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Cultiva a criança conforme o caminho que deve seguir, E, quando for velha, não se afastará dele.

Prov. 22, 6

ÍNDICE GERAL

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

PARTE I HOMINEM HUMANIOREM FACERE

MODELO DO HOMEM PERFEITO NA SUA VERSÃO CRISTÃ Capítulo I CONTEXTO 1. Humanismo Clássico do Renascimento................................................................. 19 2. Humanismo Cristão / Modelo Antropológico Inaciano.......................................... 26 3. Preocupação pedagógica humanista: A Formação integral

3.1. Arte e poder da palavra................................................................................... 29 3.2. Criação dos colégios da Companhia de Jesus no Portugal da 2ª metade do século XVI....................................................................................................... 34

Capítulo II EXPERIÊNCIA PEDAGOGIA HUMANÍSTICA DOS JESUÍTAS ............................................................................ 43 1.Finalidade educativa............................................................................................... 47

1.1. Deus cristão é Deus de amor, feito homem ...................................................... 49 1.2. Formação total da Pessoa cristã ....................................................................... 53 1.3. Educação, meio e modo de alcançar na pessoa a formação intelectual, religiosa e do carácter ............................................................................................................. 56

1.3.1. Currículo formativo de letras humanas 1.3.1.1. Graus / Classes / Cursos ................................................................ 57 1.3.1.2. Livros / Textos / Autores............................................................... 61

2. Relação educativa

No caminho do amor - Pró “Cura Personalis” .................................................... 64 2.1. Ordem nos recursos humanos e nos recursos materiais e temporais

2.1.1. Corpo administrativo de gestão dos colégios........................................... 67 2.1.2. Professor / Aluno ................................................................................... 73

2.1.2.1. O Professor ................................................................................... 73 2.1.2.2. O Aluno........................................................................................ 77 2.1.2.3. Interacção Professor/Aluno ........................................................... 81 2.1.2.4. Relação Aluno/Aluno.................................................................... 88

2.2. O Espaço e o Tempo .................................................................................... 90

3. Recursos didácticos / Exercícios escolares Formação moral activa e participada.......................................................................... 94

PARTE II MONERE OBLECTANDO (in frontispício do Colégio de Faro)

EXPRESSÕES CULTURAIS, ESTÉTICAS E MORAIS NA COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL Capítulo I ACÇÃO TEATRO ESCOLAR JESUÍTICO - ATENÇÃO E INTENÇÃO NUMA PEDAGOGIA HUMANISTA CRISTÃ……101 1. Adoptar e adaptar o teatro clássico .................................................................................. 107

1.1. Ajudas pagãs - Séneca, Plauto, Terêncio ............................................................... 115 1.2. Ajudas medievais e populares ............................................................................... 119 1.3. Benéficos ornamentos ao serviço da palavra ......................................................... 122

2. Conhecer, Dizer e Fazer (o) Bem .................................................................................... 125 2.1. Boas maneiras de Ser, Estar e Proceder ................................................................. 129

2.1.1. O casal - Autoridade do marido / Obediência da esposa .............................. 133 2.1.2. Os filhos - Autoridade do pai / Obediência dos filhos ................................. 139

3. Representar no Real Colégio das Artes: Palco didáctico do saber e da piedade ............. 141 3.1. Contributo teatral dos Bordaleses .......................................................................... 142 3.2. Contributo teatral dos Jesuítas ............................................................................... 144 3.3. Actividade cénica e público espectador ................................................................. 147

Capítulo II ACÇÃO AUTORES, COMÉDIAS CLÁSSICAS, TRAGÉDIA E TRAGICOMÉDIA NEOLATINAS NO TEATRO ESCOLAR JESUÍTICO DA 2ª METADE DO SÉC. XVI ........................................................................................... 153 1. Terêncio e as 3 Comédias da antologia jesuíta ................................................................ 153

1.1. A rapariga que veio de Andros ou Andria ............................................................. 157 1.2. Eunuco ................................................................................................................... 168 1.3. O Homem que se puniu a si mesmo ....................................................................... 177

2. Miguel Venegas e a tragédia sacra Achabus (1562) ........................................................ 192 3. Luís da Cruz e a tragicomédia Prodigus (1568) .............................................................. 211

PARTE III AGE QUOD AGIS

“O HOMEM É UM DENTRO E UM FORA, VINDO SEMPRE DO PASSADO E CAMINHANDO PARA O FUTURO”

Capítulo I REFLEXÃO ................................................................................................................................ 1. ALCANCE DESTA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA ............................................................... 231

1.1. Lição do Passado ................................................................................................... 236 1.2. Ressonâncias do e no Presente .............................................................................. 240

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 249 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 257 Í NDICE ONOMÁSTICO ........................................................................................................ 275

ANEXO……………………………………………………………………………………… 285

ÍNDICE ONOMÁSTICO A

ABREU, Leão – 126

ADORNO, Francisco – 117

AFONSO, D. - 21

AGOSTINHO, Santo – 48, 52; 88, 95; 104; 127; 154.

ALVARES, Manuel – 35; 63; 192.

AMBRÓSIO, Santo – 34.

ANDROZZI, Fulvio – 62.

ANGELIS, Giuseppe – 254; 255.

APOLINAR, C. Suplicio – 154; 157; 168; 177.

APOLODORO – 153.

AQUAVIVA – 27, 36; 37.

AQUINO, S. Tomás de – 128.

ARAGÃO, D. Joana – 135, 136.

ARAGÃO, Túlia – 136.

ARAÚJO, Isidro – 157.

ARISTÓFANES – 107.

ARISTÓTELES – 16, 109, 110, 118, 126

ARRUPE, Pedro S.J – 232; 233; 235; 241; 242.

AUSTRIA, D. Leonor de – 131; 137.

ÁVILA, Teresa d’ – 136; 137.

AZPITARTE, E. López, BASTERRA, F.J. Elizari,

ORDUÑA, R. Rincón - 54.

B

BACON, Francis – 31.

BARBOSA, Manuel José de Sousa – 57; 103; 110;

118; 211; 213.

BARROS, João de – 139.

BECHTEL, Guy – 134; 136; 203.

BENTO XIV, Papa – 22.

BOCCACIO – 138; 139.

BOSSUET – 22.

BUDÉ – 34.

BUFFON, Leclerc de – 22.

BURGUIÉRE, André – 132.

BURTON, Edward – 138.

BRANDÃO, P. António – 40; 78; 86; 141; 143.

BRANDÂO, Mário – 86; 97; 116; 131; 141; 143;

144; 149.

BRUNI, Leonardo – 115; 126.

BUCHANAN, George – 65; 141; 142; 143.

C

CABRAL, Roque – 50; 52; 67; 68; 125.

CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro – 22; 121; 125.

CALLEJAS, José Maria – 256.

277

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

278

CALVINO, João – 23; 29; 48; 121.

CAMÕES, Luís de – 35; 107; 116; 125; 129; 136.

CAMPOS, J. A. Segurado e – 115.

CARDIM, Pedro – 104; 126; 127.

CARLOS V, Rei D. – 136.

CARNEIRO, Roberto – 234.

CARNER, Francisco – 31.

CARVALHAES, José – 38; 244.

CARVALHO, António Mendes de – 142.

CARVALHO, Rómulo de – 39; 43; 44; 45; 80.

CASULO, José Carlos de Oliveira – 234.

CATARINA, Rainha D. – 28; 30; 138.

CATÃO – 156.

CERETA, Laura – 136

CERETI, Giovanni – 235; 239; 243.

CÉSAR, Júlio – 154.

CHARDIN, Teilhard- 67.

CHARMOT, François – 52; 64; 85; 88.

CHIPRE, Zenão de – 132.

CÍCERO – 19; 30; 31; 32; 34; 62; 63; 78; 89; 95; 108;

109; 116; 126; 132; 154; 176.

Pro Archia - 30.

De Oratore - 30.

De Republica – 109.

De Natura Deorum - 174.

De Amicitia - 223.

CIDADE, Hernâni – 129.

CINZIO, Giraldi – 123.

CODURI – 37.

COELHO, Jacinto Prado – 107.

COLONA, Ascânio – 135.

CORNEILLE - 22.

COSTA, João – 142; 143.

COUPRIE, Alain – 195.

COUTO, Aires Pereira do – 153, 159.

CRUZ, Duarte Ivo – 147.

CRUZ, João da – 145.

CRUZ, P. Luís da – 12; 13; 16; 76; 77; 85; 102; 103;

108; 109; 110; 111; 112; 113; 117; 122; 123; 130;

131; 144; 145; 194; 211; 252.

Prodigus: 16; 103; 120; 30; 44; 45; 147; 148;

149; 150; 176; 193; 197; 211; 214; 215; 216; 218;

219; 220; 221; 222; 223; 224; 225; 226; 227; 228;

252.

Vita Humana – 211, 213.

Sedecias – 213.

Iosephus – 213.

CRUZ, Próspero Publícola de Santa – 146.

CURTIUS, Ernest Robert – 34; 47; 52; 109; 113;

121; 128.

D

DAINVILLE, François – 62; 75; 84; 85; 95; 96; 97;

113; 118; 124; 128; 129; 134; 149.

DALMASES, Candido de,– 31; 40; 62; 67; 69; 70;

78; 79; 87.

DELORS, Jacques et alii – 234; 244.

DIAS, Pero – 123.

DOMINGUES, Agostinho de Jesus – 25; 37; 111;

118; 154; 157; 168; 177.

DUARTE, Manuel Dias – 134; 136; 139.

E

ELIADE, Mircea -22.

EMILIANO, Cipião – 30; 132; 154.

ENIO – 128.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

279

ERASMO, Desidério – 21; 23; 26; 29; 30; 34; 95; 96;

111; 131.

ÉSQUILO – 107; 110.

EURÍPIDES – 107; 110; 127; 142; 143.

F

FABRICE, Arnaldo – 142.

FABRO, Pedro – 37.

FEDELE, Cassandra – 136.

FELTRE, Vittorino de – 26; 30.

FERNANDES, Maria de Lurdes Correia – 24; 84;

138.

FERNANDES, Rosado Fernandes e CASTRO,

Mendes de – 13; 107; 108.

FERNANDES, P. Urbano – 78; 87.

FERRÃO, Bartolomeu – 28.

FERREIRA, António – 142.

FILIPE II, Rei – 212.

FICINO, Marsílio – 126.

FONSECA, Pedro – 144; 192.

FRANCA, Leonel – 37; 57; 59; 60; 75; 80; 81; 85; 88;

95; 96; 98.

FRÈCHES, Claude Henri – 24; 31; 63; 103; 108; 109;

112; 116; 120; 121; 122; 124; 139; 141; 142; 143;

148; 149; 150; 197; 211; 212; 214; 216; 226.

FREEMAN – 138.

FREIRE, António – 15; 21; 26; 51; 55; 66; 102; 104;

107; 155; 159.

FREITAS, Domingos de – 233; 242.

FRÚSIUS, André – 117.

FUCHS, Erich – 23; 53; 55; 128; 130; 132; 133; 134;

135; 137.

FUENTES, José Luís e RAMAL, Andrea – 12.

FUMAROLI, Marc – 34.

G

GAARDER, Jostein, - 50; 53.

GALILEI, Galileu – 22.

GARAY, René P. – 130; 131.

GARCIA, Mário – 105.

GARIN, Eugénio – 13.

GNAPHEUS, Guilherme – 145;193; 214.

GOETHE, - 141; 231.

GÓIS, Damião – 48; 111.

GOLDONI – 22.

GOMES, Álvaro – 56; 66.

GOMES, Manuel Pereira – 28; 37; 39; 43; 45; 46;

69; 94; 97; 231; 236.

GOMES, Joaquim Ferreira – 33; 141.

GOUVEIA, André – 65; 142; 143.

GOUVEIA, Henrique – 39.

GRIFFIN, Nigel -192.

GROOT, Geert – 30.

GROUCHY, Nicolau – 142, 143.

GUERENTE, Guilherme – 142.

H

HENRIQUE, Cardeal D. – 23; 147.

HENRIQUES, Leão -144.

HERMENEGILDO, Alfredo – 239.

HERRERO, Santiago Montero.- 116.

HESÍODO – 106.

HOMERO – 106; 126.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

280

HORÁCIO -78; 107; 109; 110; 111; 112; 114; 122;

154; 155.

HORTÊNSIA, Públia – 137.

HOUAISS, António, VILLAR, Mauro Salles e

FRANCO, Francisco Manoel de – 128; 129; 131; 148;

149; 213.

213.

HROSVITHA – 102, 154

I

ISABEL, Rainha Santa – 147; 148; 192.

IPARRAGUIRE Ignacio – 31; 40; 62; 67; 69; 70; 78;

79; 87.

J

JANVIERRE, José Maria – 138.

JERÓNIMO, S. – 34; 47; 63; 126.

JOÃO, S. – 104.

JOÃO III, Rei D. – 21; 24; 30; 34; 37; 38; 65; 136;

137; 141; 144; 147; 149; 252.

JORGE, D. – 21; 24.

JÚNIOR, Manuel Alexandre – 107; 128.

JÚLIO III, Papa – 144.

K

KINERK, E. Edward – 69.

KLEIN, Luiz Fernando – 19; 233; 241; 242.

KING, Margaret – 134; 136; 137; 139.

KRISTELLER, Paul - 20; 33.

KOLVENBACH, Peter Hans – 233; 242.

L

LACOUTURE, Jean – 65; 135; 136; 137; 138.

LACTÃNCIO – 63.

LAINEZ, Diogo – 31; 37 ; 134.

LAMET, Pedro Miguel - 27; 30.

LARA, Juan de Mal- 145.

LEBRUN, François – 134; 139.

LEE, Roger – 138.

LEERNO, Filipe – 70.

LEMOS, jorge - 245; 256.

LHOMOND – 30.

LIPPOMANI, André - 62.

LIPOVETSKY, Gilles – 241.

LOIOLA, Inácio de – 19; 24; 27; 29; 30; 31; 32; 33;

34; 35; 36; 37; 38; 39; 40; 43; 44; 45; 49; 50; 53;

55; 58; 60; 61; 62; 66; 67; 68; 69; 70; 71; 73; 74;

75; 76; 77; 78; 79; 81; 82; 83; 85; 88; 90; 91; 92;

95; 98; 104; 105; 106; 110; 128; 130; 132; 133;

135; 136; 137; 138; 169; 240; 242; 252.

LOPES, António – 38; 45; 141; 145.

LOPES, José Manuel Martins – 13; 14; 15; 27; 28;

30; 33; 36; 47; 49; 51; 52; 55; 57; 67; 78; 81; 82,

83; 87; 88; 89; 96; 102; 104; 127; 128.

LOURENÇO, Frederico -107; 126; 127.

LUCAS, S. – 213; 247.

LUKÁCS, Ladislaus. – 43; 49; 56; 57; 58; 59; 60; 61;

62; 63; 69; 70; 71; 72; 73; 74; 75; 76; 77; 78; 79; 80;

81; 82; 83; 84; 85; 86; 87; 88; 89; 90; 91; 92; 95; 97;

98; 102; 103.

LUCÍLIO – 30.

LUTERO, Martinho – 23; 24; 29; 48; 121.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

281

M

MAIA, Pedro – 20; 25; 58; 113.

MANUEL I, Rei D. – 25; 131.

MARIA, D. Francisco de Santa – 123; 141.

MAROUZEAU, J.- 153; 157; 159.

MARQUES, João Francisco – 24; 115; 119; 120;

124.

MARTINS, J. de Pina – 21; 22; 25; 31.

MARTINS S., Mário – 146.

MÁRTIRES, Frei Bartolomeu – 23, 25

MATEUS, S. – 246.

MEDEIROS, Walter de – 153, 159

MEISSNER, William W. – 27; 35; 69.

MENDONÇA, Pina – 25.

MELANCHTON – 78.

MELO, António Maria Martins.- 32; 48; 54; 112;

115; 117; 134; 154; 155; 156; 211; 213; 217.

MELO, D.João – 24; 39.

MENANDRO – 153; 155.

MENDES, Margarida Vieira – 31; 149.

MIRANDA, Margarida – 22; 24; 26; 36; 56; 57; 63;

65; 76; 77; 95; 96; 98; 102; 105; 109; 116; 119;

123; 124; 127; 128; 129; 139; 141; 143; 145;

148; 192; 194; 196; 197; 206; 208; 233; 237;

238.

MIRÃO, Diogo - 35; 67; 142.

MOYNE, Pierre de – 126.

MOLIÉRE – 22; 255.

MOLINA, Luís de – 48.

MONTAIGNE, Michel – 60; 66; 136; 142.

MORATA, Olímpia - 136.

N

NADAL, Jerónimo – 35.

NAGAROLA, Isotta – 136.

NASCIMENTO, Aires Augusto -

NEVES, Orlando -158; 255.

NICOT, Jean – 145.

NORONHA, D. Leonor de – 136.

NOUWEN, Henri – 52; 212.

NYGREN, A. – 53.

O

OCAMPO FLÓREZ, Esteban – 47; 244.

OLIVEIRA, António – 141.

OLIVEIRA, Augusta Fernanda – 21; 62; 110; 121;

137.

OLIVEIRA, Fernando Matos – 240; 247.

OLIVEIRA, Francisco – 126.

OSÓRIO, Jerónimo – 63; 126; 176.

OSOWSKI, Cecília Irene – 106; 236.

ORTEGA – 256.

P

PARATORE, Ettore – 154; 155; 156.

PALMÉS, GENOVER, Carlos - 28; 52; 66; 67; 69;

194; 195.

PAULO, S. – 23; 85; 104; 121; 130; 134; 135; 140;

203.

PAULO II, Papa – 234.

PAULO III, Papa – 25.

PAULO, Emílio – 30; 154.

PELÁGIO – 48.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

282

PEREIRA, Maria Helena da Rocha – 19; 30; 32; 107;

115; 132; 154; 155.

PERPINHÃO, Pedro – 35; 116, 117, 143, 145, 148,

192.

PETRARCA – 25.

PIANA, Giannino – 131.

PIMENTEL, Maria Cristina – 132.

PINTO, Frei Heitor – 35; 59.

PIZAN, Christine – 131; 136.

PLATÃO – 51; 84; 121; 126; 127.

PLAUTO – 95; 96; 102; 103; 107; 109; 110; 111;

112; 115; 116; 138; 139; 155; 239; 240; 251.

PLOTINO – 51.

POLANCO – 28; 31; 40; 62.

Q

QUERA, Miguel Bertrán – 55; 58; 59; 60; 84; 94.

QUINTILIANO – 30; 31; 34; 89; 95; 116; 117; 154;

Institutio Oratio- 30

R

RAHNER, Hugo – 136; 138.

RAMALHO, Américo da Costa – 21; 23; 25; 59; 60;

62; 94; 110; 121; 137; 141; 142; 143; 145; 146;

196; 237; 238.

REBELO, Luís Francisco – 65; 116; 119; 120; 124;

248.

REBELO, Luís de Sousa – 25; 29; 108; 112; 120;

122; 124.

REBOUL, Olivier – 245.

RESENDE, André – 31.

RIBADENEIRA, P. – 117.

RICCA, Paolo – 32.

RODES, Panécio de – 30.

RODRIGUES, Francisco – 22; 34; 36; 39; 43; 44; 48;

63; 73; 77; 85; 86; 94; 97; 101; 102; 108; 113;

119; 124; 143; 144; 145; 146; 147; 148; 149;

150; 212.

RODRIGUES, Simão – 35; 37; 40.

ROGERS, Carl R. – 98.

RUFO, Mússinio – 132.

S

SALISBÚRIA, João de – 121.

SALOMÃO – 134; 135.

SANDE, Duarte de – 237.

SANTOS, José Carlos Ary dos – 247.

SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos – 29; 32;

141; 142; 143.

SANTIDRÍÁN, Pedro R – 22; 47; 51.

SCALA, Alessandra – 136.

SCARLATI, Eduardo – 118.

SEBASTIÃO, rei D.– 23; 25; 36; 126; 147; 150; 197;

213.

SEGURA, Florêncio – 103; 124; 141; 144; 145; 146.

SÉNECA – 34; 95; 107; 109; 110; 111; 115; 121;

126; 132; 143.

Cartas a Lucílio – 95.

SÉRGIO, António – 19.

SERRÃO, Joel – 116; 143.

SÍCULO, Cataldo Parísio – 21; 25; 62; 110; 121;

137; 149.

SIGEA, Luísa – 136.

SILVA, Maria de Fátima Sousa e -248.

SILVEIRA, Teolinda - 245; 256.

SOARES, Bispo João – 123; 141.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

283

SOARES, Cipriano – 35; 63; 192.

SOARES, Mário – 241.

SOARES, Nair de Nazaré Castro – 12; 20; 29; 31;

32; 34; 59; 64; 65; 78; 95; 105; 107; 109; 111;

112; 113; 118; 122; 123; 124; 126; 129; 134;

141; 142; 176; 193; 196; 212; 213; 221; 224;

234; 237.

SOCRATES – 127.

SÓFOCLES – 107; 110.

SOLMER, António.- 104.

SOUSA, D. Diogo – 25.

STURM , Johan – 32.

T

TASSO - 22.

TEIVE, Diogo – 35; 65; 142; 197.

TELES, Baltasar – 97.

TERÊNCIO, P. – 30; 61; 62; 63; 95; 96; 102; 103;

107; 108; 109; 110; 113; 115; 116; 117; 138;

139; 155; 156; 236; 239; 240; 255.

Andria (A moça que veio de Andros) – 15; 103;

118; 153; 154; 157; 159; 160; 161; 162; 163;

164; 165; 166; 167; 176.

Eunuchus, (O Eunuco) – 15; 103; 153; 157; 159;

168; 169; 170; 171; 172; 173; 174; 175; 176.

Heautontimorumenos (O homem que se puniu a

si mesmo) – 15; 103; 153; 154; 155; 157; 159;

177; 178; 179; 180; 181; 182; 183; 184; 185;

186; 187; 188; 189; 190; 191.

Hecyra (A Sogra) – 153, 154, 157

Adelphoe (Os dois irmãoss) – 153; 154; 157.

Phormio (Formião)- 153; 157.

TIAGO, S. – 104.

TOIPA, Helena Costa – 117; 144; 148.

TORQUATO – 22.

TORRES, Amadeu – 35.

TORRES, Miguel – 117.

U

UGALDE, Luís – 50; 105.

V

VALLA, Lorenzo – 25; 26; 126.

VALLONE, Bartolomeu – 147.

VASCONCELOS, J. Leite de – 119.

VASQUEZ POSADA, Carlos – 33; 242

VAZ, Joana – 137.

VELHO, Domingos – 138

VENEGAS, Miguel – 76; 103; 119; 123; 141; 144;

145; 146; 211; 253.

Achabus (Acab) – 16; 103; 145; 146; 192; 193;

194; 195; 196; 197; 198; 199; 200; 201; 202; 203;

204; 205; 206; 207; 208; 209; 210; 253.

Saul Gelboeus (Saul) – 145; 146; 192; 197.

Absalon – 145; 146; 192.

VICENTE, Ana – 137

VICENTE, Gil – 107; 119; 120; 130; 131.

VIDAL, Marciano – 20; 52; 64; 132; 135.

VIEIRA, António – 22.

VINET, Elias – 65; 142.

VIRGÍLIO – 108.

VIVES, Luís – 26, 30, 96; 137, 138.

X

XAVIER, Francisco – 37.

W

WARD, Mary – 138.

WRIGTH, Jonathan - 115; 121.

WOJTYLA, Karol – 234.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

284

.

INTRODUÇÃO

As cinco etapas ou dimensões do método de discernimento do Paradigma Pedagógico

jesuítico ou inaciano (PPI), que nos situam num período actual de renovação pedagógica jesuítica, hão-de servir de indicadores estruturais nos capítulos deste trabalho tripartido, com incidência no estudo do passado. Tomando como ponto de partida o título que encabeça o projecto proposto e circunscrito, urge destacar as palavras-chave cura personalis1, Pedagogia e teatro escolar, no contexto espácio-temporal dos colégios jesuítas da 2ª metade do séc. XVI, em Portugal. Todos estes marcos assinalam um campo de acção em que a pessoa é o centro. Desde já, convém explicitar a expressão latina que tem, ao longo desta dissertação, a função de ponto aglutinador, diríamos até, a função de catalisador, não só no plano da Pedagogia dos Jesuítas - pelo interesse e ajuda que deviam ser dispensados a cada pessoa envolvida no processo ensino-aprendizagem - mas também numa óptica de educação comprometida com o desenvolvimento de faculdades e competências a ressoar ao longo de toda a vida da pessoa. Destacamos como presença obrigatória a cura, apelando, desde já, à interpretação da ênfase intensiva do negrito e à significação do termo latino - cuidado, interesse, diligência, encargo, trabalho, obra de espírito, cuidado de amor, amor, guarda e vigia.

Da primeira parte hão-de constar dois capítulos: o primeiro pretenderá apresentar o contexto - circunstâncias históricas que envolvem o período de iniciação da pedagogia da Companhia de Jesus - enquanto o segundo irá coincidir com o momento de observação da vivência e envolvência dos elementos educativos da pedagogia humanista cristã que, com o intuito de formação intelectual, utilizava as letras humanas também para a formação mo-ral e afectiva. Assim, podemos dizer que vamos falar da experiência, no âmbito de uma praxis escolar jesuítica, onde planificação e dinâmicas pedagógico-didácticas são encara-das como acto de caridade, estando os studia humanitatis ao serviço do conhecimento, do amor ao próximo e do serviço a Deus, podendo, assim, efectuar-se a cura das almas. 1 In: http://www..pedroarrupe.com.br/glossario.htm, Aqui poderá encontrar os termos e expressões mais utilizados na pedagogia inaciana e seu significado. O trabalho da autoria de José Luís Fuentes e Andrea Ramal intitula-se “Você fala inaciano?”. Apesar da designação Cura personalis se reportar aos tempos contemporâneos, revela o “cuidado e atenção com cada pessoa em particular e com seu processo de crescimento na experiência espiritual. Aplica-se o conceito ao director dos Exercícios Espirituais, que acompanha pessoalmente aquele que faz essa experiência para conhecer o seu ritmo e adequar a ele o processo. Analogamente aplica-se ao educador, com relação ao seu aluno, quando busca conhecê-lo de perto para promover o seu crescimento pessoal e tornar o processo educativo mais apropriado.”

Esta designação irá surgir ao longo da trabalho, vide infra, pp. 14, 16, 44, 48, 56, 57, 64, 67, 72, 83, 88; 89, 215, 254.

11

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

12

A Acção reportar-se-á a toda a segunda parte, constituindo a análise dos textos dramáticos escolhidos - suporte quer no cultivo das letras quer na exercitação discente e matéria prima do segundo capítulo - o momento fulcral da interacção, explícita ou implícita, de conteúdos de ordem intelectual/literária, moral/doutrinária, tendo tido estes exposição detalhada no capítulo precedente (cap. I). No teatro escolar dos colégios, a verdade e o impacto do dizer ganhavam desenvoltura e assimilação no fazer de cada um para si e para o outro. A par do encontro com as normas retóricas e com a operacionalização de técnicas, os saberes e os valores implicavam posições de ordem individual, em que cada um, dentro da comunidade, deveria tomar livremente a decisão interior que, segundo o nº 48 dos Exercícios Espirituais, assumia a fórmula do que quero e desejo, para poder alcançar a excelência.

Finalmente, a reflexão, entendida neste trabalho académico como posicionamento pessoal - o nosso entendimento que rejeita ser neutro e distante - surgirá na última parte desta pesquisa que procurará centrar-se no tempo, espaço e pessoas definidas ao longo da análise do passado e com ressonâncias no presente.

A avaliação, transversalmente inerente ao processo de feitura e assumindo forma explícita na conclusão, surgirá em acto na apresentação deste projecto, que, correndo o risco da grande extensão - múltiplas as fontes de referência consultadas e, consequentes citações de pensadores e autores, justificáveis pela complexidade e riqueza do contexto histórico em questão e da realidade educativa inerente, bem como pelo entusiasmo -, pretende distanciar-se da possível coincidência com uma miscelânea. Na verdade, diríamos que as numerosas e extensas notas de rodapé - meras referências e extractos textuais – recorrem a palavras sentenças clássicas/humanistas e, quiçá, frases retóricas que consideramos fundamentais para o enquadramento dos assuntos a expor. Neste caso, a extensão e minúcia informativas, na nossa opinião, irão proporcionar ao leitor um esclarecimento académico mais preciso, além de promover auctoritas e de conferir sentido pleno ao verbum, pela dimensão contextual, histórica, cultural, política, religiosa e social.

Desta feita, mediante o previsível labor que nos aguarda e o esforço solicitado, tal como os humanistas do séc. XVI o faziam, invocamos a imagem da abelha, da autoria de Lucrécio, que recolhe o néctar de todas as flores2.

Diligentes, desde já, fazemos nossas as palavras que um dos dramaturgos a estudar, P. Luís da Cruz, dirige ao seu benévolo leitor in Praefatio ad Lectorem:

“Encontrarás defeitos, não tenho dúvida, mas esses ou foram provocados por certa incúria ou

porque a natureza humana não os soube evitar. Temo, contudo, que muito seja o que venha a desagradar

e pouco, na verdade, o que seja apreciado e se distinga.”3

2 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “A literatura de sentenças no humanismo português: res et verba”, in Humanismo Português na época dos descobrimentos – Actas, Coimbra, 1993, p. 389.

Introdução

13

Inicialmente, a breve contextualização histórica virá situar-nos na 2ª metade do século XVI, atendendo ao humanismo renascentista e humanismo bíblico que filiava nas letras clássicas o regresso às fontes bíblicas e patrísticas do Cristianismo, para, desse modo, se poder chegar à arte da palavra e ao entendimento da doutrina e da virtude - reconstrução retórica e histórica para melhorar a compreensão. Salientar-se-ão homens e suas acções que, directa ou indirectamente, se associam ao fervor educativo desta época distinta pelo movimento cultural, literário e pedagógico designado como humanismo renascentista e marcada pela agitação no pensamento religioso. Este cenário de “humanismo pedagógico”, assim designado por Eugénio Garin, faz parte de um “palco”, onde a peda-gogia humanista dos Jesuítas, humanistas cristãos, estará em acção, isto é, será examinada, no respeitante às suas finalidades, pessoas envolvidas (relação pedagógica) e processos/recursos didácticos.

No apostolado educativo empreendido pela Companhia, com a fundação de colégios, situar-nos-emos em Portugal, na 2ª metade desse século, dando uma visão genérica das componentes deste sistema de ensino. Será nosso intuito principal, recorrendo primordialmente a documentos escritos como os Exercícios Espirituais, a IV Parte das Constituições e o Ratio Studiorum de 1599, evidenciar o ambiente de família fraterna almejado nos colégios. Aqui, sob a égide da ortodoxia da Igreja Católica Apostólica Romana, a gestão e convivência implicavam autoridade e caridade, tendo como exemplo o paradigma cristão da atenção à natureza e desenvolvimento de cada um, sendo Jesus Cristo e a sua mensagem de amor cristão o modelo a seguir. As citações de normas/orientações, retiradas desses documentos, hão-de proporcionar a descrição da provável interacção estabelecida in loco para que educadores e educandos cultivassem nos seus estudos, isto é, na palavra, no texto declamado, o valor humano. Nas disciplinas humanísticas, com destaque para a Classe de Retórica, a meta final do ciclo das letras, além da instrução literária, era também adestrar e disciplinar os afectos em prol da ortodoxia tridentina. A vontade humana era educada em cada um num processo ensino-aprendizagem personalizado, porque baseado num amor oblativo e altruísta, que combinava com responsabilidade, serviço, união e autoridade da hierarquia. O exercício e cultivo das letras humanas, o reforço dos valores cristãos, numa visão antropológica inaciana, orientavam na direcção de uma lei universal - apologista do carácter social e do amor cristão (ágape)4.

Iremos, pois, ao encontro das indicações legisladas para o agir bem, as quais beneficiavam e eram prova da atenção personalizada e da consequente relação de inter-ajuda no ambiente do colégio. A finalidade será não só advertirmos para uma pedagogia

3 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina, tradução de R. M. ROSADO FERNANDES E J. MENDES DE CASTRO, vol. II, Lisboa, 1989, p. 26. 4 Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, “Cura personalis e a educação na Companhia de Jesus – I”, Brotéria,161 (2005) 59-60.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

14

do amor, na acepção cristã, o qual se manifestava através de virtudes e valores implícitos nos hábitos, mas também podermos abrir caminho para a segunda parte deste trabalho. Só compreendendo a articulação de todos os recursos humanos (relações de utilitas) e os recursos materiais ou infra-estruturas numa actividade educativa de forte pendor moral - sob a égide da ordem e do exercício - poderemos interpretar a função do mais completo exercício escolar, o teatro, como técnica de comunicação intrapessoal e interpessoal com benefícios verbais e morais. Este instrumento didáctico, de acordo com o gosto literário da época, pretendia tornar o homem mais humano, advertindo, divertindo e ensinando. Numa óptica de apoio, generosidade e acompanhamento pessoal de acordo com uma obediência, a longo prazo, à Igreja - preservação do Cristianismo - a tal cura personalis era uma oblação à pessoa, considerada como ser total e completo que devia cumprir a sua missão pessoal com dignidade no grande teatro do mundo.

Na segunda parte, após uma iniciática informação/orientação assente em aspectos literários e morais, indissociáveis da realidade educativa em estudo, seguiremos duas eta-pas (a explicitar a posteriori), nas quais o nosso objectivo será fazer o levantamento das falas de personagens, a partir das obras de ficção seleccionadas, no âmbito de uma te-mática pedagógico-didáctica subordinada à representatividade de diversas modalidades do amor humano emergente na “terra chã”, no seio da grande família humana que as personae representam.

Na dramaturgia latina e produção teatral neolatina jesuítica seleccionadas, as virtudes edificantes, a que eram exortadas todas as pessoas que se encontravam num colégio jesuítico, em ambiente de obediência e castidade, confluíam para a caridade e piedade - os pilares nas relações de afecto e amor humanos, em que a acção da graça de Deus era um dado adquirido. Deste modo, na luta de emoções e afectos estabelecidos nas e entre as personagens, focalizaremos, recorrendo às litterae humaniores, por um lado, a recipro-cidade de sentimentos no amor paternal, no filial, no fraternal, no conjugal e no amor pátrio e, por outro, a perversidade da paixão sensual e dos prazeres relacionados com eros e que deviam ser submetidos ao entendimento/razão. Atender-se-á, também, nesta se-quência, ao (des)valor das escassas personagens femininas, que, pela presença consentida ou pela ausência, devidamente fundamentada, acusavam um modus vivendi traçado e im-posto pelo mundo dos homens desses tempos, em nome da defesa da honra e contra peri-gos como o prazer pecaminoso.

Pretendia-se, com o texto dramático, o exercício da palavra (latinitas) e do corpo, pelo gesto, pela postura, além do necessário alimento da alma (doctrina Christiana). Por isso, será nosso intuito incidir, especialmente, no interesse dado à formação da consciência de agentes educativos que, por norma, no seu percurso escolar e vivencial, deveriam ser caminheiros concentrados, perseverantes, prudentes, idóneos, puros de coração, caridosos,

Introdução

15

usando com discernimento e entendimento espiritual a sua liberdade5. Era feita, então, a apologia da conquista de sentimentos nobres, dignos de um bom cristão, conciliando o movere, o delectare e docere ao serviço da fé para alcance da excelência, do magis. Ao homo sapiens acrescia o homo moralis, ou numa linguagem mais contemporânea, a par do Q.I. tinha tão ou maior importância o Q.E. (quociente de inteligência emocional). Este último domínio, presente na dinâmica dos colégios, tinha também o seu lugar na representação, para, de formas diferentes, mas convergentes, se chegar à eclosão e constância de uma ambiência de sã e familiar convivência e cooperação. Não se descurava a melhor assimilação dos estudos clássicos, em ascensão no momento, evocando para o efeito a tão apregoada disciplina rigorosa, assegurada pela submissão a uma hierarquia rígida.

Passamos a apresentar as duas etapas, anteriormente citadas, que correspondem ao segundo capítulo da segunda parte. Desta forma, na primeira dessas etapas, há-de surgir o teatro escolar como actividade e trabalho das classes de Humanidades e Retórica. Atendeu-se, para o efeito, à selecção de uma antologia - Sylvae variorum auctorum …, de 1593 – da qual se destacam 3 produções dramáticas do autor latino Terêncio - fabulae palliatae - (A moça que veio de Andros, Eunuco e O Homem que se puniu a si mesmo). A escolha do antologista jesuita, não sendo arbitrária, atendeu a referências e avisos explícitos, quer na IV Parte das Constituições, quer no Ratio Studiorum 1599. A projecção do comediógrafo latino no sistema de ensino da época estudada - “O Renascimento considerava-o intangível”6- tornava obrigatória a sua presença nos curricula; porém, devido à “ofensa da honestidade e bons costumes”, atribuída às suas obras, estas deveriam ser manipuladas de forma a propiciar mais “empatia afectiva”. A expurgação a que eram submetidos os textos latinos nas antologias justificava-se face à formação moral do homem cristão católico dessa altura. Com efeito, como veremos, na versão original, as falas/manifestações de amor das personagens não convinham a uma educação apologista da caritas ou ágape cristã.

Na segunda etapa, vamos reflectir sobre a produção teatral neolatina jesuítica de finalidade intelectual e edificante. Era colocada em cena nos festivos episódios escolares como as entregas de prémios, os actos públicos, as solenidades - calendarizadas normalmente para o final do ano lectivo - sendo o fruto do trabalho das classes em constante exercício in verbis et in rebus, nas palavras e na doutrina, no sentido das coisas.

O mestre Miguel Venegas e seu discípulo Luís da Cruz (este assumindo papel de destaque na produção e composição dramáticas) serão os autores cujas obras hão-de ser analisadas, atendendo à res moralis (relativa à inventio) subordinada à temática atrás

5 Cf. Ibid. p. 71. 6 ANTÓNIO FREIRE, Humanismo Clássico, Braga, 1996, p. 295. Vide infra, pp.61-62, 102, 115-117, 153-154.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

16

explicitada. A selecção das peças neolatinas recairá na década de 60. Dessas várias manifestações em Latim, escolhemos a tragédia sacra do P. Miguel Venegas, Achabus (1562), e a tragicomédia do P. Luís da Cruz, Prodigus (1568).

No prefácio da peça Prodigus, o autor realça a autoridade e a idoneidade das peças destinadas a “gente séria”, pois “esperam os portugueses grandes assuntos, não querem ser chamados a ver assuntos só para rir”. Estas peças trágicas e cómicas eram escritas para serem representadas diante de um público de elite, sendo o próprio elenco “gente escolhidíssima (…) de tal forma que todos os olhos se voltam para eles”. Só mais tarde é que as obras de Luís da Cruz iriam passar pela tipografia e seriam os leitores e não os espectadores os que fariam os juízos. Será nesta linha que se situa este trabalho, onde a pesquisadora/leitora pretende encarar as peças acima enumeradas como fonte de investigação, na perspectiva exposta.

Na terceira e última parte, pretender-se-á estabelecer a relação entre as reflexões advindas da análise feita, situada num tempo e espaço delimitados (passado), e aspectos educativos e culturais dos séculos XX e XXI, onde essas mesmas reflexões podem ganhar projecção na acção. Cremos que é uma pedagogia fundamentada numa clarividência dos afectos humanos que permitirá “assegurar a formação cívica e moral dos homens” (Lei de Bases do Sistema Educativo).

As palavras de Aristóteles no final da sua obra Ética a Nicómano, “Caros amigos, não existem amigos!”, não combinam com a gratidão, a estima, o respeito e o reconhecimento que manifestamos aqui a todos os que consideramos estar implicados de uma maneira ou de outra nesta nossa caminhada, também ela movida e marcada pela cura personalis. Entre os colaboradores, na impossibilidade de os nomear a todos, agradecemos:

Ao Prof. Doutor António Melo, orientador desta dissertação, pela solicitude e possibilidade de encaminhar para o encontro e o diálogo com actuais humanistas, no sentido conferido na época renascentista e na linguagem contemporânea - a Profª. Doutora Nair de Nazaré Soares, o Prof. Doutor Agostinho Domingues e o Prof. Doutor Manuel José de Sousa Barbosa;

Aos mestres jesuítas, Manuel Pereira Gomes e José Manuel Martins Lopes, pelo entusiasmo e pelos diálogos esclarecedores e empreendedores;

Aos meus amigos, os que (me) acreditam, pela presença e pela paciência; Ao meu seio familiar, pelo apoio e amor incondicional!

Introdução

17

18

19

CAPÍTULO I

CONTEXTO

1. HUMANISMO CLÁSSICO DO RENASCIMENTO

Será nosso objectivo neste apelo humanístico e de “vera historia”7 incidir nos traços

gerais que delinearam o cenário cultural/educativo europeu e português, recaindo na

segunda metade do séc. XVI. Desta feita, situamos no tempo e no espaço quer a pedagogia

humanística e humana da então recém formada congregação religiosa, Companhia de

Jesus, quer o teatro usado como exercício num processo de ensino-aprendizagem

caracterizado pela orientação e organização/ascetismo. Pretendia-se a formação integral e a

evangelização, colocando a tónica da aprendizagem na expressão oral e a escrita - a

eloquência.

O Renascimento, complexo período histórico da cultura ocidental europeia e da idade

moderna, é aqui invocado apenas para resgatar conceitos de índole antropocêntrica, tais

como Humanitas8 e Classicus9. Ambos nos confirmam, a par do reatar com o passado e

7 Expressão usada por Inácio de Loiola na 2ª anotação dos Exercícios Espirituais direccionada ao orientador que deve ser fiel aos dados do trecho ou cena bíblica a ser meditada pelo exercitante. (Citado por LUIZ FERNANDO KLEIN, S.J., Atualidade da Pedagogia jesuítica, São Paulo, Brasil, 1997, p.123, nota 14). 8 Marco Túlio Cícero, classicus scriptor criador do conceito de humanitas, incluía-o na noção de clássico e culto, expressando-o através de termos como bondade, cortesia e cultura intelectual. Este famoso orador da época clássica (primeira metade do séc. I a.c.), ao tentar traduzir para latim o vocábulo grego Paideia, usou o neologismo Humanitas que assumia uma multiplicidade de correspondências linguísticas romanas (Cultura, educatio, doctrina, disciplina, studia, litterae, eruditio), na tentativa de recriar a riqueza de conteúdo da palavra grega. A designação de humanus correspondia a um comportamento educado e bondoso.

A Paideia, vocábulo aglutinador de noções correspondente aos nossos dias ao termo de cultura geral, liga-se a um ideal de homem, humanitas, ao qual cabia a sua realização, servindo-se da educação. Com raiz nas palavras homo e humus, remete-nos para o ser terreno e, posteriormente, para a palavra humanidade (conjunto de seres humanos, natureza e sentimentos do homem e urbanidade/civilidade).

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA afirma que“(…) sem prejuízo da posição-chave de Cícero (…) é no tempo dos Cipiões que devemos colocar a convergência, tão frutuosa, da paideia helénica com a humanitas latina.” (Estudos de História da Cultura Clássica, vol II.- Cultura Romana, Lisboa, 1982, p. 421).

Retomaremos este assunto ao longo do trabalho, vide infra p. 30, nota 39; p. 132, nota 491 e p. 154, notas 566, 567. 9 A palavra classicus, termo de Aulo Gélio (Noctes Atticae, deriva de classis, classe ou frota marítima, no sentido militar, tendo o significado figurado de “autor perfeito” (um modelo ou paradigma), o que remete para o ideal clássico. Um dos maiores ensaístas portugueses, ANTÓNIO SÉRGIO alicerça-o na harmonia de carácter e no equilíbrio das faculdades, em prol de uma educação clássica em todos os actos da vida escolar, extravasando as aulas de Latim e de Grego. Ser clássico

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

20

saberes antigos e clássicos, a atenção centrada na educação, e por isso, nas humanidades

(studia humanitatis), através das quais o ser humano podia fazer jus deste nome,

evidenciando a sua dignidade e valor perenes10.

Não só pela dimensão temporal/cronológica, mas também pelas diferenças

geográficas/regionais e sociais, o grande período de pensamento com génese em Florença -

Renascimento, sendo-lhe indissociável o movimento do Humanismo Clássico - estava

ligado à diversidade e à predominância do carácter literário. Às sumas teológicas

medievais outras formas de expressão se sobrepunham, versando assuntos culturais e

éticos. O ensaio, as cartas, os diálogos e os tratados surgiam, em latim e grego, a par de

catálogos de vícios e virtudes empenhados na defesa de uma moral cristã, numa altura de

“graves problemas del ‘hombre nuevo’ del Renacimiento y (…) grandes perspectivas del

‘mundo nuevo’ recién descubierto”11.

pressupõe ser culto, possuindo saberes e valores intemporais, espírito crítico, simplicidade, equilíbrio, modéstia, auto-domínio, sendo racional, sociável e humanista. Trata-se da cultura do “humano”, sendo o pensamento antigo a bagagem obrigatória na busca, com muito labor e suor, do equilíbrio entre a fantasia e o sentido crítico, na procura de uma ars vivendi. O clássico e o culto implicam harmonia de alma, saúde de corpo, urbanidade de espírito e finura de trato, surgindo como condição imprescindível uma nítida disciplina. (“O Clássico na Educação ou o Problema do Latim”. Obras Completas, Ensaios, Tomo II, Lisboa, 1970, pp. 95-143). 10 PEDRO MAIA, S. J especifica que “o nome de humanidades foi dado a estes estudos porque transformam os que a eles se dedicam em ‘homens educados, afáveis, lhanos, acessíveis e tratáveis’. ‘Chamam-se humanidades esses estudos, escrevia por seu turno Possevino, que nos tornem, pois, mais homens” (Ratio Studiorum – Método Pedagógico dos Jesuítas, vol. I, São Paulo, 1986, p. 25).

