilíbrio entre as metamorfoses da «matéria» informacional e a encenação da história de um século.

É tentador comparar esta forma de pensatividade com a que é posta em jogo por um outro monumento erguido à história do século xx pelo vídeo, as História(s)

do Cinema de Godard. Não haverá dúvida de que Godard procede de um modo completamente diferente de Vasulka. Não constrói uma máquina da memória. Cria uma superfície na qual todas as imagens podem des­lizar umas sobre as outras. Define a pensatividade das

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imagens por intermédio de dois traços essenciais. Por um lado, cada imagem ganha o aspecto de uma forma, de uma atitude, de um gesto suspendido. Cada um des­tes gestos retém de algum modo o poder que Balzac confiava à sua marquesa - o de condensar uma histó­ria num quadro -, mas também o de desencadear uma outra história. Cada um desses instantâneos pode então ser desligado do seu suporte particular, deslizar sobre um outro ou acoplar-se a um outro: o plano cinemato­gráfico com o quadro, com a fotografia ou com as ima­gens de documentários de actualidades. É aquilo a que Godard chama a fraternidade das metáforas: a possibi­lidade de uma atitude desenhada pelo lápis de Goya vir associar-se com o desenho de um plano cinematográ­fico ou com a forma de um corpo supliciado nos campos nazis captado pela objectiva fotográfica; a possibilidade de escrever de múltiplas maneiras a história do século em virtude do duplo poder de cada imagem: o de con­densar uma multiplicidade de gestos significativos de um tempo e o de se associar a todas as imagens dotadas do mesmo poder. Assim, no final do primeiro episódio das História(s), o jovem do Banho emAsnières de Seurat ou os passeantes da Tarde na Ilha da Grande Jatte tornam-se figuras da França de Maio de 1940, a França da Frente Popular e das férias pagas, apunhalada por uma Alema­nha nazi simbolizada por uma rusga policial tirada de M-Matou, de Fritz Lang, e de seguida vemos blindados tirados de documentários de actualidades mergulhando nas paisagens impressionistas, enquanto planos extraí-

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dos de filmes, A Morte de Siegfried, 0 Testamento do Doutor

Mabuse, To Be or not To Be, nos vêm mostrar que as ima­gens do cinema haviam já desenhado as formas daquilo que, com a guerra e os campos da morte, viriam a ser imagens de actualidade. Não voltarei neste momento à análise dos procedimentos de Godard 7. O que aqui me interessa é a maneira segundo a qual o realizador põe em prática, num triplo nível, o trabalho da figura. Em primeiro lugar, radicaliza essa forma de figuralidade que consiste em entrelaçar duas lógicas de encadeamento: cada elemento é articulado com cada um dos outros segundo duas lógicas, a do encadeamento narrativo e a da metaforização infinita. Num segundo nível, a figura­lidade é a maneira segundo a qual diversas artes e diver­sos media vêm trocar entre si os seus poderes. Mas, num terceiro nível, a figuralidade é o modo pelo qual uma arte serve para constituir o imaginário de uma outra. Godard quer fazer com as imagens do cinema aquilo que o pró­prio cinema não fez porque traiu a sua vocação, sacrifi­cando a fraternidade das metáforas ao comércio das his­tórias. Ao separar as metáforas das histórias para assim fazer uma outra «história», Godard faz esse cinema que não aconteceu. Mas fá-lo por intermédio dos meios da montagem vídeo. Constrói, no ecrã de vídeo, com os meios do vídeo, um cinema que nunca existiu.

