georges bataille, filòsofo (portugues)

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Georges Bataille, filósofo

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Georges Bataille, filósofo

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAReitor

Alvaro Toubes PrataVice-Reitor

Carlos Alberto Justo da Silva

EDITORA DA UFSCDiretor Executivo

Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros

Conselho EditorialMaria de Lourdes Alves Borges (Presidente)

Alai Garcia DinizCarlos Eduardo Schmidt Capela

Ione Ribeiro ValleJoão Pedro Assumpção Bastos

Luís Carlos Cancellier de OlivoMaria Cristina Marino Calvo

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88010-970 – Florianópolis – SCFones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686

Fax: (48) [email protected]

www.editora.ufsc.br

Georges Bataille, filósofo

Tradução:Davi Pessoa Carneiro

Franco RellaSusanna Mati

Direção editorial:Paulo Roberto da Silva

Coordenação editorial:Manoel Ricardo de Lima

Capa:Ana Carolina dos Santos Pinheiro

Editoração:Paulo Roberto da Silva

Revisão: Júlio César Ramos

R383g Rella, Franco Georges Bataille, filósofo / Franco Rella Susanna Mati ; tradu-

ção Davi Pessoa Carneiro – Florianópolis : Ed. da UFSC, 2010. 120p. Inclui bibliografia. 1. Filosofia. 2. Bataille, Georges. I Mati, Susanna. II. Título.

CDU: 1

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão

por escrito da Editora da UFSC.Impresso no Brasil

ISBN 978.85.328.0511-9

© 2010 Franco Rella e Susanna Mati© 2007 Mimesis Edizioni

Ficha Catalográfica(Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina)

Os direitos de publicação deste livro foram cedidos por seus autores para a Editora da Casa que, por sua vez, através do editor Carlos Henrique Schroeder e do tradutor Davi Pessoa Carneiro [responsável pela consignação dos direitos], cedeu-os à Editora da UFSC.

Sumário

Advertência ........................................................................ 7

Apresentação – O espaço e a ferida ................................... 9

A Ferida Metafísica............................................................ 19

Filosofia futura, ou Suma Ateologia .................................. 57

Sobre Bataille ................................................................... 95

Diálogo entre Franco Rella e Susanna Mati ..................... 95

Nota dos autores ............................................................ 113

Nota do tradutor ............................................................. 116

7

Advertência

As temáticas abordadas em Georges Bataille, filósofo surgiram durante o Curso de Filosofia das Artes (2005-2006), organizado por nós na Faculdade de Design e Artes do Istituto Universitario Architettura Venezia (IUAV) e dedicado à História do erotismo. O curso teve andamento com seminários, e nossa discussão foi enriquecida por questões e problemas levantados pelos alunos.

A convicção da absoluta centralidade da filosofia na obra de Bataille, frequentemente obscurecida pela crítica, levou-nos a aprofundar esse aspecto – partindo da emersão no curso – nos dois ensaios que constituem as primeiras duas partes do livro. A terceira parte é testemunha do diálogo que está na base dos ensaios e que nos levou a colocar novamente em questão os resultados alcançados, reforçando a ideia de que o pensamento de Bataille é uma das obras filosóficas decisivas do século XX, aberta àquela que definimos como “filosofia futura”.

Na conclusão do livro apresentamos a bibliografia de todas as traduções italianas que conseguimos encontrar do autor. Somente passando pela lista dessas edições se pode perceber, por um lado, que o interesse pelas discussões de Bataille é constante e, por outro lado, percebe-se que esse estudo teve um andamento ainda bem pouco sistemático. Falta, por exemplo, uma edição completa anotada da Suma ateológica. Portanto, o trabalho sobre Bataille ou a partir de Bataille é uma tarefa ainda aberta.

Veneza, 30 de outubro de 2006.S. M. – F. R.

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O espaço e a ferida

Raúl Antelo

No ensaio que dedica à obra de Georges Bataille, em 1963, Michel Foucault admite que a filosofia não possui objetos novos porque estamos, plenamente, na idade do comentário. Benjamin já apontara a mesma ideia, quando disse que é no comentário que o princípio filosófico se cala e adquire, finalmente, forma, mesmo que, decerto, de maneira informe. O filósofo italiano Franco Rella (1944-), consciente dessa tradição, mesmo por evocá-la em suas Micrologie. Territori di confine (2007), sabe que o comentário não é hermenêutica do sentido; antes, pelo contrário, ele implica uma certa experiência de extimidade, conceito que Lacan utiliza, em seu seminário sobre a Ética, quando alude, justamente, à experiência íntima que comunica o sujeito com o real, enquanto experiência interior.

Prefigurada pela ideia freudiana de significantes ambivalentes, que provocam no leitor certa estranheza inquietante, a impertinência do comentário põe em cena a mútua exclusão entre o real e o sentido; daí que a tarefa do comentário consista, de algum modo, em promover a precária integração de contextos culturais antagônicos, feitos de diferentes tempos ou diferentes culturas, para os quais a escritura oferece uma ponte, um conhecimento suplementar, extremamente provisório, porque é apenas um território de confim e porque, além do mais, o comentário não tem a presunção de estar habitado por um princípio filosófico derradeiro.

Se o comentário é apenas subalterno, na medida em que depende da interpretação e é subordinado, de fato, à filologia, pelo contrário, ali onde essa disciplina vê tão somente um limite, o comentário transpõe

Apresentação

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um confim; e onde ela conclui, o comentário, porém, inconclui. O comentário nunca é literal, mas lateral, já que se oferece como para-deigma, isto é, como fórmula, mas nunca como Forma. Há, nessa escritura, uma relativa equivalência entre significante e significado, uma vez que o comentário (a forma) equivale ao próprio conteúdo (o procedimento) de sua leitura. Nessa relativa indiferença entre a norma e sua realização efetiva, todo comentário torna-se ficção, plano ou projeto; em suma, comemoração. Ou festa, para usar um conceito tão caro ao Collège de Sociologie. No comentário, enfim, a linguagem, ao adquirir uma nova tatilidade, torna-se, em consequência, uma maneira criativa de captar a vida pluridimensional.

Em “A ferida metafísica” (2007), Franco Rella retoma uma paixão de juventude, Georges Bataille. Com efeito, aos vinte e oito anos, Rella prefaciou a edição italiana de A parte maldita, publicada, pela primeira vez, em 1949, mas incorporando A noção de despesa, que fora antes estampada por Bataille no sétimo número de La critique sociale (1933), obra que Rella define, talvez à maneira de Blanchot, alternativamente, como espaço e como corpo, “um espaço, um corpo material, no qual se inscrevem dialeticamente pulsões, ideologias, fragmentos de práticas significativas: um corpo infinitamente despedaçado e recomposto, um espaço plural, que somente uma prática de leitura plural, que tenha renunciado às garantias tranquilizadoras da unidade do autor, do sujeito, da ideologia dominante, pode penetrar, construir”, ou seja, que diante dessa concepção esgarçada no espaço, mesmo que compacta num corpo, Rella nos diz que não é mesmo na história, como espaço da dialética, onde podemos encontrar a obra. A parte maldita precipita, com efeito, a pós-história, na medida em que sua escritura é uma tensão permanente em direção ao excesso, o que não configura uma perda real de vidas humanas ou não humanas, mas uma perda representada por “associações de imagens que ‘destroem a ordem das coisas práticas’”. Ora, esse dispêndio disseminador deixa de ser, a rigor, meramente simbólico, porque a escritura, em Bataille, aponta sempre em direção a uma realidade material: ela abre, no interior mesmo do discurso, “um espaço e uma dilaceração historicamente determinados”, em que a transgressão mantém uma relação com o proibido, sem o qual ela seria pura animalidade satisfeita. Já, então, em 1972, aparece, portanto, em Rella, a ideia da ferida metafísica.

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Essa laceração interna provocada pelo dispêndio, o erotismo e a escritura é responsável, em Bataille, por “uma forma de negação, que não se deixa reduzir às operações da filosofia clássica, hegeliana, como momento de um processo de Aufhebung”. Ao contrário, em sintonia com Denis Hollier e Jacques Derrida, leitores de Bataille, nesses inícios dos anos 1970, Rella já afirmava que o dualismo místico-material do teórico do não-saber punha em crise tanto a religião quanto seu oposto, a ciência. “A linguagem, o signo constituem um mundo entre duas contradições, um espaço onde está em jogo a contradição, um espaço que a escritura alarga continuamente, para além da impotência das palavras”1.

Mas esse espaço era, a rigor, um vácuo. Não era um dado, mas uma decisão. Rella julgava, assim, necessário encontrar, “no nosso espaço natural e cultural, a dépense, a negação, o salto que nos projeta num futuro, em direção à parte do homem”, à qual, aliás, não escapa, como se verá também em Zizek, nem mesmo o estalinismo, como tentativa de ultrapassamento da tensão mortal do presente; assim como também não escapava já a nosso Autor que essa contradição tornava a obra de Bataille particularmente maldita, porque conduzia a razão burguesa a seu limite, ao jogo mortal que se exprimiria, mais adiante, no conceito de Real. O objetivo, portanto, não era condenar o mundo burguês à sua dissolução, mas antes modificá-lo radicalmente, em função de sua própria disseminação, aprendendo a lidar com o que cai, com o acidente, com o sintoma.

A obra de Bataille é um imenso fragmento composto de uma miríade de fragmentos2. Um dos tantos fragmentos de Bataille reaparece em um livro de Rella de 1984, Metamorfosi. Immagini del pensiero, quando o Autor pensa a cifra da modernidade, a melancolia, o sol negro, o mesmo que, em Kristeva, precipita a passagem a uma crítica do Real. Mais recentemente, porém, em 2000, Rella escreveu o ensaio “Di fronte all’indicibile”, integrado à antologia por ele mesmo reunida, Pathos: scrittura del corpo, della passione, del dolore. Nele nos

1 RELLA, Franco – La parte di Bataille. In: BATAILLE, Georges. La parte maledetta: la società di impresa militare-religiosa, il capitalismo, lo stalinismo. Preceduta da La nozione di depense. Trad. Francesco Serna. Verona, Bertani, 1972, p. 15.2 Idem – Ai confini del corpo. Milano, Feltrinelli, 2000, p. 53.

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oferece uma reflexão ainda mais ponderada da relação de Bataille com a arte e define, então, a escritura como esse momento de peculiar negatividade sem emprego.

A literatura é desvio fora dos caminhos do logos habitual: é fuga do mundo do discurso. Com essa, escreve Bataille, se entra numa espécie de tumba onde o infinito do possível nasce “da morte do mundo lógico”: um espaço terrível, o único em que é possível ligar “intimamente a afirmação à negação”. É assim que essa cumpre “aquilo que geralmente é obra do ‘tempo’ – o qual, de todas as suas construções, deixa subsistir apenas os rastros da morte. Acredito que o segredo da literatura seja este. E que um livro se torna maravilhoso se habilmente ornado pela indiferença das ruínas. [...] Portanto, a literatura é uma saída do princípio de não contradição que domina o pensamento lógico; é a afirmação de uma contradição nos confins onde podemos colher, talvez como em toda autêntica contradição, o impensado da vida, quando esta se encontra com a morte. A arte, a literatura como a pintura, debruçam-se constantemente sobre aquilo que é invisível ao pensamento lógico, ou seja, a paixão, que Esquilo dizia ser o verdadeiro saber do mundo: o sofrimento, a alegria, o terror, o tédio e, de fato, no fundo de tudo, justamente como intuiu Bataille, as máscaras da morte3.

Nessa definição de literatura reaparece outro conceito caro a Franco Rella, o de confim. Para nosso Autor, a realidade não é um plano de consistência, mas um extremo, um confim, algo que ele deixa claro em Pensare per figure. Freud, Platone, Kafka, il postumano (2004). Nesse livro afirma, por exemplo, que a literatura “não resolve enigmas: ilumina-os de fato como enigmas, como inexplicáveis”. E, assim sendo, a vertiginosa exegese da parábola da lei, em O processo, de Kafka, “não existe interpretação que esgote as possibilidades e que nos coloque no coração de uma verdade. Verdade e enigma se enfrentam e se refletem até identificarem-se: a verdade é enigma, a verdade é enigma”. O confim traça, a seu ver, uma reversibilidade total entre positividade e negatividade, entre fato e interpretação, entre antes e depois, entre cá

3 RELLA, Franco – Di fronte all’indicibile. In: RELLA(Ed.) – Pathos: scrittura del corpo, della passione, del dolore. Bologna, Pendragon, 2000, p. 170.

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e lá. A nudez, essa noção tão bataillana, não é, portanto, uma condição, mas um estado do ser, uma forma da experiência interior. “Estar-nu dá, assim, forma à experiência do mundo. Uma experiência extrema na solidão e no ato erótico, ou diante do sofrimento, do mal, da morte” – completa Rella – quem se debruça sobre a “nudez ontológica da vida”, para ver refutada, na literatura, “a metafísica de modo bem mais nítido do que como aparece nos textos heideggerianos, que nunca chegaram tão distante”. Mas essa constatação, que na verdade coloca Bataille num ponto de maior estímulo à indagação do que o próprio Heidegger, torna a abrir um confim crítico, um questionamento: afinal, a nudez é “um ponto de chegada ou um ponto de partida?”. A nudez, diríamos, é uma origem. Ela não é fundamento nem destinação. É uma forma de deixarmos acéfalas a totalidade, a verdade, a universalidade de todo julgamento.

Ora, nas “Proposições sobre a morte de Deus”, estampadas na revista Acéphale, em janeiro de 1937, Bataille já afirmava que o acéfalo exprime, de maneira assumidamente mitológica, a soberania voltada à destruição, à morte de Deus e, nesse ponto, a identificação ao homem-sem-cabeça confunde-se com a própria identificação ao super-humano que é, por inteiro, e cabalmente, morte de Deus. Portanto, super-homem e acéfalo remetem ambos a um tempo imperativo e à liberdade como explosão da própria vida. Num e noutro caso, porém, o tempo, longe de ser um dado natural, torna-se objeto de êxtase, ora como eterno retorno (Nietzsche), ora como apocalipse (Derrida), ou mesmo como tempo explosão (Benjamin), mas, em todo caso, como expulsão de qualquer tipo de continuidade e sucessão temporais, que funcionassem como garantias inabaláveis de acumulação, porque o movimento voltado ao tempo entra, de um lance decisivo, na existência concreta do homem, como ex-sistência. Esse tempo extático só pode ser achado na visão daquilo que o acaso pueril fez bruscamente sobrevir: ruínas, cadáveres, nudezas, abismos.

Nesse sentido, a mudança, isto é, a Revolução, segundo Bataille, não deve ser procurada nos seus resultados concretos e conscientes, mas na sua aparência bruta, em sua imposição para além das categorias corriqueiras. A Revolução manifesta-se, aos olhos mudos de um mundo cheio de medo, como a súbita explosão de eternas sublevações

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sem limites. Mais tarde, porém, compreenderíamos que, assim como a revolta suspende o tempo, a Revolução repõe o tempo nos trilhos da ordem, a nova ordem revolucionária, que é uma forma impiedosa de disseminar o controle como exigência da nova situação.

A guerra muda, tal como ordenada pela economia moderna, a oikonomia como administração da vida, exige a mais completa ausência de sensibilidade. No caráter desmesurado e dilacerante da catástrofe sem finalidade que é a guerra atual, diz Bataille, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, é possível reconhecer, entretanto, a imensidade explosiva do tempo, uma vez que com ela se instaura um tempo pós-histórico, que nada mais é do que a regressão do homem ao estado de natureza. Como já não pode se expandir no tempo, porque ele exauriu-se, o homem expande agora o espaço, tornado global. Não obstante, a existência universal permanece ilimitada e, por isso mesmo, sem repouso: ela não reclui nem encerra a vida num invólucro impermeável, mas, ao contrário, abre-a e a relança, incessantemente, na inquietude do infinito. É o que desenvolvem livros como o já citado Micrologie ou Dall´esilio (2004). Ou mesmo seu trabalho como editor da História do erotismo (2006) de Bataille. Neles constatamos que a existência universal, eternamente inacabada, acéfala, perfaz um mundo semelhante a uma ferida que sangra, a uma falta insaturável, como o olho rasgado de Dali-Buñuel, como a imagem aberta de Didi-Huberman, criando e, simultaneamente, destruindo, ou como dirá o próprio Bataille, ao pensar o começo da arte em Lascaux, alterando a superfície disponível, o que traça, enfim, a dimensão singular-plural de que nos fala Jean-Luc Nancy. Ora, se Foucault nos revelou que o poder pastoral descansava num apelo omnes et singulatim, o mestre Bataille conseguiu ver, bem antes disso, que a verdadeira universalidade é a morte de Deus.

Deus escreve certo por linhas tortas. O bom deus reside no detalhe. A combinação desses dois provérbios, um deles, ancestral, e o segundo, palavra de ordem de Aby Warburg, pode nos ajudar a entender um pormenor, nada trivial, ligado à relação entre Bataille e Kojève ou, em outras palavras, ao debate pós-histórico. Rella não hesita em apontar a carta de Bataille a Kojève, de 6 de dezembro de 1937, dois dias depois de Bataille ter discorrido no Collège de Sociologie sobre os conceitos hegelianos, como o marco inaugural dessa problemática

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relação, um de cujos pontos altos é, sem dúvida, a carta de 8 de abril de 1952, que completa a anterior. Giorgio Agamben, comentando-a no quarto excurso de A linguagem e a morte, atribui-a a Kojève, sendo Bataille seu destinatário. Retomando os argumentos expostos em uma outra carta, datada de 28 de julho de 1942, no sentido de que, quando um ato é integral, ele exauriu, previamente, a potência, vale dizer que “é sem potência, impotente, inexistente: não é mais”, arrematando, hegelianamente, que “a existência humana é o diferimento para mais tarde. E este “mais tarde” é, ele próprio, a morte, é nada”4. A posterior carta de 1952, redigida na biblioteca de Orléans, afirma que é problemática a definição de satisfação do interlocutor, uma vez que

o terreno em que você se aventura é escorregadio: parece-me, contudo, que, não o trilhando senão parcialmente, deixando de reconhecer que essa satisfação de que você fala é intangível, sendo, no final das contas, uma farsa no sentido mais próprio, você contraria a polidez elementar que consistiria em convidar seus evocados a dançar epilépticamente com as personagens de que V. fala. Conviria, verdadeiramente, para ser completo, encontrar um tom indefinível que não seja nem o da farsa nem o do contrário, e é evidente que as palavras não nascem senão da boca para fora: não tendo, pois, importância. Creio, porém, que você minimiza o interesse das expressões evasivas que emprega ao desembocar no fim da história. Eis por que seu artigo me agradou tanto, que é a forma mais derrisória de abordar o tema – vale dizer, a menos evasiva5.

E, a seguir, acrescenta:

Mas você talvez prossiga rapidamente, não o embaraçando minimamente chegar a uma sabedoria ridícula: seria preciso, com efeito, representar aquilo que faz coincidir a sabedoria e o objeto do riso. Ora, não creio que você possa pessoalmente evitar este problema derradeiro. Jamais tencionei dizer-lhe nada que não seja expressamente e voluntariamente cômico ao chegar a este ponto de resolução. Talvez seja a razão pela

4 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 73.5 BATAILLE, Georges. Choix de lettres. 1917-1962. Ed. Michel Surya. Paris: Gallimard, 1997, p. 441.

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qual você por vezes tenha aceitado levar em conta a minha própria sabedoria. Malgrado tudo, isto nos opõe: você fala de satisfação, você concede que se tenha do que rir, mas não que seja o próprio princípio da satisfação a ser risível6.

Acontece, porém, que o autor da carta de 1952 não é Kojève, como afirma Agamben, mas Bataille,7 e a ele devemos atribuir a ideia de colocar a soberania do sábio no fim da história ou de verificar a identidade entre satisfação e insatisfação ou, em outras palavras, a noção da ausência de objeto para toda pulsão, para qualquer movimento na história. Assim, a restrição de Agamben, no sentido de que a forma correta de colocar o problema não seria a da satisfação, mas a da soberania, soberania essa que é a do sábio no fim da história, é também um modo, literalmente, inconsciente, de dar-lhe a primazia a Bataille, algo a que Agamben não é particularmente afeito. Daí a censura agambeniana a Bataille, como pensador farsesco:

Um pensamento que queira pensar para além do hegelianismo não pode, efetivamente, encontrar fundamento, contra a negatividade dialética e o seu discurso, na experiência (mística e, se coerente, necessariamente muda) da negatividade sem emprego; ela deve, em vez disso, encontrar uma experiência da palavra que não suponha mais nenhum fundamento negativo. Nós vivemos hoje naquela extrema fímbria da metafísica em que esta retorna – como niilismo – ao próprio fundamento negativo (ao próprio Ab-grund, à própria não fundamentação). Se o abismar-se do fundamento não revela, porém, o êthos, a morada habitual do homem, mas limita-se a mostrar o abismo de Sigé, a metafísica não é superada, mas reina na sua forma mais absoluta – ainda que esta forma (como sugere Kojève e como confirmam alguns aspectos da gnose antiga e daquela de Bataille) seja, eventualmente, a de uma “farsa”.8

6 Ibidem, p. 441-442.7 Devo a Edgardo Castro ter me alertado dessa questão filológica nada trivial, como vemos. Cf. CASTRO, Edgardo. Giorgio Agamben: uma arqueologia de la potencia. Buenos Aires: Jorge Baudino / UNSAM, 2008, p. 145.8 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade, op. cit., p. 74.

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Agamben reconhece que tanto Nancy quanto Blanchot, herdeiros de Bataille no tocante ao tema comunidade, questionam-se sobre a possibilidade, ou mesmo sobre a impossibilidade, de uma cabal experiência comunitária. Ambos, porém, concordam em reconhecer, em Bataille, a recusa de toda comunidade positiva, construída a partir de um pressuposto comum e, segundo reitera Agamben, em texto pouco posterior,

A comunidade que está aqui em questão tem, por isso, uma estrutura absolutamente singular: ela assume em si a impossibilidade da própria imanência, a impossibilidade mesma de ser comunitária enquanto sujeito da comunidade. A comunidade repousa, nesse sentido, de algum modo, na impossibilidade da comunidade e a experiência desta impossibilidade funda, ao contrário, a única comunidade possível. É evidente que, sob essa perspectiva, a comunidade pode ser tão somente “comunidade daqueles que não têm comunidade”.9

Daí que, para Agamben, o modelo comunitário de Bataille não seja “de Estado”, uma vez que o filósofo da pantomima trabalharia com a comunidade dos amantes, a comunidade dos artistas ou, mais frequentemente, com a comunidade dos amigos, a de Acéphale, ou mesmo a do Collège de Sociologie, de sorte que a exclusão da cabeça, pressuposta por Acéphale, “não significa somente elisão da racionalidade e exclusão de um chefe, mas, antes de tudo, autoexclusão dos membros da comunidade, que estão presentes só através da própria decapitação”, da própria paixão entendida como êxtase. Mas isso introduz, de maneira restritiva, o paradoxo decisivo do ekstasis, esse absoluto estar-fora-de-si do sujeito, e que consiste em que “aquele que faz a experiência não está mais no instante em que a experimenta, deve faltar a si no momento mesmo em que deveria estar presente para fazer a experiência”.10

9 Cf. AGAMBEN, Giorgio. “Bataille e il paradosso della sovranità”. In: RISSET, Jacqueline. Georges Bataille: il politico e il sacro. Napoli: Liguori, 1987, p. 117.10 Ibidem, p. 118.

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Ora, esse paradoxo do êxtase bataillano – o de que o sujeito deve estar lá onde não pode estar, ou vice-versa, o de que ele deve faltar ali mesmo onde deve comparecer – embora avaliado por Agamben como a estrutura antinômica da experiência interior que Bataille procurará, cegamente, pela vida afora, torna-se o núcleo mais íntimo da própria hipótese agambeniana do homo sacer11 e, mais ainda, ela é criticada aludindo ao “sentido agudo quanto ao significado filosófico das questões terminológicas” envolvidas, que Kojève, mais uma vez, “em uma carta a Bataille que se conserva na Bibliothèque Nationale de Paris, sublinha explicitamente”, carta essa, como vimos, que é, pelo contrário, de Bataille a Kojève.

Susanna Mati relembra, em “Filosofia futura, ou suma ateologia”, do incidente Heidegger, quem, ao elogiar o maior pensador francês, teria apontado Bataille, evocando, na verdade, Blanchot. Tanto Franco Rella e Susanna Mati, por separado, quanto ambos unidos no diálogo comunitário “Em torno a Bataille”, repõem a verdade inconsciente, a verdadeira subjetividade, nesse não-saber tão esquivo do pensamento acéfalo. Rella, em particular, nos diz que Bataille foi “uno dei filosofi più significativi del XX secolo”12. Ora, o obstáculo a esse reconhecimento, evidente em lapsus, omissões e atribuições errôneas, é precisamente uma das feridas mais evidentes do pensamento pós-fundacional contemporâneo e este livro ajuda a melhor compreendê-lo.

11 “Se soberano é, segundo a definição de Carl Schmitt, aquele que tem o poder legítimo de proclamar o estado de exceção e de suspender, desse modo, a validade do ordenamento jurídico, o paradoxo do soberano pode ser enunciado então desta forma: ‘o soberano está, ao mesmo tempo, fora e dentro do ordenamento’. A precisão ‘ao mesmo tempo’ não é supérflua: ‘o soberano, na verdade, tendo o poder legítimo de suspender a validade da lei, coloca-se, legitimamente, fora dela. Por isso, o paradoxo da soberania pode ser formulado também deste modo:‘a lei está fora de si mesma, está fora da lei; ou: eu, o soberano, que estou fora-da-lei, declaro que não há fora- da-lei’”. Ibidem, p. 117. O sujeito (aquilo que, etimologicamente, está sub, sob) é soberano (e, portanto, super, ele é aquilo que está sobre) o que, para Agamben, nega o sujeito como coerência e afirma-o como paradoxo, o de ficar aí onde ele não está, ideia que não contesta, a rigor, a definição lacaniana do sujeito. Talvez esteja aí a distância entre Rella e Agamben, a noção de sujeito, que, neste último caso, paga o preço de um alinhamento estreito junto a Foucault, inimigo figadal da psicanálise.12 RELLA, Franco; MATI, Susanna. Georges Bataille filosofo. Milano: Mimesis, 2007, p. 9.

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A Ferida Metafísica

Franco Rella

Somente a filosofia reveste uma estranha dignidade pelo fato que ela assume a aposta em questão infinita. Não são os resultados que lhe valem um prestígio discutível, mas somente o fato de que responde à aspiração do homem que requer a aposta em questão de tudo aquilo que é [...]. Mas quais sejam os legítimos prejuízos nos seus confrontos, por mais falaciosos (desprezíveis e também odiosos) que sejam os seus resultados, a sua supressão se esbarra nesta dificuldade: que justamente tal falta de resultados é realmente a sua grandeza. O seu valor está inteiramente na ausência de respostas que suporta.

G. Bataille

Não se deveria imaginar que o evento não signifique, em primeiro lugar, aquilo que é, mas ele significa muito mais do que aquilo que é.

G. Bataille

Não pode existir esperança interior sem a comunidade daqueles que a vivem [...]. A comunicação é um fato que não se acrescenta de modo algum à realidade humana, mas a constitui.

G. Bataille

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Crise da filosofia

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O pensamento, hoje, renuncia confrontar-se com a trágica pluralidade conflitual que caracteriza a nossa época e traduz a sua prática num infinito e indiferente fluir de interpretações, que aniquilam realmente aquilo que poderíamos definir como o “conflito das interpretações”. Renuncia confrontar-se, portanto, com o sentido do mundo e com os sinais múltiplos, ambíguos e contraditórios em que este se manifesta. Para enfrentar o sentido de um mundo dilacerado, e das obras ou dos complexos significativos em que tal dilaceração se mostra, é necessário que o pensamento pense também contra si mesmo, opondo-se à ânsia do conceito que deseja resolver tudo em si, e que saiba, desse modo, chocar-se e abrir-se – Bataille diria em direção ao seu “fora” – colidindo contra aquilo que o sistema conceitual não pode assumir no seu espaço. Por outro lado, como disse Adorno, a filosofia se ilude em conhecer aquilo que pensa simplesmente assimilando a si, “mas, assim, ela conhece somente a si mesma” e não o mundo.1

Bataille, como e mais do que Heidegger, profeticamente se deu conta da deriva que levava a filosofia a percorrer, sem atrito algum, ao lado do mundo das coisas, ao lado do sujeito que habita e que se move no seu interior. O conjunto do seu pensamento e da sua obra se propõe como um extraordinário dispositivo que nos permite atravessar as tensões que dominaram o seu mundo, e que ainda dominam o nosso, fazendo emergir, como um ângulo incontornável,

1 ADORNO, T.W. Dialettica negativa. Organizado por S. Petrucciani.Torino: Einaudi. 2004, p. 136. A polêmica de Adorno nos argumentos de Hegel tem uma tonalidade que traz à tona Bataille, que, porém, nunca é citado. Como se pode não pensar em Bataille ao ler que a filosofia hegeliana removeu o lado material da vida, a subjetividade, a experiência e que sobre isso “a infância possui impressão no fascínio que provém do coveiro, da carcaça, do desgostoso cheiro da putrefação, das expressões obscenas [...]. Aquele que conseguisse refletir sobre essa questão, que uma vez fora oprimida pelo som de palavras como”canal de escoamento” e “pocilga”, estaria bem mais próximo do saber absoluto do capítulo hegeliano, que o promete ao leitor para depois negá-lo com superioridade” (ADORNO, 2004, p. 329).

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a exigência de repensar a metafísica e o seu declínio, e, justamente nesse seu declínio, uma nova solidariedade com a própria metafísica. Permite-nos repensar as várias ontologias que, depois de Heidegger, dominaram a segunda metade do século XX, e repensar, sobretudo, o papel da própria filosofia, no momento em que, como se costuma dizer, parece que “não consegue mais” se confrontar com o mundo, e, talvez, nem mesmo consiga mais percorrer a cartografia que as ciências traçam do mundo, ou melhor, a ciência agora traduzida e declinada como técnica, transformada na linguagem do “como poder fazer”: e ainda melhor, de como ter o poder de fazer.