Cf. PAUL KRISTELLER. Nas conferências publicadas, o estudioso deixa transparecer como denominador comum a explicação de certos termos como: Renascimento, Humanismo renascentista, Humanistas. Resolvemos retirar de duas dessas conferências - “O Movimento Humanístico” e “A Filosofia do Homem no Renascimento Italiano” - palavras que julgamos esclarecedoras: “(…) muitos historiadores, ao saberem que o termo ‘humanismo’ esteve tradicionalmente ligado ao Renascimento (…) aplicaram tranquilamente ao Renascimento e a outros períodos do passado o termo ‘humanismo’ no seu vago significado moderno, falando de humanismo renascentista, humanismo medieval ou humanismo cristão (…) Isto parece-me um mau exemplo da tendência difundida entre historiadores de atribuir termos e rótulos do nosso tempo ao pensamento do passado.”; “(…) humanismo renascentista é entendido como uma fase característica do que se pode definir como a tradição retórica da cultura ocidental.”; “Quase todos os humanistas (…) ou eram docentes (…) ou eram secretários de príncipes e cidades; ou eram diletantes nobres ou ricos que combinavam os afazeres ou as autoridades políticas com os interesses intelectuais de moda no seu tempo.”; “Na linguagem contemporânea, o termo ‘humanismo’ tornou-se um dos slogans que, justamente por causa da sua indeterminação, exercem um fascínio quase universal e irresistível. Quem quer que se interesse por ‘valores humanos’ ou ‘bem estar humano’ diz-se hoje em dia ser um ‘humanista’ e quase não existe um indivíduo que não gostaria de ser, ou fingir ser, um humanista neste sentido da palavra. (…) O humanismo do Renascimento era profundamente diverso do de hoje: sem dúvida também os humanistas do Renascimento se interessavam pelos valores humanos, mas tal estava subordinada à preocupação principal, que era o estudo e a imitação da literatura clássica, quer grega quer latina.” (Tradição clássica e pensamento do Renascimento, trad. de Artur Morão, Lisboa, 1995, respectivamente, pp. 15, 16; 19; 131; 129, 130).

Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES. A estudiosa aborda os conceitos de aemulatio e imitatio tão caros aos humanistas, afastando/rejeitando o sinal de apática dependência ou psitacismo diante dos lugares comuns herdados da Antiguidade , “o autor humanista utilizava mesmo estilemas, reminiscências verbais e, numa espécie de sincretismo, com um hábil trabalho de intarsio, que era entalhe e transformação, chegava a novas iuncturae, reveladoras da sua bagagem cultural e da sua originalidade.” (“A literatura de sentenças no humanismo português: res et verba”, in Humanismo Português na época dos descobrimento… cit., 1993, p. 396). 11 MARCIANO VIDAL, Moral del amor y de la sexualidad, Salamanca, 1972, p. 108. No âmbito de uma moral cristã, o estudioso distingue o papel da Universidade de Salamanca na investigação e na responsabilidade cristã e humana demonstradas perante preocupações que “caminaron, sobre todo, por la línea de la moral internacional, y por la línea dela moral económico-social”.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

21

Neste movimento, na verdade, se atendermos à devoção e aplicação dedicadas aos

estudos clássicos, apelava-se à unidade, integrando, assim, o que é múltiplo, sem que se

caísse na uniformidade. É nesta linha de pensamento que poderíamos socorrer-nos da

afirmação: “A sabedoria lapidar da Antiguidade era ainda vox universalis para o homem

actual “desse tempo”12.

Os valores humanos universais inspirados nos cânones clássicos e o despertar das

artes/cultura para a vida pressupunham uma visão renovada e renascida do homem. Este

surgia revalorizado à semelhança do homem greco-latino, sendo visto na sua totalidade, id

est, na sua formação/educação e na (inter)acção, onde se associavam componentes

cognitivas, afectivas, espirituais e sociais. A arte renascentista, na sua múltipla criação,

testemunhava de forma adequada esta afirmação. Por outro lado, a escola da vida, da

ousada experiência in loco, conferia um traço distintivo a este novo homem de acção num

mundo a descobrir, em que invenção, mobilidade, comunicação, encontro com outros

povos, culturas e conhecimento científico experimental integravam o roteiro.

O privilégio de casta e de sangue do homem medieval, remetido para uma escala

hierárquica de dependência feudal, e a cultura eclesiástica de pendor ético teocêntrico

pretendiam dar lugar a verdades aplicáveis a toda a humanidade. A nova concepção

unitária do homem culto, que cultivava o espírito em direcção à excelente educação, à

perfeição - engenho, bons costumes, virtudes da alma e do corpo, boas acções -, advinha da

influência humanística, sediada em grande parte nos exempla, nos paradigmas dos

clássicos da Antiguidade greco-latina13. No entanto, devemos pressupor a interligação com

a ética cristã “numa interdependência e complementaridade entre humanitas e pietas, a que

os autores da Patrística deram impulso”14.

12 Ibid., p. 404. 13 Julgamos que vêm a propósito as palavras sábias do humanista do séc. XX, ANTÓNIO FREIRE ao especificar a concepção do homem grego “Em torno do homem gravitam, de facto, todos os problemas ético-literários que agitaram o espírito helénico. A essa exagerada tendência antropolátrica se deve atribuir a divinização do homem e a antropomorfização da divindade.” (Teatro Grego, Braga, 1985, p. 11).

Os provérbios marcavam também nesta época a ligação à sabedoria clássica utilizados como recurso pedagógico quer no ensino do Latim para “falar polidamente, com elegância e beleza”, quer na transmissão de uma “disciplina moral”. É esta a intenção manifestada por Cataldo Parísio Sículo, mestre siciliano convidado por D. João II em 1485 para formar o filho bastardo D. Jorge. Assim, AMÉRICO DA COSTA RAMALHO e AUGUSTA FERNANDA OLIVEIRA apresentam a carta dirigida a D. Afonso onde se evidencia “uma espécie de Estilística Latina que Cataldo teria escrito e oferecido ao príncipe, juntamente com os provérbios”. Recurso este também muito usado por Erasmo de Roterdão, na obra Adagia. Os provérbios do humanista siciliano serão usados ao longo deste trabalho, sempre que seja oportuno, no sentido de reforçar e valorizar o discurso que se pretende o mais fidedigno à época renascentista. Julgamos, desde já, oportuno a citação do seguinte provérbio. “No homem, a nobreza de nascimento deve desejar-se menos que a virtude” – Genus in homine minus quaerendum est quam uirtus (“Cataldo Parísio Sículo, Provérbios”, Agora, 7 (2005), respectivamente, pp. 169, 176, 177). 14 O estudo dos Padres da Igreja foi impulsionado por Erasmo de Roterdão ao lado dos autores não cristãos. A humanitas da cultura clássica e a pietas da ética cristã conjugavam-se. O mais famoso humanista europeu, natural de Roterdão, Desidério Erasmo, com base na pesquisa filológica dos textos, impregnada de uma philosophia Christi (designação da

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

22

A par da operacionalidade do homo faber, urbanus, facetus, com talento e trabalho

(studium), pretendia-se cultivar o intelecto e, consequentemente, a realização plena da

personalidade (virtus)15, evidenciando, deste modo, a espiritualidade do homo religiosus16.

A urgência era atingir o desenvolvimento completo e perfeito do homem, recorrendo, mais

que à instrução, à educação - processo de comunicação, formação e reflexo de todo o

ambiente circunstancial da época. Contudo, era o homem douto de famílias nobres, o

governante, o príncipe, o principal “convidado” à formação, cabendo à corte, às

universidades e outras instituições educativas, como os colégios ligados às universidades

ou criados por Ordens religiosas como a dos Jesuítas, as honras da casa, aspecto que será

focado com mais precisão, aquando da abordagem do panorama português.

Neste período, correspondente a uma Europa Moderna (sécs. XVI-XVIII), o sistema

educativo dos activos Jesuítas - “fundadores e mestres de colégios, mas também enquanto

apóstolos, pregadores, missionários, humanistas, pedagogos, poetas, matemáticos,

cientistas, físicos, astrólogos e arquitectos” - deu provas na formação do que viriam a ser

«’grandes mestres da Europa’: os poetas e dramaturgos Pedro Calderón de la Barca,

Torquato Tasso, Molière (chamado Jean-Baptiste Poquelin), Carlos Goldoni, Pedro

Corneille, os oradores sacros Bossuet e António Vieira, jesuíta este último; investigadores

e sábios como o Galileo Galilei, Jorge Luís Leclerc de Buffon; o filósofo racionalista

Voltaire; dignatários da Igreja como o Papa Bento XIV, conhecido pela sua erudição

superior (…)”17.

Na Europa pluralista do séc. XVI, em que as instituições tradicionais e os seus

programas, ainda filiados na escolástica da Idade Média, mostravam a sua inadaptação, a

expansão comercial associada às viagens marítimas, o eclodir do desenvolvimento

doutrina teológica erasmiana), tinha o intuito de extrair uma lição de tolerância e uma renovação religiosa advinda da sabedoria cristã das fontes. Podemos falar de uma humanitas espiritual. Para os humanistas a palavra evangélica urgia como condição sine qua non para a existência de uma paz verdadeira entre os cidadãos do mundo. Sobre este assunto Cf. JOSÉ DE PINA MARTINS, Humanismo e Erasmismo na Cultura Portuguesa do século XVI, Paris, 1973. 15 Convém atender ao termo virtus, que se liga, no povo romano, a um dos valores morais. Era a qualidade do vir (homem), constituída por um conjunto de virtudes, destacando-se a coragem que era posta à prova constantemente pelo guerreiro. 16 O estudo e visão deste homem religioso têm ocupado muitas Ciências Humanas, passando a transcrever a concepção demonstrada por MIRCEA ELÍADE que entende ser “aquele para quem existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo mas que se manifesta nele e, ao mesmo tempo, o santifica e o torna real”. O ‘homo religiosus’ é-o porque vive uma experiência religiosa na qual toma conhecimento do sagrado que se manifesta como algo totalmente diferente do profano”. (Apud PEDRO R. SANTIDRIÁN, Dicionário Básico das Religiões, trad. Maria Amélia Pedrosa, rev. Padre José Rodrigues Ferreira, Coimbra, 1995, p. 238). 17 MARGARIDA MIRANDA, “Humanismo Jesuítico e identidade da Europa – Uma Comunidade Pedagógica Europeia”, Humanitas, 53 (2001), respectivamente, pp. 93 e 108-109. Indicamos para consulta a abordagem feita por FRANCISCO RODRIGUES acerca dos discípulos que tiveram formação nos Colégios da Companhia em Portugal e se distinguiram em diversas carreiras (Cf. Formação Intelectual do Jesuíta, Porto, 1917, pp. 423-452).

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

23

industrial, o aumento de população nos centros urbanos (factor da aparição de novos

ofícios e tecnologias) e a ideia de uma vida nova para o homem possibilitavam a mudança

do pensamento europeu, daí as ameaças ao “imperium Christianum”. O fascínio do

humanismo renascentista face à redescoberta das capacidades humanas demonstradas pelo

entusiasmo dos antigos clássicos, enfraquecidas as questões de mensagem cristã e de fé,

invadiram a própria Instituição da Igreja, desafiando-a e exigindo-lhe mudanças. Em

Roma, os papas eram exemplo de políticos do seu tempo, falando-se em corrupção, com

especial incidência em países como a Alemanha, Suíça, França e Inglaterra.

Neste imperium, Martinho Lutero18, em 1517, com a Reforma Protestante, vem

desintegrar a Cristandade católica, acentuando divergências doutrinárias e questionando a

solidez da civilização cristã europeia, dividida por focos nacionalistas de emancipação

religiosa. A crise religiosa emergia, a reacção contestatária e de preservação da unidade

surgia com o movimento da Contra-Reforma ou Reforma Católica, revelando centralismo,

autoritarismo, dogmatismo e puritanismo de que os índices expurgatórios eram um dos

espelhos. Podemos salientar, a par do cariz militar de luta e defesa contra o movimento da

Reforma Protestante, o investimento operado no regresso a normas de uma ortodoxia cristã

tradicional (teísmo medieval), para que dentro e fora da Igreja se eliminassem os maus

costumes, o relativismo, o oportunismo e assim, pela disciplina, tomassem a dianteira a

obediência, a piedade e a caridade 19.

18 A seguinte citação “Erasmo pôs os ovos e Lutero fez sair os pintos. Conceda-nos Deus que os pintos sufoquem e os ovos se partam!” abre caminho para a controversa questão do erasmismo e luterismo, no âmbito da Reforma (Apud AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, “Humanismo (Depois de 1537)”, História da Universidade em Portugal, tomo I, cap V, p. 706 ).

Lutero (1483-1546), atento às inquietudes religiosas e espirituais e indignado face ao comércio das indulgências, na Alemanha, fala das escolas cristãs sob a tutela política, acreditando que a conjugação de um saber bíblico e pragmático seria “a espada do espírito”, podendo com cidadãos instruídos e cultos manter a lei, manter a paz e “não com punhos e armas, mas somente com cabeças e livros”. Todavia está associada esta Reforma protestante a actos violentos que aqui não desenvolveremos. Convém ligar a este movimento a moral de rigor e até burguesa protagonizada por Calvino (1509-1564), em Genebra. As igrejas luteranas evangélicas apontam como única fonte de fé (dom de Deus) a Bíblia, que cada um lerá e interpretará (daí a necessidade da sua tradução para alemão, o que foi incitado por Lutero, originando a alfabetização). A fé aparece individual, directa, sendo Jesus Cristo libertador o único mediador entre o homem pecador e Deus. Desta feita, tanto Lutero como Calvino, seguem a concepção pessimista da existência humana na terra (defendida por Santo Agostinho), acreditando que o homem nunca conseguirá a salvação numa relação de empenho e colaboração com o seu semelhante. 19 Em Portugal, o Cardeal infante D. Henrique, regente na menoridade de D. Sebastião entre 1563-1564, e o arcebispo de Braga Frei Bartolomeu dos Mártires comandaram a empresa de divulgação e aceitação dos decretos tridentinos. Essa legislação religiosa foi dada a conhecer aos cristãos através de Constituições sinodais referentes às últimas décadas do séc. XVI e do séc. XVII, bem como por meio “da ordem de incorporação de algumas determinações na legislação civil, o que conduziu a alguns choques entre os poderes jurisdicionais da Igreja e do poder secular”. Contudo, foram essas duas figuras ilustres que “ordenaram traduções e edições dos Decretos tridentinos –quatro edições diferentes em 1654, uma das quais em latim e três em português, em Braga, em Coimbra e em Lisboa”. A par do controlo inquisitorial e da legislação canónica, pretendia-se, com o recurso a diversos meios de ensino da doutrina cristã - ajustados a diferentes necessidades e gostos - “atingir todos os cristãos, quer a nível da sua frequência dos sacramentos e práticas devocionais, quer a nível do comportamento moral e social”. A formação dos “pastores de almas” e dos leigos recorria aos catecismo, , à prática da confissão e ao exame de consciência que encaminhariam para uma religião vivida por cada pessoa que a manifestava de forma externa e interna. Perante a ignorância cristã latente, a “reformação cristã” alicerçava-se na

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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O Concílio de Trento (1545- 1563) veio reforçar e confirmar essa ortodoxia da Igreja

Católica, através dos seus dogmas, fazendo a apologia da ordem, disciplina e piedade, bem

como da urgência de padres e bispos bem instruídos e bem formados em algumas áreas e

apologistas da castidade. O surgimento de novas Ordens religiosas, as “milícias da Igreja”,

imprimiam uma nova energia espiritual ao coração da Igreja católica. A Companhia de

Jesus, tendo como mentor S. Inácio de Loiola (1491-1556), aparece oficialmente em 1534,

com os seus intelectuais humanistas, homens cum virtute et litteris, votados à castidade,

obediência ao Papa (vicário de Cristo, ou seja representante de Cristo na terra) e à pobreza,

a fim de reconquistar as almas, direccionando a sua acção para actividades missionárias e,

mais tarde, o ensino.

O ascetismo e rigor de Loiola, com o recurso aos colégios, alimentava a concepção

tridentina da vida e do mundo, no intuito missionário de expandir, pelo cultivo da palavra,

a fé e reprimir os avanços da Reforma de Lutero. Urgia uma educação com o cunho da

época, onde a imposição de inflexíveis e precisos preceitos, que evidenciavam o valor das

virtudes cristãs e católicas, contribuísse para a disciplina e o adestramento de impulsos e

paixões do domínio humano.

Datam do período entre 1565 e 1599 as sucessivas tentativas da Companhia de Jesus na formulação de uma ordem de estudos partilhada por todos os seus colégios, resultando assim a redacção de várias versões graduais do documento que teria a sua versão definitiva em 1599. Esta iria vigorar até à supressão da Ordem em 1773, sofrendo adaptações apenas em 1832. A nova versão daria primazia curricular às ciências positivas, Matemática, Física,

educação para maior disciplina de comportamentos, atitudes, gestos e gostos e para progressivo afastamento de heresia, desvios e perigos que terão de ser corrigidos. Sabe-se que o esforço e rigor da legislação sinodal na vigilância de abusos no que toca a textos dramáticos - assunto fulcral neste trabalho - e sua encenação, na prática ficavam aquém. Passamos a mostrar algumas dessas empenhadas intenções “as de Évora, de 1565 ordenam aos clérigos que não encarnem jograis, medidas sancionadas já pelo sínodo brácaro de 1281, nem ‘usem de chocarreiras, fazendo de diabretes ou trazendo máscaras ou barbas, ou fazendo-se mouros, vestindo-se em vestiduras desonestas’ (…) O prelado de Évora, D. João de Mello, invoca, nas constituições de 1565, o deliberado em Trento para que ‘se não fação em ditas Igrejas, ou ermidas, representações (ainda que sejão da Paixão de Nosso Senhor Jesus Christo, ou da Ressurreição, ou Nascença) (…). “As proibições da legislação sinodal portuguesa, até ao limiar de Quinhentos, visando bailos, momos e representações indecorosos, dentro do recinto sagrado e durante ou a pretexto de ofícios litúrgicos e actos religiosos, provam a existência de encenações dramáticas pré-vicentinas na esteira do que de análogo se fazia no espaço ibérico e europeu, mas onde o profano se imiscuíra. Daí as sanções canónicas”.

Para melhor esclarecimento e mais abrangente no tocante a este assunto, relacionado especificamente com actuações teatrais, indicamos os autores e as obras das quais retiramos estas informações: MARIA DE LURDES CORREIA FERNANDES, “Da Reforma da Igreja à reforma dos cristãos: A Divulgação dos Decretos Tridentinos: Entre as leis e o Controlo das práticas”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal – Humanismo e Reformas, vol. II, Mem Martins, 2000, p. 25. Idem, “Da Reforma da Igreja à reforma dos cristãos: reformas, pastoral e espiritualidade”-“os caminhos cruzados da espiritualidade e da pastoral”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal – Humanismo e Reformas , Vol. II, Mem Martins, 2000, pp. 27, 28, 29. E ainda, JOÃO FRANCISCO MARQUES que, entre outras coisas, escreve que “o índex português de 1581 mandasse vigiar as peças teatrais e fosse severo para com os autores na sátira aos clérigos e outras pessoas da Igreja” (“As formas e os sentidos - O Teatro Religioso e Litúrgico…” cit., pp. 450, 451). E ainda, CLAUDE HENRI FRÈCHES, Le Théatre Neo-latin … cit., pp. 61-62).

Vide infra, pp.129-133.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

25

Química - Ratio atque Instituto studiorum societatis iesu20. O Ensino da palavra seria a arma a usar e para activar numa sociedade de transformações sociais, associadas à desconfiança religiosa vigente21. Os campos de batalha seriam os púlpitos das igrejas e as cátedras das escolas, onde, ao sabor cultural da época, os valores do Humanismo clássico e cristão seriam traços distintivos e vinculativos a seguir no paradigma educativo.

O Humanismo, “movimento europeu de descoberta e reabilitação” indissociável do Renascimento Italiano do Quattrocento22, emergia como fenómeno cultural tardio em Portugal. Associa-se esta chegada à do humanista Cataldo Parísio Sículo, em 1485, o qual teria a incumbência de educar o filho bastardo de D. João II, D. Jorge, tendo nascido da sua ligação com D. Ana de Mendonça. O humanista e arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa, a quem é atribuída a fundação do Colégio de S. Paulo, no reinado de D. Manuel I, tinha sido seu discípulo23. O Humanismo em português foi “filho do humanismo italiano na inspiração e na emulação”24. A pouca repercussão da Reforma protestante no nosso país, bem como no país vizinho, deveu-se, em grande parte, à acção do Santo Ofício.

Com o desaparecimento do jovem Rei D. Sebastião, nos areais de Alcácer Quibir, segundo José de Pina Martins:

“soçobrou o humanismo português do século XVI e a sua diplomacia, dando lugar a um sentido

hispânico, durante 60 anos, e depois, a uma hesitação permanente entre a ligação francesa e a Britânica. Aquele humanismo português só teria nova expressão, por espaço de 40 anos, na primeira metade do século XVIII; para se sumir depois, tristemente, no mimetismo iluminista, completamente demolidor do sentido português e cristão da vida”25.

20 Cf. MARGARIDA MIRANDA, “Uma ´Paideia` humanística: a importância dos estudos literários na pedagogia jesuítica do séc. XVI”, Humanitas, 48 (1996) 235-238.

O segundo capítulo desta primeira parte proporcinará um conhecimento mais específico sobre o assunto. 21 Foi o Papa Paulo III que convocou o concílio em 1544, a fim de “restabelecer a paz e a unidade do povo cristão”. Efectivamente data de 1545 o primeiro encontro, seguido, com interrupções por outros que viriam a terminar, passados 18 anos, em 1563.

PEDRO MAIA, referindo-se à importância dada à formação humanística no Ratio, diz que “quem se exprime, exercita a sua actividade mental, imagina, pensa, julga, raciocina, concatena ideias. […] A linguagem é, pois, o instrumento natural de formação humana. (Ratio Studiorum … cit., pp. 25, 26). 22 Cf. LUÍS DE SOUSA REBELO, “Humanismo”, in Dicionário de Literatura, dirigido por Jacinto Prado Coelho, vol. II, Porto, 1992, pp. 431-434. Fala-se de um primeiro Humanismo – Humanismo Florentino de Quattrocento, denunciando, desde já, a impossibilidade de separar estas “faces da mesma moeda”. Situamos aqui o primeiro humanista, Petrarca, sem obnubilarmos o grande labor de Lorenzo Valla com o intuito de afastar a barbárie da idade Média. Renascimento de Quattrocento. há quem situe o seu início no séc. XIII e outros a partir do séc. XIV, em Itália. Nos finais do séc. XV e XVI, em França, resistindo aqui até ao séc. XVIII. 23 Esta data é apontada por AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, Estudos sobre o Séc. XVI, 1980, p. 1. Todavia, o mesmo adverte que “Durante anos foi corrente em Portugal a opinião de que o Humanismo era entre nós um fenómeno cultural tardio, em relação aos outros países do ocidente europeu. Datava-se geralmente o seu início da transferência da Universidade para Coimbra, em 1537,havendo mesmo quem lhe atribuísse começo mais serôdio, a saber, o ano da fundação do Colégio das artes em Coimbra, 1548” (“Humanismo (Depois de 1537)…” cit., p. 695).

A propósito do colégio de S. Paulo, em Braga, convém referir o nome de Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga e participante no Concílio de Trento, na medida em que foi ele que entregou esse mesmo colégio à orientação dos Jesuítas em 1560, revelando as suas preocupações de instrução e formação do Clero. Cf. AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES, Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas nos Primeiros Ciclos de estudos pós-elementares no séc. XVI em Portugal, Porto, 2002, p.326. 24 LUÍS DE SOUSA REBELO, “Humanismo…” cit., p. 438. 25 JOSÉ DE PINA MARTINS, O Humanismo Português 1500-1600: Primeiro Simpósio Nacional 21-25 de Outubro de 1985. Lisboa, 1988, p. 487.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

26

2. HUMANISMO CRISTÃO / MODELO ANTROPOLÓGICO INACIANO

Temos vindo a falar de Humanismo no âmbito da Renascença, onde o homem, que

devia conectar-se com os studia humanitatis, era merecedor de toda a atenção, devido à

redescoberta do seu valor e das suas possibilidades. No entanto, teremos de fazer distinção

entre o humanismo renascentista de pendor clássico/pagão e o humanismo cristão26, que

tentava a síntese entre valores da Antiguidade e o Cristianismo (lembremo-nos de

humanistas como Lorenzo Valla, Vittorino de Feltre, Luís Vives27 e o ilustre Erasmo). Se,

numa perspectiva pagã de herança grega, o Homem é o princípio e o fim, em virtude quer

da sua inquietude, quer do seu percurso rumo à realização, perfeição e até divinização,

serão inevitáveis um certo individualismo e subjectivismo. Surgem oportunas as palavras

sábias de um grande humanista dos nossos tempos, António Freire:

“(…) Os gregos não eram nem pessimistas nem optimistas (…) eram humanos. Como homens,

puramente homens, desferiram os voos mais altaneiros a que pode guindar-se a contingência humana;

como homens, também despenharam-se nos abismos mais fundos da miséria humana. Faltou-lhes o

divino, o sobrenatural, para realizarem, num humanismo integral, o magnífico potencial da sua natureza

tão ricamente dotada”28.

Numa visão cristã e no âmbito dos princípios da Companhia de Jesus (na organização

escolar), em geral, e do seu fundador, em particular, o Humanismo era patrocinado pelos

grandes autores da Antiguidade e suas obras, a par dos do Evangelho, para o cultivo do

intelecto/entendimento e da sensibilidade estética, bem como para a formação da conduta

moral, orientando a vontade e o sentimento. Procurava-se a pessoa integral/total que

poderia, assim, perceber a sua relação fraternal com o Outro e filial com Deus (Alfa e

Omega- Princípio e Fim), apresentado como finalidade a salvação da alma. Para isso, era

necessário seguir o princípio Ad Maiorem Dei Gloriam, expressão do Amor e Serviço a

Deus. Jesus Cristo, o pregador e sacerdote da palavra de amor de Deus, é modelo pela sua

26 Cf. MARGARIDA MIRANDA afirma que “Face aos cismas da Contra Reforma, os Jesuítas haviam oferecido à Igreja de Roma a criação de um Humanismo Cristão paralelo a um outro Humanismo Cristão já criado na Europa do Norte por Erasmo e pelos Irmãos da Vida comum” (“Humanismo Jesuítico e Entidade da Europa…” cit., p. 100).

Sobre este assunto, vide supra, p. 20, nota 10. 27 Vide infra, p. 30, nota 38. 28 ANTÓNIO FREIRE, Teatro Grego, Braga, 1985, p. 11.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

27

vida e paixão, sendo o papa o seu representante. Mediante este paradigma ideal de valores,

cada pessoa, com o auxílio educativo da igreja católica, poderia

“Ser grande no mínimo, fazer o melhor possível no mais banal, no quotidiano, no rotineiro (…)

tarefa que exige perseverança, coragem, capacidade de sofrimento e, sobretudo, muita esperança e muita

fé no que se faz e acredita “29.

Podemos ver a vertente humana e cristã deste humanismo, que José Manuel Lopes

considera inaciano, fundamentando-o nas seguintes características: o aspecto teológico –

homem de acção, colaborador do programa evangélico de Cristo (a perspectiva filosófica

abstracta estava mais presente no humanismo cristão renascentista); a conciliação do

estudo dos studia humanitatis com os princípios da doutrina cristã (litterae et virtus); e,

finalmente, a posição central do educando no processo pedagógico (pressupõe

conhecimento da psicologia humana e, consequentemente, do método a adoptar e

adaptar)30.

Mediante esta exposição compreendemos a abrangência de denominações relacionadas

com este humanismo cristão inaciano: “Humanismo cristificado/cristocêntrico e

evangelizador, Humanismo positivo”. Também, entenderemos, aquando da abordagem do

item seguinte e do cap. II, a dinâmica da pedagogia impulsionada por Inácio de Loiola e

repercutida nos documentos como as Constituições (essencialmente a IV Parte) e o Ratio

Studiorum (manual do Fazer que apresenta a sua versão final em 1599 – P. Aquaviva),

ainda que fossem os Exercícios Espirituais e a pessoa que os escreveu, devido à conduta

espiritual a implementar, as referências imprescindíveis desta pedagogia31.

A primeira obra escrita por Inácio de Loiola aos 30 anos de idade, a qual como marco

na sua vida o direccionará para a espiritualidade e, consequentemente, conversão

eclesiástica, sobrepõe-se a uma missão meramente anti-protestante32. É nesta linha de

29JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto Educativo da Companhia de Jesus – Dos Exercícios Espirituais aos nossos dias, Braga, 2002. p. 150. 30 Cf. Idem, “Pedagogia inaciana – II”, Brotéria, 157 (2000) 353-364. 31 No capítulo VIII da IV Parte da Constituições, no nº 408, diz-se que os Escolásticos da Companhia “ habituar-se-ão a dar Exercícios Espirituais aos outros, depois de ter feito experiência deles em si mesmo. Deve cada um saber explicá-los e servir-se desta arma, pois Deus Nosso Senhor lhe dá visivelmente tão grande eficácia para o seu serviço.” (Cf. INÁCIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia de Jesus anotadas pela Congregação 34 e Notas Complementares aprovadas pela mesma Congregação, Braga, 1997, p. 113). 32 Muitas seriam as obras que poderiam ser indicadas para o conhecimento biográfico de Inácio de Loiola, no entanto, atendendo à investigação e leituras efectuadas, sugerimos duas obras que paralelamente a factos históricos apresentam uma visão ligada à psicologia, a primeira, e outra à literatura, a segunda. WILLIAM W. MEISSNER, S.J., Ignace de Loyola – La psychologie d’ un saint, trad. Edouard Boné, S.J., Bruxelles, 2001; e a novela de PEDRO MIGUEL LAMET, O Cavaleiro das Duas Bandeiras, Inácio de Loyola, Coimbra, 2000. No prefácio da primeira, é-nos revelada a intenção de sondar o

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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pensamento que podemos falar do exemplo do peregrino pedagogo que começa por

registar as primeiras regras para um ensino e aprendizagem, em Manresa, quando inicia a

escrita dos Exercícios Espirituais (este livrinho “Para se Vencer a Si Mesmo e Ordenar a

Sua Vida” será aprovado em Salamanca e, em Roma, assumir a forma que tem nos nossos

dias como fundamento espiritual da Ordem33). Nos 370 números ou parágrafos, estão

registados princípios universais e normas para o director do exercício que, sub signo da

adaptabilidade, serão catapultados, em simbiose com a acção (o saber de experiência feito),

para os tais documentos referidos anteriormente, servindo de pilares à primeira associação

de ensino organizado.34 A imagem de peregrino cristão dada por Inácio de Loiola, à

semelhança da viagem interior do homo viator medieval, atrairá e liderará os seus

seguidores incondicionais. Será esta viragem imprimida à sua vida, outrora desregrada e

dominada pelos prazeres, ferido em Pamplona, em 1521, empreende durante o período de

convalescença, leituras como Vita Christi e Flos Sanctorum - que o fará rumar ao encontro

da vontade de Deus. Esta opção terá como requisitos o desprendimento das feições

desordenadas, para que se possa acreditar no amor de puro serviço, direcção contrária a um

amor, querer e interesses exclusivamente pessoais/próprios. A espiritualidade inaciana

“puede sintetizarse en una frase que se halla en el último párrafo de los Ejercicios, en la

Regla 18 para sentir en la Iglesia; ‘sobre todo se há de estimar el MUCHO SERVIR A

DIOS N. S. POR PURO AMOR’35.

espírito e o coração de uma das figuras mais marcantes do Cristianismo ocidental. Na perspectiva do psicanalista, interessam as motivações e comportamentos humanos – “Il fait sien l’adage de Térence: Nil humani a me alienum puto. La personnalité complexe de ce grand saint exerce à ce propôs une irrésistible fascination.” (Ibid., p. 5). Na obra de ficção, não se questiona o rigor histórico que, na voz feminina do narrador, rainha D. Catarina, assume um embalo ficcional e, por isso, de maior envolvência e imaginação, “com vista da imaginação”, à maneira inaciana. Conta-se : “Revelava-se de novo a personalidade e o forte carácter de Iñigo e a sua forma inteligente e não submissa de obedecer, bem distante dessa ‘obediência cega’ que aliás se atribui sem matizes como estrita forma de governo dos jesuítas. Não queria limitar-se a ensinar um catálogo de verdades, queria ajudar seres humanos concretos, acompanhá-los no seu caminho ser um mestre espiritual, não um mero professor ou catequista.” (O Cavaleiro das Duas Bandeiras…cit., p.283). 33 Destacamos o papel de relevo de Bartolomeu Ferrão que exerceu o Cargo de Secretário da Companhia, entre 1545 a 1547, o qual copiou os Exercícios Espirituais. Polanco será o novo secretário. 34 Cf. MANUEL PEREIRA GOMES S.J., Sto Inácio e a Fundação de Colégios, Instituto Nun’Alvares, pp. 33-39. Teremos de tripartir essa enumeração, surgindo 239 números espalhados por quatro semanas de ascese, as quais são antecedidas de 20 anotações e seguidas por determinadas sugestões. Nesse caminho ascético, o exercitante, auxiliado pelo director espiritual, repugnará o pecado na primeira semana (67 números); entrará num clima propício à decisão e eleição próximas de Cristo (99 números); há-de sentir Cristo como modelo a seguir (27 números); identificar-se-á com Cristo “saboreando internamente” a sua ressureição (43 números).

“Deles surge e dimana toda a espiritualidade e consequente forma de conceber e viver a vida” (JOSÉ MARTINS MANUEL LOPES, Projecto Educativo… cit., p. 50). 35 CARLOS PALMÉS DE GENOVER S.J., La obediência religiosa ignaciana, Barcelona, 1963, p. 35.

“Su caridad, es caridad de servicio” (Ibid. p. 36).

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

29

3. PREOCUPAÇÃO PEDAGÓGICA HUMANISTA: A FORMAÇÃO INTEGRAL

3.1. ARTE E PODER DA PALAVRA

Apesar dos conflitos entre potências políticas e das divergências religiosas, imperava

um sentimento de unidade na Europa humanista, se nos fixarmos na procura de uma nova

pedagogia arreigada numa orientação humanista. Não podemos obnubilar quer a validade

do ideal platónico do governante sábio, quer o conceito de uma sociedade cristã europeia

em que o corpo militante (Erasmo, Lutero, Calvino, Inácio de Loiola…) tinha uma função

simultaneamente educativa e defensiva. Pretendia-se, com o saber aliado ao poder político

e religioso, cuidar e salvar as almas com a espada, uns, e com a pena, outros, que

pertenciam a “quartéis” como as Universidades e os Colégios. Esta missão de aquisição de

saber concretizava-se na realização vocacional do Homem em unir-se a Deus, não

colocando de parte o ideal de virtude, típico do conceito clássico da educação, o qual na

sua origem carecia do pendor pragmático tão requisitado pelas exigências temporais e

doutrinais da realidade da época.

Numa preocupação de adaptação aos novos tempos, aos interesses dos eruditos

pedagogos da Europa humanista convinha um modelo de escola designado como ludus

literarius - escola e estudo como actividade lúdica e agradável, em que o uso de jogos e a

diminuição dos castigos corporais confluíam para a honra e dignidade humana. O

protagonismo cabia a estes, homens que, devido à sua sapientia et eloquentia36, eram os

mestres impulsionadores de uma pedagogia humanística de retorno à cultura greco-latina,

pois:

“São os mestres do momento que nelas [Universidades e outras Instituições do Renascimento]

professam, os livros que se meditam, lêem ou explicam, os manuais, as obras didácticas e os métodos

utilizados, os autores seguidos, que se impõem aos padrões de sensibilidade do tempo como auctoritas,

que são os principais instrumentos de renovação. Isto sem esquecer a ‘mãe experiência’[…]”37.

36 Cf. LUÍS DE SOUSA REBELO, “Humanismo”, in Dicionário de Literatura, dirigido por Jacinto Prado Coelho, Porto, 1992, pp. 431-442. 37 NAIR NAZARÉ SOARES, “Humanismo e pedagogia…”, Humanitas, 47-2 (1995) 812.

DOMINGOS MAURÍCIO GOMES DOS SANTOS afirma que “o humanismo no século XVI, é um estilo de vida e o seu espelho mais fiel, nos que o cultivam, a produção literária destes.” (“Buchanan e o ambiente Coimbrão do século XVI”, Humanitas, 46 (1994) 273.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

30

O saber, pressupondo sempre o exercício da memória, deveria direccionar-se para o

bem comum, sendo, à maneira de Erasmo, um instrumento de paz. À educação

humanizadora do homem, herdeira das normas classicistas do Cinquecento, estava

subjacente uma moral religiosa mais ou menos optimista, mas sempre formal e disciplinar,

numa sociedade com códigos de civilidade (como defendia Luís Vives e Erasmo)38. O

ideal de homem perfeito do Renascimento, homem de vida virtuosa e de cultura inserido

no universo., estava filiado na Paideia grega, que Cícero adaptara ao seu conceito de

humanitas e onde Quintiliano se inspirara para a expressar, aplicada à realidade romana, no

seu tratado de pedagogia, Institutio Oratoria. Objectiva-se, aqui, a última e mais sublime

das perfeições na formação do orador, “Vir bonus dicendi peritus”39. Daí a necessidade de

38Não podemos deixar de falar nas novas escolas surgidas em Itália e geridas por humanistas, salientando a “Casa de Jogos”(Giocosa), em Mântua, dirigida por Vittorino de Feltre – seguidor do princípio lúdico dos clássicos, pondo em evidência a relação de afecto e responsabilidade entre professor/aluno, para um bem estar físico e moral). O empenho, em Espanha, de Luís Vives. A fundação de internatos, com uma preocupação de formação religiosa e moral,“Os Irmãos e Irmãs da Vida Comum”, iniciando este movimento por Geert Groot (1340-1384), nos Países Baixos, sob a égide do movimento espiritual de renovação espiritual interior Devotio Moderna. Mais tarde, também se fundaram escolas “Os Irmãos da Vida Comum” com uma pedagogia que irá influenciar o Colégio de Montaigu, servindo de base ao modus parisiensis adoptado na Universidade de Paris, que Inácio de Loiola frequentará com a idade já adulto. (Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto Educativo … cit. p. 85).

Voltamos a recorrer à obra já atrás citada de Pedro Lamet, resgatando um momento de conversa entre D. João III e a sua esposa Catarina, em que ele diz “- A propósito, Catarina, não vos parece que é hoje mais necessário do que nunca que os escritores e intelectuais prestem serviços à Coroa? Considerai, por exemplo, o ideal da monarquia católica, exposto por Erasmo na sua Institutio principis christiani (…) Curiosamente encontrei hoje, ao arrumar uns papéis, esta carta que Luís Vives me escreveu antes dos últimos acontecimentos em Roma. Nela me falava da convivência imprescindível entre príncipes e estudiosos (…)’ não são duas espécies de homens que vivam desconhecidos e independentes, mas, pelo contrário, impõe-se que sejam unidos por uma estreita solidariedade; que uns sirvam de apoio a outros e se prestem ajuda recíproca.’ Parece-me iludido este Vives, se está à espera de homens de armas ou políticos ambiciosos escutem os humanistas.” Cf. PEDRO MIGUEL LAMET, O Cavaleiro das Duas Bandeiras…cit, p.294. 39 No período do Renascimento, Cícero era o “pai do Humanismo”, visto ser modelo incontestável para os humanistas que pretendiam tornar-se mais humanos recorrendo às bonae litterae. Quintiliano, juntamente com o Arpinante, surgia no Currículo das Letras Humanas preconizado no Ratio Studiorum, método pedagógico dos Jesuítas. Na oratória, salientamos duas obras ciceronianas, o tratado De Oratore, onde refere qualidades e conhecimentos indispensáveis para a formação do orador ideal - orator doctus, e o seu discurso de defesa de direito de cidadania romana do velho poeta grego, Árquias – Pro Archia. Neste, dos 32 pontos, até ao oitavo, Árquias é defendido com base em dois argumentos, por um lado, provando que já era cidadão romano, devido à sua inscrição em Heracleia; por outro, expõem-se magníficos serviços prestados a Roma como artista e professor. Nos restantes 24 pontos, Cícero fala-nos das Artes Liberales ou Humaniores, isto é, das Humanidades, mais concretamente do curriculum scholae e da poesia como promotores essenciais e principais da humanitas. Esta “magna charta do humanismo” personificará a imagem da tradição de uma eloquentia et pietas que Quintiliano teorizará pedagogicamente na sua obra Institutio Oratio, através da expressão “Vir bonus, dicendi peritus”. O orador deveria brilhar na ars dicendi, sendo dicendi peritus, e também nas suas qualidades morais, vir bonus, como exemplo das virtudes morais e cívicas.

Neste ideal educativo de conciliar virtudes tradicionais romanas e do humanismo universal grego, já o Círculo dos Cipiões se tinha destacado. Este grupo assim designado por ser impulsionado pela família cujo cognome, Cipiões, demarcará política, militar e culturalmente o período correspondente às Guerras Púnicas (de 264 a. C. até 146 a.C.). Os encontros demarcavam afinidades intelectuais de homens como Lucílio, criador da sátira, Terêncio, comediógrafo, Panécio de Rodes, filósofo estóico que “contribuiu para formar as estruturas morais do império romano”, servindo o espólio de guerra trazido da Macedónia por Paulo Emílio - biblioteca do palácio de Pela – como recurso precioso. Pretendiam realizar a “convergência, tão frutuosa, da paideia helénica com a humanitas latina”. Também Cornélia, membro desta família e mãe dos Gracos, ficaria na história romana como exemplo de mãe preocupada com a melhor educação dos seus filhos (maximum matronis ornamentum esse liberos bene institutos merito putabat sapientíssima illa mulier. –Lhomond, De Viris Illustribus Urbis Romae). “Em vez do elogio antigo, vir fortis ac strenuus (‘varão forte e indefeso’), temos agora o fortis vir sapiensque (‘varão forte e sábio’)”, a imagem de marca do grupo de intelectuais ligado ao grande homem político, Cipião Emiliano. (Cf. MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, Estudos de História da Cultura Clássica … cit., pp. 241, 48, 49, 91, 95, 96).

Vide supra, p. 19, nota 8; vide infra p. 132, nota 491 e p. 154, notas 566, 567.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

31

formar um profissional, não obliterando a dimensão da personalidade e do carácter, da

confiança e do conhecimento de si, nas suas possibilidades e no Outro. As letras humanas

ou clássicas, peritia litterarum e scientia rerum, auxiliavam na necessidade de

espiritualidade e projectavam o homo socialis na scientia est potentia 40.

Neste cenário, cabia à linguagem, por meio da palavra renascida e vínculo entre Deus e

os homens, um papel de destaque no desenvolvimento e formação da pessoa, sendo a

forma de expressão do intra e do interpessoal, de tal modo que urgia saber usá-la41. A

Antiguidade Clássica fornecia o material de reflexão, as lições de conduta de vida através

das ideias, actividades, guerras e problemas do homem. Os conhecimentos universais e

abstractos eram os indicados como apoio para um desenvolvimento do entendimento e da

psicologia 42.

Vocábulos/ conceitos como bonae litterae ou studia humanitatis, latinitas, exempla,

scientia , eloquentia, urbanitas, virtus.envolviam todo o contexto cultural e educativo da

época em estudo. O domínio do latim clássico, oposto ao latim medieval43, e o menor

impacto do grego faziam da língua de Cícero o portal de acesso a autores de reconhecido

valor. Para maior e célere divulgação da produção literária aparecera a tipografia,

40 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Humanismo e pedagogia...”, Humanitas, 47-2 (1995) 812 e 844.

Esta expressão do filósofo Francis Bacon torna-se mais clara nas palavras da autora citada, “ toda uma elite formada nas humaniores litterae constitui como que um terceiro poder entre o poder político e o poder religioso, o poder da cultura.” (Idem, “Pedagogia Humanista na colégio das artes ao tempo de Anchieta”, in Actas do Congresso Internacional: Anchieta em Coimbra, vol. III, Coimbra, 1998, p 1042).

Estamos não só no plano da perícia nas palavras, nas letras, mas também na forma de as saber usar no convívio e na civilidade. Este pressuposto leva-nos a compreender, assim, a conjugação do exemplar património ético grego e romano com a tradição cristã para se poder falar em eruditos piedosos. Só nesta concepção universalista de descoberta e conhecimento, as palavras doutas de um humanista hão-de soar exemplificativas: “ (…) no século do Humanismo, o propósito centrífugo e centrípeto de homens que procuram estabelecer pontos de apoio para darem e para receberem, no intercâmbio civilizacional, do comércio e da cultura em África, na Ásia, na Insulíndia e nas Américas.”. Estas foram proferidas por JOSÉ DE PINA MARTINS no Primeiro Simpósio Nacional sobre Humanismo Português (1500-1600), decorrente da comemoração do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, na sua apresentação inicial (O Humanismo Português 1500-1600… cit., p.8). 41 MARGARIDA VIEIRA MENDES afirma que “a arte da palavra foi nos séc. XVI e XVII ‘o grande catalisador’ de todas as formações humanas” (A Oratória Barroca de Vieira, Lisboa, 2003, p. 49).

FRANCISCO CARNER, quando aborda o ideal de educação defendido por Quintiliano - enriquecimento e desenvolvimento da capacidade criadora, da personalidade e do carácter da pessoa (não se restringindo esta palavra ao conceito jurídico de entidade com deveres que prevalecia na Roma legisladora) que é necessário educar antes de formar o orador – diz-nos que a linguagem é acima de tudo uma actividade criadora, pois “Para Quintiliano no tiene el idioma un mero papel instrumental; al fusionarlo com el pensamiento, com el que se necesita mutuamente, le reconoce capacidad creadora” (“Sentido Quintilianista de la Educacion”, Calasancia 1 (1956) 15. 42 Cf. Obras Completas de San Ignacio de Loyola, transcripción, introduciones y notas de IGNACIO IPARRAGUIRRE, S.I. con la autobiografía de San Ignacio, editada e anotada por CANDIDO DE DALMASES, S.I., B.A.C, Madrid2, 1963, pp. 690-693. Podemos ler aí uma carta dirigida ao P. Diogo Lainez, datada de 21 de Março de 1547, que foi redigida pelo P. Polanco, secretário de Santo Inácio. Surgem-nos as razões que fundamentam a intensiva carga horária dada aos estudos de humanidades, preparadores de estudos mais difíceis e exigentes como a Filosofia e a Teologia. O uso comum das letras humanas para a compreensão/entendimento da Escritura e consequente ajuda a uma boa vontade; os exemplos dos Padres da Igreja transmissores da autoridade da língua latina e seus representantes literários, na época. 43 CLAUDE-HENRI FRECHES assinala a oração de sapiência proferida pelo humanista português, André Resende, na Universidade de Lisboa em 1534 como “le cri de guerre de l’ Humanisme contre le Scolastique” (Le theatre Neo-Latin au Portugal (1550-1745). Paris, Lisbonne, 1964, p. 92).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

32

destituindo a Igreja do monopólio na propagação do saber e proporcionando a irradiação

da leitura.

Esse domínio da palavra, ou melhor, das letras, concretizava-se não só nas publicações

individuais dos humanistas, reveladoras de um saber ao serviço da dimensão literária44,

educacional, moral e religiosa, daí a diversidade de tratados pedagógicos, mas também nas

orações de Sapiência da Universidade, nas orações de obediência ao Papa45, aquando das

mudanças de poder. A frutífera correspondência entre uma elite intelectual, humanistas,

soberanos e os Papas era também manifestação dessa latinitas46.

