pressupostos Ético-polÍticos da questÃo da democratizaÇÃo da comunicaÇÃo
TRANSCRIPT
PRESSUPOSTOS ÉTICO-POLÍTICOS DA QUESTÃO DA DEMOCRATIZAÇÃO DA
COMUNICAÇÃO1
Por Wilson Gomes
para Antônio Fausto Neto
Resumo: Este ensaio pretende defender e testar uma hipótese segundo a qual o debate acerca
da democratização da informação, em particular, e da comunicação, em geral, não está
formulado de maneira teoricamente relevante e eticamente defensável se permanece restrito ao
âmbito da política (aí incluída a legislação). Esta hipótese sustenta, pelo contrário, que a
discussão ética deve preceder, lógica e cronologicamente, a discussão política. Em seguida a
tal hipótese, oferece-se um esboço daquilo que deveria constituir a moldura conceitual e
normativa da discussão da questão da democratização das comunicações em termos de ética,
particularmente de ética política.
Sumário
1. Formulando o problema
2. Ética e Política
3. Horizonte Normativo de uma Ética da Dimensão Pública
4. A Ética da Dimensão Pública como Ética da Comunicação
1.
Formulando o Problema
Aparentemente, a questão da chamada "democratização da comunicação" é um problema
que se esgota nos limites teóricos e práticos da arte política. Como a arte política finda por ter o
seu fulcro na lei e na sua aplicação, a democratização da comunicação passa a ser vista como
uma questão de legislação. Para que a comunicação se democratize, dizem, é preciso que se
criem as condições de regulação política - quer dizer, de regulação legislativa -, da posse e uso
1 Capítulo originalmente publicado como GOMES, W. Pressupostos Ético-Políticos da Questão da Democratização da Comunicação. In: AA.
VV. (Org.). Comunicação e Cultura Contemporâneas, Rio de Janeiro: Notrya, 1993, p. 47-94. Esta coletânea abrigou os textos apresentados no I Econtro Nacional da Compós, no Rio de Janeiro.
dos meios de comunicação e que tais condições sejam democráticas. Precisamos, portanto, de
novas leis, leis democráticas, eficazmente aplicadas.
Claro está que a exigência da democratização da comunicação se funda num pressuposto
que, a este ponto da argumentação, ainda não foi demonstrado: a comunicação deve ser
democrática. O que, aparentemente, não provoca grandes problemas para a formulação da
exigência, pois há um claro princípio epistemológico, compartilhado quase a modo de senso
comum, segundo o qual aquilo que é evidente não precisa ser demonstrado, enquanto que,
antes, as outras coisas é que a partir dele se demonstram. O preceito da democratização parece,
assim, pôr-se acima de qualquer suspeita, ainda mais sendo o Brasil, em que o louvor à
democracia, tão poucas vezes experimentada na nossa história republicana, finda por levá-la ao
status de inquestionável.
Continuando, em termos muito simples, teríamos, nesse estágio da reflexão, um princípio e
duas conseqüências, uma de caráter ético, outra, operacional. O princípio, evidente e
consensual para quem quer que lealmente considere, reza que "a comunicação deve ser
democrática". A primeira conseqüência contém um juízo de fato e um juízo de direito. De fato,
diz-se, parece que no Brasil a prática da comunicação não tem sido democrática. De direito, é
preciso tornar democrática a comunicação neste país. A segunda conseqüência se oferece como
um postulado prático que visa, à luz do princípio geral, conciliar o juízo de fato com o juízo de
direito: é preciso construir leis que assegurem o exercício democrático da comunicação.
Isso dado, as questões posteriores poderiam ser todas questões operacionais. Em primeiro
lugar, questões em torno da correta e eficaz formulação de leis que, efetivamente, dessem conta
da exigência da democratização da comunicação. Impedir a formação de impérios da
comunicação (por ex. impedindo que um mesmo indivíduo ou grupo possua, ao mesmo tempo,
jornais e emissoras de televisão)? Impedir a posse dos meios de comunicação por políticos de
profissão, seus prepostos ou familiares? Possibilitar algum controle público (não evidentemente
"estatal", mas da sociedade civil) na produção e circulação da comunicação pelos grandes
meios?
Em segundo lugar, poderiam nos ocupar as questões centradas na possibilidade da
aprovação de tais leis, no jogo democrático do Congresso Nacional. Como obter o
consentimento da maioria do Congresso, supostos os caudalosos interesses políticos envolvidos
na questão da comunicação? Dado o clima político contemporâneo, em que a "intervenção do
Estado nos automatismos do mercado" (mercado de informação, sim) é considerada uma
suprema blasfêmia, como conseguir o apoio de liberais, liberalizantes e assemelhados a leis que
parecem transitar em sentido oposto à cultura política em vigor?
Todos problemas concernentes à arte política: A arte de construir leis justas e adequadas
para resolver os problemas identificados; a arte de negociar os interesses envolvidos de forma a
homologar tais leis pelo consentimento democrático. Entretanto, um sem números de questões
teóricas repousam, a modo de desafio, neste estágio do problema. Inclusive e sobretudo de
teoria da prática, isto é, de reflexão sobre ações eficazes. Ora, a reflexão dessa natureza tem a
vantagem de congregar de imediato várias energias que se empenham, portanto, no mesmo fim.
A inteligência nacional haverá de caminhar para um engajamento num tal problema candente e
vital. Tal capacidade de engajamento se deve, porém, não apenas à importância da questão, mas
sobretudo ao fato de que está aqui embutida a sedutora perspectiva de se produzir um efeito
sobre a realidade (equacionando-se, por conseguinte, o problema). Um tipo de racionalidade
que pelo menos desde Max Weber já é por nós conhecida.
Por outro lado, a teoria voltada para a ação eficaz, para o comportamento que produz efeito
na realidade, tem o principal defeito de ser demasiado concentrada na sua lide, perdendo de
vista, entre outras coisas, o próprio princípio, o horizonte de sentido de onde emerge. Ganhando
em eficiência, perde em radicalidade e em abrangência.
Com isso quero dizer que entender a questão da democratização da comunicação apenas
como um problema concernente à arte política, recorrendo e municiando-se de investigações e
outros estudos apenas em função de cálculos de eficiência operacional no âmbito político, nos
dois níveis que apresentei, parece-me demasiado pobre. E justamente pela razão acima
indicada, a saber, pelo fato de que a investigação voltada para a eficiência política, porque
demasiado concentrada em sua meta, não é capaz de pôr ou de reconhecer questões de
princípio. Assim sendo, por conseguinte, é incapaz até mesmo de apresentar as bases da própria
justificação. Quero dizer que questões do tipo "por que a comunicação deve ser democrática?"
ou "o que justifica um esforço político para a democratização da comunicação?" não têm como
ser reconhecidas neste âmbito de considerações. O que não quer dizer que os empenhos político
e teórico-político pela democratização não se justifiquem, apenas que esse empenho mesmo,
enquanto tal, não é capaz de dar razão de si.
Ora, alguma coisa está errada com uma teoria, com um âmbito de investigações, que deixe
inquestionados os próprios pressupostos, que não seja capaz de apresentar as bases em que se
justifica. Com efeito, enquanto não é capaz de dar razões das suas opções, não se distingue, em
princípio, da prática despótica ou fascista. Sabemos que há uma diferença essencial, pois a
prática política despótica se exime de dar razões das suas pretensões, enquanto se funda não
numa argumentação, mas na vontade, na autoridade e na força do arbítrio do déspota, enquanto
no nosso caso o eximir-se de apresentar as suas razões se deve ao fato de se estar trabalhando
sobre um consenso (imaginário ou real que seja) sobre os seus princípios e principais
argumentos. E a opção de considerar o problema da democratização preferencialmente do
ponto de vista da arte política supõe a evidência do seu princípio (a comunicação justa é a
comunicação democrática) e a exigência decorrente (a comunicação deve ser democrática).
Sendo a evidência do princípio da democratização da comunicação aquilo que funda a
prática e a teoria prática política que a deve favorecer, ao mesmo tempo em que a separa da
prática e da pretensão despótica, examinar tal evidência se torna, então, crucial. Porque se, de
fato, resultar que não há aqui evidência alguma que nos possa dar um fundamento seguro,
corremos o risco de uma contradição performativa, ou seja, de uma contradição em que a forma
e o desempenho da proposição negam o seu conteúdo, implodindo. Em suma, temos o risco de
que a proposição prática "a comunicação deve ser democrática" seja, paradoxalmente, uma
afirmação despótica, portanto, anti-democrática.
E para tornar as coisas ainda mais complicadas, a olhar bem, a idéia da evidência de tal
princípio revela-se problemática. Evidente é aquilo que de tal maneira satisfaz às exigências do
entendimento humano, que este, funcionando corretamente, não pode evitar recebê-lo e aceitá-
lo. Ninguém, raciocinando honestamente - funcionando conforme as leis do próprio
entendimento (a lógica) - , pode deixar de "ver" aquilo que é evidente. Uma pergunta, passa a
ser, então, inevitável: o fato de que a comunicação deva ser democrática e/ou democratizada é
evidente?
A esse respeito apresento, duas considerações. A primeira, versa sobre o tipo de evidência
que aqui pode ser exigido em face da espécie de discurso em que ela é apresentada. A segunda,
diz respeito à questão do consentimento de fato a este princípio.
Tradicionalmente, as questões evidentes apresentam formulações lógicas e ontológicas, isto
é, são questões que dizem respeito às leis do entendimento humano e ao estatuto mesmo da
realidade. Por exemplo, o princípio que diz que "duas coisas iguais a uma terceira são também
iguais entre si" ou aquela que reza que "o todo é maior que as suas partes" são princípios de tal
natureza. Aquilo que eles prescrevem tem valor em toda parte, em toda época e de forma que
todo indivíduo inteligente deve outorgar-lhes o seu consentimento. Em suma, têm validade
universal. Além disso, não há circunstância alguma que possa fazer com que aquilo que eles
prescrevem não seja tal como prescrevem: são também necessários.
Por serem formulações lógicas e ontológicas, tais postulados dizem respeito ao ser, àquilo
que as coisas são ou não-são. Este não é o caso de um princípio que diz "a comunicação deve
ser democrática". Não oferece uma prescrição quanto ao ser/não-ser, mas quanto àquilo que
algo deve ou deveria ser. Diz não o ser, mas o que deve ser. A sua universalidade não é uma
universalidade de fato, mas uma universalidade pretendida, de direito. A sua necessidade é uma
prescrição, não uma constatação. Portanto, não é de fato, nem universal, nem necessário, como
os princípios evidentes.
Poderíamos tentar resolver o problema através de um expediente. O "dever-ser" desse
postulado, é uma exigência decorrente de um anterior enunciado que se apresentaria do
seguinte modo: "a comunicação justa (boa, etc.) é a comunicação democrática". Com efeito,
temos aqui uma declaração parecida com os juízos lógicos, mas qualquer um pode reconhecer
que não se trata de um juízo de fato (que diz como as coisas estão), mas de direito (que diz
como as coisas deveriam ser ou estar). Uma declaração sim, mas não de nível lógico-
ontológico, bem mais uma avaliação sobre o modo como as coisas deveriam ser, se fossem
conforme os critérios justos, corretos, bons, etc.: "toda comunicação que pretende ser justa,
deveria ser democrática".
Pode-se até mesmo falar aqui de universalidade. Basta que o critério que funda tal princípio
possa ser reconhecido como válido para todos os homens, em todas as épocas. A universalidade
do princípio será, então decorrente da universalidade do critério. Pode-se até mesmo falar de
necessidade, mas não no mesmo sentido da necessidade lógica, pois as coisas até que
poderiam ser diferentes, mas não o deveriam ser. Uma universalidade decorrente e uma
necessidade mais fraca, analógica. Podemos, enfim, dizer, da forma mais simples, a
necessidade e a universalidade que envolve um tal princípio não é de natureza lógica ou
ontológica, mas de natureza ética. Estamos aqui em pleno nos critérios com base nos quais se
avaliam os comportamentos, as escolhas e as decisões humanas, inclusive no campo político.
Trata-se, pois, de juízos contendo universalidade e necessidade éticas.
Mas até isso pode ser questionado, nesse caso. E isto é justamente em que consiste a minha
segunda consideração: se o princípio da democratização da comunicação fosse evidente
(universal e necessário), porque então grande parte das pessoas não está convencida disto e esta
questão chega muito depois de quando poderia ter chegado (penso em relação ao estágio
tecnológico dos meios, p. ex.)? Um princípio evidente pode também não ser visto. Para tanto
conta a limitação do entendimento (pouca inteligência, p. ex.), erro no seu funcionamento (por
loucura ou desonestidade, p. ex.) ou ignorância (nunca me deparei com tal conhecimento, mas
uma vez que isso se der, serei capaz de reconhecê-lo como evidente). Ora, nenhum desses casos
pode ser honestamente alegado como razão para a ausência de consenso efetivo em face do
princípio, exceto, talvez, um: a desonestidade. Entretanto, serão desonestos todos os indivíduos
que não concordam com a democratização da comunicação, não a reconhecendo como uma
prescrição ética universal e necessária? Parece-me problemático dizê-lo.
