o poder de cautela do juiz e a viabilidade da imposiÇÃo da multa por hora como meio coercitivo...
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O PODER DE CAUTELA DO JUIZ E A VIABILIDADE DA IMPOSIÇÃO DA
MULTA POR HORA COMO MEIO COERCITIVO EFICAZ DE VEDAÇÃO AO
CORTE ARBITRÁRIO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA
Priscila Rodrigues Marconi
Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense
2
Resumo
O estudo se mostra relevante vez que a medida coercitiva da multa diária
se mostra ineficaz, já que, nem sempre, é capaz de compelir a empresa fornecedora de
energia elétrica a restabelecer o serviço essencial de imediato. Neste contexto, é que a
aplicação da multa por hora se mostra adequada, atendendo aos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, de modo a alcançar a segurança jurídica
pertinente ao ramo do direito. Neste aspecto, a metodologia a ser empregada na
investigação do objeto deverá se utilizar de métodos descritivos da matéria, buscando
fazer um levantamento de opiniões e orientação dos Tribunais do País, a fim de
identificar que a aplicação da multa diária não supre as necessidades do consumidor. O
método de investigação será dedutivo, na medida em que deverá partir da constatação
geral para o caso particular. Num primeiro momento, haverá a observação do tema pelo
pensamento doutrinário, de forma a se extrair a regra geral para, posteriormente,
verificar sua aplicabilidade prática ao caso concreto. Pela utilização dos métodos, a
abordagem a ser empregada deverá ser do tipo qualitativa, uma vez que a pesquisa terá
por intento identificar hipóteses em que poder-se-ia cogitar a possibilidade de aplicar a
multa por hora, contribuindo, assim, para a resolução de demandas em que o particular
não mais tenha que sofrer com o corte arbitrário de energia elétrica.
Direitos e garantias fundamentais
Em apertada síntese, é imperioso mencionar as noções basilares no que
tange a direitos e garantias fundamentais, normas de aplicação imediata1, entendendo o
primeiro como bens e vantagens inscritos na norma constitucional e o derradeiro como
instrumento através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos ou os repara,
se violados.
Ainda, os direitos e garantias fundamentais definem-se como gênero, ao
qual pertencem as seguintes espécies: direitos e deveres individuais e coletivos,
ressalvando que estes não se restringem ao art. 5º da Carta Magna, conforme declarado
1 Art. 5º, § 1º, CRFB/88.
3
pela Suprema Corte2; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos;
direitos relacionados à existência, organização e participação dos partidos políticos.
Neste sentido, Guilherme Peña de Moraes3 define direitos fundamentais
como “direitos subjetivos, assentes no direito objetivo, positivados no texto
constitucional, ou não, com aplicação nas relações das pessoas com o Estado ou na
sociedade”.
Hodiernamente, a doutrina, dentre os vários critérios, optou por uma
classificação mais moderna denominada gerações/dimensões de direitos fundamentais:
(i) a primeira geração (séculos XVII, XVII, XIX) menciona direitos que dizem respeito
às liberdades públicas e aos direitos políticos, revelando a primazia da liberdade; (ii) a
segunda geração (a partir do século XIX) é impulsionado pelas péssimas condições de
trabalho, fixando os direitos sociais, culturais e econômicos correspondendo aos direitos
de igualdade; (iii) a terceira geração foi marcada pelas alterações da sociedade,
passando a haver constantes preocupações mundiais, eclodindo na noção de
preservacionismo ambiental e proteção aos consumidores, que trouxeram os direitos de
solidariedade ou fraternidade; (iv) a quarta geração, referente à engenharia genética/
tecnologia, apesar de não ser unânime na doutrina, foi prevista por Bobbio4: “já se
apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta
geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que
permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo”.
Neste sentido, resta evidente que os direitos e garantias fundamentais
agem, finalisticamente, através do Estado, com o escopo de defender os interesses mais
elementares dos cidadãos, daí por que se falar na indisponibilidade destes direitos pelos
mesmos. Ficando evidente, neste ponto, as características dos direitos fundamentais,
quais sejam, inalienabilidade, historicidade e relatividade.
2 ADI 939-7/DF – a garantia constitucional prevista no art. 150, III, “b”, CRFB/88 foi considerada pelo
rel. Min. Sydney Sanches como cláusula pétrea, declarando, ainda, que a EC n. 3/93, ao pretender subtraí-
la da esfera protetiva dos destinatários da norma, estaria ferindo o limite material previsto no art. 60, § 4º,
IV, CRFB/88. 3 MORAES, Guilherme Peña de. Direitos Fundamentais: conflitos e soluções. 1ª Ed. São Paulo. Frater et
labor, 2000, p. 11 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992. p. 06.
4
Eficácia dos direitos fundamentais
Em face do conhecimento de que os direitos fundamentais são
considerados necessários à existência digna, livre e igualitária, sendo, portanto,
indispensáveis a pessoa humana, é de notória relevância enfatizar que não basta ao
Estado reconhecer tais direitos, mas, de fato, efetivá-los, vale dizer, torná-los eficazes.
É bem verdade que as normas constitucionais conservam diversas
peculiaridades, dentre as quais o atributo de imperatividade. Assim, tem-se que as
normas jurídicas concernentes aos direitos fundamentais são de natureza cogente, e
neste sentido explica Luís Roberto Barroso5:
“As normas cogentes são preceptivas, quando
obrigam a determinada conduta, ou proibitivas,
quando a vedam. Sua essência reside em
impor-se à vontade de seus destinatários, não
lhes permitindo regular determinada situação
por forma diversa. Não há, neste caso, margem
à vontade individual para convencionar
distintamente”.
Com efeito, onde se verifica uma norma que contém uma ordem com
força jurídica e não apenas moral, percebe-se, em contrapartida, que a sua inobservância
coaduna um procedimento de coação, a fim de garantir a efetividade desta norma de
caráter impositivo. Ou seja, o Estado, como garantidor desta efetividade das normas,
deve fazer com que os particulares entre si respeitem os direitos fundamentais, assim
como ele próprio deve respeitar os direitos inerentes aos cidadãos, a fim de garantir a
segurança jurídica. Exempli gratia, essa proteção poderá se dar por meio de normas de
proibição ou de imposição de condutas, como o caso da proibição da venda de
medicamento reputado nocivo à saúde.