Ser cidadão do mundo ou não se sentir estrangeiro em nenhum país europeu (como

acontecia aos lentes das Universidades), ser conhecedor e divulgador de sapiência

humanista só era possível graças a uma língua culta, escolar e universal, sua imitatio e seu

usus na comunicação comum, o Latim. Era sinal de unidade em momentos de “cisma”, de

ruptura e, simultaneamente, forma de expressar e defender uma ortodoxia católica de que o

impulsionador da Companhia de Jesus, Inácio de Loiola, se apercebeu, indo aprendê-la já

em idade adulta47. Na visão pedagógica humanista, à arte da palavra estava associada a

moral, daí a importância atribuída à literatura de sentenças que forneciam os exempla -

“educação pelo paradigma”48. Os Irmãos da Vida Comum e o movimento laico, Devotio

Moderna, surgido na 2ª metade do séc. XIV, defendiam em termos pedagógicos novas

44 Segundo DOMINGOS MAURÍCIO GOMES DOS SANTOS, “Os humanistas eram generosos nos epítetos para com os confrades, tal qual certos grupos literários do nosso conhecimento, bem providos de pedras e flores nas duas abas dos seus alforges críticos: flores para os amigos; pedras para os adversários” (“Buchanan e o ambiente Coimbrão do século XVI…” cit., p. 281). 45 Nestes tempos, a religião da população era encarada como obediência civil, o príncipe governante obedecia ao papa, o mesmo teria de ser feito pelos seus súbditos. O princípio cujus regio ejus et religio foi caro aos príncipes alemães, negando o rei o papa, a população teria de segui-lo. O termo ‘protestantismo’ teve a sua origem na expressão “nós protestamos” pronunciada, em Espira em 1529, por cinco príncipes eleitores e representantes de 14 cidades que tinham aderido à Reforma. Isto na sequência da revogação da decisão de deixarem as autoridades políticas de cada território do império livres de autorizar ou não a pregação evangélica e aplicar as reformas implícitas. Deste modo, o termo “descreve uma atitude de resistência e oposição tanto a leis, normas ou vontades que pretendam coarctar ou violentar a consciência individual em matéria de fé, negando a sua autonomia diante de Deus, a quem cada um deve responder, como também as formas eclesiásticas ou civis de governo que limitem a liberdade da Palavra de Deus, impedindo ou não o anúncio, ou não se submetendo à sua autoridade, ou rodeando-a de um modo ou de outro.” (PAOLO RICCA, “”Protestantismo”, in Christos - enciclopédia do Cristianismo, trad. Miriam Godinho, Maria da Conceição, José Maia; Henrique Barrilaro Ruas, Lisboa, 2004, p. 741). 46 Sobre as orações de sapiência, usadas na abertura solene do ano lectivo, na vida da nação, nos casamentos reais e no falecimento dos monarcas, Cf. MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, “As Orações de Sapientia e a Universidade”, in Actas do Primeiro Simpósio Nacional: Humanismo Português 1500-1600, pp. 55-66. 47 Cf. ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, “Luís da Cruz (1543-1604), contemporâneo de José de Anchieta (1534-1597), ” in Actas do Congresso Internacional: Anchieta em Coimbra, vol. I, Coimbra, 1998, p.128. O culto da latinitas iria impor-se, na Europa, ao longo de várias gerações de humanistas, até finais do século seguinte, quer entre partidários da Reforma, em que avulta o Ginásio de Estrasburgo dirigido por Johan Sturm, quer entre os defensores da Ortodoxia. (…) Característica dominante desta pedagogia é a primazia conferida à Língua Latina obrigatória nos Colégios, quer na sua expressão escrita, quer oral”. O Latim aparecia como língua útil e como uma exigência do contexto cultural e educativo da época. 48 Para um conhecimento mais aprofundado e rigoroso do assunto, vide NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “A literatura de sentenças no humanismo português: res et verba…” cit., pp. 377-410.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

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formas de piedade e prática de caridade que a bíblia e os santos exemplificavam49. A base

do estudo activo eram as línguas clássicas com mensagens pagãs, mas ligadas ao clássico -

patrístico e à Bíblia.50.

É nesta atmosfera que devemos entender a importância da pedagogia de pendor

religioso, com todos os seus recursos didácticos, criada com a fundação da Companhia de

Jesus, em 1540, por parte do seu mentor, Inácio de Loiola. A afirmação que “Deus,

portanto, centro do Universo e o homem centro do mundo”51 vinha ao encontro da

formação integral de um homem peregrino vai alicerçar-se num programa de estudos

humanísticos que a Companhia também aproveitará52. O homem pretendia ascender

através de um querer livre ao fim último que coincide com Deus Pai, que fora seu Criador.

Para isso, tendo o texto literário um objectivo de relação comunicativa - em que o meio é a

palavra latina, escrita e dita/declamada-, o diálogo espiritual e a educação eram caminhos

para o homem se tornar mais humano, tornando-se elemento activo no projecto de criação

divina. A Retórica, pela Poesia e a História e ligando-se à Dialéctica (Filosofia), procurava,

com o poder e perenidade da palavra, manifestados nas estratégias discursivas, a

aproximação da realidade humana. Numa pedagogia renovada do séc. XVI, filiada numa

nova concepção de homem, a comunicação, fundamentada nos studia humanitatis, em que

a Retórica era disciplina essencial, aspirava tratar de problemas actuais de índole religiosa,

moral, política. Só assim, se poderá falar da formação para a acção e a intervenção. A

eloquência era o princípio básico da cultura e da civilização, podendo ser o lenitivo e a

solução para a atenção, a memória e o espírito crítico, por isso urgia saber usar a palavra.

Eloquência e Retórica eram princípios unificadores de cultura e civilização53.

49 Salientam-se como influências importantes na história da Pedagogia desta época os Irmãos da Vida Comum (séc. XIV e XV) e o seu impacto no Colégio de Montaigu, em Paris (1509), onde Inácio de Loiola, para adquirir as suas credenciais académicas, iniciou os seus estudos; O Modus Parisiensis da Universidade de Paris. O Exercício, a Criatividade, a Ordem, a Disciplina, a Eficácia nos métodos, a Emulação e a União da piedade e bons costumes com as letras são características perceptíveis no princípio “Usus non Praecepta” revelador dessa pedagogia activa.

Sobre este assunto, vide JOAQUIM FERREIRA GOMES, “modus parisiensis como matriz da pedagogia dos jesuítas”, Revista Portuguesa de Filosofia 50 (1994) 179-196.; CARLOS VÁSQUEZ POSADA, “La Ratio: sus inícios, desarrollo y proyección”, Revista Portuguesa de Filosofia 55 (1999), 232; e ainda PAUL KRISTELLER, Tradição clássica e pensamento do Renascimento, trad. de Artur Morão, Lisboa, 1995, pp. 78 e 88.

Vide supra, p.30, nota 38 e vide infra, p. 65, nota 159, p. 78, nota 228. 50 Vide infra, p. 47, nota 85. 51 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, “Pedagogia inaciana – I”, Brotéria, 4 (2003), 225. 52 Este assunto será desenvolvido no capítulo II. Todavia salienta-se, desde já, a linguagem, expressão do espírito e medida do desenvolvimento humano, como o suporte indissociável a esta pedagogia humanística. Aparece o latim como uma exigência deste momento histórico a par de instrumento útil para, a partir da contemplação das obras dos grandes artistas da palavra – os incontestáveis Clássicos da Antiguidade – se poder fomentar um espírito criador em cada aluno. 53 MARC FUMAROLI afirma : “toutes des conditions et professions qui ont à conquérir leur légitimité et leur prestige […] cherchent à greffer à leur tour leurs différents ‘stiles’ sur cette forme prestigieuse qui résume, à elle seule,la Renovatio bonarum artium née en Italie avec Pétrarque: l’uomo universale. Et cette forme se manifeste d’abord, avant de se diffracter en écriture, peinture, sculpture, musique, architecture, actes héroiques, par la parole. (L’ Age de l’eloquence, Paris, 1980, p. 30).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

34

Toda esta conjuntura de actividade pedagógica era apelativa para o público em geral,

estando ligada ou às múltiplas manifestações no impulso dado ao ensino54 ou ao frenesim

desta época histórica marcada por desavenças, descobertas e conquistas - promotoras,

estas últimas, de entusiasmo comercial e crença no homem do Renascimento. A instrução

e a formação seriam caminhos essenciais para o reconhecimento e a prosperidade. O

intuito da educação de e para a virtude talvez fosse o principal motivo para impulsionar a

inscrição de alunos nas escolas públicas da Companhia (Ensino Secundário55) ou talvez

fosse a mais necessária missão doutrinária de soldados de pronta e incondicional

obediência ao Papa.

3.2. A CRIAÇÃO DOS COLÉGIOS DA COMPANHIA DE JESUS NO PORTUGAL DA 2ª METADE

DO SÉC. XVI

Optamos por um guia cronológico e sugestivo de datas simbólicas, no contexto que nos

interessa na Pátria Lusa do rei Piedoso, D. João III. Progressivamente, desde a década de

cinquenta até final do séc. XVI, à medida que se salientam os factos, emergem nomes

sonantes de intelectuais humanistas56 e governantes. São figuras desse tempo que, directa

ou indirectamente, se associavam e se enquadravam no período de implementação da

Companhia de Jesus em Portugal.

Desta feita, solicitamos e sintonizamos, desde já, a perspectiva defendida pelo fundador

dessa instituição, Inácio de Loiola, no que concerne ao papel de Deus para a condução e

ensinamento da pessoa, procurando reconhecer homens e factos decorrentes de um

54 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Humanismo e pedagogia…” cit., pp. 799-844. 55 Será apresentado posteriormente o plano curricular, sendo oportuna, desde já, a indicação de que a instrução primária ou elementar, as escolas de Ler e Escrever, também existiam nestes Colégios. No Colégio da Artes, por exemplo, até 1581, existiu este grau de escolaridade. (Cf. FRANCISCO RODRIGUES, A formação intelectual do jesuíta… cit., p.174). 56 Na língua portuguesa, o termo humanista data de 1540 e abrange todo aquele estudioso e culto das artes humanitatis e litterae humaniores. A par de Cícero, também se destaca a grande influência na cultura e espiritualidade do humanista por parte da obra de Séneca, bem como as lições de Pedagogia de Quintiliano. Soam oportunas as palavras de K. Rand citadas por ERNEST ROBERT CURTIUS, quando fala do humanista Padre da Igreja Jerónimo contraposto ao místico Padre da Igreja, Ambrósio “O humanista é um homem que ama as coisas humanas; que prefere a arte e literatura, especialmente as da Grécia e de Roma, à luz seca da razão ou à evasão mística para o desconhecido; que desconfia da alegoria; que adora edições críticas com variantes e notae variorum; que tem paixão por manuscritos que possa descobrir, pedinchar, tomar emprestado ou furtar; que tem uma língua eloquente e a exercita assiduamente; uma língua afiada, desandando por vezes na gíria das regateiras ou ferindo o adversário com um epigrama”. Nesta sequência ERNEST ROBERT CURTIUS aponta os humanistas Poggio e Filelpo do séc. XV e Budé, Casaubono e Erasmo do séc. XVI “Todos eles desempenham o papel que, na comédia humana, poderíamos chamar de ‘filólogos por paixão’. Continua, dizendo que “segundo Cícero, todas as artes e ciências são ‘companheiras e servas’ (comites et ministrae) do orador (De Or.. I, 17, 75). Censurável, pois, é a retórica que rebaixa a jurisprudência às simples condições de criada e aia da eloquência (ancillula pedisequa) ) Ibid., I, 55, 236)”(Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo, 1996, respectivamente, pp. 113 e 181).

Vide supra, p. 20, nota 10.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

35

percurso de vida próprio. Pretendemos estabelecer, desta forma, a articulação de factos

nacionais e figuras notáveis que hão-de contribuir para o enquadramento e compreensão de

certos aspectos a desenvolver no capítulo dois desta primeira parte e nos dois capítulos da

segunda parte deste trabalho.

2ª METADE DO SÉC. XVI 1551- Indicações de Inácio de Loiola a Simão Rodrigues (primeiro Provincial

associado à fundação de muitos colégios na fase inicial de implantação da Companhia)

para a criação do ensino público da Companhia em Portugal, recaindo a novidade no

método.

1552 - Autorização do Papa para a concessão de graus na organização de ensino

jesuítico em Portugal, vindo ao encontro das indicações por parte de Inácio de Loiola a

Simão Rodrigues.

1553 - Jerónimo Nadal chega a Lisboa (Ratio Studiorum – resultado de experiências

didácticas). Inácio de Loiola dirige aos Jesuítas portugueses de Coimbra uma carta

subordinada ao tema da obediência. Simão Rodrigues fora substituído por Diogo Mirão

como Provincial- «Tandis que la façon de Rodriguez était paterne et sur gouvernement

tolérant, Miron se montre strict et exigeant. Certains partisans de Rodriguez refusent d’

obéir au noveau provincial» 57

1555 - Entrega do Real Colégio das Artes de Coimbra aos Jesuítas, destacando-se os

docentes Pedro Perpinhão, Cipriano Soares e Manuel Álvares.

1558 - Início da escrita das Constituições (Inácio, durante 16 anos escreverá ao sabor

da experiência).

1572 - Publicação da epopeia nacional de Luís Vaz de Camões. É também de salientar,

no contexto humanista, a publicação da 2ª parte da obra ascética de Frei Heitor Pinto

Imagem da vida Cristã58.

57 WILLIAM W. MEISSNER diz que «C’est partout la confusion. Les jésuites de Coimbra sont bouleversés et désemparés, les amis de la Compagnie sont scandalisés.», pois « Un mouvement se dessine en vue de former un ordre religieux dissident, soustrait à la Compagnie et à l’autorité d’Ignace. Une des pierres d’ achoppement est Rodriguez, qui semble préférer son propre jugement à celui d’ Ignace.» (Ignace de Loyola…cit., respectivamente: pp. 295 e 257) 58 Esta obra está editado, nos nossos dias, Imagem da Vida Cristã ordenada por Diálogos compostos por Frei Heitor Pinto (I-II), Introdução de José V. Pina Martins, Porto, 1984, pp. 21- 45.

Sugerimos a leitura do artigo de AMADEU TORRES, “Intertexto Clássico e parcimónia mitológica em Frei Heitor Pinto”, in actas do Symposium Classicum I Bracarense – Mitologia lássica e a sua recepção na literatura portuguesa, Braga, 2000, pp. 125-135.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

36

1580 - Perde-se a independência nacional - Rei D. Sebastião tinha desaparecido

anteriormente em Alcácer Quibir e morre Camões.

1599 - Versão definitiva da Ratio Studiorum (466 regras) - P. Aquaviva.

Na acção evangelizadora da Ordem religiosa em causa, que vinha servir pelas letras

humanas os interesses da reforma cristã da Igreja, a fundação de colégios e universidades

prestava um contributo inegável na actividade cultural e educacional da época. Seriam

locais de aprendizagem para a vida, a decisão e o compromisso, no âmbito de uma

educação humanística e cristã devidamente documentada. As Constituições e as várias

versões do Ratio Studiorum59, não descurando o contributo da correspondência, espécie de

diálogo entre os membros superiores da Ordem e meio de comunicação por excelência -

epistulae mixtae -, são documentos que provam a necessidade de uma lei em consonância

com as pretensões de unidade, com a uniformidade na orientação e a adaptabilidade na

execução, na semelhança e no rigor da actividade educativa. Todos se subsidiam no

exemplo de vida e obra do Santo Inácio de Loiola, que soube retirar do seu percurso

vivencial, guiado pela oração, discernimento e experiência, as forças motrizes para as

grandes decisões, para ser boa pessoa, sendo uma pessoa competente e culta, homem do

seu tempo, “um homem bom e instruído”60.

59Delineamos alguns tópicos caracterizadores das Constituições da Companhia de Jesus e do Ratio Studiorum. Assim,

o primeiro documento é a norma directiva universal da Companhia de Jesus com valor orientador para os Jesuítas, que é constituída por nove Partes. A Parte VII – relacionada com as Missões - foi a primeira a ser redigida pelo Superior Geral da Companhia, Inácio de Loiola, em 1547. No âmbito educativo interessa a Parte IV, com os seus dezassete capítulos. No cap. XIII - Método e Ordem a Seguir nestas matérias- surge o parágrafo nº 455, que irá fomentar toda a actividade para a redacção da Ratio Studiorum. Este documento histórico reflecte por um lado a experiência do fundador Inácio de Loiola e as sugestões que lhe foram sendo fornecidas. Até 31 de Julho de 1556, data da morte do Superior Geral, tiveram lugar alterações e retoques denunciadores do típico espírito de caminhada representado pelo fundador. A partir de 1558, As Constituições passam a representar norma directiva da Companhia, durante quatro séculos. A redacção definitiva, surgindo apenas as alterações nas notas, data de 1594.

O Ratio teve cinco versões, realizadas na 2ª metade do séc. XVI, até chegar à definitiva, um código de 208 páginas com 467 regras (Ratio de 1599) aprovado e promulgado pelo Superior Geral, P. Aquaviva, daí a designação de Ratio do P. Aquaviva. Regulamentação dos Colégios da Companhia de Jesus, reflexo de experiência e esforço de concisão - brevitas imperatoris. Encarado como um manual do fazer, com normas práticas e concretas de acção (recurso essencial para orientar o professor que é ajudante, guia e exemplo), o Ratio de 1599 foi produto da variedade, do trabalho de equipa, da participação de colaboradores das várias Províncias, onde estava a Companhia, atendendo às experiências e às estruturas dos Colégios ao longo de meio século. A Incidência do plano curricular, num nível de ensino secundário, no estudo da palavra – Gramática/ Humanidades/Retórica, onde a língua de comunicação é a latina, ajustava-se ao ideal educativo do séc. XVI (eloquência latina), ao projecto formativo de desenvolvimento genuíno de capacidades naturais do jovem, à compreensão, espírito de união e participação na civilização e cultura europeias da época. As virtudes surgem-nos subentendidas nas actos, atitudes e hábitos que se devem ter para, desta forma, se poder tornar o homem mais humano.

MARGARIDA MIRANDA além de nos apresentar alguns dos primeiros documentos de programação escolar dos Jesuítas, expõe a história da redacção do Ratio, com versões datadas de 1586, 1591 e a definitiva em 1599. (Cf. “Uma ´Paideia` humanística: a importância dos estudos literários na pedagogia jesuítica do séc. XVI…” cit., pp. 229-238). 60 Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, O Projecto Educativo da Companhia de Jesus… cit., p.210.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

37

A Companhia de Jesus foi a primeira grande rede de ensino secundário ou médio

europeu61, dando-nos um modelo de escola, um sistema educativo unitário, o mais amplo e

estruturante da época. À inicial fundação de colégios que dão corpo à estrutura externa da

Companhia62 segue-se, concomitantemente, a indispensável e inevitável orientação nos

planos de estudos, inscrita, numa primeira fase nas Constituições, para assumir um cariz

mais específico na quinta versão (1599) do Ratio Studiorum do P. Aquaviva. Esta era o

resultado da experiência de um grupo coeso, ao longo de meio século, guiado pela

referência máxima do activo, organizador e prudente Inácio de Loiola.

Decidimo-nos pela enumeração encabeçada por datas que assinalam a fundação dos

colégios em território luso, sob a protecção do rei D. João III. O plano inicial do fundador

da Companhia só contemplava a criação de colégios para a formação de estudantes jesuítas

que poderiam, sob o apostolado de missão, ir por todo o mundo colonizado expandir a fé

cristã63.

Os Jesuítas, apercebendo-se da necessidade e utilidade de um ensino público de pendor

cristão, aspiravam formar “bons christãos, bons filhos de família, homens de vontade

robusta e preparavam cidadãos prestimosos para o futuro; com paciente desvelo

infiltravam no espírito dos seus alunnos o amor da religião, que é a base da educação

verdadeira, o amor do lar domestico e o amor da pátria”64.

Em Goa (1542), onde Francisco Xavier S.J. era o Provincial65, fazia-se a fundação do

primeiro colégio para externos, abrindo, deste modo, as portas ao apostolado da docência e

do ensino público. Este tipo de colégios tomaria tal proporção e célere expansão - pondo

em prática a intenção iniciática da Companhia mais de propagação da instrução do que de

inovação nas matérias a leccionar. Com efeito, na Primeira e na Segunda Congregações

61 Segundo AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES, eram 162 colégios os que existiam em 1586. (Cf. Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas… cit.; Cf. FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, vol. II, Porto, pp. 11-46; Id, A Formação Intelectual dos Jesuítas…, pp. 168, 169). 62 Vide supra, p.33, nota 49. 63 Como vimos atrás foi uma política de missão, de evangelização - navegar para a Índia- que levou D. João III a chamá-los para Portugal. Sobre este assunto vide MANUEL PEREIRA GOMES, Sto Inácio e a Fundação de Colégios … cit., pp. 63-66.

Na Quarta parte das Constituições, no nº 324, diz-se que “ nos colégios da Companhia não se hão-de aceitar, nem cura de almas, nem obrigações de Missas, nem quaisquer outras deste género, que sejam de muita distracção nos estudos, e obstáculo para o fim do divino serviço que neles se pretende. (…)” (INÁCIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia de Jesus anotadas pela Congregação 34e Notas Complementares aprovadas pela mesma Congregação, in Cúria Provincial da Companhia de Jesus (ed.), Braga, 1997, p.96). 64 FRANCISCO RODRIGUES, Formação Intelectual do Jesuíta… cit., p. 416. 65 Francisco Xavier seria o 2º Provincial eleito pela Companhia em Goa. Foram dez, entre os quais Inácio de Loiola, os primeiros jesuítas que conseguem a aprovação oficial da nova Ordem Religiosa, após oposição por parte da Cúria Romana, de certos sectores da Igreja e da Inquisição. Pedro Fabro, Lainez, Coduri, Simão Rodrigues são nomes sonantes no grupo fundador da Ordem mobilizado por Inácio.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

38

Gerais (1558 e 1565, respectivamente), seriam feitas algumas advertências prudentes face

a tal expansão febril66.

Como já tivemos oportunidade de frisar, as instituições de ensino criadas e respectivos

projectos educativos ou documentos reguladores tiveram em Portugal o apoio do generoso

monarca, D. João III, que impulsionara “um importante movimento de renovação

cultural”67. A política cultural aliava-se ao financiamento de instituições educativas e daí a

relação com a Companhia, tal como à atribuição de bolsas de estudo a intelectuais,

nomeadamente os que em França frequentavam o Colégio Santa Bárbara, “espécie de

colégio ‘português’ à sombra da Sorbonne”68, e ainda à requisição de humanistas de

renome como os Bordaleses. Este monarca foi, assim, responsável por uma reforma

educativa, já que grande parte dos colégios existentes em Portugal até então eram de

origem eclesiástica.

Seguiremos as palavras de António Lopes S.J., que aponta como primeiro momento na

fundação dos colégios em Portugal - meio de promoção do “Bem mais Universal e o

Serviço mais Eficaz” - entre 1542-1759, incidindo na realização do Homem Integral, pela

síntese Fé e Humanismo. Inicialmente, até 1542, surgiam colégios apenas para a formação

de elementos da Ordem. A partir de 1546, começavam a assomar os que acolhiam alunos

externos em conjunto com alunos jesuítas, e, entre 1548 e 1550, apareciam

estabelecimentos de ensino só para estudantes externos, podendo ou não existir estudantes

jesuítas. Será a partir de 1550 que o número de colégios públicos proliferará. Aquando da

morte de Inácio de Loiola (1556), estavam já espalhados, pelo mundo, 33 colégios só com

alunos externos. No final da década de 70, já eram 144, número que viria a aumentar

consideravelmente no século seguinte69.

66 Cf. O Método Pedagógico dos Jesuitas - O “Ratio Studiorum”, introdução e tradução LEONEL FRANCA, Obras Completas do P. Leonel Franca, vol. X, Rio de Janeiro, 1952, pp 13,14. Essa prudência nem sempre era acatada, como se regista na pág. 14: “mas as necessidades prementes da Igreja, na época agitada da contra-reforma, as solicitudes instantes de autoridades eclesiásticas e civis, os êxitos incontestavelmente obtidos e o entusiasmo de uma expansão juvenil passaram, não raro, por cima das restrições ditadas (…)”. 67 ANTÓNIO LOPES, “A Educação em Portugal de D. João III à expulsão dos Jesuítas em 1759”, Lusitania Sacra, 5 (1993) 26.

Para um conhecimento detalhado acerca dos colégios fundados pela Companhia de Jesus em Portugal e terras ultramarinas, apontamos para a consulta da obra de JOSÉ CARVALHAES S.J. que nos apresenta o panorama geográfico e cronológico destas instituições de ensino ao longo de quatro séculos dedicados à educação dos jovens. (A Companhia de Jesus na educação da Juventude - Portugal e Além - Mar – séc. XVI – séc. XX, Colégio das Caldinhas, Caldas da Saúde, 2004). 68 ANTÓNIO LOPES, “A Educação em Portugal de D. João III à expulsão dos Jesuítas em 1759…” cit., p. 17.

Vide infra, p.141. 69 Para indicação mais alargada sobre a rede de Colégios, vide ANTÓNIO LOPES, “Os 450 anos da fundação da primeira Província Administrativa da Companhia de Jesus”, Brotéria, 144 (1997) 84-86.

Parte I – Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do Homem perfeito na sua versão cristã

39

COLÉGIOS PÚBLICOS 1542 - O Colégio de Coimbra, designado mais tarde como “Colégio de Jesus”

destinado só a alunos internos, os escolásticos da Companhia.70.

1551 - O Colégio do Espírito Santo, em Évora, que abre aulas públicas em 1553 e em

1559 passa a ser Universidade

1553 - O Colégio de S. Antão, em Lisboa, designado por “Coleginho”, vai ser nesta

data o primeiro colégio aberto a todas as classes sociais.

1555 - O Colégio das Artes em Coimbra passa a ser gerido pelos Jesuítas.

1560 - O Colégio de S. Paulo, em Braga.

1577 - O Colégio de S. Lourenço, no Porto, é inaugurado. O início da construção deste

edifício data de 1573, tendo funcionado até então o Colégio com este nome em casas

doadas por Henrique Gouveia, em 156071.

1599 - Colégio de Sant`Iago, em Faro passa a ser administrado pelos Jesuítas72.

Muitos foram os pedidos vindos de Bragança, Madeira, Elvas, Algarve e Angola. Era

notório o entusiasmo na fundação de colégios nesta 2ª metade do séc. XVI, o que

justificava as advertências por parte de Inácio de Loiola em 1553 “sobre a necessidade de

não aceitar precipitadamente novas fundações” 73..

Em Portugal, os 28 Colégios e 1 Universidade, considerados neste primeiro momento,

estavam em sintonia com a mentalidade humanística da época. Procuravam, baseados no

princípio inaciano dos Exercícios Espirituais - non multa, sed multum -, aproveitar o que

vinha do ensino europeu, num esforço de inculturação e adaptabilidade que lhe era tão

peculiar nestes primeiros tempos. Encontravamo-nos numa fase de experiências próprias

de um começo74.

70 Em Outubro de 1546, passa a ser “ A PRIMEIRA CÚRIA PROVINCIAL, também de toda a Companhia, no Mundo inteiro.” (Ibid., p.81). 71 Foram algumas as contrariedades na instituição de um colégio jesuítico na cidade do Porto, pois, “mais do que a míngua da casa, por diminutas, e sua situação, temiam os habitantes que depressa se transformasse em Universidade, como poderiam sustentar os estudantes…e depois muitos dos filhos pediriam para se alistarem na Companhia, como vinha acontecendo por toda a parte…O colégio aparecia com cores de calamidade para a cidade.”. Hoje é o Seminário da Sé. Cf. MANUEL PEREIRA GOMES, Sto Inácio e a Fundação de Colégios … cit., p 81. 72 Após indicações para se instalarem os jesuítas neste colégio, quer por parte do Bispo de Faro, D João de Mello e Castro, quer do seu sucessor o Bispo D. Jerónimo Osório, a prioridade na altura era a evangelização e instrução dos povos das terras além mar. Não havia, nesta altura, jesuítas formados em número suficiente para ir ao encontro de tantas solicitações nacionais e dos domínios ultramarinos. Cf. Ibid. 73 Cf. FRANCISCO RODRIGUES, Formação Intelectual do Jesuíta… cit., p. 159. 74 À rápida expansão do ensino da Companhia de Jesus associam-se o aumento dos bens materiais, o grande número de colégios, a par de um excessivo número de alunos e à escassez de mestres devidamente preparados. “ Os mestres cansavam-se até ao esgotamento, os alunos não aprendiam e os Colégios caíam em descrédito.”

Sobre o assunto, Cf. RÓMULO DE CARVALHO, História do ensino em Portugal, Lisboa, 1986, pp. 324-328.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

40

A esta multiplicação de Colégios por toda a Europa de cultura humanista e colonialista

de então, a que damos especial atenção aos direccionados para os estudantes externos (pela

diversidade de papéis do foro privado e público), estava ligado um grande número de

pessoal docente e discente. Requeriam, necessariamente, orientação, devido às suas

psicologias/moções diversas (não devemos esquecer a adolescência dos alunos), às regiões

específicas onde estavam e às características das comunidades onde se inseriam. As

epístolas e as normas, reguladoras e disciplinadoras de um modus docendi comum e

competente (de qualidade), pretendiam homogeneizar a maneira de agir face à quantidade

de locais e de leccionação.

A título de exemplo desta uniformidade de critérios e abrindo portas para o pilar em

que assentará esta pesquisa, invocamos aqui a correspondência entre o P. António

Brandão, jesuíta português, acompanhante do P. Simão Rodrigues na viagem de Portugal a

Roma. Na sua carta apresenta a Polanco uma lista de 15 questões a que desejava resposta

por parte de Santo Inácio de Loiola. Como resposta surge a epístola datada de 1 de Junho

de 1551, escrita pelo secretário mencionado, por comissão do fundador da Ordem. Entre as

respostas às quinze questões, que se aplicam ao modo de estar e ser dentro dos colégios,

extraímos a exercitação da virtude. Esta não é olvidada, não se confinando às horas de

oração, de confissão e comunhão, típicas dos ritos cristãos, já que os alunos “se pueden

ejercitar en buscar la presencia de nuestro Senõr en todas las cosas, como en el conversar

com alguno, andar, ver, gustar, oír, entender, y en todo lo que hiciéremos, pues es verdad

que está su divina Majestad por presencia, potencia y esencia en todas las cosas”75.

75 Obras Completas de San Ignacio de Loyola, transcripción, introduciones y notas de IGNACIO IPARRAGUIRRE … cit., p. 763.

41

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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43

a época:

C

PEDAGOGIA HUMANÍSTICA DOS JESUÍTAS

Face ao contexto histórico exposto, compreende-se que na génese da Companhia e nos

documentos em que se sustenta - Exercícios Espirituais, Constituições e Ratio

Studiorum76 - se promova a obediência favorável ao poder regulador e censório da santa

Igreja de Roma, reforçando a piedade e santidade dos costumes no combate doutrinário e

ideológico que marcava

“ Deseja-se uma autêntica milícia, um laborioso exército de homens de religião, que vivessem só

para ela, no permanente alerta da prevenção combativa”77.

Daí que, num primeiro momento, Inácio de Loiola e os seus companheiros se

preocupassem com a “ordenação da vida” e a missionação, a fim de ir ao encontro da

vontade de Deus78. O que, num segundo momento, viria a concretizar-se no plano de

estudos dos colégios e universidades dos Jesuítas, em todas as áreas escolares de

exercitação do aluno. A utilitas da cultura humanista devia expressar-se numa vida de

acção, fincada no serviço e respeito em relação ao outro ser humano e comprometida com

o amor.

76 Doravante, optamos por mencionar apenas Ratio, referindo e citando em notas de rodapé a última edição - LUKACS LADISLAUS, S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu, vol. V, Pars IV (Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu: 1599), IHS. Romae, 1986. Será indicada a página, seguida do número da regra, auxiliando-nos do excerto latino, quando oportuno. Servirá de referência a tradução efectuada por MANUEL PEREIRA GOMES, Sto Inácio e a Fundação de Colégios… cit., pp. 114-193. Neste estudo, usamos o artigo masculino em relação às palavras Ratio Studiorum, de acordo com o original (Cf. FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus … cit., p. 18, nota 3). 77 RÓMULO DE CARVALHO, História do ensino em Portugal… cit., p. 283. 78 Nos Exercícios Espirituais, está subjacente uma pedagogia apoiada em exercícios direccionados para o mundo espiritual, para os caminhos internos/interiores do homem, no sentido deste se harmonizar com a vontade divina e assim, poder ser colaborador na expansão de uma mensagem de amor ao próximo. “Considerar como o Senhor de todo o mundo escolhe tantas pessoas, apóstolos, discípulos, etc., e os envia por todo o mundo a espalhar a sua sagrada doutrina por todos os estados e condições de pessoas.” (INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 145).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

44

“ o amor da religião ensinavam-no com todo o seu systema pedagógico, embebido inteiramente de

princípios religiosos […] e o amor da família e da pátria incutiram-no com a explicação minuciosa da lei

de Deus que preceitua a todo o homem estes dois affectos legítimos e nobres”79

Desta feita, as letras humanas e as virtudes da doutrina cristã, definida nas decisões

tridentinas, eram as armas dos mestres jesuítas que militavam sob a bandeira da cruz, do

“rei eterno” e, ao mesmo tempo, “rei humano”, representado por Cristo. Cada homem

seria o centro, o protagonista implicado numa caminhada de desenvolvimento e

conhecimento em direcção ao discernimento do espírito, reprimindo a sensualidade -

impeditivo do serviço aos outros (caridade), da união fraternal com os homens e, numa

perspectiva sobrenatural, da união filial com o Pai Criador.

Com esta intenção, o princípio da adaptabilidade, que não afastava a intransigência nos

princípios cristãos regentes, era propício e adequava-se, particularmente, ao atendimento e

auxílio a cada pessoa na sua individualidade/singularidade (Cura Personalis - atenção,

cuidado e trabalho personalizados identificados com a experiência e pura percepção

psicológica inacianas). O ensino personalizado, também com vista à salvação da alma,

passava a ser imagem de marca de toda esta pedagogia.

“Era necessária uma acção mais concreta, permanente e firme, que fosse ter com os homens, a um

por um, se possível, pois que, em princípio, todos corriam o risco de ser subvertidos no seu pensamento

religioso”80.

“Seria sonho dos jesuítas que todas as crianças se sentassem nos bancos das suas escolas e que a

orientação do seu ensino as modelasse de tal feição que uma por uma constituísse um esteio do

pensamento filosófico que defendiam.”81

Toda a mundividência desta educação de pendor humanista cristão, paulatinamente

partilhada, ordenada e codificada, se encaminhava para a obtenção harmoniosa do

objectivo de personalizar o atendimento ao homem/aluno, a fim de se tornar mais humano,

mais completo. A cultura humanista ia ajudar na construção do homem equilibrado e total,

o da reflexão e o da acção, atendendo sempre à tendência e ao talento natural de cada um.

79 FRANCISCO RODRIGUES, Formação Intelectual do Jesuíta … cit., pp. 416-417 80 RÓMULO DE CARVALHO, História do Ensino…cit., p. 283. 81 Ibid., p. 329.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

45

O peregrino Inácio de Loiola, pela sua aventura humana e divina, interior e exterior82,

experienciada e rigorosamente documentada, aparece como testemunho vivo do princípio

cristão assente na interdependência entre a pessoa no seu todo, os outros e a sociedade.

Neste capítulo, conformes ao que queremos estudar e fiéis ao princípio da

adaptabilidade83, pretendemos desenvolver a dinâmica educativa peculiar dos Jesuítas,

confirmada e validada pelas palavras dos documentos emblemáticos: Exercícios

Espirituais, IV Parte das Constituições da Companhia de Jesus e Ratio (1599). Aos

Exercícios Espirituais caberá a espiritualidade, fundamento que se direccionará para a

educação a implementar nos Colégios. A IV Parte das Constituições há-de atingir o seu

pendor mais pragmático e concreto nas regras personalizadas do Ratio Studiorum de 1599,

atribuídas a cada um dos membros intervenientes nessa arte de ensinar e aprender.

No âmbito da exposição analítica a fazer e do entendimento das características da

pedagogia em questão, procurando a objectividade, seria interessante destacar os títulos

que encabeçam estes registos históricos: “ PARA SE VENCER A SI MESMO E ORDENAR A

SUA VIDA - Sem se determinar por Afeição Alguma que seja desordenada” (Exercícios

Espirituais); “COMO INSTRUIR NAS LETRAS E EM OUTROS MEIOS DE AJUDAR O PRÓXIMO

OS QUE PERMANECEM NA COMPANHIA”(IV Parte das Constituições); “ORDEM E MANEIRA

DOS ESTUDOS DA COMPANHIA DE JESUS” (Ratio). Todos eles têm como denominador

comum a experiência, o campo da acção das pessoas envolvidas, demarcando-se não só a

aprendizagem e o ensino, mas também a espiritualidade/religiosidade. Ainda nos

apercebemos de uma ideologia legislativa e da construção de um plano organizado de

estudos aplicado sob a égide de um método que se quer e se pensa para a exercitação -

82 A propósito das “Caminhadas”, peregrinações inacianas, as quais descrevem o percurso vivencial e espiritual de Inácio de Loiola, sendo meio de formação cristã – homem para si e para os outros -, remetemos para dois estudos. Cf. ANTÓNIO LOPES, “Os 450 anos da fundação da primeira Província Administrativa da Companhia de Jesus…” cit., pp. 83-85.

Cf. MANUEL PEREIRA GOMES, Sto Inácio e a Fundação de Colégios… cit.,.pp. 9-31. Neste último estudo, destacamos como oportunos os títulos dos dois capítulos a que correspondem as páginas indicadas “Aprendiz da vida: de Iñigo a Inácio de Loiola” e “Aprendiz de Cristão”. 83 Este princípio aparece-nos ao longo da IV Parte das Constituições da Companhia de Jesus, tendo sido legado ao Ratio. Revela-se na atenção, respeito e dedicação direccionados a cada pessoa e sua circunstância. Daí que os planos de estudos e as metodologias tenham sido o reflexo desta preocupação humanista. Destacamos aqui os números dos parágrafos dessa IV Parte onde, explicitamente, se apela para “as circunstâncias de pessoas, tempo e lugares”. A referência a este princípio é denunciada noutros números, de forma indirecta, como poderemos constatar ao longo deste estudo. Cf. INÁCIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia de Jesus , ns. 343, 351, 365, 382, 395, 396 425, 429, 447, 449, 454, 462.

Aparece explícito o princípio da adaptabilidade na regra 39 do Provincial: Varietas pro varietate regionum (Cf. p. 366, nº 39). Contudo, grande parte das regras deixa transparecer nos seus parágrafos, de forma explícita ou implícita, esta adaptação de toda a estrutura educativa conforme aos costumes locais e em função da pessoa total que se pretende educar. A transcrição de alguns deles virá a propósito no decurso deste estudo. Cf. pp. 357, ns. 4/§6; p. 358, ns. 9, 11; p. 359, ns. 16, 17, 18; p. 363, ns. 22, 25; p. 371, nº 19; p. 374, nº 2; p. 375, nº 10; p. 377, ns 27, 30; p. 404, nº 8/§2; p. 406, nº 13; p. 408, nº 30; p. 415, nº 8; p. 416, nº 2; p. 418, nº 15; p. 428, nº 18; p. 433, nº 10

RÓMULO DE CARVALHO, História do Ensino…cit., p. 353.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

46

experiência vivida activamente. Segundo Manuel Pereira Gomes, esta assenta, no âmbito

do Ratio, nos três AA: Autoridade; Adaptação; Acção e evidencia-se no processo

didáctico no tríptico: Prelecção, Repetição e Aplicação84.

A abordagem que se segue será tripartida, começando pela finalidade educativa,

seguida dos elementos intervenientes na relação educativa e, finalmente, os recursos

didácticos, em especial o teatro escolar como exercício para a participada formação moral.

84 Cf. MANUEL PEREIRA GOMES S.J., Sto Inácio e a Fundação de Colégios… cit., pp. 56-58. Este assunto será retomado a posteriori com mais especificidade.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

47

1. FINALIDADE EDUCATIVA

A finalidade educativa de formação humana integral - centrada na conduta moral -

aparece determinada pelo Cristianismo, indissociável da Bíblia85, seu sólido suporte e

fonte de inquestionável riqueza e influência nas várias manifestações do humano: História,

Literatura, Filosofia e Arte e, como veremos, no teatro neolatino jesuítico.

São muitos os atributos conferidos à pedagogia em estudo86, realçamos, hic et nunc,

três: religiosa, finalística e personalista, à volta dos quais se hão-de desenvolver os três

momentos enunciados. Esta selecção está ao serviço da explanação do fim educativo

proposto pela Companhia, o qual se pretende expor. Todavia, tomamos como ponto de

partida orientador o Homem cristão, em geral, para, desta forma, rumarmos para trilhos

imprescindíveis à compreensão desta Pedagogia: Deus cristão é Deus de Amor, feito

Homem (1.1); formação total da pessoa cristã (1.2); educação como meio e modo de

alcançar na pessoa a formação intelectual, religiosa e do carácter (1.3)87.

Salientado o alvo de interesse, remetendo, por isso, à concepção inaciana de homem

(cap. I, ponto 2, p. 26), realçamos, no cenário do humanismo cristão e da visão positiva e

inaciana do humano, as seguintes alíneas orientadoras:

a) Cada homem é filho de Deus, que o Criou por amor e com bondade, fazendo-o à

Sua Imagem;

85 Pode dizer-se que é o livro mais lido em todo o mundo, onde se expressa, através de uma pluralidade de línguas, culturas e literaturas, o poder e a vontade de um só Deus na Criação do Universo. Constituído por um número diversificado de livros, destacámos aqui o Pentateuco, Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio, 5 livros que fazem parte do Antigo Testamento. Também Os Profetas e Os Escritos/Livros Sapienciais (conjunto de livros variados, entre os quais Job, Provérbios, Cântico dos Cânticos…) fazem parte do Antigo Testamento. Realçamos o Antigo Testamento e não o Novo Testamento, atendendo à importância daquele como fonte temática da produção dramática dos Jesuítas na segunda metade do século XVI, na sua intenção cristã moralizante. (Cf. PEDRO R. SANTIDRIÁN, Dicionário Básico das Religiões …cit., pp. 74 e 75).

São Jerónimo (345-420), um dos doutores ou Padres da Igreja que reviu a tradução latina do Novo Testamento e traduziu para latim o Antigo Testamento, vê a Bíblia, segundo nos expressa ERNEST ROBERT CURTIUS, “não só um documento de nossa salvação, mas também um corpo literário que se pode emparelhar com o tesouro da gentilitas.” As livrarias católicas de hoje fornecem o texto revisado editado em 1592, pois “Só o Concílio de Trento elevou sua ‘antiga e amplamente divulgada (Vulgata)’ tradução à categoria de única e autêntica (decreto de 8 de Abril de 1546).” (Literatura Europeia e Idade Média Latina… cit., p. 112). 86 Remetemos para dois artigos, onde surgem várias características da Pedagogia dos Jesuítas (JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, “Pedagogia inaciana – I”, Brotéria, 4 (2003) 223-235; “Pedagogia inaciana – II”, Brotéria, 5 (2003) 353-364. 87 Julgamos pertinente expor a visão de ESTEBAN OCAMPO FLÓREZ. Este apresenta as categorias, resultantes de abordagens pedagógicas da época contemporânea, as quais podem ser analisadas na pedagogia jesuítica: “una clara visión del mundo”; “una concepción del ser humano”; “la existência de un conjunto de valores desde los cuales se orientan las intenciones formativas”; “una teoria acerca del conocimiento”; “una teoría de la educación”, especificando e explicando cada uma delas. Conclui que há uma PROPUESTA PEDAGÓGICA DE LA COMPAÑIA DE JESÚS que puede ser sometida a la criba espistomológica, pedagógica y teórica, a pesar de que la intención de los redactores, al formular su sistema educativo en 1599, no hubiese sido esa.” (Cf. “Claves de la Ratio Studiorum”, Revista Portuguesa de Filosofia, 55 (1999) 332-343).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

48

b) Cada homem tem como modelo de referência e imitação, Jesus Cristo, o filho

encarnado de Deus, que, enviado pelo Pai como Homem, vem ao mundo para servir e

salvar os outros homens, seus irmãos;

c) Cada homem possui capacidades e/ou faculdades cognitivas e afectivas para agir

com livre arbítrio88, procurando evitar o abuso irresponsável do mesmo, para assim não

cair em pecado. Essas capacidades são conhecidas e desenvolvidas no mundo terreno,

onde o que existe está ao seu serviço para o ajudar;

d) Cada homem, convidado individualmente a aprender, terá de se comprometer

pessoal e intrinsecamente numa caminhada terrestre de desenvolvimento da totalidade das

suas capacidades (intelecto/carácter; entender/ser), em direcção à excelência, “magis”.

Pelo caminho da Pedagogia - plano curricular de matriz humanista, graus/níveis de

instrução, metodologia pedagógico-didáctica, agentes - a educação dos colégios e

universidades propunha à juventude um caminho de amor e de ajuda, evidenciado na

atenção pessoal (Cura personalis). Será atingido o fim último da criação: Deus (Ad

Maiorem Dei Gloriam), quando se concretizar a formação plena e equilibrada do homem

“pius et doctus”, v.g., do homem de carácter e de sapiência.