Reler Bataille2, hoje, não significa fazer uma “arqueologia do moderno” ou percorrer novamente a sua obra retirando-lhe uma série de conceitos para serem utilizados no interior dos procedimentos filosóficos atuais. Significa confrontar-se com uma necessidade, que Bataille sentiu dramaticamente e que se apresenta novamente, em nossos dias, inexausta. Significa confrontar-se com um dos filósofos mais significativos do século XX, um filósofo que, sabemos, chega também até a nossa contemporaneidade com uma problemática que deve ser, de fato, enfrentada para, da mesma maneira, pensar o nosso tempo.

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Falamos da necessidade do confronto com o pensamento de Bataille, mas, apesar disso, o seu nome não aparece nos manuais de filosofia. Percorrendo a vasta bibliografia que se depositou sobre sua obra, poucos são os livros ou os ensaios que abordam atualmente

2 No texto se faz sempre referência a G. BATAILLE, Œuvres complètes, organizado por D. Hollier e T. Klossowski, XII vol., Gallimard, Paris, 1970-1988). O título das obras individuais é, ao contrário, mencionado em italiano no texto, para facilitar ao leitor (e no final do volume oferecemos todas as traduções italianas). Faz-se referência às obras mais citadas com as siglas ME para Madame Edwarda, AC para O abade C. [coloco ao longo dos ensaios o título O padre C., tal como aparece na tradução ao português (N. T.)], EI para A experiência interior, C para O culpado, SN para Sobre Nietzsche, para a qual segue a sigla OC para Œuvres complètes, o número do volume e o número da página. A Suma ateológica, que possui mais referências, é o conjunto composto por: A experiência interior, O culpado e Sobre Nietzsche. Existem vários planos de continuação da própria obra, que, porém, ficou no final composta pelo trítico citado.

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os verdadeiros nós do seu pensamento. Outros trabalhos, também de grande interesse, permanecem ligados aos aspectos setoriais: a soberania, a economia, a despesa, o surrealismo, o erotismo, a literatura, sem perceber que tais temas se entrelaçam num núcleo profundo que dá o próprio sentido global desses trajetos aparentemente heterogêneos.3 Ainda hoje há quem defina Bataille como “um escritor de vanguarda”, e a Suma ateológica como algo que pertença à “ficção narrativa e à arte”.4

A dificuldade em prestar contas com o conjunto da sua obra é, ao menos em parte, devida ao caráter fragmentário, descontínuo dos seus escritos. Livros assinados com um pseudônimo, porém com introduções assinadas por Georges Bataille; livros abandonados e retomados que se movem sobre os terrenos mais diversos. Bataille está consciente disso, e se ele pode afirmar, em O culpado, o seu assombro diante do fato de que nos seus textos exista uma ordem “tão rigorosa que, depois de um intervalo de alguns anos, a picareta atinge o mesmo ponto (desvio irrelevante à deferência). Um sistema de precisão cronométrica ordena os meus pensamentos” (C, OC, V, 356), isso é possível porque algo de novo aconteceu. Bataille escreveu o tríptico da Suma ateológica, em que, como ele afirma, concluiu “o plano de uma filosofia coerente” (SN, OC VI, 195).

Bataille escreverá ainda – mesmo depois desse período – livros que permanecerão incompletos: por exemplo, a segunda e a terceira parte de A parte maldita. No entanto, desde então, está claro, para ele, como para nós, seus leitores, que a incompletude é estrutural no seu sistema; é, como se sabe, um elemento constitutivo. Mas antes de ir além devemos dar um passo para trás.

3 Depois dos ensaios, pouco posteriores à morte de Bataille, de Foucault e de Derrida, a bibliografia relativa à sua obra se tornou imponente, mas, como se sabe, parcial. Aquilo que mais ficou na sombra é, de fato, aquele que mais nos interessa, isto é, o relevo propriamente filosófico da sua obra. Para destacar o empenho, sobre a vertente sociopolítica de Bataille, das obras de Jean-Luc NANCY (La comunità inoperosa, organizado por A. Moscati, Cronopio, Napoli, 1992) e de Roberto ESPOSITO (sobretudo Comunitas, Einaudi, Torino, 2006). Ressalta-se também o empenho editorial de Bollati Boringhieri, da Adelphi e Guida (estas organizadas por F. C. PAPPARO), por isso se remete à lista as edições italianas em apêndice no volume.4 CARRETTE, J. R. Prologue to a confession of the flesh. In: FOUCAULT, M. Religion and culture. New York: Routledge, 1999, p. 20-21.

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A aventura da Suma ateológica abre a estação mais intensa do pensamento de Bataille, o decênio que vai desde o início dos anos 1940 até o início dos anos 1950. Bataille escreveu, até esse momento, a História do olho, em que falta a noção de erotismo, escreveu também uma série de artigos para “Documents”, sobre os quais se movem Didi-Huberman, Yves-Alain Bois e Rosalind Kraus,5 o romance que ficou por muito tempo inédito, O azul do céu, e os artigos da “Critique sociale”, do “Colégio de sociologia” e da revista “Acéphale”. Ele escreveu, em 1933, seis ou sete versões do ensaio A noção de despesa, em que se anunciam os temas d’A parte maldita. É, porém, no interior do horizonte que se abriu com A suma ateológica que tudo isso encontrará lugar e sentido.

A década mais intensa da vida de Bataille se abre com dois livros, A experiência interior e Madame Edwarda, para depois vir com O culpado, Sobre Nietzsche, as narrativas de O pequeno e O morto e a abertura de um novo tríptico, aquele d’A parte maldita, preparado através dos textos Além do útil e Teoria da religião (permanecidos inéditos), para seguir, depois de A parte maldita I, com a História do erotismo (inédito). A década se fecha com o romance O padre C. No início dos anos 1950 temos as Conferências sobre o não-saber e, em 1953, a terceira parte d’A parte maldita e A soberania (este também inédito).

Depois desse período Bataille escreveu artigos e ensaios, alguns dos quais recolhidos em A Literatura e o mal, em O erotismo, e um único livro, As lágrimas de Eros, publicado em 1961, quando Bataille já se encontrava doente, como ele adverte, quando escreve a Kojève, “um transbordamento” do seu cérebro, que não está mais seguro de dispor “das possibilidades que um tempo” foram suas6, tanto que a inteira paternidade do livro foi colocada em discussão.77

5 G. DIDI-HUBERMAN. La rassemblance informe ou la gai savoir visuel selon Georges Bataille. Macula, Paris, 1995; BOIS, Y. A.; KRAUS, R. L’informe, trad. it. de E. Grazioli. Bruno Mondadori, Milano, 2003.6 Carta a A. Kojève, 2 de junho de 1961. G. BATAILLE. Choix de lettres. Organizado por M. Surya. Paris: Gallimard, 1997. As cartas citadas, também posteriormente, irão se referir a esta edição.7 M. SURYA. Georges Bataille : la mort à æuvre. Paris : Gallimard, 1992.

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Bataille repensa certamente essa década extraordinária, em que se faz presente a sua filosofia, quando, na carta já citada a Kojève, já no final da sua vida, ele declara que se trata sempre de filosofia e mostra mais uma vez a vontade de escrever um livro paralelo à Introdução à leitura de Hegel, de Kojève, mas introduzindo nele o que Hegel não pensou, ou que ignorou, mesmo estando, seja como for, na base do seu sistema. E acrescenta que, mesmo na base desse sistema, no sistema hegeliano, assim como está projetando, poderia ser chamado de loucura. Ele se propõe, portanto, de algum modo, um empenho completamente filosófico, para dar a Hegel aquilo que a Hegel falta: a loucura. Ele se propõe ser a loucura de Hegel, traçando o parentesco entre loucura e metafísica salientada também por Adorno.8 Mas para chegar a ser “a loucura de Hegel”, Bataille devia em primeiro lugar construir a sua filosofia e, para alcançá-la, ele devia pagar um duplo xeque-mate, uma dupla falência. A sua filosofia realmente “quer o êxito da falência”, quer “que seja a falência a vencedora” (C, OC, 348-49).

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Alexandre Kojève realiza, em Paris, de 1933 até 1939, um seminário sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel e, entre os presentes, se encontram Sartre, Lacan, Queneau; este organizará a redação e a publicação do curso, Merleau-Ponty e Bataille. Kojève radicaliza o discurso já radical de Hegel, colocando-se como um dos maiores intérpretes do seu pensamento. Certamente o mais extremo, o mais extremista.

Em 4 de dezembro de 1937, Kojève realiza uma conferência no Collège de Sociologie, organizada por Bataille, Caillois, Klossowski e Leiris, que começa nesse mesmo ano. A conferência se intitula: “Les conceptions hégeliennes”. No dia 6 de dezembro, Bataille escreve uma carta a Kojève em que, talvez pela primeira vez, se definem com clareza os temas centrais da sua filosofia e que dá início a um debate intenso, às vezes dramático, do qual emergem alguns rastros nas cartas de que podemos dispor.

8 ADORNO, Dialettica negativa, op. cit., p. 362. Sobre Bataille como o louco de Hegel, cf. F. RELLA. Micrologie. Roma: Fazi, 2007.

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A carta é o único modo, escreve Bataille, para continuar um diálogo que até este momento se desenvolveu de várias formas, e devo dizer que o processo que você me oferece me ajuda a exprimir com uma maior precisão.

Este já é um primeiro rastro que nos permite compreender o tom do confronto. A qual processo Bataille estava submetido? Quais eram as acusações?

A acusação de Kojève, reiterada até 1950,9 quando o tom do confronto se mostra menos áspero e menos tenso, é aquela de misticismo: Bataille, como todo místico, sai do logos, como ratio e como discurso, e termina não dizendo nada. Kojève, ancorado à filosofia hegeliana que dá razão e palavra à totalidade do possível, lança, portanto, uma acusação que é também uma involuntária profecia daquilo que está se movendo ainda de forma obscura no pensamento de Bataille.

Nos fins de 1937, em outra carta, Bataille avança em duas direções. O sistema hegeliano não dá conta da sua singularidade, isto é, não dá conta de nenhuma singularidade. E essa é a objeção já colocada por Kierkegaard e que o próprio Bataille, à altura da Suma ateológica, considerará superficial (EI, OC, 128), como inadequadas lhe parecerão as objeções de Nietzsche, que não dão conta do conjunto da dialética hegeliana. Em segundo lugar, a sua “singular negatividade” para ser tal deve ser reconhecida por outros, e, portanto, pressupõe uma comunidade, ou seja, uma vida em comum, aquela que Hegel chamava “eticidade” e que não pode ser reduzida ao “serviço militar obrigatório” (EI, OC, V, 173)10. Esse dúplice desconhecimento, segundo Bataille,

9 Sobre a relação Bataille-Kojève, leia-se, neste mesmo volume, o ensaio de Susanna MATI, e ainda de S. MATI: Sintesi dei possibili e Impossibile. In: G. BATAILLE. Storia dell’erotismo. Organizado por F. Rella, trad. de Susanna Mati., Roma: Fazi, 2006 e F. RELLA, Micrologie, op.cit.10 “Ninguém mais do que Hegel deu importância à separação dos homens entre si. Ele foi o único a dar a essa fatal dilaceração o seu lugar – o devido lugar – dentro do domínio da especulação filosófica. Mas não é a poesia romântica, é o “serviço militar obrigatório” que lhe pareceu garantir a volta à vida comum, sem a qual não havia, segundo ele, saber possível (ele não viu nisso o sinal dos tempos, a prova de que a história chegava ao fim”. In: BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 160 (N. T.).

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impede a Hegel de erguer-se para além da sua obra, em lugar de proteger-se nela. Hegel deveria ser reconhecido como sujeito e não somente como o autor da Fenomenologia, pois, de outra forma, não arriscando nada de si e lançando-se somente no interior da sua filosofia, ele pertence ainda àquela dimensão – “o reino animal do espírito” – em que ele próprio na Fenomenologia do espírito encerrava o intelectual. De fato, os “animais” intelectuais colocam na sua atividade singular um valor absoluto e não lutam contra a negatividade. Mas é essa uma luta verdadeira, se a singularidade que está aí vinculada não é colocada em jogo? Se reconheço em Hegel somente o autor de um livro imenso, no qual, como parece dizer Bataille em A experiência interior, ele se protegeu, recusando colocar em jogo a si mesmo até o êxito possível do vazio e da loucura, e, portanto, se não se reconhece o sujeito que nessa empreitada desflorou a loucura, então, o próprio Hegel não pertence ao Tierreich [reino animal] que ele condena? Desse modo, Hegel “no fim conhece senão o saber” (EI, OV, 130). E alcançado esse saber, o seu único objetivo, “Hegel no fim de sua vida não se colocava mais o problema: repetia os seus cursos e jogava baralho”.11

É “uma filosofia inumana” a de Hegel. O não-saber que Bataille supõe à altura da Suma ateológica deveria ter em si “a inexorável lucidez de Hegel”, mas, nesse ponto, “não seria mais Hegel, mas um dente dolorido na boca de Hegel. Somente um dente doente falta para o grande filósofo” (OC, V, 422-23).

Bataille quer ser esse dente doente, esse dente dolente. A afirmação é fulgurante e dá a cifra da imensa tentativa de Bataille de dilacerar, através dessa “deflação semântica”12 (como mais adiante através das narrativas de Madame Edwarda e de O padre C.), a filosofia para a “comunidade dos filósofos”, na qual estão encerrados tanto Hegel quanto Heidegger,1312 para fazê-la agir no contexto da

11 De l’existentialisme au primat de l’économie (1947). In: OC, XI, 282.12 A afirmação é de Y-A Bois, em L’informe, op.cit., e é, parece-me, uma observação feliz. Bataille submete constantemente a filosofia à pressão de um deslize da sua terminologia na linguagem do cotidiano.13 “Uma frase de Was ist Metaphysik? me tocou: “Nossa realidade humana (unseres Dasein), diz Heidegger – em nossa comunidade de pesquisadores, professores e estudantes – é determinada pelo conhecimento [...] ”. Digo isto menos para indicar o limite do meu interesse por Heidegger do que para introduzir um princípio: não

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comunidade mais propriamente humana, que se constitui através da comunicação.

Mas para tornar-se o “dente doente” na boca de Hegel, Bataille deve pagar, como dissemos, o êxito de uma falência.

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Quando Bataille inicia o curso de Kojève, “através de inúmeras leituras”, ele estava “no fluxo do movimento das ciências”. Tinha conhecido Dostoiévski, Nietzsche, Pascal, colaborando com Chestov, tinha já começado a leitura de Hegel e tinha se aproximado, através da mediação de Corbin, da filosofia do próprio Heidegger. Além disso, tinha lido Hubert e Mauss, que estão na base d’A Noção de despesa. Através das discussões em torno da “Critique sociale”, para a qual colaborava, Bataille conheceu o pensamento de Marx e dos marxistas. “Mas o curso de Kojève me quebrou, fiquei despedaçado, morto dez vezes.” (OC, VI, 416). De fato, Bataille tinha necessidade de filosofia. O seminário de Kojève não somente o introduz na filosofia, mas o faz afundar na maior e completa filosofia da Idade Moderna, no pensamento de Hegel. Daqui começa aquela batalha, na qual vimos o anúncio na carta a Kojève, em 1937, e que o ocupará por toda a vida. Ele necessitará justamente de Hegel, porque toda a sua obra parece um fazer e um desfazer a Fenomenologia de Hegel (EI, OV, 96). Tem tanta necessidade dele que afirma que se não existisse Hegel ele mesmo deveria ser Hegel, ou, ao menos, como recordamos, o seu “dente doente”. Mas para isso “lhe faltavam os meios” (C, OC, V, 353). A força do pensamento hegeliano é tamanha que diante deste, escreve Bataille, “as minhas feridas, o meu riso, as minhas ‘santas’ luxúrias, parecem-me fora de lugar”, e, não obstante, elas geralmente parecem estar “na medida de um esforço que busca reconduzir o homem a si mesmo” (C, OC, V, 351), repetindo a necessidade de Hegel e de ir além de Hegel.

pode haver conhecimento sem uma comunidade de pesquisadores, nem experiência interior sem comunidade daqueles que a vivem” (tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 32) (N. T.) Mas enquanto a comunidade dos pesquisadores é ligada por critérios formais, que regulam sujeitos já, di per sé, definidos, a comunicação, como entende Bataille, não é algo que se sobreponha à realidade humana “mas que a constitui” (EI, OV, 37).

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É certo dizer, com Derrida,14 que todas as categorias de Bataille são hegelianas, mas é da mesma maneira verdade que todas essas categorias sofreram uma verdadeira e própria perversão. Bataille não soube ser Hegel e incorporou essa peça no seu próprio movimento filosófico. A chance filosófica alcança aqui a sua échéance, alcança o vencimento, vai à falência, e é esta que torna grande a filosofia (C, OC, V, 374).

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Bataille está diante do imenso sistema hegeliano, que parece dar conta de todo o real, ao menos de tudo aquilo que é pensável. Mas este é o excesso desse sistema, a sua angustiante bulimia, que descarta e tritura literalmente tudo aquilo que não pode engolir. No início desse sistema – o seu fundamento – está o saber absoluto, que se estende e se manifesta no mundo e no tempo. Bataille está convencido disso, como, aliás, está convencido de que é de qualquer forma necessário pensar realmente “aquilo que excede a possibilidade de pensar”, embora esse excesso “não possa ser filosoficamente fundamentado, já que o excesso excede o fundamento” (ME, III, 11)15. O problema que Bataille se colocou é, portanto, aquele de pensar o impensável, e para fazer isso se podem e se devem colocar em campo o riso, as lágrimas, as “santas luxúrias”; mas tudo isso sozinho não basta. Deve encontrar lugar numa filosofia, numa não ainda pensada, numa filosofia futura, como Susanna Mati intitula o seu ensaio. Uma filosofia, acrescento, que Bataille começou então a pensar e que é ainda hoje uma tarefa do pensamento.

Bataille opõe ao sistema a experiência, ao saber o não-saber, que não é a sua negação, mas, como veremos melhor adiante, o saber do limite, o saber que procede, sem deter-se no espaço limiar entre

14 Dall’economia ristretta all’economia generale. Un hegelismo senza riserve. In: DERRIDA, J. La scrittura e la differenza. Trad. it. de G. Pozzi. Torino: Einaudi, 1971.15 “Je m’excuse d’ajouter ici que cette définition de l’être et de l’excès ne peut philosophiquement se fonder, en ce que l’excès excède le fondement : l’excès est cela même par quoi l’être est d’abord, avant toutes choses, hors de toutes limites”. Esta citação se encontra presente na nota 1 do prefácio in: BATAILLE, Georges. Madame Edwarda. Le mort. Histoire de l’œil. Paris: Jean-Jacques Pauvert Editeur, 1977, p. 21 (N. T.).

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o possível e o impossível. É nesse ponto, sobre as soleiras da Suma ateológica e dos grandes textos dos anos 1950, que Bataille se encontra realizando uma fissura na tradição filosófica, para abrir um caminho que nunca foi antes percorrido, que ele mesmo teme ser impercorrível. Quem poderia acompanhá-lo?

Com Nietzsche Bataille prestará contas no terceiro volume da Suma ateológica. Sobre Nietzsche se abre com uma afirmação enigmática. “Salvo poucas exceções, a minha companhia na terra é aquela de Nietzsche...”. Nietzsche e não Rimbaud, ou Blake, ou Proust. “Somente Nietzsche se tornou solidário a mim – dizendo nós”. Nietzsche, de fato, lhe permitiu pensar o instante da experiência interior, o jogo do acaso e da possibilidade. Mas devemos ir ao final desse breve parágrafo inaugural, onde lemos: “Se a comunidade não existe, Nietzsche é um filósofo”.

Nietzsche é um Dionísio sem o cortejo das Bacantes. Nietzsche é realmente o filósofo da solidão (OC, VI, 13). As suas doutrinas têm “isso de estranho”. Que não podem ser seguidas. Emitem diante de nós luzes indefinidas, e, frequentemente, uns relâmpagos: não há via que conduza à direção indicada” (OC, VI, 107, grifo meu). Bataille tinha-o já dito, na carta de 1937: sem comunidade não existe nem mesmo um sujeito, e em Nietzsche parece não existir comunidade. Portanto, em Nietzsche, parece não existir sujeito, não existir uma filosofia que pensa o possível e o impossível da subjetividade no interior de uma comunidade.

Zaratustra está sozinho e fica, entre um ermo e outro, com seus solitários animais. Além disso, existe um outro aspecto que Bataille não salienta, mas que é possível entrever nos seus textos e que se fará sempre mais urgente. O super-homem nietzschiano, Zaratustra, que dança sobre as coisas e que passa além da grande cidade com tudo aquilo que nela habita,16 não se assemelha ao “ensaio” hegeliano? Com aquele que não se cura da “fermentação da substância”17 de uma subjetividade não mediada e, desse modo, não redimida no pensamento?

16 F. NIETZSCHE. Così parlò Zarathustra. Trad. it. de M. Montinari. Milano: Adelphi, 2004. p. 206 e ss.17 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia dello spirito. Organizado por V. Cicero, Rusconi (depois Bompiani), Milano, 1995 ss., Prefazione, I, 1, c.

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E após Hegel, Heidegger. Susanna Mati ressalta a contradição da relação de Bataille com Heidegger, conhecido, aliás, em modo aproximativo, através da tradução duvidosa de Corbin e a provável mediação dos textos de Sartre. E, certamente, Heidegger, junto a Nietzsche, permitiu-lhe pensar o êxtase como momento constitutivo do pensamento. Mas o ser sem os seres de Heidegger não se assemelha, também esse, à “divina indiferença”, com relação ao mal de viver, do qual, segundo Bataille, Hegel se defendeu escrevendo e se projetando na Fenomenologia, até que, convencido de ser Deus, e estando fora do mundo, pôde iniciar o jogo de baralho tranquilamente?

E, enfim, Blanchot, tão citado em A experiência interior, não resolve tudo na monstruosa neutralidade da escritura, na qual tudo submerge indiferente? E em relação ao restante das possíveis referências de Bataille basta ler o Debate sobre o pecado (OC, VI) para se dar conta da sua absoluta indiferença ao contexto da filosofia francesa que lhe é contemporânea.

Se o sinal desse insucesso desejado, do êxito desse insucesso, não estivesse em Nietzsche, ou em Heidegger, ou em Blanchot, mas em Kafka? Kafka está presente em O culpado como aquele que colocou o impossível no possível, que tornou praticável o impossível através da impotência, do incompleto, do insucesso que tanto Benjamin quanto Adorno caracterizaram como o traço fundamental da sua obra.18 Bataille escreveu somente um ensaio sobre Kafka, presente em A literatura e o mal, mas com Kafka devia encerrar A soberania, e, assim, de fato, o conjunto de A parte maldita. A soberania de Kafka diante da soberania de Sade? E se a soberania de Kafka fosse realmente o poder da impotência, o possível para além do possível ligado ao incompleto? Nesse sentido, no nome de Kafka, a falência teria conseguido abrir caminho para uma nova filosofia, e, também, com esta, teria conseguido abrir caminho para uma reconsideração da temática sacrificial, que até esse momento Bataille liga ao tema da comunidade. O sacrifício está presente em Kafka ao longo de toda a sua obra, mas está presente por parte da vítima, embora Kafka escreva, em várias cartas a Felice, sentindo-se ao mesmo tempo vítima e carrasco.19

18 Sobre isso cf. F. RELLA. Scritture estreme. Proust e Kafka. Milano: Feltrinelli, 2005.19 KAFKA, F. Lettere a Felice. Organizado por E. Pocar. Milano: Mondadori, 1977. Cf.

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Bataille faliu e não se tornou Hegel. Mas existe, como dissemos, um segundo insucesso que o coloca na via de uma “filosofia futura”. É sobre isso que devemos falar agora, mesmo se tivermos que voltar mais atrás e desenvolver esse tema com maior profundidade.

Nas sociedades primitivas a comunidade se fundava sobre o sacrifício. Na pulverização da comunidade na Idade Contemporânea, Bataille tenta repropor uma comunidade ainda hoje fundada sobre o sacrifício. É a experiência de “Acéphale”, que foi, como se sabe, uma revista, mas também a tentativa de uma secreta seita pararreligiosa, que tinha o objetivo de fazer comunidade através da retomada de uma prática sacrificial. Dessa sociedade, como argumenta Surya,20 não se sabe praticamente nada, talvez por causa do segredo que os adeptos mantinham, mas mais provavelmente porque somente Bataille tinha o projeto e a natureza dessa sociedade. Está claro que, pelo pouco que sabemos sobre isso, Bataille e alguns amigos se reuniam nos bosques da periferia de Paris, realizando orgias. Nesse contexto parece que está colocada a questão do sacrifício, que determinou provavelmente o fim da experiência de “Acéphale”.

Bataille nos anos imediatamente posteriores toma distância daquela tentativa e escreve: “Foi um erro monstruoso, mas o conjunto de meus textos dará conta ao mesmo tempo do erro e do valor dessa monstruosa intenção” (OC, VI, 373, grifo meu).

Bataille compreendeu que o verdadeiro sacrifício é “o sacrifício nu, sem carneiro, sem Isaac” (EI, OC, V, 66)21. O sacrifício devia permitir a colheita da vida também no seu lado obscuro, ou seja, o lado

também STEINER, G. Linguaggio e silenzio. Trad. it. de R. Bianchi. Milano: Garzanti, 2001.20 SURYA, M. Georges Bataille, la mort à l’æuvre, op.cit., parte III; NANCY, J.-L. La comunità inoperosa, op.cit.; BLANCHOT, M. La comunità inconfessabile. Trad. it. Di M. Antomelli. Milano: Feltrinelli, 1984.21 “Deus, como o carneiro substituído a Isaac. Isto não é mais o sacrifício. Mais adiante, é o sacrifício nu, sem carneiro, sem Isaac. O sacrifício é a loucura, a renúncia a qualquer saber, a queda no vazio, e nada, nem na queda nem no vazio, nada é revelado, porque a revelação do vazio é somente um meio de cair mais profundamente na ausência.” In: BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 58 (N. T.).

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da morte que leva a própria vida ao seu fim. Este fim, fora do sacrifício, é impossível, assim como no momento em que – na nossa espera de ser – alcançamos o fim tocando o concluído, portanto, a morte dentro da vida, ou a vida dentro da morte. Desse modo, cessa a consciência dessa plenitude, que é somente suposta. Bataille, nesse ponto, deu um outro passo importante, o mesmo que o tinha liberado de Hegel e também de Nietzsche.

Não mais se considerar tudo é, para o homem, a mais alta ambição, é querer ser homem (ou, se quisermos, superar o homem – ser o que ele seria, mas livre da necessidade de almejar a perfeição, agindo opostamente) [...] O homem cessando – no limite do riso – de se querer tudo, no final se querendo o que ele é, imperfeito, inacabado (EI, OC, V, 38, grifo meu)22.

O que tinha gerado aquela “monstruosa exigência”, que está procurando exprimir-se de outras formas, como veremos melhor adiante, é o problema de Bataille: é a dimensão ética que deve se traduzir no que Hegel tinha chamado eticidade. Na dissolução moderna da comunidade e dos valores que fundam comunidade, como afirma Butler na sua leitura de Adorno, “o ethos coletivo é invariavelmente um ethos conservador, que postula uma falsa unidade, que suprime as dificuldades e as descontinuidades que existem em cada ethos contemporâneo”. E a partir do momento em que essa descontinuidade não é resolvida, o ethos não é compartilhado, e, assim, deve ser imposto nos seus objetivos “somente através dos meios violentos. Nesse sentido, o ethos coletivo instrumentaliza a violência para manter a aparência da sua coletividade. De qualquer forma, esse ethos se torna violência no momento em que se tornou um anacronismo”.23 Quando se tornou, ou quando permanece um anacronismo.

22 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 33 (N. T.).23 BUTLER, J. Giving an account of oneself. New York: Fordham University Press, 2005, p. 3-4. Mas leia também todo o I e o III capítulos. Butler discute os temas abordados nas suas aulas por Adorno em 1963 (à altura da Dialettica negativa): ADORNO, T. W. Probleme der Moralphilosophie, Suhrkamp, Frankfurt a. M. 1997.

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O conflito entre Antígona e Creonte, sobre o qual Hegel constrói na Fenomenologia do espírito o conceito de eticidade, é o conflito entre o genos, a lei moral da espécie e da família, e a polis, isto é, as razões da lei da comunidade que deveria se tornar Estado, mas que, nos tempos de Sófocles, não estava ainda completamente constituído. Se o conceito gera violência assimilando ou expelindo a singularidade, igualmente o ethos da eticidade, isto é, o ethos da comunidade estatal, gera violência ao ethos que ainda não a alcançou ou que a superou, deixando para trás os valores que a fundam e que a constituem.

As revoltas, as revoluções e as contrarrevoluções no curso da história e em particular no século XX tornam esse tema premente. Os debates sobre o comunismo, antes da guerra, e sobre o imediato pós-guerra, são lancinantes (pense-se no caso Sartre-Merleau-Ponty e de “Les Temps Modernes”), como em certos momentos é perturbador o debate sobre o fascismo e sobre os valores e os símbolos que este tinha desenvolvido para fundar a sua eticidade.

A exigência que gerou a monstruosa tentativa de Bataille percorre toda a Suma ateológica, a História do erotismo e O padre C., em que a questão do sacrifício está abordada radicalmente. “Acéphale” vai à falência e esta faz emergir a necessidade de fundar a eticidade não partindo de um ethos coletivo, mas da comunicação, aquela que vem em primeiro lugar entre amantes. Aliás, como já lembramos, “a comunicação é um fato que não se acrescenta de modo algum à realidade humana, mas a constitui” (EI, OC, V, 37)24. Resta uma última observação a ser feita. “Realidade humana” é o Dasein heideggeriano na tradução de Corbin de Ser e Tempo. Bataille não é um filósofo de escola e conhece Heidegger menos do que o conhecem Sartre, por exemplo, ou Lévinas. Mas talvez o tenha compreendido mais do que estes. Bataille sabia o que significava o Dasein heideggeriano, e é interessante refletir o que se torna esse Dasein uma vez que se tenha postulado que ele é constituído pela comunicação na declinação que Bataille dá para essa noção.

24 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 32 (N. T.).