Diante do exposto, cabe esclarecer que a eficácia dos direitos
fundamentais ocorre de duas formas: eficácia horizontal/privada/externa e eficácia
vertical, sendo a primeira a relação entre particulares e a segunda a relação entre o
Estado e o particular, interessando apenas esta última no presente estudo.
Ainda, é crucial aduzir que a eficácia das normas está intimamente
atrelado à noção de completude da regra jurídica. Isto significa que, em regra, as normas
5 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidade da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 7ª ed. atual., 2003, p. 77.
5
que consagram os direitos fundamentais são de eficácia contida e aplicabilidade
imediata6.
Resta claro, portanto, que a mera declaração constitucional não resolve
todas as questões. Entretanto, o disposto no art. 5º, §1º, CRFB, quando declara que
todas as normas do artigo têm aplicação imediata significa, conforme José Afonso da
Silva7, que elas são aplicáveis até onde possam, ou seja, até onde as instituições
ofereçam condições para seu atendimento.
Este fato se traduz no fato de Poder Judiciário, ao ser invocado sobre
uma situação concreta garantida, não poder deixar de aplicar tais normas, conferindo ao
interessado o direito reclamado, segundo as instituições existentes.
Como leciona Luiz Guilherme Marinoni8, a norma de direito
fundamental, independentemente da possibilidade de sua subjetivação, sempre contém
valoração. O valor nela contido, revelado de modo objetivo, espraia-se necessariamente
sobre a compreensão e atuação do ordenamento jurídico. Atribui-se aos direitos
fundamentais, assim, uma eficácia irradiante.
Para o citado autor, “as normas que estabelecem direitos fundamentais,
se podem ser subjetivadas, não pertinem somente ao sujeito, mas sim a todos aqueles
que fazem parte da sociedade”9.
Compreendendo que os direitos fundamentais são normas de cogentes e
de eficácia contida (em regra), é possível aferir, apesar de sua aplicabilidade imediata,
tais normas não são estanques, havendo um parâmetro de flexibilidade, para, se for o
caso, atingir a eficácia plena ou integral. E é justamente neste limiar de flexibilidade que
pode se verificar um aparente contrassenso gerador do conflito de normas.
6 “As normas constitucionais de eficácia contida ou prospectiva têm aplicabilidade direita e imediata, mas
possivelmente não integral. (...) Além da restrição da eficácia das referidas normas de eficácia contida
tanto por lei como por outras normas constitucionais (...), a restrição poderá implementar-se, em outras
situações, por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social”. LENZA, Pedro. Direito
Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2009, p.136/137.
“Normas de eficácia contida, portanto, são aquelas em que o legislador constituinte regulou
suficientemente os interesses relativos à determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por
parte da competência discricionária do poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos dos
conceitos gerais elas enunciados” SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais.
São Paulo: Malheiros, 1998, p. 116).
“[Normas de eficácia contida] são aquelas que têm aplicabilidade imediata, integral, plena, mas que
podem ter reduzido seu alcance pela atividade do legislador infraconstitucional”. TEMER, Michel.
Elementos do direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 24. 7 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998
8 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p.168. 9 Idem. Ibidem. p.168.
6
Serviço Público: conceito, princípio norteador e classificação.
Inicialmente, faz-se mister a contextualização do conceito basilar de
serviço público, nos termos do art. 175, CRFB, o qual será analisado ao longo do
estudo. Neste sentido, compreende-se que serviço público é “toda atividade que o
Estado exerce, direta ou indiretamente, para a satisfação das necessidades públicas
mediante procedimento típico do direito público”10
ou, mais restritivamente, é “todo
aquele prestado pela administração ou por seus delegados, sob normas e controles
estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou
simples conveniências do Estado”11
.
A partir das definições em tela, pode-se aferir que determinados
princípios estão intimamente atrelados ao conceito em pauta, dentre eles, o princípio da
continuidade do serviço público, que significa que determinada atividade não pode ser
objeto de pausa, suspensão, interrupção, ou seja, simplesmente não pode parar. Todavia,
é imperioso entender que tal princípio não é absoluto, uma vez que, em casos
excepcionais, é admitido o corte no fornecimento do serviço, isto é, quando verificado o
inadimplemento e nas hipóteses da Lei nº 8.987/95, em seu art. 6º, § 3º.
Neste contexto, cabe ainda fazer alusão ao serviço público classificado
como essencial que guarda estrita relação com os direitos fundamentais, razão pela qual
não que se falar em corte, vez que do seu fornecimento depende a plenitude do direito
inerente à dignidade da pessoa humana. Desta forma, tem-se que tais serviços devem,
em regra, ser prestados pelo Estado não podendo ser objeto de delegação. Não obstante,
tal mandamento comporta exceções, motivo pelo qual é possível verificar serviço
essencial sendo fornecido pelo particular, como é o caso do fornecimento de energia
elétrica.
A conduta reiterada de corte do fornecimento de energia elétrica
Diante do exposto, algumas observações se fazem necessárias, quais
sejam: (i) a arbitrariedade no corte do serviço público; (ii) a falta de punição adequada
10
CRETELLA JUNIOR, José. Administração Indireta Brasileira. Rio de Janeiro: Forense. 1980. P.55-60 11
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2003. P. 319
7
pelo comportamento arbitrário das concessionárias de serviço público, que enseja a
reiteração de conduta.
Ora, como mencionado anteriormente, os serviços públicos, ainda que
estejam assegurados pelo princípio da continuidade, esbarram em situações limítrofes,
donde se é possível verificar a hipótese de exceção, vale dizer, hipóteses em que o corte
no fornecimento do serviço teria embasamento legal.