88 A força do livre arbítrio humano fora tratada pelo asceta Pelágio e o convertido Santo Agostinho, ficando conhecida como a problemática do Pelagianismo. Enquanto o primeiro acreditava no primado do livre arbítrio e no esforço do homem para atingir a perfeição, o segundo dava o primado à graça divina. O mesmo desacordo se estabeleceu entre protestantes e católicos, tendo o concílio, no dia 13 de Janeiro de 1547, reafirmado, através do decreto De justificatione, “na linha tradicional da Igreja, o concurso necessário da graça divina para a salvação do homem, operando-se uma verdadeira regeneração. Lutero e Calvino defendiam a ausência de colaboração humana, bastava-lhes a fé. E o cerne do problema fixou-se na discussão em torno do livre arbítrio.” O homem é livre e, segundo uma escolha pessoal, pode cooperar ou não voluntariamente com a graça de Deus. Este “por iniciativa sua e desde a eternidade, continua a chamar o homem à salvação, ao seio da vida eterna: ‘Então te desposarei para sempre; desposar-te-ei conforme justiça e o direito, com misericórdia e amor. Desposar-te-ei com fidelidade e tu conhecerás o Senhor.” Sobre este assunto, será importante indicar a obra do jesuíta espanhol Luís de Molina (1535-1600), “Concórdia”, sendo publicada em Lisboa sob o título Liberi arbitrii cum gratiae donis, diuina praescientiae, predestinatione et reprobatione Concordia, em 1588, após conturbada aprovação. A conciliação entre a graça divina e a liberdade humana constitui a temática da obra. “Procura o seu autor a ‘conciliação teológica da liberdade humana com a eficácia da graça divina”. Já no declinar deste século, esta publicação despoletou viva polémica com os dominicanos, que se estendeu ao início do séc. XVII e ficaria conhecida pela controvérsia De Auxiliis (gratiae)”. Sugerimos a leitura integral do artigo de ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO para um maior aprofundamento da questão que já remonta aos Padres da Igreja e que os humanistas trataram com insistência, não fosse a liberdade humana o valor mais prezado numa época em que o homem era o centro das atenções. Várias são as obras, que aí nos são indicadas e são reflexo desta temática, não descurando o contributo esclarecedor, ou melhor, pedagógico/doutrinário das produções e representações dramáticas dos Jesuítas. Estes eram defensores, pregadores e pedagogos empenhados na defesa da concilição entre a opção de cada um, a fé e a graça divina, prova do colaborante Deus, infalível porque omnipotente para atingir o sucesso individual e colectivo – a salvação. A esta fé do homem junta-se uma certa predestinação “que há-de ser um tema raro”. (“A controvérsia teológica do livre arbítrio, no tempo de Góis”, in Actas do Congresso Internacional: Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, 2003, pp. 702-718).

Os Exercícios Espirituais, instrumento da vida religiosa e da espiritualidade individual dedicam quatro Regras, correspondentes aos números 366 a 369, a todo este assunto, embora haja referências em outros números (nº 322, p. 167) como a nona regra “[…] não depende de nós fazer vir ou conservar devoção grande, amor intenso, lágrimas nem nenhuma consolação espiritual, mas que tudo é dom e graça de Deus nosso Senhor”. (“A controvérsia teológica do livre arbítrio, no tempo de Góis”, in Actas do Congresso Internacional: Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, 2003, pp. 706, 715, 716, 714; Cf. FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Vol.II, Tomo II, cap. V, pp. 137-170).

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

49

1.1. DEUS CRISTÃO É DEUS DE AMOR, FEITO HOMEM

Se tivermos em conta o objectivo de missão nos primórdios, compreendemos como

para a Companhia o Divino virá a determinar a finalidade de uma educação cristã. Nos

Exercícios Espirituais, já se antevê:

“ O homem é criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus nosso Senhor e, mediante isto,

salvar a sua alma; (…)”; (…) desejemos e escolhemos o que mais conduz para o fim [Prestar Reverência

e Servir a Deus Nosso Senhor; Louvor de Deus; Salvação da minha alma] para que somos criados.89

No Documento que marca o postulado educativo dos Jesuítas, a IV Parte das

Constituições:

“ O fim que a Companhia tem directamente em vista é ajudar as almas próprias e as dos próximos a

atingir o fim último para o qual foram criadas. (…) devem-se procurar os graus de instrução e o modo

de a utilizar para ajudar a melhor conhecer e servir a Deus nosso Criador e Senhor.” 90

No Ratio, na primeira regra do Provincial indica-se como finalidade do estudo o

encaminhar para conhecimento e amor de nosso Criador e Senhor91.

Confirmando esta finalidade teológica imutável e intemporal - “Ad Maiorem Dei

Gloriam” - que há-de reger estes documentos e os actos da Companhia, soam-nos

apropriadas para a acção educativa as palavras explicativas:

“A pedagogia inaciana está, portanto, projectada para um fim claro, Deus, que a inspira, a guia e a

conduz e funciona como uma norma, como um imperativo categórico em todo o seu percurso. Tudo é

medido, discernido, ponderado, decidido, a partir de Deus.”92

89 INACIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 23 (Princípio e Fundamento). Santo Inácio incita ao desenvolvimento do mundo interior de cada um, numa linha mais activa que contemplativa nesta Reverência e Serviço a Deus. Como poderemos verificar, no seguimento deste estudo, os actos e a acção assumem mais importância que as palavras numa relação marcada pelo Amor e Liberdade, evidenciadas na caminhada terrestre do Jesuíta no “intenso desejo de Cruz e de ajudar as almas em espírito de caridade (…) desejo de serviço e de missão” (JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Santo Inácio de Loiola, um educador do desejo, Braga, 2003, p. 268). 90 Esta finalidade religiosa-espiritual vai surgindo ao longo da descrição das formas de proceder na formação dos escolásticos da Companhia de Jesus. (Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 307, 360, 424, 435, 437, 446, 518…). 91 LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu... cit., p. 357, nº 1: […] ut inde adConditoris ac Redemptoris nostri cognitionem atque amorem excitentur […]. 92 MANUEL MARTINS LOPES, “Pedagogia inaciana – I”… cit., p. 226.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

50

Desta feita, retomamos a adjectivação proposta na explanação indicada no ponto 1 (p.

47), para que possamos entender que é: “(…) uma pedagogia finalística (porque Deus é o

Alfa e o Omega) e personalista (porque o seu centro motivador é a construção do homem

como pessoa).”. Os Exercícios Espirituais são referência, na medida em que “ (…) Deus

seja o centro de tudo. Através do discernimento, a pessoa vai encontrando na Vontade de

Deus o caminho para que a sua vontade seja uma vontade cristificada.” 93. Neste contexto,

a obediência é um valor obrigatório e esta, pela liberdade de cada um nas opções que faça,

só “é alienante sempre que recusar a Teonomia”94.

Entre as características descritas e atribuídas ao Deus Cristão, nas narrativas da Bíblia,

salientamos aquelas que devido ao seu significado nos encaminham para o estudo

pretendido. Ele é o Criador, Eterno e Santo, o Pai e Senhor Poderoso, é Omnisciente,

Misericordioso, Justo, Pessoal e Afectuoso95. Apoiados nos dois últimos atributos,

passamos à sua exploração, em função do intento na análise das manifestações do amor

humano na dramaturgia usada na didáctica jesuítica, na segunda metade do séc. XVI, em

Portugal (cap. II da segunda parte deste trabalho).

Este Deus, em si mesmo relação, é pressuposto geral e básico para uma crença cristã

da humanidade. À luz da fé cristã, ele é fonte do amor humano, dom divino e expressão

dos valores que “vienen del único supremo valor que es el AMOR de Dios experimentado

y vivido que se encarna y se expressa dia a dia en el amor humano”96. Foi por Amor que o

homem mereceu toda a Sua atenção e, ao sexto dia, o Pai Criador colocou-o no mundo. A

importância e preciosidade do homem aparecem manifestadas nas suas capacidades e na

especificidade da sua tarefa, continuando progressivamente a Criação Divina como

colaborador empenhado desse plano de união e salvação proposto pelo Deus Pai

transcendente. O homem, também ele criador e pai, é mais que um ser vivo, um ser

humano, uma pessoa, um ser individual/singular que é amado.

“(…) Deus habita nas criaturas: nos elementos dando-lhes o ser, nas plantas o vegetar, nos animais

o sentir, nos homens o entender e, assim, em mim dando-me ser, vida, sentidos e fazendo-me entender.

E também como faz de mim seu templo, sendo eu criado à semelhança e imagem de sua divina

majestade.(…)”97.

93 Ibid., pp. 226-227. 94 ROQUE CABRAL S.J., “Liberdade e Ética: Autonomia e Heteronomia”, in Temas de Ética, Braga, 2000, p. 208. 95 Cf. JOSTEIN GAARDER, O Livro das Religiões, Lisboa, 2003, pp. 148-200. 96 LUÍS UGALDE, “Espiritualidad y educación Ignaciana”, Magistrales, 18 (2000) 40. 97 INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 235 (Contemplação Global em Chave de Amor).

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

51

A via do amor, da afectividade, será o percurso no qual cada pessoa se deve

comprometer a conhecer-se, pois é a sua essência e a ligação ao Divino - amar o seu

Criador, amando entre os seus irmãos, amigos e inimigos, para uma comunhão infinita,

duradoira (sentido ecuménico). A ágape cristã (amor a Deus e ao próximo até ao sacrifício

da própria vida) que foi “praticada e ensinada por Jesus não é o έρώς sensual dos pagãos,

nem o έρώς intelectual de Platão e de Plotino, mas o amor que envolve o homem total -

inteligência, sensibilidade e vontade - personificado no coração […] bem longe de ser

amor teórico, é caridade prática, traduzida em obras de misericórdia para com o

próximo”98.

Este Deus cristão comunica com o homem, sendo a vida e doutrina de Jesus a plena

revelação do Seu amor. Por isso é que a atenção e preocupação deste Deus Pessoal e

Afectuoso se revelam no próprio exemplo que dá através de Jesus Cristo99, Deus na Terra.

A partilha e a vivência em harmonia deve manifestar-se nesta relação/ligação entre Deus e

o homem, tornando-se visíveis por meio de palavras/orações100 e nas acções

sagradas/sacramentos. As virtudes cristãs (oração/ sacramentos/ detestar vícios/ praticar

virtudes) são as linhas de conduta e exemplo de vida para o homem cristão, por isso, como

vias de acesso abertas ao ascetismo - vencedor de desejos e belezas carnais, desafiador de

perigos e resistente a sofrimentos, voluntários ou não. São estes os sinais, as marcas

distintivas numa interacção em que a graça divina, oferenda do “rei eterno”, e a liberdade

ou livre arbítrio do homem são condições essenciais de construção pessoal. Desta feita,

emergem, necessariamente, a confiança, o afecto e o respeito - Caridade e Piedade101.

98ANTÓNIO FREIRE, “Eros Platónico e Ágape Cristã”, Revista Portuguesa de Filosofia, 25 (1969) 33. 99 Jesus Cristo é Deus feito homem e é ele que nos aparece nos Exercícios Espirituais como a opção e o modelo, juntamente com os seus valores, para o homem. Esta humanização de Deus, que amou e sofreu (paixão de Cristo, paixão pela via etimológica significa sofrer < patior) remete para uma identificação afectiva do ser cristão. Para tal o exercitante, nesses apontamentos e reflexões inacianas, terá de “caminhar” atendendo a quatro momentos a exercitar, a fim de interiorizar Cristo, “ o nosso Sumo Pontífice, modelo e regra nossa, que é Cristo nosso Senhor” (Exercícios Espirituais, nº 344); “Para Inácio, onde está Jesus Cristo está o Pai e o Espírito Santo (…)”; “Cristo é para Inácio o caminho mais fácil para se chegar à Trindade (…)” (MANUEL JOSÉ MARTINS LOPES , “Pedagogia inaciana – I”… cit., p. 228); “modelo de vida humana despojada, consciente e comprometida com o amor” (Idem, Projecto Educativo … cit., p. 144). “Jesus abre e inicia o Reino de Deus. Este Reino, simultaneamente interior e colectivo, e que já chegou mas não está ainda completo, manifesta-se em Jesus Cristo e resume-se no Reinado do amor. Chega a todos os pontos onde o pobre é tratado como um homem, onde os inimigos se reconciliam, onde se promove a justiça, onde se estabelece a verdade, a beleza e o bem. O Reino de Deus ocupa um lugar preferencial na doutrina de Jesus, cujo núcleo central se resolve na lei do amor: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”. É este o primeiro e principal mandamento.” (…) Jesus dita um código moral superior no qual o amor a Deus e o amor ao próximo constituem os dois pólos da conduta. Trata-se de uma ética transmudana que tem implicações profundas na vida.” (PEDRO R. SANTIDRIÁN, PEDRO R. SANTIDRIÁN, Dicionário Básico das Religiões … cit., p. 295). 100 A oração é uma forma de os homens cristãos dialogarem com o Divino, exortando à ascese. O Pai-nosso é a oração universal do mundo cristão que marca claramente as relações de fé, confiança do homem, que apela à harmonia com o seu semelhante, com o seu Deus. Não devemos esquecer que foi ensinada por Jesus Cristo aos seus discípulos. 101 A palavra latina fides, uma das manifestações da pietas romana, significa confiança. A pietas fazia parte de uma tríade dos valores morais romanos fundamentais, consistindo no respeito aos deuses, família e cidade. Salienta-se

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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talidade (…)”106.

Só o exemplo de Amor Infinito dado por Deus, que é mãe e pai102, poderá ligar a

teoria (conhecimento da verdade de Deus), a ciência, o saber e o conhecimento com a

prática (virtudes da conduta - Bem), a conduta, a acção e o fazer.103 A caridade, virtude

teológica que é o grau mais elevado do amor humano, exemplificada por Jesus Cristo, 104

ultrapassa o impulso e filia-se num acto de vontade. Ela, relacionada com a educação do

coração, dos sentidos e da vontade de cada um, “há de ser, claro está, afectiva”105 e alvo

educativo a atingir pelos colégios da Companhia, através da aprendizagem gradativa,

porque adaptada, com base na latinitas. Amor, coração, vontade são indissociáveis,

residindo neles os valores “ (…) o coração está sempre em tensão entre o desejo do vital,

que se consuma na satisfação e o desejo do espiritual, que aspira à to

A todas as constelações de amor cristão julgamos esclarecedor acrescentar a seguinte

explicitação do vocábulo, recuando à sua origem grega:

“O grego tem duas palavras que podem ser traduzidas pela palavra ‘amor’, eros e ágape. Eros pode

ser traduzido por ‘querer’, ‘ansiar’ ou ‘desejar’. O filósofo grego Platão (séc. IV a.C.) utiliza a palavra

eros para referir o desejo humano de beleza, perfeição, conhecimento e eternidade. Segundo Platão, eros

era um anseio interior da humanidade. É uma expressão da origem superior da alma, que, nos seres

humanos, se manifesta como uma necessidade irresistível de empreender a jornada para a morada

celeste. Eros é o desejo efémero que o homem possui de eternidade. Podemos dizer que a palavra

descreve o amor do homem por coisas que vale a pena amar, ou seja, por coisas valiosas. (Nos nossos

dias as palavras ‘Eros’ e ‘erótico’ são usadas de forma mais restrita que na filosofia de Platão,

nomeadamente para designar o amor entre o homem e a mulher.)

De certa forma, a palavra ágape quase que significa completamente o oposto. No Novo Testamento

a palavra é utilizada para referir o amor misericordioso e dedicado de Deus pelo homem, porque é um

amor espontâneo e de auto-sacrifício, sem considerar se a humanidade é dele ‘merecedora’. Dimana não

da pobreza, mas da riqueza, e é igualmente distribuído por aqueles que não são dignos de amor, por

essencialmente o respeito do filho ao pai tão visível no herói épico Eneias quando transporta o seu pai Anquises às costas, após a ruína de Tróia. A piedade cristã está associada também ao carinho, à ternura, ao afecto filial para com Deus e para com as pessoas, pressupondo o amor e o respeito.

Santo Agostinho “explica ainda fides por fit quod dicitur [o que se diz passa a ser]” (ERNEST ROBERT CURTIUS, Literatura Europeia…cit., p. 607). 102 Cf. HENRI NOUWEN, O regresso do filho pródigo – Meditações perante um quadro de Rembrandt, trad. Margarida Osório Gonçalves, Braga, 1997, p. 62.

Segundo MARCIANO VIDAL, “si Yavé es nombrado com el arquétipo de Padre (Ex 4, 22-23; Dt 1, 31; Os 11, 1 s.; Is 1, 2), este nombre no hace relación al mito de fecundidad divina, sino al medo de relacionarse Dios com su pueblo. La fe israelita, lo mismo que la fe cristiana, rechaza la existencia de una diosa-madre junto al Dios Padre.” (Moral del amor y de la sexualidad…cit., p. 40). 103 Finalidade expressa também na IV Parte das Constituições, nos ns. 125 e 314.

ROQUE CABRAL, S.J diz que “o homem é querido, também no duplo sentido da palavra: Deus o quis e deus o amou, Deus o quer e Deus o ama.” (“Liberdade e Ética: Autonomia e Heteronomia …” cit., p. 208). 104 Segundo FRANÇOIS CHARMOT, “Por El [Jesucristo] hemos aprendido que Dios era ‘caridad’ y que habia que darle el nombre de ‘Padre’” (El Amor humano: de la infância al matrimónio, trad. E. G. M. de S., Buenos Aires, 1950, p. 189). 105 CARLOS PALMES DE GENOVER, S.J., La Obediência Religiosa Ignaciana … cit., p. 37. 106 MANUEL MARTINS LOPES, Santo Inácio de Loiola, um educador do desejo … cit., p. 59.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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aqueles que não são fáceis de amar. Neste contexto, o amor de Deus é modelo para a caridade cristã. Os

primeiros cristãos usavam a palavra ágape para designar as suas refeições comunitárias, que

terminavam em comunhão.”107

O Amor aparece referido nos Exercícios Espirituais com muita frequência108,

assumindo acepções ligadas a esta relação comunicativa Deus/Homem. Desta forma,

invocamos, pois, as palavras esclarecedoras nesse contexto:

“O acto criador, tratando-se de pessoas, é um acto mais amoroso do que o próprio acto gerador

humano.”109

“(…) o amor que me move e me faz dar a esmola, desça do alto, do amor de Deus nosso Senhor

(…)”110

1.2. FORMAÇÃO TOTAL DA PESSOA CRISTÃ

Deus é a finalidade última do homem “religiosus et pius”, ou melhor, do homo

Christianus, ao qual se associam, na sua acção, as prescrições definidas e consagradas

pelo Concílio de Trento. A curto prazo, com o fito educativo de formar um homem total,

porque cristão, o aluno/exercitante e a sua constante actividade hão-de constar do

objectivo à volta do qual se arquitecta toda uma estrutura pedagógico-didáctica ordenada.

É à luz desta prioridade que devemos entender a relevância da questão mais significativa

neste contexto: Quem se vai educar?

Como resposta a esta questão apresentamos o ponto 2 a desenvolver mais à frente (p.

64). Só se aprenderá a fazer tudo, assumindo o compromisso de o fazer por si próprio,

numa caminhada cristã de aperfeiçoamento que desembocará no encontro final com um

107 JOSTEIN GAARDER, O Livro das Religiões…cit., pp.155, 156.

A oposição entre as duas espécies de amor, classicamente designadas por eros e ágape, foi sistematizada por A. NYGREN no seu clássico Eros et Agape, trad. franc., Paris, 1944 (ed. Alemã, 1937).

Seguindo este autor, ERICH FUCHS afirma que “Eros é o amor natural, o amor de desejo que visa o outro enquanto puder, pelo seu valor, contribuir para o bem do sujeito. A ágape, à imagem de Deus em Cristo, é o dom de si, gratuito e sem subterfúgio. (…) A ágape não é simplesmente a realização do eros, antes o desvio do seu impulso natural. Mas uma transformação é impossível ao homem sem a acção da graça de Deus. Acha-se aqui um dos temas centrais da moral protestante: é o homem todo, na sua totalidade carnal e espiritual, que deve ser transformado pela graça de Deus.” Este determinismo ou negação da liberdade do homem é rejeitada pela Reforma católica. (O desejo e a ternura, p. 243). 108 São 87 as indicações dos números associados a este vocábulo (INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, p. 226) 109 Ibid., p. 191 110 Ibid., n. 338, p. 173.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Deus Presente e Companheiro. A pessoa cristã deverá ser a Sua colaboradora na redenção

e salvação do ser humano. No entendimento ou discernimento de si próprio e da Verdade,

nas suas acções de caridade e bem comum no mundo, o homem não se desprende desta

visão do Divino.

“Por antonomásia, a pessoa é o ser da palavra e do amor, na medida em que a coisa (objecto) é a

realidade sobre a qual se fala e da qual se dispõe. E mais ainda: a orientação ontológica da pessoa exige

necessariamente sua auto-expressão no amor e na palavra.”111

O Deus, na acepção cristã, é infalível, imutável, ao contrário do homem e sua realidade

- variável, flexível, frágil - por isso, “ um Deus de quem depende a vida e o destino dos

homens."112.

Como consequência de ser singular, inconfundível, insubstituível, irrepetível, único,

deparamo-nos com a unicidade da pessoa que advém de certa interioridade. A consciência,

competência e autonomia de cada um reflectem esta realidade. Certamente só na

“comunhão interpessoal”, no diálogo, na partilha, na interacção se processará a realização

e sentidos plenos.

“Uma relação pessoal com Deus, uma autêntica história dialogística entre Deus e o homem, a

acolhida da própria salvação singular e eterna, o conceito de responsabilidade perante Deus e seu juízo

(…), todas essas afirmações do Cristianismo (…) implicam que o homem é aquilo que queremos dizer

aqui: pessoa e sujeito.”113

Na perspectiva inaciana, o homem como pessoa, em geral, e o professor/director e o

discípulo/exercitante, no campo específico de educação, seguem esta linha da unicidade e

da interioridade do parceiro, ajudante e instrumento de Deus com o qual se dialoga.

Assim, todo o homem é livre na sua escolha para um compromisso responsável com o

Criador114. Todos os elementos que constituem o ser humano terão de ser levados em

consideração no projecto e caminho a implementar pelo sistema educativo, quer as suas

111 E. LÓPEZ AZPITARTE, F.J. ELIZARI BASTERRA, R. RINCÓN ORDUÑA, Praxis Cristã- II. Opção pela vida e pelo amor, trad. de Álvaro Cunha. São Paulo, 1984, p. 21. 112Apud ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Teatro Jesuítico em Portugal no século XVI - A tragicomédia Iosephus do P. Luís da Crus, S.J., Braga, 2004, p. 204. 113 E. LOPEZ AZPITARTE et alii, Praxis Cristã…cit, p. 20. 114 Será interessante referirmos aqui a concepção de indiferença que nos aparece nos Exercícios Espirituais, associando-se a um estado de alma, livre e aberto da nossa história pessoal.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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faculdades cognitivas quer as afectivas115 que constituem o seu mundo interior. Haverá

uma componente identificatória que nos torna únicos, os dons naturais, e a outra, atinente

à tarefa para que sou chamado, a formação do ser. Poderíamos falar, nesta linha de

pensamento, nas qualidades humanas/naturais, o racional e o afectivo. O corpo e o aspecto

físico exigem manutenção, estando ao serviço do que verdadeiramente importa, a

espiritualidade, o “saborear as coisas internamente”, exercitando e experienciando. Só

assim, na linha das orientações fornecidas pelos Exercícios espirituais, se poderá extrair a

riqueza de todo o interior humano, do coração (querer/amar) e da mente (interessar/pensar)

- um todo harmonioso.

“pedir o que quero; será aqui pedir conhecimento interno de tanto bem recebido, para que eu,

reconhecendo-o inteiramente, possa em tudo, amar e servir a sua divina majestade”116.

Na realização total e integrada deste discente em diversificado, incessante e insistente

exercício - para uma sólida construção do seu mundo e vida interior, condição

indispensável para a acção social - merece toda a atenção e labor o plano de estudos. Neste

“múltiplo trabalho das nossas escolas”, almeja-se o desenvolvimento intelectual a par de

uma conduta moral e religiosa e um homem de carácter117. O Ratio de 1599, ao longo das

regras dirigidas a todos os intervenientes na prática educativa dos colégios jesuítas, vai

evidenciando esta centralidade na pessoa que pensa, que quer, que ama, e, deste modo, a

quem se deve propor e incutir uma doutrina e uma moral do amor humano, segundo uma

ágape cristã - amor de gratidão, reconciliação e compaixão118- exposta nos programas e

nas relações humanas próprias de um colégio jesuíta. .

115 Nas faculdades cognitivas devemos considerar entendimento, razão, sentidos, imaginação e memória; às afectivas correspondem a vontade, liberdade, apetites sensitivos e sentimento. Cf. MANUEL JOSÉ MARTINS LOPES, Projecto…cit., p. 59.

A visão hierarquizada do homem, no âmbito de uma moral católica, atende, por um lado, a duas realidades - alma e corpo – e, por outro, consequentemente, ao destino a que é chamado por Deus - passagem de uma vida natural, terrena para uma vida sobrenatural, eterna que é dom de Deus. À alma cabe o protagonismo, em sintonia com o fim pretendido, daí a apologia do espiritual, o contemplativo e o intelectual. O corpo, mero instrumento, encontra-se no âmbito do efémero, mortal, já que material e sensível. (Cf. ERICH FUCHS, O desejo e a ternura…cit., p. 228).

Acerca deste assunto de herança da Antiguidade Clássica, vide infra, p. 115, nota 423 e p. 126, nota 469, no final. 116 INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 233. Neste sentido, a fim de compreendermos esta visão ascética sintonizada com o pendor escolar desta pedagogia, passamos a citar primeira anotação do livrinho referenciado: “Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e de outras operações espirituais (…). Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo o modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na disposição da sua vida para a salvação da alma, se chamam exercícios espirituais.” 117 Cf. MIGUEL BERTRAN QUERA, La Pedagogía de los Jesuitas en la Ratio Studiorum, Caracas, 1984, pp. 145-161. 118 Cf. ANTÓNIO FREIRE, “Eros Platónico e Ágape Cristã…” cit., p. 33.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

56

1.3- EDUCAÇÃO, MEIO E MODO DE ALCANÇAR NA PESSOA A FORMAÇÃO INTELECTUAL, RELIGIOSA E DO CARÁCTER

Pela ambivalência etimológica da palavra educação119, poderemos entender melhor a

perspectiva do ensino e a da aprendizagem. Nesta linha de pensamento, na pedagogia

jesuítica, a educação da juventude é considerada, primordialmente, como o meio de

extrair/desenvolver, num colégio, as capacidades de cada aluno e não apenas “alimentar”,

enchendo a mente do receptor, ouvinte sem ânimo (< animu- espírito), com uma dose

considerável de saberes/conteúdos. Assim, situamo-nos na ajuda a um aluno que queira

aprender a aprender, treinando as suas faculdades mentais, e que queira ser ele próprio na

e para a perfeição - alimentando-lhe o espírito - para se poder unir a Deus, seu Criador.

Esta perfeição concretizar-se-á, através de um conjunto de procedimentos didácticos

sistematizados, numa fórmula trinitária assente no saber intelectual (mente), no espiritual e

no moral (coração). Concilia-se, deste modo, a escolaridade e o ascetismo, em locais onde

deve reinar a ordem (dever/disciplina/autoridade) o exercício, a caridade (aspecto prático

que se denuncia no espírito de serviço), e a piedade (edificação) - referências

imprescindíveis a uma «‘Paideia’ humanística e cristã respondendo simultaneamente às

exigências temporais e doutrinais»120.

Pretendemos neste ponto ir ao encontro do curriculum121 e sua implementação, atentos

à legislação do Ratio, para que, desta forma, este cenário pedagógico se possa completar

com o desenvolvimento dos pontos dois e três - Relação Educativa (No caminho do amor -

Pró “Cura personalis”, p. 64) e Recursos didácticos / Exercícios Escolares (Formação

moral activa e participada, p. 94).

Desta feita, tendo como apoio os documentos que temos vindo a citar, será nosso

intuito dar apenas uma visão geral deste sistema educativo, incidindo primordialmente nas

atitudes e valores resultantes de uma interacção e comunicação entre as pessoas

envolvidas. Os dois principais agentes do processo de ensino/aprendizagem - mestre e

aluno - serão o nosso alvo principal.

119 Deriva de dois verbos latinos educare (alimentar) e educere (extrair). Por curiosidade “Educa ou Edusa era, entre os Romanos, a deusa que presidia à alimentação das crianças, enquanto Vaticano era o deus que assistia à primeira palavra.” (Cf. ALVARO GOMES, Dos mitos de Apolo e Prometeu ou ‘Da Luz e Do Fogo’, Lisboa, 1999, pp. 33-35.). 120 MARGARIDA MIRANDA, “Uma ´Paideia` humanística: a importância dos estudos literários na pedagogia jesuítica do séc. XVI…” cit., p. 238. 121 Pela etimologia da palavra situamo-nos no âmbito da “corrida”, do “(per)curso”, ilustrando, deste modo, certa viagem e até peregrinação na ordem de estudos que é apresentada nas regras do Provincial, no Ratio (Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 362, nº 21; p. 366, nº 38.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

57

Todo o sistema educativo, aberto e complexo, porque humano, é constituído por vários

elementos (Finalidades, Pessoas e Recursos) - situados num espaço e num tempo -

manifestando-se e demarcando-se pela quantidade e qualidade das relações estabelecidas

entre eles. No caso concreto, pretendemos ir ao encontro dos elementos que, em nosso

entender, estão a favor de um ambiente são, visto que atento à construção do ser humano

(cura personalis) e, por isso, vincado a um realismo pedagógico demarcado.

1.3.1. CURRÍCULO FORMATIVO DE LETRAS HUMANAS

1.3.1.1. GRAUS/CLASSES/CURSOS Para uma informação mais detalhada da estrutura do ensino, remetemos para estudos

realizados sobre o assunto122. Neste momento, teremos apenas como referência os graus e

classes que constituíam três ciclos ou cursos, apresentados no Ratio pela ordem

decrescente: 3º Ciclo de Teologia (4 anos), 2º Ciclo dos Estudos Superiores - Filosofia ou

Artes (3 anos) - e o 1º Ciclo dos Estudos Inferiores - Gramática (Inferior ou

Ínfima/Média/Superior - 3 ou mais anos), Humanidades (1 ano) e Retórica (1 ano)123. A

Filosofia e Teologia pertenciam ao nível universitário, estando direccionados para a

formação profissional dos alunos pertencentes à Ordem religiosa. As 5 Classes referentes

às Gramática, Humanidades e Retórica constituíam o curso ou Faculdade de Letras -

humaniores litterae - remetendo-nos esta organização para a Idade Média relativa às três

122 Cf. LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit, pp.47-56; Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto educativo…cit., pp. 94-98; Cf. MANUEL JOSÉ SOUSA BARBOSA, “Os Jesuítas e o Ensino do Latim: Lições actuais de Uma Didáctica Impraticável”, Clássica 20 (1994), 265. 123 A duração de cada curso variava segundo o ritmo de aprendizagem de cada um, por isso não era rígida a calendarização indicada. A trajectória destes cursos poderia levar 12 anos, podendo ser acrescentados à Teologia mais dois anos de estudos privados, perfazendo 14 anos de estudo. Interessa-nos realçar o domínio dos studia humanitatis (1º ciclo de Estudos Inferiores) que no mínimo correspondiam a 5 anos. (Cf. MARGARIDA MIRANDA, “Humanismo Jesuítico e identidade da Europa – Uma Comunidade Pedagógica Europeia”, Humanitas 53 (2001) 101).

O que interessava era atingir os objectivos em cada um desses cursos e, só adquirindo os conhecimentos essenciais, o aluno poderia progredir para o curso seguinte. “Não havia limite para as várias etapas da aprendizagem” (JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto educativo… cit., p. 95).

Para comprovar de maneira rigorosa a importância das classes de Humanidades e Retórica - Cursos de finalidade humanística -, aqui em evidência devido à sua referência obrigatória em função da segunda parte desta pesquisa, destacamos em primeiro lugar os parágrafos que constam da oitava regra do Ratio relativa ao Prefeito de Estudos Inferiores. Aqui, fala-se deste primeiro ciclo, na regra 21 do Provincial. Nas regras 10, 11, e 12 do Reitor, surgem-nos indicações relacionadas com os Estudos Inferiores e a instrução dos alunos de Retórica; não descurando, como é evidente, a primeira regra de cada um dos professores das Gramáticas, Humanidades e Retórica tal como as regras comuns, décima segunda e décima quarta regras, deste grupo designado como professores das classes inferiores. De uma forma sintética e aglutinadora, nos parágrafos da regra oitava do Prefeito de Estudos Inferiores, surge o plano das classes e as subdivisões ajustadas a cada colégio, atendendo à sua localização (Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit pp. 404-405, nº 8; pp. 362-363, nº 21; p. 370, ns. 10, 11, 12; pp. 417-418, ns. 12, 13; pp. 404-405, nº 8)

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Artes Liberais do trivium (Gramática/Retórica/Dialéctica)- Ensino Secundário. O ensino

elementar não era o principal alvo da Companhia124.

A ideia que nos é transmitida na IV parte das Constituições especifica-nos as classes

de estudo concernentes a este primeiro ciclo:

“ Por estudos humanísticos entende-se a retórica, além da gramática.”125

“Por letras humanas, além da gramática, deve entender-se o que diz respeito à retórica, poesia e

história.”126

Todos os Colégios da Companhia possuíam esta base obrigatória e de cariz

preparatório -1ºciclo -, merecendo especial referência no Ratio, documento compilador de

uma educação literária e retórica. A dignificação das litterae relaciona-se com a aquisição

de uma perfeita expressão oral e escrita, preparando para a eloquência, a oratória,

pressuposto imprescindível para passar aos ciclos seguintes. Nas aulas de Humanidades e

Retórica aprimorava-se o cultivo da qualidade da palavra para uma recta dicção e

pronúncia, através de “oratio aut carmen vel utrumque” e para a correcta atitude127. Esta

preparação encaminha-nos para a vertente verbal e simultaneamente conceptual - verba et

res - desta “pedagogia artística, verbal e prático-social”128 que tinha o fito explícito e

primordial do desenvolvimento mental.

As práticas escolares destas aulas serão objecto de análise no ponto 3 (pág. 94), no

entanto, apontam-se, desde já, as breves representações dramáticas nas aulas de

Humanidades e Retórica para a aquisição da eloquentia perfecta. Treinava-se, com

perseverança, a palavra - “expressão bela e elegante, enérgica e convincente”129 - e a

expressividade corporal. Na regra 32 dos professores das classes inferiores, lemos que

estes deveriam trabalhar com os alunos para que dirigissem cum dignitate a voz, o gesto e

toda a acção130, sempre concordantes com a educação dos costumes. Estava em causa a

formação do orador, do jesuíta que deveria no púlpito ir ao encontro das três finalidades

124 “Ensinar a ler e a escrever seria obra de caridade” (INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 441). 125 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 352. 126 Ibid., nº 448. 127 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 428, nº 17; p. 418, nº 18 (Latine loquendi usus severe in primis custodiatur). 128 MIGUEL BERTRAN QUERA, La Pedagogía de los Jesuitas en la Ratio Studiorum…cit., p. 183. 129 PEDRO MAIA, Ratio Studiorum- Método Pedagógico dos Jesuítas… cit., p. 25. 130 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J, Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 421, nº 32: Laborandum etiam, ut vocem, gestus et actionem omnem discipuli cum digitate moderentur.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

59

básicas da oratória, movere, delectare e o docere, o mesmo se aplicando ao aluno externo

numa perspectiva de actividade social e/ou política comprometida e competente131.

As línguas clássicas, grego e latim, ainda que também fizesse parte do currículo o

hebraico (este nos Estudos Superiores), eram os meios de conhecimento por razões

históricas, culturais e didácticas, que, no exercício e progresso da inteligência, poderiam

tornar o homem mais humano. Vinham possibilitar a missão apostólica de divulgação de

um humanismo cristão.

Nos colégios dos jesuítas, a língua latina132 era o meio de transmissão de toda a cultura

humanística do séc. XVI, além de ser também a língua de comunicação entre estudantes e

professores em todo este percurso escolar repleto de exercitação “para glória e

prosperidade da cultura humanística e de todos os alunos do nosso colégio (…)”133.

Todavia, “a utilidade instrumental do latim era um subproduto do currículo; a formação do

homem pelo desenvolvimento harmonioso de suas faculdades, o seu objectivo

primordial”134.

Esta primazia do latim espelhava as tendências académicas universitárias da época,

como nos diz Américo da Costa Ramalho: “Em Coimbra [Universidade], nos meados do

131No Ratio, nas regras do Prefeito de Estudos Inferiores e do professor de Retórica evidencia-se claramente a importância das aulas de Retórica, na atenção especial e acrescida a dar aos alunos jesuítas (Cf. Ibid. p 406, nº 12) e na exigência aquando da admissão de alunos novos (Cf. Ibid., p. 428, nº 20).

Julgamos pertinente a referência a um dos mais famosos oradores desta época, tendo sido mestre na Universidade de Coimbra - Frei Heitor Pinto. Os comentários deste grande escritor clássico em prosa, na língua portuguesa do séc. XVI, a respeito das qualidades de um pregador e finalidades da pregação realçam o sentido de missão, de autoridade, considerando o saber e o sentir. “Esta ligação da palavra ao coração, e não já à razão, aponta no sentido erasmiano e cristocêntrico, expresso no binómio cor/sermo, que substitui o binómio clássico, traduzido na expressão ciceroniana ratio oratioque.” (NAIR NAZARÉ CASTRO SOARES, “Humanismo e pedagogia…” cit., p. 827).

Para sintonizarmos, nesta linha de pensamento, com a Pedagogia da Ordem dos ‘Apóstolos’, ouçamos as palavras “La Ratio Studiorum da suma importância a todo lo que son ‘formas de expressión’, o ‘formas de comunicación’, es decir, a la estilística, al arte de hablar y escribir. En términos antiguos, a la ‘elocuencia’, y en términos de hoy, a las técnicas de comunicación interpersonal y social.” (MIGUEL BERTRAN QUERA, La Pedagogía de los Jesuitas…cit., p.167). 132 Remetemos nesta nota, no sentido de comprovar e especificar o uso do latim, por parte deste sistema de ensino, para os seus códigos de leis. Cf. INÁCIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 336, 381, 400, 402. Fala-se aí da necessidade dos fundamentos do Latim para a frequência dos níveis seguintes, as Artes (Física, Filosofia, Matemática, Lógica, Metafísica, Moral - correspondendo às artes liberais do Quadrivium da Idade Média); do seu uso na comunicação habitual, tendo os Escolásticos que possuir “bons fundamentos no latim” (Cf. Ibid., nº 366) e “na aprendizagem das línguas, um dos fins em vista é defender a tradução aprovada pela Igreja.” (Cf. Ibid., nº 367). Nesta expressão latina, adverte-se também para a adaptabilidade, isto é, o atender às circunstâncias de lugares e pessoas “a idade, o talento, os gostos, os conhecimentos básicos como condicionantes” (Cf. Ibid., nº 354). A indicação de se falar em Latim (Cf. Ibid., nº 382). No Ratio, quer nas regras 7 e 8 do Reitor quer na 18 do Professor de Estudos Inferiores, apela-se para a comunicação em Latim, devendo fomentar o uso na escola e em casa. Os Escolásticos na nona regra também são advertidos para a exercitação do Latim oral e escrito (Cf. .LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 370, ns.7, 8; p. 418, nº 18; p. 443, nº 9). 133 Cf. Ibid., p. 415, nº 12: Quod felix faustumque sit rei literariae, omnibusque nostri gymnasii alumnis primum. Consta da regra relativa à distribuição de prémios aos vencedores de concurso de prosa e poesia latinas e gregas. Os exames eram redigidos em Latim e o aluno deverá escrever na “costas” não só o seu nome mas também o apelido na língua latina (Cf. Ibid., p. 414, nº 8: in tergo nomen tantum scriptoris cum cognomine latine adscribendum). 134 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico…cit, p. 81.

Sobre a importância do Latim nesta época, vide supra, pp. 31, 32.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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séc. XVI, as duas primeiras classes de Latinidade eram pagas a 100 000 réis por ano e o

Grego a 50 000”135.

Para melhor entendimento do pendor formativo deste currículo, atente-se nas palavras:

“Na concepção do Ratio o curso secundário deve ser essencialmente humanista, pendente mais para

a arte do que para a ciência. Sua finalidade não é de transformar os adolescentes em pequeninas

enciclopédias que depois de alguns anos já precisam de ser reeditadas.”136

“llegar por la ‘forma’ al ‘fondo’; por la expresión al contenido’137

Quando permitida a utilização da língua vernácula, o protagonismo do latim não corria

riscos, transparecia o princípio de adaptabilidade a lugares e pessoas138.

Verificámos que a compreensão, a reflexão devidamente planeadas, gradativas e

apoiadas numa praxis, através da realização de actos e aquisição de hábitos, sobrepunha-se

à acumulação de conhecimentos teóricos. Desta feita, compreendemos esta ideia de

aprendizagem significativa, centrando-nos no parágrafo da IV Parte das Constituições

relativo à progressão no estudo por parte dos escolásticos:

“Devem depois decidir-se firmemente a ser estudantes a valer (…) Convençam-se que embora não

venham a exercer nunca o que aprenderam, o trabalho dos estudos, só por si, realizado como dever por

caridade e obediência, é obra de grande mérito diante da divina e soberana Majestade”139.

Nesta linha de pensamento, situamo-nos, mais uma vez, no desenvolvimento total das

capacidades naturais, nos talentos e apetências do jovem adolescente, que na pedagogia

inaciana e, especificamente, no currículo universal (fiel à cultura da época e à doutrina

cristã) se revela na máxima latina “non multa sed multum”, traduzida por Montaigne nos

Essais , I, 26; “plutôt la tête bien faite que bien pleine”. Nunca devemos descurar, como

no-lo repetem grande parte dos parágrafos da IV Parte das Constituições e das regras do

Ratio, a associação entre esta formação humanística e o apostulado da religião cristã.

135 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, “Alguns aspectos da vida universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554)”, Humanitas 33/34 (1981-1982) 13. 136 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico …cit., p. 83. 137 MIGUEL BERTRAN QUERA, La Pedagogía de los Jesuitas …cit., p. 209. 138Em regras comuns dos professores de classes inferiores e, especificamente, nas das classes de Gramática, podemos verificar tal facto (Cf. . LADISLAUS LUKÁCS S.J, Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., pp. 419-420, nº 27). Será oportuna a informação de que, nas classes de Gramática, a língua vernácula aparece nas prelecções do professor, ainda que o português não tivesse lugar próprio nos programas. Eram os textos de Cícero, por exemplo, que exigiam um melhor e adequado entendimento dos alunos, o que, devido à parca exercitação da língua latina, permitia a utilização do vernáculo. (Cf. Ibid., p. 445, nº 6; p. 438, nº 6; pp. 440-441, nº 6). 139 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit, nº 361. Já no parágrafo nº 360 se indica aos escolásticos “alma pura e intenção recta no estudo”.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

61

Noutros termos, a união entre letras ‘pagãs’ e virtudes cristãs que estavam sob a égide do

iterativo princípio da adaptabilidade, reflexo da personalização/humanismo de toda esta

organização escolar, com base numa ars docendi arquitectada em benefício da ars

discendi.

1.3.1.2. LIVROS / TEXTOS/ AUTORES

À luz do que foi dito, será óbvia a atenção conferida à brevidade dos programas e

matérias a leccionar, num processo onde se rejeitava a pressa no alcance dos objectivos de

cada grau. Privilegia-se a profundidade dos conteúdos, conseguida por um método

repetitivo e adaptável (já diz a sabedoria popular “depressa e bem, não há quem!”).

A advertência e indicação de adaptabilidade, face à finalidade pretendida, estavam

bem presentes também no que respeitava aos textos e livros, meios de instrução e

educação de tradição medieval, fortificados e desenvolvidos pelo Humanismo e suas

tipografias. No Ratio, falava-se do conhecimento e cumprimento do livro da ordem dos

estudos (liber de ratione studiorum), função de divulgação atribuída ao Prefeito de

Estudos, bem como da escolha do tipo de livros e quantidade necessária140. Continuava-se

no apelo à lista de livros e sua suficiência a tratar pelo Prefeito de Estudos Inferior141 e na

distribuição dos mesmos por parte do Reitor142. O seu valor moral, ou melhor, o rigor da

doutrina cristã evidenciava-se na selecção dos autores clássicos pagãos e dos autores

cristãos e, ainda, na expurgação a que estavam submetidos certos textos mais

incompatíveis com a doutrina cristã. Salientamos, nesta sequência, as advertência feitas,

quer na IV Parte das Constituições143 quer no Ratio. Aqui o Provincial é advertido para a

vigilância dos livros de poetas ou outros quaisquer, como era o caso do dramaturgo

Terêncio, para que possam ser ajustados à honestidade e bons costumes, evitando a ofensa

140 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 374, nº 4; p. 377, ns. 29, 30. 141 Cf. Ibid., p. 377, ns. 27, 28. 142 Cf. Ibid., p. 371, nº 17. 143 O capítulo XIV da IV Parte da Constituições, no respeitante às Universidades, tem como título “Textos das Aulas”. Já no capítulo quinto, quando se fala das matérias que “hão-de estudar” os escolásticos da Companhia, se adverte para as “passagens imorais” dos autores pagãos e autores “maus” no âmbito de autores cristãos (Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 359).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

62

da pureza das almas, corrompida no caso de a qualidade dos textos ser descurada, daí a

suma importância deste aspecto144.

Também, entre a ingente epistolografia de vincada espiritualidade (contabilizam-se

cerca de 7000 cartas ou instruções de Santo Inácio na edição de doze volumes da colecção

Monumenta Historica - MHSI, é de referir a carta dirigida por Inácio de Loiola, no dia 22

de Junho de 1549, a André Lippomani, por ocasião da fundação do colégio de Veneza.

Nela apresentavam-se normas de expurgação das obras de autores antigos para “el buen

vivir Cristiano y buena instrucción de la juventud”145. Nunca devemos obnubilar a

influência dos valores do Evangelho, que orientavam para uma educação integral, e

resultavam de uma pedagogia de acção e formação filiada nos Exercícios Espirituais,

“arma muy familiar a nuestra Compañia”146 a favor da ortodoxia da Igreja católica

romana.

Dos autores clássicos, auctores graviores, evidenciamos, mais uma vez, a importância

do Arpinante - “Cícero, até maldizendo, disse bem”147 - como modelo a seguir no 1º ciclo

de estudos, desde a Gramática à Retórica. É de realçar a recomendação perante a

necessária exclusividade dos clássicos antigos nas explicações dadas na prelecção dos

professores, em detrimento de autores mais modernos148.

As antologias (sylvae) - assunto a explorar na Parte II, cap. II - continham textos

criteriosamente seleccionados para os estudos clássicos no colégio149, coexistindo com

144 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 364, nº 34: Abstinendum a libris inhonestis – Omni vigilia caveat, maximi momenti id esse ducendo, ut omnino in scholis nostris abstineatur a libris poetarum, aut quibuscunque, qui honestati bonisque moribus nocere queant, nisi prius a rebus et verbis inhonestis prugati sint; vel si omnino purgari non poterunt, quemadmodum Terentius, potius non legantur, ne rerum qualitas animorum puritatem offendat.

Este aviso já aparecera nas Constituições (Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 469). O Professor de Humanidades na primeira regra do Ratio é advertido quanto a outros autores e seus textos (Cf. Ibid., p. 430, nº 1).