E aqui entra em pauta uma questão que contínua e timidamente circundou este ensaio. Como
se traduz, concretamente, a "democratização", quando, como nesse caso, é aplicada à
comunicação? Significa que toda e qualquer pessoa deve, em princípio, poder apresentar
informações a outros através de meios técnico-institucionais? Ora, formulado dessa maneira,
esse princípio sem dúvida seria capaz de engajar todas as consciências. Aqui haveria um
consenso efetivo, creio. Sobretudo se formularmos de modo negativo: "a ninguém pode em
princípio ser vedado o direito de servir-se de meios técnicos-institucionais para informar a
outras pessoas".
Obviamente, uma afirmação dessa natureza não garante que, de fato, apenas alguns possam
servir-se de meios de comunicação para, justamente, informar. Ela apenas não veda que
qualquer um o faça. Desde que tenha os meios, desde que conheça as suas linguagens, desde
que tenha os recursos financeiros e institucionais necessários, desde que seja idôneo etc... O
que certamente é insatisfatório para aqueles que propugnam, atualmente, a "democratização da
comunicação". Pois, de fato, sendo que a "possibilidade em princípio" parece estar já
assegurada, havendo consenso a seu respeito, e, não obstante, estando muitos ainda a propugnar
"democratização", é razoável supor que "possibilidade em princípio" e "democratização" não
coincidem para tais propugnadores. O que significa, em palavras pobres, que o entendimento da
proposição "a comunicação deve ser democrática", seja lá qual for o seu significado, desde que
não seja este acima, não é consensual, não sendo, por conseguinte, evidente.
O que não nos dispensa de manter a questão sobre o que queira dizer "democratização da
comunicação". Ainda que não possa afirmá-lo com absoluta certeza (não por ignorância apenas,
mas pela extrema imprecisão com que o termo circula), creio poder conferir alguma
verossimilhança à seguinte proposição: democratização da comunicação significa a
impossibilitação de uma comunicação despótica. A comunicação despótica é aquela que se
sustenta pelos mesmos princípios do despotismo em geral: a) a desobrigação de apresentar
razões (não responsabilidade) das próprias escolhas e decisões (não visibilidade); b) a
desobrigação de se submeter às regras da argumentação, o poder de dizer e mandar ver, sem
ouvir (ausência do contraditório). Neste sentido, a comunicação democrática, seria o domínio
da a) responsabilidade (em sentido literal), b) visibilidade, c) possibilidade argumentativa do
contraditório.
Ora, se tudo isso repousa no princípio da democratização, este é tudo, menos evidente. Pelo
menos não tem aquele nível de evidência imediata que possa eximir os seus propugnadores de
apresentar as suas razões, justificar os seus fundamentos, exibir as suas bases. Antes, pelo
contrário, a discussão sobre a democratização da comunicação só pode deslocar-se com
legitimidade para o eixo político, uma vez resolvidas as questões de princípio. Essa
anterioridade dos princípios não significa, ademais, uma mera anterioridade temporal,
significando bem mais uma prioridade lógica. O que significa que a forma política de
consideração da problemática não está de modo algum justificada se, pelo menos, não supõe a
sua fundamentação na instância dos princípios. Uma fundamentação que, já pelos elementos
que conseguimos superficialmente levantar, não parece nada simples.
Em outros termos, a consideração política do problema da democratização da comunicação
jamais poderá ser considerada como fundada e, portanto, livre da contradição performativa, que
ronda ameaçadora, se não constrói as suas bases na consideração dos princípios que a movem.
E tais princípios, como vimos, nos remetem a um outro âmbito de considerações, ao campo da
ética.
Entretanto, não me parece que as coisas resultem bem esclarecidas se simplesmente
propomos a justaposição de dois âmbitos em que pode ser considerado o problema que nos
concerne. De fato, trata-se bem mais de duas ordens teóricas de discursos, onde se constituem
integralmente a mesma problemática: uma de caráter operacional, que diz respeito à arte
política; outra, de tipo ético, que tange diretamente à questão dos valores e critérios que
normatizam a ação. O que asseguro é apenas que a primeira ordem de discurso se justifica
apenas na discussão de teoria ética.
O que quero dizer se torna bem claro se admitirmos que o princípio "a comunicação
democrática é preferível à comunicação despótica" - que provisoriamente assumo como a
forma concreta que está à base da exigência ética da democratização da comunicação - , ganha
sentido apenas naquele âmbito de considerações que tradicionalmente chamamos de ética. E
que, portanto, os comportamentos e decisões políticas que visem operacionalizar tal princípio
também encontram o seu horizonte de sentido no campo da ética.
2.
Ética e Política
Os últimos acontecimentos políticos no Brasil introduzem, esperemos que de forma
definitiva, uma expressão e uma categoria cultural muito interessante: ética na política. A parte
o fato de que é teoricamente defeituosa, ela exprime uma inquietação e uma exigência
fundamentais: a inquietação pela moralidade no trato da coisa pública, a exigência de correção
nos comportamentos políticos. O mais importante, porém, é que à base de tais inquietação e
exigência há uma convicção socialmente compartilhada, segundo a qual as decisões e os
comportamentos políticos devem poder ser valorados e, por conseqüência, há de haver
critérios, universais, necessários e vinculantes, a partir dos quais tal valoração se estabeleça. O
que a tradição ocidental chama justamente de ética1.
Na verdade, o termo estabelecido por Aristóteles é teoria ética, o perscrutar cuidadoso e
atento das atitudes, escolhas e hábitos de comportamento dos homens. De tão cuidadoso e
atento ("teórico", em sentido grego) este perscrutar não se contenta apenas em mapear, de
forma descritiva, as formas de comportamento numa dada sociedade ou época, mas chegará
fatalmente a dar-se conta de que os costumes e usos comportamentais são sempre avaliados,
valorados por critérios vigentes para além da intimidades dos sujeitos ativos.
Assim, é possível não apenas a cartografia das atitudes e costumes de uma época ou povo
(ética como sociologia do ethos 2), mas também a descrição dos critérios com base nos quais se
avaliam os comportamentos e as escolhas numa dada sociedade (ética como teoria descritiva
dos valores) e, sobretudo, se indicam, a partir do segundo aspecto, quais os critérios que devem
ser respeitados por quem age (ética como teoria normativa dos valores). Nesse último caso, que
caracteriza mormente a teoria ética, não confundir normatividade com prescrição: a ética,
enquanto teoria, não prescreve o que deve ser feito (senão a teoria ética seria um fato ético, ela
mesma), mas indica as normas que a consideração atenta do fato ético em geral parece relevar
como válidas universal e necessariamente, como medida dos juízos morais, pelos quais todo
homem pode reconhecer o justo e o injusto, os bons e os maus éthé.
Entendo, portanto, como teoria ética a prescrutação com olhar atento e aguçado, a
investigação radical, das condutas, comportamentos e decisões práticas no teatro das relações
humanas (inclusive, do homem consigo mesmo, em sua intimidade). A teoria ética, dessarte,
evidencia a dimensão normativa, o horizonte de critérios ou valores que confere sentido às
valorações morais dos comportamentos - essenciais à convivência humana - presentes em
questões sobre o que é bom, o que é justo, o que é correto no contexto das ações humanas
cotidianas. Em outros termos, só a apreensão do horizonte dos valores nos torna capazes de
fundamentar, de justificar, portanto de outorgar sentido, às pretensões de intervenção prática
nas relações humanas e na realidade.
A este ponto considero justificado que abandonemos a normatividade dos comportamentos e
escolhas que dizem respeito à esfera da intimidade pessoal e aos aspectos subjetivos da conduta
(intenção, disposição interior), a que Hegel chamou de "moralidade", para que nos
concentremos no teatro das relações humanas, isto é, na normatividade das escolhas e
comportamentos que, de algum modo, dizem respeito a outro ou a outros homens. Podendo-se
fazer aqui ainda um ulterior recorte, restritivo, para nos ocuparmos com os comportamentos e
escolhas que provoquem efeitos que atingem a comunidade naquilo, justamente, que acomuna
os seus membros, a coisa pública. A teoria ética, nesse caso, volta-se para relevar a esfera
normativa de comportamentos e escolhas no nível daquilo que os gregos chamavam de política.
A este recorte no interior da ética, que visa relevar os valores que orientam escolhas e
comportamentos no teatro das relações em torno da coisa pública, se confere hoje o complicado
nome de ética política.
Em seu sentido originário, política é também adjetivo, aplicado provavelmente a téchné,
capacidade de realização, de elaboração. A "técnica política" (ars, em latim) ou "arte política" é
habilidade ou capacidade de ocupar-se da pólis, do conjunto de instituições, valores e coisas
que inere essencialmente a uma comunidade ou a um povo. Para os romanos, é arte de ocupar-
se da res publica ou causa publica. A res é o objeto de discurso, aquilo de que se fala
necessariamente, o "assunto"; a causa é aquilo que ocasiona, no sentido de algo que concerne a,
diz respeito a. Quanto a "pública", a sua "publicidade" consiste no fato de que - num caso como
no outro - a coisa inere, pertence da forma mais íntima, concerne sendo objeto de discurso e
negociação a um populum, isto é, a um conjunto de homens que se reconhece como
interessados, nestas instituições, valores e coisas, os cidadãos.
A "coisa pública" é, por conseguinte, o objeto do público argumentar e do público agir;
"público" quer dizer, por um lado, o que concerne ou interessa a um povo, a um conjunto
reconhecido de cidadãos, por outro lado, o que, dentro deste círculo de
interessados/concernidos, está aberto, disponível, exposto à intervenção argumentativa e prática
de qualquer um, que deixará, assim, de ser mero concernido para ser participante. Em suma,
publicidade quer dizer, ao mesmo tempo, concernimento (no público negociar na ágora ou no
fórum) e abertura (possibilidade, para qualquer um dos concernidos de intervir, a qualquer
momento, no commertium público).
Nesta concepção pragmática da política, entendida como o ocupar-se da "coisa pública (isto
é, daquilo que concerne aos co-cidadãos e está aberto à sua intervenção), está obviamente
incluída a práxis, a ação que se ocupa de algo, os comportamentos e as escolhas "segundo
costume" (katà tó éthós/ secundum consuetudinem). Uma "ética política" deve ser a teoria ética
que se ocupa dos comportamentos e condutas que concernem às negociações públicas ou ao
comércio argumentativo sobre o que concerne aos cidadãos; e que se ocupa das relações
práticas da mesma natureza. A teoria ética da arte política deve ser capaz de relevar o horizonte
normativo da "publicidade", o campo dos valores que normatizam a esfera pública.
O comércio argumentativo público, na polis como na civitas, significa a mediação entre as
várias alternativas de conduta e escolhas por parte dos interessados e concernidos. Sem querer
deslocar o horizonte das questões para o âmbito do por quê da ação humana, de qualquer modo
é inevitável admitir que, uma vez que apresento a política como o plano onde se negociam as
decisões e comportamentos que concernem ao público, não há como evitar questões sobre o
sentido e a razão da pluralidade constatável de possibilidades de ação. Em termos muito
simples, eu diria que quem participa de uma negociação política (uso negociação não no
sentido comercial, obviamente, mas no sentido das relações de mediação pelas quais se
estabelecem acordos, consensos ou assentimentos), apresenta sempre, nesta sua intervenção,
uma pretensão.
Esta pretensão é, em primeiro lugar, uma pretensão de reconhecimento próprio: afirmo a
mim mesmo como uma posição a ser considerada no âmbito da negociação pública. Em
segundo lugar, trata-se de uma pretensão de fazer-se valer: a minha posição firma uma
alternativa que pretende fazer-se valer em face de qualquer outra que lhe seja oposta. Aliás,
trata-se de uma mesma pretensão: o reconhecimento que pretendo é o conhecimento de que eu
me imponho, me firmo (ego valeo), de que valho, tenho valor, e de que este valor deve ser
garantido, em princípio, em face de qualquer outra alternativa, isto é, de qualquer outro sujeito
válido. Os comportamentos e escolhas políticas manifestam e concretizam, portanto, aspirações
de reconhecimento, pretensões de validade.
Por serem posições firmadas em face de quaisquer outras, as pretensões de validade estão
sempre inseridas numa rede de relações com outras pretensões, que vão desde a identidade, até
a diferença, a oposição, a contraditoriedade e o antagonismo. Por outro lado, as pretensões são
sustentadas sempre por sujeitos socialmente reconhecidos, portanto, não apenas indivíduos,
como também grupos de interesse, corporações, instituições diversas, indivíduos institucionais,
partidos, governos, organizações da sociedade civil etc. Tais sujeitos são imbuídos, portanto,
por força do concernimento e abertura pública, de valor e poder. No caso do teatro dos
interesses, o valor e o poder afirmado são, na verdade, frações de poder que se relacionam
visando expandir-se. Para tanto necessitando valer diante dos outros (pela outorga e obtenção
do consentimento de outras pretensões, por exemplo), através da força mobilizada para anular
as pretensões em contrário, através de subterfúgios para cooptá-las (corrupção e fraude, por
exemplo) ou através da obtenção livre do consentimento.