Nesta seara, deve-se analisar, frente a uma interpretação sistemática que
a Carta Magna prevê, em seu art. 175, a criação de lei, capaz de regulamentar a matéria
de delegação, a saber: Lei nº 8.987/95, que, dentre outras definições, autoriza o corte do
fornecimento de energia nos casos de ordem técnica ou segurança das instalações e por
inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.
Ocorre que os Tribunais vêm entendendo que o ato de cortar o
fornecimento do serviço como forma de compelir o cumprimento da obrigação, somente
pode ocorrer uma vez comprovada o inadimplemento da mesma.
Isso significa que, nas situações em que não há certeza quanto ao
inadimplemento do particular, o corte do fornecimento de serviço essencial, mais do que
arbitrário, é inconstitucional. Diz-se desta forma, por não se enquadrar nas hipóteses de
exceção em que se permite a interrupção no fornecimento do serviço.
Neste aspecto, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento
segundo o qual a interrupção do serviço só é lícita se o inadimplemento referir-se ao
mês do consumo e se precedida de aviso prévio:
“RECURSO ESPECIAL – ADMINISTRATIVO –
INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO –
CABIMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE CORTE POR
DÉBITOS PRETÉRITOS. 1. A continuidade da prestação
do serviço público é limitada pela interpretação da Lei n.
8.987/95, que trata do regime de concessão e permissão,
notadamente no artigo 6º, § 3º, incisos I e II, e prevê as
duas situações em que é legítima sua interrupção: quando
sob emergência ou após prévio aviso. 2. A interrupção no
corte de energia elétrica visa resguardar a continuidade do
serviço, que restaria ameaçada justamente por onerar a
sociedade, levando esta a arcar com o prejuízo decorrente
de todos débitos. A empresa concessionária poderá
suspender o fornecimento de energia no caso de
inadimplemento da conta. 3. Pretende a COSERN a
modificação no julgado que condicionou o fornecimento
de energia elétrica apenas ao pagamento das faturas
8
vincendas. A jurisprudência desta Corte firmou o
entendimento no sentido de que não deve haver a
suspensão do fornecimento de energia elétrica por causa
de débitos pretéritos. 4. O corte de energia elétrica
pressupõe o inadimplemento de conta relativa ao mês do
consumo, sendo inviável a suspensão do abastecimento,
em razão de débitos antigos. 5. Para tais casos deve a
companhia utilizar-se dos meios ordinários de cobrança
pois não se admite qualquer espécie de constrangimento
ou ameaça ao consumidor, nos termos do art. 42 do
Código de Defesa do Consumidor. Recursos especiais
conhecidos e improvidos.” (REsp 909.146/RN, Rel.
Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA
TURMA, julgado em 19.04.2007, DJ 04.05.2007 p. 431).
Ainda, é possível perceber a questão da arbitrariedade a partir dos
seguintes julgados do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESTADORA DE
SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO
PÚBLICO ESSENCIAL. CORTE NO
FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA.
APLICAÇÃO DAS REGRAS DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. A LIGHT é
concessionária de serviço público de fornecimento de
energia elétrica, que é considerado um serviço essencial,
imprescindível à dignidade humana e, como tal, está
obrigada a prestá-lo de forma contínua, adequada,
eficiente e segura. 2. Nestes autos está configurada a
prática de uma proibição relativa, vez que a LIGHT se
utilizou do corte do fornecimento de energia elétrica, para
dar auto-executoriedade à dívida. 3. Precedentes
jurisprudenciais. 4. Desprovimento do recurso na forma
autorizada pelo artigo 557 do CPC. (2008.002.12352 -
AGRAVO DE INSTRUMENTO - DES. LETICIA
SARDAS - Julgamento: 05/05/2008 - VIGESIMA
CAMARA CIVEL)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESTADORA DE
SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO
PÚBLICO ESSENCIAL. CORTE NO
FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA.
APLICAÇÃO DAS REGRAS DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. A LIGHT é
concessionária de serviço público de fornecimento de
energia elétrica, que é considerado um serviço essencial,
imprescindível à dignidade humana e, como tal, está
obrigada a prestá-lo de forma contínua, adequada,
9
eficiente e segura.2. Nestes autos está configurada a
prática de uma proibição relativa, vez que a LIGHT se
utilizou do corte do fornecimento de energia elétrica, para
dar auto-executoriedade à dívida. 3. Precedentes
jurisprudenciais.4. Provimento do recurso na forma
autorizada pelo § 1º-A do artigo 557 do CPC,
confirmando a tutela concedida às fls. 46v.
(2007.002.14859 - AGRAVO DE INSTRUMENTO -
DES. LETICIA SARDAS - Julgamento: 11/07/2007 -
VIGESIMA CAMARA CIVEL)
APELAÇÕES CÍVEIS. RELAÇÃO DE CONSUMO.
AÇÃO INDENIZATÓRIA. FALHA NA PRESTAÇÃO
DO SERVIÇO DE FATURAMENTO. VIOLAÇÃO AO
ARTIGO 6º, III DA LEI 8.072/90. SUSPENSÃO
INDEVIDA DO FORNECIMENTO DE ENERGIA
ELÉTRICA. ESSENCIALIDADE DO SERVIÇO.
AFRONTA AO ARTIGO 42, CAPUT, DO CDC. DANO
IN RE IPSA. DEVER DE INDENIZAR
CONFIGURADO. CORRETA FIXAÇÃO DO
QUANTUM INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO DA
SENTENÇA. Cuida-se de ação indenizatória a pretexto
da qual objetiva a autora a condenação da ré ao
pagamento de indenização a título de danos morais, em
virtude de falha na prestação do serviço de faturamento,
que culminou no corte indevido do fornecimento de
energia elétrica em sua residência. Sentença de
procedência parcial. Apelações interpostas por ambas as
partes. No que tange ao segundo apelo (Light), este não
merece prosperar, uma vez que restou clara a falha na
prestação do serviço de faturamento das contas enviadas à
autora nos meses de dezembro/2005 e janeiro/2006,
diante das imprecisas informações contidas nas cobranças.
Seguidos refaturamentos que causaram dúvidas a
consumidora quanto a sua obrigação de adimpli-las.