Vide infra, pp. 102-103, nota 365; pp. 115-117; 153-154, nota 567. 145 Obras Completas de San Ignacio de Loyola… cit., p. 719. A mesma carta diz-nos: “considero que los libros, sobre todo de letras humanas, que comúnmente suelen leerse a los jóvenes, como son Terencio, Virgilio y otros, contienen entre muchas cosas útiles a la doctrina y no inútiles, sino también de utilidad para la vida, algunas muy profanas y deshonestas,y con sólo oírse nocivas, siendo, como la Escritura dice, las inclinaciones del corazón humano son malas desde la mocedad, y tanto más si estas cosas están puestas delante e inculcadas en los libros que escuchan y donde estudian, teniéndolos ordinariamente en las manos.” (Cf. Ibid., pp. 718-719). 146 Ibid., p. 958. Expressão utilizada em carta datada de 18 de Julho de 1556 - poucos dias antes da morte de Inácio de Loiola, redigida pelo seu secretário Polanco e enviada para P. Fulvio Androzzi, correspondente do fundador, a quem pedia orientação no seu apostolado em Meldola, Itália, 147AMÉRICO DA COSTA RAMALHO e AUGUSTA FERNANDA OLIVEIRA “Cataldo Parísio Sículo, Provérbios”, Agora, Estudos Clássicos em Debate, 7 (2005), respectivamente, pp. 174, 175: Cicero etiam maledicendo bene dixit). 148Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 419, nº 27: In praelectionibus veteres solum auctores, nullo modo recentiores explicentur[…].

Afirma FRANÇOIS DE DAINVILLE: «C’est [Cicéron], selon le mot de Perpinien, l’auteur pour tous les âges e pour tous les temps.» (La naissance de l´Humanisme moderne, Paris, 1940, p. 91). 149 A título exemplificativo, socorremo-nos de algumas expressões que vêm confirmar esta ideia “ expurgar de passagens ou expressões imorais (…)”; “É bem raro que não se misture algum veneno naquilo que sai dum coração cheio dele.” (INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 468, 465).

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

63

livros escolares, produzidos pelos intelectuais da Ordem, como por exemplo a gramática

do Padre Jesuíta Manuel Álvares e a Arte de Retórica do Padre Cipriano Soares150.

“(…) desejavam [os professores da Companhia] livros, em que se compendiassem as prescrições e

exemplos desses mestres, para servirem aos estudantes como de chave ou porta que os introduzisse no

santuário da eloquência.”151

“Ao mesmo passo da língua latina estudava-se o grego. Para aplanar a dificuldade maior desta

língua, estamparam também os diligentes professores selectas e outros livros bem ajustados às

inteligências dos principiantes.”152

Para concluirmos esta breve explanação do “cânone de estudos que constituiu o

protótipo do que seriam na Europa dos séculos XIX e XX os estudos secundários, o

gymnasium ou o Liceu, assente numa sólida cultura geral, com uma forte componente

latina de matriz humanística”153, queremos mostrar que nos colégios também se cuidava

da preservação dos trabalhos escritos. Estes, que resultavam da produção discente, no

âmbito das actividades escolares dinamizadas ao longo do ano lectivo, eram arquivados

num códice ou diário, normalmente sob a alçada do Reitor154.

Sobre a produção de antologias, CLAUDE-HENRI FRECHES diz-nos: «En 1588, à l’ époque où florissaient les Collèges

jésuites, on imprima un recueil de testes latins pour les classes, sous le titre de Sylvae illustrorum Authorum: on y trouve du Cicéron, du Quinte Curse, des lettres de Saint Jérome, du Lactance, le De Justitia et de Regis institutione d’ Osório, les Métamorphoses et les Héroides d’ Ovide, des scènes de Térence (Andria, Eunuchus, Heautontimoroumenos) et de Plaute (Captivi, Stichus) […]» (Le Theatre Neo-Latin au Portugal … cit., p. 93). 150 Passamos a indicar as regras onde se encontra referência a este manual: Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 363 , nº 23; p. 406; nº 13; 417, nº 12; p. 420, nº 29;p. 431, nº 2; p. 432, nº 8. 151 FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, vol.II, tomo II, cap. II, p. 48. 152 Ibid. p. 60. 153 MARGARIDA MIRANDA, “Humanismo Jesuítico e Identidade da Europa…” cit., p. 106. 154 LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 371, nº 16.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

64

2. RELAÇÃO EDUCATIVA NO CAMINHO DO AMOR - PRÓ “CURA PERSONALIS”

Nesta educação humanística integral, em que a finalidade última era Deus (referente

do valor moral, opção e modelo pela figura de Cristo), as relações humanas, num local e

tempo escolares laboriosamente definidos, determinados e legislados, e a formação dos

estudantes escolásticos e dos de fora são os pontos de análise a desenvolver neste item.

Situamo-nos, desde já, na finalidade intermédia e imediata ou nas várias finalidades

específicas almejadas nas comunidades escolares dos colégios jesuítas. Aqui, ao serviço da

formação de cada aluno, aquele tipo de finalidades materializava-se quer na instrução

pelas letras, onde a memória e a inteligência estavam na mira dos educadores, quer na

especial atenção votada ao desenvolvimento da boa vontade e do bom coração “do homem

interior” - aptidões, atitudes, afectos. Centrar-nos-emos na provisão da pessoa para o

caminho dos bons costumes, para desejar e saber escolher o Bem em detrimento do Mal,

sob o lema da Bondade cristã, em comunhão com a graça divina.

A formação do carácter e da consciência moral, ligadas a critérios e meios práticos de

conduta cristã, evidenciava-se num ambiente que se queria solidário e colaborante em toda

a comunidade familiar do colégio jesuíta. A vida que aí se vivia ou a experiência que aí

sobressaía incitavam a valores morais católicos, ao respeito, à convergência de esforços, a

estímulos na aprendizagem, que deviam avultar nessa interacção, e a um amor oblativo em

nome de Deus. Estes são fios condutores desta nossa viagem investigadora, escolhendo

como “grito” de partida as palavras de François Charmot: “Não há humanismo sem

educação do coração, por meio da literatura e da vida”155.

Pretendemos o levantamento de sólidas virtudes, tantas vezes motivo de

correspondência para o fundador da Ordem, as quais deviam servir de fundamento

obrigatório às pessoas que se encontravam nesses locais educativos. Abrimos, deste modo,

o caminho para a posterior análise de textos dramáticos escolares, onde as personagens

(imagem do homem na ficção) evidenciam essa preocupação moral cristã de amor ao

próximo, amor de puro serviço que se distancia de um amor de si mesmo, egocêntrico, um

amor governado pelo impulso afectivo e sexual. Na acepção horaciana de utile dulci,156 a

155 FRANÇOIS CHARMOT, El Amor humano: de la infância al matrimónio”… cit., p. 113: “No hay humanismo sin educación del corazón, por medio de la literatura y de la vida.” 156 Cf. NAIR DE NAZARÉ SOARES, “Pedagogia Humanista na colégio das artes ao tempo de Anchieta”, in Actas do Congresso Internacional: Anchieta em Coimbra – 450 anos, vol. III, p.1042.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

65

res litteraria, revelada pelo género dramático e toda a sua capacidade estética e

comunicativa, estava ao serviço do exercitar e educar/ formar o carácter - cognitio

verborum et cognitio rerum (eloquência).

À luz da tradicional metáfora teatral da vida, vamos encarar o mundo real do colégio

como o “palco de teatro”. Assim, os materiais usados, os momentos de preparação dos

papéis educativos (educador/educando) e seu desempenho dão-nos a imagem da pessoa

como actor social, especialmente do aluno que se constrói e molda em função da

finalidade pretendida e institucionalizada. Resgatamos, nesta visão, a etimologia da

palavra pessoa (persona<máscara157), para entendermos a dramaturgia que a própria vida

pode assumir. Enveredamos por esta perspectiva para que a primeira parte do nosso

trabalho, com especial relevância do segundo capítulo, surja como um quadro real, vivo e

histórico de interacções humanas hierarquizadas, que vem auxiliar na adequada

compreensão do estudo a operar nas fictícias peças dramáticas do capítulo homónimo da

segunda parte. Veremos que as personagens e seu valor/virtude, apesar da criação artística,

pretendiam, de forma exigente, ser referências cristãs vivas e reais para que os

espectadores e os próprios actores (futuros cidadãos comprometidos - médicos, teólogos,

missionários, professores, governantes, escritores) se espelhassem nas suas palavras e

acções e as sentissem internamente, segundo Inácio de Loiola, e inteiramente, segundo a

visão educativa de formação integral158.

A ordem e o exercício159 (para nós indicativos fortes na organização desta exposição)

eram pilares que sustentavam este palco educativo do homem, ser humano do género

masculino, em acto comunicativo (saber/pensar/realizar). Ele era o centro da Criação, por

157 O significado primitivo, em latim, da palavra persona, que por via popular deu pessoa na língua lusa, era de máscara e personagem de teatro. A visão da vida humana como uma comédia ou tragédia é um topos literário, em que a pessoa (indivíduo) é portadora de várias personagens, de máscaras. 158 Julgamos que as palavras do prólogo de LUÍS FRANCISCO REBELO vêm corroborar e reforçar a perspectiva de abordagem apresentada, quando diz que o teatro é “reflexo da vida que na vida afinal se reflecte” (História do teatro Português, Lisboa, 1967, p. 13). 159 O modus parisiensis, adoptado nesta pedagogia humanística dos colégios da Ordem, assenta nestes dois princípios, os quais pretendem o alcance da formação integral do aluno. Em Portugal, foram mestres como André Gouveia, Diogo de Teive e seus amigos, Jorge Buchanan, Elias Vinet, dinamizadores deste método, aquando da gestão do Colégio Real das Artes de Coimbra a convite do monarca D. João III. Este método “assentava em duas características essenciais: a ordem com que se distinguiam rigorosamente os cursos e as classes de alunos segundo graus de aprendizagem, e o exercício constante, sujeito aos mais diversos processos de emulação” (MARGARIDA MIRANDA,“ Teatro de Anchieta: nas origens”, in Actas do Congresso Internacional: Anchieta em Coimbra - 450 anos, vol. III, Coimbra, 1998, p. 952).

Indicamos também sobre o assunto a leitura do artigo NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Pedagogia Humanista no colégio das artes ao tempo de Anchieta…” cit., p.1047.

JEAN LACOUTURE, na associação que faz entre modus parisiensis e a Companhia de Jesus, apresenta os seguintes princípios: “equilíbrio dos conhecimentos, moderação de pensamento, clareza de exposição, naturalidade de comportamento, pudor na devoção”. (Os Jesuítas, A conquista, trad. Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo, 1993, p. 215).

Vide supra, p. 33, nota 49 e vide infra, p. 78, nota 228.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

66

isso, o centro da atenção contínua e individualizada de todo um sistema educativo. Estava

em causa nesta estrutura, por um lado, a acção intrapessoal e, por outro, a acção

interpessoal e as manifestações das qualidades/capacidades humanas e espirituais

subjacentes. O entusiasmo160 era pressuposto básico nesta pedagogia espiritual, motivada

por um caminho interior de ascetismo apresentado nos Exercícios Espirituais. O Amor

humano, manifestação de atitudes, hábitos e valores, devia ser encarado como acto,

serviço aos outros e resposta livre de cada um à vontade divina. A liberdade responsável

era a timoneira desse acto consciente, discernido, daí que, coração (Q.E.) e cabeça (Q.I.),

constituíssem um todo, sendo a espiritualidade impressa no carácter, a condição essencial

para possibilitar essa união. Desta feita, caberia a esta força motriz da Criação, entendida

para além do mero sentimento e estado emotivo, o protagonismo e a compilação de

valores que hão-de confluir para a “divina e soberana Bondade”161. Esta bondade a que

Inácio de Loiola, segundo Carlos Palmes de Genover, considera atributo essencial da

obediência, juntamente com a sabedoria,162, tendo sido designada por Montaigne como

primordial ciência - “toda a outra ciência é prejudicial a quem não tenha a ciência da

bondade”163. Este é o caminho onde se poderá alcançar o bem comum164.

Nesta Pedagogia inaciana, o conceito do amor impregnado de espírito, factor de

divinização da vida, está expresso nos Exercícios Espirituais - “o amor se deve pôr mais

nas obras que nas palavras”165. Nesta acepção de relação entre imanência e

transcendência, na parte destinada ao vocabulário em jeito de glossário, esse livro de

transmissão de uma ideologia religiosa fala do “Ad Amorem - método de oração ou “trato

de amizade” entre Deus e o Homem, mais através de actos que palavras. (…); pode

revestir os mais diversos graus de mútua correspondência (…)”166. “A comunicação

recíproca”, o dar e receber entre o divino e o humano, surgem na linha da salvação da

alma. Amor Infinito é sinónimo de dádiva, entrega e partilha, porque ligado a Deus, ele

próprio como Pai, Filho e Espírito Santo é exemplo disso. Assim, as relações humanas,

160 Esta palavra revela na sua origem etimológica (do grego έυθεος), a ligação da pessoa a Deus, com a interiorização Deste - “apoderado de Deus” (Cf. ALVARO GOMES, Dos mitos de Apolo e Prometeu ou ‘Da Luz e Do Fogo’, Lisboa, 1999, p.96). 161 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 437. 162 Na opinião de CARLOS PALMES DE GENOVER, “Sus atributos esenciales son la Sabiduría y la Bondad que San Ignacio suele presentar juntos, aunque cuando el caso lo pide, hace resaltar sólo uno de ellos.” (La Obediência religiosa ignaciana… cit., p. 158). 163 Apud ANTÓNIO FREIRE, Humanismo Cristão, Braga, 1994, p. 27. 164 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 426. 165 No final do percurso espiritual apontado por Inácio de Loiola surge a “Contemplação Global em Chave de Amor” - “Contemplação para alcançar amor”. Adverte-se nesta contemplação para a importância da acção/actividade/obras e da comunicação recíproca /diálogo. (Cf. INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, ns. 230-237). 166 Ibid., p. 224.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

67

encarados apenas como uma

fam

íta Teilhard de Chardin “o amor é capaz de

completar os seres como seres, unindo-os”170.

.1. ORDEM NOS RECURSOS HUMANOS E NOS RECURSOS MATERIAIS E TEMPORAIS

REFEITO DE ESTUDOS >PREFEITO DE ESTUDOS INFERIORES >PREFEITO DA ACADEMIA

implementadas nos colégios, bebiam nestas fontes, visíveis no estilo educativo da cura

personalis que deveria manifestar-se de várias maneiras, mediante o sítio e o indivíduo em

causa. Essa diversidade era típica dos diferentes tipos de relações hierarquizadas

estabelecidas entre seres humanos que não poderiam ser

ília religiosa.

Em redor da caridade e da piedade cristãs fazia-se a apologia de manifestações de

afecto e pretendidas virtudes167 morais que ajudavam à construção do homem total para o

mundo real, seguindo o seu ritmo de aprendizagem natural. Pela sujeição e subordinação a

uma hierarquia - conformes ao querer (vontade) e ao sentir (entendimento) -, as paixões

comuns, as moções sensuais, os prazeres sensuais e aparentes, os vícios e as deleitações

podiam e deviam afastar-se para que se chegasse à “perfección de la obediência, que está

en obedecer con amor y alegria”168. A obediência era o “único critério de conducta, el

maior servicio y gloria de Dios para desear estar en uno o outro lugar, para trabajar o

descansar…”169 Ao nível de entendimento exposto, pretendemos dar aqui

amplitude/projecção às palavras do padre jesu

2

2.1.1. CORPO ADMINISTRATIVO DE GESTÃO DOS COLÉGIOS PROVINCIAL >REITOR >P

167 Este vocábulo pode aparecer com um sentido moral e não moral. Este último sentido associa-se à Antiguidade Clássica, onde emerge como “excelência, valor (sobretudo guerreiro), destreza”. “A Renascença italiana voltou a colocar em primeiro plano o sentido clássico, não ético, do termo (virtu).” Os pensadores cristãos situam-se no âmbito da ética estóica, onde a “liberdade e a semelhança com a divindade” asseguram a virtude (Cf. ROQUE CABRAL; Temas de Ética ... cit., pp. 155, 156). 168 Obras Completas de San Ignacio de Loyola… cit., p. 812.

A carta de Inácio de Loiola aos Padres e irmãos de Portugal, datada de 26 de Março de 1553, representa a expressão clássica e completa de Inácio sobre a obediência, que implica não só a vontade de obedecer - aperfeiçoando o livre arbítrio-, mas essencialmente o entendimento. Só assim se compreendem atributos que nesta epístola e outras (Cf. pp. 646, 694, 800, 945) surgem associados à obediência: cega, santa e necessária, possível, justa, perfeita, surgindo a humildade e a modéstia como meios para a conseguir. Este apelo do fundador à obediência, tal como o fez em outras cartas, era consequência da situação crítica que a Companhia estava a passar em Portugal, coincidindo com a saída de 30 e não 127 jesuítas, como no-lo afirma FRANCISCO RODRIGUES na História da Companhia de Jesus, vol. 2, tomo I, pp 41-55 e 137-141). Já na carta mandada por Inácio ao Provincial português, na altura, o escrupuloso e ansioso Diogo Mirão, datada de 17 de Dezembro de 1552, se fala da falta da virtude necessária que é o respeito, reverência e a santa e perfeita obediência aos superiores (Ibid. p. 800). 169 CARLOS PALMES DE GENOVER, La Obediência religiosa ignaciana… cit., p. 157. 170 TEILHARD DE CHARDIN, Le Coeur de la Matière, Paris, 1976, p. 12.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

68

A ordem171, entendida como organização, tinha como princípio manter a unidade num

ambiente de devotado estudo, variado relacionamento e onde se devia respirar

espiritualidade. A autoridade era necessária ao desempenho de papéis, coadjuvada pelo

respeito mútuo e espírito de equipa na e para a comunidade escolar. Entre homens, na

acepção masculina do termo, pretendia-se colocar em acção a cooperação, a partilha, a

comunhão, o serviço, impulsionados pelo amor cristão de entrega desinteressada,

conforme à vontade de Deus. Todos os intervenientes, pela competência intelectual e a

consciência moral, deviam obedecer a uma hierarquia, em que a subordinação era

mandamento registado nos parágrafos da Parte IV das Constituições e, com mais detalhe,

nas regras práticas inseridas no Ratio, aquando da especificação dos cargos de cada um

dos envolvidos.

Toda esta arrumação impunha disciplina escolar rigorosa se justificava numa visão de

família numerosa e numa atmosfera de “múltiplo trabalho” - um “dar-se à letras (…) com

pura intenção do serviço divino (…)”172, aceitando com santa obediência as regras

regulamentadas. Contudo, nas relações/atitudes não se descurava esse amor ao próximo,

cuja ressonância se aufere de avisos como este:

“Quanto for possível deve-se proceder em espírito de mansidão, e manter a paz e caridade com

todos.”173 Esta disciplina, ligada à ordem, à acção unitária, à hierarquia, à subordinação, à

diligência, à modéstia, à decência, rejeitando o autoritarismo e o capricho pessoal,

pretendia a maior eficácia possível na atenção a dar ao aluno, para que com sucesso

chegasse à finalidade imediata de formação, tantas vezes já registada neste estudo.

Todos, no desempenho de funções, teriam de ter consciência das suas obrigações e

deveres, sendo fiéis ao regulamento implementado. Só desta forma, domésticos/internos e

externos poderiam ser devidamente coadjuvados na edificação das dimensões pretendidas.

Se repararmos em todo o capítulo décimo da IV Parte das Constituições, verificamos que

no governo dos colégios se exigia perseverança, desinteresse material e espiritualidade.

171 “No âmbito da Reforma, (…) o termo passa a assumir frequentemente o significado de mandamento ou preceito” (ROQUE CABRAL; Temas de Ética … cit., p. 92).

JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES afirma que “ ordem, nos Exercícios Espirituais, significa que eles obedecem a um processo objectivo, onde cada etapa anterior é fundamental para a posterior. Todavia, este processo necessita, para Inácio, de ir, simultaneamente, acompanhado por um elemento adaptador, moderador e, em última análise, discernidor, que será o modo.” (Projecto… cit., p. 138). 172 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 340. 173 Ibid., nº 489.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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Se Inácio de Loiola concebe a existência dos Jesuítas, baseando-a no amor de

Deus/Jesus Cristo, no desejo de ajudar as almas e no desejo de estar ao serviço dos outros,

a obediência tem de ser imposta ao aprendiz e ao profissional/trabalhador com maturidade,

espiritualidade e imaginação. Neste regime, sempre em sintonia com a graça divina,

alcança-se fama, honra e perfeição espiritual, moral e intelectual174.

No colégio, o prudente Reitor situava-se no topo desta hierarquia, sendo coadjutor do

Provincial175, auxiliado nesta tarefa pelos seus subordinados. Eram estes dois cargos de

destaque que se relacionavam, directa ou indirectamente, com todos os restantes

elementos, pois se ao Provincial interessava a organização das classes, a ordem dos

estudos e certas normas relacionadas com os professores para se caminhar no mesmo

sentido, ao Reitor competia estar vigilante aos graus de ensino, Prefeitos, Professores e

Alunos, para uma adaptação constante à realidade concreta.

O Provincial encontrava-se no topo desta organização hierárquica apresentada pela

Companhia:

“(…) todo o poder, toda a organização e, normalmente, a execução desta superintendência

pertencerá ao Prepósito Geral”.176 “(…) tenha o Prepósito Provincial cuidado com todo o estudo para que o fruto que a graça da nossa

vocação exige, responda abundantemente ao múltiplo trabalho das nossas escolas.”177

Das suas incumbências, salientamos a abertura e o encerramento de Colégios, bem

como toda a dinâmica aí implementada, os graus ou níveis, a calendarização, todas as

pessoas envolvidas no percurso escolar até aos estudos universitários. Os que lhe estavam

subordinados deviam ter “siempre la convicción de que lo que manda el Superior - fuera

del caso de pecado - es la voluntad de Dios para él”178.

174 Cf. E. EDWARD KINERK, S. J., “Eliciting Great Desires: Their Place in the Spirituality of the Society of Jesus”, Studies in the Spirituality of Jesuits, 5 (1984) 18-20. 175 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 421. Acerca desta designação de coadjutor seria conveniente, para maior clarificação, atender à referência de “coadjutores temporais”, os quais se encontravam no colégio sem o objectivo do estudo (nº 365). Eles existiam para aliviar os estudantes internos/escolásticos, possibilitando mais dedicação ao estudo por parte destes, mas “não há inconveniente em ajudar alguma vez os que estão sobrecarregados com trabalhos dificultosos”(nº 364). 176 Ibid., nº 420. Remete-se para os parágrafos ns. 320-323, onde se especificam “os plenos poderes” do Prepósito Geral ou Provincial.

WILLIAM W. MEISSNER escreve que “le plus petit commandement du supérieur est synonyme de la volonté de Dieu. L’ ordre du supérieur est dès lors donné in loco Christi, à la place du Christ» (Ignace de Loyola – La psychologie d’ un saint… cit., p. 297). 177 Cf. MANUEL PEREIRA GOMES, Sto Inácio e a Fundação de Colégios… cit, p.115, nº 1;

Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J, Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 357, nº 1: omni studio curandum sibi putet praepositus provincialis, ut tam multiplici scholarum nostrarum labori fructus, quem gratia nostrae vocationis exigit, abunde respondeat. 178 CARLOS PALMES DE GENOVER, La Obediência religiosa ignaciana… cit., p. 158.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

70

Em cada colégio, caberia ao subordinado do Provincial, o Reitor179 e aos auxiliares

deste, os Prefeitos, a vigilância e o cuidado no cumprimento das regras, bem como a

prestação da ajuda necessária. - “esta sujeición y subordinación no se hace sin

conformidad del entendimiento y voluntad del inferior al Superior”180.

A quadragésima e última regra do Ratio, relativa ao Provincial, sublinhava e decalcava

bem a insistência, já documentada ao longo das Constituições, face ao “principal cuidado

dos costumes e da piedade”181. A prescrição concernente à “piedade, disciplina de

costumes e do ensino da doutrina” era apontada e incumbida aos professores das classes

inferiores. Estes terão a nossa atenção especial, porque leccionavam Retórica,

Humanidades e Gramática - o apelidado ciclo de Estudos Inferiores -, estando, no Ratio,

direccionadas para eles 50 regras comuns. Todas em uníssono apelavam a uma liderança e

preparação, do melhor modo, das tenras mentes dos adolescentes, de maneira a conduzi-

los à dinamização/desenvolvimento da inteligência, à apreensão da obediência, do amor de

Deus e das virtudes pelas quais é necessário agradar-Lhe182.

O Reitor era a presença paternal que tinha o governo total do colégio, dirigindo a

grande família, sob a égide de sólidas virtudes “como es la paciência, humildad,

obediência, abnegación de la volontad própria, caridad, es decir, buena voluntad de

servirle a El y, por lo mismo, a los prójimos”183. Devido à complexidade estrutural de um

colégio, e de maneira a facilitar o acompanhamento personalizado, os coadjutores, “cuja

prudência e bondade lhe inspirem muita confiança”, auxiliavam-no na difícil tarefa

humana de procurar o “cuidado conveniente que deve haver em conservar os nossos

amigos e cativar a benevolência dos que nos são opostos”184.

179 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 421. 180 Excerto retirado da carta dirigida ao padres e irmãos de Portugal, a 26 de Março de 1553, onde a obediência é o assunto principal. Obras Completas de San Ignacio de Loyola … cit., 1963, p. 811.

São numerosas as cartas e instruções que expressam modos de estabelecer relações com os Superiores (cf. pp. 761-770; 923-924) e modo de governação (cf. pp. 800-801) e ainda a carta dirigida aos padres e irmãos de Gandia, a 29 de Julho de 1547, onde se fala de um sistema de eleição directa do superior pelos moradores do colégio, o que não teve projecção futura em outros colégios da Companhia (Cf. pp. 694-700). 181 Nesta linha, apesar do capítulo XVI se destinar aos bons costumes a ter em consideração no ensino universitário, remetemos para a leitura do mesmo para uma visão mais vasta do assunto em questão. 182Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 416, nº 1: […] ad teneras adolescentium mentes obsequio et amori Dei, ac virtutum, quibus ei placere oportet, […]. 183 Obras Completas de San Ignacio de Loyola…, p. 843. Este excerto é de uma carta de 30 de Dezembro de 1553, em que Inácio de Loiola exorta o seu destinatário, o reitor de Módena, P. Filipe Leerno, a confiar nos dons de Deus no cargo que iria ocupar e para o qual Filipe se considerava inábil.

O Reitor era escolhido atendendo a que fosse “Homem de grande exemplo e edificação”; deveria “sustentar todo o colégio com suas orações e santos desejos”;“ensinar pessoalmente a Doutrina Cristã (…)” e lia “as Constituições duas ou três vezes por ano.” (INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 423, 424, 437, 439). 184 Ibid., nº 426. Na IV Parte das Constituições, fala-se em duas ou mais pessoas, num Vice-Reitor ou Mestre de casa que “se ocupe de tudo o que se refere ao bem geral. Depois de um Síndico para a disciplina exterior, e um outro com superintendência nas coisas espirituais” (nº 431).

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Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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No campo de acção abrangente atribuído ao Reitor, como no-lo provam as 24 regras

do Ratio, salienta-se a importância dos Prefeitos, como veremos. Diferenciamos a décima

oitava e vigésima regras do Reitor, nas quais se fala da incumbência daqueles em recitar

regras comuns aos docentes, com realce para as que dizem respeito à piedade e à disciplina

dos bons costumes, bem como ao favorecimento da afabilidade dos professores com

diligenter caritate religiosa e no afastamento da sobrecarga nas tarefas domésticas185. Está

bem patente a preocupação face ao eufónico e são ambiente de bem estar, para que se

possa obter um fazer bem e um ser bom.

O mesmo se pretendia nas representações de comédias e tragédias, onde o argumento,

na sua expressão latina, tinha de ser sacrum ac pium,e a decência (decorum) imperativa,

rejeitando-se toda a introdução do hábito feminino e da própria presença feminina186.

Também se fazia sentir esta preocupação face ao humano no tocante ao descanso dos

alunos, o que era registado nas normas do Reitor. Desta feita, se se pretendia a recta gestão

de cada um dos ofícios e o “velar solicitamente por todos, guardá-los dos perigos dentro e

fora de casa, prevendo o mal ou pondo-lhe remédio quando ele existir (…)”187, seria

preocupação superior o controlo de ocupações excessivas e impeditivas do estudo188, bem

como reforçar o apelo aos professores modelo, para que procedessem e discursassem de

acordo com piedade e disciplina dos bons costumes.

O Prefeito Geral, o intermediário geral do Reitor, de quem recebia o poder para

ordenar rectamente os estudos e para governar e moderar os colégios189, bem como o

Prefeito de estudos inferiores (Prefeito da disciplina), também ele ajudante do Reitor,

seguiam-se na escala hierárquica. Este Prefeito de Estudos Inferiores estaria subordinado

ao Reitor em assuntos de rectidão disciplinar e ao Prefeito Geral de estudos no que diz

respeito a estudos190. Os Prefeitos eram elos de ligação entre o Reitor e os Professores, ou

melhor, eram eles os gestores e inspectores no cenário das operações, onde a disciplina

comandava. A existência deste órgão executivo, dependente do Reitor, permitiria o

aproveitamento mais abrangente da rectidão da vida, das boas e belas artes e da doutrina

185 Cf. Ibid., p. 371, nº 18. 186Cf. Ibid., p. 371, nº 13: […] argumentum sacrum sit ac pium; neque quicquam actibus interponatur, quod non latinum sit et decorum, nec persona ulla muliebris vel habitus introducatur. 187 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 424. 188LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 369, ns. 2, 4: […] proinde occupationes omnes discipulis praecidat, quae studiis impedimento esse possint 189 Cf. Ibid., p. 374, nº1: […] generale rectoris instrumentum esse ad studia recte ordinanda, scholasque nostras ita regendas ac moderandas pro facultate ab eo accepta […] 190 Cf. Ibid., p. 403, nº 2: In rebus quae ad morum disciplinam in scholis nostris pertinent, rectorem tantum, in iis vero ,quae ad studia, generalem studiorum praefectum consulat.

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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para glória de Deus por parte dos alunos191 que poderiam, se fosse costume, ouvir avisos

salutares e próprios das crianças192. A este coadjutor - Prefeito de Estudos Inferiores -,

juntamente com o Reitor, competia advertir com cortesia pais ou tutores de alunos que,

pelo mau comportamento e aproveitamento, a melhor atitude seria a de deixarem o lugar

para outros mais interessados193.

No trato com os Professores, o Prefeito de estudos ou chanceler atenderia aos

requisitos pelos quais era eleito pelo Provincial: obediência, humildade em relação aos

seus superiores e ser um homem versado em letras, cumprindo as tarefas com zelo e bom

senso194. Reunia com o professor uma vez no mês e lia os comentários dos alunos, no

sentido de auscultar o desempenho lectivo do mesmo, avisando “benignamente e como

companheiro o professor” e relatando “tudo ao reitor se assim achar”195. Ainda poderia

fazer uma visita a aulas, durante 15 dias, para verificar se todas as estratégias e conteúdos

das mesmas eram encaminhados pelo professor de acordo com a doctrina christiana, e

para o relacionamento ser conveniente e louvável em tudo196. A par da distribuição do

calendário escolar e informações inerentes, também se alertavam os docentes para estarem

atentos a aspectos dos discentes que poderiam extravasar o previsível, a normalidade

normativizada197. Surge-nos também a referência a um Prefeito de Átrio, seguidor da

mesma conduta indicada para o Prefeito de Estudos Inferiores, sendo, tal como este,

auxiliar do Prefeito dos Estudos ou Prefeito Geral de Estudos198. O momento lúdico

também primava pela disciplina, como podemos verificar nas incumbências atribuídas aos

professores das classes inferiores, no que diz respeito ao recreio.

O Prefeito da Academia, a quem lhe são atribuídas 5 regras, existia no âmbito do grupo

de alunos seleccionados nos cursos de Filosofia e Teologia199. A cura personalis também

pode ser vista em relação aos professores subordinados, que eram dirigidos,

191 Cf. p. 374, nº 1;: […] maxime in vitae probitate ac bonis artibus doctrinaque proficiant ad Dei gloriam. 403, nº 1: […] in bonis artibus,in vitae probitate proficiant. 192 Cf. Ibid., p. 372, nº 21: […] et an ex usu sit, ut ipsemet praefectus aliusve per classes interdum monita salutaria et propria puerorum tradat. 193 Cf. Ibid. p. 407, nº 25: […] agatur cum rectore, ut, eorum parentibus aut curatoribus perhumaniter admonitis, locum non occupent. 194 Cf. Ibid., p. 357, nº 2: […] virum in litteris egregie versatum, qui et zelo bono et iudicio ad ea […] humilitate pareant. 195 Ibid., p. 376, nº 17: […] praeceptorem perquam benigne et comiter admoneat; remque totam ad rectorem, si necesse sit, deferat 196 Cf. Ibid., p. 403, nº 6: Quintodecimo quoque die minimum singulos docentes audiat; observet, an doctrinae christianae debitum tempus atque operam tribuant;[…] an denique cum discipulis decore ac laudabiliter se in rebus omnibus gerant. 197 Cf. Ibid., p. 403, nº 7: […] quando item discipuli ad publicas supplicationes, aliaque id genus dimittendi, aut aliquid extra ordinem agere iubendi seu vetandi. 198 Cf. Ibid., p. 372, nº 22. 199 Cf. Ibid., p. 451-452.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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inspeccionados e ajudados200, em função de um maior e melhor/adequado

acompanhamento e benefício para os alunos. Desta feita,

“com este empenho e consciência procuravam os Religiosos da Companhia manter em nível sempre

elevado e promover os estudos em Portugal, para corresponderem lealmente aos encargos que recebiam.

De toda a documentação particular e oficial daqueles séculos XVI e XVII se manifesta a solicitude e

tanta vez a preocupação de não deixar decair o ensino ou de o levantar as alturas de florescente

prosperidade”201.

Como já foi dito, a propósito da importância de professores e dos alunos no sistema

em análise, o ponto de exposição/reflexão, que se segue, será a eles dedicado.

2.1.2. PROFESSOR/ALUNO

Toda a organização, hierarquia e legislação, estabelecidas para articular meios e fins,

giravam à volta da relação educador/educando, daí que o tratamento deste tema se

apresente tripartido (professores; alunos, acção conjunta). Todos estes elementos estão

relacionados entre si e subordinados à ordem e exercício diligente, lema da pedagogia

focalizada, bem como em prol de um serviço divino, de um bem universal que se

concretiza, em termos pedagógico-didácticos, no dever do estudo e ainda na devoção e

oração na sala de aula e na capela202.

Neste ponto, as manifestações de comportamento, reveladoras de qualidades humanas,

estarão na nossa mira, nunca obnubilando o ambiente de amor e afecto fraternos onde se

pretendem implementar, emergindo o plano psicológico bem como o sociológico.

2.1.2.1. O PROFESSOR

Este agente educativo era o espelho imediato da legislação desse apostolado que era o

ensino da Companhia - “Dar de graça o que de graça recebemos” - , sendo auxiliado pelos

200 Cf. Ibid., p. 403, nº 4; p. 417, nº 11. 201 FRANCISCO RODRIGUES, Historia da Companhia de Jesus em Portugal… cit., vol II, tomo II, p. 27. 202 A ideia aqui explanada aparece sempre corroborada pelas expressões como “dever de caridade e de amor”, quando a Companhia se refere aos fundadores dos colégios e fundadores, e “dever por caridade e obediência”, relativo à forma de encarar o estudo (INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 318, 361).

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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seus superiores a quem devia obediência. Esta subordinação203 vem comprovar mais uma

vez a influência da espiritualidade inaciana, procurada em função da finalidade última

pretendida e que deverá ser facilitada pelo educador.

Neste âmbito, é oportuno referir que este mestre-escola era o religioso jesuíta que

solicitamente se dedicaria a esta função, na qual “o único salário deve ser Cristo Nosso

Senhor que é nossa máxima recompensa”204, estando em sintonia com os votos religiosos

professados “em colégios que, com os próprios rendimentos, podem sustentar o corpo

docente e ainda 12 Escolásticos”205. O exercício da humildade e da caridade era meio e

modo de conduzir à salvação, à santidade, de maneira a “ter a alma pura e intenção recta

(…)”, pedindo “frequentemente na oração a graça de progredir na ciência”206. Cooperando

com a graça divina, era na sua relação directa com o aluno que assumia toda a projecção

como orientador da actividade educativa. Para isso, as normas comuns legisladas haviam

de contribuir para a caracterização da sua prática pedagógica.

Nos documentos que temos referenciado, faz-se a apologia de professores “sábios,

diligentes, assíduos e dedicados ao progresso dos estudantes”207. No recrutamento dos

mesmos, o Provincial devia ter presente se os professores eram “doutos, diligentes,

assíduos e estudiosos”208, enfim possuidores de ingenium et uirtus. Para obter este perfil,

num corpo docente com autoridade e competência, havia que ter em conta a formação

académica e o caminho de ascese quotidiana, aquando da leccionação, neste caso, na

apresentação da cultura à luz da fé. Para tal pressupunha-se esmerado trabalho e

cumprimento de dever209, a fim de obter a perfeição máxima.

Na formação académica, destacamos três etapas: noviciado (2 anos), formação

intelectual (2 anos) e filosófica (3 anos), acrescidas de um Seminário Pedagógico que

aparece, no Ratio, designado por Academia dos professores, na nona regra relativa ao

Reitor210. O professor teria a sua licentia docendi, aproximadamente com trinta anos de

203 A título de exemplo surge-nos a regra 11, comum aos professores das classes inferiores, (Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J. - Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 417, nº 11. 204 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 478. 205 Ibid., nº 331. 206 Ibid., nº 360. 207 Ibid., nº 369. 208 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 357, nº 4: […] docti, diligentes et assidui, ac profectus studentium tum in lectionibus […] studiosi sint. 209 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 334 210 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 370, nº 9.

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Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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idade, seguindo o ritmo normal e natural dos estudos, ainda que precisasse dos quatro anos

de Teologia, caso viesse a leccionar no ensino superior- universitário211.

Procurando evitar a extensão demasiada deste assunto, passamos para a construção do

perfil humano de professores das classes inferiores212 que se distinguiram na história da

Companhia. Antes, porém, estaremos atentos ao início da sua formação moral, coadunada

com o domínio de si mesmo, das paixões, dos impulsos e também com a aquisição de

sapiência, bem como com o alcance da aptidão para o conhecimento do coração do Outro.

Começava-se pelo mais importante que era formar, na moral cristã, o futuro orientador, o

futuro modelo de imitação dos alunos, aquele que serviria de exemplo pelo que era e pelo

que fazia213, o que colocava a sua profissão em acção.

O Professor de Retórica, o de Humanidades e o de Gramática constituíam o grupo dos

professores das primeiras letras e eloquência que compartilhavam regras afins no Ratio.

No que respeita aos dois a três de Humanidades, o Provincial devia atender à conservação

do conhecimento das letras humanas e à promoção de um seminário de professores, entre

os quais os mais idóneos, dedicados, assíduos e bons convivas serviriam de estímulo. Ao

grande número de professores de Gramática e Retórica, que se pretendia preparar,

exortava-se à total aplicação no seu trabalho salutar com perseverança por causa da maior

glória de Deus 214. A todos se apelava “à piedade e disciplina dos bons costumes e do

ensino da doutrina cristã”, o que, como veremos com mais detalhe a posteriori, se denota

nas suas próprias atitudes e incumbências em interacção com os alunos. Se o professor de

Retórica, na correcção das composições, a par da preocupação linguística deveria indicar

outras falhas relacionadas com a incorrecção, o duvidoso ou indecoroso e com falta de

gosto215, resultantes desses exercícios do aluno, o corpo docente de Humanidades e

Gramática não poderia descurar a última meia hora de aula, reservada para a explicação do

211 Cf. LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico…cit., pp. 88-91. 212 A formação moral contínua dos mesmos é referida no Ratio, nas normas para os professores de classes inferiores, quer se atendermos à “leitura espiritual sobretudo da vida de santos”, quer à proibição de “ler nas suas prelecções escritos imorais ou passagens (…) que prejudique os bons costumes dos jovens.” (Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 417, nº 8. 213 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 334, 403. Remetemos para o ponto 2.1.2.3 onde desenvolvemos mais este aspecto.

Afirma FRANÇOIS DE DAINVILLE, a propósito da Pedagogia inaciana - especificamente sobre a formação dos adultos que se encontravam no colégio para auxiliar o aluno no seu dever escolar -, «préoccupation de préparer les vertus de l’adulte par l’exercice de l’enfant.» (La naissance de l´Humanisme moderne… cit., p. 252). 214 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p 363, ns. 22, 24: […] ad id strenue applicet, horteturque, ut se totos intam salutare opus ob maius Dei obsequium impendant. 215 Cf. Ibid., p. 425, nº 4: […] aut aliter peccatum fuerit; si quis locus perperam, si obscure, si humiliter tractatus, si decorum minime servatum […].

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catecismo ou para uma exortação piedosa216. Perante os textos de autores clássicos, que

estavam na base das aulas de Humanidades, o professor teria de expurgá-los “de toda a

obscenidade”217. Ainda que se apele à ordem e obediência, era dada aos professores certa

liberdade, ou melhor, livre arbítrio relativamente às escolhas a ser feitas na aula, no que

concerne à explicação de autores, às etapas interpretativas na Oratória e aos exercícios

escolares ou disputas. Estava comprovado, mais uma vez, o cuidado numa maior

adaptabilidade a pessoas e lugares, como poderemos confirmar nas regras dos professores

de Retórica, de Humanidades e das Gramáticas218. Não obstante, na “matéria deverá

seguir-se a doutrina mais segura e aprovada, e os autores que a ensinam”219, sendo estes

cuidadosa e piedosamente seleccionados.

Conectados com a segunda parte deste trabalho, que incidirá no teatro pedagógico-

didáctico utilizado pelos jesuítas, salientamos agora, seguindo o critério cronológico, dois

ilustres professores de Retórica, P. Miguel Venegas e P. Luís da Cruz, este discípulo do

primeiro. Ambos exerceram a sua função docente em diferentes colégios da Companhia,

interessando aqui destacar a leccionação análoga na classe de Retórica, no Real Colégio

das Artes de Coimbra. E ainda, é de reter a escrita de peças dramáticas desses notáveis

docente, as quais eram representadas, in loco, em ocasiões solenes, coincidentes

normalmente com o final do ano lectivo. Os dois distinguiram-se nestas duas tarefas

complementares, como adiante veremos, surgindo como protótipos tanto pela sua entrega

diligente e incansável ao trabalho educativo como pelo rigor académico/intelectual.

Contudo, a par de qualidades admiráveis, não devemos esquecer que “o cansaço, a falta de

forças e as doenças estendiam-se a todos quantos eram forçados a leer durante vários anos

seguidos”220. Por consequência, Miguel Venegas “se queixa da falta de forças e de saúde

(…) e declara-se insistentemente farto y enfadado de leer, durante seis anos, sem

interrupção alguma”221. O estudo de Margarida Miranda, que se baseia nos Catálogos da

Ordem, revela-nos o lado humano de homens de carne e osso, por isso, frágeis e

216 Cf. Ibid., pp. 431, nº 2; 435, nº 2; 437, nº 2; 440, nº 2 : Ultima semihora in explicatione catechismi, vel pia cohortatione […]. 217 Ibid., p. 430, nº 1: sint ab omni obscaenitate expurgati. 218 Cf. Ibid., p. 426, ns. 6, nº 8; 432, nº 7; 436, nº 10; 438, nº 10; 441, nº 9. Haveria mais passagens onde seria visível esta liberdade, se nos situarmos nas classes de Gramática, onde por exemplo, o professor da classe suprema de Gramática pode ele próprio ditar alguns exemplos do mesmo género [epistolar] da sua autoria (Cf. Ibid., p. 435, nº 6: et aliquot ab ipso praeceptore eiusdem generis dictatis exemplis). 219 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 358. 220 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica – A Tragoedia cui nomen inditum Achabus (1562), Edição crítica, tradução, comentário e notas, Coimbra, 2002, [tese de doutoramento policopiada ], p. 35.

Para mais informações sobre este professor jesuíta, vide infra, p. 192, nota 598. 221 Ibid. p. 13.

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Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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distanciados da maneira de se ser santos. Assim, do exemplar e empenhado professor, diz-

se que “Luís da Cruz é quase indomável, responde descortezmente, imodesto, pouco

amigo da oração e da penitência”222.

O busílis da questão poderia centrar-se na insuficiência de docentes perante o grande

número, em franca expansão, das classes, resultante da quantidade excessiva de alunos223,

na dispersão dos lugares onde se localizavam os colégios e ainda na exigência de um certo

cumprimento exímio de dever224.

Partamos, pois, para a acção (ponto 2.1.2.3) deste coadjuvante da tarefa ou missão de

aprendizagem do aluno, evidenciando em hábitos vivos um conjunto de qualidades que lhe

conferiam o estatuto de exemplo a seguir225, nas funções de instruir, guiar, catequizar,

manter a ordem em relação ao exercitante aluno, bem como no estabelecer relação com os

pais226. Antes temos a intenção de fazer uma breve caracterização do aluno da Companhia,

sendo, de seguida, complementada pela análise resultante da interacção professor/aluno.

Era, principalmente, neste último elemento que se centrava a ajuda/cuidado pessoal, na sua

multidimensionalidade, com o objectivo de torná-lo bom, culto e activo para a vida; só

assim se legitimava, nesta relação com Deus, a participação de um terceiro elemento

coadjutor, professor.

2.1.2.2. O ALUNO

O jovem aluno devia reconhecer duas autoridades, a dos pais, em casa, e a dos

professores, na escola, prestando-lhes reverência e santa obediência. Precisava confiar em

alguém para se deixar guiar, sendo cooperador activo, de imediato, em relação ao seu

educador e, indirectamente, em relação à graça divina, numa pedagogia vincadamente

católica.

222 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas … cit., p. 38. 223 No Ratio, fala-se dos desdobramentos das classes a ter em conta pelo Provincial que atenderá “onde é “que é lícito multiplicar” (LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 363, nº 21/§6).