A esse ponto, a proposição segundo a qual "a política é a arte da mediação ou negociação
das pretensões de validade que têm em vista a coisa pública", parece bastante razoável. Mas a
"publicidade" (o público como objeto) das pretensões parece exigir igualmente a "publicidade"
das negociações (o público como meio). Tanto é verdade que as sociedades ocidentais, desde a
forma grega, vêm concretizando tal pretensão na forma de espaços físicos-institucionais da
realização da publicidade da negociação: a ágora, o fórum, o Parlamento... Espaços onde os
concernidos podem a qualquer momento tornar-se participantes (de forma mediada ou
imediata) da negociação pública.
Do mesmo modo, vai-se, enfim, delineando o sentido da ética política. Ela é sobretudo uma
ética da "publicidade", que visa a evidenciar o horizonte normativo da dimensão pública ou,
mais concretamente, da mediação pública das pretensões de validade que têm como objeto a
coisa pública.
3. O horizonte normativo de uma ética da dimensão pública
O reconhecimento do horizonte normativo da prática política e o reconhecimento da
exigência da mediação pública dos interesses práticos no campo político apresentam-se, por
conseguinte, nessa ordem de considerações, como a questão decisiva. Entretanto, ainda que o
bom senso prático tenda a sustentá-las, tais pressuposições não passarão de pios desejos
enquanto não aduzirem argumentos que as justifiquem. Principalmente neste fim de século,
nietzscheano e amoralista. Podemos antecipar objeções que tanto atingem a primeira
pressuposição quanto a segunda.
Em primeiro lugar, a idéia de normatividade, universalidade e necessidade dos valores que
são postos, assim, acima da vontade e da volubilidade individual e que escapam ao mero
imperativo do hedonismo, parece bastante desagradável à sensibilidade do nosso tempo. Com
efeito, como justificar um horizonte normativo em termos de ética, portanto vinculante, em
uma sociedade que parece ter-se constituído como reação a todas as constrições universalistas,
a todas as injunções públicas (da Lei, da Fé, da Tradição etc.) na esfera da privacidade; em que
a liberdade, como autodeterminação individual, parece ser o supremo dos valores?
Em segundo lugar, e no mesmo sentido, a exigência da negociação argumentativa dos
interesses regulada por regras de ética pública também não corresponde ao "hobbesianismo" ou
ao "darwinismo" político que constituem o habitat político da nossa sociedade. De fato, como
justificar a obrigação da "publicidade" das negociações políticas, numa sociedade para a qual a
liberdade, valor maior, significa liberdade-para autoafirmar-se em face de qualquer oponente
possível e liberdade-de ter que apresentar qualquer justificação outra a seu agir que não sejam
os direitos da própria liberdade?
É preciso, portanto, pelo menos um breve détour argumentativo no sentido de justificar, ao
menos em grandes linhas, as pressuposições da normatividade ética e da mediação
argumentativa dos interesses práticos. Não pretenderei, propriamente falando, formular uma
ética política. Como este ensaio se destina a apresentar argumentos em favor da tese segundo a
qual é preciso orientar em sentido ético (e não apenas político) a discussão sobre a
democratização da comunicação, bastar-me-á indicar o sentido e o alcance da orientação ética
da política, sem que seja preciso penetrar, ainda, na complicada problemática de uma ética
política na contemporaneidade 3.
Em vista das objeções que pudemos antecipar, a argumentação a seguir deverá ser capaz de
construir uma justificação pragmática: em primeiro lugar, do horizonte de normatividade ética;
depois, da exigência da mediação discursiva dos interesses e dos pressupostos que a regulam. O
roteiro da argumentação, portanto, começará da inegabilidade da constrição do reconhecimento
recíproco (contra a absolutez da vontade privada), para depois reconhecer os pressupostos, aí
implícitos, dentre os quais os que impõem e regulam a mediação.
3.1 - A inegabilidade do reconhecimento recíproco das pretensões de valor
Uma vez que Nietzsche parece ter desacreditado, para os teóricos da ética, o privilégio
dogmático da inegabilidade do fato moral como universal e necessário, em princípio, resta a
difícil tarefa, para quem, não obstante isso, continua pressupondo a existência de valores
universais e necessários, de justificar a sua pretensão em terrenos não dogmáticos. Como a
pragmática não parece ter sido atingida pela crítica da razão dos séculos XIX e XX, talvez se
possa por seus itinerários indicar a plausibilidade da tese que sustenta a inegabilidade do
reconhecimento do espaço normativo/reconhecimento recíproco das pretensões.
A pragmática enquanto disciplina se ocupa da práxis. Mas não de qualquer uma. Ocupa-se
da práxis sígnica, da ação de significar. Mas a pragmática é também uma escolha teórica em
campo gnosiológico e semiótico, segundo a qual objetos significados se constituem a partir da
ação humana (enquanto uso e emprego) e por ela se definem, definindo-se por aí também a
semiósis e o conhecimento. Há alguns anos começou-se a falar de pragmática transcendental,
tomando-se "transcendental" em sentido kantiano. Esta última não se ocuparia, como a
pragmática, das ações pelas quais se geram verdade, veracidade e sentido, mas das condições
de possibilidade de tais ações e de como se possa estabelecer a partir de tais condições um
horizonte normativo da prática social interativa. Assim, o problema específico do empenho
transcendental-pragmático seriam as condições que devem ser preenchidas para que seja
possível uma validação intersubjetiva das pretensões de verdade de descrições de situações e
ações, bem como das pretensões de correção normativa e orientações de ações.
É, portanto, numa perspectiva transcendental-pragmática que há de ser possível indicar a
plausibilidade do horizonte normativo de uma ética política. Tentarei fazê-lo em dois
movimentos: a) num movimento "prático", indicando como o reconhecimento da alteridade
como sujeito de valor é uma necessidade da autopreservação; b) num movimento propriamente
"pragmático", indicando como tal reconhecimento decorre de uma constrição inscrita no
próprio jogo pragmático da autoafirmação.
Sobre a: Aquilo que move os indivíduos à ação e à negociação prévia a determinadas ações
é a vontade de valer, a vontade afirmativa de posição ou afirmação de si. A vontade de valer se
desdobra tanto numa vontade de permanência (da vida, da consciência que não aceita o próprio
fim, p.ex.), quanto na vontade de satisfação das próprias necessidades (faltas reais e
imaginárias) ou no interesse (estado de fascínio diante daquilo que se reconhece como "digno
de valor", portanto, como desejável e amável). Só determinadas ações precisam ser negociadas,
outras nem tanto. A necessidade de negociação decorre da possibilidade de que as ações de
outros indivíduos venham a se interpor entre a minha vontade e a sua efetivação. Cria-se,
assim, uma espécie de teatro das relações ou teatro dos olhares, onde a vontade de valer torna-
se "vontade de valer em face do outro" (isto é, "para o outro ou contra o outro"), "vontade de
reconhecimento ou de ver-se reconhecido". Na negociação, os interesses e necessidade ainda
vigem como "pretensões" que devem ser mediadas diante das pretensões, atuais e possíveis, dos
outros.
Firmar uma pretensão de valor implica no reconhecimento desse teatro das relações. Um
reconhecimento que, a este ponto é meramente empírico. Mais grave é uma outra implicação: a
do reconhecimento do valor, em princípio, das outras pretensões ou reconhecimento da
legitimidade do outro. Este reconhecimento se respalda no fato empírico de que, em princípio
ao menos, no teatro das relações tudo posso, menos deixar de poder. Posso até admitir que
deixe de poder circunstancialmente ou em decorrência da negociação, mas a minha vontade de
valer não pode renunciar, desde o princípio, à prerrogativa de poder fazer-se valer. Seria
contraditório. Mas se eu devo poder sempre valer, em princípio, o outro também deve poder. Se
eu afirmo de mim isso, devo afirmá-lo também do outro.
Verdade? Não seria antes o contrário, no sentido de que se eu pudesse afirmá-lo do outro,
deveria também afirmar o mesmo de mim?
Afirmar que não se pode não poder, e que esta máxima vale para mim e para o outro, é a
afirmar uma espécie de espaço mínimo de autopreservação pela preservação recíproca. Se
não reconheço ao outro o direito de valer, o meu também não está garantido, porque nunca sei
se o outro, quando mais forte que eu (p. ex.), vai me permitir o mesmo ou não. Na prática, o
homem sempre se experimenta como con-vivente e reconhece, a partir das colisões e repulsões,
que o outro é sujeito de força antes de reconhecê-lo como sujeito de valor. Força que,
eventualmente, pode se voltar contra si mesmo.
Quer-se dizer, com isso, que na prática a afirmação de si só não pode se manifestar de tal
modo que finde por ser uma negação de si. Quer dizer que a afirmação de si, e só de si
(negação do outro), inaugura a possibilidade da afirmação "imperialista" de si por parte do
outro: o que é já reconhecimento do poder ameaçador do outro com respeito à minha
afirmação. Decorre daí uma espécie de implosão da própria vontade imperialista e o perigo de
"poder não poder" já de partida, da minha parte. Assim há como que um contrato de
preservação recíproca em princípio, que estabelece que há um teatro de relações onde cada um
vale quanto o outro, enquanto igualmente portador de interesses, pretensões e força.
Posteriormente um de nós pode até mesmo prevalecer sobre o outro, mas o essencial é
assegurar, de início, o reconhecimento recíproco de valor.
Sobre b: O reconhecimento pragmático decorre das constrições pragmáticas, ou seja, das
constrições inerentes às condições de possibilidade da ação de geração de sentido e enunciação
da verdade. Há constrições pragmáticas nestas condições, na medida em que estas devem ser
preenchidas ou satisfeitas para que determinadas ações se dêem perfeitas. Prossigamos com
ordem.
O que estamos procurando determinar é a inegabilidade da situação em que os indivíduos
humanos, mesmo movidos substancialmente pela vontade de valer ou de afirmação de si,
reconhecem como ineliminável o valor dos outros homens como, em princípio, idêntico ao seu.
O pressuposto é que, identificada tal situação nos encontraremos imediatamente no patamar
onde vige a ética. Em assim sendo, a questão da "inegabilidade" passa a ser de vital
importância.
Para que compreendamos o que quero dizer com "inegabilidade" sugiro uma pista, já
percorrida, com sucesso, por Karl-Otto Apel: a defesa aristotélica do princípio de não-
contradição. Para que a contradição seja evitada, sabemos disso desde Aristóteles, é preciso
seguir, ao pensar ou ao argumentar, o seguinte princípio: uma coisa não pode ser e não ser algo
ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. O que conduz à positiva afirmação de que a coisa
deve ser idêntica a si mesma, como A = A - o princípio de identidade.
O princípio que interdita a contradição é, na epistemologia aristotélica, o fundamento de
toda ciência: pressuposto necessário e primário de todo saber. A rigor, entretanto, é fundamento
de todo discurso, de todo entendimento entre indivíduos, portanto, de toda interação
argumentativamente mediada: pressuposto ineliminável da práxis discursiva. "Pressuposto"
quer dizer que toda a ação "lógica", toda ação que se sustenta na linguagem, é estabelecida a
partir deste vínculo fundamental que impede a contradição.
Sem este vínculo, esta constrição contratual inderrogável, nem o pensar, nem o dizer
(enquanto atividades "lógicas") são inteligíveis, portanto não são, a rigor, nem pensar, nem
dizer: a inteligibilidade se garante pela interdição da contradição. Por outro lado, ele tem
propriedades únicas em termos de conhecimento: todos já o sabem, mesmo quando não se
apercebem disto. Trata-se de um princípio evidente, antes, da evidência mais primitiva sobre a
qual se apóiam todas as outras.
Enfim, decorre do fato de ser um pressuposto pragmático que o princípio que ensina a evitar
a contradição é inegável. Não há forma de negá-lo sensatamente, isto é, se aquele que nega der
um significado ao que diz. Com efeito, quem afirmar a sua não validade, aceita pelo ato mesmo
de afirmar (in actu exercito), aquilo que nega. Isso decorre muito simplesmente do fato de que
para afirmar ou negar é preciso que se sustente que afirmar não é não afirmar e negar não é não
negar, o que é justamente aquilo que prescreve o princípio de não-contradição. Tal coisa não
significa que aquele que tenta negar o princípio de não- contradição esteja simplesmente
incorrendo em contradição, mas bem mais que, como o fundamento pragmático da negação é o
que ela nega, ela consiste na negação de si mesma, por conseguinte, na eliminação de si
mesma.
A constrição implicada no princípio de não-contradição é como que um vínculo que impede
o suicídio "lógico" do pensamento ou da ação linguisticamente sustentada, que impede que a
enunciação tenha que retirar-se no seu próprio ato de pôr-se. O que o princípio de não-
contradição ensina, afinal, é como se possa afirmar, negar, duvidar, perguntar de forma sensata,
como se deve formular uma afirmação, uma negação ou uma pergunta com sentido.