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A exigência metafísica

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Existem experiências que têm êxito e sobre as quais, ao menos ex post, se pode dar um relato. São, por exemplo, as experiências místicas, que Bataille aborda em A experiência interior. O místico alcança através de uma série de exercícios e de práticas a experiência de Deus, e ali se apaga, e apagado, narra. Existem experiências que não têm fim. A experiência erótica, por exemplo, pode levar ao esgotamento e à impotência, nunca ao apagamento. Também a experiência do instante, o grande instante de Zaratustra, que abre uma chance vertiginosa, é uma experiência sem palavras, e quando Zaratustra procura explicá-la, as suas palavras se mostram sempre mais plangentes, porque tem medo dos seus próprios pensamentos (Zaratustra, op. cit., p. 184-185).

Inexprimível é, sobretudo, a experiência do limite, que é ao mesmo tempo a impossibilidade de ser detida, mas também de ser resolvida no alhures platônico, ou na Coisa em si kantiana ou no Espírito absoluto hegeliano. A experiência do limite é “o êxtase inominável”, em que se percebe que “a morte não é somente desaparecimento”, mas um “movimento intolerável” impresso na própria vida. O pensamento dessa experiência se produz e se compõe somente no excesso, e fora do excesso não existe verdade. Não existe verdade, portanto, fora da necessidade de ver aquilo que é impossível ver, de pensar aquilo que é impossível pensar (ME, OC, III, 10-11). Já lembramos numa nota no texto que introduz Madame Edwarda, onde Bataille acrescenta que é impossível fundar filosoficamente o que afirma, como o excesso excede, em primeiro lugar, o fundamento sobre o qual pousa toda filosofia.

“O excesso é aquilo mesmo para o qual o ser está, em princípio, antes de cada coisa, além de todo limite.” Bataille exprime, aqui, a própria estância metafísica. O ser está também dentro dos limites, e é em virtude desses limites que posso falar, embora a palavra que falo seja uma palavra que foge constantemente em direção àquela estância ulterior, aquela que está além do limite, porque “tudo aquilo que é, é

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mais do que aquilo que é” (ME, OC, III, 11)25*. Aquilo que é é também o seu além, é também a sua essência metafísica inominada e inominável, que abala qualquer metafísica conhecida.

Como pode falar o impensável? Como se pode dizer aquilo que não se pode ver nem pronunciar?

Movemo-nos, neste parágrafo, pela introdução de Madame Edwarda, definida por Blanchot como a mais bela história do século. Madame Edwarda não é propriamente uma história, assim como a Suma ateológica não é propriamente uma obra filosófica. Ambas fazem parte, ao lado de toda obra desse período, do desenvolvimento de um complexo dispositivo de pensamento e de escritura estendido para traçar o território limiar da nova metafísica, que Bataille está construindo. Bataille não é “um escritor de vanguarda”, embora os escritores de vanguarda da “Tel Quel” tenham lhe tomado como presa. Não é propriamente um narrador ou um poeta. Mas é oportuno deter-se nesse equívoco.

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Bataille é um autor de narrativa e de poesia de difícil classificação. É árduo, por exemplo, decidir o que efetivamente é um livro como O impossível, construído em diversas estratificações, articulado em prefácios, posfácios e notas. E isso vale, mais ou menos, para todos os seus textos literários, todos, aliás, assinados com pseudônimos que certamente não comprovam a sua identidade, desde o momento em que não somente era do conhecimento de todos que ele era o autor destes, pois Bataille intervinha com nomes próprios nos prefácios, que eram totalmente integrados aos textos, do ponto de vista temático e estilístico. Somente com O padre C., não por acaso nos fins daquela década que declaramos decisiva para a construção do seu “coerente” sistema filosófico, ele aparece como o autor dessa obra, como se quisesse destacar até aquele momento uma sorte de lateralidade da produção propriamente literária.

25 “[...] et l’excès désigne l’attrait – l’attrait, sinon l’horreur, tout ce qui est plus ce qui est, mais leur impossibilité est d’abord donnée.” In: BATAILLE, Georges. Madame Edwarda. Le mort. Histoire de l’œil. Paris: Jean-Jacques Pauvert Editeur, 1977, p. 22, grifo do autor (N. T.).

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Na carta já mencionada, de 1937, Bataille tinha especificado na arte e na religião duas modalidades para dar conta de sua “negatividade sem uso”, que não tinha lugar e razão no sistema hegeliano. De fato, a primeira das metamorfoses da “negatividade sem uso” é a arte, e já que esta não se coloca um fim, não tem, portanto, “uso”. É uma solução parcial, mas a partir dela resulta inegável que “a negatividade que, desviando-se da ação, se exprime numa obra de arte é algo não menos carregado de sentido em relação às possibilidades existentes para mim. Indica que a negatividade pode ser objetivada”. O limite da arte, assim como, aliás, da razão, está no fato de que nos seus âmbitos “a negatividade não é ‘reconhecida como tal’”. O discurso prossegue cerrado, reconhecendo uma diferença fundamental entre a objetivização da negatividade, como foi reconhecida no passado justamente na arte e na religião, e aquela que permanece possível no final, isto é, sobre as bordas extremas do sistema hegeliano. Sabe-se que o homem da negatividade sem uso, não encontrando “na obra de arte uma resposta para a questão que ele mesmo é, não pode tornar-se o homem da ‘negatividade reconhecida’”, objetivo a que Bataille já aspira, porque pressupõe, por um lado, uma filosofia antagonista daquela de Hegel, e, por outro, uma comunidade em que essa negatividade seja reconhecida.

Bataille, em O padre C., encontra uma metáfora para explicar a sua postura diante dos confrontos com a literatura. Um carro se aproxima de outro para ultrapassá-lo, e o primeiro se lança para fora, e

exatamente esse tempo da sua arrancada, que revela minha impossibilidade de ultrapassá-lo, e depois, de segui-lo, é a imagem do objeto que o escritor persegue: o objeto só é seu à condição, não de ser capturado, mas, no extremo do esforço, escapar aos termos de uma tensão impossível (AC, OC, III, 266)26.

A grande poesia é o sacrifício, o holocausto da palavra útil, porém, movendo-se em direção ao desconhecido, que todo sacrifício abre diante de nós, ela é levada a arrastar consigo o “conhecido” da qual

26 BATAILLE, Georges. O padre C. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 52 (N. T.).

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se deslocou (EI, OV, 156-157), e que lhe impede, de fato, o arranque decisivo. Quando o sacrifício é realmente realizado, “sem equívocos e sem reservas”, como no caso de Rimbaud, então não fica mais nada “dessa contestação sem frase”. Rimbaud se torna mudo, afásico. Renunciou. A literatura, desse modo, quando subsiste, procede cancelando-se, e opera como opera o tempo, “que, dos seus edifícios multiplicados, só deixa subsistir os traços da morte”. Ir além desses traços, estes meros sinais, significaria “gritar tão alto que ninguém imaginaria a sobrevivência de quem se esganiçou tão ingenuamente” (AC, OC, III, 336)27.

Bataille acreditou de tal forma na impossibilidade de que a literatura pudesse escapar da aporia que afundou Rimbaud, e que pudesse produzir um grito tão alto – o grito que ressoa sobre o fundo da Suma ateológica – que deixou inédito por mais de trinta anos o seu único verdadeiro romance, O azul do céu.

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Começamos, acima, a introduzir o tema da metafísica de Bataille partindo de Madame Edwarda e dissemos que O padre C. leva a cabo a nova teoria do sacrifício, que Bataille já avança em A experiência interior. Destacamos essa questão porque ambos os livros fazem parte do conjunto articulado, fragmentado, lacunoso e simultaneamente vertiginoso, da Suma ateológica. É o próprio Bataille que o afirma quando escreve a propósito de Madame Edwarda:

Escrevi este pequeno livro em setembro-outubro de 1941, imediatamente antes de O suplício, que forma a segunda parte d’A experiência interior. Os dois textos, segundo minha opinião, estão extremamente ligados e não se pode compreender um sem o outro [...]. Quis descrever em Madame Edwarda um movimento de êxtase independente senão pela depressão de uma vida debochada, ao menos pelos transes sexuais propriamente ditos (OC, III, 491).

E quando pensa num novo prefácio para A experiência interior, Bataille escreve que nele o desenvolvimento do erotismo deveria

27 Ibidem, p. 116 (N. T.).

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encontrar lugar, e que ele deveria “insistir em O padre C.” (OC, V, 487).

Ainda uma observação. A História do olho (1928) começa com as seguintes palavras: “Fui criado sozinho e, até onde me lembro, vivia angustiado pelas coisas do sexo” (OC, I, 13)28; enquanto Madame Edwarda é uma história erótica, mas escrita independentemente dos transes sexuais. É esta ligação com a mera sexualidade que lhe tinha impedido de colher, então, em a História do olho, aquilo que se ilumina na vertigem de Madame Edwarda.

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No final de tudo me coloco em jogo, fico suspenso, despido, numa solidão definitiva: diante da impenetrável simplicidade de aquilo que é, o fundo aberto dos mundos, aquilo que vejo e aquilo que não sei não tem mais sentido, não tem mais limites, e não vou parar antes de ter avançado o mais distante que eu possa (EI, OC, V, 227).

Também o es gibt, de Heidegger, e o il y a, a versão francesa, de Lévinas, são impenetráveis, mas o aquilo que é-aí, de Bataille, assume um aspecto muito diferente. Não é o neutro, mas é de fato “essa coisa aqui que é”, assim como o ser humano para ele não é simplesmente um ente, mas é “este ser aqui que é”. É essa a perspectiva filosoficamente vertiginosa que se abre, que descobre “o fundo dos mundos”, um ilimitado que não tem mais um sentido reconhecido e que, portanto, pressupõe uma superação do saber que regula e domina o sentido: a passagem ao “não-saber” que é o saber positivo desse território, que se estende até o limite onde o não-saber também não consegue alcançar. É o excesso metafísico que está no coração do ente singular, da coisa singular, do ser singular. Bataille sabe, com Nietzsche, que “fora da aparência não existe nada”, mas sabe também que nessa aparência existe um vazio que “dissimula o ser” (C, OV, V, 326); o ser que mesmo no que aparece, no que é-aí, deve ser perseguido, com relação a “tudo aquilo que é é mais do que aquilo que é”, como ele diz, em Madame Edwarda, e, como insiste, em O padre C.: “aquilo que é significa bem mais do que aquilo que é” (OC, III, 11 e 555).

28 BATAILLE, Georges. História do olho. Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosa Naify, 2003, p. 23.

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Madame Edwarda é, num certo sentido, Deus, assim como o padre pode declarar “nihil divini a me alienum puto”, já que Deus é um dos nomes que a metafísica clássica deu para o que se coloca no limite da coisa, no limite do ente, no limite do possível. É um inatingível, como inatingível é a verdade do ser, assim como inatingível é a consciência plena do ser que se conclui na morte. A experiência interior é nada mais do que uma brecha aberta sobre a verdade metafísica de aquilo que aparece e que é na sua intransitiva aparência. A aparência de um pé morto.

Bataille, por volta de 1943, enquanto se encontrava refugiado e estava escrevendo O morto, escuta um dia o barulho soluçante de um avião e, depois, um grito. E em meio a um pomar, em meio às macieiras, os destroços de um avião alemão derrubado, e três ou quatro mortos calcinados pelo fogo. No entanto, o pé de um dos alemães lançados pelo avião tinha sido despido pela explosão, a sola estava arrancada, e esse pé o observava intacto pela bainha do peito do sapato, nu de uma nudez inumana. “Fiquei por muito tempo imóvel naquele dia, porque aquele pé me olhava.” É a verdade daquele pé que olha para ele, uma verdade que não tem nada a ver com figuras alegóricas e nem mesmo “com mulheres nuas”. Aquele pé nu e morto era “a violência negativa da verdade”, já que a verdade “não é a morte: num mundo em que tivesse que desaparecer a vida, a verdade seria exatamente esse ‘não importa que’, que sugere uma possibilidade que ao mesmo tempo é retirada”. Uma “possibilidade eterna, indefinida, subsiste”, mas uma possibilidade que foge constantemente do eu que escreve, que vê essa fuga, esse desaparecimento, essa subtração, através “da transparência do pé”, que anuncia, antes que dessa seja explorada a possibilidade e descoberta a verdade, o desaparecimento de aquilo que é (OC, IV, 364-365).

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É a trágica ambivalência do possível quando este é colocado, como em Kafka, no próprio coração do impossível. A vulva de Madame Edwarda é precisamente, como o pé nu, o possível que se mostra e se oculta no impossível. Madame Edwarda, no bordel, escancara a sua vulva. Madame Edwarda o chamou com “voz demasiadamente humana”:

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– Queres ver a minhas guenilles?, 29 diz.Com as mãos aferradas na mesa me girei em direção a ela.

Sentada, tinha no alto uma perna escanchada: para abrir melhor a fenda, ela afastava a pele com as duas mãos. Assim as “guenilles” de Edwarda me olhavam, peludas e rosadas, cheias de vida como um polvo repugnante. Balbuciei docemente:

– Por que fazes isso?– Vejas, disse ela, eu sou DEUS...– Sou louco...– Não, deves olhar: olha! (ME, OC III, 20)30

Depois Edwarda o convida para que beije aqueles lábios, e o protagonista se ajoelha e pousa os seus lábios “sobre a praga viva”.

Nancy observou, numa das intervenções mais agudas sobre Bataille, que “a laceração exemplar para Bataille, a ‘fenda’ das mulheres, não é, definitivamente, uma dilaceração. É ainda, obstinadamente, na sua dobra mais íntima, a superfície exposta para fora”.31 É o possível, a via aparentemente aberta, mas, na realidade, que não pode ser atravessado em direção ao impossível do ser “que é”, assim como o pé era a abertura para o ser de “aquilo que é”, que se estende em nossa direção como um convite, e que ao mesmo tempo se oculta. Aqui toma sentido a posteriori também o episódio final da História do olho, que somente através dessa perspectiva sai da pornografia e se torna um capítulo da história de Bataille. O olho cego arrancado do padre e colocado na vagina cega de Simone, desesperada tentativa de alcançar, para além daquilo que aparece, o ser daquilo que é, a sua essência e a sua verdade. Madame Edwarda ilumina aquele olho cego, a obscura abertura da vagina de Simone, da maneira como já colocamos. E como observa Bataille, a sua história não tem nada do arrebatamento sexual: o seu não é um excesso sexual, mas um excesso erótico, e, portanto, uma tentativa de chegar ao limite, à verdade daquele ser que é ali. O

29 “Guenilles”, definição que se encontra no Petit Robert: “Vestidos com abas, farrapos, transladado: coisa miserável”.30 BATAILLE, Georges. Madame Edwarda. Le mort. Histoire de l’œil. Paris: Jean-Jacques Pauvert Editeur, 1977, p. 34 (N. T.).31 NANCY, La comunità, op.cit., p. 69.

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beijo sobre os lábios da vulva, a infinita penetração que o protagonista assiste no táxi, que os leva pela noite, não revelou o segredo de Madame Edwarda. “Ela permanece fechada: do seu sofrimento não havia mais comunicação possível, e eu desmoronava nessa falta de êxito.” Mas “ali era Deusa: e que Deus seja um postulado de um bordel e de uma louca, isso não tem racionalmente sentido” (ME, OC, III, 26).32

Madame Edwarda pode realmente dizer “eu sou Deus”, e o olhar que se lança além do limite, em direção àquilo que não se pode definir e que provisoriamente pode também ser chamado Deus, numa perspectiva ateológica e, portanto, sem Deus, é mal-educado, porque “maldita é a nossa vontade de fixar o ser” (EI, OC, V, 107, 350). Maldito é tudo o que escapa da ordem do discurso, da dimensão penitenciária (EI, OC, V, 58) do sentido, que é lançado realmente pela janela e na qual se apresenta aquilo que lhe é externo. Mas nós temos um sentido? Um sentido escondido? Podemos ter sentido se nada tem sentido e se se sujeita ao não-sentido como se sujeita a um carrasco?

E, portanto: não-sentido! Uma vez escrito Monsieur Não-Sentido compreende-se que é louco: é horrendo. Mas a sua loucura, aquele não-sentido – assim como é, de repente, tornado “sério”: seria mesmo isso “o sentido”? [não, Hegel não tem nada a ver com a “apoteose” de uma louca...] (ME, OC, III, 30)33

Madame Edwarda, assim, não é uma história audaz, não é nem mesmo uma história. É uma introdução à filosofia na nova curvatura metafísica que Bataille lhe imprime depois das ontologias que a tinham aparentemente como sepultada. Bataille está consciente disso quando escreve, em O culpado, que o sistema que está pensando “não

32 “Madame Edwarda demeurait fermée: de sa souffrance, il n’était plus de communication possible et je m’absorbai dans cette absence d’issue [...] Je m’explique : il est vain de faire part à l’ironie quand je dis de Madame Edwarda qu’elle est DIEU. Mais que DIEU soit une prostituée de maison close et une folle, ceci n’a pas de sens en raison.” In: BATAILLE, Georges. Madame Edwarda. Le mort. Histoire de l’œil. Paris: Jean-Jacques Pauvert Editeur, 1977, p. 45 (N. T.).33 “Et pour l’instant: non-sens! Monsieur Non-Sens écrit, il comprend qu’il est fou : c’est affreux. Mais sa folie, ce non-sens – comme il est, tout à coup, devenu ‘sérieux’ : - serait-ce là justement ‘lesens’ ? (non, Hegel n’a rien à voir avec ‘l’apothéose’‘d’une folle...). Ibidem, p. 53 (N. T.).

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pode ser inserido neste mundo. Está ligado a esta enunciação: o ser-aí [Dasein], que permanece todavia insensato, é impossível! A existência: a própria fragilidade! Enquanto Deus é o fundamento: o que em todo caso não poderia não ser” (C, OV, V, 322).

O Dasein, isto é, “o ser-aí”, este ser que é, é sempre em Bataille “espera de ser” e é sempre precário, enquanto a espera não se realiza. Não pode realizar-se porque “aquilo que é” encontra o seu limite na morte. A desesperada ostentação de Madame Edwarda e a desesperada cumplicidade do Narrador são a tentativa de projetar-se no infinito da noite, ou seja, na impossível realização. Madame Edwarda é também formação daquela fragilidade que é constitutiva do sujeito, e sobre a qual se fundam comunicação e comunidade. Mas voltaremos a isto.

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O não-sentido como sentido além do sentido. Como nomear o que a filosofia nunca soube nomear, a extrema terrível verdade de “aquilo que é”, tocada e atravessada pela morte que, como disse Lévinas, colocou em xeque a filosofia do Ocidente?34 Como dizer um indizível que, uma vez dito ou escrito, seria “louco ou assustador”? Hegel escreveu, como Bataille lembra realmente na epígrafe do prefácio, em Madame Edwarda, que “La mort est ce qu’il y a de plus terrible et maintenir l’œuvre de la mort est ce qui demande la plus grande force” [A morte é o que há de mais terrível, e manter o trabalho da morte é o que exige a maior força]. A produção da morte, a produção do negativo, a elaboração do negativo, portanto, a elaboração da morte. Mas a nossa morte? Não a morte abstrata ou a morte alheia, mas a nossa própria morte que se ergue como um ângulo fixo através da vida, e que somente as ocupações do dia conseguem, à vezes, enfraquecer?

Nisso tudo não há saber em sentido próprio, isto é, há somente o saber da experiência, ou mais precisamente ainda, da experiência interior. Mas qual é a linguagem que fala dessa experiência: Kojève tem razão ao dizer que a linguagem que fala dessa experiência sai

34 LEVINAS, E. La mort et le temps. Paris : L’Herme, 1991, o qual acrescenta que o nada que nos encerrou desafiou o pensamento ocidental (p. 79). Vejam-se também JANKÉLÉVITCH, V. La mort. Paris: Flammarion, 1977; RICOEUR, P. Finitudine e colpa. Tr. it. di M. Girardet. Bologna: Il Mulino, 1970.

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do logos e do discurso. Mas tem razão também quando diz que tal linguagem não diz nada?

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Bataille, como já coloquei anteriormente, supõe um saber além do saber; um excesso do saber, e chama esse saber de um “não-saber”. Eu já disse também que esse é um saber positivo que não coloca em discussão os conhecimentos particulares, mas que se coloca além do saber absoluto, naquela margem em que se arrisca constantemente a despedaçar-se. O risco do “não-saber” é aquele que se resolve num “ne pas savoir”, ou ainda num “rien-savoir”, numa aniquilação de si mesmo. Além disso, é a única via que se abre para alcançar a margem extrema, lá onde possível e impossível se tocam, lá onde, portanto, se pode desflorar o inatingível que é o ser da coisa, que é o ser deste ser aqui, ou seja, o fundamento fugitivo que se experimenta, mas que se articula somente por descontinuidades, cesuras, síncopes, incompletudes e fragmentos. O próprio pensamento deve se fazer fragmentário, pois “o real não tem unidade, é composto de fragmentos” (C, V, 279).

Estamos diante, evidentemente, de uma tentativa de destituir Hegel. Uma tentativa que vem enunciada por Bataille na carta, já citada, para Kojève, em 1961, na qual escreve que quer tentar “uma espécie de paralelo com a Introdução à filosofia de Hegel” (onde foram transcritas as aulas de Kojève, de 1933-1939). É uma carta dramática, porque Bataille está doente, tem distúrbios de memória, de orientação temporal, espacial e perdas temporárias de consciência. Todavia, ele se propõe uma obra que é um livro especular, mas oposto àquele de Kojève, já que “deveria ser infinitamente mais arbitrário e fundado principalmente no esforço para interpretar aquilo que Hegel ignorou ou negligenciou”. Não se trata, ele diz, de lograr o princípio do morcego, que, como a filosofia, chega ao fim, no crepúsculo. Trata-se de colocar

na mesma base (ou no final) da reflexão hegeliana uma equivalência da loucura. Não saberia dizer de verdade como precisar aquilo de que se trata – aquilo sobre o qual mais se tratará – depois de tê-lo escrito. Mas esta sorte de conclusão me parece implícita no princípio – caso não seja do hegelismo – do seu sujeito.

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Bataille, que tinha declarado o desejo de ser “o dente doente” de Hegel, agora se propõe ser aquela loucura que está implícita no sistema hegeliano e que Hegel sempre negou. No começo e no final do percurso do pensamento não se encontra o saber absoluto do espírito absoluto, mas “a impenetrável simplicidade de aquilo que é”, e é esta que abre “o fundo dos mundos”, o ilimitado que não tem mais sentido para o logos e que pode ser colhido apenas no “não-saber da experiência” (EI, OC, 227).

A grande poesia e a grande filosofia dão uma imagem do mundo e constroem a linguagem capaz de exprimir essa imagem. A obra de Bataille é também uma imensa construção linguística, que passa pela constante desconstrução da linguagem filosófica tradicional e que possui comparação análoga somente na escritura de Nietzsche. Além da deflação semântica da terminologia filosófica, sobre a qual já falamos, há a ruptura do discurso filosófico com a inserção em forma de diário, com a narrativa, com a abertura poética, com o recurso à linguagem mística em sentido próprio, com a mescla do sublime e do obsceno. Tudo isso exprime uma tensão áspera, inexausta, que se mostra polida e encerada como a linguagem de Heidegger, e escolástica como aquela da maior parte dos filósofos que lhe são contemporâneos.

O objetivo, o ser do ente singular, a sua verdade última, é para Bataille um objetivo decisivo. Também o passo sucessivo, aquele em que Bataille procura pensar a comunidade, passa por essa via. Trata-se de compreender se esse objetivo é tanto quanto decisivo também, hoje, para nós. Há em Bataille um ainda impensado que deve ser, em nossos dias, pensado.

Comunidade

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Todas as páginas da Suma ateológica são atravessadas por aquilo que emerge como o problema aberto, dramaticamente aberto pela sua perspectiva filosófica. Se o pensamento deve pensar em última instância a verdade da singularidade absoluta daquilo que é,

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isto é, dessa coisa ou desse ser que é-aí, como pensar a comunicação entre essas singularidades? E como pode semelhante comunicação se abrir e fundar uma comunidade, quer dizer, colocar-se na perspectiva da polis, numa dimensão política?

O problema é inevitável, e Bataille procura abordá-lo nas três partes (a segunda e a terceira permanecidas inéditas) d’A parte maldita, que, por um lado, se sobrepõem e, por outro, são posteriores à Suma ateológica, que se articulam em A Parte maldita propriamente dita, depois na História do erotismo e, enfim, em A soberania. A primeira parte, que se intitulará O consumo, baseia-se sobre a comunicação através do dom, sem contrapartida, a segunda através da experiência erótica e a terceira através da noção de soberania, esta última derivada, via uma torção conceitual, da Fenomenologia de Hegel.

Na discussão que pretendo abrir neste momento, estarei ligado aos temas que emergem com maior nitidez filosófica da Suma ateológica e dos textos que estão imediatamente conectados. Mas vale a pena deter-nos, um instante, também no texto mais vinculado à temática da comunidade no conjunto d’A parte maldita e d’A soberania, que me parece o texto mais heterogêneo e também, por vários sentidos, o mais problemático.

O domínio da soberania é colocado – além do conceito de soberania definido pelo direito – além do útil e toca essencialmente a dimensão “milagrosa” que “participa do divino, do sagrado, do risível, do erótico, do repugnante e do fúnebre” (OC, VIII, 247-48 e 251) e que designa “a subjetividade mais profunda” (OC, VIII, 279). O soberano está além do útil e está, ao mesmo tempo, além da angústia da morte, já que ele não foge da morte, mas foge, sim, da “ideia insensata” que o nosso ser possa não ser mais. O soberano tem, portanto, nos confrontos com a angústia da morte e do domínio do útil, uma espécie de apatia. Baseando-se em Blanchot, Bataille encarna em Sade essa apatia soberana. Essa é a primeira contradição que permanece aberta nesse livro, lembremos, incompleto. O texto de Sade está completamente dominado pelo útil: não pela despesa, mas pela reserva. Os “soberanos” dos 120 dias de Sodoma estão, sobretudo, empenhados em potencializar o lucro: ao mínimo possível de esperma deve corresponder o máximo prazer possível, ou mais exatamente – em modo mecânico – o máximo das combinações eróticas possíveis.

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A segunda dificuldade do livro está ligada à longa discussão sobre o comunismo tal como é, e se a soberania “vive no comunismo” (OC, VIII, 305), no comunismo domina a supressão das diferenças e a acumulação da produção dos meios de produção e dos bens. Bataille aqui se confronta – estamos em 1953 – com a utopia comunista e com os testemunhos que começavam a deflagrar o seu caráter. Não é um acaso que o lugar em que o livro se inflama é lá onde há a retomada das temáticas ligadas à Suma ateológica, na discussão do pensamento de Hegel e de Nietzsche confrontados em suas perspectivas (OC, VIII, 402 e ss.). Bataille afirma que Hegel é também levado ao não-saber, já que a identidade de sujeito e objeto é obtida no discurso, mas no final “o saber absoluto, o discurso – o logos – em que se identificam sujeito e objeto, se dissolve ele próprio no NADA do não-saber”. Ou seja, esse ponto é o momento em que o discurso de Hegel se detém e é precisamente o ponto em que se abre o discurso de Bataille:

A passagem do saber ao não-saber não é um momento de composição, mas de decomposição do pensamento, partindo seja da ideia clássica de Deus seja daquela do “saber absoluto”, e é o ateísmo que se opõe à confiança cegamente concedida a Deus, mas sem o socorro compensatório da confiança concedida para as coisas de modo limitado, ou o sentimento da identidade do “saber absoluto” e de NADA: somente Nietzsche o descreveu na “morte” de Deus.

Mas retornemos, depois dos desvios e das hesitações de A soberania, ao pensamento apolítico da comunidade, o pensamento mais difícil e mais aberto que nos conduzirá a outros desvios.

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O homem é um ser incompleto, mas por que deveria querer a incompletude (EI, OC, V, 38) com a mesma determinação, com a mesma fúria com que Zaratustra quer a vontade de potência? De fato, o potente, o soberano, aquele que no estado de apatia cancelou o pathos da experiência, comunica o seu poder. Viaja sempre para além do humano, na solidão. Enquanto o ser que é incompleto procura completar-se, e pode completar-se, ou tenta fazê-lo, somente comunicando a sua incompletude a um outro ser incompleto. Não

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alcança a completude, mas a pode vislumbrar, desflorar, como Madame Edwarda, que é verdadeiramente divina, assim como “o homem é divino na experiência dos seus limites” (C, V, 350). O padre C. também reivindica esse excesso que desflora o divino – nihil divini a me alienum puto, afirma, como um eco de Madame Edwarda – e o faz desestruturando, em primeiro lugar, a temática do sacrifício sobre a qual se fundavam, segundo Bataille, soberania e comunidade, junto aos povos primitivos, e, em segundo lugar, reivindicando a experiência do impossível como impotência.

Em O padre C., que se desenvolve num mundo em decomposição, temos uma dúplice paródia do sacrifício, antes de chegar ao sacrifício autêntico, sendo o único que é possível para a impotência do padre. O primeiro ato é o desmaio aos pés do altar sobre o qual o padre está subindo para o sacrifício da missa. Ele cai diante dos olhos do irmão gêmeo e de Éponime, a amante do irmão, que queria persuadi-lo naquele transe sexual, que Bataille tinha negado a Madame Edwarda. Quando o irmão se inclina sobre ele desmaiado, o padre lhe dá às escondidas um beliscão, revelando que o seu sacrifício diante do altar é paródia, como fora paródia do sacrifício a experiência de “Acéphale”.

O segundo ato, este também parodístico, surge quando o padre, à noite, escondido, deixa sob a janela do quarto em que Éponime e o irmão se encontram em raivosas e estonteantes atividades sexuais, um depósito com fezes. O verdadeiro sacrifício, terrível, ocorre quando, ao contrário, o padre, que era ligado à Resistência, capturado pelos nazistas, denuncia o irmão e a sua amante, os seres que mais ama no mundo, e depois se deixa torturar até a morte sem confessar os nomes de quem realmente participa da luta. Tal sacrifício os une – o padre e os seres que mais ama, o irmão e Éponime – com a força da morte e estabelece entre eles uma comunidade que nem sexo nem soberania podem fundar. Uma comunidade terrível, tanto que o irmão, tendo escapado da captura, irá se matar, deixando para um editor a responsabilidade desse terrível e dilacerante testemunho.

O romance saiu em 1950 e foi acusado de celebrar a traição. Na realidade, segundo minha opinião, O padre C. revela a consciência que Bataille tem diante da dificuldade de desenvolver uma teoria da

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comunidade, a partir das intuições da Suma ateológica, da História do erotismo, que está escrevendo ao mesmo tempo de O padre C. e de A soberania, que não por acaso mais do que um livro, mesmo incompleto, é um conjunto fragmentário e, às vezes, contraditório.