Nesta linha de pensamento, apresentamos algumas das ideias que FRANCISCO RODRIGUES nos apresenta: “Na Congregação Provincial de 1579, os Padres congregados queixavam-se ao Geral de que a Província se sentia enormemente carregada com as obrigações dos Colégios. Só as lições de letras humanas como que esmagavam a Província.” (Historia da Companhia de Jesus em Portugal… cit., p. 30) 224 Referimo-nos ao caso do Colégio das Artes, onde para não fazerem má figura, já que a herança de quem esteve antes assim o exigia, concentravam aí todos os esforços das principais sumidades dos educadores jesuítas desses tempos áureos. 225 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 334 e Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J. - Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit.,p. 363, nº 22. 226 Cf. Ibid., p. 423, nº 47.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Na verdade, à sua realidade humana, a desenvolver para o ambiente que o espera como

adulto - fim natural e imediato - associava-se uma realidade sobrenatural que, como filho

do Deus de amor infinito, o chamava à salvação e encontro com o Pai227. Este fim último

rejeitava o egoísmo e a exclusiva realização pessoal.

A fidelidade desta pedagogia à época228 onde se insere revelava-se, neste domínio

específico, na divisa pedagógica dos Irmãos da Vida Comum, Piedade e Letras, expressa

pelas palavras de Melanchton “sapiens et eloquens pietas”, que nos escritos de Inácio de

Loiola se designa por “Virtud y letras”229. Reforçava-se, deste modo, a necessidade moral

e emocional de crescimento interior - consciência - a manifestar na vivência alicerçada

numa pedagogia e cultura humanísticas típicas do momento histórico circunscrito. A

cultura, indissociável da educação e da doutrina, remetia para o trabalho, o esforço, a

disciplina de si mesmo e o cultivo espiritual, na acepção dos escritores latinos Cícero e

Horácio, a “cultura animi”. Encontrar a resposta afectiva de Deus, implicava não só

entusiasmo, exercício e aplicação na cultura intelectual, no cultivo das letras (artes

liberais) e das artes para o raciocínio (análise lógica), como também afecto e boa vontade.

Os alunos adolescentes dos colégios gratuitos e de confiança da Companhia

pertenciam à Ordem, uns, e os outros eram os de fora/externos (essencialmente nobres)

que, ajudando Deus, e, reunidas as esmeradas forças, eram alvo de formação singular em

bons costumes, piedade/virtudes e nas artes liberais230.

Tomando em consideração a IV Parte das Constituições, notamos que a maioria da

informação dos parágrafos conflui para a formação de alunos da Ordem, i. e., escolásticos.

Este intento da abertura de colégios para formação geral colmatava a míngua de escolas de

qualidade, ou melhor, promotoras de um regime de rigor e de disciplina que era tão

necessário a uma educação de índole religiosa e combativa. Ao homo faber, para quem o

estudo também era forma de orar - fonte de conquista pessoal e perfeição231-, era dirigida

227 A felicidade eterna será o resultado final de encontro com Deus (Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 412). 228 A ligação entre humanitas et pietas é a base de toda a pedagogia renascentista-humanista. Como provas realçamos, mais uma vez, os Irmãos da Vida Comum das escolas de Liége, na junção entre devotio moderna (a espiritualidade da imitatio Christi) e a docta pietas de Erasmo.

Cf. NAIR NAZARÉ SOARES, “Pedagogia Humanista na colégio das artes ao tempo de Anchieta…” cit., pp. 1040-1065. Sobre o assunto, vide supra, p. 33, nota 49; p. 65, nota 159.

229 Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto… cit., p.147. 230 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 184, nº 1: Deo iuvante non minus curatum iri pro viribus, ut pietate ceterisque virtutibus, quam ut ingenuis artibus imbuantur. 231 Cf. Obras Completas de San Ignacio de Loyola…, pp. 761-770. Podemos ler duas cartas, uma já referida, a dirigida ao P. António Brandão, e outra dirigida ao P. Urbano Fernandes. Ambas apelam à importância de converter o trabalho, o estudo em oração, esta fonte da perfeição.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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solidez intelectual e moral, arma para “os combates” da vida. As referências à admissão de

alunos externos demonstram a preocupação do fundador, pois

“(…) achamos muito difícil que a Companhia possa desenvolver-se com as vocações de homens

instruídos, bons e sábios (…) pareceu-nos bem a todos, em nosso desejo de conservar e aumentar para

maior glória e maior serviço de Deus nosso Senhor, tomar outro caminho: admitir jovens que, pela sua

vida edificante e pelos seus talentos, dêem esperança de vir a ser homens ao mesmo tempo virtuosos e

sábios, para cultivar a vinha de Cristo nosso Senhor”232.

Desta feita, julgamos oportuno, neste momento, salientar alguns dados distintivos entre

os alunos. A forma diferente de vestir entre os dois tipos de alunos, “os que são da

Companhia vivam à parte, sem se misturar, com os de fora”, pois, aqueles, para atingirem

o estatuto nas casas e colégios, teriam de“ se sujeitaram às provas (…) e, depois, de dois

anos de experiências e de provação e feitos os votos e a promessa de entrar na

Companhia”233. A admissão de estudantes pobres, ainda que “algumas vezes por justas

razões, não parece dever-se proibir que se admitam filhos de pessoas ricas ou nobres,

pagando eles as suas despesas”234, fazia parte dos dados a considerar na entrada nesta

instituição de ensino. Na verdade, será no Ratio que as indicações deste género hão-de

surgir em maior número e de forma detalhada, como no-lo provam as 15 regras dos

Alunos Externos da Companhia235, contrapostas com as 11 apresentadas, neste contexto,

para os “Escolásticos da Nossa Companhia”236.

Num ensino público, não devemos dissociar o aumento do número de colégios e a

insistente adaptabilidade das razões históricas, culturais e políticas. Também devemos

232 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 308 233 Ibid. nº 336. 234 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 338. Também se escreve no nº 349 “E a conversa com os estudantes que não são da Companhia versará somente sobre assuntos de estudo ou de vida espiritual, a fim de que em todas as coisas possam achar ajuda para maior glória de Deus.”. No acto de matrícula a cada um eram lidas parte das Constituições “não se lhes pedirá juramento, mas simples promessa, de obedecer a estas constituições e de as guardar.”(nº 496). A propósito da idade, os 10 anos surgem como a idade possível para o ingresso na Faculdade de Línguas – Letras humanas. 235 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., pp. 446 -447. Todavia existem mais indicações ao longo do Ratio direccionadas aos externos: p. 375, nº 12; p. 417, nº 6; a externos e internos: p. 376, ns. 21, 22; p. 408, nº 29; e apenas aos escolásticos da Companhia: p. 428, nº 20. 236 Cf. Ibid., pp. 442- 443. Destacamos a regra nº 2 onde, mais uma vez, se apela à conjugação de virtudes sólidas com os estudos.

As “armas espirituais” e o exercício em “pregar e ensinar” (“lectiones sacrae” – cursos próprios dos Escolásticos), bem como o “exercício interior” constam das recomendações especificamente destinadas aos alunos pertencentes à Ordem (Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., ns. 400, 402, 405). É o capítulo III deste documento regulador que apresenta o percurso proposto para estes alunos, bem como os requisitos ou “qualidades”; “ exemplo e doutrina” (nº334) para “vir a ser bons operários da vinha de Cristo Nosso Senhor”. Contudo, a indicação para os da Companhia e os de fora é similar quando se fala do “talento, formação básica e intelectual e bons costumes (…) para o divino serviço.” (Ibid., nº 338).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

80

prestar atenção ao número significativo de alunos, factor que condiciona a suficiência e a

qualidade na actividade docente, no encaminhamento da tarefa exigente do ensino

personalizado (conhecimento da índole de cada um, hábitos, capacidade intelectual e

paixões nascentes) desta pedagogia diferenciada. Daí que venham a propósito as seguintes

palavras:

“Portugal não se deixou vencer pelas nações maiores. Em Lisboa os alunos passavam de 1.300

em 1575 a quase 2.000 em 1588; em Évora de 1.000 em 1575 cresciam a 1.600 em 1592; e em

Coimbra os estudantes que frequentavam o Colégio das Artes regulavam por 1.000 em 1558 e em

1594 por 2.000!”237.

A variedade e pluralidade de pessoas, retratada quer nos alunos quer nos educadores

das diversas classes, seria uma das razões principais para que se empreendesse unidade,

rigor, hierarquia, disciplina e respeito num ambiente educativo que recorria ao

acompanhamento individual, à progressão gradual e profunda no processo ensino-

aprendizagem. Esta ambiência de religiosidade e obediência cristãs, explícitas claramente

nas Constituições, apelava a uma (con)vivência familiar e social em que o amor fraternal

era requerido de diversas formas.

Dois aspectos eram tidos em conta no acto de admissão de novos alunos: os requisitos

relacionados com os dados pessoais do aluno e a divulgação do regulamento, no sentido de

cada um se comprometer e ter sempre em mente as regras do espaço escolar. A conduta

moral, o temperamento, a responsabilidade assumida pelos pais (a presença do elemento

familiar na matrícula) e a irrelevância perante a condição social, aquando da matrícula,

estavam na mira do Prefeito de Estudos Inferiores que não podia ficar indiferente a tais

dados. Era este que, na admissão para a última classe, deveria atender a aspectos relativos

a limites de idade, não facilitando a matrícula mesmo no caso de a intenção ser somente

para adquirir uma boa educação238. No caso de alunos expulsos pretenderem ser

237 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p.14.

Para mais detalhe sobre este assunto, Cf. FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia … cit., pp. 11- 16. RÓMULO DE CARVALHO fala-nos dos alunos jesuítas “que ficavam naturalmente sujeitos a determinadas regras de que

os restantes estavam isentos. No que respeita, porém, aos estudos, quer fossem jesuítas quer seculares, tinham de respeitar as mesmas obrigações. A extensão desses estudos é que poderiam ser bastante diferente.” (História do Ensino… cit., p. 353). 238 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., pp. 405-406, ns .9, 11 12.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

81

240.

readmitidos, teria de haver um parecer do Reitor239. Convém relembrar, mais uma vez,

que a caridade esteve sempre subjacente à abertura dos colégios

2.1.2.3. INTERACÇÃO PROFESSOR-ALUNO (JOGO DRAMÁTICO - DAR E RECEBER ORDEM E EXERCÍCIO)

Partimos de uma pedagogia espiritual, alicerçada numa base verbal, a qual,

desenvolvendo o raciocínio e o intelecto, pretendia educar a vontade a favor do amor

humano e do coração (sentimento/sensibilidade) que leve ao agir bem, ao Bem Universal.

Situamo-nos, deste modo, na acção conjunta ou acção interpessoal entre professor e

aluno, a fase do método didáctico exposto no Ratio antecedida pela prelecção do professor

e a intervenção/repetição do aluno241. Aparecia concretizada quer na actividade principal

do colégio - processo ensino/aprendizagem na sala de aula e no recreio - quer na

actividade religiosa individual e colectiva exigida - oração, devoção na aula e capela.

Interessava, sempre, o comportamento ou a boa e má conduta, anotação permanente neste

trabalho de investigação. Todos estes aspectos estão conectados com a maneira de ensinar

e aprender e com a organização implementada, além de implicarem compromisso, entrega

e serviço de cada um perante os fins estabelecidos, a curto prazo, no colégio, e a longo

prazo, na vida. Deste modo,

“A acção educativa, entenda-se assim, como uma actividade, orientação e guia da capacidade

interior que a pessoa ajudada tem de caminhar em primeira pessoa, em direcção ao seu destino.”242 .

O desempenho lectivo do professor incide numa actividade individual, pessoal

(Prelecção), direccionada não só à desenvoltura da memória do aluno, mas essencialmente

ao exercício da “ imaginação, o juízo e a razão”243. O profissional de ensino, como consta

das regras comuns dos professores das Classes Inferiores, devia primar pela ordem no

modo como falava e na maneira como expunha o que escrevera e preparara em casa

239 Cf. Ibid., p. 409, nº 42. 240 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 440. 241 Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, O Projecto Educativo … cit., pp. 220-229. 242 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Santo Inácio de Loiola… cit., p.235. 243 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 57.

Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES refere este como “o primeiro passo [do professor] na formação intelectual […] constava das seguintes partes: leitura, breve resumo, explicação literal e repetição, com as observações julgadas pertinentes.” (O Projecto Educativo … cit., p. 221).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

82

cuidadosamente244. Na preparação aprimorada das aulas em consonância com os

programas instituídos e com os costumes de docência, rejeitava-se o improviso, havendo

preocupação na sequência/continuidade das mesmas. Com efeito, caso se operasse uma

substituição de professor, a aula teria de reflectir a metodologia instituída em cada colégio 245, para que reinasse a constância, uniformidade e diligência, tendo em conta o princípio

da adaptabilidade. Cabia ao grande empenho do Prefeito de Estudos Inferiores a

averiguação de tais parâmetros.

Para o educador jesuíta efectivo do colégio, a quem se pedia esforço na preservação da

estima e autoridade entre parceiros de trabalho e alunos246, seriam obrigatórias a ajuda e a

dedicação ao próximo, em nome de Deus e sob a vigilância do Provincial247. Neste

sentido, competia ao Prefeito dos Estudos Inferiores respeitar e fazer respeitar o

aproveitamento do tempo de trabalho dos alunos, o qual não podia ser usado para escrever

ou para outra coisa qualquer248.

Cada professor das classes inferiores, como exemplo de qualidades humanas e virtudes

cristãs, devia preocupar-se em não ter aversão a ninguém, em ter interesse pelos estudos

do pobre ou do rico com equidade, e em procurar o êxito individual de cada um dos seus

alunos249. O sentido de justiça, a habilidade e a destreza, reveladas na atenção a dar a cada

um, apelavam a um conhecimento de ritmos pessoais na aprendizagem. Cientes da

importância da idade250 e do ambiente familiar251, estes indicadores, na adolescência,

teriam de ser encarados com profissionalismo252. A idade do aluno, o tempo passado na

classe, o talento e a diligência253 eram argumentos na clarificação, a fazer pelo Prefeito de

Estudos Inferiores, dos casos duvidosos concernentes a exercícios de avaliação. Nos

exames orais, apesar de serem dadas indicações específicas, existia alguma flexibilidade

244 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J. - Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 419, nº 27: […] Multum autem proderi, si magister non tumultario ac subito dicat, sed quae domi cogitate scipserit […]. 245 Cf. Ibid., p. 403, nº 5: […] a nostra tamen ratione non alienas. […]. 246 Cf. Ibid., p. 403, nº 4: […] praesertim vero discípulos de eorum existimatione atque auctoritate detrahatur. 247 Cf. Ibid., p. 363, nº 24: […] ut se totos in tam salutare opus maius Dei obsequium impendant.

Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 412. 248 Cf. Ibid., p. 410, nº 48: […] tempore discipulorum opera aut ad scribendum, aut ad ullam rem aliam utatur […]. 249 Cf. p. 423, nº 50: […] Contemnat neminem, pauperum studiis aeque ad divitum bene prospiciat, profectumque uniuscuiusque e suis scholasticis speciatim procuret. 250 A idade dos alunos estava compreendida entre os 10 e os 16 anos, se nos fixarmos no 1º Ciclo dos Estudos Inferiores. “Se fosse um aluno capaz, aos doze anos, começaria dois anos de Retórica”, sendo normalmente com a idade de14 anos que isso acontecia. “Com a idade de dezassete anos, o aluno estava em condições de escolher um currículo de Leis, de Medicina ou de Teologia”. (JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, O Projecto Educativo… cit., pp. 95, 97). 251 No Ratio, fala-se no necessário contacto com os pais dos alunos, que “se a dignidade das pessoas o pedir, deve ser ele [o professor] a visitá-los”. Nós questionamos a equidade no trato, pois trata-se do humano. 252 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 414. 253 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 407, nº 23: […] Porro in dubiis ratio aetatis, temporis in eadem classe positi, ingenii ac diligentiae habenda erit.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

83

na disposição e organização dos alunos, sendo estes apresentados “por ordem alfabética ou

de outra maneira mais cómoda”254. Mais uma vez, podemos falar numa Pedagogia

diferenciada255 ou na personalização/individualização do ensino numa dinâmica educativa

em que ao mesmo tempo que “é necessário moderar os que correm demasiado (…)”256,

também se ordena a que “estudem o que puderem, segundo a ordem do Superior”257. No

que diz respeito às promoções resultantes do bom aproveitamento, distinguindo a

promoção geral e solene ocorrida uma vez no ano, depois das férias anuais, o Prefeito de

Estudos Inferiores devia estar atento àqueles que sobressaíssem muito, permitindo-lhes a

progressão em qualquer época do ano258.

Era necessário que os professores das classes inferiores incutissem nos pupilos

adolescentes a ideia de que a tarefa de estudar por obediência e caridade e a aplicação séria

e constante, afastada da monotonia259 e direccionada ad studia 260, exigiam muito esforço.

Todos os alunos na preparação para exame, um mês antes, exercitavam-se esforçadamente,

em cada uma das matérias mais importantes261 e, para aqueles que as dificuldades na

aprendizagem eram mais acentuadas, existiam os pedagogos (repetidores) que deviam

evitar a sobrecarga de trabalhos aos alunos e não exigir mais do que o ouvido na aula262.

Neste ambiente de trabalho, reavivamos, mais uma vez,

“a cura personalis [que] passa pelo princípio de que só quem é amado aprende a amar, só quem é

servido aprende a servir, só quem ‘é sofrido’ (quem é acompanhado e amado no seu sofrimento) nas

suas debilidades, aprende a sofrer as debilidades alheias”263.

254 Ibid. p. 406, nº 19: […] servato alphabeti ordine, aut alio commodiore, submittantur. 255 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 356. 256 Ibid. nº 358. 257 Ibid. nº 354. 258 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 406, nº 13: Generalis sollemnisque promotio semel in anno post anniversarias vacationes facienda est. Si qui tamen longe excellant, […] nequaquam detineantur, sed quocunque anni tempore post examen ascendant […].

As regras do Ratio que tratam deste assunto, estando subjacente a seriedade aliada à sinceridade, apontavam para a promoção pessoal, via exame, de acordo com a progressão de cada um nos estudos. Mais uma vez a regularidade das promoções se ajusta a etapas de formação adaptáveis. 259Cf. Ibid., p. 419, nº 24: […] Nulla enim re magis adolescentium industria, quam satietate languescit. 260 Cf. Ibid., p. 442, nº 2: Serio et constanter ad studia animum applicare deliberent […]. 261 Cf. Ibid., p. 421, nº 37: […] uno ferme ante examen mense strenue discipuli in praecipuis quibusque rebus in omnibus classibus,[…] exerceantur […]. 262 Cf. Ibid., p. 423, p. 48: Nemini paedagogum inconsulto rectore proponat, nec a paedagogis permittat aliis domi praelectionibus onerari discipulos, sed tantum auditas exigi. 263 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, O projecto…cit., p. 162.

Sobre este conceito, vide supra, p. 11, nota 1. Nas págs.44, 48, 57, 67, 72 existem referências à expressão latina que encabeça esta pesquisa.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

84

Na relação com os alunos, há regras para o grau de amizade ou de estima, para a

cordialidade imparcial, bem como para o lugar a descoberto, isto é, o pátio, a portaria e a

entrada da sala, onde os docentes das classes inferiores podiam usar apenas conversa breve

e de assuntos sérios264. Na sala, com o auxílio do obediente e diligente bedel ou ajudante

do professor265 e de maneira a que os exercícios tivessem realização normal, devia evitar-

se confusão e alvoroço, mudar de lugar, perder a compostura e o silêncio, e, quando

saíssem os alunos deveriam fazê-lo sobretudo dois ou mais em conjunto266.

Neste panorama de educação humana, quem ensina também é guia e instrutor

espiritual, prestando o seu serviço a Deus, quando “no aluno, vê o homem, criatura de

Deus, que lhe foi cometido, como um depósito sagrado, para guiá-lo à perfeição do seu

destino”267. Pela exortação à oração quotidiana individual e colectiva, no início da aula268,

pela explicação do catecismo - “la grammaire du Christ”269 - na última meia hora270, pelo

exemplo de vida religiosa do próprio docente271, e pela missa - “soleil des exercices

spirituels”- pela confissão e exames de consciência272, a perseverança e o ascetismo

acentuavam-se. Por esta via, convocavam-se a segurança, confiança, temperança e espírito

de família para crentes cristãos, os educadores e os educandos. Num espírito e exercício da

piedade, as manifestações pretendiam-se caritativas, à medida que se fomentava o

264 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 423, nº 47: Familiarem non se uni magis, quam alteri ostendat; cum iisque extra scholae tempus non nisi breviter, ac de rebus seriis, loco etiam patenti, hoc est non intra scholam, sed pro scholae foribus, aut in átrio, aut adi anuam collegii, quo magis aedificationi consulat, colloquatur. 265 Cf. Ibid., p. 445, nº1. Era nos exercícios que essa ajuda era mais solicitada. 266 Cf. Ibid., p. 422, nº43: Silentium et modestiam servandam in primis curet, ut nemo per scholam vagetur, nemo locum mutet, nemo ultro citroque munera schedasque mittat; ut a schola non egrediantur, praesertim duo vel plures simul. 267 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico…cit., p. 94.

Sobre o assunto indica-se MIGUEL BERTRAN QUERA, La Pedagogía de los Jesuitas… cit., pp. 85-86. 268 Cf. Ibid., p. 416, nº 2. 269 FRANÇOIS DE DAINVILLE, La naissance de l´Humanisme moderne…cit., pp. 175 e 190. Ao sábado também se ensinava a doutrina. O catecismo não era um fim em si mesmo, já que era meio para poder ter uma conduta adequada à vida cristã. Segundo o autor jesuíta citado, na igreja a reverência a Deus não se apoiava só nas palavras, sendo suavizada pelo canto: “Disciples de Quintilien et lecteurs de Platon, nos maîtres savente le pouvoir de l’harmonie et de la consonance pour pipper et séduire les âmes. Aussi la veulent-ils grave, en rapport avec les circonstances, sans longueur, respirant la piété. “(Cf. Ibid., p. 202). 270 A divulgação da doutrina cristã consta da regra 4 dos alunos externos da Companhia. Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 446, nº 4: Explicationi catechismi singulis hebdomadis omnes intersit […]. 271 Cf. Ibid., p. 417, nº 10. 272 A doutrina da Igreja e os preceitos católicos a divulgar num tempo de emanação de directrizes tridentinas recorriam a estes meios para uma maior eficácia prática. “O lugar da confissão nas prioridades de ordem pastoral pode bem ser aferido pelo relativo destaque que lhe deu o programático Catecismo romano (1566) ordenado por Pio V (de que a primeira tradução e edição portuguesa data de 1590); […] a insistência na confissão frequente resultava do reconhecimento da sua maior eficácia para a ‘penitência interior do ânimo’, porque ‘a vergonha da confissão é como freio que se põe à cobiça e licença de pecar e refreia a maldade’. Quanto à confissão, “os manuais anteriores às decisões e orientações tridentinas privilegiavam o momento da confissão quando ‘encontro’ do confessor com o penitente, os finais do século XVI e os do século XVII, não descurando esse momento, valorizavam mais claramente o exame de consciência como um encontro do penitente consigo próprio antes do encontro com o confessor. […] só assim estariam os fiéis preparados para a penitência em geral, para a mudança de costumes e para as práticas devotas, muito especialmente para a ‘limpeza’ da comunhão.” (MARIA DE LURDES CORREIA FERNANDES, “Da Reforma da Igreja à reforma dos cristãos: reformas, pastoral e espiritualidade …” cit., pp. 28, 31).

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

85

estudo273. Quer as regras iniciais comuns aos professores das classes inferiores274, quer as

dos alunos externos275 apelavam para uma prática que conduzia à “pureza dos costumes e

ao fortalecimento do carácter cristão”276. São seis as normas dedicadas ao assunto,

direccionando-se a todos os professores das classes inferiores277, no entanto nesta

catequização, nos colóquios espirituais, todos esses deviam encaminhar os seus alunos

para os mesmos hábitos de virtude, sem parecer que aliciavam para a religião professada

pela Companhia278. Perante o livre arbítrio279, deve evitar-se, portanto, a coacção à prática

da piedade, para os de fora ‘procure-se persuadi-los com amor, sem os constranger a isso,

nem os expulsar das aulas porque não o fizeram, a não ser que fossem causa de

relaxamento ou de escândalo para nós”280.

A Congregação da Bem-aventurada virgem281, à semelhança do que se passava no

Colégio Romano, era um pré-requisito para que os pios e doutos alunos fossem admitidos

na academia de exercitações literárias. Todos os professores das classes inferiores deviam

encaminhar os alunos à igreja e aí aconselhar aos discípulos “com afinco, a devoção à

Virgem e ao anjo da guarda”282.

“Diríase que la Congregación de la Santíssima Virgen há sido inventada por los Padres Jesuítas,

especialmente para resolver el problema de la adolescencia. La institución se ha ido adaptando, poco a

poco, a todas las edades de la vida”283.

Nesta convivência educativa com marca de Ordem religiosa, em que a abnegação

interior se sobrepõe à mortificação exterior, cabia ao cumprimento do regulamento o papel

273 Auxiliamo-nos das palavras de FRANCISCO RODRIGUES, “De si confessava o insigne poeta e dramaturgo Luís da Cruz, que, enquanto ensinava em Coimbra a eloquência e poesia àquela juventude, conhecera por experiência não haver coisa que mais calor desse ao engenho dos discípulos, que os exemplos dos professores”. (A Formação Intelectual dos Jesuitas… cit., p. 61). 274 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J. - Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 416, ns. 2, 3. 275 Cf. Ibid., p. 446, ns. 3, 4. 276 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 75. 277 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J. - Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 416, ns. 2, 3; p. 417, ns. 7, 9, 10; p. 422, nº42. 278 Cf. Ibid., p. 417, nº 6: Privatis etiam colloquiis eadem ad pietatem pertinentia inculcabit; ita tamen, ut nullum ad religionem nostram videatur allicere […]. 279 Segundo FRANÇOIS DE DAINVILLE, « Ignace met l’accent sur le libre arbitre, la volanté, les œuvres » (La naissance de l´Humanisme moderne…cit., p.250).

Devemos ter sempre em consideração o intuito de formação da liberdade cristã que era “impedida no seu exercício pelo pecado original, que muitas vezes a mantém ‘prisioneira’ (segundo a expressão de S. Paulo)”. Apesar de toda a organização que prima pelo rigor, a colaboração vem do interior de cada um; à maneira inaciana “non in spiritu timoris sed amoris”(Princípios Educativos dos Colégios da Companhia de Jesus, Tipografia Particular, 1963, pp. 90,91).

Sobre este assunto do livre arbítrio, vide supra, p. 48, nota 88. 280 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 482. Remetemos para a leitura do nº 362 281 LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 372, nº 23; p. 417, nº 5. 282 Ibid., p. 417, nº 7: […] Pietatem vero in eandem Virginem et angelum etiam custodem discipulis diligenter suadeat. 283 FRANÇOIS CHARMOT, El Amor humano… cit., p. 195.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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de melhor estratagema para manter a disciplina. O estímulo no estudo era coadjutor neste

intento, já que assim “mais facilmente se conseguirá com a esperança de honras e prémios

e com o temor da desonra do que com a vara (castigo)”284. A atribuição de honras e

prémios, não sendo uma novidade do ensino jesuítico285, estava intimamente ligada à

manutenção disciplinar e, ao mesmo tempo, à “forma moderada” com que a distribuição

festiva era encarada, não colocando em risco estudos e costumes286.

Em benefício do respeito, da ordem e da harmonia interna e externa, o Prefeito dos

Estudos Inferiores devia preocupar-se com a afixação das regras destinadas a todos os

alunos externos, para leitura em local público. Em cada aula, as mesmas deviam estar bem

à vista e ser lidas no momento inicial, logo no princípio do mês287.

Ao aluno exigia-se cooperação e responsabilidade com poder de opção individual; no

entanto, se compararmos as normas dos internos da Ordem e as dos externos, notamos que

há uma maior incidência face aos externos, essencialmente no âmbito moral. Após alertas

perante “obediência”, “assiduidade”, “diligência”, “amizades”, “piedade” e “o exemplo de

vida”, encerra-se a enumeração do procedimento correcto, apelando a que não estejam

“menos interessados nas virtudes e integridade de vida que na ciência e nas letras”.288 Será

o controlo destes alunos externos mais desafiador para o jesuíta pedagogo?

As influências exteriores, familiares e sociais, assumem maiores proporções e

impactos nestes jovens adolescentes que naqueles alunos internos, votados à Ordem, o que

poderia vir a dificultar o controlo. Ao nos depararmos com a obrigatoriedade de

assistência às aulas, verificamos que o Professor de Estudos Inferiores poderia enviar a

casa do aluno faltoso algum dos seus colegas de classe/turma, podendo ser castigado o

ausente se não fossem apresentadas desculpas razoáveis289.

284 LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 422, nº 39: […] Quod spe honoris ac praemii metuque dedecoris facilius, quam verberibus consequetur. 285 Cf. MÁRIO BRANDÃO, O Colégio das Artes, Coimbra, 1924, p. 94. 286 CF. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 371, nº 14.

Quanto à distribuição de prémios como meio de motivação e emulação, na 1ª Congregação Geral da Companhia, 1558, este assunto esteve na ordem de trabalhos. Porém, a utilização desses “sinais de benevolência” eram aplicados nas pelos Irmãos da Vida Comum, nas escolas de Liége, e por Sturm, na Universidade de Strasburgo. Vide supra, p. 30, nota 38 e p. 33, nota 49.

FRANCISCO RODRIGUES diz-nos que “destinavam-se oito prémios á rhetorica, seis ás humanidades e gramática superior, e quatro ás outras classes, e um ou dois ao catecismo” (A Formação Intelectual dos Jesuitas… cit., p. 85). 287 Cf. Ibid., p. 410, nº 49: Regulae omnium externorum discipulorum communes in loco, ubi piblice legi possint, et in quavis praeterea classe propalam sunt affigendae, et cuiusque fere mensis initio in rhetorica, caeterisque inferioribus recitandae. 288 Cf. Ibid., p. 447, nº 15: […] eos non minus virtutum vitaeque integritatis esse, quam literarum doctrinaeque studiosos. 289 Cf. Ibid., p. 422, nº 41: […] si quis abfuerit, aliquem ex condiscipulis, vel alium ad eius domum mittat; et, nisi idoneae afferantur excusationes absentiae, poenam sumat. […].

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

87

A ida a espectáculos públicos ou jogos (ad publica spectacula sive ludos) nunca

poderia ser razão para a falta de assiduidade e a reincidência desta exigiria a intervenção

do Prefeito. Talvez estes aspectos, que hão-de ganhar projecção na segunda parte do

trabalho, se enquadrem numa tentativa formatada de desvio dos prazeres mundanos, tais

como a assistência a comédias de rua. Talvez, tudo reclame certa abnegação interior, que

devia colocar o dever do estudo no topo das prioridades. Nesta perspectiva, alertamos nós

para a maior solenidade dos actos dos externos - reafirmadora da formalidade, da pompa,

da disciplina “militar” - que se conjugava, à primeira vista e numa óptica jesuítica, com a

humildade e modéstia inacianas, bem como com a presença do maior número possível de

alunos da Companhia e professores, doutores externos, pessoas importantes e homens de

religião290.

Perante a ausência de pontualidade, ao professor caberia educar, mandando “recitar

cada dia alguns, geralmente os mais folgazões e os que chegaram tarde ao estudo, para

comprovar a fidelidade dos decuriões”291. Estes, designados como síndicos292, eram

alunos que auxiliavam o professor no controlo disciplinar, havendo o censor ou pretor com

a função não confinada à sala, já que ajudavam na observância do cumprimento do

regulamento. Para ser encarado pelos colegas como amigo e não inimigo poderia

“interceder pelos condiscípulos em castigos mais leves”293.

A falta de assiduidade era punida com expulsão para os maiores, dependendo a decisão

do Reitor, embora se atendesse sempre a um “espírito de mansidão” (lenitas). O uso da

palavra e exortação eram recursos de prevenção e preservação da ordem por parte do

professor, “com espírito de fé e com temor filial”294. O mesmo acontecendo entre o

Superior e seus súbditos, sendo conveniente “no claramente decir las cosas, mas com

álgun buen color y rodeo; porque un pecado trae a outro, y puede ser que el ya hecho

disponga para no aceptar bien la limosna de la corrección”295. O corrector aparecia para

remediar, em casos mais complicados que envolvessem um trato ligado a castigos

290 Cf. Ibid., p. 375, p. 12: […] et quanto maximo nostrorum, externorum doctorum, ac principum etiam virorum conventu celebrari. 291 Cf. Ibid., p. 418, nº 19: […] Qui magister aliquot quotidie ex desidiosis fere, quique serius ad ludum venerint, recitare iubet ad explorandam decurionum fidem […]. 292 LADISLAUS LUKÁCS S.J. - Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit.,p I, p. 421, nº 36. 293 Ibid., p. 145, nº 37; p. 409, nº 37: […] iusque habebit, magistro approbante, leviores poenas a condiscipulis deprecandi […]. 294 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto Educativo da Companhia de Jesus… cit., p. 157 295 Obras Completas de San Ignacio de Loyola … cit, p. 765. Excerto da carta de Inácio de Loyola para o P. António Brandão (Vide supra, p. 40, nota 75).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

88

físicos296. Os correctivos eram sem dúvida necessários num local onde o número de alunos

era muitas vezes excessivo face ao número reduzido de professores.

A tolerância ou a força delicada da autoridade docente há-de comungar da imagem do

Director que Inácio indica nos Exercícios Espirituais, o qual, perante o exercitante,

“corrija-o com amor e se não basta, busque todos os meios convenientes, para que,

entendendo-a [a proposição do próximo] bem, se salve”297. Nas advertências feitas aos

professores das classes inferiores, depreende-se a cura personalis que não combina com

humilhações, pois, desviando-se de precipitações no castigo (a cargo do corrector para o

efeito), devem evitar bater pessoalmente em alguém, bem como ofender alguém por

palavra ou acção. Na interpelação do aluno deve pronunciar sempre o nome e apelido298.

Neste modelo de professor exemplar nas atitudes e nas palavras, ganham todo o sentido os

pensamentos resultantes de estudos feitos sobre a instituição escolar jesuítica:

“Na repreensão não a paixão, mas a necessidade e o amor lhe inspiram as palavras”299.

“ comme prêtre, le maître devra faire appel à l’ esprit de foi des élèves; comme père, il leur inspirera une crainte filiale et un amour confiant”300.

Só assim nos situamos numa visão cristã do ser humano, sujeito e destinatário dessa

moral religiosa, onde a

“pessoa é uma totalidade interior, dotada de um princípio vital interior, ao qual o educador ‘aponta’,

a fim de que se torne disponível Àquele que Santo Agostinho chama de ´Mestre Interior’, ao qual,

inteligência e vontade humana estão estruturalmente inclinadas”301.

2.1.2.4. ALUNO/ALUNO

A relação estabelecida entre os alunos assentava no princípio da emulação que se

manifestava nos diversos exercícios propostos, desde as composições, repetições até às

296Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 409, nº 38. 297 INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 22. 298 LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 422, nº 40: Nec in puniendo sit praeceps, nec in inquirendo nimius; dissimulet potius, cum potest sine cuiusque damno; neque solum nullum ipse plecat (id enim per correctorem praestandum), sed omnino a contumelia dicto factove inferenda abstineat; nec alio quempiam, quam suo nomine vel cognomine appellet; […]. 299 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 93. 300 “Como padre, o mestre deverá fazer apelo ao espírito de fé dos alunos, como pai, ele deve-lhes inspirar uma crença filial e um amor confiante” (FRANÇOIS CHARMOT, La pédagogie des jesuites. Ses príncipes. Son actualité, Paris, 1943, p. 164). 301 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Santo Inácio de Loiola, um educador do desejo... cit., p. 235.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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disputas/concertações, declamações e representações teatrais. Se as duas primeiras

enunciadas nos remetem mais para uma actividade individual, para o desenvolvimento do

pensamento e da inteligência, as restantes implicam, obviamente, o colectivo,

completando o objectivo pleno de ensinar a pensar e ensinar a estar e a ser.

Exercitar a emulação de forma comprometida e diligentemente, mas nunca esquecer a

piedade e a caridade, visto que ela é “santa”302 e “sã competição”303. Tentava-se, desta

maneira, “ criar um sistema, para que cada um deseje dar e dê o melhor de si próprio,

tendo como pano de fundo o bem maior”304, o que justificava a existência de prémios.

Esta relação entre acção, que se pretende plena de dignidade, e premiação, que pode ir da

simples palavra de estímulo à solenidade da cerimónia anual, demonstra, mais uma vez, a

cura personalis na adolescência, período psicológico sui generis do desenvolvimento

humano. A criação de um émulo, companheiro (rival) de classe que ajudava o aluno

corrigindo-o, intervindo, pedindo-lhe esclarecimentos305, deve ser encarada como auxílio

para que cada um atinja a excelência, o magis306.

Neste ambiente de sadia competição, as declamações (diárias, semipúblicas, públicas e

soleníssimas) constituíam uma das modalidades onde o Prefeito de Estudos Inferiores

procurava que todas as actividades se fizessem com proveito, moderação, harmonia307.

Mais uma vez, queremos comprovar a coexistência do diligente estudo e das boas e

prudentes intenções e acções.

Mesmo em tempo de descontracção e de divertimento faziam eco as palavras

ciceronianas, otium cum dignitate. Ainda nesta linha de actividade fora da dinâmica

lectiva, as Academias dos alunos, onde se reflectia a mesma estrutura organizacional e

virtudes que têm vindo a ser delineadas308, apresentavam-se como forma de manter a

302 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 383. 303Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 420, nº 31: honesta aemulatio. 304 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 153.

Cf. Ibid., p. 421, ns. 34, 35, p. 427, nº 12, p. 432, nº 7, p. 436, nº 10; p. 438, nº 10, p. 441, nº 9. 305 Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto Educativo da Companhia de Jesus … cit., p. 153. 306 Sobre este conceito, “Mais” na versão portuguesa, entende-se “a melhoria constante da qualidade, expressão usada por Inácio de Loyola e pelos jesuítas, sugerindo o espírito de excelência generosa que deveria nortear a vida e o apostolado.”

Cf. http://www.pedroarrupe.com.br/glossário.htm e ainda Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, O Projecto Educativo da Companhia de Jesus … cit., pp. 164-166. 307 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 408, ns. 32, 33.; […] curet, ut fructuose, modeste, pacate gerantur omnia. […].

Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto Educativo da Companhia de Jesus… cit., p. 228. 308 Os académicos são escolhidos para serem exemplo para os outros alunos “pela virtude, piedade, pela diligência nos estudos e observância do regulamento do colégio” (Cf. Ibid., p. 448, nº 3).

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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disciplina e ciência das línguas a título individual e publicamente309 e ocupar tempos

livres, que poderiam vir a ser responsáveis por desvios de comportamento310.

Questinamos a sétima regra da Academia dos Gramáticos por certa humilhação

pública que deixa transparecer, quando “O moderador [professor ou outro membro da

Companhia] poderá (…) mandar que se leiam publicamente os nomes dos que não se

portaram bem ou tenham sido negligentes”311.

2.2. O ESPAÇO E O TEMPO

Tendo nós a consciência de sermos redutores, devido às múltiplas indicações

constantes nos documentos de referência, iremos explanar, à semelhança do que temos

vindo a fazer, alguns dos dados relativos à ordem adquirida pelo espaço e pelo tempo

durante um ano lectivo, num colégio jesuíta.

A organização do espaço estava ao serviço do aluno, mais especificamente, estava

relacionada com a sua psicologia humana, para que tudo no colégio pudesse ir ao encontro

da aprendizagem gradual e significativa. Havia cuidados por parte do Prefeito de Estudos

Inferiores na fixação do lugar a ocupar pelos alunos ordeiros e respeitadores, seguindo

critérios de comodidade “para os mais nobres”, tendo os jesuítas e religiosos a obrigação

de se sentarem separados dos externos312. Nos actos públicos, não havia “lugares

especiais” para os que tivessem sucesso “para afastar qualquer espécie de ambição ou

desejos não bem ordenados”313. Ao bedel, o ajudante do professor, cabia a tarefa de

distribuir os lugares nos actos públicos314.

Na sala, a compostura e o silêncio à saída deveriam propiciar o ambiente tranquilo e

ordenado, sendo esta atitude acrescida de moderação e modéstia, o que também era

309 .Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 370, nº 7: […] linguarum scientiam et dignitatem privatim ac publice tueantur. 310 Cf. Ibid., pp. 448-454; p. 408, nº 34. 311 Cf. Ibid., pp. 453-454, nº 7: Poteri a moderatore poenae loco aliquid literarium exigi, iuberique, ut eorum nomina, qui minus bene aut diligenter se gesserint, publice recitentur. 312 Cf. Ibid., p. 408, nº 29: […] nobilibus quidem commodiora, nostris veros et aliis item religiosis, si adsint ab externis separata subsellis […]. 313 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 390. 314 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 445, n. 6.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

91

solicitado aos alunos na entrada e saída da capela, estando sob controlo do Prefeito de

Estudos Inferiores e dos professores destas classes315.

No pátio do recreio e na própria sala de aula, ao Prefeito das classes inferiores

competia manter a ordem, fazendo reinar a tranquilidade e evitando as más acções com

armas, com gente ociosa, com confusões e gritos. Proibiam-se também os juramentos e os

insultos ou algo que não fosse honesto e fosse imoral316.

Quando nas Constituições se diz “nada fechado, isto é, porta ou armário”317,

corrobora-se, mais uma vez, a atmosfera familiar e de confiança almejado.

De seguida, centrar-nos-emos na apresentação de aspectos articulados com a

componente lectiva/curricular, para, depois, nos referirmos aos tempos de quietação, v. g.,

paragens para descanso temporário, breve ou mais duradoiro, neste último caso os

períodos de férias.

Todos os cargos tinham responsabilidades no que dizia respeito à disposição do tempo

nos colégios, factor valioso nesta pedagogia sem pressas e com cuidados na formação

integral de cada aluno. Certamente, compreendemos que no topo da hierarquia o

Provincial estivesse “constantemente” atento à constância no cumprimento dos horários de

aulas, e a possíveis reparos relacionados com o calendário escolar, observando e

deliberando, o que colocava a tónica na perseverança318.

Não havia limite de tempo nas classes; atendendo ao ritmo de aprendizagem de cada

um. Existia, sim, a preocupação de ver “quanto tempo se há-de dar a cada matéria, e

quando se há-de passar à seguinte”319. O Provincial era advertido para a delimitação do

tempo do curso de Retórica e de Humanidades320- adaptabilidade tida em conta nos

horários e calendarização321. Todos os professores de Gramática, Humanidades e Retórica

eram alertados na segunda regra, atribuída a cada um destes graus, para a distribuição do

tempo. Na entrega das composições aos alunos, todos os professores do primeiro ciclo de

estudos tinham prazos a cumprir322.

315 Cf. Ibid., p. 4.10, nº 45; p. 442, ns. 43, 44. 316 Cf. Ibid., p. 410, nº 43: Nihil in atrio, nec in scholis, etiam superioribus patiatur armorum, nihil ociosorum, nihil concursationum atque clamorum; nec iuramenta, nec iniurias verbo aut facto illatas, nec inhonestum aut dissolutum quid in eis permittat. […]. 317 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 427. 318 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., p. 364-365, nº 35: […] Quod autem constitutum fuerit, in eo constanter perseverandum […]. 319 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 357. 320 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 359, nº 18. 321 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 435. 322 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 418, nº 20.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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O tempo era cronometrado de forma a controlar a pontualidade e assiduidade. Virá a

propósito salientar, conforme os costumes dos vários colégios, o recurso a um “sinal [que]

será dado com uma campainha que tocará para deitar, refeições, etc.”323. O bedel ou

auxiliar educativo com um relógio avisava o Prefeito ou o Professor, conforme os casos,

nas lições ou nas disputas324.

As datas, dias e horas eram distribuídas, afixadas e atempadamente dadas a conhecer

para a realização de actos públicos, como exames325 e proclamação de prémios326,

exercícios escolares327, para que os alunos pudessem aproveitar bene as horas de estudo

privado328. Nos exames, se o aluno pedisse mais tempo do que o estipulado para a sua

realização, desde que o fundamento residisse no esmero do trabalho, não seria permitida a

saída da aula e a tolerância dada não devia ir mais além do pôr do sol329.

O descanso e as horas de sono necessárias para um bom aproveitamento levam a que

“(…) os Escolásticos não estudem em tempos prejudiciais à saúde corporal, que dêem ao

sono tempo suficiente”330, “ para os estudantes de artes ou de teologia em especial, e

também para os outros, deverá haver um tempo de estudo pessoal e tranquilo (…)”331. Na

legislação do Reitor, é proposto para os alunos um descanso semanal de um dia inteiro ou

horas posmeridianas 332. Os avisos para os feriados são também uma constante333 e o

tempo de oração é agendado334.

Para rematar esta análise, assente no principal documento legislador deste sistema

educatico que temos vindo a citar, poderemos indicar dois tópicos que marcavam este

“jogo dramático” do professor-aluno, ancorado numa exercitação contínua e

multifacetada, imagem de marca do método didáctico apresentado.

Desta feita, ficamos com a ideia de que, além do professor, todas as pessoas que

trabalhavam no colégio uniam forças para ajudar o aluno no seu aproveitamento e no seu

323 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 436. 324 Cf. Ibid., pp. 445, nº 5. 325 Cf. Ibid., nº 390; Cf. LADISLAUS LUKÁS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 376, nº 23; pp. 413, 414, ns. 2, 6, 10. 326 Cf. Ibid., p. 415, nº 11. 327 Cf. INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 379. As declamações realizadas ao sábado de cada mês (Cf.Ibid., p. 428, nº 16) 328 Cf. .LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 377, nº 27, p.408, nº 30; p. 443, nº 10. 329 Cf. Ibid., p. 415, nº 5: Si quis longius spatium ad rem accuratius perficiendam expetit, is, modo ne pedem e schola efferat, neque ultra occasum solis tempus proroget, quamdiu voluerit, maneat. 330 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit , nº 339. 331 Ibid., nº 384. 332 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 371, nº 19. 333 Cf. Ibid., p. 405, nº 7; p. 427, nº 15. 334 Cf. Ibid., p.417, nº 7.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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comportamento. Com efeito, todos eram educadores, directa ou indirectamente, nos vários

cantos do colégio, desde a aula à capela, ao corredor, ao recreio e às próprias reuniões.