7 Nesse caso particular, permito-me remeter para as análises que apresentei em

La Fable cinématographique, Seuil, Paris, 2001, e Le Destin des images, La Fabrique,

Paris, 2003. [0 Destino das Imagens, Orfeu Negro, Lisboa, 2011}

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Esta relação de uma arte consigo mesma por via da mediação de uma outra arte pode fornecer uma conclu­são provisória para esta reflexão. Tentei dar um conteúdo a esta noção de pensatividade que designa na imagem algo que resiste ao pensamento, ao pensamento de quem a produziu e de quem procura identificá-la. Explo­rando algumas formas desta resistência, quis mostrar que ela não é uma propriedade constitutiva da natureza de certas imagens, mas um jogo de afastamentos entre várias funções-imagens presentes na mesma super­fície. Compreende-se então por que motivo o mesmo jogo de afastamentos se oferece tanto na arte como fora dela, e de que maneira as operações artísticas podem construir essas formas de pensatividade pelas quais a arte escapa a si própria. Este problema não é novo. Já Kant apontava o afastamento entre a forma artística, ou seja, a forma determinada pela intenção da arte, e a forma estética, aquela que é percebida sem conceito e recusa qualquer ideia de finalidade intencional. Kant chamava ideias estéticas às invenções da arte capazes de operar esta ligação entre duas «formas», que é tam­bém um salto entre dois regimes de apresentação sen­sível. Procurei pensar esta arte das «ideias estéticas» alargando o conceito de figura para fazer com que sig­nificasse já não apenas a substituição de um termo por outro, mas sim o entrelaçamento de vários regimes de expressão e do trabalho de várias artes e de vários media.

Muitos comentadores pretenderam ver nos novos media

electrónicos e informáticos o fim da alteridade das ima-

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gens, senão mesmo o fim das invenções da arte. Mas o computador, o sintetizador e as novas tecnologias no seu conjunto não significaram o fim da imagem e da arte, do mesmo modo que também não foi esse o resul­tado da fotografia e do cinema no seu tempo. A arte da era estética não deixou de apostar na possibilidade que cada médium podia oferecer de misturar os seus efeitos com os efeitos dos outros, de assumir o seu papel e de criar assim figuras novas, despertando possibilidades sensíveis que tinham sido esgotadas. As técnicas e os suportes novos oferecem a tais metamorfoses possibi­lidades inéditas. A imagem não deixará tão depressa de ser pensativa.

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Origem dos textos

Os textos aqui reunidos representam a versão final de con­ferências cujas anteriores versões, várias vezes modifica­das, foram apresentadas, em língua francesa ou inglesa, em diversas instituições universitárias, artísticas e culturais, no decurso dos quatro últimos anos.

Pela sua contribuição para este livro agradeço a todas aquelas e todos aqueles que me convidaram e que acolheram e discutiram uma ou outra versão destes textos nas seguin­tes instituições: Quinta Academia Internacional de Verão, Frankfurt a.M. (2004); SESC Belenzinho, São Paulo (2005); École des Beaux-Arts, Lyon (2005), CAPC, Bordeaux (2005); Festival Home Works, em Bayreuth (2005); Instituto Cul­tural Francês de Estocolmo (2006); Fundação de Serralves, Porto (2007); Hochschule der Künste, Zurique (2007); Palá­cio Bozar, Bruxelas (2007); Pacific North College of Arts, Por-tiand (2008); Mumok, Viena (2008).

Sõdertõrn University College (2006); Universidade de Trondheim (2006); Universidade de Copenhaga (2007); Williams College, Williamstown (2007); Dartmouth Col­lege (2007); Universidade Europeia de Sampetersburgo (2007); Centro Eikones da Universidade de Basileia (2007); University of Califórnia, Irvine (2008); University of Bri-tish Columbia, Vancouver (2008); University of Califórnia, Berkeley (2008).

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O texto «O espectador emancipado» foi publicado na sua versão original inglesa em ArtFórum, XLV, n.° 7, Março de 2007.

Uma versão inglesa do texto «Desventuras do pensa­mento crítico» foi publicada em Aporia, Dartmouth Journal of

Philosophy, Outono de 2007.

Por último, a reflexão sobre a imagem pensativa fica a dever muito ao seminário decorrido em 2005-2006 no museu do Jeu de Paume.

Os editores do original francês deste volume agradecem a Josephine Meckseper, Martha Rosler, Alfredo Jaar, Rineke Dijkstra e Sophie Ristelhueber, que gentilmente autorizaram a reprodução das suas obras.

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