Procuraremos, aos poucos, entrar nessas dificuldades.

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Num ensaio de 1947,35 Bataille aborda o pensamento de Lévinas e em particular o conceito de il y a, a versão levinasiana do Es gibt de Heidegger, isto é, de uma existência em geral, indiferenciada, que é o mal na qualidade de existência ilimitada36 e, por isso, contraposta ao existente, ao singular. Estamos, evidentemente, próximos do pensamento de Bataille, proximidade esta que se acentua nas conferências de 1946-1947, organizadas por Lévinas, em Le temps et l’autre. Bataille, tendo dificuldade de dar dimensão política para a sua noção de comunidade, se limita, na Suma ateológica, àquela “insuperável dualidade”, assim como nomeia Lévinas, isto é, uma “sociedade a dois”, que permite a epifania do rosto (Le temps et l’autre, cit., p. 14 e p. 78). Voltaremos a falar sobre a epifania do rosto, que funda em Lévinas uma sociabilidade a dois sobre o erotismo e sobre a falência.

O outro – segundo Lévinas – se apresenta para mim numa nudez absoluta, mas abstrata e casta, que “se libera da diferença sexual”. Posso entrar em relação com o outro somente prevendo uma falência. Caso o pudesse possuir, se pudesse apreendê-lo ou apenas conhecê-lo, “o outro não seria o outro” (Le temps et l’autre, op.cit., p. 14 e p. 83). A epifania do outro é a exposição do rosto, é absolutamente outro, é a tentativa de fundar uma ética pré-ontológica, escapando de Heidegger, para o qual

a relação ética, o Miteinandersein, o ser-com-outro, é um momento da nossa presença no mundo. Não tem um espaço central. Mit é sempre ser ao lado de [...] não é o aproximar-se do Rosto, é zusammensein, e talvez Zusammenmarschieren [marchar juntos].37

35 De l’existentialisme au primat de l’économie, op.cit.36 LEVINAS, E. Le temps et l’autre. Paris: PUF, 1983, p. 29.37 LEVINAS, E. Entre-nou., Paris: Grasset, 1991, p. 134-135. A crítica ao Heidegger

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A aproximação com Bataille é forte e já foi muitas vezes destacada: o tema da dualidade insuperável, a falência do erotismo, que em Bataille não pode nunca se realizar, levada à exposição. Mas, como veremos, a diferença é bem mais significativa do que a aparente aproximação. Interroguemo-nos agora sobre o que é o rosto.

“O rosto não é desvelamento, mas é um desnudamento da exposição sem defesa. Exposição como tal, exposição extrema à morte, ou seja, a própria mortalidade.”38 É essa vulnerabilidade que se apresenta até mim junto com o mandamento bíblico “não matar”. Este mandamento, como destaca Judith Butler, se pronuncia “através de uma voz que não pertence ao outro, uma voz que não é humana”.39 É essa voz que, como afirma Blanchot, oprime até o extermínio, “distanciando-me sob a pressão de uma infinita aproximação, do privilégio de ser em primeira pessoa, separado de mim mesmo”.40 O outro, na versão levinasiana, é, portanto, o desastre do eu.

Essa ética extrema, ou extremista, não consegue se promover em eticidade, ao passo que não consegue supor, além da díade, uma pluralidade de sujeitos. Como destaca ainda Butler, o que aconteceria “se se cometesse violência a alguém que amo? Se um Outro cometesse violência a um Outro? A que outro responder eticamente? Que Outro coloco diante de mim?” (Butler, Vite precarie, p. 169).

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“A experiência interior é conquista, e como tal, para outrem.” (EI, OC, V, 76)41. Mas como se apresenta esse “outros”, esse autrui em Bataille? “O rosto é revelação, abre o fundo das coisas.” É aproximando-me desse Rosto que percebo “a dilaceração que constitui a minha

e ao seu “marchar juntos” lembra a crítica de Bataille ao Hegel e ao seu Mitsein como serviço militar obrigatório.38 LEVINAS, E. Alterité et transcendance. Cognac: Fata Morgana, 1995, p. 146.39 BUTLER, J. Vite precarie. Organizado por O. Guaraldi. Roma: Meltemi, 2004, p. 163, p. 167.40 BLANCHOT, M. La scrittura del disastro. Organizado por F. Sois. Milano: SE; 1990, p. 31, mas todo o livro é uma discussão da tese de Lévinas.41 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 67 (N. T.).

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natureza”, através da qual “transcendi o que existe” (EI, OV, p. 80 e p. 85).42 O rosto é em Bataille uma instância ética que parte de uma instância metafísica e se funda nesta mesma.

Mas voltemos um instante a Lévinas. O rosto não é exclusivamente a face do homem. Lévinas destaca, citando um trecho de Vida e Destino, de Grossman, que mesmo o dorso que está na minha frente, por exemplo, junto aos guichês da Lubianka, na espera de saber algo sobre os caros colegas internados pelo estalinismo, é Rosto (Alterité et transcendance, p. 146). Também a vulva de Madame Edwarda é o Rosto, a revelação do fundo das coisas. Mas há uma diferença fundamental. O rosto em Lévinas é a instância absoluta, intransitiva. A sua intransitividade é sublinhada pelo mandamento bíblico: “não matar”, uma exigência ética que não estou livre de recusar. Na ateologia de Bataille falta o imperativo da voz divina, ou seja, aquela voz não fala do exterior do rosto, mas fala diretamente através do rosto: é a própria vulva de Madame Edwarda – com cujos lábios o narrador dá um beijo como se o desse numa boca – que pronuncia: EU SOU DEUS. E que, ao mesmo tempo, pronuncia a sua vulnerabilidade e instância ética que está ligada a ela.

Já falamos sobre isso, mas convém aprofundar a questão . Aquela vulva é Deus na medida em que a dilaceração que ela é se expõe como o exterior do interior, que convida a uma vertiginosa subida, até o limite, até o impossível. Se o outro, Madame Edwarda, ou o amante, ou qualquer outro “ser que é”, é a porta que se abre interminavelmente em direção à verdade que não se revela para mim, mas que pode ser desflorada num excesso até o “não-saber”, além do saber absoluto, além de tudo, esse outro é que me é necessário, assim como eu, com a minha dilaceração, sou necessário a ele.

A exigência ética me parece fundada. É da mesma maneira a passagem para a eticidade?

Nesse ponto parece que Bataille não consegue ir além da comunicação ética, a não ser numa comunidade estática, uma comunidade orgiástica, uma comunidade sacrificial. Procuraremos aprofundar essa dificuldade e buscar o que essa abre. Mas antes peço permissão para um desvio.

42 Ibidem, p. 77 (N. T.).

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Kafka atravessa O culpado e deveria concluir A parte maldita. Atravessa, portanto, um texto filosófico, e devia colocar-se como a sigla final de um conjunto de textos de caráter, poderíamos dizer, com grande aproximação, sociopolítico. Essa segunda tarefa não vem abordada, não vem cumprida. Mesmo numa época – aquela de Bataille – dominada pela “soberania” ideológica, imersa num mundo dilacerado no conflito entre capitalismo e comunismo. E na nossa época dominada pela soberania da técnica, em que não há ética que não seja (bio)ética e onde não há bioética que não se dissolva no conjunto das “tecnociências humanas” já abreviadas de maneira familiar em TU. Kafka pôde e pode indicar uma via. Talvez a via indicada por Kafka, e intuída por Bataille, seja aquela que conduz ao humano através de uma passagem pelo inumano, por exemplo, nos grandes textos Josephine la cantante ovvero il popolo dei topi e, sobretudo, Indagini di un cane.43

Adorno tinha proposto a Benjamin, no período em que eles trabalhavam o ensaio sobre Kafka, uma atenção especial a Indagini di un cane, e Benjamin respondeu que o conto ficara fechado diante dele.44 O cão, o protagonista do conto, interroga-se ao longo de toda a narrativa sobre o sentido da “caninidade”, ou seja, sobre o sentido da comunidade. O ponto culminante é quando o cão, que decidiu jejuar como saída para chegar ao sentido da sua própria vida e da vida da comunidade, interroga e se interroga sobre as tradições que fundam, de fato, a “caninidade”. Aquilo que o colocou em condições de expor as perguntas decisivas é uma espécie de desanimalização, ao ver uns cães músicos que obscenamente – exibindo as suas partes pudicas – tremiam as patas dianteiras. Essa experiência colocou em seu caminho

43 Josephine. In: KAFKA, F. La metamorfosi e tutti I racconti pubblicati in vita. Organizado por A. Lavagetto. , Milano: Feltrinelli, 1991; Indagini di un cane em Il silenzio delle sirene, Scritti e frammenti postumi. Organizado por A. Lavagetto. Milano: Feltrinelli,, 1994. Cf. também sobre esses temas RELLA, F. Scritture estreme, op. cit.44 ADORNO, T.W.; BENJAMIN, W. Briefwechsel. Organizado por H. Lonitz, Suhrkamp, Frankfurt a. M. 1996. Por exemplo, na carta de 7 de novembro de 1935, Benjamin escreve a propósito de Indagini di um cane: “O texto que sempre me pareceu estranho no período mesmo do meu trabalho sobre Kafka.” E efetivamente Benjamin não conhece a exigência de comunidade que atormenta Bataille e, certamente, Adorno.

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perguntas que, di per sé, o exilam para os lados da comunidade, que assim se dá porque esta não se coloca perguntas. O processo paralelo deveria ser uma sorte de desumanização – que é o que Bataille tenta no erotismo – que nos coloca na condição de evidenciar os problemas decisivos para a comunidade.

Voltando à experiência do jejum, em Indagini di un cane, existe quem diga, interpretando a lei, que o jejum foi proibido, mas existe quem diga, ao contrário, que não deve ser proibido. Mas isso não cancela a proibição, porque essa interpretação pressupõe, talvez, ou melhor, provavelmente quase com certeza, que a proibição não foi promulgada, já que o jejum não somente é proibido, mas impensável, prescindindo da própria proibição. A maioria dos comentadores da lei considera o jejum livremente concedido, e que, de qualquer forma, não se devam temer graves consequências logo após um comentário errado ou impreciso da lei. Ao cão parece que em geral a interpretação daquele debate seja completamente falsa. Maldiz “a ciência do comentário”, “maldisse a mim mesmo por me ter desviado disso”, porque o comentário não explica nada, mas circunda as questões, complicando-as e as tornando dificilmente compreensíveis (Il silenzio delle sirene, op cit., p. 248).

Hannah Arendt, em seu Denktagebuch, e em outros textos, teorizou a comunidade como um Zwischen-den-Menschen, um “entre os homens”.45 A conclusão de Kafka é diferente. O cão, tendo experimentado que o caminho da tradição conduz a uma infinidade de contradições, e que não existe uma ciência que defina o sentido da “caninidade”, depois de uma experiência ulterior de “desanimalização”, que o coloca diante da verdade da comida, e, portanto, da necessidade – Bataille diria do útil – que dominam a sociedade dos cães e, ao mesmo tempo, para as verdades – da música, da arte – que escapam ao útil, parece escolher um lugar limiar: uma situação de confim entre a comunidade que não pode ser negada, e a singularidade que também não pode ser negada.

Esses dois territórios são evidentemente regidos por leis diferentes. Ambas as leis, de qualquer forma, devem ser ativas. Sócrates

45 ARENDT, H. Denktagebuch 1950-1973. Organizado por U. Ludz e I. Nordmann. München: Piper Verlag, 2002.

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é condenado à morte por ter transgredido as leis da cidade. Sócrates escolhe morrer para não contradizer as leis da cidade.

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Kafka percorreu o caminho do inumano. Bataille também o fez em vários lances, mas, como já vimos, parece deter-se sempre na soleira da ética, sem nunca conseguir transitar na eticidade, portanto, no interior de uma ideia da polis, de uma comunidade que não seja simplesmente ligada, como em A experiência interior, ao êxtase, ao instante, que deveriam ser compartilhados, porque essa é a própria condição da sua validade, mas que na realidade são compartilhados somente na orgia, ou na ilusão “monstruosa” de “Acéphale”.

Mas a experiência orgiástica é verdadeiramente uma experiência comunitária? Se o outro que está na minha frente, ao qual me aproximo colocando em jogo a minha incompletude diante da sua incompletude, é a única chance para entrar em contato com a verdade última, aquela que está no fundo de “aquilo e de quem é”, talvez, para a partir dela, descobrir a sua própria impossibilidade e iniciar, assim, a tensão e a espera que me empurram constantemente para além? É legítimo sacrificá-lo e destruí-lo no indiferenciado da orgia, onde o eu e o tu desaparecem completamente?

O segundo problema que se apresenta para Bataille é também de ordem histórica e política. Quer dizer, ele é, caso seja possível no seu tempo (e no nosso tempo), uma fundação orgiástica da comunidade. É verdade que foi suposta, por exemplo, por Maffesoli,46 uma reemersão do dionisíaco na Idade Moderna e, sobretudo, na Pós-moderna. Maffesoli se refere aos movimentos estudantis, às festas, às raves, aos encontros musicais que, de qualquer modo, evocam a orgia dionisíaca. O discurso é sugestivo, mas se baseia numa analogia, e seja como for não se trata ainda de comunidade, quanto mais de uma pluralidade de comunidades que se agregam e se dissolvem nas margens da polis, sem interferir em sua organização, mas, ao contrário, reivindicam frequentemente o direito à marginalidade, à “reserva indiana”.

46 De M. MAFFESOLI leiam-se, entre outros, L’istante eterno. Ritorno del tragico nel post-moderno. Trad. it. de P. Chapus e M. Tommasi, e La parte del diavolo, organizado por I. Pezzini, ambos editados por Luca Sossella editore, Roma, 2002 e 2003.

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Maffesoli registra como sociólogo esses fenômenos depois que Deleuze e Guattari tentaram construir a partir deles uma teoria e uma ideia de sociedade, que são esquecidas com o refluxo dos movimentos posteriores à revolta de 1968, quando a esses movimentos se colocavam a questão política e, alguns deles, se transformaram realmente em próprios e verdadeiros movimentos políticos, transitando, por isso mesmo, fora da dimensão orgiástica ou dionisíaca.

E, assim, hoje se propõe novamente a questão, a mesma questão que se encontra no fundo da obsessão comunitária de Bataille. É possível uma comunidade, um Zwischen-den-Menschen que, como disse Hannah Arendt, não está nunca no seu conjunto mais do que os indivíduos que a compõem? É possível estabelecer modalidade, regras, leis que permitam a interação desses indivíduos e é possível que seja essa mesma interação que constitui a polis?

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A polis em que vivemos atualmente não é esse “entre-os-homens”. Muitos homens que teriam a obrigação e que deveriam constituí-la foram rejeitados como “supérfluos”, e, portanto, colocados fora da comunidade, fora do papel e do espaço que também o escravo no passado tinha tido.47 Basta pensar, no tempo de Bataille, em Auschwitz, e no nosso tempo, em Guantánamo, e na horrenda sequência de eventos terríveis que se encontram entre esses dois nomes.

E o que podemos dizer da nossa singularidade, a qual deveria interagir com outras singularidades, num quadro de normas que abone a todos, diante das intercepções, da violação constante das nossas liberdades individuais, de uma invasão do espaço, constituindo-nos como indivíduos que agem numa comunidade e que a partir desta deveriam ser garantidos? O que podemos pensar numa época em que a minha própria vida e minha própria morte são colocadas em questão? Assim sendo, torna-se praticamente impossível pensar nelas?

47 Refiro-me ainda às análises que percorrem as páginas do Denktagebuch de H. Arendt, op cit. Leia-se também BOURETZ, P. Qu’appelle-t-on philosopher. Paris: Gallimard, 2006.

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Disse no início que o nosso trabalho não era uma arqueologia do moderno, mas uma tentativa de reler Bataille recuperando nessa própria leitura a grande densidade filosófica, já que o seu pensamento nos permite pensar, em nossos dias, algo que de outra forma permaneceria impensado.

Bataille pode, assim, nos ajudar a resolver nossos problemas, a fundar uma ideia de comunidade, de eticidade e de polis?

Bataille é um pensador apolítico. Não propõe uma ideia da polis e não propõe para esta uma política. Aquilo que ele pode nos propor, neste momento, é a modalidade de desestruturação do fantasma de uma polis, que não é outro, porque não consegue ser, na idade da globalização, a comunidade dos homens. Portanto, se, como já procuramos demonstrar, a sua filosofia reanima uma profunda exigência metafísica e a sua ética reanima uma exigência de eticidade igualmente profunda para a qual ele não deu, e talvez não pudesse dar, resposta.

É nossa tarefa enfrentar essa exigência. É nossa tarefa começar a pensá-la no limite extremo em que Bataille chegou sem poder ir além.

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Filosofia futura, ou Suma Ateologia

Susanna Mati

I.

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Para entender o quanto lacunosa, bizarra e ocasional é a preparação filosófica de Georges Bataille, basta observar a superioridade com que Sartre aceita (com ironias dignas da mais feliz causa) discutir, ou melhor, julgar os argumentos dela, contestando-os de maneira, no final das contas, nem mais nem menos do que sofística: é claro que não a considera à la hauteur. Mas se sabe, “malheureusement Sartre travaille vite”,1 Sartre trabalha às pressas, está esmagado, tem

1 Edição crítica de referência É G. BATAILLE, Œuvres Complètes (OC), organizado por D. Hollier e T. Klossowski, XII vol., Gallimard, Paris 1970-1988 (cit. do vol. VIII, Notes, p. 584). Sartre “tem muita pressa”, “não pode concentrar-se na totalidade dos aspectos”, por isso o seu método se funda nos “exercícios de virtuosismo” filosófico (in G. BATAILLE, Conferenze sul non-sapere e altri saggi, tradução it. de C. Grassi, Costa & Nolan, Genova-Milano, 1998, notas relativas a La conoscenza della sovranità, p. 189; in OC VIII, Notes, p. 595). A emergência da antipatia sartriana em relação a Bataille se encontra notoriamente no artigo Un nouveau mystique, resenha de L’expérience intérieure surgida originalmente nos “Cahiers du Sud”, n. 260-262 (outubro-dezembro 1943), tradução de J. P. SARTRE, Che cos’è la letteratura, Il Saggiatore, Milano, 1966, p. 243-279.No entanto, como dar razão a Sartre? Bataille procura essa crítica. Veja-se, de fato, a resposta dele no apêndice a G. BATAILLE, Su Nietzsche, trad. it. de A. Zanzotto, SE, Milano, 1994, p. 207-215 (OC VI, p. 195-202): “Sartre descreve muito bem os movimentos do meu ânimo partindo do meu livro, destacando para fora da sua

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o que fazer, il s’engage; não tem tempo para parar, nutre suspeita em relação ao désoeuvrement [des-obra]2, pela inoperosidade inútil, ou por aquele verweilen [demorar-se] que Hegel sugeria – não ama muito hesitar sobre o Negativo.

Mas se, ao contrário, o tivesse feito, se tivesse encontrado tempo para fazê-lo, ele não teria deixado (junto a tantos outros profissionais da filosofia) de perceber a evidência: o indomável, a feroz e a sofrida vocação filosófica de Bataille, uma das mais genuínas e desesperadas que já se deu – aquela pela qual somente Nietzsche é seu companheiro na terra. Vocação levada adiante, a todo custo e a todo meio (mesmo não sendo esses os meios nem os custos da filosofia diplomada), através de uma aposta em experimentação crucial de si mesma, num inútil dispêndio de dor (sofrer, sabe-se, não serve para nada), que lhe consente, de fato, de ter todo o tempo de parar antes da fase dialética sintética ou construtiva; ou para hesitar, revoltando-se na negatividade para tentar manter a obra da morte como tal. Bataille tem sede, mas tem também tempo para o sacrifício: nada lhe interessa menos do que chegar a uma conclusão.

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Qual seria o significado daquela frase da Fenomenologia do Espírito que Bataille coloca na epígrafe de Madame Edwarda, e que parece explicativa para todo o seu pensamento: “conservar a obra da morte” (“maintenir l’oeuvre de la mort”)? A frase é a tradução francesa (kojèviana?), parcialmente infiel, de um célebre e enorme trecho do típico realismo premonitório hegeliano: “Der Tod [...] ist das furchtbarste, und das Tote festzuhalten, das, was die grösste Kraft erfordert” (pref. Fenomenologia)3 [A morte [...] é a coisa mais terrível;

estupidez, melhor do que aquilo que eu pudesse fazer no interior (estava comovido): quando surgem assim percebidos e divididos por uma lucidez indiferente, na verdade foi comicamente denunciado (como é justo) o seu caráter sofrido, penoso” (p. 208).2 As traduções ao português dos termos filosóficos escritos em alemão aparecerão entre colchetes (N. T.).3 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia dello Spirito. Organizado por V. Cícero, Milano: Rusconi (depois Bompiani), 1995, p. 84-86. As citações no percurso desse ensaio provêm exclusivamente do Prefácio.

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e suster o que está morto requer a força máxima]4. Manter parado este mortuum, entendia Hegel, antes de ‘sintetizá-lo’, permitindo ao olhar que se mantenha fixo no extremo negativo; ou, como se dizia anteriormente, conter-se no limite precedente à “terceira” fase da dialética, isto é, a Versöhnung [a conciliação]. Portanto, manter-se junto ao mortuum é limitar-se (literalmente) à antítese, junto ao segundo passo que nega o primeiro, não conseguindo imaginar-se uma Aufhebung [uma superação] (ou um remédio?) a tanta extrema potência, à devastadora e irredimível obra da negatividade. Podemos dizer – como primeira aquisição em relação ao pensamento – que é aqui que Bataille se detém, se demora e para.

Com esse propósito foram realmente muitas vezes observadas as gravíssimas dificuldades que vão ao encontro dos críticos do sistema hegeliano, que pensam em superar Hegel no terreno do negativo, talvez o recusando junto com a Vermittlung [mediação] (que constitui o seu motor e reagente), para, depois, manter-se perfeitamente, em relação à dialética da argumentação, dentro do movimento da linguagem de Hegel (um certo Kierkegaard – aquele “filosófico” não “edificante”, pré-religioso – é exemplo dentre todos). Mas Hegel já fora suficientemente dramático, realista, feroz; ele é, aliás, o mais dramático, o mais realista e o mais feroz. É muito difícil, talvez impossível, avaliar a ação do negativo no interior do intenso monstruoso trabalho da história mais do que ele mesmo não possa fazer. Assim como, por outro lado, é tanto quanto difícil “salvar-se” da tríade (especificada desde as primeiras páginas da Fenomenologia) Anschauung – Erbauung – Erfahrung: intuição, edificação, experiência; três termos perigosos, segundo Hegel, para toda a filosofia, na extremidade dos quais Bataille se inclina fortemente (especialmente em direção ao terceiro). De fato, quase todos os críticos do sistema hegeliano irão limitar-se frequentemente a forçar um desses três termos, enfatizando, exatamente, a sua carga negativa.

Além disso, Bataille parece advertir sobre a necessidade irresistível de continuar trabalhando ainda e, sobretudo, com o negativo. Demonstram-no, sobretudo contrário às suas faltas, à sua substancial impoliticidade e à sua escassa construtividade no real: ou na esfera

4 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito – Parte I. Tradução de Paulo Menezes com a colaboração de Karl-Heinz Efken. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1992, p. 38.

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daquilo que Hegel teria, antes de tudo, chamado de “eticidade”.5 Se a fenomenologia se apresenta como a ciência da experiência feita pelo conhecimento, a categoria do Erfahrung experimentará, apesar disso, ser levada mais uma vez à refutação. A palavra chave de Bataille, nessa relação vis-à-vis com o maior filósofo da modernidade, irá, portanto, se tornar: expérience.

Porém é óbvio (e Bataille sabe) que Hegel também já analisou agudamente essa categoria, e, aliás, é justamente dali que a Fenomenologia do Espírito inicia: da certeza sensível (“die sinnliche Gewissheit”), d’‘este’ (“das Diese”), da minha opinião (“das Meinen”) e da percepção (“die Wahrnehmung”) do Indivíduo. Portanto, daquela esfera individual e elementar, amplamente incluída no Sistema, que não obstante se tentará interpelar-lhe contra para arranhar o seu círculo.

3

Difícil e, talvez, impossível falar sem a linguagem hegeliana, exprimir um discurso sensato sem fazer apelo à mediação do logos. E então, admitamos também, juntamente com Kojève,6 que o que era possível dizer sobre as várias epifanias do espírito, sobre seu concreto dar-se no mundo, Hegel já disse melhor e mais acabado do que qualquer outro filósofo, mesmo futuro. Admitamos, desse modo, que ele é o arquétipo daquele “ensaio”, no qual pela primeira vez o saber absoluto encontra expressão e consciência; admitamos também que a época já foi concluída, que a história realizou seu curso, alcançando no final autodesvendamento do espírito em si mesmo, em direção à revelação do saber por obra do sobrevir da filosofia definitiva.

Admitamos também – e contudo: até mesmo aceitando o fato de que em filosofia já tenha sido dito tudo perfeitamente, que tenha sido pronunciada a última palavra substancial, não se poderá, mesmo assim, realizar a louca e muito desesperada tentativa de falar

5 A propósito do tema da Sittlichkeit, segundo minha opinião muito importante para formular uma crítica para a teoria política e para as ideias de soberania e comunidade em Bataille, faço referência ao ensaio de Franco Rella presente nesse mesmo volume.6 A obra de referência é naturalmente A. KOJÈVE, Introduzione alla lettura di Hegel, trad. it. e organização de G. F. Frigo, Adelphi, Milano, 1996.

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além do logos? Terá algum sentido opor-se àquela que parece ser a única mediação possível? O genial Kojève não tem dúvidas: não se pode, pois essa fuga da linguagem seria “somente” silêncio místico, no máximo relegado a um ridículo parágrafo do Sistema; e mesmo a tentativa de Bataille tem início exatamente nessa espécie de loucura “anti”-hegeliana. O problema surge nesses termos nas cartas escritas a Bataille pelo próprio Kojève, e é, dessa maneira, formidável: falar com a pretensão que signifique alguma coisa, somente se pode através da linguagem de Hegel, que pretende por isso identificar-se com o discurso tout court, ou pode ser uma alternativa discursiva à Rede dialética?

Kojève, no seu radicalismo ultra-hegeliano (metade russo e metade francês), sustenta a opinião ortodoxa do Espírito-Logos como mediador necessário da Verdade: “até quando o homem viver como ser que fala do Ser, nunca se poderá superar a irreduzível Trindade que ele mesmo é, e que é o Espírito”.7 Nem o diabólico Dois, com a sua tentação de renúncia ao discorrer o Saber, nem o insustentável Uno do “paganismo radical” parmenidiano podem atualmente tirar a necessidade do Três, da tríade dialética que aparece inscrita na própria existência do homem que quer falar (e pensar). Esta é a única linguagem significativa, ainda mais para a filosofia.

Além dessas sólidas convicções, Kojève reconhece bem, em seu prefácio para a obra de Bataille, como as páginas do autor pretendem temerariamente colocar-se além do discurso circular hegeliano, do Kreis [círculo] da última filosofia que finalmente uniu o início ao fim. Mas, tendo justamente essa precisa intenção, essas convicções poderão simplesmente possuir ainda um discurso (um logos, uma Rede)? Ou não serão inevitavelmente “uma forma verbal do silêncio contemplativo”? Certamente algumas páginas de A experiência interior parecem dar razão a Kojève. Pois bem, conclui Kojève, “se existe um único modo possível de dizer a Verdade” (ou seja, o modo hegeliano), “existem inumeráveis modos de fazê-la silenciar”.

7 Cito neste parágrafo a partir da Prefazione all’opera di Georges Bataille (1950) e, no parágrafo sucessivo (com indicação de data), a partir das Lettere a Georges Bataille (1942-1956), ambas em KOJÈVE, A. Il silenzio della tirannide. Organizado por A. Gnoli. Milano: Adelphi, 2004, p. 221-231.

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Pelo menos no silêncio se conservam todas as oposições possíveis para o Logos: mas essa alternativa será, portanto, nada mais do que mística. E as místicas, sabe-se, “são todas iguais”; a verdade não lhes fala, ao contrário, lhes silencia. Consequentemente as impressões de Kojève depois da leitura de L’expérience intérieure serão inevitavelmente as seguintes: “um único tema: exprimir verbalmente (!) o silêncio, falar (!) do inexprimível, revelar com as palavras (!) aquilo que é obscuro” (28 VII ’42). Bataille ficará, dessa forma, preso numa série de contradições evidentes e, para além disso, supérfluas. De fato, exprimir em palavras esse silêncio significa falar sem dizer nada. Existem, sem dúvida, infinitos modos de fazê-lo, mas o resultado, quando se consegue, é sempre o mesmo: o nada. Falar do nada de modo adequado é próprio das “místicas”, ou seja, falar não dizendo nada: “e a sua mística”, conclui Kojève, direcionando-se ao nosso autor, “me parece autêntica” (28 VII ’42).

A contradição, a desesperada procura por uma linguagem alternativa, se reduz, assim, no interior dessa convincente argumentação, (que Bataille compartilhava certas premissas hegelianas, falando, portanto, em parte da linguagem), em silêncio verbalizado, ou seja, para nada. O “silêncio discursivo” aponta realmente para o ponto de extinção da própria linguagem, para o possível além em relação à utilidade da palavra, à ulterioridade infinita do sentido que o sistema queria capturar no interior do seu círculo mágico. No entanto, a opinião de Kojève é que, para exprimir verdadeiramente esse ‘além’, necessitaria mais silenciar, ao contrário de tentar comprimi-lo no logos (recaindo com este na lógica hegeliana).

Ao mesmo tempo, Kojève é levado a constatar que, até que a história não tenha acabado, somos obrigados a falar do silêncio (essa admissão se encontra na carta para Bataille, em 19 XII ’50). E o que ocorre, então, perseguindo essa louca intenção? Ocorre que a escritura começa a torturar e a torcer a si mesma até chegar a uma forma paradoxal de “ensaio-martírio”, justamente como ironiza Sartre (o modelo é ainda aquele de A experiência interior). Bataille é levado a usar as palavras para incitar-nos a sacrificá-las, através de uma sorte de propaganda a favor da “negação mística” (art. cit., p.