Inobservância do dever de informação. Violação ao artigo
6º, inciso III do CDC. Suspensão indevida do serviço de
fornecimento de energia elétrica, de natureza essencial.
Afronta ao artigo 42, caput do Estatuto Consumerista.
Dano in re ipsa. Dever de indenizar o dano de ordem
moral (Artigo 14 da Lei 8.072/90). No que concerne ao
primeiro apelo (autora), melhor sorte não assiste à
recorrente. Fixação da verba indenizatória contida no
decisum a quo que guardou pertinência com os aspectos
do caso concreto. Observância dos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade. Manutenção da
sentença. NEGATIVA DE SEGUIMENTO AOS
APELOS, NOS TERMOS DO ART. 557, CAPUT DO
CPC. (2009.001.06209 - APELACAO - DES. ISMENIO
10
PEREIRA DE CASTRO - Julgamento: 02/04/2009 -
DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL)
Na tentativa de coibir tal conduta, tem-se aplicado multa diária, a fim de
compelir a concessionária, responsável pelo fornecimento do serviço a restabelecê-lo
prontamente. Entretanto, as multas aplicadas não tem cumprido sua finalidade, qual
seja, o pronto restabelecimento do serviço, que, não raro, a determinação judicial
demora a ser cumprida e a não reincidência de conduta inconstitucional, violativa da
dignidade da pessoa humana:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO PELO RITO
ORDINÁRIO C/C PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO
PARCIAL DOS EFEITOS DA TUTELA. Decisão que
deferiu a antecipação dos efeitos da tutela, determinando
que a ré/agravante restabeleça o serviço de energia
elétrica na residência do autor/agravado, no prazo de 48
horas, sob pena de multa diária no valor de R$ 100,00.
Ausência de razoabilidade na interrupção do serviço.
Enquanto pendente controvérsia sobre a existência e
regularidade do débito, descabe o corte do serviço
essencial. Precedentes do STJ. Presença dos requisitos
autorizadores da medida deferida (art. 273 do CPC). O
caráter emergencial da medida torna despicienda à oitiva
da parte contrária para a concessão da antecipação de
tutela, segundo jurisprudência uníssona sobre a matéria.
Decisão antecipatória de tutela que não se mostra ilegal,
teratológica ou contrária à prova dos autos, a ensejar a sua
revogação. Negado seguimento ao recurso.
(2009.002.11983 - AGRAVO DE INSTRUMENTO -
DES. MONICA COSTA DI PIERO - Julgamento:
31/03/2009 - OITAVA CAMARA CIVEL)
Agravo de instrumento. Ação indenizatória. Decisão que,
em ação declaratória, indeferiu a tutela antecipada por não
vislumbrar a presença dos requisitos do art. 273 do CPC,
uma vez que o TOI não foi acostado aos autos e não há
prova da ameaça de corte do fornecimento de energia
elétrica. A cobrança refere-se a irregularidade detectada
no sistema de medição de energia (alteração para menor
do consumo da energia elétrica). O simples "Termo de
Ocorrência de Irregularidades", elaborado unilateralmente
pela empresa distribuidora de energia elétrica, não é
suficiente para embasar corte no fornecimento de energia
elétrica. Precedentes jurisprudenciais, inclusive desta Eg.
Câmara Cível. Há verossimilhança na pretensão do
11
agravante ao questionar o valor apresentado pela agravada
após a lavratura unilateral do TOI, sem que tenha sido
disponibilizado ao consumidor o direito constitucional da
ampla defesa e do contraditório. Artigo 557, § 1º-A do
CPC. Provimento do recurso para determinar o
restabelecimento do fornecimento de energia elétrica para
a residência da parte autora, no prazo de 72 horas, não
devendo a agravada lançar o nome do autor nos cadastros
restritivos de crédito pelo fato em questão, sob pena de
multa diária de R$ 50,00 (cinqüenta reais).
(2009.002.25873 - AGRAVO DE INSTRUMENTO -
DES. HELDA LIMA MEIRELES - Julgamento:
15/07/2009 - DECIMA QUINTA CAMARA CIVEL)
Agravo de instrumento manejado contra decisão que
deferiu tutela antecipada para que a ré restabelecesse o
fornecimento de energia elétrica na residência da autora
no prazo de 24 horas, sob pena de multa diária de R$
300,00. Decisão que não é teratológica. Aplicação da
Súmula 59 desta Corte. Recurso que se nega provimento.
(2009.002.14999 - AGRAVO DE INSTRUMENTO -
JDS. DES. VALERIA DACHEUX - Julgamento:
05/06/2009 - DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL)
Agravo de instrumento. Obrigação de Fazer. Tutela
antecipatória deferida para que a empresa agravada se
abstenha de efetuar o corte de energia elétrica na unidade
da agravada ou, caso já o tenha realizado, que promova o
seu retorno, no prazo de 24 horas, sob pena de multa
diária de R$ 300,00 (trezentos reais). Valor das astreintes
que se justifica diante da necessidade e urgência do uso da
energia elétrica. Decisão que não se mostra teratológica,
contrária à lei ou à prova dos autos. Aplicação da Súmula
59 desta Corte Estadual. Recurso improvido.
(2009.002.19031 - AGRAVO DE INSTRUMENTO -
DES. CELSO PERES - Julgamento: 03/06/2009 -
DECIMA CAMARA CIVEL)
Multa diária/Astreintes: conceito e natureza jurídica
Face ao exposto, a multa diária resta, comprovadamente, ineficaz no
intento de impor à concessionária de fornecimento de energia elétrica mais cautela nas
suas ações, tendo em vista estar em posse de realização de serviço essencial.
Por esta razão, cumpre fazer um breve retrocesso acerca do instituto das
astreintes, para se atingir o fim colimado neste estudo.
12
O poder jurisdicional pode ser verificado quando há violação do direito
subjetivo do particular, que, por não poder se socorrer da auto-tutela para solucionar o
conflito, recorre ao Estado, que se sub-roga no seu direito no deslinde da lide.