Para que reconhecéssemos o princípio de não-contradição como pressuposto pragmático-
transcendental da ação "lógica" firmamo- nos num outro pressuposto: a contradição deve ser
evitada. De forma que, de algum modo, estamos condenados a nos pôr, em algum momento, a
pergunta: por que a contradição deve ser evitada? Por que a identidade deve ser afirmada?
Porque negá-los seria contraditório. Ora, mas é justamente a contradição que se trata ainda
de justificar. Mas o que quer dizer contradição? Não apenas uma mera incoerência no
silogismo, uma espécie de defeito no raciocínio ou na afirmação. A contradição é uma
aparência de raciocínio ou afirmação que se elimina assim que se manifesta, porque se funda
naquilo que nega.
Além disso, se esta característica é indicada na inegabilidade do princípio de não-
contradição, a rigor ele não detém apenas essa propriedade, digamos, negativa. O princípio que
interdita a contradição o faz em nome de uma outra coisa: da afirmação da identidade.
Identidade de quê? Aristóteles nos ensina de que identidade se trata, ao falar sobre a condição
única e absoluta para a inegabilidade do princípio de não- contradição: aquele que tentar negá-
lo deve dar um significado às suas palavras, pois se o que ele diz nada significa, seria ridículo
pedir-lhe razões uma vez que, raciocinando, não pode dar razão alguma de nada (Metaf., G,
1006 a).
Trata-se da afirmação da identidade do sentido ou significado do enunciado ou do
pensamento que se constitui linguisticamente. E o sentido ling_ ístico, por sua vez, não se
explica pelo indivíduo falante, antes, vige como um vínculo que se impõe sobre falantes e
ouvintes. O sentido é autônomo, em face do pontual falar e pensar que nele se exercem. O
entendimento e a razão humana em geral funcionam na trilha do sentido e da sua autonomia em
face dos indivíduos. O que significa que, na verdade, como não há língua privada, tampouco há
pensar ou falar privados. A "autonomia" em face do querer privado decorre do fato de que o
significado é instituído. Na tradição, firmaram-se contratos inderrogáveis pelos quais eles são
estabelecidos.
Mas a identidade de sentido consiste exatamente em um outro fenômeno, típico da
linguagem, pelo qual os significados são estabelecidos e usados numa rede de relações
opositivas. Os significados funcionam assim como unidades "contratuais" segmentadas e
pertinentizadas pela comunidade instituinte, do contínuo perceptivo comum. Não sendo
naturais, mas instituídas, estas unidades como que existem num cadeia de subtrações - uma é
aquilo que a outra não é - ou de identidades - aquilo que uma é, é o seu pecúlio, aquilo que a
configura e que se veta a qualquer outra. Dobrar-se a este vínculo contratual instituído, que é o
próprio vínculo semântico a que está submetida qualquer comunidade ling_ ística, significa
obedecer ao princípio de identidade. Condição necessária para toda práxis de argumentação
com sentido e para todo pensar autêntico. Chamo a atenção para o fato de que mesmo a mais
privada das ações, o pensar, tenha necessariamente que se submeter, para que exista, ao vínculo
pragmático da identidade de sentido.
O princípio de identidade é, assim, uma proibição de trapaça de sentido e quer dizer
simplesmente: se você quer pensar, isto é, fazer funcionar o seu intelecto segundo sentidos
públicos, então algo não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e sob a mesma capacidade, uma
unidade de significado não pode ser si mesma e não ser si mesma (ser outra unidade). Isso
porque há um vínculo prévio que estabelece o que pode e o que não pode ser feito; vínculo que
me obriga a reconhecer a não absolutez da minha vontade e a imprescindibilidade do contrato
de reconhecimento recíproco dos falantes.
O mesmo acontece seguindo-se o princípio de não- contradição. Porque este está, afinal de
contas, a indicar, que quem nega ou afirma algo se opõe a uma determinada tese, esperando,
portanto, que a sua oposição e o princípio de não- contradição que é suposto como válido
levem o oponente a retirar a sua tese. O que significa que o princípio de não contradição
funciona como regra intersubjetivamente válida, sem a qual, obviamente, não tem sentido
sequer a idéia da escolha entre duas alternativas. Dessa forma, também aqui o meu querer
privado se revelou como não decisivo em nível pragmático, já que se viu forçado a se submeter
à regulação intersubjetiva.
Portanto, os princípios de não-contradição e de identidade como regras do funcionamento
(indivídual, os entendimentos são indivíduos) do entendimento valem apenas porque antes vale
o lógos, o sentido, público, objetivo. É, portanto, evidente também uma acomunação de
sentidos que funciona como condição ou sítio (situação) do exercício lógico e da validade dos
princípios evidentes.
Há uma espécie de vínculo pragmático público sobre o privado. A sua validade determina,
ao mesmo tempo, a validade de cada co-pensador e interlocutor virtual ou atual que sejam.
Assim, a afirmação da evidência pragmática de um sítio de sentidos intersubjetivamente válido
(única possibilidade para que qualquer pensar ou dizer possam ser sensatos), implica na
afirmação de cada indivíduo inteligente e argumentante como interlocutor válido. Dar-se conta
da situação de sentido, e do fato do sentido com valor além da intimidade, implica em dar-se
conta de que o sentido não começa nem se esgota em mim (antes, pelo contrário), mas é um
vínculo que me liga ao outro. Se a vinculação intersubjetiva de sentido é já sempre aceita por
quem pensa, a afirmação contrária gerando uma contradição, portanto um desmentido que
verifica a tese, a validade do outro como exercitante do jogo público de sentido também não
pode ser negada. Pensar e falar são essencialmente públicos, portanto, intersubjetivos,
dialógicos. Ninguém pode seguir uma regra sozinho; não há regras para um sozinho. A situação
interativa é primária e inegável.
Prático ou pragmático que seja o reconhecimento do valor próprio/reconhecimento do valor
do outro (reconhecimento do parceiro como sujeito de pretensão válida em princípio), em
princípio, significa uma limitação, uma constrição até, que atinge as práticas e locuções
autoafirmativas. Tal constrição, em suma, consiste num condicionamento inevitável da minha
práxis, enquanto portador de interesses.
3.2 - O horizonte normativo do confronto prático de interesses e pretensões
Reconhecido o outro, está reconhecida a necessidade de um teatro das relações. O que
significa que a minha vontade de valer, quando, para a sua realização, provoca algum efeito que
concerne ou atinge o outro, se realiza num teatro das relações, se efetua em face do outro. A
vontade de valer, que repousa nos interesses e necessidades, se traduz, então, em pretensões
que se firmam de fronte das outras, em uma rede de oposições, como contraditórias, contrárias
ou conversas. Tal "defrontar-se" é um confronto prático, que precisa ser formulado ou, pelo
menos, apresentado ao outro para que possa ser considerado e, portanto, possa eventualmente
prevalecer. A questão passa a ser então a seguinte: quero fazer-me valer, realizando a minha
pretensão diante dos outros, como faço? Devoro-os ou negocio com eles, imponho-me pela
força ou argumento? Estabeleço uma luta estratégica pela auto-afirmação ou estabeleço um
acordo utilitarístico que me beneficie?
Creio que, uma vez afirmado que a entrada na vida social se dá pelo reconhecimento do
outro, está estabelecido um caminho que nos levará a um horizonte de normatividade ética que,
por sua vez, leva fatalmente ao imperativo da mediação argumentativa dos conflitos práticos.
Mas como? Desdobrando os pressupostos paradigmáticos do teatro das relações, ou seja,
perguntando-se quais são os pressupostos da necessária práxis de afirmação das pretensões.
Quem apresenta uma pretensão prática (na forma de um argumento qualquer, de uma
intenção de ação etc.) não importando o seu conteúdo, ao mesmo tempo e por força de
constrições paradigmáticas inscritas no próprio ato de apresentar, apresenta outras pretensões-
acompanhantes ou co-pretensões, que não podem ser negadas sem que se negue a própria
possibilidade de se pretender - o que, de resto, é impossível visto que de fato se está dando
uma. O conjunto de pressupostos inegáveis, reconhecidos implicitamente, constitui o horizonte
normativo mínimo, que vincula intersubjetivamente: uma ética mínima da dimensão pública.
As normas de ação de uma interação de pretensões, que devem ser sempre já aceitas para
que uma pretensão se apresente, poderiam ser esboçadas do modo seguinte:
1. a) Quem quer que apresente uma pretensão prática (uma pretensão cuja realização deve
provocar efeitos em termos práticos) está sujeito a uma situação de conflito de interesses, atual
ou virtual, enquanto esta pretensão pode ou poderá entrar em conflito com interesses contrários
ou diversos.
Trata-se de um princípio prático, que, portanto precisa apenas do bom senso para ser aceito..
1. b) Quem quer que entre em um conflito específico no teatro de interesses propõe, em
primeira pessoa, a pretensão de superioridade/verdade de uma posição defronte de outros
sujeitos de interesses.
Em se tratando de um princípio pragmático, a sua inegabilidade decorre com força lógica da
análise da tentativa de negá-lo. Assim, quem afirmasse que dada posição que apresenta não é
sustentada por sujeito (ou sujeitos) de interesse não poderia entrar numa disputa a ser mediada
com quem sustentasse uma posição oposta; no campo da mediação ele não poderia refutar
nenhuma outra posição, se fosse coerente. Não podendo afirmar ou contrapôr-se, a sua
pretensão seria irrelevante na situação de mediação.
2. Quem quer que apresente uma pretensão prática num teatro de interesses pressupõe e aceita o
dever normativo de pôr-se de acordo com os outros parceiros da interação acerca do sentido
dos enunciados em que a pretensão se dá e das condições da sua validade.
Não se pode, em suma, postular a verdade/superioridade de uma posição defronte de outros,
sem que haja acordo em torno do sentido da enunciação em que se expressou a pretensão. Essa
norma da competência interativa supõe o estabelecimento de contratos lingüísticos e impõe a
fidelidade a tais contratos, - conditio sine qua da possibilidade de compreensão do sentido da
pretensão e do acordo sobre a sua validade -, por parte da pretensão numa interação, enquanto
esta há de ser argumentativa.
3. Quem quer que apresente uma pretensão prática, pressupõe e aceita o dever normativo da
sinceridade (interdição à mentira), isto é, afirma implicitamente a sua real convicção quanto ao
que postula e pretende, comprometendo-se tacitamente a afirmar só aquilo de que está
convencido.
Não há como negar sensatamente esta norma sem que a pretensão enunciada se torne
imediatamente contraditória consigo mesma em termos pragmáticos. Afirmar algo e ao mesmo
tempo dizer que não se sente forçado a afirmar o que realmente se crê, é contribuir para
nulificar pragmaticamente o conteúdo da afirmação, na medida em que permite que a sua
pretensão não seja levada a sério. Quem não reconhece a validade da norma da sinceridade,
torna-se, para os outros parceiros, um mentiroso virtual, portanto um mau parceiro. Entretanto,
afirmar a validade da norma de sinceridade não significa não poder, de fato, transgredi-la; mas
mesmo quem mente, o faz porque reconhece, de direito, o dever normativo de veridicidade,
sem o qual não se pode enganar os parceiros de uma negociação.
4. Quem quer que apresente uma pretensão prática pressupõe e aceita normas que regulam o
desenrolar-se da negociação, entendida esta como interação entre os diversos sujeitos de
interesses. Tais normas estão voltadas para garantir a simetria da situação interativa.
Quando me disponho a entrar numa situação interativa afirmo que a minha pretensão é válida
defronte de qualquer outra que foi apresentada ou o possa ser. A minha é a melhor. Pode-se
fazer isso e, ao mesmo tempo, implodir a situação interativa, afirmando que a minha pretensão
é a melhor porque é a minha pretensão. Nesse caso, nem se ultrapassou a soleira da situação
interativa, porque a minha pretensão só aparentemente oferece um juízo sobre os seus
conteúdos; na verdade, oferece um juízo sobre mim: eu - aquele que sustenta a pretensão - sou
ao mesmo tempo o seu conteúdo. Nesse caso, eu sou quem a sustento e imponho-me sem
negociação diante dos outros.
Mas se pode também sustentar que a minha pretensão é a melhor mesmo tendo penetrado na
situação interativa e visando, ainda assim, preservá-la. Nesse caso, quero dizer que qualquer
um dos parceiros da negociação, atuais e virtuais, deveria poder reconhecê-la como a melhor. A
sua superioridade pode se submeter e superar o juízo de qualquer integrante da situação
interativa. Ao fazer isso, porém, estou dizendo que qualquer parceiro da negociação é capaz de
julgar e demonstrar, em princípio, a falsidade da minha pretensão. Mas não se trata apenas do
reconhecimento da "capacidade de julgar", portanto, de concordar ou discordar do sentido e da
verdade dela. Com a admissão de que a sua superioridade poderia ser reconhecida pelos
integrantes da negociação eu me introduzo na situação argumentativa. Mas ela não sobreviveria
se, mesmo assim, eu não submetesse a minha pretensão ao (que me seja perdoada a rima
involuntária) efetivo crivo, em situação de interação, de argumentatação, dos parceiros,
afirmando que todos poderiam reconhecê-la como a melhor, mas que só aceito o meu
reconhecimento como válido. Apresentar uma pretensão e negar valor ao consenso, subtraindo-
se à negociação é o mesmo que dizer que a pretensão é a melhor dentre outras, mas não deve
ser comparada, ou que todos poderiam reconhecê-la como boa, mas não devem. Seria como
admitir a situação interativa, para depois implodi-la. O que é o mesmo que não aceitá-la.