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246-247 – significativo que Sartre compartilhe e reforce a “acusação” de misticismo formulada por Kojève em direção à extrema forma de Negativo que Bataille representa). Utilizando o logos e ao mesmo tempo recusando-lhe a ultimidade, “a sua obra é, nesse sentido, um pequeno holocausto de termos filosóficos” (ivi, p. 253), que introduz e força o transcendente no imanente, tornando-se inexoravelmente (e querendo sê-lo mais do que qualquer outra coisa) uma modalidade trágica e sacrificial de pensamento.

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A tragédia, afirma Bataille, ensina a morte do pensamento e a enorme insuficiência da filosofia (e também da mística). A questão fundamental do pensamento parece poder se colocar somente a partir do momento em que cada fórmula filosófica vem conduzida até o impossível, somente quando no silêncio se colhe o simples absurdo do mundo (que, como já observava Wittgenstein, é o místico!). E essa perfeita abdicação ao discurso em favor do silêncio coincide paradoxalmente com uma forma muito particular de “saber absoluto”: “somente se soubesse tudo poderia pretender não saber nada, somente se aquele saber discursivo fosse em minha posse poderia declarar, de maneira indelével, ser levado ao não-saber”.8 (Hegel, assim, não sabia nada: era Deus – como veremos mais adiante).

Desse ponto de vista, pode-se tentar formular uma trágica (anti)filosofia do não-saber, cujo elemento soberano é representado pelo riso, e cujo adversário mais forte (mas já superado) é constituído pelo dogma. Acompanhemos Bataille enquanto descreve a sua observação a propósito da decomposição do dogma:

A partir do momento em que percebi a possibilidade de descer, o quanto possível, aos territórios do riso, adverti, como primeiro efeito, que o quanto me foi dado pelo dogma foi levado à decomposição por uma sorte de maré torrencial. [...] Para mim foi possível manter todas as minhas crenças [...] porém a maré do riso que me submergia as transformava em jogo, um jogo no qual podia continuar acreditando, mas que

8 BATAILLE, G. Le conseguenze del non- sapere, em Conferenze sul non-sapere e altri saggi, op.cit., p. 9 (OC VIII, p. 222).

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fora superado pelo movimento do jogo que me foi dado no riso. Podia aderir a esse somente como a algo que o ato de rir superava.9

A fé num dogma não pode mais subsistir, no momento em que o riso parece desvelar uma verdade maior, lúdica, soberana (a profunda felicidade, mais profunda do que a dor, de que fala Nietzsche?), cujo dogma, de fato, sucumbe, desagregando-se; ou o dogma, no interior do riso, surge não tão negado (esse pode ser recuperado num nível sucessivo), quanto mais fica suspenso, desvelando a sua natureza não somente parcial, mas secundária, seguida por uma decisão.

Na originária experiência do riso, ao contrário, se mantêm paradoxalmente, segundo Bataille, todos os aspectos da experiência religiosa, e nada parece perdido. Esta última, adquirida dentro dos limites do dogma, vem conservada (sob formas imprevistas e impossíveis aos olhos dos que acreditam dentro daqueles limites) e depois superada em direção a uma forma de verdade mais originária e mais “completa”. O riso representa uma paradoxal verdade “sintética”, metafisicamente universal (contra a unilateralidade do dogma), mas, ao mesmo tempo, subversiva, lancinante; é o ápice de uma dialética que coloca inesperadamente a nu o vértice não como conciliação ou superação, mas, sim, como dilaceração, e o ápice como a ferida em que se escancara o abismo – diante do qual se ri.

Este é o êxtase – uma experiência sem objeto. Nas palavras de Bataille, o riso abre para uma certa experiência para poder ser comparada “com a que os teólogos chamam ‘teologia “mística” ou “teologia negativa” (Conf. Não-saber, p. 51; OC, VIII, p. 229). Porém essa é realmente negativa e necessita, de fato, de horizonte de referência que não seja um horizonte genérico espiritual: “daria com prazer para essa experiência e para a reflexão que a acompanha o nome de ateologia, formado pelo a privativo e pela palavra teologia. Uma ateologia, cujo assunto fundamental é constituído por uma proposição como: Deus é um efeito do não-saber. Mas o fato é que, como efeito do não-saber, é conhecível, assim como o riso, assim como o sagrado” (ivi). Lá onde “conhecível” significa, sobretudo, “xecutável”, dado que encontrar a

9 Non-sapere, riso e lacrime, ivi., p. 43 (OC, VIII, p. 222).

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sua linguagem é talvez a tarefa do pensamento futuro (e vice-versa: encontrar o seu pensamento, somente uma nova linguagem poderá encontrá-lo).

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Bataille sendo acusado de mística, trata-se de uma acusação nada precisa, já que cada mística ocorre dentro de um daqueles horizontes (dogmáticos) de sentido, os quais já foram, ao contrário, desagregados, no que lhe diz respeito, na divina, mais profunda, mais ilimitada experiência do riso. A renúncia ao dogma, ou à incredibilidade do dogma, ou à sua reconhecida posteridade, coincidem com a ideia fundamental dessa expérience, sobre a qual Bataille insiste com demasia: a completa ausência de pressupostos. “A filosofia que proponho se desejaria, quanto menos, como absolutamente privada de pressuposição” (Conf. Não-saber, p. 43; OC, VIII, p. 222). O que significa essa afirmação?

O não-saber é essencialmente isso: não sei nada e se ainda falo é somente porque os meus conhecimentos não me conduzem a nada, e devo sempre mais uma vez tentar essa minha falência. Não se trata de forma alguma da fundação de uma nebulosa religião de desconhecido, prossegue Bataille. O ponto central é que não é possível alguma “fundação”, exatamente enquanto “nenhum pressuposto for possível, somente a experiência é possível” (Conf. Não-saber, p. 51; OC, VIII, p. 229). Não se funda, pois o fundamento não se realiza, a não ser de forma incapturável e inexaurível (ou como “teologia negativa” no sentido metafórico). Além do mais, o nosso autor percebe com inteligência que mesmo as religiões históricas, talvez, tenham sido simplesmente experiências que deram vida a um dogma mais ou menos coerente, logo em seguida decidido e colocado como Grund [Fundamento]. A canonização de uma opinião, que se torna com este a única verdade admitida, é realmente a própria essência do dogma (como demonstra a etimologia da palavra: proveniente de dokeo, como doxa).

Assim, não passa despercebido o caráter filosófico de um semelhante ponto de vista “sem pressupostos”. A filosofia queria ser justamente essa pesquisa que não reconhece a existência de fundamentos não indagáveis, de dogmas e de princípios primários. Mas

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a ausência do Pressuposto ocupa também, aqui, conjugando-se com a inteira experiência, um caráter mais geral – “teológico” em primeiro lugar (ou semelhante àquele de uma antiga forma de sabedoria que foi nomeada de teologia). Bataille chega realmente a considerar a filosofia de Hegel e aquela de Heidegger como obras de “antigos teólogos” (– note-se: teólogos, sim, mas antigos!); prova essa de um confim que não existe mais, de uma separação nefasta, antiquada e inoportuna entre disciplinas muito próximas. Segundo Bataille, tanto Hegel quanto Heidegger tiveram experiência da “teologia negativa”, e, em particular, na dialética hegeliana se conservariam os rastros dos nexos que a relacionam com essa particular teologia (Conf. Não-saber, p. 52; OC, VIII, p. 230). O sistema e o seu interior movimento dialético podem também se apresentar (como veremos mais adiante) como uma grandiosa reação a uma experiência angustiante, indominável e desestabilizante, que se pode definir não somente como a ausência do Pressuposto, mas como o seu excesso.

Depois de tudo, o idealismo nasce de uma posição do Eu análoga àquela de um dogma, e com semelhantes intenções “salvíficas” – disso se deduz o quanto poderia ter sido grande o susto, o horror e a loucura que estavam por trás dele.

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“Segundo você, a verdade é impossível”, conclui Kojève (carta do dia 28 VII ’42). O que significa realmente: para Bataille o Saber é inexprimível, sem linguagem, não mediável; ou seja, excessivamente contraditório, fora do nosso alcance, inutilizável. E, ao contrário, o projeto que Hegel queria perseguir seria aquele voltado a transformar a “filosofia” em “sabedoria”. Hegel queria que se trabalhasse até que a filosofia assumisse a forma incontestável da ciência; e o verdadeiro filósofo hegeliano tem o dever de fazer transitar a philo-sophia da potência ao ato, de fazer com que ela deponha o nome de “amor pelo saber” até que possa se tornar saber real, obtido, manifesto (“ihren Namen der Liebe zum Wissen ablegen zu Können und wirkliches Wissen zu sei”, pref. Fen.) [“... amor ao saber para ser saber efetivo”]10. Verdadeiro

10 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com a

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saber, verdadeira sabedoria, verdadeira posse realizada – não será justamente essa a melhor formulação do Impossível, a última ideia de extremo (não)sentido dada pela linha de pensamento Hegel-Kojève?

Seja como for, voltando à experiência interior, aquilo que a caracteriza é que ela, ao contrário da religião, não procede de uma revelação e nem mesmo nada se revela aí, a não ser o desconhecido; aliás, ao contrário da filosofia sistemática, ela nunca conduz nada que possa apagar.11 A sua impotência é, portanto, um traço fundamental, cósmico; trata-se de “uma experiência nua, livre de ligações, mesmo de origem, com qualquer que seja a confissão. Eis por que não me agrada a palavra mística” (ivi, p. 29; OC, V, p. 15) – exatamente por essa razão, o primeiro capítulo do livro, como vem muito frequentemente esquecido, se intitula Crítica da servidão dogmática (e do misticismo). A exigência de colocar tudo em causa, de não aceitar o limite do dogma e a presença (que em nada se distingue de uma ausência) do desconhecido, fazem com que ela se defira de qualquer misticismo.

No entanto, pode parecer que Bataille tenha um deus, e que este deus seja e permaneça substancialmente o deus sem forma e sem modus dos místicos. Além disso, os místicos são inseridos numa tradição; enquanto Bataille, por outro lado, está inserido não num drama, mas numa tragédia. Não existe drama, ação, desenvolvimento e revelação na experiência interior (aliás, esta é o contrário da ação, assim como a tragédia, assim como a tragédia antiga que Nietzsche apontava para o pathos, mais do que para o dran); a falta de modus desse deus, experimentada no tempo terminal pela credibilidade das tradições entendidas como dogmas, é perfeitamente trágica. Por esses motivos fundamentais a acusação de misticismo nas confrontações de Bataille não é nem justa nem precisa (como não o seria, por exemplo, nas confrontações de Kafka, que se pode com cautela comparar com a sensação que Bataille tem do tempo presente). Ainda o é menos na versão de Sartre do que naquela, muito advertida e pontual, de Kojève – mas, ainda assim, injusta. De resto, numerosas são as passagens em que o próprio Bataille revela os limites da mística, limites (dogmáticos)

colaboração de Karl-Heinz Efken. 2. ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 23 (N. T.).11 Cf. BATAILLE, G. L’esperienza interiore. Trad. it. de C. Morena. Introdução e posfácio de E. Ghezzi. Bari: Dédalo, 2002 (OC, V).

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constituídos essencialmente de um único traço: “a experiência mística difere daquela erótica no momento em que resulta plenamente”.12

Ao contrário, o erotismo, como prática (teórica?)13 extrema, exclui não somente toda esperança, mas, também, toda conclusão – e nesse caráter literalmente desesperado consiste também a principal diferença entre experiência mística e filosófica. A “nova teologia” do desconhecido, que Bataille propõe (declarando inspirar-se, aqui, em Blanchot) e coloca como fundamento da própria vida espiritual de ter princípio e fim na ausência de salvação: a preliminar renúncia para toda esperança. Essa exclusão da solidez da Esperança do âmbito erótico-filosófico reconduz Bataille para as verdadeiras matrizes (platônicas!) da philo-sophia, que determinam a partir desta a incompletude e o desejo infinito, a incessante necessidade, nunca alcançada, de apagamento e completude. O negativo, a falta e a obrigação de recomeçar a pesquisa sempre desde o início assinalam de forma perene o Eros filosófico (próprio como ocorria já na exegese plotiniana da figura do Simpósio).

A visão da tarefa última da filosofia aparece, desse modo, perfeitamente antitética àquela enunciada acima por Hegel e por Kojève: isto é, fazê-la com que se torne Wissenschaft. Não por acaso Bataille censurava a Hegel pela recusa de tudo o que pode parecer excesso ou “embriaguez sagrada” (e mesmo, “das Wahre ist so der bacchantische Taumel, na dem kein Glied nicht trunken ist”) [O verdadeiro é assim o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio – pref. Fen.]14. Reduzindo a existência ao trabalho do negativo, ao projeto e à espera de ser, à luta e ao pensamento discursivo, argumenta Bataille, Hegel reduz o existente ao solitário mundo profano, “tornando-o lógico”, negando o mundo sagrado, o erotismo e, portanto, a comunicação – Hegel mostra um mundo servil. A tentativa de ir além do útil se tornaria, por isso, uma modalidade favorável ao total desencadeamento do Espírito.

12 Id., Il Colpevole, cit., p. 23 (OC, V, p. 247).13 Porque se poderia também paradoxalmente supor a quase total “teoricidade” do eros bataillano, assim privado de amor, de agape ou caritas, de cuidado – desse modo, funcional ao contrário da sua “experiência interior”...14 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken. 2. ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 46 (N. T.).

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Como testemunho dessa distância em torno da tarefa báquica-filosófica (e sacrificial), lemos o comentário profanador de Kojève sobre os contos eróticos de Bataille, por exemplo, sobre a Histoire de l’œil: “é, sem dúvida, o melhor livro pornô que li em minha vida, e o é de longe!” (carta do dia 7 VII ’55). O feliz sarcasmo (repitamo-lo: genial) serve, sobretudo, para redimensionar o esforço erótico-filosófico que está na base daquele tipo de conto e para menosprezar a agitada necessidade que conduz Bataille a essa singular escritura, mas também para esconder-se astutamente, assim como o passo entre o sistema hegeliano e o “pornô” possa efetivamente ser breve...

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Como se também fosse somente desejável a separação do delíquio dos campos do saber, como se fosse possível temporizar a mania do filósofo. Certamente essa vocação dionisíaca abre no pensamento de Bataille muito mais problemas do que quantos tenham sido resolvidos a partir dele (por exemplo, no que diz respeito, mais uma vez, à comunicação e à comunidade – não era mais cômoda e sensata a estrada hegeliana do direito?); mas a sua filosofia está cheia de contradições, de anéis despossuídos, de passagens logicamente erradas e, sem dúvida, não estaremos aqui para censurá-lo “analiticamente” por causa de uma falta de limpeza na utilização da linguagem lógica. Às vezes, as palavras, os logoi, afirma Bataille, em A experiência interior, servem somente para fugir; as palavras são “areias móveis” impeditivas, aprisionadoras; a armadilha do significado já está pronta para fazer com que você diga o que a linguagem quer. Às vezes, necessita, ao contrário, contestar a lei dominante do discurso, pois se realizam estados que o desapossam e sobre os quais este não pode, portanto, dizer nada.

A coerência com que Kojève conduz a filosofia hegeliana até a meta do Saber absoluto, à plena realização do Logos, vem enfrentada em Bataille por uma sorte de “anti-sistema” – isto é, por algo de negativo que se coloca diante do sistema em posição antagônica, da relação amigo-inimigo (embora sem negá-lo simplesmente, aliás, quase o desejando por completo). Os seus sinais distintivos se tornam por isso a (a)logia (o encontrar-se sem linguagem, sem logos), a (a)teologia (ser sem a Palavra de Deus, sem o Logos como Verbum, mas

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também sem o socorro da linguagem teológica) e a (a)teleologia (a falta de sentido final, ou de um telos seguro e de satisfação; o desespero preventivo do sentido último de toda coisa; o não possuir, e nem mesmo pressentir, a palavra que falta: ainda o Logos).

Se, hegelianamente, a verdade encontra o elemento mais apto à própria existência somente no conceito, no Begriff, e no Begriff como instrumento concreto da mediação que o Logos opera em direção ao Ser (“das Sein ist absolut vermittelt” [o ser está absolutamente mediatizado]15 – pref. Fen.), Bataille persegue, por outro lado, a tarefa desesperada e como nunca insensata de salvar o Espírito do Logos (e é isso que Kojève lhe censura, determinado no seu realismo soviético-hegeliano). Ou seja, por um outro ponto de vista, salvá-lo de Deus enquanto Fundamento (ou de “Deus”, tout court, como veremos melhor mais adiante). Não por engano Bataille percebe frequentemente como a tendência discursiva é essencial ao cristianismo16 – enquanto, ao contrário, a última palavra não é mais uma palavra. E é ali que deve absolutamente alcançar o ilimitado possível do pensamento: o pensamento deve, assim, superar o “realismo” da era cristã.

A alogia, a ateologia e a ateleologia voltam, de fato, nos possíveis, não nos dados do Sistema; elas se mostram como possibilidades dadas ao homem para superar a realidade já vivida na história e descrita na linguagem. A tarefa da filosofia é, desse modo, chegar ao limite do possível/dizível: exceder o fundamento. O ex-cessus, o êxtase do Grund e a crise da palavra útil correspondem, da mesma forma, ao arrombamento da utilidade de Deus-Logos, à denúncia da sua universal impotência, ao colocá-lo como igual diante de qualquer que seja a prostituta Edwarda. Através do instrumento distorcido desse delírio conceitual (no qual é necessário, às vezes, que falte a coerência), Bataille enfrenta a seu modo a crise dos grandes termos da cultura ocidental: Logos – Deus – Geist.

15 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken. 2. ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 41 (N. T.).16 Que o hegelismo seja, talvez, uma heresia “gnóstica”, trinitária, que entrega indebitamente o primado ao Espírito Santo? E talvez hegelismo e cristianismo não sejam definitivamente duas formas irreduzíveis de fé, segundo as quais uma se baseia na fé paulina na ressurreição e a outra se baseia numa fé histórico-prosaica ditada pelo bom-senso? Assim supõe Kojève na já citada Prefazione all’opera di Georges Bataille.

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Mas como ir além, a quem e a que coisa deixar como herança aquilo que num tempo foi a tarefa da filosofia sistemática ou da teologia cristã? Quem ficará encarregado da possibilidade (ainda irrealizada, mas possível) da “suma ateológica”?

A única via de fuga parece ser, para Bataille, “uma disciplina – lógica e (a)lógica, ética e imoral, estética e negação da estética – tendo por objeto o imediato”; mas isso pode ocorrer somente reduzindo a revelação à sua experiência no instante, no puro estático, no “instante sine glossa”.17 Sem glosa, literalmente: sem língua, sem desenvolvimento e sem discurso – o instante se torna encruzilhada, nietzschianamente, de tempo e eternidade. O instante é, de fato, soberano, enquanto a filosofia discursiva, prossegue Bataille, é constitutivamente uma atividade ancilar. E mesmo na Idade Média lhe era conferida grandíssima importância, tornando-a ancilla theologiae: ela servia e era respeitada; depois, ao contrário, “foi somente uma acumulação instável, que se desfazia e se refazia, que respondia ao silêncio do céu com uma discordância em desordem por um discurso obscuro”. Todavia, o obstáculo para uma filosofia conduzida para além do útil é que ela

não pode resolver nada, e não pode, nem sequer alcançar a ausência de solução. Somente na condição de definir objetos de pensamento sobre os quais o pensamento não tem presa – como o são o imediato ou o objeto sensível ou como o era Deus – a filosofia evita reduzir o mundo ao pensamento (que prescreve uma cadeia de subordinações sem fim). Mesmo a mais perfeita – aquela de Hegel – tem, no entanto, esse êxito: um sistema completo de servidão, uma assim pesada igualdade no reenvio àquilo que segue – o qual tem sentido sempre em relação a algo do outro – que, alcançado até o final a totalidade e fechado o cerco, esta não difere mais do imediato; suponho, por outro lado, que seja certo, quando essa totalidade servil é repugnante, e perfeitamente impossível (em nota: no sentido: “mais do que intolerável”) [...] que escorregue numa liberdade impossível, numa livre demência do imediato.

17 As citações no percurso deste parágrafo são tiradas de G. BATAILLE, Postulato iniziale (1947), em L’aldilà del serio e altri saggi, tradução it. e organização de F. C. Papparo, Guida, Napoli, 1998, p. 80 (In: OC XI).

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Bataille coloca nessa passagem o nexo (já hegeliano) entre a indecidibilidade do ser sensível, a incapturabilidade do instante imediato e a enormidade sublime e despropositada de “Deus”. Mas, sobretudo, estes elementos que escapam da decidibilidade e do pensamento, estes resíduos não assemelháveis pela dialética rompem a cadeia subordinante do logos e a conduzem, por causa de uma sua íntima afinidade com este, até a soleira do Impossível. O que não difere nem um pouco da clausura do Kreis exposto pelo Sistema: por isso o Impossível, esse círculo fechado e esse limite penosamente intolerável, revela-se no final perfeitamente coincidente com o imediato – semelhante somente ao instante: ambos são livres, dementes e soberanos. Ao mesmo tempo, o Impossível herda paradoxalmente o papel de ens necessarium (o verdadeiro herdeiro de Deus?), ou daquilo sobre o qual o pensamento não tem presa – aquilo que, justamente por esse motivo, pode alimentar incessantemente o pensamento; cuja tarefa torna-se, assim, a tentativa que retorna continuamente e que é inapagável, círculo infinitamente inconcluso que rompe sempre novos territórios para o Impossível.

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Bataille repete frequentemente que os seus esforços são direcionados para retomar e desfazer a Fenomenologia do Espírito que é, apesar de tudo, somente um início para o pensamento, e que, ao mesmo tempo, a partir desse pensamento, sanciona aos seus olhos a falência definitiva/constitutiva. Através de uma descida vertiginosa, escreve Bataille, “vejo agora a verdade fundada na incompletude (como Hegel a fundava na completude), mas não é senão a aparência de um fundamento”. De fato, qual fundamento pode se dar no incompleto? Mas o incompleto se coloca agora na origem, pois “a existência humana tem um início que nunca será levado a termo”.18

Preste-se atenção no trecho citado logo acima: segundo Bataille, existe no início uma sorte de inatingível “antifundamento” (ou seja: o que está “diante” do Grund, como o “antis-sistema” diante

18 BATAILLE, G. Il colpevole, L’Alleluia. Trad. it. de Biancofiore, prefácio de M. Manghi. Bari: Dédalo Edizioni, 1989; citações de Il colpevole, p. 36-38; OC, V, Le coupable, p. 260-262).

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do Sistema), que se situa além do saber absoluto, além do seu Kreis. Porém isso se diferencia notadamente, pela fonte produtiva, feliz, vital, inexaurível e otimista do neoplatonismo, isto é, do Uno plotiniano colocado além do ser (com o qual mostra também uma certa “mística” afinidade). Para Hegel a Anfang [Começo] é certamente um Grund, é um fundamentum inconcussum absolutum veritatis (para usar a fórmula repetida por Heidegger), é a Posição inicial – mas se o Início resultasse, ao contrário, um Abgrund?, algo que não pode ser nunca determinado, nem, por consequência, concluído? Se o Grund se fizesse incapturável, caso se tornasse sinistramente um início que não acaba nunca – e que de qualquer maneira nunca forneceria um sentido, nem mesmo quando pudesse fazer-se igual ao Verdadeiro, igual ao Resultat hegeliano? Para qual círculo, nessas condições, poderia ser perfeitamente voltado?

Nesse caso, a ferida nunca fechada do ser se alimentaria de incompletude, de morte e de desejo insaciáveis, e essas mortes e incompletudes retornariam perenemente encarnadas pela “selvagem impossibilidade que eu sou”; “O Unwissenheit, a ignorância amada, estática, torna-se nesse ponto a expressão de uma sabedoria sem esperança” (Il Colpevole, p. 36-37; OC V, p. 260-262). “Ich liebe die Unwissenheit um die Zukunft” [Eu amo a ignorância no futuro], tinha escrito Nietzsche; e essa fórmula se torna o antídoto para o Saber absoluto hegeliano, para sua última, completa, previdente/prometeica sabedoria. A ignorância do porvir é o ápice da consciência humana, que como tal é amada, que difere tanto da esperança quanto do saber possuído pelo sábio no final da história. Hegel e Kojève não tinham contemplado a possibilidade de uma sabedoria sem esperança, ou de um sábio desesperado. Isso porque repousavam, mais ou menos conscientemente, sobre um Grund, no qual o “sábio” se baseava, satisfeito do seu saber não mais filosófico, mas, sim, científico. Vice-versa, no momento em que “l’excès excède le fondement”, o decurso do espírito muda radicalmente. “l’excès est cela même par quoi l’être est d’abord, avant toutes choses, hors de toutes limites”19 [o excesso é aquilo mesmo pelo qual o ser é, de imediato, antes de todas as coisas, fora

19 Prefácio a Madame Edwarda, nota 1, trad. it. de D. Selvatico Estense in ID., Tutti i romanzi, organizado por G. Néri, Bollati Boringhieri, Torino, 1992 e 2004, p. 135 (OC III, pref., p. 9-14).

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de todos os limites]20. O excesso é estático, é móvel, está fora de si e, portanto, tragicamente inexaurível, seja em direção à origem seja em direção ao fim.

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A Befriedigung, a “satisfação” do sábio, por outra parte, é cômica, não trágica:

Pequena recapitulação cômica. – Hegel, imagino, tocou o extremo. Ele era ainda jovem e pensou que estava ficando louco. Imagino até que ele elaborava o sistema para escapar [...]. Para terminar, Hegel atinge a satisfação, vira as costas ao extremo. A súplica morreu nele [...]. Hegel ganhou, vivo, a salvação, matou a súplica, mutilou-se. Somente sobrou dele um cabo de pá, um homem moderno. Mas antes de mutilar-se, sem dúvida, tocou o extremo [...]: a sua memória o conduz de volta ao abismo entrevisto, para anulá-lo! O sistema é a anulação (Exp. int., p. 80; OC, V, p. 56)21.

A grandiosa estratégia de defesa hegeliana através da loucura e do Ab-grund deixa fora, porém, os territórios do possível que colocariam em crise perene o Sistema: por consequência, o Sistema não contém a síntese de todo o possível, aliás, exclui a priori os extremos que o “decomporiam”. E se a vida sem extremo resulta inconcebível (e inutilmente vivida), o pensamento nem mesmo existe. E, no entanto, mesmo o extremo é em si mesmo in-concebível pelo Sistema. O extremo é “místico”, pois se dá, mas não se diz.

O extremo se dá no êxtase que é alcançável somente por excesso, não por defeito (eis por que Bataille suspeita também da ascese como método místico). É o instante da alegria e do susto supremos, intoleráveis, insensatos, que desejamos com todas as forças e no mesmo tempo com todas as forças rechaçamos. O instante em que o ser nos vem entregue numa superação insuportável do ser,

20 BATAILLE, Georges. Madame Edwarda (prefácio – nota 1). Tradução de Osvaldo Fontes Filho. In: Outra travessia, Revista e Literatura, n. 5, Ilha de Santa Catarina, 2. semestre de 2005. p. 95-97.21 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática S.A., 1992, p. 49 (N. T.).

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tanto que nos parece morrer (sem morrer). Bataille, no prefácio de Madame Edwarda, define a sua (com a habitual intimidade) uma “reflexão patética”, fundada, portanto, essencialmente, em padecer o excesso do fundamento (e o inefável Kojève, em relação a esse prefácio “teórico”, comentará: “nunca apreciei muito o patético, <ao menos> em literatura” – 4 III ’56). Contudo, longe de ficar um elemento “sentimental”, o excedente do ser observa de perto a tarefa do pensamento: “o que significa a verdade, fora da representação do excesso, se não víssemos aquilo que excede a possibilidade de ver [...], se não pensássemos aquilo que excede a possibilidade de pensar?” (pref. Mad. Edw.)22.

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Portanto, também o “sábio” por excelência (ou talvez Deus mesmo), isto é, Hegel, se torna um dos trágicos rostos de uma “existência não discursiva”. Ele é a verdadeira figura do “sábio desesperado” que finge, via a potente ilusão do Sistema, não ver o abismo; ou, melhor dizendo, é o rosto da existência cômico-desesperada, horrenda, irremediável de um deus alógico, indizível e indefensável:

[...] em um retrato seu, idoso, imagino ler o esgotamento, o horror de estar no fundo das coisas – de ser Deus. Hegel, no momento em que o sistema se fechou, acreditou, durante dois anos, tornar-se louco: talvez tivesse medo de aceitar o mal – que o sistema justifica e torna necessário; ou talvez ligando a certeza de ter atingido o saber absoluto ao acabamento da história – na passagem da existência ao estado de vazia monotonia – ele se viu, num sentido profundo, tornar-se morto; talvez mesmo essas tristezas diversas misturavam-se, nele, no horror mais profundo de ser Deus (Exp. int., p. 164; OC V, p. 128)23.

22 “Que signifie la vérité, en dehors de la représentation de l’excès, si nous ne voyons ce qui excède la possibilité de voir [...] si nous ne pensons ce qui excède la possibilité de penser... ?” In: BATAILLE, Georges. Madame Edwarda. Le mort. Histoire de l’œil. Paris: Jean-Jacques Pauvert Editeur, 1977, p. 16-17 (N. T.).23 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática S.A., 1992.

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II.

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Bataille, não obstante a sua relativa ignorância no campo filosófico, possui na realidade antenas muito sensíveis. Ele afirma em A Experiência interior que a única filosofia que vive é aquela da escola alemã (interpretada por Kojève, naturalmente) e entre os contemporâneos, em primeiro lugar, através dos vagos sussurros que lhe chegam a partir destes, aquela heideggeriana. A Bataille não importa ler essa filosofia, aliás, ela quase que o deixa cansado. Porém percebe com segurança que agora ele está ali e que o pensamento vai adiante, que ali foi para se instalar o progresso do pensamento, o Fortschritt do Espírito, que aquela é a fronteira mais avançada do saber que se podia num tempo se definir filosófico.

Alude-se, às vezes, o juízo pelo qual parece que Heidegger tenha definido Bataille “a melhor cabeça francesa pensante” – com o não secundário acompanhamento de uma dúvida: isto é, que esse juízo bajulador (que não irá supor, talvez, e malignamente, uma malograda apreciação em direção aos outros filósofos franceses?) fosse, porém, referido a Blanchot. Temos testemunho desse fato no epistolário do nosso autor, lá onde Bataille fala de um “incident Heidegger: Heidegger confondant Blanchot et Bataille”.24 O organizador nos informa que os detalhes desse “incidente” não são conhecidos; parece que Heidegger disse uma vez (talvez a R. Char, a J. Beaufret, a K. Axelos?) que Bataille era “la meilleur tête pensante française”; mas ao dizer teria confundido o nome de Bataille com o de Blanchot.