Estamos perante um sistema de ensino, apologista do estudo como dever desejado, que

promovia uma moral cristã entroncada na autoridade, no labor persistente, sofrido e sem

pressas, na motivação/emulação e na amizade/companheirismo. Compreendemos, deste

modo, a recorrência a termos como diligência, modéstia, esmero, bons costumes e outros a

eles associados. Podemos afirmar que os homens, integrados neste modo de ensinar e de

aprender, são encarados nas suas vivência, auto-consciência e transcendência.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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3. RECURSOS DIDÁCTICOS / EXERCÍCIOS ESCOLARES FORMAÇÃO MORAL ACTIVA E PARTICIPADA

Nas instituições educativas dos Jesuítas, dos múltiplos exercícios direccionados ao

cultivo do aluno e impregnados de piedade e caridade, interessa-nos aqui explorar as

representações teatrais, encarando-as como exercitação activa onde se aplicavam os

estudos graduais das classes inferiores. Mais uma vez, estamos cientes da abordagem

redutora, mas não perdemos de vista, desta forma, o objectivo enunciado na segunda parte

deste trabalho.

A acção é o cerne desta pedagogia que apela à motivação intrínseca e extrínseca do

aluno, auxiliado e referenciado pelo bom exemplo do professor e de toda uma estrutura

sustentada na autoridade, ordem e adaptabilidade335. Na exortação feita ao compromisso

pessoal, por isso de livre arbítrio, o treino repetido e persistente da palavra no estudo

individual e na disputa, expresso nas modalidades já denunciadas anteriormente, será

recurso sintonizado com uma aprendizagem significativa, sinalizada pelo equilíbrio e pela

moderação, nos conhecimentos e pensamentos de cada um, e pela cooperação, na clareza

de exposição e na naturalidade de comportamento em grupo.

Desta feita, o professor, representando o estímulo, encaminharia o aluno para “‘sentir

interiormente’, saborear profundamente, respondendo ao compromisso livremente

assumido”336. Como recursos auxiliares nesta sua tarefa, o docente usava a sua Praelectio

e as actividades de acção conjunta, desde a prática de exercícios já indicados - repetição da

lição do professor por parte dos alunos, a existência das decúrias e dos émulos

direccionados para a exposição oral - até aos exercícios escolares, conectados à arte

dramática, como o caso das recitações, concertações e declamações337. As técnicas de

335 Esta intenção estava, na prática, condicionada pela dificuldade das escolas em arranjar homens bem formados para grande número de cadeiras de leccionação e demasiados alunos, pois, como indica FRANCISCO RODRIGUES, “as aulas enchiam-se com tal excesso, que se tornava como impossível governar e ensinar tamanha multidão com o fruto que se requeria.” Por isso, “às vezes se viam os Superiores obrigados a confiar as cadeiras a homens, que não davam sempre aos estudantes externos os exemplos de virtude tão altos, como o exigia a sua profissão religiosa”. (Historia da Companhia de Jesus em Portugal… cit., respectivamente, pp. 31 e 30).

Todo o projecto educativo primava pela racionalidade, harmonia de normas, unidade e solidaz da formação, assumindo a educação moral, indissociável da intelectual, “a alma vivificadora de todo este systema” (Idem, A Formação intelectual do jesuíta…cit., p. 129). 336 MANUEL PEREIRA GOMES, Santo Inácio e a Fundação de Colégios… cit., p. 58. 337 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO fala-nos dos torneios oratórios onde “se exercitava a habilidade retórica dos futuros oradores sagrados, juntamente com o uso corrente do latim, ao mesmo tempo que se inculcava nos estudantes a memorização dos princípios doutrinários e morais do catolicismo militante” (“Um Manuscrito de Teatro Humanístico Conimbrisense”, Estudos sobre a Época do Renascimento, Coimbra, 1997, p. 336).

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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comunicação338 implementadas (comunicação social, inter e intrapessoal) ganhavam

sentido numa aprendizagem que investia no atendimento personalizado, na realização

natural de predisposições e capacidades, por isso humana, e no intento de colocar em cena,

entenda-se em acção, a melhor palavra e a óptima atitude de cada um. Desta feita, na

classe de Retórica, o ingenium do aluno das bonae litterae estava sujeito, de acordo com

artium maximarum disciplinae, à exercitatio e ao assiduus usus339, completando e

aperfeiçoando o estudo e actividade das classes de Gramática e Humanidades, onde a

palavra escrita tinha de possuir rigor e exactidão. Só depois de desenvolvida a memória

pelo uso da língua latina, os studia humanitatis poderiam ser conduzidos ad eloquentiam

perfectam, surgindo a Retórica como

“eixo essencial de toda a sua organização, o ponto de convergência de uma intensa actividade de

aprendizagem preparatória e o momento de transição para estudos superiores.”340

A competência dos professores era tida sempre em consideração em actos públicos,

pois, o Reitor deveria incumbir a típica oração de abertura dos estudos a homem muito

insigne, a não ser em caso que a necessidade obrigasse a outra escolha341.

Nestas aulas, onde o aluno/actor se preparava para ser um bom orador, convertendo,

através da imitação342 e com consciência e imaginação, a palavra escrita em acto, a

oralidade assumia formas. Estas tinham nomes como Progymnasmata343, exercícios de

338 Cf. MIGUEL BERTRAN QUERA, La Pedagogía de los Jesuitas… cit., p. 167. 339 No âmbito do Humanismo renascentista, todos estes conceitos estavam interligados como no-lo afirma NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, quando se refere à tríade educativa associada aos pré-socráticos “ingenium, ars, exercitatio” (Cf. “Pedagogia Humanista na colégio das artes ao tempo de Anchieta”… cit., p. 1050; O Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório, Coimbra, 1994, pp. 422-437).

A exercitio destinava-se à mente, por imitação dos autores clássicos, como defende Quintiliano na sua obra pedagógica.

Séneca, na parte final da VI epístola a Lucílio, afirma “longum iter est per praecepta, breve et efficax per exempla” (SÉNÈQUE, Lettres a Lucilius, Paris, Les Belles Letres, tom. I, 1945, p. 18).

Na linha da doutrina de Santo Agostinho, apela-se também para a exercitação do espírito, que será reforçada pela experiência e ascese do mestre psicológico - Santo Inácio - e pelo famoso aforismo “usus non praecepta” seguido no modus parisiensis. 340 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas… cit., p. 252. 341LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p 371, nº 15: Non committat, ut oratio in studiorum instauratione publice ab alio, quam a magistro aliquot insigniore, nisi necessitas cogat, habeatur. 342LEONAL FRANCA diz que “imitar não é copiar servilmente a outrem. Imitar é exprimir as próprias ideias e as próprias experiências rivalizando na arte da expressão com a obra-prima do modelo.” (O Método Pedagógico…cit., p. 86).

Poderemos falar, neste contexto, de uma educação pelo paradigma, em que a arte da palavra se associa a exemplos de grandeza moral advindos das referências da Antiguidade Clássica. Assunto que tem vindo e há-de continuar a ser explorado neste trabalho. (Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, O Príncipe Ideal no século XVI … cit., p. 17-18).

Vide infra, p 108, nota 387. 343 Declara FRANÇOIS DE DAINVILLE: «Après les premiers exercices de lecture latine, une série d’exercices oraux, d’abord très simples, (…) puis plus complexes, des conversations types, à l’instar des Colloques d’ Érasme ou des Dialogi de Vivès. Les Progymnasmata du P.Pontanus, puisés aux meilleures sources, Tullius, Térence, Plaute, les y aident sans les ennuyer. N’est-ce pas leur vie et leurs personnes que mettaient en scène ces dialogues qu’on leur faisait apprendre et

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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preparação de composição, e chría, exercício discriminado na regra cinco do Ratio,

atribuída ao professor de Retórica344. Todavia, nesta ars, onde se evidenciavam também as

exercitações extraordinárias, os docentes das classes inferiores deveriam polir com

diligência, não na íntegra, os exercícios. Pré-requisitos necessários para que a memória e o

talento fossem cultivados, bem como para que voz, gesto e toda a declamação fossem

regulamentadas com dignidade345. Neste seguimento de ideias, compreendemos que:

“O teatro era portanto o coroar de uma ampla série de exercícios didácticos que, directa ou

indirectamente, implicavam um jogo cénico-dramático”346.

De todos os recursos ao serviço do aluno e da doutrina cristã, destacamos a arte

dramática, pela motivação e o estímulo na formação do aluno como ser individual/singular

e colectivo e pelo convívio proporcionado347. As várias manifestações - diálogos,

tragédias, comédias, entremezes, drama litúrgico, autos e representações de mistérios348 -

estavam em sintonia com a importância adquirida pelo teatro escolar na época, almejando

a formação integral do aluno. Com objectivos estéticos e artísticos, relacionados com a

competência linguística a atingir, a finalidade deste recurso didáctico, in lato sensu,

incidiria numa educação moral unida à religião católica (moralizar e catequizar). Por isso,

é que a virtude será simultaneamente objecto de estudo (pela res litteraria) e fruto desse

mesmo estudo, o que possibilitará, tentando levar ao desprezo de vícios e defeitos

humanos, o ressurgir duma sociedade civil, na qual a dimensão social, política e religiosa

pretendiam, segundo a ideologia defendida, o valor humano da pessoa.

Como as aulas de Retórica eram o “palco” deste tipo de exercitação - “O teatro é

educador (…) impõe uma disciplina e impele o aluno à imitação de grandes valores”349 -,

ao professor da classe caberia aproveitar esta prática de privatae scenae de forma a que

débiter comme on joue un rôle? Des jeux de mots, des quiproquos y jetaient même une note comique.». Este estudioso realça a diversidade de exercícios em prosa e verso nas aulas de Humanidades e Retórica: «dévelloper une citation, un fait, selon les huit parties d’une chrie, le préambule, la paraphrase, la cause, le contraire, la similitude, le semblable, l’exemple, le témoignage et l’ épilogue (…)» (La naissance de l´Humanisme moderne…cit., respectivamente, pp. 120 e p. 129). 344 Consistia na imitação “de um orador ou poeta; fazer uma descrição dum jardim, dum templo (…) escrever uma frase de vários modos; (…).

(Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 163, nº 5; pp.425-426, nº 5). 345 Cf.Ibid., p. 421, nº 32 : […] ut non memoria solum discipulorum, sed ingenium etiam excolatur, a magistro expolienda quidem diligenter, nunquam tamen de integro facienda [...] Laborandum etiam, ut vocem, gestus et actionem omnem discipuli cum dignitate moderentur. 346 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas … cit., p.255. 347 FRANÇOIS DE DAINVILLE afirma: “l’image animée, vivante, incarnant la leçon par le jeu dramatique de l’acteur.” (Les Jésuites et léducacion… cit., p. 189). 348 Cf. LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 73. 349 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, Projecto Educativo … cit., p. 229.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

97

“se represente na aula a [acção dramática] que estiver melhor escrita, mas sem nenhum

espavento cénico, distribuindo os papéis entre os discípulos”350. Deste modo, o princípio

da actividade do aluno exercitante, herança dos Exercícios Espirituais - “tirar de si todas

as feições desordenadas”, “Para se vencer a si mesmo e ordenar a sua vida”- interessava

inseri-lo neste recurso pedagógico tão usado pela Companhia. Daí que, “há-de haver

alguma reticência quanto à adopção do teatro como meio de exercitar, porque este não

deve dirigir-se à plateia, ao público, mas à interiorização do que se vai apresentando.”351

Os textos dramáticos tinham o objectivo de munir o aluno orador na técnica e na ética,

nunca descurando a sua psicologia humana352. Numa ascese espiritual, que seria a

promotora de um agir para o bem comum, o Reitor não descuidava o argumento de

tragédias e comédias, quer na sua expressão de latinitas, quer na obrigação de “ser sagrado

e pio”. A sua representação só poderia ser “decente” e eliminava “hábito feminino ou

mulher”353. A modéstia, à semelhança da temperança estóica dos clássicos, era uma

constante nas mensagens transmitidas pelas normas “secas e brevíssimas” que se

prescreviam ao ensino e educação”354, no Ratio de 1599. Na esteira do Humanismo

Cristão, cumprir tais linhas de conduta possibilitava ir ao encontro do “Nosce te ipsum”,

podendo entrever-se princípios morais do “socretismo cristão”355.

A falta de decência e pudor atribuídas às representações teatrais escolares da época356

justificavam o rigor documentado a favor da cultura estética e da doutrina moral dos

350 LADISLAUS LUKAS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 167, nº 19; p. 428, nº 19: […] ut illa deinde in schola distributis inter ipsos partibus, sine ullo tamen sine rectoris permissu, picturis, quae omnium optime conscripta sit.

MARGARIDA MIRANDA afirma que “o objectivo principal do programa de estudos jesuíticos era a formação de eficazes divulgadores da cultura católica reformada quer entre clérigos quer entre leigos” (Miguel Venegas … cit., p. 251). 351 MANUEL PEREIRA GOMES, Santo Inácio e a Fundação de Colégios… cit., p. 58. 352 Cf. FRANÇOIS DANVILLE, La naissance de l´Humanisme moderne…cit., p. 105. 353 LADISLAUS LUKAS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 371, nº 13: Tragoediarum et comoediarum, quas non nisi latinitas ac rarissimas esse oportet, argumentum sacrum si tac pium; neque quicquam actibus interponatur, quodnon latinum sit et decorum, nec persona ulla muliebris habitus introducatur. 354 FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus… cit., p. 25. 355 Estes princípios, apresentados pela Professora NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, no âmbito da pedagogia formativa do Humanismo renascentista associadas aos tratados de educação - marcos da época por toda a Europa -, referem-se ao caminho de aprendizagem que cada um devia empreender, no sentido de dominar as paixões, resultando este auto-domínio da força racional, do distanciamento dos perigos relacionados com amor-próprio, do sentido de moderação e justiça. (Cf. O Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório… cit., p. 437, 424). 356 Os abusos nas representações teatrais da época, levam o próprio fundador da Ordem “com o empenho santo de afastar de seus meninos e geralmente do povo a corrupção dos bons costumes. (…) Neste lauvável intuito combateu a todo o transe as comédias populares e os comediantes, “que naquele tempo, refere Baltasar Teles, quase contemporâneo daquêles sucessos, com representações indecentes profanavam a honestidade portuguesa. Não impugnava ele primores da arte dramática; perseguia somente incentivos de desmoralização (…). Até nos púlpitos vociferava contra as comédias corrutoras.” (FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus…cit., p. 464).

“Quando elles [Jesuítas] appareceram, já nos estabelecimentos de ensino florescia a arte dramática. Nomeadamente em Paris e Strasburgo os estudantes subiam de quando em quando à scena transformados em actores, que nem sempre guardavam as leis do commedimento e decoro.” (Idem, A vida intelectual… cit., p. 79).

Cf. LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 71.

Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

98

alunos, tal como do gosto de um público seleccionado, o qual não devia estar corrompido

pela dissolução dos costumes.

Com o número treze surge a regra direccionada aos alunos externos, proibindo-os de

assistir “a espectáculos públicos, comédias” e de interpretar algum papel em teatros

externos, excepto se tivessem a licença de seus professores ou do Prefeito do Colégio357.

Quanto aos escolásticos da Companhia, “quando frequentarem escolas públicas (pois a

outras partes não hão-de ir sem pedir licença), irão e voltarão [em grupos de dois]”358. A

advertência para uma atitude de união e discrição é reforçada, não só nas Constituições,

mas também no Ratio, cum ea modestia interiore et exteriore359, prescrição para prevenir

possíveis distracções de e na rua.

Através do aproveitamento deste incontestável meio de formação integral do aluno na

dinâmica educativa jesuítica, podemos adaptar a esta realidade as palavras de um famoso

psicoterapeuta da nossa época que alia a psicologia à pedagogia - “o indivíduo se torna -

na sua consciência - aquilo que é - na experiência”360.

O poder de conhecimento e ordem moral e social deste recurso didáctico era

reconhecido, pois

“Do teatro fizeram os padres uma verdadeira instituição; a cena continua a aula e a capela… o

verdadeiro, o belo e o bem era o que eles se propunham fazer amar, misturando, já se vê, o útil com o

agradável. Mas, o último fito deles deve ser sempre a formação do coração e da vontade”361.

MÁRIO BRANDÃO revela-nos uma realidade diferente do que se dizia passar na pátria lusa, pois “ em França as peças,

obra por vezes dos próprios escolares, com frequência não passavam de grosseiras e obscenas sátiras políticas, cheias de alusões a acontecimentos e figuras em evidência.” (A inquisição e os Professores do Colégio das Artes, Coimbra, 1948, p. 234). 357.Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu…cit., p. 447, nº 13: Neque ad publica spectacula, comoedias, ludos, nec supplicia reorum, nisi forte haereticorum, eant; neque personam ullam in externorum scenis agant, nisi data prius a magistris vel a praefecto gymnasii potestate.

Vide supra, p. 87. 358 INACIO DE LOIOLA, Constituições da Companhia... cit., nº 349. 359 Cf. Ibid., p. 442, nº 7: Cum ad publicas scholas eundum erit, eant et redeant invicem associati cum ea modestia interiore et exteriore, quae ad sui et aliorum aedificationem conveniat. 360 CARL R. ROGERS, Tornar-se Pessoa, trad. Manuel José do Carmo Ferreira, Lisboa, 1985, pp. 104-105. 361 LEONEL FRANCA, O Método Pedagógico… cit., p. 74.

Parte I - Hominem Humaniorem Facere:

Modelo do homem perfeito na sua versão cristã

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Cura personalis na Pedagogia dos Jesuitas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

100

CAPÍTULO I

ACÇÃO

O TEATRO ESCOLAR JESUÍTICO ATENÇÃO E INTENÇÃO NUMA PEDAGOGIA HUMANISTA CRISTÃ

Tendo como preocupação e especial cuidado a organização dos conteúdos a expor, como

seguidores do bom exemplo apresentado pelo disciplinado e prescrito sistema educativo em

estudo, passamos a explanar o modus operandi concernente a esta parte do trabalho.

Em dois capítulos, centrar-nos-emos no instrumento didáctico que tornava activo o estudo

dos textos clássicos, em concordância com o método originário das escolas humanísticas dos

Irmãos da Vida Comum - o modus parisiensis: praecepta pauca, exempla multa, exercitatio

plurima. Para uma gradual exposição do tema, o primeiro capítulo estará ao serviço do

segundo, na medida em que irá montar o cenário e a ambiência que, pela sua especificidade no

campo da ética e da estética dos textos dramáticos, julgamos complementar a informação já

fornecida na primeira parte desta dissertação. Certamente, este primeiro capítulo, algo

minucioso, há-de possibilitar uma compreensão mais adequada da análise - a fazer a posteriori

- das peças de teatro seleccionadas.

Os exercícios académicos programados para as aulas de Retórica e sessões literárias, com

base nos autores clássicos, e as singulares produções literárias, representadas nos eventos de

pompa e circunstância - expressão do impacto da produção neolatina jesuítica -, eram

encarados como recursos importantes numa educação intelectual/literária, mas com forte

pendor social e moral. A formação, no domínio retórico, na memorização, na pronuntiatio, na

elocutio e na actio, de utilidade nesse momento histórico, tornava-se completa com as

vertentes religiosa, propagandística e emblemática de uma moral cristã católica que elevava “o

pensamento para um ideal sublime, e attrahia-se a vontade de virtude com a tornar sensivel,

graciosa e amavel”362. Por isso, é que, neste capítulo, estará em foco uma moral fundada na

obediência a regras e princípios que se afastavam dos meros intuitos particulares, apelando à

362 FRANCISCO RODRIGUES, Formação Intelectual do Jesuíta… cit., p. 26.

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Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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consciência e temperança de cada um na participação de um projecto colectivo de amor

fraterno.

Nas declamações, disputas dialogadas, manifestações da concertação363, nos diálogos,

nos discursos, colóquios e em certos actos públicos, os conhecimentos clássicos eram o

ponto de partida - o estudo da gramática latina, fundada no uso, a sua eclosão nas artes de

retórica e sua finalidade discursiva. Nas tragicomédias, comédias, tragédias e nos diálogos

dramatizados do teatro neolatino jesuítico, a latinitas dos ensaios e dos exercícios teatrais

não se confinava às temáticas dos autores clássicos do programa, já que os temas bíblicos,

as histórias de devoção e histórias sacras e pias veiculavam, pela sua natureza cristã,

códigos rigorosos de condutas e comportamentos. A mensagem do texto poético-retórico,

representado e reforçado com adereços e acordes, era testemunho do objectivo deste

ensino em se elevar a padrões de excelência, apoiados no aproveitamento, no

comportamento, enfim no desempenho de colégios atentos às pessoas, aos tempos e aos

lugares364. Para tal, uma nova concepção de teatro e uma mescla de géneros, envolvendo o

paradigma da estética teatral greco-latina e as orientações religiosa e popular, eram

reflexos do empreendimento pedagógico-didáctico, como teremos oportunidade de

verificar.

O teatro escolar dos colégios dos Jesuítas em Portugal, na segunda metade do séc.

XVI, assentava, durante o ano lectivo, num curriculum em que os textos dramáticos

apresentavam as formas vivas e coloquiais do latim de Plauto e, sobretudo, as comédias

eruditas, fabulae sacrae, de Terêncio, este cómico era do interesse dos humanistas. Os

educadores jesuítas adaptavam-no ao discurso cristão, como então era costume literário,

advertindo e alterando o original, o que lhe conferia a denominação de Terêncio cristão,

típica dessa época365. A conjugação de antiguidade e modernidade implicava uma maior

abrangência sócio-cultural filiada em assuntos de índole existencialista, eclesiástica,

363 Cf. LADISLAUS LUKÁCS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., pp. 427-428, ns. 12, 16 e 17.

Na acção conjunta professor/alunos, os exercícos de cariz colectivo e público projectavam-se nas composições, concertações e declamações – atentas à arte de falar. Estas, segundo o Ratio de 1599, vinham complementar os exercícios de Composição e efectuavam-se semanalmente, quinzenalmente e mensalmente, envolvendo toda a comunidade educativa. (Cf. JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, O Projecto Educativo… cit., pp. 225-229; Cf. MARGARIDA MIRANDA, “Uma ´Paideia` humanística: a importância dos estudos literários na pedagogia jesuítica do séc. XVI…” cit., pp. 247-248). 364 Nas palavras de FRANCISCO RODRIGUES, atento às finalidades expressas por Luís da Cruz na sua “prefação”, este recurso didáctico aparece “já para promover o adeantamento dos estudos, já para dar brilho ás aulas ou até para recrear a Universidade” (Formação Intelectual do Jesuíta… cit., p. 454). 365 Diz-nos ANTÓNIO FREIRE que “o estilo de Terêncio, embora estilo de conversa das pessoas cultas da época, é o que mais se aproxima da pureza, elegância e perfeição da prosa ciceroniana.” (Humanismo Clássico… cit., pp. 294-295).

Na produção dramática de moralidades medievais, as obras de Terêncio eram imitadas, adaptando o estilo a temas bíblicos (escola de Terêncio Cristão iniciada em Nuremberg em 1501). Apontamos para a produção dramática de Hrosvitha e as chamadas comédias elegíacas.

Vide supra, pp. 61-62, nota 144; vide infra, pp. 115-117; 153-154, nota 567.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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hagiográfica e bíblica. A orientação moral estava na essência do teatro e, no caso

português, envolvida com a pátria366.

Desta feita, no âmbito de uma praxis lectiva onde poderia eclodir brevem aliquam

actionem (uma breve acção dramática)367, apresentaremos, num primeiro momento do

segundo capítulo, três fabulae palliatae368 da autoria do comediógrafo latino Terêncio

sobre o qual, como já informámos, recaíam tantos avisos de prudência para uma adequada

didáctica relacionada com os conteúdos programáticos a ensinar nos colégios jesuítas369.

Centrar-nos-emos na selecção e expurgação a que foram submetidas as comédias, Andria

(A Moça que veio de Andros), Heautontimorumenos (O Homem que se puniu a si mesmo)

e Eunuchus (O Eunuco), as quais se encontram na antologia escolar de 1593 - Sylvae

variorum autorum, qui inferioribus classibus idonei sunt. Tomus secundus. In quo

poemata selecta continentu -, no livro IV.

Num segundo momento, a nossa atenção recairá numa tragédia e numa tragicomédia

neolatinas, Achabus e Prodigus. Produzidas e representadas na década de sessenta, são da

autoria dos dois mestres Jesuítas370 que se notabilizaram na arte dramática da época em

estudo, Miguel Venegas e Luís da Cruz, respectivamente. A ambos se atribui uma

dramaturgia de renome, com destaque para as representações no Real Colégio das Artes,

sendo prescrita, a posteriori, por Luís da Cruz no seu Praefatio ad Lectorem ou “Beneuolo

amicoque lectori”, conhecido como o prefácio que encabeça as suas peças no volume

impresso em Lyon371.

366 Pelos temas bíblicos condutores de uma mensagem que extravasa a formação na língua latina e na retórica, as obras teatrais quase sempre produzidas pelos professores padres da Companhia são instrumentos pedagógicos de grande amplitude e impacto. Segundo FLORENCIO SEGURA, este teatro deve ser encarado em quatro aspectos “pedagógico, literário, pastoral e formal”. Este estudioso designa o teatro escolar, nascido com os colégios dos Jesuítas, como “teatro total” porque “ no fue meramente un teatro escolar, compuesto de declamaciones o debates retóricos, un mero ejercicio de la lengua latina, sino un teatro auténtico centrado en la representación de comedias, tragedias y tragicomédias, com suntuosa escenografía y acompañamiento, casi siempre de música y de danza”. Os valores, atitudes e virtudes das peças direccionam-se não só aos alunos dos colégios e família, mas também para um público notável. Actos públicos académicos e representações teatrais tinham como constantes “solemnidad, demonstración de sabiduría, propaganda y prestigio do colégio, necesidad de repetir el acto, público muy distinguido.” (“El teatro en los Colégios de los Jesuítas”, Misc. Comillas 43 (1985), respectivamente pp. 307, 320 e 310).

Não devemos esquecer que, se faziam parte do público homens do poder e com poderes, os temas escolhidos atenderiam à realidade que os acolheria. CLAUDE HENRI FRECHES refere: «Certes l’actualité politique se mire sur la scène. Le monarque triste ou orgueilleux, l’ambition et l’intrigue courtisanes, la naiveté d’un peuple opprimé, la vanité pédantesque s’expriment selon le cas avec les sonorités de Sénèque ou grâce à quelque saillie de Plaute ou de Térence.» (Le Théatre Neo-latin … cit., p. 499). 367 Cf. LADISLAUS LUKACS S.J., Monumenta Paedagogica Societatis Iesu… cit., p. 428, nº 19. 368 Estas comédias romanas tomavam esta designação, porque imitavam o teatro grego na temática e nas personagens, que vestiam um manto chamado pallium. 369 Vide supra, pp. 61-62 e vide infra 115-118. 370 Sobre o seu perfil humano, vide supra, pp. 76 e 77. 371 Vide infra, p. 108, nota 388 e p. 211, nota 784.

MANUEL JOSÉ DE SOUSA BARBOSA, além deste prefácio das Tragicae comicaeque actiones, com origem após trinta anos da data de representação das peças, datada a primeira, o Pródigo, de 1568, refere a existência de outro prefácio inédito dedicado “Ad benevolum eruditumque lector”, anterior ao prefácio de Lyon. Pela dedicatória vislumbra-se o cariz erudito

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Na análise da arte de composição, o texto literário, não sendo a única linguagem na

natureza interdisciplinar típica do teatro, assumirá aqui a sua posição de destaque,

comprovando o valor combativo das vivas palavras, carregadas de memória clássica. Esta

capacidade/domínio da expressão oral e escrita, envolvida pela poética, seria

imprescindível para a descoberta de vocações e escolhas profissionais. Em qualquer

desempenho, importavam às elites as destrezas desenvolvidas nesse tipo de exercício

escolar, assinalando-se que “no teatro clássico dos sécs XVI, XVII e XVIII, […] era à voz

que era atribuída a maior importância dramática”372.

Interessa-nos, através dos diálogos e reflexões das dramati personae, comprovar a

moção dos afectos373, manifestada em variantes do amor natural do homem, que se

pretende compatível com o amor sobrenatural de Deus374. Logo, as atitudes e as condutas

representadas estavam conformes à moral professada pela Companhia, obediente às

directrizes da Cúria romana. A acção dramática, depreendida da representação e seus jogos

cénico-dramáticos, será pretexto para reflectirmos sobre o papel de um amor humano que

nos surge instrumentado, encarando a literatura como normativa, para auxiliar numa

educação pessoal que almejava actividade, consciência e entusiasmo, envoltas numa

ordem afectiva cristianizada. O afecto deveria existir com discernimento - produto de um

pensar, querer e agir bem - atingindo-se, deste modo, nobres sentimentos cristãos.

Nesta utilidade pedagógica e catequética do teatro, devemos ter sempre em mente

Inácio de Loiola que colocava nas acções, mais que nas palavras, a direcção certa para

cada um fazer a caminhada terrestre, passando pela vida guiado pela acção do verbo amar

- manifestada em maneiras imersas na obediência, na liberdade responsável, na lealdade,

na fidelidade, na modéstia, na penitência e no perdão, enfim, na caridade e na piedade.

Neste ambiente educativo, a caridade é, tal como a encarou Santo Agostinho, a suprema

forma de amor na medida em que é via de comunicação com a divindade375. Recalcamos

dos destinatários de que a mensagem comungará na sua estrutura retórica, contendo informações interessantes para o conhecimento e compreensão de aspectos sóciais e literários da segunda metade do séc. XVI. No artigo em destaque, apresenta-se a divisão do discurso em quatro partes retóricas, seguida da respectiva tradução. (“Luís da Cruz e a poética teatral dos Jesuítas: o prefácio que ficou inédito”, Euphrosine, 28 (2000) 375-405). 372 ANTÓNIO SOLMER, Manual de Teatro, Lisboa, 2003, p. 258. 373 JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES refere o sentido de afecto usado por Santo Inácio nos Exercícios Espirituais ora como “inclinação para algo” ora “como sinónimo de amor” (Santo Inácio de Loiola, um educador do desejo… cit., p. 80). 374 Vide supra, pp. 49-53. 375 PEDRO CARDIM diz que “a caridade constituía, afinal, a leitura cristã da amizade ‘pagã’, e figurava entre as ‘virtudes teologais’, juntamente com a fé e a esperança.” (“Amor e Amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII”, Lusitânia Sacra, 11 (1999) 25).

ANTÓNIO FREIRE afirma que “na tríade Paulina fé, amor, esperança […] a fé actua pela ágape […] e, quando um dia desaparecerem a fé e a esperança, a ágape permanece. […] Mas a ágape, em S. Paulo, como em Cristo, como em S. João, como em S. Tiago, como na doutrina do Cristianismo, manifesta-se em amar o próximo, como a nós mesmos, por amor de Deus.” (“Eros Platónico e Ágape Cristã…” cit., p. 36).

Vide supra, pp. 51-52, nota 101.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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mais uma vez o interesse na abordagem da temática amorosa, tentando demonstrar o

objectivo educacional centrado em regras de conduta e bem viver no âmbito de uma moral

católica apostólica romana.

Pela arte dramática, forma de expressão poética imitadora de relações e interacções

entre os homens que nela se podem rever e pensar376, vislumbrava-se o intuito de uma

didáctica humana assente num convívio estimulante e motivador. Nos colégios, os alunos

seriam os primeiros a sentir esta experiência377, duplamente útil, na letra e na virtude,

reforçando a militância em consonância com uma etapa do caminho da salvação a eleger e

percorrer por cada um diante do projecto criador de Deus, finalidade absoluta.

Assim, já nos Exercícios Espirituais, encarados como “ uma peça de teatro”,

apresentava-se um plano pedagógico-didáctico para, “quando na alma se produz alguma

moção interior, com a qual vem a alma a inflamar-se no amor de seu Criador e Senhor”, se

atingir “todo o aumento de esperança, fé e caridade e de toda a alegria interior que chama

e atrai às coisas celestiais e à salvação de sua própria alma, aquietando-a e pacificando-a

em seu Criador e Senhor”378.

A prática do bem comum, em consonância com “ todas as minhas intenções, acções e

operações”379, resulta, aqui, da interacção entre seres humanos imersos no amor de

inspiração divina, de um “Deus disponível”, um “Dios actuante”380, para O Qual se

direccionam. O encontro com o outro, seu semelhante, dá-se, neste caso de exercitação

espiritual, com o que aconselha e orienta a aprendizagem. Torna-se oportuna a referência à

amorosidade que Inácio de Loiola propõe como princípio básico da pedagogia jesuítica,

376 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Dramaturgia e actualidade do teatro clássico: Matéria e Forma na tragédia quinhentista…” cit., p. 181. 377 MARGARIDA MIRANDA diz que “as primeiras notícias de representações escolares são portanto unânimes em sublinhar o vivo interesse com que os alunos acolhiam aqueles momentos da vida académica e o bom fruto que dali resultava no aumento dos estudos”(Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., p. 31). 378 INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº316.

MÁRIO GARCIA fala-nos da teatralidade dos Exercícios Espirituais, onde “um jogo de relações interpessoais que poderíamos aproximar da representação cénica, em quatro autores-actores (quem os dá, quem os recebe, Inácio de Loiola e o Espírito Santo), contracenam durante quatro ‘semanas’ de duração variável, como se fossem quatro actos de uma acção dramática”. Sendo assim, “a sua estrutura é, com efeito, dramática, sequencial e dialógica; a sua finalidade não é de ordem estética, destina-se a reactivar a energia da acção; o seu estilo, tão enxuto quanto clarificador, não produz um aumento de cultura literária. Trata-se de uma obra, no sentido pleno da palavra, opus, operatio, do operário da palavra encarnada e encarnatória. O estímulo para que os jesuítas, e não só, privilegiassem o teatro e a música na pedagogia, é dado, como procurámos mostrar, a partir do texto dos Exercícios Espirituais, que educam permanentemente a sua própria vida. Fazer deles um manual universal para a arte de viver, uma moldura dinâmica, não só para a correspondência de todas as artes, mas também para a verdadeira convivência humana, seria um projecto civilizador. Para isso, eles continuam, graças a Deus, a servir.” (“Exercícios Espirituais e teatralidade”, Brotéria, 160 (2005), respectivamente, pp. 64, 75, 76). 379 INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 46. 380 LUÍS UGALDE, SJ diz que “Es un Dios actuante, no solamente en el interior de los espíritus sino en el mundo, en las cosas, en la naturaleza, en las personas, en la historia” (“Espiritualidad y educación Ignaciana…” cit., p. 35).

Vide supra, pp. 49-53.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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“o quanto leccionar para ele, não era apenas o cumprimento de um conjunto de regras, mas muito

mais: amor que incendeia, aquece, ilumina, passando necessariamente pela experiência, o que exigirá

mergulhar naquilo que se estuda, deixando-se aquecer, consumir, apaixonar…”381.

Deste modo, sendo e agindo de maneira a atingir a verdade, o conhecimento racional,

o coração, os sentimentos na conquista da boa vontade, os afectos não eram esquecidos

neste ensino-aprendizagem. Em acto e numa visão pragmática ou de “sabedoria prática”,

ele há-de servir e aplicar, no seu ambiente escolar, a causa professada pelo dogmatismo

tridentino, como pretendemos evidenciar.

Tal como Homero e Hesíodo, nas suas obras literárias, pretendiam com a imagem

espiritualizada dos seus heróis uma acção moral, o teatro neolatino jesuíta não terá

paralelo com os heróis bíblicos e os santos?

No ideal educativo proposto, na atenção dada à perfeição pessoal em letras e em

virtude, na missão educativa de desenvolvimento e polimento intencional dos talentos

naturais de cada um, haverá limites na interferência do poder religioso, político e social,

haverá condicionantes na humanização do homem?

381 CECÍLIA IRENE OSOWSKI, “Educação Inaciana e currículo: Rompendo o disciplinamento pelo dizer poético”, Brotéria, 158 (2004) 240.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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1. ADOPTAR E ADAPTAR O TEATRO CLÁSSICO A FONTE NÃO EXPLICA A OBRA

Com origem na Grécia382, o teatro, ligado a representações inseridas no calendário das

festas religiosas, na Antiguidade, ganhou fama pelas tragédias de Ésquilo, Sófocles e

Eurípides, e pelas comédias de Aristófanes.

Na época do Renascimento e Humanismo, em que a dignidade humana e elevação da

sua condição existencial se podia alcançar pelas bonae litterae, no campo didáctico

destacava-se como principal fonte ou modelo da Antiguidade greco-latina o tragediógrafo

romano Séneca383. Nas suas tragédias eram visíveis referências do teatro de Eurípides384,

no questionar do valor humano e na análise e compreensão da sua existência. Esta

orientação que aliciava os humanistas, em geral, e os Jesuítas, em particular, encontrava-se

em sintonia com o pensamento filosófico, doutrinário e pedagógico português do séc.

XVI, participante das tendências culturais europeias.

Em termos literários, no território luso, após a dramaturgia vicentina, estávamos a

caminhar a passos largos em direcção à estética clássica, sendo Luís de Camões, cerca de

1560, o seu expoentena expressão poética385.

382 Sobre a origem do teatro, remetemos para a Ars Poetica de Horácio, onde é feito o esboço histórico da arte dramática: HORÁCIO, Arte Poética. Introdução, tradução e comentário de R. M. ROSADO FERNANDES, Lisboa, 1984, pp. 94-99, vv. 275-294: Ignotum tragicae genus inuenisse Camenae/ dicitur et plaustris uexisse poemata Thepis/ quae canerent agerentque peruncti faecibus ora / Post hunc personae pallaeque repertor honestae/Aeschylus et modicis instrauit pulpita tignis/et docuit magnumque loqui nitique coturno […].

Indica-se ainda para consulta sobre o assunto ANTÓNIO FREIRE, Teatro Grego… cit., pp. 81-101. MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA diz-nos que “quando falamos em teatro latino da época republicana, é à comédia

de Plauto e de Terêncio que nos referimos; quando aludimos ao da época imperial, pensamos nas tragédias de Séneca.” (Estudos de História da Cultura Clássica… cit., p. 72). 383 A opinião demonstrada por Séneca sobre as letras humanas, na sua carta 88 a Lucílio é citada por MANUEL ALEXANDRE JÚNIOR: “são educativas aquelas artes (…) que os gregos chamam ‘enciclopédicas’, e os romanos chamam igualmente ‘liberais’, por serem elas dignas de um homem livre e lhe prepararem o espírito da virtude” (“Paradigmas da Educação na Antiguidade Greco- Romana”, Humanitas, 47 (1995) 495).

NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES disserta sobre o conhecimento e divulgação do teatro trágico clássico, o teatro profano, no discurso trágico quinhentista, espelho também do teatro de inspiração religiosa de raízes medievais (Cf.“Mito, Imagens e Motivos clássicos …” cit., pp. 69-71). 384 ANTÓNIO FREIRE diz que “ de facto, no primeiro grande trágico grego [Ésquilo], a tragédia paira nas regiões celestes; Sófocles trouxe-a para a terra; Eurípides meteu-a no coração do homem.” (Teatro Grego... cit., p. 203). Sobre este assunto remetemos para maior aprofundamento para a leitura das pp. 193-225 do livro que acabamos de citar.

Sugerimos o artigo de FREDERICO LOURENÇO, “Philia na Alceste de Eurípides”, Clássica, 21 (1966) 61-68, onde se realça a frequência dos termos ligados ao campo semântico de philia (estima), emergindo a “emotividade racional, sensata, dirigida a familiares e amigos que merecem o nosso respeito ou a nossa gratidão” contraposta à emotividade irracional expressa por eros.

Sobre estes aspectos, vide supra, pp. 51 e 52 e p. 104, nota 375. 385 JACINTO PRADO COELHO, “Classicismo”, in Dicionário de Literatura, dirigido por Jacinto Prado Coelho, vol. I, Porto, 1992, p. 184.

A dramaturgia de Gil Vicente contemplava a temática amorosa e os desejos que lhe estão associados, bem como a o Auto de Filodemo de Camões, com reflexos neo-platónicos (Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES “O tema do amor na

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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No plano literário, com os alicerces na imitatio et emulatio dos modelos clássicos,

arquitectava-se um estilo resultante do intenso labor e fervor inerentes aos studia

humanitatis e do valor moral implícito. Também “ao teatro, sobretudo à tragédia, se

atribuiu um papel fundamental na formação pedagógica e na veiculação proselítica da

mensagem cristã”386, absorvendo e respeitando a herança da Antiguidade Clássica, que

aparecia no género dramático neolatino, através da língua e do intertexto clássicos, sob

uma óptica cristã, vinculada na tradição bíblica. Esta, ausente dos dramas pagãos, vincava

a verdade e vontade religiosas. Naqueles modelos da Antiguidade, incontestáveis na época

renascentista, essa religiosidade só poderia ser vista e entendida, cortando e remodelando

partes do original, como teremos oportunidade de verificar.

As peças trágicas, cómicas e trágico-cómicas, emblemáticas do drama neolatino

jesuítico e colocadas em cena no Colégio das Artes de Coimbra387 na segunda metade do

século XVI, iriam dar origem a uma ars codificada, a uma disciplina poética no Praefatio

ad lectorem388 da autoria de Luís da Cruz, aluno e ilustre professor e dramaturgo nesse

tragédia humanista: Amor sagrado e Amor profano”, in Miscelânea de Estudos em Honra do Prof. A. Costa Ramalho, Coimbra, 1992, p. 184).

386 Ibid., p. 187.

Quanto à imitação dos modelos greco-latinos, seria interessante atender à leitura do artigo relativo ao teatro clássico de LUÍS DE SOUSA REBELO, “Teatro Clássico”, in Dicionário de Literatura, dirigido por Jacinto Prado Coelho, vol. IV, Porto, 1992, pp. 1060-1070.

Acerca da imitatio, seguida pela Pedagogia da Companhia, FRANÇOIS DE DAINVILLE, afirma: “des modèles parfaits [grands auteurs de l’âge d’or, Virgile, Térence et Cicéron] ils [les élèves] éveillaient et formaient ‘le goût et l’ambition de la pureté, de la précision, de la noblesse, ces qualités éminentes des œuvres antiques»; «Si la perfection de la poésie ou de l’éloquence dépend de l’imitation des Maîtres, il faut, à l’exemple de l’ abeille que nous voyons voleter de fleur en fleur, cherchant les sucs les plus propres pour préparer son miel, butiner et faire maints larcins dans leurs œuvres.» (Les Jésuites et l’éducacion… cit., pp. 132 e 134).

Vide supra, pp. 95-96, notas 342, 343, 344. 387 Vide infra, pp. 141-150. 388 Do volume TRAGICAE COMICAEQUE ACTIONES, publicado em Lyon um ano após a morte de Luís da Cruz (Crucius), em 1605, consta o prólogo referido. Desta edição faziam parte seis peças teatrais representadas no Colégio das Artes de Coimbra da autoria do ilustríssimo professor de literatura clássica, sobre o qual falaremos, com mais detalhe, aquando da abordagem da sua primeira tragicomédia representada nesse colégio, o Pródigo (1568) neste estudo. Três tragicomédias, a supra citada Iosephus (1574) e a Manasses restitutus (1578), uma tragédia, Sedecias (1570), uma comédia, Vita Humana (1571 ou 1572) e a Écloga Polychronius (1584, representada na Universidade de Évora) constituíam o corpus desta obra. O dramaturgo e encenador jesuíta escreve aí que “os Superiores que nos dirigem, pensando que nelas [obras teatrais] algo existia de bom, ordenaram que eu compusesse as que eram da minha autoria e que estavam quase mortas e as preparasse para o prelo.” (P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina, tradução de R. M. ROSADO FERNANDES E J. MENDES DE CASTRO, vol. II, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, p. 24). P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina – reprodução fac-similada, vol I, Lisboa, 1989, p. 9: Caeterum patres qui nobis moderantur, existimantes in his aliqua esse bonae frugis, mandarunt ut quae apud me erant pene mortua, concinnarem, pararemque ad praelum. Serão estas duas obras o suporte para tradução e indicação do texto original. Além disso, procuraremos citar o texto horaciano, em paralelo.

CLAUDE HENRI FRÈCHES realça o autor deste prefácio «le latiniste illustre et l´humaniste sans servilité. Elle [cette Préface] laisse pressentir l’artiste au goût asses austère pour l’époque» (Le Théatre Neo-latin au Portugal … cit., p. 258 e pp. 253- 259 a respeito deste tema).

Indicamos duas obras onde está tratado especificamente este assunto: FRANCISCO RODRIGUES S.J. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, vol. II, tomo II, Porto, 1939, pp. 75-88.

Os arquivos de manuscritos das produções dramáticas dos Jesuítas em Portugal do séc. XVI são a Biblioteca do “Hispanic Society of América”, em Nova Iorque, a Biblioteca e arquivo Municipal de Évora, a de Coimbra e a Biblioteca Nacional de Lisboa.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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local de ensino-aprendizagem. Instituiu-se, por este meio, uma nova concepção de teatro

erudito permeável à estética da Antiguidade clássica em voga no momento e tão

conveniente ao teatro académico que colocaria à prova o aproveitamento das aulas de

Retórica.

Esta abertura ao mundo clássico abrangia toda a produção teatral da época em

Portugal389. Os dramas jesuítas, à excepção da publicação da colectânea de Luís da Cruz,

estavam ao serviço exclusivo da representação escolar dos diversos colégios, sendo

copiados em vários manuscritos que se encontram arquivados em várias cidades europeias,

incluindo as de Portugal - Lisboa, Évora, Coimbra - e na América.

Fazem eco, neste teatro escolar da Companhia como processo de composição e

teatralização fidedigno aos postulados clássicos, as palavras de Nair de Nazaré:

“a obra dramática, mímesis biou, tem necessidade de estar de acordo com os padrões de

sensibilidade da sua época, com os gostos do auditório, do leitor/espectador, motivação primeira da obra

trágica”390.

Vamos tentar articular as influências das “antigas” regras preconizadas pelo poeta

latino Horácio na Arte Poética391, com realizações nas obras de Plauto, Terêncio e Séneca,

e as “novas” regras que o teorizador jesuíta programava e corporizava neste prólogo

expositor do teatro de “gente nossa”, qui theatrum magna expectatione occuparunt392.

As razões para tal envolvimento artístico/pedagógico fundamentavam-se no labor

quotidiano dos estudantes, no divertimento para participantes e espectadores, e,

obviamente, na moralização de todos393. Porém, tal ocupação pedagógico-didáctica era

389 Para um estudo mais aprofundado, remetemos para CLAUDE- HENRI FRÈCHES, Le Théatre Neo-latin … cit., pp. 498-503.

Vide supra, p. 102 e vide infra, p. 116, nota 425. 390 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Mito, imagens e motivos clássicos …” cit., p. 87.

Cf. Idem, “Dramaturgia e actualidade do teatro clássico: Matéria e Forma na tragédia quinhentista…” cit., p. 182. É oportuna a concepção do Arpinante “Comédia é a imitação da vida, um exemplo de costumes, a imagem da verdade” (CÍCERO, Rep.II.4.).