Para a preservação da negociação (e a minha preservação) não me resta, enfim, senão a
alternativa de um compromisso, da minha parte, de escutar o assentimento ou o motivado
dissenso dos participantes da interação. Portanto, se a apresentação de uma pretensão significa
afirmá-la como merecedora de consenso ou acordo com todo parceiro possível sobre a sua
verdade e sentido, significa também a submissão efetiva ao desdobramento argumentativo da
negociação na qual a pretensão se firma ou se retira. Aceitada, então, e por força das coisas, a
situação interativa, não há como negar validade às regras que essencialmente à regem: toda
negociação é governada por regras, sem as quais, a rigor, não ha situação interativa.
Parafraseando Habermas, as regras que ao mesmo tempo regulam e garantem a preservação
da situação interativa podem ser as seguintes:
1. Todo sujeito capaz de falar e agir pode participar de negociações de interesses;
2. a) Qualquer um pode problematizar e/ou opôr-se a qualquer pretensão ou argumento;
b) Qualquer um pode introduzir na negociação qualquer pretensão e qualquer argumento;
c) Qualquer um pode expôr suas disposições, desejos e necessidades numa mediação de
pretensões;
3. Não é lícito impedir a um sujeito de pretensões, por meio de coação exercida de dentro ou
de fora da situação interativa, que se valha dos seus direitos, como apresentados em (1) e (2).
A estas acrescento, por minha conta, uma outra:
4. As negociações nunca se concluem em definitivo. Qualquer sujeito de pretensões pode
reabrir uma negociação já decidida.
Mas a situação interativa exige normativamente também a igual possibilidade, para cada um
dos parceiros, de iniciar e continuar negociações. As regras que vigem sobre a negociação
prescreve, assim, uma situação interativa em que estão preservadas duas condições, que se
podem exprimir em duas normas:
5. a) Todos os parceiros da negociação devem ter iguais oportunidades de valer-se de ações
expressivas (p. ex. atos lingüísticos) - de poder manifestar suas intenções, seus sentimentos,
suas aptidões;
b) Todos os participantes da negociação devem ter iguais oportunidades de valer-se de
ações regulativas - ordenar e recusar, permitir e proibir, fazer e receber promessas, dar e pedir
conta etc.
Sem a primeira norma não se garante a possibilidade da expressão veraz e sincera; sem a
segunda, não se protege a negociação das constrições extra-interativas, portanto, não se garante
a possibilidade igual de iniciar e continuar discursos.
Quem apresenta uma pretensão, por se introduzir numa situação interativa, participa de uma
negociação governada por estas regras às quais os pretendentes devem ajustar-se por constrição
pragmática. Reconhecida a inegabilidade da situação interativa e do valor idêntico (igual
direito) dos parceiros das mediações de pretensões, não há como negá-las sem uma
contradição.
Assim, temos que cada pretensão de fazer-se valer, cada pretensão de validade, é ao mesmo
tempo e por conseqüência pragmática uma pretensão de sentido, uma pretensão de verdade,
uma pretensão de veracidade. Mas uma pretensão de validade pretende-se, também, justa ou
adequada com relação às normas do funcionamento da situação interativa.
Até aqui foi possível compreender que quem quer que apresente uma pretensão prática
defronte de outros homens, reconhece e se compromete a respeitar a situação interativa. É
preciso ainda refletir sobre o significado deste reconhecimento. Ora, este é, em primeiro lugar,
o reconhecimento de todos os parceiros da interação como portadores de pretensões igualmente
válidas. Mas apenas nos damos conta de que a interação só pode ser o confronto prático,
argumentativamente mediado, dos desejos e necessidades formulados e apresentados como
pretensões, em que participam todos os interessados, apenas reconhecemos isto nos damos
conta de que aqui se esconde muito mais do que aquilo que se manifesta à primeira vista.
Em primeiro lugar, é claro que, em princípio, todos os interessados podem apresentar
pretensões de validade em um âmbito de conflito prático. Vimos como isto é fundamental para
a preservação da situação argumentativa. Entretanto, no que se refere a conflitos práticos, o
círculo dos concernidos é necessariamente sempre maior do que a dos participantes, enquanto
mesmo aqueles que atualmente não estão interessados num horizonte determinado podem vir a
sê-lo, ou, mesmo, aqueles que não se encontram em condições de apresentar uma pretensão
(porque não nasceram ainda, p. ex.) são membros virtuais da mediação. Uma situação
interativa que, de alguma forma, inclua todos os concernidos, há de ser uma situação ilimitada
e ideal. Assim, uma situação interativa real de algum modo se distingue de uma situação
interativa ilimitada e ideal, enquanto esta última inclui os concernidos.
O que cria uma espécie de vínculo ou obrigação por parte da situação real (os participantes
atuais) em face da situação ideal e ilimitada (concernidos, participantes reais e virtuais): a
comunidade real da interação reconhece a sua provisoriedade e a sua obrigação antecipatória
em face da comunidade ideal. O juízo da comunidade real deve, para ser adequado ao horizonte
normativo da interação, no seu efetuar-se, considerar todas as pretensões, mesmo aquelas que
poderiam ser apresentadas, mas não o foram, pelos membros virtuais da interação. Todas as
necessidades e interesses humanos, enquanto pretensões virtuais, transformam-se, assim,
mesmo sem a mediação de uma pretensão atual, em exigências ou solicitações da comunidade
da interação, e estas devem negociar-se argumentativamente, em vista do consenso, com as
necessidades de todos os participantes atuais da negociação.
Como a apresentação de uma pretensão, dizíamos, nos submete ao juízo dos participantes da
situação interativa, ou seja, a uma comunidade de sentidos e de negociação, esta comunidade só
pode ser o horizonte normativo da comunidade ideal e ilimitada da interação, "antecipada"
pelos participantes da comunidade real da argumentação. O que significa que o horizonte
normativo da interação obriga aqueles que, efetivamente, podem manifestar uma pretensão a
buscar um acordo que considere as pretensões virtuais de todos os parceiros da comunidade
ideal e ilimitada da comunicação.
Em outros termos, quem quer que apresente uma pretensão prática em face de outros
homens obriga-se a reconhecer como normativamente válidas aquelas pretensões, e somente
aquelas, que poderiam ser aceitas em decorrência de uma negociação argumentativamente
mediada em uma comunidade ideal e ilimitada da interação. O que significa: a) que a pretensão
normativamente aceitável é apenas a que seria reconhecida no confronto prático,
argumentativamente mediado, sem limites de todos os concernidos; b) que quem entra numa
interação se submete ao juízo, em última instância, da comunidade ilimitada da interação,
reconhecendo que o julgamento da pretensão justa é o resultado de uma interação sem
limitações; que se essa comunidade conseguisse um acordo sobre determinadas normas, estas
poderiam ser consideradas válidas.
Assim, se para Kant e o Iluminismo a normatividade ética nos compromete a fazer o que nos
corresponde como membros da comunidade da razão, neste caso, compromete-nos a fazer o
que nos corresponde como membros da comunidade ideal e ilimitada da interação.
Mas a comunidade ideal não se opõe à comunidade real no sentido que diante daquela esta
perca o seu valor. Só na comunidade real, concreta, pode se realizar por "antecipação" a
comunidade ideal e ilimitada. O que não significa que a comunidade ideal e ilimitada seja uma
utopia a se esperar realizada no tempo e no espaço. É apenas uma idéia normativa e, num certo
sentido, como veremos, um ideal. Concretamente nunca se dará uma comunidade ideal e
ilimitada da interação: ela indica apenas que a norma fundamental da ética da interação
garante-se a partir dos concernidos (e não apenas dos participantes), cuja "assembléia" funciona
como ideal normativo das decisões pontuais.
No caso, entretanto, de interesses que não podem ser generalizados, que eventualmente não
provoquem interesse nos outros homens, exceto nos participantes, é óbvio que comunidade
ideal e real coincidem, mesmo normativamente. Além disso, pode-se supor com alguma
plausibilidade que a capacidade antecipativa, isto é, a capacidade de colocar em pauta as
pretensões virtuais, é sempre limitada e nem sempre por má-vontade. O que significa, tanto
num caso como no outro (tanto no caso dos interesses não generalizáveis, quanto das limitações
- excluída a má-vontade e a repressão - da possibilidade plena de concretização da comunidade
ideal) vale a exigência da busca de um equo compromisso, ou seja, de compromissos
negociados, desde que exclúam o uso da ameaça ou da força.
O que significa que, em todo caso, não há apenas a obrigação de remeter-se ao julgamento da
comunidade ilimitada da comunicação, como horizonte normativo último e vinculante
universalmente; há também a obrigação de se buscar e conseguir a mediação argumentativa,
portanto o consenso, para todo conflito de interesses e pretensões. A comunidade ilimitada e
ideal da mediação resta o horizonte maior, o equo consenso, a quota mínima, abaixo da qual
não se instaura uma pretensão justa e, em certos casos, o máximo que se pode conseguir.
Até aqui temos um horizonte normativo, que prescreve as condições suficientes para que os
homens possam harmonizar entre si suas pretensões e projetos práticos, que exige a renúncia à
luta estratégica pela auto-afirmação, que postula a obrigação de resolver interativamente os
conflitos de interesses e necessidades, que conduz à formação interativa da vontade, que define
como justas apenas as normas que brotariam de um confronto interativo, mediado
argumentativamente, ilimitado (sem limitações) e ideal (que inclua virtualmente todos os
concernidos).
Na verdade, nós temos também, incrustrada neste horizonte normativo, uma série de
conseqüências, naturalmente de caráter ético, que nos fornece um critério de julgamento com
respeito às formas reais de sociedade e de Estado, bem como quanto ao modo do exercício
concreto e real, em tais sociedades, da arte política. Assim, decorre, em primeiro lugar, deste
horizonte normativo, universal e necessário, como que uma definição da forma justa de ordem
social: aquela que torna possível a situação interativa ideal e ilimitada entre os sujeitos de
pretensões práticas. Em segundo, podemos avaliar as práticas políticas e as ordens sociais
concretas pelo mesmo critério: quanto mais próximas da garantia da situação interativa ideal e
ilimitada, mais justas.
Em que elementos concretos traduzir-se-ia esta garantia e proximidade da situação interativa
ideal? Que materialidade deveria ter os seus princípios formais para que uma sociedade
pudesse ser considerada justa? Para responder a tais questões basta que se retome os princípios
que prescreviam a situação ideal e concretizá-los como descrição.
Assim, uma sociedade justa deveria garantir a todos os sujeitos as mesmas possibilidades de
participação na negociação das pretensões. Isto quer dizer que, por um lado, em tal sociedade
devem ser excluídas quaisquer constrições impeditivas; por outro, nelas todos os indivíduos
deveriam poder ser capazes de sustentar, apresentar e defender, argumentativamente e
praticamente, as próprias pretensões - portanto, as próprias necessidades, interesses, desejos,
opiniões.
Deparamo-nos aqui com uma categoria atualmente em voga: a cidadania, a faculdade de
participar dos negócios públicos. Ora, não há cidadania, não há possibilidade garantida a cada
concernido de intervir na negociação pública das pretensões, se não se assegura a todos a
"competência argumentativa": domínio do código e dos instrumentos em que se processa a
negociação, posse das necessárias informações, cultura, capacidade efetiva de acesso às esferas
institucionais da negociação. Mas tampouco sem a garantia da liberdade em seu sentido
negativo (como ausência de coação): que vai desde a eliminação da disparidade na capacidade
da expressão consciente e livre dos interesses, que brote não das diferenças da peculiaridade
pessoal (inteligência, p. ex.), mas de defeitos (propositais ou intencionais) na socialização
(educação, p. ex.), que vai desde este ponto até a eliminação da disparidade na possibilidade de
acesso aos fóruns interativos, como as que se originam do poder (econômico, p. ex.) e do
prestígio.
Mesmo admitida a vigência deste horizonte normativo, haveremos de nos perguntar sobre
como evitar, na prática, na construção da sociedade que preserve a situação interativa
aproximando-se da comunidade ideal e ilimitada, em suma, na construção da sociedade justa,
que o poder econômico possa ser determinante ou para a seleção dos que podem participar da
interação, ou para disparidade da "competência interativa", ou para o estabelecimento de
injunções no decorrer da negociação, ou para condicionar o tipo e o conteúdo do compromisso
resultante da negociação?