Trata-se certamente de dois filósofos heterodoxos, pelas semelhantes intenções e pela semelhante Stimmung [Afinação], muito próximos em alguns anos cruciais. Bataille reconhece realmente na mesma carta o caráter do Impossível como comum a ele e a Blanchot; os dois teriam precisamente em comum “a renuncia de uma filosofia

24 BATAILLE, G. Choix de lettres (1917-1962). Organizado por M. Surya. Paris: Gallimard, 1997, p. 582-583 (carta a J. Lindon, 31 de janeiro de 1962); também em OC III, Notes, p. 519-520.

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formal que conduz a uma filosofia impossível”, sustentando, além disso, que “l’impossible c’est la littérature” e que “la philosophie est le sens de l’impossible”. No entanto, apesar dessa evidente e exibida influência de Blanchot sobre Bataille, nos agrada pensar que Heidegger não tenha, de fato, se confundido, mas, sim, que tenha reconhecido, (ele também com as antenas sensíveis de quem mora sobre um monte bastante separado), num pensador os seus antípodas metódicos e pessoais, uma secreta afinidade, que tentaremos, aqui, desenvolver nas suas linhas teóricas.

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A improbabilidade e, por certa maneira, a inverossimilhança de uma aproximação teórica entre Bataille e Heidegger é evidente – e é justamente isso o que nos propúnhamos fazer, convencidos de um tema fundamental, a partir do qual ambos estão presentes até a medula: que a filosofia (o que num tempo podia ser chamado de filosofia) não consegue mais dar conta. E que, apesar disso, resta o saber fundamental para a pesquisa humana.

Mesmo depois de ter avançado o argumento, e por mais que uma primeira comparação possa parecer aproximativa, ficamos persuadidos que existem, de qualquer forma, muitos e evidentes pontos de aproximação entre as proposições filosóficas de Bataille e as de Heidegger (e especialmente do Heidegger lido na França). Tentaremos listar algumas dessas, bem conscientes do fato de que se trata de dois pensadores que têm prevalentemente problemas, métodos e também graus de complexidade diferentes. Sobretudo métodos, provavelmente, pois os caminhos seguidos divergem de maneira muito sensível.

A noção central para essa perigosíssima comparação é talvez aquela de “sagrado” – noção emblemática assim como queremos indagar: a ateologia (certamente ainda não realizada) da filosofia. A filosofia “ateológica” desejada e perseguida por Bataille pode sem dúvida se assemelhar, em relação aos seus pontos de partida, à exigência que direciona o pensamento heideggeriano contra a metafísica “ontoteológica” (prescindindo obviamente da diferença entre ser e ente, que rege essa definição). Ambos indagam, ao seu

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modo, em quais circunstâncias e com quais modalidades O Sagrado fora do dogma se torna tarefa confiada ao pensamento (ou seja, a filosofia, dizia-se antes, como ex ancilla theologiae – tal não é mais, ao menos depois de Nietzsche, chave de retorno para essa passagem de consignação da ontoteologia ao pensamento). A palavra “sagrado” é nesse sentido a mais indefinida, a menos determinada ou marcada por uma tradição, e pode se adaptar melhor do que outras ao elemento que “chama” ambos e do qual ambos sentem a necessidade de tentar uma “fenomenologia” (futurível, declinada ao futuro).

A essa importante herança deixada para o pensamento corresponde a concepção da Filosofia como ausência de Pressuposto (leiam-se os trechos citados acima das conferências sobre o não-saber), que ambos compartilham. Portanto, mostra-se também uma similaridade sobre o plano ontológico-metafísico. E uma coisa é certa: Bataille certamente não quer conservar o ser entificado, tolera todos os limites da ontologia tradicional (que segue a moral tradicional) e do ser desde sempre salvaguardado de aristotélica memória (e ainda mais do ser parmenídio – enquanto Kojève, ao contrário, chega a imputar à sua “mística” a vontade de um retorno para esse Uno!). Aliás, a conservação, a realização, a prudente prorrogação da existência, conectadas ao Grund e ao projeto do Logos filosófico, o nosso filósofo quer sistematicamente subvertê-las através da dépense, do erotismo e dos métodos estáticos. O fundamentum absolutum veritatis se torna abstractum, colocado para fora.

Assim, correlativamente, a noção de “ser” é revista, corrigida e subvertida: o Ser se dá somente no momento de excesso que excede o fundamento (leia-se o já citado Prefácio a Madame Edwarda, nota 1). Esse abalo do ser pode perfeitamente ligar-se àquele movimento “antimetafísico”, que tem como objetivo direcionar-se contra o Grund, ou seja (traduzindo com um pouco de elasticidade na linguagem heideggeriana), colocando uma diferença originária do proceder entificante de toda “metafísica”.25

25 Não é por acaso que a acusação de mística venha direcionada a Bataille dos mais diferentes âmbitos filosóficos: Além de Kojève e Sartre, também o cristão padre Daniélou no assim chamado “debate sobre o pecado” vê em Bataille um místico; poderíamos dizer que se trata em prática dos herdeiros de toda a tradição filosófico-ontoteológica ocidental!

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Aquilo que Heidegger exprime em termos perfeitamente filosóficos e conceituais, portanto, críticos e dirimentes, Bataille o intui e o padece, gritando com o seu pé preso à armadilha. Não se pode esperar dele algo diferente (e nem mesmo de Heidegger...): assim, tentemos entendê-lo em sua linguagem. Parece quase supérfluo revelar no plano do movimento em direção à própria filosofia (palavra que ambos ressaltam os limites) como também é comum aos dois pensadores uma específica relevância atribuída ao pensamento como disciplina ou atividade espiritual suprema e extrema, muito além do dogma religioso e do “não-saber” da ciência.

Além disso, permanece comum a ideia de que o pensamento resulte herdeiro daquilo que num tempo era tarefa e domínio da religião, da mística, da própria filosofia tradicional – lá onde se faz mais urgente e modificado (sem dúvida no fim da metafísica) o esforço do pensamento em confrontar-se com as questões últimas do tempo, da consciência, da história e do seu próprio impor-se como tal. E isso sem entregar-se à (confortável?) limitação de um dogma, de um credo e de uma perspectiva, agora inacreditáveis – em suma, estar sem pressuposto. E especialmente hoje parece sempre mais difícil acreditar numa perspectiva, diante do mundo como é. E, aliás, não é evidentemente mais possível, se não se assume conscientemente a parte do dogma – isto é, em relação à limitação desejada, de uma sabida parcialidade, sustentando uma opinião contra todas as outras. E é realmente no nosso tempo que a filosofia ou consegue considerar a si mesma e os saberes que estão diante dela, sendo o lugar de confronto desses saberes, ou não é mais nada.

Nos nossos dois autores a recusa do aparato ontoteológico tradicional conduz a um terminal, extremo repensar das questões tradicionais – que se concretiza na exigência, ingenuamente expressa por Bataille, de uma “nova teologia” filosófica. Emerge desta, assim, a ideia da “extremidade” da filosofia, de uma particular consonância ou recepção do Zeitgeist, de uma capacidade de acolher o humor de um mundo que se pensa por si mesmo; capacidade esta que pode fazê-la voltar a ser o ápice das “disciplinas espirituais”. No entanto, essa é somente uma imagem máxima da filosofia sem dúvida liberada dos

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“pressupostos”. Na realidade, o pensamento nunca se dá “puro”; ele cai, de qualquer forma, (nos melhores casos) na idolatria da própria liberdade e da própria suposta ausência de pressupostos. O puro pensamento do mundo como é, na sua totalidade, parece agora uma tarefa inconcebível, verdadeiramente desesperada (o último que tentou isso foi, sem dúvida, Hegel: não por acaso se trata do principal interlocutor de Bataille).

Isso não tira nada da sensação fundamental: que quanto mais a filosofia parece mostrar-se minoritária e marginal no nosso mundo, tanto mais parece herdar uma tarefa espiritual suprema e muito urgente, ainda que inatual ou póstuma. Assim parecem pensar Heidegger e Bataille – junto a Nietzsche, que os une, e é o mestre da “‘ateologia filosófica”. Certamente uma questão ulterior permanece aberta: essa será ainda “filosofia”? Trata-se ainda da (philo)sophia da qual falávamos no início, o eros platônico do saber? E caso seja, mesmo com aparências mudadas, qual linguagem poderá falar?

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A propósito de linguagem, existe ainda um último traço que aproxima os dois distantes pensadores. No Método de meditação, Bataille coloca frequentemente algumas observações sobre um possível paralelismo entre a sua filosofia e a de Heidegger; e isso apesar da declarada antipatia que Heidegger tem por ele e da diferença entre caminhos seguidos por cada um, ou seja, em relação aos respectivos métodos. Bataille afirma que o elemento graças ao qual se sente mais próximo de Heidegger é o de uma certa impotência (palavra-chave em Bataille: a impotência de Deus...). Para ser preciso, a impotência em que este último se encontrou ao começar a escrever o segundo tomo de Sein und Zeit [Ser e Tempo]: o famoso “vir menos da linguagem” que Heidegger lamenta por complicados motivos. Mas tais motivos não estão tão distantes dos de Bataille. Este, como sabemos, confessa frequentemente de maneira semelhante como se encontra, de repente, traído pela linguagem, isto é, como se sente surpreendido, enquanto fala, pela impotência radical, constitutiva do aparelho ontoteológico e logocêntrico que se revela insuficiente ao expressar uma experiência que o excede.

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Certamente as diferenças entre as duas filosofias aqui analisadas são muitas, talvez mais do que as semelhanças; nos confrontos da linguagem, no caso de Bataille é ainda a experiência que o excede, enquanto que no caso de Heidegger é o pensamento que não se reconhece mais no seu fundamento. Bataille enuncia muitas vezes pelo seu ponto de vista algumas diferenças evidentes com a filosofia heideggeriana. Antes de tudo, seu começo pelo riso ao contrário da angústia, que é, sim, um momento soberano, mas também fugitivo em relação a si mesmo, e puramente negativo. Além disso, afirma Bataille, a obra de Heidegger não é uma taça de licor: assemelha-se muito mais a um tratado de destilação, isto é, se trata de um trabalho acadêmico que usa um método subordinado, servil, preso aos seus próprios resultados. Bataille quer ensinar, por outro lado, o destaque soberano, a superioridade em relação ao método, e definitivamente “uma embriaguez [...], não uma filosofia: não sou um filósofo, mas um santo , talvez um louco”.26

Nessas palavras se mostra clara a consciência de ser um outro tipo de filósofo, e se mede bem a distância entre os dois. De fato, a linguagem vem a faltar menos em Bataille não durante as etapas de uma pesquisa, mas por princípio: pela sua própria exigência em tentar mais uma vez dizer o Impossível. A inevitável impotência que resulta desse impossível coincide com o ser colocado numa estrada (sobre um método) já perdida na partida, e desejado de qualquer forma como tal no procurado e inexausto tormento da sua insensatez. A exigência de encontrar-se ao mesmo tempo dentro e fora da totalidade dos possíveis que constitui o universo – e um universo já dito (por Hegel, acrescentaria Kojève) –, ou seja, a exigência de falar e calar ao mesmo tempo, de falar calando, envolve-o realmente numa série infinita de oximoros, de “conceitos impensáveis” e de impossíveis.

26 BATAILLE, G. Metodo di meditazione. Trad. it. de M. P. Candotti. Organizado por M. – C. Lala, Mimesis, Milano, 1994, p. 90-91, nota 5 (também em apêndice na tradução citada de L’esperienza interiore); OC, V, p. 217-218. Nas Notes do mesmo volume das OC, p. 470-474, ulteriores opiniões sobre Heidegger, sobre o “disfarce” do seu jargão de professor, sobre as citações gregas não traduzidas, sobre o método híbrido, equívoco, intoleravelmente arrastado que ele segue: “c’est la trace du collier”, é o sinal da coleira acadêmica em que está presa essa “operação servil da inteligência”.

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Por isso, é necessária a exigência do antissistema, do absoluto não-sentido, do riso do sentido, do não-saber estático (bem mais radical do que qualquer ironia socrática ou kierkegaardiana). Bataille quer ser indefensável, como às vezes afirma, quer exprimir-se de maneira inconcebível para aqueles que um tempo foram chamados de filósofos; mas, sobretudo, quer, teme e entra no labirinto de Nietzsche: uma entrada, mas nenhuma saída. Esse caos de contradições é para ele o grande e difícil exercício/sacrifício filosófico – a sua expérience.

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Existe uma possível chave para abrir e tornar inteligível a impossível comparação Bataille-Heidegger, além do que já se tentou dizer. Esta chave é Nietzsche, próximo a ambos por motivos (mais uma vez) profundamente diferentes: “o meu único companheiro sobre a terra”, por paridade de urgência e radicalidade de experiência filosófica (não mística, não erótica), segundo Bataille. O último pensador em que a metafísica ocidental se realiza, segundo Heidegger, cuja noção principal que diz respeito ao ente é a de “vontade de potência”. Nietzsche é sem dúvida o pensador que marca a abertura de uma nova época para a filosofia, em que esta se encarrega de pensar as “últimas coisas”, mas não mais dentro de um horizonte de sentido (fornecido pela revelação, pela tradição e pela própria linguagem filosófica), mas como pensamento ateológico, adogmático, terrivelmente infundado e póstumo a si mesmo.

Quantos forem os pontos íntimos de reflexão comum, que Bataille deriva de Nietzsche, basta seu livro Sobre Nietzsche (constituído quase exclusivamente por citações) para provar o fato. O riso do criador divino, do poietés, se transforma com um sutil deslize (anti) hegeliano no riso diante do Sentido absoluto, do absoluto saber do Sistema – mesmo desejando manter também o sentido nietzschiano (provavelmente sem consegui-lo, como discutiremos mais adiante). A isso se liga a temática da vontade da aparência, o sim à vida, pronunciado diante do horror da existência não justificada e da inconciliação dos extremos. E, sobretudo, o que Bataille encontra em Nietzsche é a exemplaridade da experiência como substância da filosofia, o ideal do filósofo báquico já expresso: “ele, filósofo, teve

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como finalidade não o conhecimento, mas, sem separar as operações, a vida, seu extremo, em uma palavra, a própria experiência, Dionysos philosophos” (Exp. int., p. 60-61: OC, V, p. 39)27.

Vice-versa, Heidegger, como ótimo filósofo, caracteriza logo o problema crucial em Nietzsche e o declara no início do livro dedicado a este. Trata-se da exclamação em O Anticristo: “Quase dois milênios e nem um único deus novo!”.28 Depois da “morte de Deus” (ou seja, a queda dos valores transcendentais, que parecem contestar-se sozinhos); depois do descobrimento de que a ideia é supérflua (eliminando-a!); depois que nos demos conta que “falta o objetivo”, e bate nas portas o niilismo, o mais inquietante dos hóspedes; depois do conjunto desses acontecimentos histórico-metafísicos, as manifestações do pensamento serão inevitavelmente, assim, o non-savoir, a (a)teologia, a espera do novo deus que nos possa salvar, o ultra-homem: todas estas determinações negativas.

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É, sobretudo, Deus, o grande falecido, o que Bataille (com)partilha com Nietzsche. A palavra Deus, essa enormidade insensata que queima num vórtice todas as outras enormidades, que no passado quis, de tal modo, significar muito para tornar a palavra pavorosamente ridícula – Bataille sabe bem que a palavra impronunciável, que oculta um ser impossível, constitui a verdadeira ligação entre ele e Nietzsche, entre os seus assim chamados “ateísmos”. Pois “l’athéisme de Nietzsche est d’une nature singulière, il est l’athéisme d’un homme qui connaît Dieu, qui de Dieu eut la même expérience que les saints” (OC, XI, Critique, p. 127). E é essa experiência de Deus semelhante àquela dos santos, tão presente ali para superar Deus, que funda a sua comunidade. Deus, portanto, não é nada, se não for superação de Deus em todos os

27 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 34 (N. T.).28 Curioso que Heidegger, com o intuito de mostrar como o negativo, no pensamento idealista, pertence ao ser, cite o mesmo famoso trecho hegeliano, que aqui na tradução soa: “A morte [...] é a coisa mais terrível, e deter aquilo que está morto é tarefa que requer a força máxima”. Cf. HEIDEGGER, M. Nietzsche. Organizado por F. Volpi. Milano: Adelphi, 1994, p. 71.

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sentidos. “Não a qualquer um é concedido de não pertencer à minha ausência de comunidade”, escreve Bataille (na revista Contre toute attente); e se somente a Nietzsche é, talvez, concedido, é-lo em virtude da compartilhada, irresolúvel e sofrida morte de Deus.

Mas, antes de chegar a Nietzsche, devemos voltar a examinar brevemente o muito que já foi dito sobre a relação (irrisória?) com o cristianismo do Bataille leitor de Angela de Foligno e do Latin mystique, do jovem seminarista sobre o qual nos informa Surya na sua biografia.29 À primeira vista, apressadamente, se pode, sem dúvida, pensar que “Bataille [...] é um cristão que se envergonha”, como julga sumariamente Sartre, e que até o fim nunca “vai querer admitir que a transcendência não existe” (art. cit., p. 270-271). Bataille, segundo Sartre, permanece, apesar de tudo, aquele que Nietzsche chamava de “alucinado de um retromundo”, que se autoconvence de maneira fictícia da possibilidade de um novo tipo de misticismo e o faz simplesmente transformando a própria ignorância nas trevas do não-saber; por isso a sua operação intelectual não consiste senão no substancializar o nada. A esse “nada hipostático”, prossegue Sartre, Bataille, às vezes, dá, e, às vezes, recusa o nome de Deus.

Ora, se o procedimento fosse assim limpo e linear, assim mental, assim filosófico, poderíamos admitir também que Sartre tem um pouco (puramente satírica) de razão. Mas isso significaria operar uma gigantesca epoché em relação àquelas características de excesso, de negativo, de saída de si, de necessidade de comunicação e de eros, que criam o sagrado como tal – pois é realmente o Sagrado o objeto do “êxtase filosófico” bataillano, muito mais do que Deus em si mesmo (em virtude daquelas novas tarefas da filosofia sobre as quais procuramos falar anteriormente). E o sagrado pressupõe não somente a separação e a ferida, não somente o divino, mas também a imundícia na qual Bataille não desdenha mexer – a imundícia: o âmbito do imundo, em que se revela a insuportável ligação do sagrado com a dimensão abjeta e de dejeto, e ainda mais ali com o domínio do Impossível.

29 SURYA, M. Georges Bataille: la mort à l’oeuvre. Paris: Gallimard, 1992. p. 41. O texto citado é a antologia de literatura tardo-latina compilada por R. DE GOURMONT, Le Latin mystique. Les poètes de l’antiphonaire et la symbolique au Moyen Age, Mercure de France, Paris, 1912 (2a ed.) e ss.

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Voltando, ao contrário, da questão do pressuposto misticismo àquela, mais própria, do Nada, Heidegger faz uma observação extremamente aguda, aplicando-a a Nietzsche, mas que talvez fique exata também a referindo a Bataille. Heidegger percebe a reflexão constante ao longo do excêntrico percurso nietzschiano, sobre os termos niilismo, misticismo, e, sobretudo, Nada – o Nichts que é a negação do pragma, da coisa “operada” ou factível (justamente como Bataille entende, interpretando Hegel, ou seja, o termo latim nihil entendido como ne-hilum (como propõe o próprio Leopardi, em lindas páginas do Zibaldone). A partir dessa concepção do Nada (sem dúvida hipotético), a observação que Heidegger move ao niilismo nietzschiano, presente no fim da história do ser como metafísica, é que nesse, de maneira estranha, é realmente o Nada que permanece impensado: “niilismo, então, significaria: o não pensar, essencialmente, a essência do nada”.30

O que acontece com Nietzsche no ponto de efetivação da metafísica ocidental e que o mantém na sua Unwesenheit [Inessencialidade], isto é, no interior de um modo impróprio de desvendamento do ser, pode ser comparável ao que acontece com Bataille nos textos em que ele, às vezes, fica maravilhado como é realmente o termo “nada” que precisa ser ulteriormente pensado em todas as suas possíveis implicações, e em particular na sua relação com o Impossível. De fato, poderia ser exatamente o termo “nada” que constitui um acesso àquela Possibilidade não realizada (e, portanto, não incluída no Sistema), àquela infinita potência que o Impossível “figura”. Mas Bataille não abre essa discussão, e poder-se-ia dizer que precisamente por essa razão ele parece ficar aprisionado nas aporias da metafísica ocidental teológica, e, dessa forma, o arrombamento da jaula da linguagem, encalhando-se no nada, não encontra nada melhor do que dizer “deus” – fazendo com que Bataille pareça, desse modo, um místico.

30 HEIDEGGER, M. Il nichilismo europeo. Organizado por F. Volpi. Milano: Adelphi, 2003. p. 56 (o texto dessas aulas constitui também um capítulo do já citado Nietzsche heideggeriano).

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Existe, sem dúvida, uma espécie de nada que aparece na reflexão de Bataille, que não é tanto o nada do místico (que o identifica com um Deus que é também algo precisamente determinado), quanto mais aquele nada, que coincide com o Impossível, cujo pensamento inevitavelmente chega (porque se existe uma certeza em Bataille, é que o pensamento chega a nada). No seu ápice o movimento do pensamento aspira, como Bataille declara em O culpado, à sua “destinação à morte” e vem precipitado com esta na esfera do sacrifício; é lá em cima que, como declara o nosso autor, sopra um vento terrível que o abate, lá onde se enfurece a contradição definitiva. O elemento definitivo não é o nada, mas, sim, a contradição. O movimento do pensamento não consegue nem mesmo ter êxito na sua extinção, morrendo imperfeitamente (como o homem). Por essa razão, no fim, este permanece trágico. “La pensée (à cause de ce qu’elle a au fond d’elle), il faut l’enterrer vive” [O pensamento (devido ao que ele tem no fundo de si), é preciso enterrá-lo vivo]31 (OC V, p. 179; Exp. int., p. 224). O pensamento, é necessário sepultá-lo vivo, não extinto, não entregue a um ente “numinoso” que o aniquila; deve ter os olhos abertos enquanto morre, deve ser consciente da tragédia que lhe ocorre, do drama em que está inserido, pois dessa maneira, ele é verdadeiramente sacrificado.

E esse nada a que o pensamento alcança coincide, talvez, com o que uma vez foi Deus, mas que agora se tornou o Impossível. Como, por exemplo, expõe a súplica em A experiência interior, ou seja, a paradoxal oração direcionada a Deus Pai, em que Ele mesmo sente a sua impossibilidade até o horror, em que o coração, junto a Deus e ao homem, excede, vem a faltar e não tolera mais que Ele seja (Exp. int., p. 70; OC, V, p. 47-48). O meu desespero não é nada, escreve Bataille, em relação àquele de Deus (– ou de Hegel, talvez). E apesar da tentativa de diálogo com a linguagem teológica tradicional, ele sente com clareza que o cristianismo não tem em conta, muito radicalmente, mais do que a agonia e do que o “negativo”, o (des)espero e essa impossibilidade

31 BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992, p. 165 (N. T.).

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que não tolera mais nem mesmo a própria ideia de Deus. Assim, como poderia o cristianismo se desesperar, isto é, não esperar? Como poderia mostrar-se tão paradoxal a ponto de não tolerar mais o seu próprio Deus, para viver verdadeiramente, além da morte no sentido nietzschiano, a última impossibilidade?

Essa cautela, essa falta de abandono radical, essa ausente superação de Deus, mesmo em vista de nada, vai por necessidade ligar-se, do ponto de vista filosófico e da teologia oficial, com a tutela ontológica do ser e com a sua salvação metafísica – aquela “salvação” (“salut”) que é um outro daqueles intoleráveis termos bataillanos, junto à “completude” (enquanto o seu é, ao contrário, por definição um “système inachevé”). Portanto, a derrota da tragédia é uma glória – quando, por outro lado, “o cristianismo alcança a glória fugindo do que é (humanamente) glorioso. Deve, antes de tudo, se reconhecer a destinação a salvo daquilo que, em relação à fragilidade das coisas desse mundo, é substancial. Então, torna-se possível o sacrifício de Deus e a sua necessidade entra logo em jogo” (O culp., p. 35; OC, V, p. 259). Trata-se, assim, da intenção de salvaguardar o próprio ser da metafísica teológica tradicional, intenção da qual também depende a eficácia do “sacrifício” de Cristo. E ainda, para provar o que Bataille advertiu com notável perspicácia como problemática das noções de salvaguarda e completude do ser (do qual Deus se torna o responsável) dentro de uma lógica sacrificial ou, melhor dizendo, redentora: “a teologia resiste ao princípio de um mundo completo [...], até mesmo na noite do Gólgota. É suficiente que Deus seja. É necessário matar Deus para perceber o mundo na enfermidade da incompletude. Então, o que se impõe ao pensamento é que, a qualquer custo, necessitaria completar este mundo, mas justamente aqui está o impossível” (ivi, p. 39; OC, V, p. 262). Essa passagem nos reconduz, mediante a vontade de conclusão/conciliação que a “metafísica” impôs ao pensamento, para a paradoxal e perfeita coincidência entre Sistema completo e Impossível.

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É essa concepção da salvação do ser, com o aparato conceitual ao mesmo tempo dogmático e banal, através do qual o cristianismo

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oficial continua sendo o forte tutor, que conduz provavelmente ao sentimento do “tédio que”, em sentido expressivo, “é o mundo cristão”.32 Bataille sente que é um pecado que a cristandade não reconheça (mas como poderia?) que entramos na noite, que deus morreu, que é inacreditável pertencer a uma religião determinada e estar sob um dogma; é um pecado porque, como ele observa em outro texto, as dissipações de sentido mais ricas são oferecidas essencialmente pelo cristianismo e pelo erotismo, no conjunto da sua perfeita oposição-composição. Contra o cristianismo (isto é: contra o “mundo cristão”) não decide certamente a nossa razão, já dizia Nietzsche, mas o nosso gosto; e eis por que se impõe a necessidade daquilo que o próprio Nietzsche chamava de um “hipercristianismo”, ou seja, uma (impossível pelo interior da fé) superação do seu caráter de parcialidade dogmática.

De fato, para essa afirmada solidez e proteção do ser, para essa apresentação (antes ou depois) da sua antitrágica completude, conecta-se também, inextricavelmente ligado pelo ponto de vista histórico e metafísico, o problema da linguagem lógica como verbum: “o cristianismo, no fundo, é somente uma cristalização da linguagem. A afirmação solene do quarto Evangelho: et Verbum caro factum est é, num certo sentido, essa verdade profunda: a verdade da linguagem é cristã”.33 Assim, retorna o problema do logos hegeliano e da Palavra, mediadora universal da era cristã. Bataille diz em A experiência interior que, enquanto o oriental for estranho ao drama, o cristão, ao contrário, é incapaz de alcançar o silêncio nu; à inatividade, à falta de ação, de drama, do primeiro, põe-se ao lado a impossibilidade de renúncia do discurso, do logos, do segundo. E essa é realmente mais uma daquelas características da tradição ocidental em que se impõe a superação: contestar e dilacerar a linguagem para poder alcançar a capacidade de silenciar (mesmo sem ter alcançado o “saber absoluto”...).

Outra chave do confronto antagônico com o cristianismo é oferecida pelo “debate sobre o pecado”, que Bataille desenvolveu com

32 BATAILLE, G. La condizione del peccato. Trad. it. e organização de A. Sartini. Milano: Mimesis, 2001, p. 47.33 ID. , Frammento sul cristianesimo, no apêndice de Il colpevole – L’Alleluia, cit., p. 179; OC, V, p. 382.

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alguns representantes da religião católica. O único pecado concebível no horizonte de Bataille (conceito impróprio a Bataille, mais do que nunca, se tomado através do significado comum cristão) é o simples e originário ex-estar – o pecado que é a existência em si e para si mesmo, que consiste na separação originária da individualidade (não esqueçamos que esse tema do “principium individuationis” abre A experiência interior). De qualquer maneira, palavra imprópria, que cai fora dos argumentos bataillanos, a menos que ela não seja direcionada à noção originária de hamartia: ou seja, a experiência contínua, terrível, mesmo com a incapacidade de mirar o alvo, de não conseguir fazer o que deveria, de não possuir as forças adequadas para fazê-lo, tendo a meta sempre ausente. Portanto, pecar por impotência: e esse é certamente um conceito que fala ao nosso Bataille.

Desse modo, pecar em sentido amoral é justamente isso: não conseguir ser afetado radicalmente pelo vulnus: isto é, ser vulnerável, incompleto, irrealizado, imperfeito, inacabado. Mas, então, o homem é por essência um pecador, e a ateologia é coisa do ultra-homem. O ultra-homem, o “homem total” (como o chama Bataille em Sobre Nietzsche) é talvez o homem sem pecado. O criador; ou pelo menos o homem que possui a força de ignorar ou superar o vulnus. O homem real, ao contrário, é vulnerável, possui uma ferida insanável, sempre aberta, sempre gritante, e não parece poder estar ontologicamente à altura do perfeito “logos ateológico”. O homem existe, assim, sendo realmente uma criatura estática, sucumbindo, como primeiro ato que dá lugar à sua própria existência, àquele êxtase que é o ser-jogado-fora, o distinguir-se, o vir à consciência, o entrar na existência excluindo-se de um estado “impossível”. Essa ferida imemorável, o seu pecado, cria o homem dessa maneira.