Entretanto, há casos – aqueles em que o cumprimento da obrigação tem caráter
personalíssimo – em que o Estado não pode simplesmente lançar mão desta conduta,
tendo, portanto, que recorrer aos meios de coerção para atingir o fim almejado, podendo
a multa ser mencionada como exemplo de medida coercitiva.
Neste sentido, a multa que trata art. 461, § 4º, CPC, é uma técnica de
coerção psicológica do devedor, de modo a forçar o cumprimento de uma determinada
obrigação. Tal multa pode ser fixada de ofício pelo juiz, ela é o instrumento utilizado
com o fim de aproximar o direito substancial do direito processual. Assim, resta
asseverado que as astreintes consistem em uma multa periódica aplicada, em regra,
diariamente, sendo certo que o óbice à mutabilidade do valor não prospera.
Por esta razão, é cabível informar que a segurança jurídica de uma
sociedade não se esgota em ver o direito declarado, mas em fazer este direito ser
efetivo, ou seja, garantido e cumprido. Por isso, se faz necessária a imposição de
sanções severas, em caso de inadimplemento, para que o obrigado sequer cogite a
possibilidade de descumprir a ordem judicial. Desta feita, a multa pecuniária periódica,
fixada em observância ao princípio da proporcionalidade, constitui um instrumento
bastante hábil, ao mesmo tempo em que preserva direitos fundamentais do devedor.
Assim, para se dar um maior grau de coerção para as decisões judiciais,
faz-se mister conceber a autonomia da multa pecuniária em relação ao direito material
invocado. Isto porque sua exigibilidade imediata é inerente ao seu objetivo – a coerção
– pois que para haver uma coerção é importante que ela seja imediata e grave. Ademais,
o "fato gerador" da multa é o descumprimento da ordem judicial, que a posterior
improcedência pedido não tem o condão causar sua inexigibilidade.
Da verificação do Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade
Frente a realidade que se apresenta, tem-se que o Princípio da
Proporcionalidade e da Razoabilidade se afastam cada vez mais do caso em questão.
Isso porque, para uma empresa de grande porte, concessionária de serviço essencial,
sequer se abala ao pagar as multas colimadas pelo ato de cortar indevidamente o
fornecimento de energia elétrica.
13
Assim entende-se o princípio da proporcionalidade determina que se
estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição
normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possível. Já a
razoabilidade, por seu turno, como princípio geral de interpretação que impede a
consumação de atos, fatos e comportamentos inaceitáveis, penetra e constitui uma
exigência, não apenas da garantia do devido processo legal, mas de todos os princípios e
garantias constitucionais autonomamente assegurados pela ordem constitucional
brasileira.
Nesta amonta, resta claro que o valor da multa não é proporcional, por ter
dificuldades em atingir o fim colimado, nem tampouco é razoável, vez que a parte mais
fragilizada da relação, o consumidor, é quem sai prejudicado, por ter seu serviço
cortado, em alguns casos indevidamente.
Poder Geral de Cautela do Juiz e o Livre Convencimento Motivado
Por esta razão, é valoroso que se destaque o Poder de Cautela do Juiz em
consonância com o Princípio da Equidade; um dos princípios que regem o Código de
Defesa do Consumidor.
Como se extrai do art. 798 do Código de Processo Civil, tem-se a
legitimidade do juiz para ordenar providências previstas expressamente em lei e outras
que, embora não especificadas normativamente, sejam necessárias à proteção do direito
provável contra o dano iminente. Logo, verifica-se que o poder geral de cautela do juiz
é uma aptidão jurídica da qual está investido o magistrado para ordenar medidas
cautelares “nominadas” e “inominadas” se presentes os pressupostos do fumus boni
iuris e o periculum in mora.
Há quem afirme que é melhor é entender tal postulado como um poder-
dever: poder, posto que é o juiz o agente público titular da jurisdição e a ele compete
ordenar tais providências em conformidade com o artigo 5º, inciso XXXV, CRFB e
dever, porque, o magistrado fica vinculado ao deferimento da medida garantidora do
direito ameaçado.
Ainda, é possível afirmar que há uma certa dose de discricionariedade,
que está atrelada à noção de liberdade com a qual o magistrado deve avaliar a situação
existentes no caso concreto e, assim, determinar ou não a medida cautelar. Recorrendo-
se ao livre convencimento motivado (CF, art. 93, IX), cabe ao juiz examinar de forma
14
cautelosa as circunstâncias de cada caso para aferir a necessidade da medida, balizando
sua análise pelos critérios do fumus boni iuris e do periculum in mora.
Já no que se refere ao Livre Convencimento Motivado, apenas vale
mencionais que o juiz não mais fica preso ao formalismo da lei, antigo sistema da
verdade legal, sendo que vai embasar suas decisões com base nas provas existentes nos
autos, levando em conta sua livre convicção pessoal motivada. É certo, porém, que o
livre convencimento do julgador deve ser mantido pelo ordenamento processual, sendo
certo que tal direito não vincula o julgador a qualquer outra decisão.
Assim, extrai-se o entendimento do e. Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO CONTRA
ACÓRDÃO QUE NEGA PROVIMENTO A RECURSO
DE AGRAVO INOMINADO. AUSÊNCIA DE
CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU OMISSÃO.
AUSÊNCIA DAS HIPÓTESES ELENCADAS NO
ARTIGO 535 DO CPC. PRETENSÃO DE
REDISCUSSÃO DA MATÉRIA. EFEITOS
MODIFICATIVOS. IMPOSSIBILIDADE.
DESPROVIMENTO. O magistrado não está obrigado a
proferir julgamento de acordo com o pleiteado pelas
partes, pois vigora em nosso ordenamento o princípio do
livre convencimento motivado. Recurso conhecido e
desprovido. (2009.002.19644 - AGRAVO DE
INSTRUMENTO - DES. ELTON LEME - Julgamento:
23/09/2009 - DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE
OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM
INDENIZAÇÃO. DECISÃO QUE DEFERIU O PEDIDO
DE PROVA PERICIAL. INSURGÊNCIA DO
AGRAVANTE. 1- Pelo sistema do livre convencimento
motivado, chamado de persuasão racional, o juiz está livre
para formar o seu convencimento cabendo a ele avaliar a
necessidade ou não das provas que entender pertinentes.