Meu exercício de imaginação política não me permite responder a esta pergunta, mas apenas
indicar que, do ponto de vista normativo, há que haver (para usar um termo de Salvatore Veca)
limites de convertibilidade, mecanismos impeditivos de que altas quotas de poder peculiares ou
acumuladas por sujeitos ou grupos de interesse possam transbordar da sua esfera específica
para a política, isto é, para a negociação pública das pretensões e interesses. Que tais "quotas de
poder" possam ser legítimas não há dúvida, trate-se do poder econômico, da beleza ou do
prestígio decorrente do sucesso. Que elas possam ser convertidas em corrrespondentemente
altas quotas de poder político, como no câmbio de moedas, não parece legítimo. Portanto não
há que nivelar riquezas ou prestígios (já que a beleza ou uma espécie de "socialismo estético"
não parece, infelizmente, possível), mas impedir que riqueza e prestígio sejam usados para a
obtenção de vantagens a nível da negociação pública. Como fazê-lo, é a questão.
No horizonte normativo, a que fomos capazes de chegar, a salvaguarda da situação
interativa em termos próximos da comunidade ideal e ilimitada da interação parece depender da
defesa da possibilidade de acesso real e igualitário aos fóruns de negociação e da garantia da
"competência interativa", isto é, da possibilidade de ser um parceiro em equidade de condições
uma vez introduzido à negociação. Para usar a feliz expressão de Axel Honneth, uma sociedade
que possibilite a situação interativa ideal ou dela se aproxime deveria ter uma substância
igualitária, uma substância que assegure a liberdade igualitária, eliminando as assimetrias que
condicionam a interação.
Uma sociedade dessa natureza deve ser capaz de dotar-se de instituições "materiais" capazes
de garantir a realização e a permanência da interação, mas também o desenvolvimento da
"competência interativa" dos concernidos, dos cidadãos. A idéia regulativa da interação livre de
coações exigiria a constituição de instituições da formação da vontade livre e do exercício livre
da cidadania, termos muito próximos aos de uma sociedade democrática.
De fato, a sociedade democrática parece a ordem social histórica que mais aproximar-se-ia
da situação interativa ideal. Entretanto, as sociedades democráticas atuais parecem-me longe do
inscrever-se plenamente no horizonte normativo que aqui se delineou, na medida em que
satisfazem-se com o plebiscitarismo e com a negociação parlamentar atráves de representantes.
O que já é muito, mas é também muito pouco, enquanto não é capaz de garantir a efetiva
liberdade igualitária: nem a igualdade de competência argumentativa, nem a ausência de
coações, nem, sob certos aspectos, a igualdade no acesso à situação interativa. Defeitos da
própria democracia ou "não-democracia" das assim chamadas sociedades democráticas, como a
nossa?
Em todo caso, a democracia pode se aproximar ainda mais da situação interativa ideal, não
em primeiro lugar como ordem social, mas como forma de um peculiar exercício da arte
política. A democracia seria, assim, a forma política daquilo que Karl Popper chamou de open
society/offene Gesellschaft, sociedade "aberta", pública, que concerne a todos os cidadãos. A
rigor, a democracia como forma política não é o governo do povo, pelo povo, para o povo; mas
a forma política pela qual o povo pode derrubar o governo... evitando o despotismo.
Uma tal coisa significa que à democracia inere necessariamente a possibilidade de buscar
novos caminhos e a necessidade de corrigir os erros. Por isso, na democracia, o resultado de
uma negociação é sempre uma conjectura à espera de ser confutada por uma melhor alternativa
(que pode não acontecer); as negociações estão sempre "abertas". A sociedade estabelecida na
democracia política é também "aberta" a alterações, correções, superações. Uma sociedade não
enrijecida, não definitiva, que, portanto, não pode ser despótica. Resta saber se a interdição do
despotismo e o não esclerosamento das negociações, por si sós, bastam para adequá-la ao
horizonte normativo de uma autêntica ética política. Além do mais, nem sequer nos
perguntamos ainda se um horizonte normativo deve se concretizar plenamente numa forma
histórica ou se deve permanecer como idéia regulativa que nos move à constante busca de
aproximação, descartando os erros e acertando os passos, se não deve permanecer, justamente
como horizonte, não para ser alcançado, mas para guiar o julgamento e a ação.
4. A Ética da Dimensão Pública como Ética da Comunicação
Uma teoria ética que tem como objeto a "publicidade" na política, depende, na indicação
concreta do horizonte normativo que deve dela decorrer, do modo como é concebido o espaço
institucional onde se realiza a mediação argumentativa das pretensões de validade. É razoável
esperar que os princípios normativos gerais possam valer para não importa qual determinação
do espaço institucional da publicidade, mas a concretude das considerações, o destaque ou não
de um aspecto, os desdobramentos a nível teórico, etc. dependem de como se conceba tal
espaço de publicidade.
Isso pressuposto, introduzo duas ordens de considerações. Em primeiro lugar, resulta claro
que o espaço de publicidade que se tem em mente em todos os pontos da Ética do Discurso é o
Parlamento. Ora, característico do Parlamento, nas sociedades de direito, é o fato de que as
condições de efetivação do discurso estão já sempre garantidas a todos os sujeitos
reconhecidos.
Em segundo lugar, parece-me razoável afirmar que, em sociedades como a brasileira, o
espaço da mediação pública das pretensões situa-se num peculiar nexo que inclui o Parlamento
e os Meios de Comunicação Social. Se entendermos o Parlamento em sua reverberação literal
(lugar da parola, da palavra e da fala), podemos até mesmo estender a imagem que daí decorre
e reconhecer que há, no Brasil, uma duplicidade de parlamentos. De um lado, a instituição onde
se exerce o poder de legislar, a partir da negociação entre as várias pretensões de validade,
concretizadas nos representantes democráticos dos interesses que visam à coisa pública. Por
outro lado, os meios de comunicação, que acionam dispositivos e recursos informativos de
forma a gerar os discursos mormente circulantes na sociedade (até o âmbito da chamada
"opinião pública"), inclusive aqueles que concernem aos negócios públicos.
Entretanto, creio que a interação entre esses dois espaços públicos não será bem
compreendida se pensarmos que os seus efeitos simplesmente se justaponham. De fato, só o
Parlamento produz leis, sendo, assim, capaz de promover uma intervenção concreta e legítima
no tecido político e social. Só o Parlamento pode promover efeitos de intervenção na rede
política. Não é, portanto, nesse nível que os meios de comunicação têm alguma eficácia. O tipo
de efeito que neles se alcança, e sobejamente, é o efeito de noticiar, isto é, de provocar
conhecimento com níveis de disseminação extensíssimo e com uma rapidez muito grande.
Provocar conhecimento se traduz, concretamente, como "oferecer informações a respeito de
eventos e coisas", mas também, como "promover e difundir teses e opiniões, agendar temas e
argumentos, suscitar e organizar discursos". Em suma, "provocar conhecimento": publicizar e
propagar.
Nas assim chamadas sociedades mediáticas - onde os conhecimentos acerca do mundo e do
estado das coisas nos chegam, na sua parte mais importante, mediante os discursos dos mass
media -, dentre as quais a nossa, a capacidade de publicizar e de propagar passa a ter uma
enorme relevância. "Publicizar" significa exibir, mostrar, fazer ver, dar a conhecer, tornar
notório aquilo que só um círculo circunstancialmente (ou profissionalmente) privilegiado de
pessoas experimentou em primeira pessoa no sentido de contig_ idade e contemporaneidade.
"Propagar" significa difundir. Ora, a "publicidade e propaganda" tem como conseq_ ência a
possibilidade e a efetividade da constituição das esferas discursivas, isto é, dos limites e
possibilidades daquilo que pode ser dito, daquilo sobre o que se pode falar com esperanças de
que o interlocutor saiba do que se está falando, em suma, das fronteiras da fala dotada de
sentido ou de inteligibilidade.
Em suma, a faculdade de publicizar (publicar) e propagar, a) agenda os temas de que se
pode falar, estabelecendo vocabulários e enciclopédias que deverão municiar os discursos; b)
constrói círculos concêntricos dos conhecimentos individuais, repertórios de informações nos
quais necessariamente o mundo e as coisas (que escapa à minha experiência em primeira
pessoa) vem a existir para mim - aquilo de que não se fala, não se conhece, portanto, não existe
como objeto de pensamento ou de discurso; c) qualifica os conhecimentos, indicando
"benevolamente" aqueles que devem acionar e capitalizar os meus interesses, portanto a minha
reação prática.
Não é difícil dar-se conta de que essas características pertencem ao espaço institucional da
pública negociação dos interesses em outras sociedades. Particularmente se nós pensarmos que
o espaço da locução e interlocução política se inscreve nestas possibilidades. Com efeito, ao
mediar os conhecimentos que superam a esfera da possibilidade da experiência em primeira
pessoa, os meios de comunicação devem também mediar a nossa relação com os
conhecimentos que concernem à coisa pública.
É bem verdade que somos todos concernidos pela coisa pública, mesmo nas democracias
das sociedades mediáticas. Somos convocados ao exercício da escolha dos executivos e
legisladores da forma institucional da coisa pública, que é o Estado. E como os plebiscitos se
dão regularmente podemos inclusive, corrigir eventuais erros de escolha ao mesmo tempo em
que não permitimos a cristalização despótica. Mas a esfera de decisões sobre aquilo que
respeita a coisa pública é-me sempre mediada por informações que me chegam através de
mediadores (presume-se) confiáveis. Dificilmente posso experimentá-las em primeira pessoa,
ou mesmo checá-las, se sou um cidadão comum. Estes informadores, entretanto, não me dão
uma relatório completo, que inclua todas as coisas em todo o tempo sobre a esfera das decisões,
nem me fazem saber de todos os elementos que seriam necessários para a minha intervenção ou
que solicitam a minha atenção. Esta seleção da esfera daquilo que é considerado pertinente não
recobre toda a área daquilo que me concerniria.
Tenho, portanto, uma mediação necessária, que, ao mesmo tempo, é seletiva. O que já
representa um complicador. A "necessidade" da mediação tem como conseq_ ência o fato de
que eu normalmente não disponho de outro acesso ao espectro integral dos eventos respeitantes
à coisa pública. O que implica numa espécie de auto-consignação à boa-vontade do informador.
Por outro lado, isso quer dizer que o meu horizonte de noções, de temas, de conhecimentos que
devem fundar as minhas decisões é um campo selecionado e pertinentizado por outrem. Além
disso, como este outro que me informa não apenas seleciona aquilo que entra ou fica fora do
meu campo de conhecimento, como também destaca, hierarquiza, mesmo a minha reação
afetiva e efetiva é, de certo modo, construída por esta fala autorizada: vejo o que ele me dá para
ver e como ele o faz. Tenho, então um horizonte de conhecimento, um vocabulário do pensável
e do discutível (portanto das categorias com que organizo o meu campo político), uma agenda
daquilo que deve motivar o meu agir político, tudo isso, outorgado por informadores (que se
espera) confiáveis. Esses informadores, obviamente, são os mass media, no caso, meios de
informação de massa, através da atividade jornalística.
A relação entre os meios de comunicação e o Parlamento pode, a este ponto, ser melhor
compreendida. Enquanto meios de publicização e propagação de conhecimentos a respeito da
esfera pública e que devem municiar a participação dos concernidos na pública negociação, os
meios de comunicação produzem reverberações, de forma absoluta, no nível dos concernidos.
É a constituição da chamada "opinião pública", no caso, de uma "opinião pública política" - a
configuração de esferas discursivas pelos agendamentos, pertinentizações, hierarquizações, etc.
Tal reverberação é capaz de gerar níveis de intervenção prática na negociação pública
(passeatas, escolha de candidatos em eleições, abaixo-assinados, plebiscitos etc.), de tal forma a
pressionar os participantes (profissionais ou não) do discurso para a produção de efeitos
legislativos. Tornando os concernidos em eventuais e pontuais participantes esporádicos, os
meios de comunicação criam efeitos de reverberação que finda por atingir os participantes
constantes do discurso, no caso, o Parlamento.
Obviamente a relação entre meios de comunicação e Parlamento deve ser bem mais
complicada, e nem sempre há relação. Em todo o caso, as experiências políticas recentes no
Brasil, evidenciaram o modo do funcionamento dessa peculiar inter-suposição e da sua
importância social, bem como indicaram a tendência de que cada vez mais o mecanismo do
duplo parlamento funcione no nível da negociação da coisa pública.
Entretanto, a idéia de duplicidade de fórum argumentativo não deve esconder um sem
número de problemas que aqui repousa. Foi dito acima que a característica maior do
Parlamento, no que nos interessa aqui discutir, é o prévio estabelecimento da possibilidade
argumentativa como aberta a todos os real ou virtualmente interessados, de forma que, a
qualquer momento, todos os concernidos podem se tornar participantes, pedindo, inclusive,
vista dos autos de decisões já tomadas, problematizando escolhas e apresentando as próprias
pretensões de validade. Ora, o mesmo não se pode dizer deste segundo fórum, tão importante
nas sociedades "mediáticas", que é constituído pelos meios de comunicação de massa. No
Brasil, pelo menos, eles não asseguram a concretude da comunidade ideal da comunicação ou,
se preferirmos, não realiza as condições da comunidade ideal da comunicação: abertura à
intervenção e possibilidade de que qualquer concernido torne-se participante.