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A vulnerabilidade é trágica e assim permanece, e não existe “divina comédia” em Bataille. O fim é trágico assim como o início. No entanto, é justamente a experiência do trágico vivida até o limite, percorrida pelo caminho “ultra-humano” como demonstra a nota nietzschiana dos anos 1882-1884, que Bataille gosta de citar: “ver precipitar as naturezas trágicas e poder rir delas, apesar da profunda

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compreensão, da emoção e da simpatia que se sente: isso é o divino”. Onde caí o acento não tanto sobre a necessária precipitação das naturezas trágicas, quanto mais sobre a divindade do riso como expressão ultra-humana – porque é o riso do criador, daquele poietés que será o ultra-homem, aquele que poderá rir da tragédia (embora, talvez, não a eliminando). É o riso do “homem como poeta, como pensador, como Deus, como amor e como potência” (11 [87]);34 é o riso daquele que sabe ter prometeicamente inventado tudo o que se dá no mundo, unindo realidade e ilusão, vontade e verdade, possibilidade e objetividade; é, enfim, o riso do Übermensch [Super-homem], daquele que pode dizer o que quiser: “quis que fosse assim” – porque ele sabe bem que criou tudo. É o senhor da Consciência, aquele que domina e possui o Espírito que anima o mundo: o verdadeiro e único Soberano e Criador, muito além de qualquer deus.

O problema é evidente: quem pode rir este riso? Os “homens superiores” devem ainda aprender a rir; o ultra-homem certamente o poderá, porém neste momento é somente um anúncio, uma boa nova, um projeto. E aqui se aproxima (para voltar às sugestões heideggerianas) a hipótese de uma superação do “humanismo”, através da noção de um novo gênero de homem: o homem total. A vontade do impossível é também isso: querer o super-homem. E apesar disso: metamorphosis is coming? Pode-se esperar isso? e somente muito humanamente esperar? Certamente a mutação do homem no seu ultra ainda não se verifica, e nem mesmo se pensa, e nem sequer parece estar a caminho ou se dá por sinais como se estivesse prestes a acontecer. A mutação também permanece uma determinação puramente negativa (senão, utópica). Mesmo assim, note-se bem, é a partir desse novo homem, do seu pensamento, da sua ação, que depende a superação da teologia fundadora, da metafísica onto-teológica, da tradição humanista-subjetivista – especialmente na versão nietzschiana com a qual Bataille compartilha –, em suma, de tudo o que o homem tem imperfeitamente criado até agora.

34 NIETZSCHE, F. Opere. Organizado por G. Colli e M. Montinari, VIII, t. 2, trad. it. de S. Giametta. Milano: Adelphi, 1971, p. 251-252.

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O ultra-homem se torna, por isso, um nó fundamental para qualquer filosofia futura, como sujeito do novo discurso ateológico que irá superar as experiências demasiadamente humanas. No entanto, muitas dúvidas surgem sobre essa perspectiva: e se ao contrário tudo permanecesse como é, se o homem não conseguisse, pela sua imutável natureza de pecador, sustentar o riso? Se a sua fosse somente a risada inexata de um impotente, um riso servil e não soberano, que surge da ferida incurável que a sua existência representa na ordenação do cosmo? Se não conseguisse superar as próprias faltas, para ir adiante sobre a corda estendida em direção ao além? Se não pudesse suturar o abismo aberto no ser e no pensamento pelo fato de que a sua consciência, simplesmente, está aí – e dói? E se quisesse realmente ser consciência infeliz, se se sentisse uma linda alma, subjetividade atormentada, se requisitasse não somente edificação, mas também consolação e misericórdia? Se não existisse nenhuma capacidade de acrobacia para seguir ao longo daquele cabo estendido sobre o abismo?

O caminho, então, seria tentar ao menos tolerar o trágico, que abrange força e fraqueza do homem. Assim sendo, não é o cristianismo o termo espiritual de referência de Bataille, quanto mais o trágico em sentido nietzschiano. O homem é um dado trágico, e a existência é nietzschianamente uma perpétua mesa de jogo; “um dia deixarei de ser trágico: morrerei”, escreve Bataille, em O culpado (ou seja: será colocado um fim na minha expérience). O homem, porém, como dizíamos anteriormente, está impossibilitado de ter uma boa morte: necessita ser um deus para poder morrer. E Deus, de fato, morre, está morto, no instante em que a morte é para o homem, num sentido comum, inevitável, e num sentido profundo ela é, no entanto, completamente inacessível. O homem morre mal, pois falta aquela simples naturalidade do deus, ou do animal. Ele vive toda a sua existência distanciando-se da natureza, gerando um mundo ilusório, construído para arte: este é o mundo dramático em que vivemos, onde a tragédia representa a forma mais acabada e mais alta, criando aquela atmosfera fictícia. E, assim, poderá um dia o homem, ou o ultra-homem, sair da ilusão essencial, artística, do Eu – da sua projeção de ilusões vitais (que representam a sua própria cultura)? E como poderá

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fazê-lo, devendo ser, segundo a sua tarefa metafísica suprema, antes de tudo, criador, ou seja, artista?

Essa é a contradição fundamental da tentativa nietzschiana de Bataille: a ilusão metafísica que em Nietzsche salvava a vida diante da arte e da aparência (que precedem e fundam a verdade, transformada em fábula) parece ser tragicamente insustentável para o indivíduo, no momento em que o problema mais urgente para Bataille é a comunidade do indivíduo com o todo (e, isto é, a abolição do próprio sujeito que deveria querer e criar, na perspectiva nietzschiana). Aqui, ao contrário, o sofrimento pela separação, pela própria existência da subjetividade individual, e o remorso pela ideia absoluta, impolítica, de comunidade/comunhão, vem encontrar-se em nítido contraste com o hipersubjetivismo daquele que poderia suportar o peso trágico da existência, desejando-a, aliás, como tal, tolerando-a, ela toda, sobre suas costas de maneira excepcional e dizendo-lhe, sim.

Além do mais, nem mesmo a arte, em Bataille, pode ser o medium ou o órgão de uma “conciliação” qualquer, de uma superação do trágico em qualquer que seja a direção. A “vontade de potência como arte” se apresenta como noção quase oposta ao désoeuvrement; a arte é ainda um “negativo” que precede em muito a inoperosidade final: um negativo que requer ação, transformação, luta (como Bataille explica na famosa carta a Kojève sobre a negativité sans emploi).35 A arte é ainda negação e ação, faz parte da “ungeheure Macht des Negativen” [força portentosa do negativo] (pref. Fen.): é algo mediante o qual o homem pode e deve agir com um projeto, na lógica da espera, no chamado do ser. Vice-versa, o estado de pura potência, que nunca recai no ato, em que Bataille detém a dimensão ulterior à arte, a negativité sans emploi, relaciona-se, de fato, pouquíssimo com a ideia da arte como verdade metafísica da existência (como sustentado por Nietzsche desde o Nascimento da tragédia). Talvez ela constitua a maior distância, que Bataille considera a partir do pensamento nietzschiano, do poeta que “quis que fosse assim”;36 a sua ideia de potência (e também de

35 Carta de 6 de dezembro de 1937, em OC, V, p. 369-371 e Notes p. 562-565; também em Choix de lettres (1917-1962), cit., p. 131 ss.36 Justamente no excessivo “produzir” do sujeito (que remonta segundo ele ao cogito cartesiano), Heidegger vê a expressão primária, mediada pela noção de vontade de

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impotência) não se explica, em última instância, numa ‘vontade’ (que como tal considera um sujeito), não tem um portador determinado, mas, sim, permanece num lugar cósmico impreciso. Uma latência que, para poder somente pensá-la nas suas possíveis consequências, dever-se-ia quanto menos ser utilizada como uma comparação com o pensamento do último Schelling e, talvez, do próprio Heidegger. E, aqui, provavelmente essa potência ou Possibilidade encontraria de novo a impensada ideia sobre o nada. Mas este se afastaria da expérience e retornaria à velha filosofia, e, assim, nunca teria sido pensado por Bataille.

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E, portanto, quem sabe a filosofia futura poderá também se tornar suma ateológica – quando o homem vulnerável e impotente aprender a suportá-la. Ou quando o homem for capaz de silenciar, não tendo mais nada a dizer, logo que chegar de forma conclusiva ao saber absoluto; quando o sábio silenciar, a história terá acabado, o Três voltará a ser Um. Então, terá chegado o tempo para a ultrafilosofia do ultra-homem, então o vulnus terá sido cicatrizado. Porém, se o homem, agora, assim como é, não ainda “ulteriorizado”, não puder tolerá-la; se ele parecer totalmente inadequado à suma ateológica; se o seu tollere permanecer inevitavelmente como o único aufheben da dialética hegeliana, a fala do Espírito como terceiro; e se o homem não superou ainda o abismo entre animal e Übermensch, se não conseguiu se colocar como grande emancipador e criador absoluto, se não conseguiu rir como um soberano; se, ao contrário, lhe falta ainda muito para se tornar divino, se continua a pensar no nada da linguagem, nos resíduos da consciência, no sagrado, no erotismo, na morte, em outras ocupações muito humanas; e se, enfim, aquela completa falta de pressupostos aos quais o pensamento deseja chegar como suprema

potência, da “metafísica” nietzschiana: “a metafísica de Nietzsche coloca logo a não verdade no sentido do erro como a única essência da verdade. A verdade [...] causa ao sujeito o incondicionado dispor de verdadeiro e falso” (Nich. eur., cit., p. 241). Muito criativo é o sujeito nietzschiano: ele se torna medida do verdadeiro e do falso em modo tal que pode realmente remontar essa sua atitude a Protágoras, em continuidade com o antropocentrismo que conota a história do ser.

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lucidez, libertando-se de todos os ídolos culturais posteriores, então, realmente, ele não alcançou a ultrafilosfia e continua envolvendo-se em paradoxos indecidíveis, falando a linguagem “habitual” – então, ainda existem e sempre existirão palavras, teologias, filosofias, ilusões, fabulae e deuses.

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Sobre Bataille

Diálogo entre Franco Rella e Susanna Mati

FR: Você, desde as primeiras linhas, define como “bizarra, ocasional, lacunar” a preparação filosófica de Bataille. Está claro. O próprio Bataille está de acordo com isso, mesmo dizendo que antes do curso de Kojéve, que o massacrou, tinha acumulado uma série de conhecimentos. Mas sobre esse ponto queria que você acrescentasse algo a mais, e, em particular, sobre os problemas que proponho para você a seguir:

a) ao menos dois grandes pensadores que estão presentes em Bataille têm – mais ou menos como ele – uma formação filosófica lacunar, e, no entanto, instauram uma nova modalidade de pensamento. Falo de Leopardi e de Nietzsche. E, de qualquer forma – isso vale para Leopardi, para Nietzsche e para Bataille – parece-me difícil medir o quanto eles tenham colhido da problemática filosófica mais premente, mesmo de modo fragmentário;

b) aliás – essa é a segunda questão –, você fala, por um lado, de “profissionais da filosofia” e, por outro, do fato de que a filosofia parece não conseguir mais pensar as questões radicais do sujeito e do mundo. Não é talvez porque o profissional da filosofia absorva somente aquilo que constitui a sua profissão, ou seja, a própria filosofia, e não aquilo que ela deveria questionar? E que é necessária a “falência” (o “êxito da falência”, diz Bataille em O culpado) para que se reanime uma prática que não existe mais?;

c) esse “não-saber” filosófico – mas sobre isso falaremos mais adiante – não tem a ver geralmente com o não-saber de

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Bataille? De fato, você fala de uma “jaula da linguagem”, de um domínio da linguagem que deveria ser rompido porque existem estados “que desapossam realmente a linguagem”.

A linguagem me/nos fala, dirá Lacan, fazendo-se patrono do extremo pós-modernismo. O holocausto de termos filosóficos colocado em operação por Bataille (é exatamente Sartre que o diz, como você relembra) – o dente doente de Hegel, este como uma pá – não pertence, talvez, a uma “excentricidade” e a uma “lacunosidade” que rompe qualquer totalidade e nos reconduz ao caráter fragmentário do real? Essa desejada parcialidade, esse “não-verdadeiro” que não é alcançado nas etapas do discurso, mas é colocado desde o princípio e por princípio, não se liga ele também, no fundo, a uma dimensão, sem dúvida, do “não-saber”?

SM: Obviamente. As lacunas na preparação filosófica de Bataille lhe dão fama. Sair da atmosfera medianamente mefítica dos departamentos de filosofia e do profissionalismo filosófico, com as suas hierarquias de valores devastadas, pode, ao contrário, tornar claro o processo do conhecimento, colocando-o em contato com um mundo geralmente humano (ou terminar na mais desastrosa vaguidão, conforme os casos).

Ditas essas obviedades, o não-saber de Bataille, se é verdadeiro que se refere, como eu suspeito, ainda a Hegel (isto é: um antissaber incompleto e lacunar em oposição à total determinação de Wissen), está conectado certamente ao protesto contra a jaula do Logos. Bataille não quer subscrever a afirmação que “no Início era o Logos”. Segundo ele, o Logos vem depois, quando já se pode dizer. Antes existe o Indizível, ou melhor, o Impossível, e a esse “lugar” metafísico inicial (abolido pelo idealismo hegeliano), o pensamento sempre volta novamente através daqueles estados, que desapossam o seu dizer “filosófico”, real-racional, logocêntrico. Bataille não coloca o “não-saber” por princípio: ao contrário, não coloca nada por princípio, tal como princípio, fundamento ou pressuposto (ou ao menos tenta não fazê-lo, porque depois é fácil recair na idolatria de um “objeto” qualquer). Tenta não colocar nada, tenta manter o discurso aberto em direção à sua origem, tenta não partir-de, tenta deixar livre o espaço precedente ao Logos. Mas voltarei a isso mais adiante.

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FR: Você fala de tragédia em Nietzsche e de dimensão trágica do pensamento de Bataille. Aqui, estamos diante do problema da dor. Da imensa dor do mundo. Mas em Nietzsche temos a consolação metafísica do trágico: de um lado a sombra de Dionísio, do outro, como diz Heidegger, a forma que oprime tanto Dionísio quanto Apolo. Em Bataille essa consolação não existe, e isso, talvez, nos coloca também em frente do problema da morte, que em Nietzsche está ausente e em Bataille, ao contrário, é central.

SM: Bem, em Nietzsche também a morte deveria ser desejada como tal, e como tal, redimida no interior do grande círculo do eterno retorno. Impossível vê-la como um ponto crucial, ou mais crucial do que todos os outros – na circunferência todos os pontos são idênticos, todos os átomos cruciais. Em Bataille, não, o problema da morte é central, pois a morte coloca um fim na experiência (e abre, assim, ao “nada do fundamento”, colocando dessa maneira).

FR: Mas sobre esse ponto quero articular logo uma questão ulterior. Aqui está:

Você relembra a frase de Hegel, citada tanto por Heidegger quanto por Bataille, que afirma a necessidade de ter a morte fixa ou, como você mesma diz, o mortuum, no momento em que este se coloca como o extremo do negativo, que deve estar mantido demoradamente junto a si mesmo antes de sintetizá-lo. Bataille não sintetiza: tem constantemente a morte fixa sobre a margem do que se deve conhecer, interior à tensão que está na espera de ser. A morte está ali quando nós não a estamos mais fixando: é o limite no qual se afunda no fim. O saber afunda no próprio instante em que deveria realizar-se (ou se realiza de fato?). Esta síntese impossível é precisamente o trágico de Bataille. Por essa síntese impossível ele chega, como você diz no final do seu ensaio, a “sepultar vivo o pensamento”, que permanece vivo, tragicamente vivo e falante, como Antígona na sua tumba.

SM: Estou perfeitamente de acordo, é uma síntese impossível que Bataille faz oscilar entre uma dimensão nietzschiana e uma “religiosa” – em que esta última significa (tragicamente): a morte desvela a verdade, eliminando, porém, ao mesmo tempo, a possibilidade de experimentá-la.

FR: Dou agora um passo atrás e volto à linguagem e ao não-saber. Na verdade não se pode falar, como afirma Kojève, de fora do

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Kreis, o círculo desenhado pelo Logos hegeliano? Não existe talvez uma linguagem anterior ao logos – do lamento ao mito – que não seja simplesmente o negativo do logos? E se isso for verdade é possível supor uma linguagem e um saber além do logos que não seja – esse também – simplesmente o negativo?

SM: Exatamente, é justamente essa a questão. O problema é dar um conteúdo “positivo”, ou talvez seja melhor dizer: comunicável, a esse “não-saber”. Em suma, carregá-lo de algum atributo.

FR: Queria, aqui, propor para você uma reflexão sobre uma minha hipótese de leitura. Se existe uma experiência que se dá no excesso do fundamento e, portanto, além do logos, esta deve ser também uma linguagem e um saber da própria experiência. Toda a perspectiva ateológica se funda nessa possibilidade. Se, como você diz, não é questão de “uma nebulosa religião do desconhecido”, mas de um saber daquilo que se aventura além do fundamento, deveríamos necessariamente pensar no “não-saber”, que se coloca como esse saber e essa linguagem. Deveríamos pensar, como você mesma expõe, no “caráter completamente filosófico” desse colocar-se “sem pressuposto”.

SM: Isso é realmente o que estava tentando colocar anteriormente.

FR: A esse ponto, sobre o não-saber, acho que retornaremos mais adiante. Para mim o não-saber não é um vazio, uma lacuna, mas um saber verdadeiro e peculiar, que se coloca além do saber, do Wissen hegeliano que, assumindo em si a identidade com o verdadeiro, termina por ter uma dimensão exclusiva, “policial”, diria. A falência se coloca no momento em que qualquer filosofia quer concluir e não pode, segundo Bataille, fazê-lo porque além de toda conclusão existe algo que não foi dito, algo que ficou “além de – tudo”, aquilo que acabamos de definir como metafísica de Bataille.

Mas, agora, quero colocar para você uma pergunta seca. Você fala do erotismo como uma prática teórica, embora coloque “teórica” entre aspas.

Sobre isso faço somente uma observação complementar. Kojève tem razão quando fala da História do olho como um romance pornô. Mas Kojève fala também da sua proximidade a Madame Edwarda. E em Madame Edwarda Bataille distingue nitidamente entre

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os transes, os ímpetos sexuais e o erotismo, através dos quais nos leva em direção à inatingível intimidade do ser: em direção à sua verdade metafísica.

Proponho mais uma vez a pergunta: o erotismo é uma prática teórica?

SM: Em Bataille, certamente. Diria, aliás, que é uma tentativa de teoria, em que existe sem dúvida uma práxis (a ação erótica), mas que é também uma tentativa de visão, de theoria (impedida, falida, incompleta). Isso também é um dos “platonismos” mortos ou não proponíveis que Bataille nos apresenta.

(Além do mais, não acredito que Kojève tenha razão: o seu hegelianismo extremista lhe impede até mesmo de ver a diferença entre pornografia e erotismo. Um verdadeiro “atualismo” que identifica o ser da coisa com o único “ato” – e, por outro lado, a eliminação da “potência”, ou seja, da “ulterior negatividade possível” , como Bataille a chama em algum texto, é, de fato, aquilo que ele reprova em Hegel).

FR: Acho iluminador a passagem em que você afirma que alogia, ateologia, ateleologia são as possibilidades que se encontram além do sistema: isto é, “possibilidades dadas ao homem para superar a realidade já vivida na história e descrita na linguagem”.

Queria que você falasse desse possível, já que o seu discurso me permite passar para uma questão que atravessa também o meu ensaio, ou seja, ao impossível como ens necessarium. Aqui, abre-se uma tensão não mediada e não mediável entre possível e impossível, na qual leio a “verdade do ente”, ou, em termos heideggerianos: o seu ser – o ser do ente, o Ser-aí.

Com essa questão voltamos, aliás, ao tema do excesso. Por um lado, Hegel e o fim da filosofia em ciência, e por outro, o excesso que “é aquilo pelo qual, em primeiro lugar, o ser é exterior a qualquer limite” e, portanto, impossível. Eu sou Deus, diz Madame Edwarda. “Aquilo que é” é “mais do que aquilo que é”, lê-se em O padre C.

SM: Sim, efetivamente essas modalidades abrem para possibilidades não fixadas no Sistema. O problema é dar para tais modalidades uma linguagem, como observamos anteriormente. Heidegger é mais cuidadoso, ou mais agudo, ou mais filosoficamente advertido, no seu jogo de revelações e ocultações do ser do ente; além

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disso, segundo minha opinião, o discurso é absolutamente análogo, no momento em que surge das mesmas necessidades.

FR: “Quanto mais a filosofia parece fazer-se minoritária e marginal no nosso mundo, tanto mais parece herdar uma tarefa espiritual suprema e muito urgente, ainda que inatual ou póstuma. Assim, parecem pensar Heidegger e Bataille – junto a Nietzsche, que os une e que é o mestre da “ateologia filosófica”. Certamente, uma questão ulterior fica aberta: esta ainda será ‘Filosofia’?”. Pois bem, a pergunta que você se coloca eu proponho para você novamente tal e qual.

SM: Sinceramente, penso que sim. Penso que seja o modo mais justo, agora, de fazer filosofia, ou talvez o único que escapa de fazer “história da filosofia”. Embora o significado atual tenha sem dúvida mudado em relação à philosophia grega, com a qual, porém, conserva uma relação de direta descendência. A questão é muito importante e complexa, e me parece que todo o pensamento contemporâneo a pense ou a tolere, até mesmo aquele pensamento analítico que procura somente “elucidar” a linguagem.

FR: Volto a uma questão que já coloquei para você e a proponho novamente em outros termos, que são aqueles que se tornam centrais e, ao mesmo tempo, que concluem o seu ensaio, ou seja, aqueles relativos à conversão do impossível em impotência. De fato, está aqui, além do exagero, o excesso que, atravessando a fragilidade e a vulnerabilidade humana, coloca “a necessidade de pecar por impotência”. Segundo minha opinião, este é um grande pensamento. Talvez o pensamento de uma criaturalidade sem criador: uma exposição para a minha dor e para a dor de todos. É essa a comunidade que Bataille não consegue nunca alcançar?

SM: Mas nós já pecamos por impotência, continuamente; se a comunidade pudesse ser fundada nisso, estaríamos tranquilos. Ao contrário, não a dor, mas a força poderia, talvez, fundar a comunidade. A pecaminosidade do homem, além disso, é o sinal da sua separação originária, da sua individualização: é o sinal do seu originário colocar-se-fora da comunidade! (Dito en passant, acredito que a ideia de “comunidade” em Bataille seja pouco política, e muito mais mítica: a nossa perdida unidade originária, a nossa comunhão). (E, de qualquer modo, acredito também que a criaturalidade sem criador seja um conceito que não se sustenta – mas compreendo o paradoxo).

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FR: Estou de acordo. A ideia de comunidade em Bataille não é uma ideia política. E esse é também um tema, acredito eu, ao qual retornaremos daqui a pouco. Não acredito que seja mítica. A comunidade primitiva está definitivamente perdida: não existe mais o sagrado. Não existe mais dépense no sentido em que Bataille procura propô-la mais uma vez. A despesa ocorre na luz do dia. É a despesa do consumo ininterrupto que caracteriza o Ocidente, que está na sua estrutura política. Bataille afirma a exigência da comunidade e não consegue pensá-la. A única coisa que emerge é que esta se move através da fragilidade e da incompletude. Nesse sentido falei de uma criaturalidade sem criador. Deveria ter falado de seres que se sentem acomunados da própria fragilidade à criatura e, ao mesmo tempo, de terem perdido a ideia de um criador.

Mas quero colocar para você uma outra questão. Bataille não fala de Übermensch. Não é essa a ulterioridade que ele pensa, ou talvez esteja, em parte, na abortada hipótese de soberania. Portanto, Bataille continua a pensar, você coloca, assuntos muito humanos. Você está pensando em Nietzsche ou em Bataille? Explico-me. Na verdade, Bataille não chega nunca àquela falta de pressupostos a que aspira? Sem dúvida, continua, depois de ter desagregado, de ter feito o seu holocausto, “falando a linguagem habitual”? Na verdade, depois da suma ateológica, encontramo-nos ainda diante das “palavras, teologias, filosofias, ilusões, fabulae e deuses”?

SM: Não sei. Aquela que foi por muitos anos a atividade “criativa” do homem parece poder realmente mudar nos nossos dias. Mas isso, certamente, comporta uma mutação genética colossal, o fechamento do tempo do “humanismo”, uma mudança radical na essência, a transformação da própria ideia de “filosofia”, como falávamos anteriormente. A questão não é somente de Bataille, mas de nós todos. Seremos ainda o homo sapiens, no tempo da técnica? Claro que aquela de Bataille é uma voz extrema, que observa além, que parece alcançar o ponto crucial absoluto para o pensamento futuro da dimensão “vazia” (aberta, acolhedora, possível, experimental) que ele chama de “não-saber”. E este ser “à altura do próprio tempo”, este chegar último, ao último tempo, no último dia (do último: como o morcego hegeliano), eu acho que seja sempre a característica fundamental da verdadeira filosofia.

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Para ir ao “contrainterrogatório” sobre a sua intervenção, você tem razão ao perceber a crise da filosofia moderna, o seu percurso indiferente de interpretações, a sua abdicação da dimensão trágica do pensamento. Além disso, é igualmente impressionante, na vertente oposta, o que Bataille nos propõe: uma filosofia entendida exclusivamente como crise. A filosofia se encontra para Bataille numa crise perene: é, como você justamente cita no início do texto, um “colocar-se em questão infinita”, e colocada em questão sobre tudo o que é. A tarefa é inesgotável e conhece desde o princípio a sua falta de resultados, a ausência de respostas. Uma filosofia assim entendida representa uma exasperação da recusa do elemento “edificante” (não apenas da tendência erótico-platônica da filosofia), tanto que a sua “crítica” radical chega a ser para a filosofia uma tarefa vazia: o Impossível. Por que empreender, então, essa viagem em direção ao nada? Por que embarcar numa tarefa assim tão absurda? De fato, o problema é aquele da meta, da teleologia filosófica, da pesquisa “pura” que já sabe antecipadamente que não chegará a nada – e nem mesmo chegará ao Nada (figura que Bataille não encontra nunca efetivamente como tal). Se for verdade que Bataille é útil para o nosso pensamento atual, para que nos serve alguém que postula por necessidade uma não conclusão, um não encontrar nada?

FR: Esse movimento crítico do pensamento de Bataille, como você diz, não leva aparentemente a um êxito. Não leva nem sequer ao Nada. Não existe um ponto de captura ou de consistência, um lugar onde se possa “estar” (o “sólido nada” de Leopardi). Avança-se por um território que não tem fim, e me vem a vontade de dizer: que aventura percorrê-lo! Mas quero acrescentar mais uma coisa. Esse percurso leva ao “não-saber”. E isso é talvez o nó da questão. O não-saber foi lido como a renúncia a qualquer saber, como a saída de toda razão. Aliás, Bataille é claro: o não-saber não destitui os saberes, ou seja, os conhecimentos. É a loucura que responde à loucura hegeliana de uma razão que se identifica sem resíduos – sem falhas, sem síncopes, com o próprio real. Bataille responde a essa colonização do real afirmando que existe um território não explorado, sobre o qual temos experiência, que se estende para além desses confins. Afirma que existe um saber desse território, que não é o saber hegeliano, mas que, de qualquer maneira,

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é um saber. Diria ainda: se o ser não se dá – como afirma Bataille – a não ser como espera, ou seja, e este se dá como incompletude que não conseguirá nunca se realizar, o não-saber é o saber – obviamente, lacunoso, incompleto – desse ser que nunca foi dado por princípio: por que aquilo que é é mais do que aquilo que é: contém também esse “mais” indizível e que mesmo assim deve ser dito.

Uma última colocação sobre isso: O pensamento de Bataille é também um remédio que combate a doença de uma filosofia que, hoje, quer propor-se como terapia, cura, consolação e serenidade.

SM: Certamente. O interessante é que essa filosofia infinitamente crítica se apresenta em Bataille como oposta e igual àquela instância que representa, no meu modo de ver, o ponto teórico central da intervenção que você colocou: a metafísica da coisa. Será que essa “incongruência” da pesquisa filosófica (ou melhor: da experiência interior) não se liga, assim, àquela exigência metafísica que a filosofia moderna e contemporânea parece ter, na maioria dos casos, recusado, ou ao menos colocado fortemente em discussão, quando não totalmente abolido (deixando que esse território insidioso – território kantiano mais do que nunca – se tornasse presa exclusiva de religiões, crenças de vários gêneros, mesmo superstições, cindindo-se, desse modo, a partir da “razão” filosófica)?

FR: Sim, de fato. O inalcançável como tal sem a proibição kantiana de empreender o caminho em direção a este. E esse vazio que se abre para além dos limites kantianos – uma vez caída a tentativa hegeliana de suturar a ferida, de preencher o vazio – foi coberto por ideologias, vale dizer, por aquilo que por princípio não é filosofia.

Nietzsche também se moveu dentro desse território com a confiança de que o vazio pudesse ser preenchido poieticamente, construindo através dos “fragmentos” e da “pavorosa casualidade” as formas com que pudesse preenchê-lo. Bataille não possui essa fé. Esse espaço deve ser pensado confrontando também o horror do vazio. Nesse sentido, o erotismo também não propõe “figuras”, mas é uma tensão, um pensamento, uma teoria, como você coloca no seu ensaio.

SM: O problema pode ser também formulado assim: de que modo nós usamos o termo “metafísica” no que diz respeito a Bataille? Talvez em sentido platônico (já percebemos uma exasperação de alguns “platonismos” no nosso autor)? Talvez no elementar sentido

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aristotélico (as coisas que estão meta ta physika)? Ou talvez em sentido kantiano – isto é, aquele que pensou como nenhum outro os limites do pensar e, apesar disso, mesmo as necessidades não suprimíveis da razão, entre as quais in primis a necessidade das incertas opiniões metafísicas? Ou talvez, ainda, naquela heideggeriana, em que a metafísica se torna a história do ser do ente no seu importantíssimo esconder-se e revelar-se?

A “metafísica” que Bataille nos propõe (que é depois aquela coisa que vem modificada por mística) tenta justamente reconquistar para o pensamento os territórios vetados (ou malditos), representados pelo elemento habitualmente considerado como “religioso” – uma assunção que, depois de uma longa, sensata e consensual separação, se mostra necessariamente dramática, lacerante, inconcludente: em suma, trágica. Mas essa é realmente uma nova necessidade de metafísica, não de mística, num sentido absolutamente novo (que se encontra, segundo minha opinião, antes de tudo, com a pesquisa de Heidegger). É uma metafísica pós-metafísica que assume um significado específico somente na nossa época. É o ponto procurado (e não alcançado) de junção entre os destroços das palavras (metafísicas) de Deus: eu, experiência, mundo, palavra e fim. É a evidência da fissura. É a última metafísica possível, perfeitamente crítica e aporética: uma metafísica trágica do inatingível.

FR: A última metafísica: a evidência da fissura. Aqui está a verdadeira metafísica do trágico!