2- A questão controversa diz respeito a responsabilidade
da agravada pelo vazamento de água nas instalações
hidráulicas de sua residência que estaria gerando a
cobrança de tarifa em valor superior, sendo pertinente a
prova pericial. 3- A decisão guerreada não se mostra
teratológica, tampouco contraria a lei, o que afasta a
possibilidade de reforma, nos termos do verbete 59 da
Súmula deste Tribunal. 4- Recurso conhecido. Negativa
de seguimento, na forma do art. 557, caput do C.P.C.
(2009.002.35322 - AGRAVO DE INSTRUMENTO -
15
DES. TERESA CASTRO NEVES - Julgamento:
14/09/2009 - QUINTA CAMARA CIVEL)
RECURSO DE AGRAVO INTERNO CONTRA
DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU
SEGUIMENTO A AGRAVO DE INSTRUMENTO.
AÇÃO INDENIZATÓRIA. INDEFERIMENTO DE
PROVAS. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO
CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO
RECURSO.1. Verifica-se que o juízo monocrático agiu
corretamente ao indeferir a produção de tais provas.
Cumpre salientar que vigora no nosso ordenamento
jurídico o sistema do livre convencimento motivado,
segundo o qual o juízo da causa está livre para valorar as
provas a ele apresentadas, decidindo quais se mostram
necessárias e suficientes para a formação do seu livre
convencimento, exigindo-se, no entanto, motivação das
suas decisões. 2. Aplicação do art. 130 do CPC no sentido
de que provas desnecessárias ao deslinde da questão
poderão ser indeferidas sem que isto represente
cerceamento de defesa ou ofensa ao devido processo legal
e ao contraditório, como pretende a agravante.
Desprovimento do recurso. (2009.002.17196 - AGRAVO
DE INSTRUMENTO - DES. MARCOS ALCINO A
TORRES - Julgamento: 08/09/2009 - DECIMA NONA
CAMARA CIVEL)
Princípio da Equidade
De fato, para a doutrina moderna, os conceitos variam de acordo com a
posição de cada doutrinador, apesar de todos os conceitos serem muito próximos, tal
como foi observado previamente no sentido gramatical atribuído ao vocábulo
“eqüidade”. Segundo De Plácido e Silva:
“Sendo assim, a eqüidade é a que se funda na
circunstância especial de cada caso concreto,
concernente ao que for justo e razoável. E,
certamente, quando a lei se mostrar injusta, o
que poderá admitir, a eqüidade virá corrigir o
seu rigor, aplicando o princípio em que nos vem
do Direito Natural, em face da verdade sabida ou
da razão absoluta. Objetiva-se, pois, no princípio
que modera ou modifica a aplicação da lei,
quando se evidencia de excessivo rigor, o que
seria injusto. Assim, diz-se que aequitas sequitur
16
legem (a eqüidade acompanha a lei). E jamais
poderá ser contra ela." 12
Ratificando este raciocínio e parafraseando as lições de Sílvio de Salvo
Venosa pode-se afirmar que diante da eventual severidade de determinada regra
jurídica, a eqüidade vem de suavizá-la, conformando-a às necessidades sociais que
reclama o caso concreto. Daí dizer-se, com propriedade, que a eqüidade nada mais é do
que uma manifestação de Justiça.13
Deste modo, ao classificar a eqüidade no universo jurídico hodierno,
percebe-se que esta se enquadra na interpretação, integração e aplicação do Direito.
Valida esta tese o ilustre jurista Miguel Reale:
“Interpretação, integração e aplicação são três
termos técnicos que correspondem a três
conceitos distintos, que às vezes se confundem,
em virtude de sua íntima correlação. (...) Antes
da aplicação não pode deixar de haver
interpretação, mesmo quando a norma legal é
clara, pois a clareza só pode ser reconhecida
graças ao ato interpretativo. (...) se
reconhecermos que a lei tem lacunas é
necessário preencher tais vazios, a fim de que se
possa dar sempre uma resposta jurídica,
favorável ou contrária, a quem se encontre ao
desamparo da lei expressa”. 14
A Problemática Das Lacunas Do Direito
É importante discorrer a questão levantada pelo Professor Miguel Reale
acerca das lacunas do Direito, uma vez que há problemática referente ao tema. De modo
bastante cuidadoso é possível dividir as teorias acerca das lacunas do direito em duas
correntes principais: os que não admitem a existência de lacunas no ordenamento
jurídico e os que entendem que é possível a existência de lacunas neste sistema.
12
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 312. 13
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral, São Paulo: Atlas, 2002, p. 50 14
REALE, Miguel, Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 297-298.
17
Corrente Da Completitude Do Direito
Nesta corrente prevalece a lógica Positivista, que tem como um de seus
maiores representantes, Hans Kelsen. Entende-se o sistema como sendo uno, pleno e
harmônico. O método adotado estritamente é o da auto-integração, o qual é possível
recorrer à analogia e aos princípios gerais do ordenamento jurídico, ou seja,
“o dogma da onipotência do legislador, de fato,
implica que o juiz deve sempre encontrar a
resposta para todos os problemas jurídicos no
interior da própria lei, visto que nela estão
contidos aqueles princípios que, através da
interpretação, permitem individualizar uma
disciplina jurídica para cada caso. O dogma da
onipotência do legislador implica, portanto, num
outro dogma estreitamente ligado ao primeiro, o
da completitude do ordenamento jurídico”.15
Nesta lógica, a legislação cumpriria o seu papel de modo eficaz,
justamente pelo fato de o Direito estar subdividido em suas variadas matérias, tendo,
portanto a capacidade de abranger todos os casos que vierem a surgir. Deste modo, as
lacunas não passariam de interpretações inapropriadas.