Se púdessemos, a este ponto, considerar os meios de comunicação em sua ligação com a
negociação pública de interesses e pretensões tendo ao fundo o horizonte normativo da ética
política que pudemos identificar, teríamos um quadro muito interessante. Pensemos, por
exemplo, na exigência maior para instauração de uma autêntica situação interativa, a saber, a
garantia de possibilidades iguais de participação de qualquer concernido na negociação. Vimos
como tal exigência se desdobra em dois aspectos intercomunicantes: a) Todos os sujeitos
devem ser livres de constrições que poderiam impedir a sua introdução na mediação das
pretensões que o concernem - exigência de introdução; b) Todos os sujeitos devem ser capazes
de defender na mediação argumentativa suas próprias pretensões - exigência de participação.
Na verdade, trata-se do mesmo princípio dito de forma negativa e de forma positiva, mas
didaticamente é-nos útil que o consideremos como fossem dois.
Pareceu-me plausível afirmar que os meios de comunicação se constituíam em fórum, em
espaço institucional/instituído, que numa curiosa rede de relações e reverberações com outros
espaços (as organizações da sociedade civil e o Parlamento, sobretudo), sustentam a interação
argumentativa que decide os negócios públicos. Entretanto, se os negócios que aí se decidem
são obviamente públicos, enquanto concerne a todos os cidadãos, a interação como tal é apenas
aparentemente pública. Na verdade, trata-se de um equívoco querer confundir "publicidade", no
sentido da "propriedade daquilo que se deu a conhecer" - que é objeto da notícia e, conseq_
entemente, dos meios de comunicação - , e "publicidade", no sentido "propriedade daquilo que
concerne ou inere à totalidade dos cidadãos". A "publicidade" que garante os meios de
comunicação é do primeiro tipo, a notoriedade, decorrente da exibição de fatos e argumentos.
A "publicidade" que é imperativo ético, portanto, incluída no horizonte normativo da ética
política, é a do segunto tipo, a abertura ou concernimento dentro de um limite social
reconhecido (a pólis, a civitas, o Estado, a nação, etc.).
Os meios de comunicação não garantem a publicidade, em sentido ético, porque eles
propriamente não são plenários públicos (e "público" aqui, obviamente, não quer dizer estatal,
ou "privativo do governo"). São instituições que "concernem" e "inerem" a um grupo ou
indivíduo, são privados. Não são privados apenas porque alguém pode comprovar que os
adquiriu com o seu patrimônio pessoal (mesmo porque, de fato, as comunicações são
concessões "públicas" - leia-se "do governo" do Estado), mas, porque não estão abertos a
qualquer controle ou intromissão dos cidadãos e, o que é mais relevante eticamente, porque
respondem aos interesses e necessidades apenas de indivíduos ou grupos. Em outros termos, a
sua privacidade decorre do fato de fazerem parte de um círculo particular de interesses,
portanto, de fazerem parte do patrimônio prático-argumentativo de um sujeito de interesses na
apresentação das "suas" pretensões de validade. Antes, os meios de comunicação se
constituíram, eles próprios, em sujeitos de pretensões, participantes e parceiros da negociação
ao lado de outros parceiros. Claro, sujeitos assujeitados por outros sujeitos, mas sempre
interlocutores da mediação argumentativa.
Assim, nós temos aqui uma coisa muito curiosa: um fórum dos negócios públicos que é ao
mesmo tempo um interlocutor que se introduz na negociação para apresentar as suas
pretensões. Um interlocutor (um sujeito de pretensões numa situação interativa
argumentativamente mediada) que é fórum; um fórum que interlocuciona. Mas não temos aqui
apenas uma curiosidade dos nossos tempos, temos uma clara distorção ética, se iluminarmos
esta situação com o horizonte normativo da moral política.
Não é demasiado supor que a peculiar situação de ser ao mesmo tempo fórum significa ,
para os mass media como interlocutores, auferir vantagens enormes para si defronte dos outros
sujeitos de pretensões na situação argumentativa. A primeira e mais importante delas pode ser
descrita em termos de "competência interativa": o meio, enquanto fórum, estabelece os códigos
em que se processará a negociação (leia-se linguagens e tecnologias da interseção imagem-
texto), que são os "seus" códigos, facultando-se vantagens de toda a natureza na sua capacidade
persuasiva. O que significa que numa situação argumentativa estabelecida desta maneira
institui-se necessariamente a disparidade na capacidade de expressão dos desejos e interesses
pretendidos.
Nem sequer se pode imaginar aqui que tal disparidade desapareceria se todos os
interlocutores "se modernizarem" no sentido de saber usar as (novas) tecnologias da maneira
mais competente possível. Em primeiro lugar, esta competência ainda excluiria a maior parte
dos cidadãos. Em segundo lugar, o problema não são, a rigor, os interlocutores, mas o meio
como um interlocutor. O problema é que o meio não é apenas a mensagem, é também aquele
que a enuncia e sustenta contra toda outra pretensão, numa situação interativa em que as outras
vozes não podem ser ouvidas porque não codificadas da forma "apropriada".
É o que resulta da análise do outro aspecto presente nesta duplicidade: o ser ao mesmo
tempo interlocutor, para o meio, como fórum, implica não apenas na obtenção de vantagens
argumentativas por "competência interativa", mas também por exclusão da interlocução. O
fórum que é ao mesmo tempo sujeito de pretensões não permite a entrada de toda e qualquer
pretensão no circuito da negociação. Em princípio, poderia vetar inclusive todas as pretensões
de validade que trafegassem em sentido contrário às próprias, ou poderia "traduzí-las" de forma
a torná-las inócuas, pouco atraentes ou estúpidas. O que significa que o fórum pode ser apenas
um monólogo com espelhos, onde a interação seja apenas um fantasma de interação, onde a
negociação seja nada mais do que um jogo de reflexos. No fórum estabelecido pelo próprio
meio, o meio enquanto sujeito de pretensões de validade não precisa argumentar, nem
interlocucionar; pode falar e mandar ver sem jamais ouvir.
Sendo o seu próprio fórum o sujeito-Meio é surdo e irresponsável. Surdo porque apresenta
pretensões de validade e, depois, continua obsessivamente a repeti-las sem considerar as
objeções atuais e virtuais dos outros parceiros da negociação. O que é, como vimos, uma
contradição performativa. Irreponsável, porque o meio, nesse caso, se furta a responder, a res
ponere, a dar razões dos próprios argumentos e escolhas. Tal impermeabilidade à discussão e
irresponsabilidade de princípio têm um nome: despotismo. O déspota não se sente obrigado a
responder, o déspota é juiz do próprio comportamento e do comportamento dos outros.
Dessarte, os meios apresentam uma espécie de negociação despótica da coisa pública ou
contratos leoninos de argumentação em torno daquilo que, em princípio, concerne a todos. O
que significa, novamente, que os meios, enquanto sujeitos de pretensões, se subtraem à situação
interativa, optando por comportamentos estratégicos eticamente condenáveis; mas também que
os meios, enquanto fórum, impedem o acesso dos concernidos à negociação, de forma que se
implodem enquanto meios institucionais de negociações públicas, para se tornarem palcos
extremamente potentes de enunciados despóticos.
Assim como nenhum grupo ou sujeito de pretensões pode "privatizar" o plenário do
Parlamento ou o Parlamento enquanto instituição de mediação, por razões exclusivamente
éticas, há algo de imoral quando se torna possível "privatizar" outros fóruns. Mas é justamente
isso que, salvo engano da minha parte, se dá com os meios de comunicação. A questão,
obviamente, não é imediatamente o da propriedade dos meios (embora, também essa deva
tornar-se uma questão, a seu tempo), mas o do controle "público" ou "privado" do forum das
interações onde se decidem os negócios públicos.
Parece-me, assim, que os problemas éticos com respeito ao fenômeno da comunicação
social na sociedade contemporânea, engendram-se deste núcleo problemático: a coexistência
ambíg_ a de uma dupla e simultânea função dos meios de comunicação, enquanto espaço
público das negociações de necessidades e interesses e enquanto sujeito privado de interesse e
pretensões.
O que nos prescreveu o horizonte normativo da dimensão pública em vista da instauração de
procedimentos comunicativos eticamente defensáveis? Qual pode ser o norte da intervenção
prática visando a superação de uma situação eticamente reprovável? A esse respeito, creio que
certas proposições e a sua tradução política são corretas, outras, nem tanto. Comecemos pelos
equívocos e falácias que tanto obstruem o correto posicionamento do problema.
1.A primeira falácia consiste numa espécie de lamentação pela função de espaço público, de
fórum, exercida pelos meios de comunicação. Lamento pela fragilidade intelectual e moral das
massas populares, que deixariam como que moldar as suas categorias e opiniões pelos meios de
comunicação, especialmente pelos meios eletrônicos. Como contraposição, insistir-se-á na
esperteza, inteligência e maldade dos proprietários e gerenciadores dos meios de comunicação,
capazes de obter o consenso para as suas idéias e a mobilização popular para os seus
propósitos, através das mensagens "mediáticas".
Uma análise mais detalhada mostraria que tal posição se apóia numa ingênua teoria política,
mas também numa teoria ingênua do conhecimento. Para o meu propósito, entretanto, basta
constatar que como tal, esta tese não toca no problema ético real que incide sobre as relações
comunicativas, contentando-se com a expressão de um desassossego diante daquilo que os
meios, de fato (e talvez de direito) são: espaço institucional de mediação. A questão que
provavelmente findará por desarmar tal posicionamento e que, ao mesmo tempo, introduz a
problemática ética autêntica situa-se num momento anterior: como regular normativamente a
imprensa como forum? Mas esta é uma pergunta fora do alcance desta perspectiva.
2. A segunda, consiste, numa espécie de reivindicação de uma propriedade do jornalismo, vista
a este ponto como uma exigência moral, que eu chamaria de capacidade de denúncia. Há como
que uma espécie de furor ético que leva à denúncia que pareceria constituir o específico da
atividade jornalística emancipatória, portanto, moralmente motivada. Este ético furor
facilmente se converte, em alguns momentos - como no período em torno e imediatamente
posterior à instauração do processo do impeachment do então presidente F. Collor - em
ufanismo jornalístico.
Mas de onde se origina a gaia constatação ( ou mais que constatação), de que a imprensa
nacional está assumindo o "seu" papel de quarto poder? Aparentemente, de um sentimento
presente nos meios jornalísticos e que, à primeira vista, se poderia confudir "má consciência"
ou "sentimento de culpa". Tal sentimento emerge, antes de tudo, da constatação de que, de fato,
os meios de comunicação (leia-se: os proprietários e administradores das instituições "meios de
comunicação") são sujeitos de pretensões de validade na negociação social, locutores não-
auditores e desobrigados de dar razões dos próprios argumentos nas mediações que envolvem
os negócios públicos. A aparente "má consciência", esse remorso ontológico-existencial dos
jornalistas, decorre do fato de que tudo isso acontece malgrado os próprios jornalistas, isto é,
não importando se eles pactuem ou concordem - são "funcionários da locução", a serviço de
interesses que podem não ser os deles mesmos.
Disso decorre um ambíguo e defeituoso horizonte normativo composto de um paradoxo: a)
de um lado a constatação da confusão, que diz respeito ao meio, entre a função de fórum e a
função de interlocutor social e a condenação ética desta atitude; b) doutro lado, o ufanismo
pelo fato de que esse jogo proporciona ao jornalismo uma eficácia social capaz de satisfazer
qualquer vontade de potência.
Entretanto, o paradoxo se mostra uma aparência de paradoxo, porque na verdade aqui não se
lamenta pelo dois meios funcionarem simultaneamente como fórum e como sujeito de
interesses particulares, mas pelo fato de que a participação do jornalista na formulação e
divulgação dos argumentos de que se municiam os meios como sujeitos de pretensões, se dá à
sua revelia. Antes, pelo contrário, a ebriedade de sentir-se demiurgos das decisões sociais,
capazes de formar opiniões em cadeia e movimentar massas - as delícias da locução que, como
o verbo divino, cria e recria a ordem social - é uma tentação a que raramente se resiste. Da
vontade de potência - contida pela sensação "de estar sendo usados" pelos proprietários dos
meios - decorre a vontade de denúncia. Esta última não deve ser confundida com a vontade de
noticiar, de dar conhecimento pelo conhecimento, pois não se conforma com a exibição do fato,
mas visa-se a provocar a comoção (moção: movimento), no espanto do desmascaramento ou na
reação que provoca a alteração na realidade.
Aquilo que parecia ser "má consciência", remorso por estar a serviço de um mecanismo
eticamente condenável, se transmuta, a bem olhar e de repente, em ressentimento contra os
meios por não permitirem um uso pessoal, ou em favor da causa pela qual se bate, do poder
locucional. Sintoma da vontade de potência, não de indignação ética.
Uma tal posição não apenas preserva o núcleo problemático dos processos informativos
contemporâneos, mas o afirma e reforça em nome de um horizonte normativo. Com isso ela se
torna eticamente inaceitável, tanto quanto a posição que visa corrigir.