Desculpe-me. Eu interrompi sua fala. Não pude resistir porque me parece que você compreende numa única palavra o sentido de um pensamento e a sua distância daquilo que hoje leva a filosofia não somente à falência de Bataille, mas a uma verdadeira e penosa falência. Enquanto Bataille afirma: não pensamos o sentido último da coisa e do ser e, portanto, – por isso a falência – é necessário recomeçar. O que hoje se define como filosofia parece, ao contrário, escapar novamente desse movimento e refugiar-se numa espécie de tranquila inanidade. De qualquer forma, insisto que, segundo minha concepção, o centro do pensamento de Bataille está numa não suprimível instância metafísica que se coloca depois do fim das metafísicas, movendo-se entre os seus fragmentos e renunciando à ideia de que se possa construir uma

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linguagem poética que reanime o sagrado, ou uma linguagem filosófica na qual se possa dar a verdade do ser.

SM: Concordo muito com você no que diz respeito à nova insurgência da não suprimível exigência metafísica em Bataille, na sua tentativa de repensá-la, e acredito que para tal necessidade esteja ligada a sua relação de ódio-amor por Hegel. A metafísica é o verdadeiro “ponto dolente”, é o verdadeiro dente dolorido; a metafísica daquele ente singular, como justamente você ressalta, porque é realmente a particularidade dolorosa que coloca em crise o Inteiro (como um dente dolorido coloca em crise toda uma pessoa). É aqui que se exprime verdadeiramente a loucura de Bataille, exatamente especular à loucura hegeliana, a loucura daquele que teve o desgosto de ser Deus. Com razão você chama Bataille de “o louco de Hegel”, notando também o “parentesco entre loucura e metafísica”, pois metafísica e loucura representam alguns resíduos do Sistema incompreendidos pela razão filosófica: representam, aliás, o sono da razão (os “sonhos da metafísica”...).

A veneração/aversão que Bataille possui por Hegel depende provavelmente do seu profetizar, que o pensamento idealístico é um pensamento que decidiu, isto é, que cortou o drama metafísico em Hegel, até anulá-lo completamente. Essa é a essência trágica do idealismo realista de Hegel, o qual, se por um lado, tem perfeitamente razão, e, aliás, caso tenha dito tudo aquilo que tem para dizer, por outro, mostra-se não receptivo, cego e, por fim, cinicamente louco, tendo, na sua grandeza e validade absolutas, tirado (aufgehoben) ou sacrificado ao ídolo do próprio Saber a não suprimível exigência metafísica. Hegel disse com segurança “tudo o que é”: mas justamente por isso “a Coisa mesma, é mais do que aquilo que é”. E Hegel não pode pensar esse pensamento excessivo.

O pensamento real/racional não pode assumir aquela loucura de que a metafísica está no seu Inteiro; é uma das coisas das quais se deve afastar e que devem ser sacrificadas. A metafísica é o principal território maldito (bem mais do que um terreno coberto por gelos, como na famosa página da Crítica da razão pura...). Esse território racionalmente inapreensível, intelectualmente inconcebível, que escapa das dificuldades e do conhecimento seguro, é oposto à certeza

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histórico-empírica do Wissen hegeliano. No entanto, Bataille faz objeção: se o Sistema exclui a metafísica, este não é mais um Inteiro, e, consequentemente, não é mais o Verdadeiro (pois “das Wahre ist das Ganze”, indubitavelmente). Essa é a muito simples “refutação” de Hegel por parte de Bataille; o Sistema exclui para poder englobar, mas não chega nunca a ser o Inteiro (= o Verdadeiro); sempre ficam loucos resíduos, importantíssimos.

Certamente, em Hegel, como dizia, tudo se joga no interior do Saber, do Wissen (por isso aquele de Bataille é um não-saber: não no sentido socrático, não no sentido místico, mas ainda uma vez no sentido eminentemente anti-hegeliano). No idealismo, o que sei, que conheço, é algo colocado pelo Eu e no Eu, para o próprio Eu (ou seja: não é metafísica – porque não se “sabe” a Coisa mesma). Nisso Bataille está mais próximo dos românticos, que intuem de algum modo a Coisa mesma por Anschauung, por intuição (e esta é metafísica), acreditando também, desse modo, conhecê-la. Em todo caso, o Wissen parece a coisa mais distante da metafísica, tendo-a já cortada para constituir-se como tal.

Em suma, se Hegel é louco porque tirou a metafísica do caminho, Bataille é louco porque tenta repensá-la. Repensá-la depois de Kant e do idealismo, mas também depois do romantismo – e depois de Nietzsche (e aqui seria necessário pensar a relação com o Nietzsche de Heidegger, o que se torna, com ótimas razões, um pensador, antes de tudo, metafísico). De resto, louco é colocar a questão ao infinito, partir sabendo que chegará ao nada, continuar tentando o mudo/vazio território da “coisa em si”; trágico é saber-se parte singular de um Inteiro que não lhe considera. Dado que o termo “positivo” de referência permanece o Sistema. Bataille, diferentemente de Kierkegaard e, ainda mais, de Schopenhauer (isto é, dos críticos históricos do sistema hegeliano), reconhece o Sistema, efetua uma verdadeira e própria Anerkennung [Reconhecimento] – sabe muito bem que, numa ótica realista, Hegel disse tudo com razão.

FR: O que acrescentar ao que você disse? Loucura e metafísica. Adorno também avança, na Dialética negativa, uma relação muito à la Bataille, entre loucura e metafísica. E você aqui funda a razão dessa relação.

Hegel, no momento em que coloca a identidade racional-real, verdade-saber, destitui de todo sentido a tensão em direção ao

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inconcebível “mais” de ser o que é naquilo que é. É louco pensá-lo. É opor-se, como somente os loucos – os psicóticos, diz Freud – podem fazê-lo, no “princípio de realidade”. Mesmo assim, como Kant já tinha dito, esta instância metafísica, esta necessidade de excesso é própria da razão, e somente reduzindo a razão ao intelecto, cabe dizer, em termos bataillanos, voltando-se para um pensamento que pensa somente na luz do dia, se pode extirpar essa exigência que, ao lado de Hegel, os românticos, como você coloca, revigoram como intuição. Mas aquilo que funciona para os românticos não funciona para Bataille. Bataille não fala nunca de intuição, mas, sim, de experiência. Não temos intuição do que vem depois, da noite, mas possuímos sua experiência, e a experiência é padecimento. Bataille é a loucura de Hegel, mas é também o “dente doente” de Hegel. É o seu padecimento.

SM: Exato. O problema teórico de fundo é que a dinâmica básica idealista (a posição de um Fundamento, o Eu que coloca a si mesmo) exclui com isso toda metafísica, todo excesso do ente em relação a si mesmo, o ser “mais do que o Ser-aí”, ou, como você exprime, “excesso metafísico que está no coração do ente singular, da coisa singular, do ser singular”.

Exatamente nesse ser “mais do que aquilo que é” relativo ao ente singular, Bataille se encontra novamente com Heidegger; é aquilo que Heidegger chama o “ser do ente”, que lamenta o desaparecimento na anulação da diferença ontológica; é a sua carga metafísica – a sua potência ulteriorizante – negada pelo pensamento moderno. De fato, opondo-se à “redução” hegeliana, Bataille se opõe ao mesmo tempo à raiz niilista do idealismo, negando a possibilidade ulterior do ente: e com isso tenta, mais uma vez, assim como Heidegger, encontrar também improváveis vias de saída para a época do niilismo. (Exceto a “loucura do ente”: a potência metafísica que o faz exceder, que o abre ao êxtase, que o leva para fora-de-si).

Essa “loucura” excedente é, para citar mais uma vez sua colocação, “o inatingível que é o ser da coisa, que é o ser desse ser aqui, ou seja, o fundamento que foge”, porém que “se tenta” e a partir do qual se pode, assim, fazer experiência. Que tal concepção de Bataille seja semelhante a algumas colocações heideggerianas é evidente; que derive da própria situação de época em que se encontra hoje a filosofia (ao

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final das “velhas” metafísicas), é segundo minha concepção, da mesma forma evidente. É a impenetrável simplicidade daquilo que é, do ente singular que leva consigo um princípio ulteriorizante em relação à sua existência individual, opondo-se intrinsecamente à redução hegeliana e, sucessivamente, niilista. Essa é a metafísica que Bataille propõe.

FR: Estou convencido que Bataille cruza com Heidegger. Você demonstra isso no seu ensaio. A postura de Bataille nos confrontos de Heidegger é oscilante. É evidente que compartilha com ele a ruptura estática. Aliás, como você observa, ambos se encontram – e têm consciência disso – no fim das velhas metafísicas. Mas existe uma diferença fundamental, que não está no fato, como Bataille sublinha, de que Heidegger seja um acadêmico e que responda a uma comunidade acadêmica. Está em outro lugar. Vou procurar explicar-me. Bataille escreve em O culpado, pensando evidentemente em Heidegger, que o sistema que está pensando está “ligado a essa enunciação: “o Ser-aí” [Dasein], que fica, no entanto, insensato, é impossível! Aquilo que está ali: a própria fragilidade!” (O Dasein é do próprio Bataille).

O ente pensado por Bataille é Edwarda. O ente de Bataille, diferentemente daquele heideggeriano, tem um sexo e “padece” com a fragilidade do seu sexo a laceração daquilo que é e ainda mais: padece a sua “morte”. Não é por acaso que justamente no Prefácio para Madame Edwarda esteja presente a enunciação mais clara da instância metafísica de Bataille, muito além, como ele diz, do equívoco dos “transportes” sexuais que, mesmo Bataille tendo sido explícito sobre esse ponto, condicionaram a sua recepção e compreensão.

SM: Voltando à metafísica de Bataille, diria, além disso, que se trata de uma metafísica da possibilidade; de uma possibilidade que, como você percebe citando o trecho relativo ao pé morto, pode também ser retirada. A existência do ente singular não é necessária, mas é somente possível. Uma metafísica da possibilidade do singular, poderíamos dizer; da possibilidade que o Ser-aí se realize. (Seria interessante aqui um confronto com a Lógica hegeliana).

FR: Você disse de maneira exemplar. Trata-se de uma metafísica da possibilidade, e essa possibilidade pode ser retirada. Essa coisa e esse Ser-aí exprimem a máxima tensão metafísica, mas, ao mesmo tempo, em si mesmo, não são necessários. Bataille entende provavelmente

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isso quando, ainda em O culpado, diz que quer estar do lado de Kafka, daquele que colocou o impossível no coração do possível, e, portanto, deu ao próprio impossível o estatuto da precariedade. E isso nos conduz à questão inicial que você colocou sobre a filosofia de Bataille como uma filosofia constantemente em crise.

SM: Na ótica da metafísica da coisa, ao contrário, você mesmo coloca a questão crucial: “Se o pensamento deve pensar em última instância a verdade da singularidade absoluta daquilo que é, isto é, dessa coisa ou desse Ser-aí, como pensar a comunicação entre essas singularidades?”. This is the question. A filosofia de Bataille se coloca muito mais como uma filosofia metafísica do que como uma filosofia tal como a de Hegel, realista, mundana, eficaz, capaz de confrontar os problemas da comunidade, da eticidade e da esfera sócio-política.

FR: Bataille, apesar das tentativas de Esposito e de Agamben de lê-lo politicamente, permanece um filósofo impolítico. Escreveu sobre etnologia, economia, soberania, comunismo, mas, no entanto, tudo se refere nele à questão metafísica, como já procuramos esclarecer. Porém me pergunto se é possível pensar uma dimensão ético-política que prescinda dessa instância metafísica do ente singular em relação com as coisas e com tudo o mais que as coisas também exprimem.

Sabemos que Bataille é obcecado pelo problema da comunidade depois do fim de toda sacralidade. O singular se abre para o outro através do erotismo, mas essa abertura não é política. Bataille procura pensar esse encontro dentro da ideia da comunidade numa sorte de platonismo manco, no momento em que a ideia da comunidade permanece não expressa e não se torna república. Bataille não consegue fazer transitar a exigência da comunidade através do problema da lei, e são as leis que transformam a comunicação em comunidade e a ética em eticidade. Não consegue dar esse passo talvez porque ao redor dele a lei, na crise dos sistemas políticos clássicos, se colocou, por um lado, como fascismo e, por outro, como comunismo, e de qualquer modo, na linguagem de Hannah Arendt, como totalitarismo. Pensemos, para além do totalitarismo, junto a Bataille, na curvatura hiperindividualista da cultura que reage a esse golpe: a versão “imoralista” de Nietzsche dada por Gide, pensemos em Sartre, em Camus...

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SM: Queria ainda destacar o caráter, antes de tudo, trágico de Bataille. De fato, aquela que chamei de “filosofia futura” o é somente no sentido do drama da sua ausência, não no sentido de uma utopia (exatamente como o Super-homem nietzschiano). É um método de levantamento do trágico, o seu papel de tornassol: essa, como futura, mostra os limites do presente. E mostrando os limites do pensamento humano atual, o seu ser/ir em pedaços, postula um novo pensamento (como o Super-homem é o lugar de evidência de ser uma ponte, uma passagem, uma corda estendida para o homem: dever findar-se – porque em Nietzsche não se dá nem mesmo o concluído Freigeist, quanto mais o Übermensch). Nada é mais antitético ao utópico do que o trágico: e sob esse emblema Bataille quer ser o “companheiro” de Nietzsche (e, poderíamos dizer com um pouco de audácia, também da tragédia realista, decisionista, de Hegel).

FR: Queria deixar como conclusão para uma filosofia futura essa sua observação sobre o caráter antiutópico e trágico desse pensamento. Hoje, na utopia da “sociedade do espetáculo”, do indiferente fluir das interpretações, se perdeu até mesmo a possibilidade de perceber o caráter trágico, a fissura trágica do ser, que se enuncia sem dúvida na metafísica trágica de Nietzsche, mas também, como você diz, na tragédia realista e decisionista de Hegel.

SM: Mais uma colocação. “Colocar – kafkianamente – o impossível no possível”, como você lembrou antes, é o primeiro efeito dessa nova/última metafísica da coisa (em si mesma, isto é, da Coisa mesma, do ser do ente). Pensar naquilo que é impossível pensar, ver o invisível (mas não será essa também uma forma extrema e uma renovação de um grande desejo puramente platônico?). Certo que isso parece ser também a primeira tarefa de uma filosofia futura. E somente de uma filosofia (ou como se queira chamá-la agora com novos nomes, que a distanciem do pensamento da “velha metafísica”): e não da arte, nem da religião, a partir das quais Bataille opera uma singular desclassificação (já hegeliana, de resto), que caso resulte explicável para o segundo termo, ainda o é muito menos para o primeiro. Mas sobre a função e sobre os limites da arte, Bataille se coloca de maneira clara na famosa carta a Kojève, já abundantemente citada. Isso para dizer que somente a filosofia pode chegar a ter inteira consciência do

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próprio tempo, tendo uma visão teórica do passado e abrindo para o futuro.

FR: Também da arte, também da religião, com os limites que Bataille lembrou na carta a Kojève e que depois insistiu mais vezes. Insistir na necessidade de usar todas as linguagens, lá onde uma linguagem não consegue ir além, exatamente como Platão em Fédon ao afirmar a necessidade de recorrer ao mito para superar um obstáculo diante do qual o logos não consegue proceder: sustentar – diz Platão – que as coisas estejam assim me parece que convenha e valha a pena correr o risco de acreditar nele, e por isso “prossigo com o mito”. Mas o nó é aquele que você colocou em evidência: o de um pensamento que, caso tome verdadeiramente consciência do próprio tempo, deve abrir-se ao futuro. É o tema da filosofia futura que você abriu e com o qual queria realmente fechar o nosso diálogo.

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Nota dos autores

Achamos útil fornecer ao leitor uma bibliografia, na medida do possível, completa das traduções italianas de obras ensaísticas e narrativas de Bataille, levando em conta que o texto de referência continua sendo a edição crítica francesa: Georges Bataille, Œuvres Complètes, organizado por D. Hollier e T. Klossowski, XII vol., Gallimard, Paris 1970-1988.

Referências

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BATAILLE, Georges. Nietzsche e i fascisti, in G. Deleuze, Nietzsche con anto-logia di testi, a cura di F. Rella, Bertani, Verona 1973.______. La letteratura e il male, tr. di A. Zanzotto, Rizzoli, Milano 1973; poi SE, Milano 1987-1997-2006; poi Mondadori, Milano 1991.______. Documents, tr. di S. Finzi, Dedalo, Bari 1974.______. Per Bataille: saggi sul pensiero bataillano e testi di Georges Batail-le [H. Ronse et. al.], Bertani, Verona 1976.______. L’esperienza interiore, tr. di C. Morena, intr. e postf. di E. Ghezzi, Dedalo, Bari 1978 e 2002.______. Teoria della religione, tr. di R. Piccoli, saggio di P. Alberti, Cappelli, Bologna 1978; poi (testo stabilito e presentato da T. Klossowski) SE, Milano 1995.______. Le lacrime di Eros, tr. di D. Ritti, intr. di M. Perniola, Arcana, Roma 1979 (in appendice Lettere inedite).______. Dibattito sul peccato [G. B., J. Hyppolite, J. P. Sartre], tr. di E. D’Ambrosio, pref. di P. Klossowski, Shakespeare & Company, Brescia 1980.______. Poesia due [G.B. et. al.], Guanda, Milano 1981.______. Madame Edwarda - Il morto - Il piccolo, a cura di E. Ragni, Greme-se, Roma 1981.______. Mia madre - Il morto, a cura di E. Ragni, Gremese 1981; poi Narra-tiva club, Milano1983.______. Il processo di Gilles de Rais, tr. di R. Guidieri, Guanda, Milano 1982.______. Hegel, la morte e il sacrificio in Aa.Vv., Sulla fine della storia, a cura di M. Ciampa e F. Di Stefano, Liguori, Napoli 1985. ______. Madame Edwarda - Storia dell’occhio, tr. di F. Saba Sardi, Sonzo-gno, Milano 1986.______. Il mito Van Gogh [A. Artaud e G. Bataille], a cura di A. Castoldi, Lubrina, Bergamo 1987.______. Poesie erotiche, Nautilus, Torino 1988.______. Il colpevole - L’Alleluia, tr. di A. Biancofiore, pref. di M. Manghi, Dedalo, Bari 1989.______. La sovranità, tr. di L. Gabellone, intr. e cura di R. Esposito, Il Mulino, Bologna 1990.______. La struttura psicologica del fascismo, tr. di A. Chersi, preludio di L. Chersi, L’“Affranchi”, Salorino 1990.______. Il Collegio di sociologia: 1937-1939 [G. B. et. al.], a cura di D. Hol-lier, ed. it. a cura di M. Galletti, Bollati Boringhieri, Torino 1991.

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BATAILLE, Georges. Tutti i romanzi, tr. di Aa. Vv., a cura di Guido Neri, Bollati Boringhieri, Torino 1992 e 2004 (si tratta della raccolta completa de-gli scritti narrativi, contenente tra gli altri i già citati L’azzurro del cielo, Storia dell’occhio, Madame Edwarda ecc.).______. L’amore di un essere mortale, L’Obliquo, Brescia 1992 [con quattro tavole di P. Pusole].______. L’ano solare, a cura e con uno scritto di S. Finzi, ES, Milano 1993 e 1998.______. Il labirinto, tr. di S. Finzi, SE, Milano 1993 e 2003. ______. Metodo di meditazione, tr. di M. P. Candotti, a cura di M.-C. Lala, Mimesis, Milano 1994.______. Le lacrime di Eros, a cura di A. Salsano, Bollati Boringhieri, Torino 1995 e 2004.______. L’arcangelico, a cura di R. Carifi, Le Lettere, Firenze 1995.Contre-attaques. Gli anni della militanza antifascista (1932-1939), [Corrispon-denza inedita con Pierre Kaan e Jean Rollin e altre lettere], a cura di M. Galletti, Edizioni associate, Roma 1995.______. Il dispendio, a cura di E. Pulcini, Armando, Roma 1997.______. La congiura sacra, tr. di F. Di Stefano e R. Garbetta, con un saggio di R. Esposito e un dossier di M. Galletti, Bollati Boringhieri, Torino 1997 (testi e documenti da Acéphale).______. Conferenze sul non-sapere e altri saggi, tr. di C. Grassi, Costa & Nolan, Genova-Milano 1998.______. L’aldilà del serio e altri saggi, tr. di C. Colletta e F. C. Papparo, a cura di F. C. Papparo, Guida, Napoli 1998 (contiene in prevalenza la tr. degli Articles I e II, voll. XI e XII delle OC).______. L’impossibile, Storia di topi seguito da Dianus e______L’Orestiade, tr. di R. Baldassini, ES, Milano 1999.______. L’amicizia, a cura di F. Ferrari, SE, Milano 1999 [contiene anche Il riso di Nietzsche].______. Il limite dell’utile, a cura di F. C. Papparo, Adelphi, Milano 2000.______. L’arte, esercizio di crudeltà. Da Goya a Masson, a cura di G. Zacca-rino, Graphos, Genova 2000 (antologia di saggi e articoli dedicati all’arte figurativa).______. La condizione del peccato, tr. a cura di A. Sartini, Mimesis, Milano 2001.______. Storia dell’erotismo, a cura di F. Rella, tr. e con un saggio di S. Mati, Fazi Editore, Roma 2006.

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Nota do tradutor

Coloco também o índice de cada um dos 12 volumes das Obras completas de Georges Bataille, pois, desse modo, durante a leitura, o leitor poderá compreender as siglas colocadas por Franco Rella e Susanna Mati referentes às citações dos textos de Bataille. Ofereço ainda uma bibliografia que busca dar minimamente conta dos estudos sobre Bataille no Brasil, com as traduções brasileiras dos seus textos, bem como livros, capítulos de livros, dissertações, teses, artigos publicados em periódicos, textos apresentados em congressos e resenhas sobre a sua obra.

Obra completa:

I. PREMIERS ÉCRITS, 1922-1940 : Histoire de l’œil – L’Anus solaire – Sacrifices – Articles. (Présentation de Michel Foucault.)

II. ÉCRITS POSTHUMES, 1922-1940.III. ŒUVRES LITTÉRAIRES: Madame Edwarda – Le Petit – L’Ar-

changélique – L’Impossible – La Scissiparité – L’Abbé C. – L’Être indifférencié n’est rien – Le Bleu du ciel.

IV. ŒUVRES LITTÉRAIRES POSTHUMES : Poèmes – Le Mort – Julie – La Maison brûlée – La Tombe de Louis XXX – Divinus Deus – Ébauches.

V. LA SOMME ATHÉOLOGIQUE. I : L’Expérience intérieure – Métho-de de méditation – Post-scriptum 1953 – Le Coupable – L’Alleluiah.

VI LA SOMME ATHÉOLOGIQUE. II : Sur Nietzsche – Mémorandum – Annexes.

VII L’Économie à la mesure de l’univers – La Part maudite – La Limite de l’utile (Fragments) – Théorie de la religion – Conférences 1947-1948 – Annexes.

VIII L’Histoire de l’érotisme – Le Surréalisme au jour le jour – Conférences 1951-1953 – La Souveraineté – Annexes.

IX Lascaux ou La Naissance de l’art – Manet – La Littérature et le mal – Annexes.

X L’Érotisme – Le Procès de Gilles de Rais – Les Larmes d’Éros.XI Articles I, 1944-1949.XII Articles II, 1950-1961.THÉORIE DE LA RELIGION (Collection “Tel”).

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Traduções no Brasil:

BATAILLE, Georges. A parte maldita. Precedida de A noção de despesa. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1975.______. Minha mãe. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Brasi-liense, 1985.______. O azul do céu. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.______. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.______. A Literatura e o mal. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989.______. A Experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Ma-gali Montagné e Antonio Ceschin. São Paulo: Editora Ática, 1992.______. Teoria da religião. Tradução de Sergio Goes de Paula e Viviane de Lamare com revisão de tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Editora Ática, 1993.______. O padre C. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.______. História do olho. Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.______. Madame Edwarda (Prefácio). Tradução de Osvaldo Fontes Filho. Outra Travessia, Revista de Pós-Graduação em Literatura, Ilha de Santa Catarina, n. 5, p. 95-97, 2. sem. 2005. ______. Acéphale n.1. Tradução de Fernando Scheibe. Boletim de Pe-squisa NELIC v. 8, n. 12-13. Com um periódico na mão (2008), p. 230-235. Disponível em: < http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/view/8617/7935>. Acesso em: 2 dez. 2009.______. Acéphale n. 2. Tradução de Fernando Scheibe. Boletim de Pesquisa NELIC, v. 2 p. 210-257, 2009. Lindes/Fronteiras, Edição especial. Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/view/11098/10598>. Acesso em: 2 dez. 2009.

Livros sobre Georges Bataille:

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana, de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras/Fapesp, 2002.

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Capítulos e prefácios de livros:

DIDI-HUBERMAN, Georges. Pensamento por imagem, pensamento dialético, pensamento alterante: a infância da arte segundo Georges Bataille. In: KERN, Maria Lúcia Bastos; FABRIS, Annateresa. Imagem e conhecimen-to. 1 ed. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 75.HABERMAS, Jürgen. Entre erotismo e economia geral: Bataille. In: HA-BERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.MORAES, Eliane Robert. A memória da fera. In: NESTROVSKI, Arthur; SILVA, Márcio Seligmann (Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000.______. O Jesúvio de Georges Bataille. In: SOUZA NETTO, Francisco Benjamin de (Org.). Jesus: anúncio e reflexão. Campinas, São Paulo: UNI-CAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2002.(Coleção Idéias 4).______. Um olho sem rosto. In: BATAILLE, Georges. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

Artigos em periódicos e apresentações em Congressos:

AGAMBEN, Giorgio. Bataille e o paradoxo da soberania. Tradução de Nilcéia Valdati. Outra travessia, Revista de Pós-Graduação em Literatura, Ilha de Santa Catarina, n. 5, p. 91-94, 2. sem. 2005.ALMEIDA, Alexandra Vieira de. Bataille e San Juan de la Cruz: a linguagem do excesso erótico. In: Outra travessia, Revista e Literatura, n. 5, Ilha de Santa Catarina, 2. semestre de 2005. p. 121-126.BORBA, Maria Salete. “Excesso ou leitura do aparato moderno”. In: Outra travessia, Revista de Pós-Graduação em Literatura, Ilha de Santa Catarina, n. 5, p. 127-138, 2. sem. 2005. BORGES, Augusto Contador. Georges Bataille: imagens do êxtase. Revista Agulha, Fortaleza, São Paulo, fevereiro 2001. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag9bataille.htm>. Acesso em: 15 Nov. 2009.DIDI-HUBERMAN, Georges. A paixão do visível segundo Georges Batail-le. Revista de Comunicação e linguagens, Lisboa, n. 5, p. 7-21, nov. 1987.FILHO, Osvaldo Fontes. Uma literatura no limite da filosofia: Georges Bataille. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC – TESSI-TURAS, INTERAÇÕES, CONVERGÊNCIAS, 11, 2008, São Paulo. Anais. São Paulo: ABRALIC, 2008. Disponível em:<http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/049/OSVALDO_FILHO.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2009.

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FILHO, Osvaldo Fontes. Um prefácio para uma impossível narrativa. Outra travessia, Revista de Pós-Graduação em Literatura, Ilha de Santa Catarina, n. 5, p. 99-106, 2. sem.; 2005.JORGE, Eduardo; VIEIRA, Marcela; ZINGANO, Érica. O dicionário de Georges Bataille. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. n. 1316, p. 3-7, jan. 2009.MORAES, Eliane Robert. O jardim secreto: notas sobre Bataille e Foucault. Tempo Social, São Paulo: Departamento de Sociologia, FFLCH/USP, v. 7, n. 1-2, out.; 1995.MORAES, Marcelo Jacques de. Experiência na narrativa de Georges Bataille. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC – TESSITURAS, INTE-RAÇÕES, CONVERGÊNCIAS, 11., São Paulo.Anais... São Paulo: ABRALIC, 2008. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/MARCELO_MORAES.pdf>. Acesso em: 15 Nov. 2009.______. Georges Bataille e as formações do abjeto. Outra Travessia. Revista de Pós-Graduação em Literatura, Ilha de Santa Catarina, v. 5, p. 107-120, 2. Sem.2005.OLIVEIRA, Eduardo Jorge. Documentos de desfiguração humana. Exa-gium: revista eletrônica de Filosofia, Ouro Preto , n. 7, 2010. No prelo.OLIVEIRA, Eduardo Jorge. O verbete, o dicionário e o documento. Notas para uma leitura da montagem em Georges Bataille. Poiésis, UFF, Niterói, n.13, p. 145-158, 2009. SCRAMIM, Susana. A exceção e o excesso. Outra travessia, Revista de Pós-Graduação em Literatura, Ilha de Santa Catarina, n. 5, p. 171-178, 2. sem. 2005.STROZZI, Gina Valbão. Experiência erótica e religiosa em Georges Bataille. Revista Âncora, São Paulo, ano 2, v.3, Nov.2007.

Dissertações e Teses:

MORAES, Eliane Robert. Retrato impossível: o corpo desfigurado no moder-nismo francês 1996. 310 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.SCHEIBE, Fernando. Acéphale e a hora presente. 2000. 357 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Centro de Comunicação e Expressão. Universi-dade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.SCHEIBE, Fernando. Coisa nenhuma: ensaio sobre literatura e soberania (na obra de Georges Bataille). 2004. 166 f. Tese (Doutorado em Literatu-ra) – Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa

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Catarina, Florianópolis, 2004. Disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/PLIT0148.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2009.TÓFANI, Wanda de Paula. Imagem e figura: a representação em Georges Bataille e Francis Bacon. 2005. 431 f. Tese (Doutorado em Literatura ) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

Artigos de jornal:

MORAES, Eliane Robert. A Soberania do mal. Jornal do Brasil, Rio de Janei-ro, 28 out. 1989. Suplemento Idéias & Livros, n. 161. ______. O filósofo bacante. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jun. 1992. Suplemento Idéias & Livros & Ensaios n. 298.______. Georges Bataille afirma seu misticismo sem Deus. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 maio 1993. Suplemento Mais.______. O abecedário da perversão. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 ago. 1999. Suplemento Inéditos.

Este livro foi editorado em Arno Pro e Korina Bt, corpo 8-18. Miolo em papel pólen bold 90g;

capa em cartão supremo 250g branco. Sistema de impressão offset.