Corrente Da Incompletude Do Direito
Uma outra corrente a ser analisada é a que define o direito como um
sistema dinâmico, aberto e incompleto. O método basilar utilizado é o da hetero-
integração, deduzindo um juízo pessoal de eqüidade que permite ao jurista recorrer a um
sistema normativo (o da moral ou do direito natural) distinto do sistema do direito
positivo. Já dizia Portalis16
em seu discurso preliminar:
“Quando a lei e clara, é necessário segui-la;
quando é obscura, é necessário aprofundar suas
15
BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito, São Paulo: Ícone, 2006 p
.74 16
JEAN ETIENNE MARIE PORTALIS (1746-1807) teve o papel mais importante na comissão instalada
por Napoleão Bonaparte, em 1800, visto que a sua obra “Do uso e do abuso do espírito filosófico durante
o século XVIII” foi a principal inspiração para elaboração do Código Civil da França, posteriormente,
conhecido por Código Civil Napoleônico. Ele era jurista e político, enquadrando-se entre os liberais-
moderados.
18
disposições. Na falta da lei, é necessário
consultar o uso ou a eqüidade. A eqüidade é o
retorno a lei natural, no silêncio na oposição ou
na obscuridade das leis positivas”.17
Entretanto, pode-se dizer que o discurso de Porfilis é bastante atual, visto
que o próprio Miguel Reale é partidário do mesmo posicionamento:
“(...) mostrando que se podem superar as lacunas
do direito graças a normas de eqüidade, e que,
mediante juízos de eqüidade, se amenizam as
conclusões esquemáticas da regra genérica,
tendo em vista a necessidade de ajustá-la às
particularidades que cercam certas hipóteses da
vida social”.18
Neste contexto, fica comprovada a ineficiência do Direito ao tentar julgar
os mais diversos casos particulares, de modo justo, uma vez que cada caso engloba
peculiaridades muitas vezes omissas na lei. Para que se alcance o verdadeiro senso de
justiça, é preciso que o magistrado se valha de outros artifícios, de modo a proferir a
mais “suave e humana”19
(jus bonum et aequum) solução às lides. Assim, continua
Portalis em seu discurso, aduzindo que “seja lá o que se faça, as leis positivas não
poderão nunca substituir inteiramente o uso da razão natural nos negócios da vida”.20
A Eqüidade Como Meio De Interpretação, Integração E Aplicação De Normas
Vista a problemática acerca das lacunas do direito, volta-se para a função
da eqüidade no Direito. Conforme ensina Luís Recaséns Siches21
:
17
BOBBIO, Norberto, O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito, São Paulo: Ícone, 2006 p
. 77 18
REALE, Miguel, Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 300-301 19
CARVALHO FILHO, Milton Paulo de, Indenização por eqüidade no novo Código Civil, São Paulo:
Atlas, 2003, p. 18 20
idem nota 8, p. 75 21
Filósofo, abogado e historiador, hijo de padres españoles, pero nacido en Guatemala. Estudió en
Barcelona, Madrid, Roma y Berlín y fue catedrático de Derecho de las universidades de Santiago de
Compostela, Salamanca y Valladolid. Su especialidad fue la filosofía del derecho, que desarrolló
aplicando algunos de los principios esenciales Recaséns pensaba que es fundamental realizar una
adecuada integración entre la teoría de los valores y la esfera de la existencia humana para que aquéllos
no tengan el carácter de principios abstractos. Escribió, entre otras obras, La filosofía del derecho de
Francisco Suárez (1927), Estudios de filosofía del derecho (1935), Vida humana, sociedad y derecho
(1939), y más tarde, Nueva filosofía de la interpretación del derecho (1973) y un monumental Tratado
general de sociología (1978).
19
"El problema de la equidad no es propiamente
el de "corregir la ley" al aplicarla a determinados
casos particulares. Nos se trata de "corregir la
ley". Se trata de otra cosa: se trata de
"interpretarla razonablemente" (...) "Es un
dislate enorme pensar em la posibilidad de una
interpretación literal. Uno puede comprender
que a algunos legisladores, imbuidos por una
embriaguez de poder, se les haya ocurrido
ordenar tal interpretación. Lo cual, por otra
parte, resulta por completo irrelevante, carece de
toda consecuencia jurídica, porque el legislador,
por absolutos que sean los poderes que se le
hayan conferido, no puede en ningún caso
definir sobre el método de interpretación de sus
mandatos. El legislador podrá ordenar la
conducta que considere justa, conveniente y
oportuna, mediante normas generales. A esto es
lo que se pueden extender sus poderes. Em
cambio, esencial y necessariamente está fuera de
su poder el definir y regular algo que no cabe
jamás incluir dentro del concepto de legislación:
el regular el método de interpretación de las
normas generales que él emite. Pero, en fin, a
veces, los legisladores, embriagados de
petulancia, sueñan en lo imposible. La cosa no
tiene, no debiera tener practicamente ninguna
importancia, porque se trata de um ensueño, sin
sentido, al que ningún juez sensato puede
ocurrirsele prestar atención. (...) Ahora bien, es
sabido que las palabras cobran sua auténtico
sentido solo dentro de dos contextos: dentro del
contexto de la frase, pero sobre todo dentro del
contexto real al que la frase se refire, es decir
con referencia a la situación y a la
intencionalidad mentadas em la frase".22
Através de um paralelismo com texto acima transcrito, Floriano Correa
Vaz da Silva, busca sintetizar as idéias de Recaséns Siches que brotaram no século XX
e se estendem até hoje:
"equidade não é apenas um dos meios de
interpretação, mas sim o meio de interpretação,
aquele que engloba e sintetiza e permeia todos
22
RECASÉNS SICHES, Luís, Tratado general de Filosofia del Derecho, México: Editorial Porrua S.A.,
1959, p. 428
20
os meios de interpretação, aquele que constitui -
ou deve constituir - o único meio de
interpretação, (...) de todo o direito. Recaséns
Siches entende que, mesmo sendo a lógica
tradicional um instrumento indispensável para
criar a norma individualizada da sentença do
Direito, não é a mesma suficiente ao trabalho do
jurista. Para compreender e interpretar de modo
justo o conteúdo das disposições jurídicas, para