3. Como terceira falácia, há a crítica - bastante comum até em patamares mais radicais ou
abstratos de teoria -, a crítica ao "interesse" que motiva as mensagens dos meios de
comunicação ou ao fato da informação "interessada". O problema ético da comunicação
localizar-se-ia, portanto, na questão do interesse e naquela distorção, dela decorrente - a
ideologia. A correção moral consistiria numa espécie de depuração do interesse ou numa
regulação ética que exclua argumentos e práticas ideológicas.
A parte o fato de que não se pode entender o que possa significar uma situação
argumentativa "desinteressada" (leia-se: "objetiva"), por razões gnosiológicas que creio
fundadas, basta aqui constatar duas coisas: a) O interesse não apenas não pode ser excluido da
situação interativa, como também constitui a causa e a ocasião. Ele constitui a causa e a ocasião
desta. Uma situação interativa é um locus de mediação e negociação de interesses, que não visa
excluí-los, mas antes considerá-los, só que a todos, mesmo aos dos outros, mesmo aos virtuais,
impedindo que um se imponha imperialisticamente sobre todos; b) Não há nenhuma situação
"asséptica" - ou "científica"- em que nos localizemos imunes da ideologia e sejamos capazes de
reconhecer o interesse dos outros. Este se percebe apenas na medida em que se tem o interesse
contrário, de forma que, ao que parece, a ausência de interesse não é uma situação existencial
que diga respeito aos homens normais. Talvez a Deus, que tudo vê e tudo sabe, na sua eterna
impassibilidade, mas não aos homens, por mais honestos que sejam.
Esta posição ética , não obstante a sua falácia, é bastante avançada com relação às outras
acima indicadas, chamando em causa questões muito sérias. Mas as formula de modo ingênuo
quando crê poder encontrar no interesse, tout court, a causa da distorção ética nos processos
comunicativos. O problema ético talvez consista, na verdade, em proporcionar vantagens aos
interesses de alguns sujeitos ou em não aceitar mediá-los numa situação argumentativa leal,
jamais no ineliminável interesse humano. A avaliação propugnada nessa crítica da ideologia é
inaceitável porque o foco está centrado no objeto errado.
4. Entretanto, a falácia que obtém o maior consenso em ambientes universitários e de
empenho político de maior "fôlego teórico", é a que se poderia chamar de "gramscianismo" da
comunicação4. Esta parte da justa constatação de que a pública negociação das pretensões de
validade, escapa seja da determinação econômica pura e simples, seja da esfera do legislativo
ou das relações entre os poderes, para se instaurar numa outra esfera: a cultura. A mediação das
pretensões visaria a obtenção do consentimento necessário - consentimento outorgado pelo
povo e/ou pelos outros grupos de interesse - para o exercício da direção intelectual e moral dos
negócios públicos, a hegemonia global por parte de um indivíduo, um grupo ou uma classe
social.
Ora, basta que desloquemos as considerações gramscianas da cultura, inclusive da cultura de
massas, para os meios de comunicação, reconhecendo nestes a força publicitária e propagatória,
para se reconhecer que a luta cultural se dá agora na imprensa, particularmente no jornalismo
televisivo. O que é uma interpretação muito plausível da obra de Gramsci.
Nos termos de Gramsci a busca da hegemonia se concretiza pela luta cultural, na
constituição de uma literatura e de uma arte que responda à visão de mundo popular, mas que,
ao mesmo tempo, consiga inserir nesta determinadas categorias revolucionárias, provenientes
da filosofia da práxis, capazes de trasformar de tal maneira o conjunto que este se transforme
numa Weltanschauung proletária. Na interpretação "comunicacional", a busca da hegemonia se
torna luta pelo poder de publicizar e propagar e através dele, por trâmite dos meios de
comunicação. Uma luta que já está se dando, com evidente vantagem para as classes
hegemônicas, que possúem os meios e gerenciam as mensagens, dessa forma obtendo o
consentimento necessário dos subalternos. Situação intolerável. Revertê-la significaria a
introdução do proletariado, a classe condutora do processo social emancipatório, na nova
situação interativa. O que resultaria concretamente na obtenção de concessão - ou conquista, o
que vier primeiro - de canais de televisão e de jornais ao proletariado, através da sua vanguarda,
para a constituição de media proletários. De forma que as forças progressistas pudessem estar
em igualdade de condições na luta pela hegemonia.
Nesse caso, tratar-se-ia de reconhecer que estamos condenados a comportamentos
estratégicos e que o máximo que podemos fazer é nos armar para esta guerra de posições do
mesmo jeito que o adversário. O "gramscianismo" pode levar a uma ética política perversa,
fundada na estratégia e na competição extra- ética. Assim, constitui mais uma falácia ética dos
nossos tempos.
Rejeitadas as falácias, como compreender, então, de forma correta, a questão da
"democratização da comunicação"? Creio que se deva entendê-la como uma exigência que se
volte para impedir a constituição e manutenção da comunicação despótica. O que não há de
significar a realização dos propósitos daquelas que apresento como falácias éticas, nem
tampouco consiste em discutir a alocação de propriedade dos meios de comunicação. Quanto às
primeiras, porque são propostas eticamente irrelevantes ou inaceitáveis; no que se refere à
problemática da propriedade dos meios, creio que esta deva ser considerada uma questão
decorrente, nunca uma questão inicial. Decorrente de quê? Da discussão sobre o problema, a
meu ver decisivo, da "privacidade" e da "publicidade" dos meios. Aliás só a questão da
"privacidade vs. publicidade" pode manter a discussão em níveis eticamente relevantes. Mesmo
a questão da propriedade e do direito de uso dos meios, dos critérios que deveriam regular as
concessões e a utilização dos meios, etc. ganham sentido apenas neste binário. Em outros
termos, a discussão acerca da propriedade ganha sentido à luz da problemática da regulação
ética da locução nos meios de comunicação.
Três princípios poderiam ser chamados em causa, a este ponto: ao primeiro eu chamaria de
princípio publicidade, ao segundo, princípio do contraditório; no segundo estaria incluido um
outro, o princípio responsabilidade.
Em primeiro lugar, o espaço da locução enquanto espaço da negociação dos interesses
públicos deve ser regido pelo princípio publicidade. A "publicidade" dos interesses em questão
como que exige a "publicidade" da situação interativa. A publicidade, enquanto abertura e
disponibilidade, se opõe à privacidade, enquanto clausura e indisponibilidade: "abertura" e
"clausura" referindo-se, no caso, à situação interativa.
A interdição da clausura atinge os meios efetivos da comunicação mediática não apenas
enquanto sujeitos de pretensões, mas sobretudo como fórum. Como tal ele se obriga a estar
aberto a que qualquer concernido possa se tornar participante de qualquer negociação e em
qualquer momento. O que se desdobra tanto na interdição do impedimento do acesso de
qualquer pretensão, quanto na interdição, a qualquer parceiro da argumentação, de valer-se de
quotas de poder (poder econômico, político ou mesmo o sucesso através dos meios de
comunicação) com o fim de obter vantagens argumentativas.
Em segundo lugar, os meios enquanto fórum só se constitúem em autênticos (quero dizer,
"eticamente legítimos") espaços institucionais de interação, se forem capazes de dar garantias à
situação interativa, além da abertura e disponibilidade de acesso a esta. É preciso que se
assegure a mola central da interação, a existência da comunidade da comunicação, onde os
parceiros se confrontam, apresentando pretensões argumentativamente mediadas e escutando as
dos outros. O que se garante, a meu ver, através da possibilidade do "contraditório", que não
consiste apenas na inerte contradição enquanto defeito de raciocínio, mas na contra-
argumentação, a exposição do lado do outro, a contra-locução que é essencial para a inter-
locução. Qualquer situação argumentativa autêntica se funda sobre a dialética auditor-locutor.
Dessarte, sobre qualquer fórum legítimo vige a norma da interdição da fala absoluta, da
locução despótica e leonina, que fala sem ouvir e manda ver mas não considera a possibilidade
de outra perspectiva. O direito à resposta, à contra-dicção, à alteridade de perspectiva é, por
conseguinte, mais do que um princípio jurídico, um imperativo ético necessário para a garantia
da situação argumentativa. Se este imperativo vige nas relações comunicativas em geral,
particularmente deve valer no caso das interlocuções que envolvem os negócios que em
princípio concernem a todos os cidadãos. A combinação do princípio publicidade com o
princípio do contraditório deveriam ser capazes de produzir uma formação social capaz de
corrigir-se constantemente, uma open society.
Enfim, a regulação ética da locução exige do meio, desta vez considerado enquanto sujeito
da negociação, a responsabilidade argumentativa. "Responsabilidade", no caso, não deve ser
tomada em sua conotação usual e descuidada, mas no seu sentido mais rigoroso, como a
capacidade de "pôr a coisa", isto é, de "dar conta", no sentido de "dar razões", "apresentar as
causas". Uma vez que na situação interativa vige o princípio do contraditório, decorre para os
interlocutores, inclusive para os meios, a obrigação moral de apresentar argumentativamente as
razões das suas pretensões práticas. Argumentos e atitudes, em que se traduzem as pretensões
na negociação pública, devem ser visíveis e tal visibilidade implica no empenho e compromisso
dos sujeitos de apresentarem as suas razões e colocá-las em questão.
Responsabilidade e visibilidade são, por conseguinte, convergentes, e devem assegurar a
impossibilidade da locução despótica bem como dar garantias a todos os parceiros da
discussão, sobretudo aos mais fracos. Aliás, o que é a ética senão a garantia do fraco contra a
força do forte? Porque a ética é afinal condicionamento e limitação. Não para fortalecer o fraco
(porque disso a ética não é capaz), mas para, pelo menos, limitar a força do forte, no mínimo na
negociação daquilo que em princípio deveria interessar a todos, as coisas comuns, a política.
Ao fim dessas considerações provisórias, creio que a "democratização da comunicação" -
que de fato emerge como uma exigência ética apenas se bem compreendida, ou seja, enquanto
se realiza como interdição da comunicação despótica -, torna-se um recurso e uma necessidade
em âmbito prático justamente para assegurar a situação argumentativa eticamente desejável.
Antes, decorre desse horizonte normativo a obrigação de realizá-la. De que modo? Com que
meios? Aqui a moral há de ceder o espaço para a discussão em termos de arte política,
eticamente orientada.
Salvador da Bahia, 10.XI.'92.
1 Ética não vem de éthos, como normalmente se pensa. Melhor, se refere pela sua raiz a ethos (costume, hábito,
comportamento, uso), mas através do adjetivo éthiké, da expressão éthiké theoría. Ser capaz de theorein, o verbo corresponde a
theoría, é, o sabemos todos, ser capaz de dirigir o olhar para algo e de acolher tal coisa no olhar, mantendo-a em vista - não
esqueçamos que a metáfora do olhar serve para indicar a percepção e o conhecimento da maneira mais radical para os gregos.
A "teoria ética" é, pois, a inspecção e aspecção vigorosa, cuidadosa, rigorosa dos ethe (plural do neutro de éthos), das atitudes e
usos, da conduta humana. 2 É neste sentido que, a meu ver, fala de ética o sociólogo francês Michel Maffesoli, por exemplo. Cf. particularmente o seu Au
creux des apparences. Pour une éthique de l'esthétique, Paris, 1990.
3 O eixo da minha argumentação nas páginas a seguir é constituido sob inspiração direta da Escola da Ética do Discurso
(Diskursethik), particularmente tendo em vista a obra de Karl-Otto Apel. Trata-se de um conjunto de autores ligados à
Universidade de Frankfurt, na Alemanha, que pelo menos desde os anos setenta vem envidando esforços no sentido de
construir uma ética pragmática, e que no atual panorama filosófico mundial representa um dos veios mais fecundos do
pensamento contemporâneo. Além de Apel e de Jürgen Habermas, podem aí ser incluídos, com algumas reservas, os seus
assistentes e discípulos, como Axel Honneth e Albrecht Wellmer, do lado de Habermas, e Wolfgang Kuhlmann e Dietrich
Böhler, do lado de Apel. Infelizmente, em não havendo ainda nenhuma bibliografia abrangente sobre a Ética do Discurso em
português, será difícil para o leitor compreender em que o meu próprio discurso se diferencia daqueles dos autores alemães. Em
todo caso, vale dizer que o meu esforço, em termos gerais, consistirá na insistência em tratar, a partir das intuições da Ética do
Discurso, exclusivamente a esfera política, insistindo na concretude da situação discursiva ideal, e aplicando ao campo da
comunicação de massas como fórum da argumentação. Para o leitor que quisesse aprofundar a discussão, apresento, ao final,
ampla bibliografia sobre o assunto. A maior parte desta está traduzida nas línguas ocidentais, salvo o português, exceção feita,
talvez, à obra de Jü rgen Habermas, definitivamente de moda entre nós. 4 Uso o termo "gramscianismo" com alguma cautela. Creio que, de fato, o horizonte normativo pressuposto por Antonio
Gramsci, particularmente no caso da "luta cultural", é eticamente defeituoso. Além disso, acredito poder sustentar que o
horizonte normativo pressuposto pela prática política das esquerdas brasileiras, mesmo daquelas intelectualizadas, é idêntico ao
de Gramsci. Pretende-se emancipatório e progressista, mas é falacioso em termos de ética. É a isto que eu chamaria de