criar a norma individualizada da sentença
judicial ou da decisão administrativa, para
elaborar as leis, para interpretar as leis em
relação com os casos concretos e singulares, é
necessário exercitar ‘el logos de lo humano, la
lógica de lo razonable y de la razón vital e
histórica’ “.23
Finalmente, para sobre a discussão acerca da eqüidade no Direito, a
professora Maria Helena Diniz conclui:
"eqüidade ponderam-se, compreendem-se e
estimam-se os resultados práticos que a
aplicação da norma produziria em determinadas
situações fáticas. Se o resultado prático concorda
com as valorações que inspiram a norma, em
que se funda, tal norma deverá ser aplicada. Se,
ao contrário, a norma aplicável a um caso
singular produzir efeitos que viriam a
contradizer as valorações, conforme as quais se
modela a ordem jurídica, então,
indubitavelmente, tal norma não deve ser
aplicada a esse caso concreto. (...) A eqüidade
seria uma válvula de segurança que possibilita
aliviar a tensão e antinomia entre a norma e a
realidade, a revolta dos fatos contra os
códigos".24
Uma vez de posse dos conhecimentos acerca da função integradora do
Princípio da Equidade, cabe mencionar a função corretiva, que permite que o juiz
transcenda a lei para garantir a aplicação do justo, ou seja, “permite ao juiz, quando
23
SILVA, Floriano Correa Vaz da, A equidade e o Direito do Trabalho, Revista LTr, vol. 38, Editora
LTr, São Paulo, 1974, p.918-919; 24
Diniz, Maria Helena, "Compêndio de Introdução à Ciência do Direito", 8ª edição, Editora Saraiva, São
Paulo, 1995, p. 428;
21
tiver de afastar uma injustiça que resultaria da aplicação estrita da lei ou do contrato
ajustar a sua decisão ao caso que está tratando, para fazer um julgamento justo”25
.
Neste aspecto, leciona Cavalieri:
“A equidade é um princípio e uma técnica de
hermenêutica que deve estar presente em toda a aplicação
da lei. E é a essa equidade, pensamos nós, que se refere o
CDC, quando, no inciso IV, do art. 51, fulmina de
nulidade as cláusulas contratuais que sejam incompatíveis
com a equidade. A norma dá ao juiz a possibilidade de
valoração da cláusula contratual, invalidando-a (total ou
parcialmente) naquilo que for contrária à equidade e boa-
fé. O juiz não julgará por equidade (como no caso da
equidade integradora), mas dirá o que não está de acordo
com a equidade no contrato sob seu exame, dele
excluindo o que for necessário para restavelever o
equilíbrio e a justiça contratual no caso concreto”.
Da aplicação da multa por hora
Apesar de o Código de Processo Civil, expressamente mencionar que a
multa deve ser diária, independentemente do valor, em alguns casos específicos, como o
apresentado, percebe-se que a multa diária não atinge a finalidade com excelência, razão
pela qual há que se falar em um meio coercitivo mais rigoroso.
Vale mencionar que apenas aumentar infinitamente o valor da multa
diária não seria o mais adequado, posto que poderia ser compreendido como
enriquecimento ilícito e constante alvo de recurso que poderia vir a minorar o valor
estipulado pelo juiz de 1º grau.
Assim sendo, a multa por hora, parece ser uma alternativa, que segue o
método histórico-evolutivo, onde, em diversos casos, é preciso adequar a legislação,
com bom-senso, à realidade, a fim de que a norma não se torne apenas uma folha de
papel26
.
Deste modo, resta clara que a questão subsumida incide no campo
principiológico-normativo do Código de Defesa do Consumidor. Uma vez alegado
25
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do Consumidor. São Paulo: Atlas. 2008. p. 43. 26
Cf. LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição.
22
defeito na prestação de serviço e cobrança abusiva, por exemplo, tem-se verificado que
o fornecedor do serviço, na sistemárica da legislação consumerista, responde
independentemente da verificação de culpa, pelos danos decorrentes de defeito na
prestação daqueles. Vale dizer que a privação do consumo de serviço essencial por
débitos questionáveis, apontam para a urgência no restabelecimento do fornecimento de
energia, conforme art. 22, parágrafo único c/c art. 84, §§ 3º e 4º, CDC.
Conclusão
Frente a todo o estudo exposto, podem-se extrair algumas conclusões:
- Direitos e garantias fundamentais não necessariamente estão previstos
no art. 5º, CRFB;
- Em diversos casos, é necessário que o Estado cumpra prestações
positivas de modo a propiciar a efetivação dos direitos fundamentais;
- A prestação de serviço público essencial contínuo é um direito
fundamental, observado o disposto no art. 6º, Lei. nº 8.987/95;
- O corte de serviço público contínuo, como o fornecimento de energia
elétrica, por inadimplemento somente pode ser efetivado diante da prévia notificação ao
devedor e da comprovação do débito;
- O Estado pode delegar o serviço essencial de fornecimento de energia
elétrica através da concessão;
- A empresa concessionária, ainda que sofra a penalidade da aplicação da
multa diária nos casos de corte arbitrário/inconstitucional no fornecimento de energia
elétrica, ainda assim, continua reiterando esta conduta;
- A aplicação da multa diária aplicada à concessionária de fornecimento
de energia elétrica não se mostra proporcional, nem tampouco razoável, na medida em
que, não raro as decisões judiciais não são cumpridas prontamente;
- Nos casos em que a lei se mostre ineficaz e/ou obsoleta, é possível
recorrer à interpretação histórico-evolutiva, ao Poder de Cautela do Juiz, ao Princípio do
Livre Convencimento Motivado e ao Princípio da Equidade, a fim de dar efetividade à
norma.
23
Bibliografia
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limites e possibilidade da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 7ª ed.
atual., 2003.
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2008.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros.
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REALE, Miguel, Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 2002.
RECASÉNS SICHES, Luís, Tratado general de Filosofia del Derecho, México:
Editorial Porrua S.A., 1959
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro: Forense, 2002