391 A Poética de Aristóteles teve a sua evolução, atingindo o auge na Epistola ad Pisones ou Ars Poetica de Horácio391. Todavia não poderemos obnubilar, segundo ERNEST ROBERT CURTIUS que “estóicos e epicuristas abrem debate sobre processos artísticos, efeito e missão da poesia. Escassas mostras dos escritos originais nos são acessíveis, mas seu conteúdo conservou-se na Arte Poética de Horácio” . O percurso da teorização poética “encontrou firme apoio na escola e na Igreja, foi possível, assim, ensinar arte poética, suas formas métricas, seus géneros e ornatos: logo, uma ‘poética’. E ensinar também uma prosa: portanto, uma elementar ‘teoria e prática da literatura’ (Literatura Europeia e Idade Média Latina…. cit., p. 199). 392 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina … cit., vol I, p. 11. 393 Cf. Ibid., p. 24.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

110

própria de comediantes394, “espécie de homens bastante prejudicial no que respeita aos

costumes”395, por isso, mostrava-se, à primeira vista, imprópria aos castos e sérios

membros da Companhia. Lançavam-se, assim, “os seus teólogos, homens respeitados pelo

talento e saber”396 para situações difíceis tanto pelo investimento pessoal e financeiro,

quanto pelos possíveis conflitos com a irreverência própria da juventude, pois, como nos

diz o provérbio do humanista Cataldo Parísio Sículo, “a idade juvenil busca o que é

jovem”397.

As necessárias alterações dos cânones clássicos nestes trabalhos inventivos

(ficcionais), quae cum probabilitate finguntur398, iluminavam o princípio da

adaptabilidade tão apregoado por Inácio de Loiola nas Constituições. A preocupação

existia em relação às pessoas “para dar prazer ao espectador” em circunstâncias espácio-

temporais específicas - “para os Portugueses da Universidade de Coimbra, na qual, se algo

fosse publicado na observância dos antigos cânones, talvez não tivesse agradado”399.

A imitação de autores como Aristóteles e Horácio, Séneca, Plauto e Terêncio e a sua

referência explícita na arte dramática, não esquecendo o aviso de que na métrica

“Consultem-se Eurípides, Sófocles e Ésquilo”400, não invalidava a capacidade

revitalizadora e criadora da obra e a flexibilidade na sua divulgação a favor da nação,

como já de seguida compreenderemos. Deste modo, poder-se-ia, ao “ajudar o nosso país e

com o nosso incómodo [Companhia] pregar os bons costumes”, atender a cada um dos

alunos/actores e espectadores, para que “a desonestidade seja expulsa, a piedade

394 Respeitando a própria informação que consta neste Prefácio, a vinda de companhias de teatro de Espanha e Itália post cladem Africanam (Cf. ibid., p. 15), trouxe para Portugal, aos olhos dos Jesuítas, actores profissionais sem modéstia que usavam máscaras, participando mulheres nas representações. Apesar dos “maus argumentos”, segundo Crucius, eram pagos pela sua representação. Pelas palavras do dramaturgo jesuíta P. LUIS DA CRUZ - comoedi omnes […] sine pudore personati agunt, quae a bono nemine videri debent (Ibid.,.p. 16) - todos os comediantes representam as cenas mascarados, as quais não devem ser vistas por pessoas decentes.

Vide supra, p. 97, nota 355. 395 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 28.

Ibid., vol. I, p. 15: quoddam prodijt gentis hominum, moribus fane perniciosum: Comoedi ipsi appellatur. MANUEL JOSÉ DE SOUSA BARBOSA fala-nos da “Comedia dell’Arte, severamente criticada por dar entrada à

imoralidade” (“Luís da Cruz e a poética teatral dos Jesuítas: o prefácio que ficou inédito”, Euphrosyne, 28 (2000), 381). 396 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p.37.

Ibid., vol. I, p. 22:Theologos, ingenio et doctrina. 397 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO e AUGUSTA FERNANDA OLIVEIRA, “Cataldo Parísio Sículo, Provérbios…” cit., respectivamente, pp. 178, 179: Iuuenilis aetas iuuenilia exposcit. 398 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit, vol. I, p. 15.

Ibid., vol. II, p.28: do que com probabilidade é inventado. 399 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, respectivamente, pp. 28, 24.

Ibid., vol. I, pp. 15, 10: gratia recreandi spectatoris; […] sed Lusitanis, Academiaeque Conimbricensi, in qua si quid illo vetusto more ederetur, fortasse non placuisset. 400 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 35.

Ibid., vol. I, p. 21: Vide si placet Euripidem, Sophoclem, et Aeschylum.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

111

a tragédia.

aumentada, para que as vocações para a virtude se animem e se obtenha mais prazer com a

honestidade do que com o vício”401.

A obediência “a um argumento composto de factos verdadeiros”402 tinha concretização

adequada na comédia, na tragédia ou na tragicomédia. A diferença entre tragédia e

comédia é-nos apresentada por Horácio como necessária, singula quaeque locum teneant

sortita decentem”403 . O último destes dois géneros, recentemente indicados, representa

acções de simples particulares. Por seu turno, a tragédia, pela “conduta de grandes figuras

míticas ou históricas, capaz de provocar o terror e a piedade e estimular a catarse”404 e

pelas razões que temos vindo a expor como o tom retórico, setencioso e moralizador

associado a Séneca, combinará com traços sagrados e nobres, onde imperam “assuntos

grandiosos, acontecimentos inesperados, mortes de Reis, destruições de cidades e reinos,

numa palavra coisas tristes”405. Este género era o que mais se adequava a dar o exemplo

de virtude heróica que todos deveriam imitar. À comédia, contrapondo a tristeza e

seriedade da tragédia, atribuem-se “assuntos populares, que, se turbulentos ao princípio,

evoluem depois com tranquilidade”406. A linguagem será aqui “semelhante à praça

pública” ao invés do estilo “mais grave e elevado” (grauitas) d

Segundo o critério clássico, in medio stat virtus, o género trágico-cómico associaria a

gravitas (gravidade) e a hilaritas quaedam popularis (certa jovialidade popular),

sintonizando com objectivos intelectuais e edificantes, humanísticos e religiosos,

defendidos no Ratio e que já demonstrámos ser preocupação desta pedagogia humanística,

401P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 37.

Ibid., vol. I, p. 23: modo improbitas expellatur, pietas augeatur, studia virtutum exardescant, et plus voluptatis es honestate, quam vitijs capiatur. 402 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 26.

Ibid., vol. I, p. 12: Ita serviendum fuit rerum verarum argumento. 403 HORÁCIO, Arte Poética … cit., pp. 68, 69, v. 92: “Que cada género, bem distribuído ocupe o lugar que lhe compete.”. Nos vv. 153-155 inicia a exposição sobre os princípios da arte dramática.

No sentido de estabelecermos a ponte com o momento cultural e pedagógico em destaque ao longo deste estudo, julgamos pertinente, neste contexto, a citação de AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES que diz: “Nas justificações dadas pelos jesuítas organizadores das antologias e contidas em prefácios aos autores como Séneca e Plauto e outros, ecoam orientações do ‘Ratione studii ac legendi interpretandique auctores’ de Erasmo, como estas: In tragoedia praecipue spectandos affectus, et quidem fere acriores illos (…). In comoedia cum primis obseruandum esse decorum, et uitae communis imitationem, affectus esse mitiores et jucundos magis quam acres. “Na tragédia há-de atentar-se sobretudo nas paixões, e, entre estas, nas mais veementes (…). Na comédia dar-se-á relevo, antes de tudo, ao que é bem aceite, e à imitação da vida quotidiana, sendo as paixões antes moderadas e agradáveis do que ardentes” (Roterdami, Opera Omnia, I, p. 517), [“O contributo dos Jesuítas para o humanismo português no tempo de Damião de Góis”, in actas do Congresso Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento, Braga, 2003, p. 57]. 404 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Mito, Imagens e Motivos clássicos …” cit., p. 69.

Cf. Idem, “Dramaturgia e actualidade do teatro clássico: Matéria e Forma na tragédia quinhentista…” cit., p. 179. 405 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 26.

Ibid., vol. I, p. 13: Ila res magnas, euentus inopinatos, caedes Regum, urbium euersiones atq; regnorum, tristia denique postulare solet. 406 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 26.

Ibid., vol. I, p. 13: Comoedia contra res populares, factas ex turbulentis tranquiliores.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

112

quando os expusemos na primeira parte deste trabalho. A designação de tragicomoedia e

fundamentação da sua opção é-nos apresentada pelo notável dramaturgo da peça,

recorrendo às palavras proferidas pela personagem Mercúrio da comédia Anfitrião de

Plauto. O cómico e o riso (hilaritudo) são factores que espicaçam e mantêm a atenção dos

espectadores, motivam e estimulam alunos adolescentes com uma psicologia sui

generis407.

“Tive a intenção de combinar os dois [tragédia e comédia] para que se tivesse algo de tragédia e de

comédia. Pensava eu que assim podia prestar serviço à seriedade dos ouvintes e à sua capacidade de

rir”408.

Das cinco rígidas regras propostas por Horácio, a fim de alcançar o deleite face à

representação, começava-se por chamar a atenção para a cautela a ter perante cenas

sangrentas ou demasiado maravilhosas em palco409. A divisão em cinco actos aparecia

como segunda regra410, o recurso ao deus ex machina, caso o desenlace precisasse de tal

intervenção divina, consta da terceira regra411. De seguida, advertia-se para a presença

somente de três personae (actores) em cena412; finalizando, com a quinta regra, atinente ao

papel do coro, considerado personagem colectiva. Aquele, atendendo à sua finalidade

ética, diríamos até pedagógica, deveria ser “propício aos bons e, com palavras amigas, os

aconselhe aos irados insuflando calma e aos que temem pecar, concedendo amor”413.

Luís da Cruz ajustou a quarta regra, justificando este procedimento com base na

adaptabilidade, pois as peças “agradavam mais com abundância de actores do que com a

407 CLAUDE- HENRI FRECHES diz: “Les divertissements comiques viendrant réveiller l’intérêt des spectateurs, les reposant des sermons en action» (Le Théatre Neo-latin … cit., p. 255).

ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO afirma: «A finalidade da tragicomédia é recrear o espectador, sem deixar de respeitar, em grande parte, a sua gravidade. É um género que se aproxima da tragédia com um desenlace feliz. Com uma estrutura formal que se aproxima do teatro antigo, vai privilegiar a história e as aventuras do herói.” (“No IV centenário da morte do P. Luís da Cruz, S.J. (1543?-1604)”, Revista Portuguesa de Humanidades, 8 (2004) 447). 408 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II, …cit., p. 26.

Ibid., vol. I, pp. 13, 14: Vtrumq; copulare fuit in animo, ut tragoedia aliquid, et comoediae haberetur. Sic enim grauitati auditorum, et hilaritudini seruire me posse arbitrabar.[…] malui tragicomoediis dare, quam solas Comoedias aut Tragoedias. 409 Cf. HORÁCIO, Arte Poética … cit., p. 82, vv. 185 e segs.: Ne pueros coram populo Medea trucidet,/ aut humana palam coquat extra nefarius Atreus […]. 410 Cf. Ibid., vv. 189- 190: Neue minor neu sit quinto productior actu/fabula, quae posci uult et spectanda reponi. 411 Cf. Ibid., vv. 191-192: nec deus intersit, nisi dignus uindice nodus/inciderit […]. 412 Cf. Ibid , v. 192: […] nec quarta loqui persona laboret. 413 Ibid., vv.96-97: Ille bonis faueatque et consilietur amice/et regat iratos et amet peccare imentis.

NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES fala-nos de uma “função hedonista e emotiva” (“Mito, Imagens e Motivos clássicos…” cit., p. 89).

LUÍS DE SOUSA REBELO diz-nos que “o coro actua como um trovão ao ímpeto libertário do indivíduo, aconselhando a moderação, o comedimento, a serena contenção, e traduz ideias e sentimentos da média humana” (“Teatro Clássico…” cit., p. 1062.).

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

113

sua falta”414. O grande número e diversidade de personagens, retiradas primordialmente de

textos bíblicos ou resgatadas de textos pagãos com “roupagem” cristã, favoreciam o

diálogo demorado com as suas falas persistentes, podendo atrair, deste modo, por um lado

a atenção dos que assistiam ao espectáculo415 e, por outro, colocar em cena o maior

número de alunos. Estes, “gente escolhidíssima”416 entre a pluralidade discente, dariam

corpo e alma a nomes distintos da cultura cristã e sugestivos pelo verbum latino. Dos

critérios da escolha desses constavam a pronuntiatione e arte de representar, indo, deste

modo, ao encontro do objectivo da integral formação humanística.

Nos desempenhos da sala de aula, os alunos dos colégios jesuítas teriam de dar provas

da sua eruditio417, colocando em evidência a actividade inerente às classes de

Humanidades e Retórica. Daí que, nos textos de arte dramática a usar nos colégios, a

latinitas e a puritas, bem como os exempla, os topoi ou loci communes418, suas sentenças e

regras revelariam a fonte de “mestres de perfeição estilística e intérpretes dos mais altos

414 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II, p. 26.

Ibid., vol. I, p. 12: Cum copia magis actorum, quam inopia delectaret. 415 Vide infra, pp. 147-148. 416 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II., p. 26.

Ibid., vol. I, p. 12: Lectissimi quique ad agendum. 417 PEDRO MAIA, diz “O Ratio chama eruditio (conhecimentos positivos). Sob este nome compreendem-se as noções de história, geografia, mitologia, etnologia, arqueologia e instituições da antiguidade greco-romana que podem elucidar o sentido do trecho analisado [as ideias do autor e a sua expressão]”. Caberia ao professor, muitas vezes dramaturgo, na sua praelectio, a transmissão desses conhecimentos indispensáveis que serviriam para estimular a actividade intelectual e aprendendo códigos estéticos advindos dos autores antigos, desembocando na redacção de uma composição por parte de cada aluno. O objectivo era aprender pela leitura comentada nos textos de autores, como Terêncio por exemplo, isto é pelo uso. Rejeita-se a ideia da apreensão directamente da gramática de preceitos, sistemas de regras gramaticais, típico do método adoptado Modus Parisiensis. (Ratio Studiorum… cit., p. 18).

Segundo afirmação de ERNEST ROBERT CURTIUS, a erudição escolar era comum nos humanistas, “cuja ambição impossível era lançar uma ponte sobre o abismo de séculos que separava Péricles de Luís XIV” (Literatura Europeia… cit., p. 195).

FRANÇOIS DE DAINVILLE refere que na classe de Retórica, quinzenalmente, os alunos declamavam poemas, passagens de oradores gregos e latinos ou uma peça por eles criada ou até à improvisação em latim. “Des ces exercices aux représentations publiques la distance était courte. Les Jésuites la franchirent sans hésiter ; ceux de France, en particulier, en usèrent assez largement.». O mesmo autor interpela o leitor com a pergunta retórica: «En limitant les programmes de l’école ‘des classes moiennes’ à l’étude des langues, les Jésuites songèrent-ils au bénéfice moral d’une culture moins favorable à l’éclosion de la vanité qu’un enseiguement d’érudition?» (La naissance de l´Humanisme moderne…cit., léducacion… cit., respectivamente, pp. 124 e 251,)

NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES indica o objectivo de “falar e compor” dos Estatutos de Universidade de Coimbra, 1559, do qual consistia “não só o entendimento e o comentário dos autores latinos, mas a sua imitação, na pureza e beleza estética do discurso oral e escrito.” (“Humanismo e Pedagogia…” cit., p. 829). 418 Na linha de formação humanista, quanto aos motivos clássicos, salientamos alguns que possam estar relacionados com as peças a estudar neste trabalho. Esta enunciação irá ter o devido tratamento à medida que se desenvolva o trabalho pretendido. Assim, o valor da lealdade e da amizade; a instabilidade e fragilidade da vida humana; o poder cósmico do amor, a transcendência do amor e da morte e o amor em conflito com a razão de estado; o elogio da vida simples e oculta são alguns dos temas elucidativos dessa herança clássica. Na temática do amor, Ovídio medieval no renascimento “servia de modelo à expressão do amor humano e, a par da himnódia de Patrística, à exaltação do amor divino; das novelas e romances de cavalaria; da expressão stilmovista do trecento; dos Rerum vulgarium fragmenta aos tratados em latim de Petrarca; da obra filosófica dos neoplatónicos, aos diálogos de amor cortesanescos.” (NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES “O tema do amor na tragédia humanista: Amor sagrado e Amor profano…” cit., p. 181).

Todavia, o assunto dominante ou “matéria em que se desenrolavam as scenas, constituía por si mesma uma elevada lição de moral, que os autores iam buscar geralmente à Escritura sagrada, à história eclesiástica e hagiografia, e também às condições da vida humana. Cada representação era por esse modo uma exortação à virtude ou a repreensão de um vício ou defeito.” (FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus… cit., vol. II, p. 70).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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valores morais e de uma ética de comportamento humano”419 que, pela auctoritas

conferida ao texto, encaminhariam para o progresso, a excelência, o magis. A competência

de mestres e as competências e capacidades dos discípulos emergiam, num primeiro

momento, na dinâmica das aulas, mas projectar-se-íam no palco, perante um auditório

seleccionado que acabaria por avaliar e, também, por ser arrebatado por condutas a seguir,

as virtuosas, em detrimento das viciosas, denotando-se em todo o processo um certo

empirismo moral. Neste seguimento, a dramaturgia jesuítica não deveria descurar a

projecção das palavras da teorização horaciana, em que as qualidades e atributos de cada

idade420 têm de ser consideradas perante o atendimento “ao que eu, e o público comigo

desejamos”421.

419 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “A literatura de sentenças no humanismo português: res et verba…” cit., p. 382. 420 HORÁCIO, Arte Poética… cit.,, vv. 156 e segs. 421 Ibid., p. 78-79, v. 153: quid ego et populus mecum desiderat audi.

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

115

1.1. AJUDAS PAGÃS: SÉNECA, PLAUTO E TERÊNCIO

A obra de Séneca, pela análise psicológica resultante dos elementos retóricos, como o

eram as sentenças, e pela ética estóica422, convinha a esta pedagogia pessoal e

transmissível dos colégios dos “apóstolos”. Na linha do Concílio de Trento, a sua marca

moralizante, era propícia à Reforma Católica, reagindo a um novo modo de ser cristão e a

um tipo particular de Cristianismo histórico, o Protestantismo423.

De facto, combinava com a moral cristã, católica romana, assente na realização pessoal

a favor do outro, que recorria aos seus próprios esforços, auto-disciplinando-se, sujeitando

o agir a uma entidade superior, Deus, com o qual tinha uma aliança. Nesta educação, ia-se,

assim, ao encontro do espírito do homem, expresso pela ars dicendi - as letras humanas - ,

pelos dons de Deus e pela “santa e perfeita obediência”. Tudo isto possibilitaria alcançar,

no seguimento de uma visão platónica, o belo, o bem e o amor cristãos.

Na comédia Clássica, os modelos imitados no Renascimento eram Plauto e

Terêncio424, destacando-se para os Jesuítas, integrados no seu tempo, mais o interesse

pedagógico na componente linguística, na coloquialidade e vivacidade do discurso destes

autores “lascivos”. Estes comediógrafos eram presenças obrigatórias nos planos de estudos

422 Séneca, como estóico, segue a dicotomia platónica corpo/alma (corpus/animus), encarando a formação do homem em dois princípios indissociáveis: matéria (corpo) e ratio (alma, razão). A razão deverá comandar a vida, este é o projecto, o desejo e o ideal do homem. Mens universi, deus, ratio são designações que cabem à filosofia estóica, indicando a força que rege o universo. O pensar, o saber, o juízo intelectual deveriam condicionar o modo de agir, levando o homem a fazer o bem, a fim de percorrer gradualmente o caminho em direcção à sabedoria. A voluntas (vontade) seria a “força inata”, a “faculdade autónoma da alma” que permitiria ao studiosus sapientiae a aproximação da sabedoria, da tranquillitas animi, superando dificuldades nesta passagem terrena. Desta forma, acção e conhecimento, com o esforço da vontade, irão obedecer a “um processo gradual, contínuo, que requer sempre uma cuidada atenção de modo a evitar um sempre temível retrocesso” (J. A. SEGURADO E CAMPOS, “Ratio e Voluntas no Pensamento de Séneca”, Clássica, 22 (1997) 87).

Sobre o estoicismo, vide infra, pp. 131, 132, nota 491. 423 Diz-nos JOÃO FRANCISCO MARQUES que «para Frèches, movia os Jesuítas o propósito de não deixarem o privilégio da divulgação da Bíblia entregue aos protestantes, pelo que a tragédia neolatina podia tornar-se num meio eficaz para ladear certos interditos do Concílio Tridentino” (“As formas e os sentidos - O teatro religioso e litúrgico”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. II, p. 456).

JONATHAN WRIGTH afirma que “em 1540, Loiola e os seus companheiros não estavam especialmente interessados em liderar a carga da Contra- Reforma. Não viam as convulsões das duas últimas décadas em termos estritamente doutrinais, mas antes como um sintoma de mal-estar espiritual e crise moral generalizados. Almejavam a renovação espiritual, purificar as almas, corrigir a ignorância da doutrina, extirpar o pecado e a superstição. A espiritualidade que tinham desposado não era encarada como uma reacção de artilharia contra a heresia protestante; estava firmemente enraizada na tradição medieval da devotio moderna.” (Os Jesuítas, Missões, Mitos e Histórias, trad. de Manuel Marques, Lisboa, 2005, p. 33).

Sobre o Protestantismo, vide supra, p. 32, nota 45. 424 “Se Plauto, de cepa plebeia, escrevia para a ralé (popellus tunicatus), para a gargalhada. Terêncio pelo contrário, visava, quando muito o sorriso, nunca a casquinada estridente da plebe” (ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Ideias Pedagógicas na Comédia de Terêncio, Braga, 1992, p. 20).

“A prodigiosa riqueza verbal e variedade de ritmos eram, sem dúvida, os grandes atractivos de Plauto; a juntar à sua veia cómica. Todos eles faltam em Terêncio (…), no entanto, era capaz de exprimir num latim elegante as complexas e variadas reacções psicológicas das figuras da comédia de costumes.” (MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, Estudos de História da Cultura Clássica… cit., p. 80)

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

116

literários e humanísticos da época, desde a escola dos Irmãos da Vida Comum ao Ginásio

de Estrasburgo de João Sturm - ambos com grande influência nos colégios da

Companhia.425 Os humanistas davam toda a projecção nas suas escolhas educativas a dois

teorizadores de oratória e pedagogos do mundo romano, Cícero e Quintiliano, que, tendo

bebido nas fontes do conhecimento grego, não ficaram indiferentes à união entre letras e

piedade (pietas litterata) para a formação do aluno/orador,

“la síntesis platónica sirvió de acicate a Cicerón para el ideal de cultura preconizado por él en los

libros de Oratote, y a través de él siguió influyendo en la Institutio Oratoria de Quintiliano”426.

As falas das personagens tipo, como a cortesã finória ou o escravo parasita eram com

certeza um dos motivos por que se fazia a advertência aos textos de Terêncio nas

directivas gerais da Parte IV das Constituições e no Ratio. O mesmo acontecia nos planos

de estudo e prática pedagógica de cada um dos colégios, como o opúsculo de Pedro

Perpinhão - De ratione liberorum instituendorum litteris Graecis et Latinis -, resultando

este do tempo da sua leccionação, desde 1555 a 1560, no Colégio das Artes. À semelhança

do pedagogo latino, Quintiliano, que na obra Institutio Oratoria apelava à atenção a ter

nos assuntos dos textos que formavam intelectual e moralmente os espíritos dos jovens

alunos, o humanista jesuíta no cap. IV diz :

425 MARIO BRANDÃO diz que “até as comédias vazadas nos moldes de Plauto e Terêncio e as graves tragédias, eram não poucas vezes pela licenciosidade dos assuntos bem pouco indicadas para a educação da juventude. E sobretudo avultava o perigo de, em época de paixões religiosas exacerbadas, o teatro académico se transformar em instrumento de propaganda das novas correntes doutrinárias.” (A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes… cit., p. 234).

Imita-se o que se faz nessa época nos Colégios das Universidades. Nestas era o teatro humanístico e académico que vigorava, representando-se autores clássicos como Terêncio e Plauto. Temos a produção dramática de Camões entre 1540 e 1555, da qual salientamos os Anfitriões que “datam, ao que se crê, dos seus anos de estudante da Universidade de Coimbra, cujos estatutos postulavam a representação anual obrigatória de uma comédia de Plauto ou Terêncio” (LUÍS FRANCISCO REBELO, História do Teatro… cit., p. 44). No entanto, cabe a Sá de Miranda a representatividade do teatro clássico quinhentista em Portugal. Com as suas comédias Os Estrangeiros (1528, publicação datada de 1559) e Vilhalpandos (1538, publicação datada de 1560) introduz a estética renascentista, sendo este o humanista que “confessa haver ‘arremedado Plauto e Terêncio’ modelos que também serviram a António Ferreira para as suas comédias Bristo e O Cioso, escritas entre 1554 e 1558 e editadas em 1622)” (JOEL SERRÃO, in Dicionário de História de Portugal, vol. IV, p. 128; Cf. Ibid. pp. 125 a 133).

Na Universidade de Salamanca, os estatutos de 1538 determinavam o dever de anualmente cada colégio representar uma comédia de Plauto ou Terêncio ou uma tragicomédia. Se retrocedermos aos estatutos de 1529 aponta-se para a obrigatoriedade da representação anual de duas comédias, uma de Plauto e outra de Terêncio ou só de Terêncio. Seguindo as palavras de MARGARIDA MIRANDA “ Em 1529, em Salamanca, as representações de Plauto e de Terêncio faziam parte de uma inteira reforma para melhorar o ensino da Gramática naquela universidade. A obrigatoriedade dos autores latinos (Plauto e Terêncio), essa tinha em vista garantir naturalmente a qualidade literária daquele exercício escolar.” (Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., p.148).

Da lista de livros latinos impressos em Portugal, a partir de 1559, que provam o cultivo da língua e teatro do Lácio, salientamos aquelas que CLAUDE HENRI FRÈCHES aponta “Aulularia, Captivi, Stichus et Trinummus Plauti, 1568”, além de “Senecae Hércules furens et Medea, 1660”. Terêncio não consta desta lista, o que se poderá relacionar com as advertências que vão sendo feitas nas versões do Ratio sobre o autor, lembrando-nos a sabedoria popular, “mais vale prevenir, que remediar” (Le Théatre Neo-latin … cit., p.94). 426 Apud SANTIAGO MONTERO HERRERO, “Quintiliano y la enseñanza pública”, Revista Española de Pedagogía, 148 (1980) 94.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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117

“Apresentem-se aos meninos apenas os antigos, mas não todos; simplesmente os melhores. Ainda

que se deva ter gosto por aqueles que sobressaem pela elegância, deve, no entanto, remover-se toda a

obscenidade, quer de palavras quer de situações. E assim, penso que Terêncio não lhes deve ser

proposto, apesar de ser um óptimo mestre de latinidade; o que é menos causa de admiração para aquele

que, alguma vez, tiver lido Fábio Quintiliano, pois é de opinião que deve ser interdita àquela idade toda

a espécie de cómicos em geral”427.

Para se poder falar do modelo de virtudes e, como nos interessará provar, do bom

exemplo no amor humano pactuado com nobres e católicos sentimentos determinados em

legislação eclesiástica, as alterações do texto original pagão serão inevitáveis. Os prefácios

e posfácios das antologias escolares ou sylvae eram da autoria de castos e peritos

antologistas, jesuítas leitores dos autores clássicos a quem caberia pôr em prática o

rigorismo censório da doutrina cristã que vigorava in illo tempore. Ao P. Luís da Cruz o

seu Superior, Miguel Torres, aquando da leccionação no colégio das Artes, pediu o

“desterro” de Terêncio, como houvera acontecido com o antologista jesuíta André Frusius

como relata o P. Ribadeneira:

“El P. Andrés Frusio emendo Terêncio, purgando-le de lo que podia ofender, y mudando en el amor

conyugal lo que del deshonesto se dice, para que así se pudiese leer seguramente en nuestras escuelas;

pero a Nuestro Padre le pareció que en ninguna manera se leyesse, pues la materia es tal, que,

decualquier manera que se trate, no puede dejar de dãnar a los mozos”428.

Esses textos orientadores não correspondiam tanto a códigos estéticos para produção

teatral, mas à divulgação das escolhas adaptadas à realidade interna e escolar dos colégios

que, a longo prazo, pretendiam ter impacto na realidade externa e social, pelo agir dos

alunos aí formados. Desde indicações pedagógicas destinadas à plurifacetada praelectio

dos professores - leitura, síntese explicativa de ideias e termos e a repetição do mais

importante - à selecção, omissão e reestruturação das intrigas das peças originais, ou

427 HELENA COSTA TOIPA cita, falando-nos da presença de Quintiliano no opúsculo de nove capítulos que padre Pedro Perpinhão enviara em 1565 para Roma ao seu amigo e antigo companheiro de Coimbra, Francisco Adorno (elemento da equipa da redacção do Ratio Studiorum). Salienta a interdição no estudo dos meninos da leitura de cómicos e de Terêncio. Quintiliano defendia uma selecção criteriosa das obras dos autores clássicos “pois algumas tinham passagens licenciosas […] a comédia só devia ser utilizada quando já nada houvesse a temer pela moralidade do aluno; ela trazia muitos benefícios à eloquência e tinha grande utilidade para a instrução dos meninos (I, 8, 4-8; 11, 12-14)”. (“A presença de Quintiliano num opúsculo do padre jesuíta Pedro Perpinhão”, in Actas do Colóquio de Literatura Latina: De Augusto a Adriano, Lisboa, 2000, pp. 211, 213). 428 Apud ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, “Terêncio na Pedagogia dos Jesuítas”, comunicação proferida no âmbito do Colóquio Internacional de Homenagem ao Prof. Doutor Amadeu Torres -Gramática e Humanismo, promovido pelo Centro de Estudos Humanísticos da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 20 a 22 de Abril de 2005. A publicação das actas está calendarizada para Dezembro de 2005.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

118

.

melhor, dos argumentos, tudo se subjugava a uma educação intelectual (eruditio)

dominada pela latinitas. Esta poderia justificar certas “desobediências”429, mas o fito

numa educação moral fornecia os ingredientes para uma adequada formação humana cristã

e católica430

No praefatio inédito, que Manuel José de Sousa Barbosa nos revela, existe uma

passagem em que Luís da Cruz se socorre de dois versos da peça Andria “do famoso

Terêncio que foi modelo nesta arte”, para se justificar perante os críticos da época sobre as

necessárias alterações das regras clássicas em prol do deleite do público431.

Desta feita, a ética, a reflexão filosófica, e a estética ou, se quisermos, erudito et

elocutio, res et verba, res theologica, res moralis et res politica, as tendências oratórias e

morais, uniam-se na arte dramática, na imitação, na renovação e na adaptação dos

clássicos e, essencialmente, na produção trágica neolatina renascentista, “para que a

tragédia se realize como experiência emocional e intelectual, a theatrokratia”432.

Os Jesuítas, “peritos de humanidade”, no seu intento pedagógico e cívico, longe da

indiferença cultural e religiosa da sua época, respondiam assim ao apelo da religião

católica dogmática vigente e por eles intelectualmente divulgada433.

429 “As felizes ‘desobediências’ verificadas nas antologias estão em consonância com uma advertência do Geral da Companhia em 1593 (Cf. AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES, “O contributo dos Jesuítas para o humanismo português no tempo de Damião de Góis …” cit., p.65). 430“Estas [antologias do ensino dos Jesuítas no século XVI] são da maior importância, até porque permitem ajuizar da selecção de autores, de textos e de géneros literários, bem como estabelecer um corpus de ideias e valores veiculados pelos textos clássicos antologizados.” (Ibid., p. 58).

“Contrariam a tradição portuguesa anterior e o melhor espírito do Renascimento. Mas - valha-nos isso - foram menos rigorosos do que o impunham as ‘Regras’ do Ratio Studiorum” (Idem, Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas … cit., p. 420). 431 MANUEL JOSÉ DE SOUSA BARBOSA regista deste modo: “o mundo é cristão. Os espectáculos foram interditos por leis. Reteve-se o que foi possível reter. E sem dúvida que, se o famoso Terêncio, que foi bom modelo nesta arte, pensava que a sua única preocupação deveria ser agradar ao público com as peças que compusesse, estas nossas não devem ser negligenciadas tais como são pois que se tivessem sido apresentadas de forma diferente talvez não agradassem”. Christianus orbis est. Spectacula legibus interdicta sunt. Retenta quae retineri potuerunt. Et sane si ille qui arte ualuit Terentius ‘Id sibi negoti credidit solum dari / Populo ut placerent quas fecisset fabulas’ Nostra haec qualia sunt negligi non debent, quandoquidem aliter data si fuissent fortasse non placerent. (“Luís da Cruz e a poética teatral dos Jesuítas: o prefácio que ficou inédito”, Euphrosyne, 28 (2000) 394-395). 432 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Mito, Imagens e Motivos clássicos …” cit., p. 81.

Cf. Ibid. pp. 71- 74. Este conceito platónico da Republica, que Aristóteles retoma para reflexão na Poética, surge explicitado pela autora

citada como sendo a associação das “ virtualidades dramáticas e psicagógicas” ao processo de composição e teatralização dramática (Idem, “Dramaturgia e Actualidade do teatro clássico:matéria e forma na tragédia quinhentista…” cit., p. 182).

EDUARDO SCARLATTI informa, no contexto grego, que “a influência do teatro era tal que Platão chamou ao governo de Atenas uma teatrocracia” (A Religião do teatro, Lisboa, 1945, p. 116). 433 FRANÇOIS DE DAINVILLE diz que “les Jesuítes saisissaient dans ces tragédies bibliques et ces drames chrétiens l’occasion d’imprimer plus fortement la doctrine chrétienne» (La naissance de l´Humanisme moderne… cit., p. 188).

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1.2. AJUDAS MEDIEVAIS E POPULARES Em Portugal, na dramaturgia da primeira metade do século XVI é de destacar o

impacto dos autos/moralidades vicentinas, nos quais ora se vislumbrava o carácter

religioso, num tom solene e de edificação moral, ora imperava o tom burlesco e o carácter

satírico das farsas. Estava presente a interligação entre a inspiração religiosa e bíblica de

orientação medieva e o teatro popular, sendo típico que o teatro de temática religiosa se

representasse em diversos locais e não apenas para um público selecto. Designava-se

teatro sacro itinerante434.

A herança medieval associava o trágico, o cómico, o burlesco e o festivo, tornando,

desta feita, o texto dramático, através de autos, mistérios, milagres e moralidades435, num

acto comunicativo de carácter piedoso e num

“instrumento de vivificação da fé e moralização de costumes ou edificação dos espíritos rudes da

época que, por meio delas, compreendiam e fixariam melhor que por intermédio de simples pinturas ou

prédicas a Paixão de Cristo, os milagres dos santos, os exemplos dos bons”436.

Como refere o estudioso Francisco Rodrigues, os Jesuítas “não combatiam o theatro

nacional e popular, legitimo e moralizador, é o uso que elles metteram no Brasil de

representar dialogos e autos no estilo de Gil Vicente”437.

Associada à temática de inspiração bíblica surgia a estrutura alegórica dos autos como

referências imprescindíveis nas peças teatrais dos Jesuítas. As personagens alegóricas,

eram frequentes devido ao carácter moralizante, pois vícios e virtudes personificados

convinham a um fim apologético tão próprio ao ensino da Igreja, nesta época. Contudo,

havia espaço para outras alegorias didácticas438. Nesta ordem de ideias, será oportuno

434 As igrejas, onde também se comia e bebia, as capelas de conventos e hospitais, interiores de palácios, alcova régia de doente, largos e procissões, e o itinerante nas festas de Santos e da Virgem.

Vide infra, p. 146. 435 JOÃO FRANCISCO MARQUES afirma que “Se da língua latina se passara ao vernáculo, mais tempo prevaleceram mistérios (extraídos do imenso alfobre bíblico canónico e apócrifo), os milagres (episódios da vida de santos) e as moralidades (personificação de virtudes e vícios, no pano de fundo ideológico da luta do bem e do mal, do pecado e da graça, da salvação e condenação eternas)”. (“As formas e os sentidos – O Teatro Religioso e Litúrgico”… cit., p. 451).

LUÍS FRANCISCO REBELO afirma que “esteticamente [as produções dramáticas jesuíticas] nos fazem recuar à tradição medieval dos milagres e moralidades, por um lado, e dos momos áulicos, por outro.” (História do teatro Português, Lisboa, 1967, p. 52). 436 J. LEITE DE VASCONCELOS, Etnografia portuguesa, vol. X, Lisboa, 1933-1988,– “Teatro popular português” (…), p. 23. 437 FRANCISCO RODRIGUES, A Formação Intelectual do Jesuíta…cit., p. 476. 438 MARGARIDA MIRANDA diz-nos que P. Miguel Venegas num Diálogo escrito pelo autor em que as personagens são alegóricas (a Gramática, a Retórica, a Dialéctica, a Filosofia às quais se juntam o Gramático, o Bom Orador, o Dialéctico, o Filósofo e seus depreciativos o Gramatista, o o Mau Orador, o Sofista, o Filosofastro) estas “exprimem de forma bem

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

120

a qual

recordarmos o Auto da Feira vicentino (1526), onde as personagens alegóricas revelavam

que o mundo oferecia, para a salvação humana, aquilo que provavelmente menos interessa

negociar, pondo a descoberto membros da Igreja católica.

A propósito da relação entre o teatro neolatino e a produção do pai do teatro português,

diz-nos Claude Henri Frèches que “dans leurs drames circulaient même des types

populares, issus de l’auto vicentin”439. Nesta linha de pensamento, será adequada a

opinião a respeito da obra a analisar do P.Luis da Cruz, Prodigus, n

“depois das primeiras cenas, montadas de modo a denunciar a falsidade de um mundo hábil, o

simbolismo moral do Acto IV deixa transparecer nítida influência vicentina no diálogo travado entre a

Consciência e Neomachlus, o filho desavindo. A caracterização dos tipos populares nesta tragédia,

assim como na comédia Vita Humana, (…) revela o traço grosso, caricatural de um Gil Vicente”440.

Nas falas das personagens, a sabedoria popular fazia juz ao rifão vox populi, vox Dei,

pela presença dos provérbios.

A partir da segunda metade do séc. XVI até ao final, com a pressão inquisitorial

demonstrada pelo índex expurgatório e com as proibições inscritas na legislação sinodal

portuguesa441,

“à parte as tragédias escritas e representadas (geralmente em latim) pelos Jesuítas nas suas festas

escolares (…) o teatro de inspiração religiosa entra (…) em declínio não só quanto ao pendor crítico, ao

qual se substitui um espírito de ortodoxa catequese, mas até no que respeita à própria quantidade de

obras desse género”442.

patente o carácter académico e escolar da composição, mas nem por isso diminuem o seu interesse para o conhecimento da história do pensamento pedagógico, literário, e filosófico em Portugal, principalmente para um conhecimento mais concreto do ensino jesuítico na Colégios das Artes e dos seus postulados literários e filosóficos” (MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica… cit., p.192). 439 CLAUDE- HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p. 11. 440 LUÍS DE SOUSA REBELO, “Teatro Clássico…” cit., p. 1068. 441 Quando falamos dos Índices expurgatórios a partir da segunda metade do século XVI, deveremos atender a três datas: 1554, 1581 e 1624. No Índex português de 1581, a inquisição condena “em termos gerais as ‘comédias, tragédias, farsas e autos onde entram por figuras pessoas eclesiásticas e se representa algum sacramento ou acto sacramental’ e o mesmo estudioso, LUÍS FRANCISCO REBELO, acrescenta que a “escola vicentina” teve como seguidores Afonso Álvares e Baltasar Dias, tendo os autos destes uma “intenção declaradamente apologética, mas de escassa teatralidade.” (História do teatro Português… cit., p. 40).

Através desses índices, o santo ofício impedia o desenvolvimento de uma dramaturgia popular, autóctone, um teatro de sátira social que não se apoiava no latim, tal como fazia o mais importante dramaturgo português do renascimento, Gil Vicente. A respeito deste, diz JOÃO FRANCISCO MARQUES: “ Católico, culto, músico e poeta, Gil Vicente conhecia bem o latim litúgico que constava dos ofícios e missas das solenidades para as quais, circunstancialmente, compôs os seus actos religiosos, que circularam em folhas impressas antes de serem compilados. (…) De sincero espírito pré-reformista, savonaroliano e próximo da visão erasmiana da Igreja do seu tempo, que do Papa e bispos ao clero regular e secular lhe mereceu cáustica mordacidade, o ‘trovador mestre da balança’ lutou sobretudo contra a hipocrisia e a prática formalista da fé católica” (“As formas e os sentidos - O Teatro Religioso e Litúrgico…” cit., p. 452). 442 LUÍS FRANCISCO REBELO, História do teatro Português… cit., p. 40.

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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No palco escolar, as palavras e atitudes das personagens, que poeticamente

representavam a vivência terrena -“O Grande Teatro do Mundo”443-, abriam as portas à

experiência, à aprendizagem e ao ensino do bem e da virtude - “Nunca a virtude

vacilou”444- em detrimento do mal e do vício. Justificava-se assim a “purificação” dos

trechos textuais das sylvae e a articulação de uma educação cristã, moral e social, bebendo

em várias fontes do passado445, no contexto escolar em estudo. Estava-se ao serviço não só

das normas da oratória/eloquência, da retórica, mas também de mecanismos legais e

disciplinares resultantes do labor tridentino da Igreja Católica446.

443 Este é o título de um dos melhores autos sacramentais do arauto, na Espanha de setecentos, da doutrina advinda do Concílio de Trento, Pedro Calderón de La Barca. Designado como “o dramaturgo da Contra-Reforma”, fora discípulo no Colégio Imperial dos Jesuítas, em Madrid, entre 1608 a 1613. Neste auto, datado com dúvida entre 1633 a 1635, pretende-se em cinco momentos ou planos que constituem o acto único típico dos autos sacramentais, por meio de personagens alegóricas, o ensinamento básico da lei divina, que o rigor da Igreja expressa da seguinte forma: “Ama o outro como a ti e faz bem, que Deus é Deus”. O homem, com liberdade no querer e agir, aparece aqui como companheiro do Deus, autor e distribuidor dos papéis, competindo-lhe viver, i.e., representar bem a comédia da vida no grande teatro que é o mundo. (Cf. DON PEDRO CALDERÓN DE LA BARCA, El Grand Teatro del Mundo, in Obras Completas, t. III- Autos Sacramentales, Madrid, 1952, pp. 200-222).

Já Platão “em Filébos fala […] da ‘tragédia e comédia da vida”, atribuindo-se ao pensamento filosófico da antiguidade a origem da metáfora em questão, “em que os homens, movidos por Deus, desempenham seus papéis”.

Séneca (Ep., 80, 7) fala-nos da “humanae uitae mimus, qui nobis partes, quas male agamus, adsignat” (farsa da vida humana, que nos atribui papéis que desempenhamos mal).

S. Paulo, na primeira epístola aos Coríntios diz “De facto, parece-nos que Deus nos pôs a nós, os Apóstolos, no último lugar, como condenados à morte, porquanto nos tornámos espectáculo para o mundo, para os anjos e para os homens.” (1ª Cor. 4, 9).

No século XII, o filósofo humanista João de Salisbúria, com a publicação, em 1159, de Policraticus, a scena vitae passaria a ser o argumento no palco do mundo. “Conhecemos edições impressas de 1476, 1513 […], 1595, 1622,1639, 1639, 1664 e 1677. Quando, nos séculos XVI e XVII, reapareceu a metáfora do theatrum mundi, para isso deve ter concorrido, principalmente, a popularidade de Policraticus”. Este topos no contexto do humanismo renascentista “liberta o homem do cosmo e das potências religiosas, para encerrá-lo na sublime solidão do espaço moral”. Na obra de Calderón aparece “desgatada pela tradição antiga e medieval, volta ao teatro vivo e torna-se forma de expressão de um conceito teocêntrico da vida humana, desconhecido no teatro inglês e no francês.” (ERNEST ROBERT CURTIUS, Literatura Europeia e Idade Média Latina… cit., pp. 190-194). 444 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO E AUGUSTA FERNANDA OLIVEIRA E SILVA, “Cataldo Parísio Sículo, Provérbios…” cit., pp. 180, 181: Nunquam uirtus contremuit. 445 CLAUDE- HENRI FRECHES refere, a propósito, que “ont mis à profit, dans les scènes comiques, les recettes du vieil auto portugais et la façon de representer des comédiens profissionneles venus d’Espagne ou d’Italie […] les maîtres de Coimbra, de Lisbonne et d’Evora ont aussi voulu créer un genre théatral qui fondît en quelque sorte toutes les variétés des spectacles que de Portugal avait conues» (Le Théatre Neo-latin … cit., p. 96). 446 Falamos da imersão dos decretos tridentinos num programa educacional, que guiasse e ajudasse na apreensão dos preceitos da igreja que direccionavam para uma vivência cristã plena, quando disciplinada. A atenção dada por Inácio de Loiola e seus Companheiros fundadores da Companhia de Jesus vem ao encontro, pelo plano de ensino-aprendizagem prático, eficaz e não discriminatório, das necessidades tridentinas no plano da execução da sua lei.

JONATHAN WRIGTH a propósito refere: “até a educação podia, por vezes, surgir como um campo de batalha Bona fide contra a Reforma. […] Em 1568, no colégio da Companhia em Colónia, a maior comunidade jesuítica a norte dos Alpes, os estudantes representaram uma peça em que era retratado o inferno, não como o lar de jesuítas tiranicidas, mas como o destino inevitável de Martinho Lutero, João Calvino e o seu bando rebelde de seguidores protestantes brigões” (Os Jesuítas- Missões Mitos e Histórica … cit., p. 43).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

122

uagem

1.3. BENÉFICOS ORNAMENTOS AO SERVIÇO DA PALAVRA

A“dignidade majestosa do género, a retórica lírica, a veemência das paixões”

permitiam encarar a arte dramática não só como exercício escolar útil e agradável, como

também “o produto artificioso de uma aristocracia letrada, tornando-se um entretenimento

cortesão (…) menosprezando os temas de interesse colectivo [os mistérios e as

moralidades medievais do teatro popular]” 447.

Na representação da produção neolatina para esse público de elite (intelectuais,

magistrados, nobres e clérigos, populares da cidade) sobressaía, no aspecto formal, o

visual do pulcherrimum espectáculo, encarado por Luís da Cruz como ilusão e designado

fucum theatralem448. Deste modo, como in theatro volant quae dicunt449, “a ornamentação

cénica dá valor, a beleza dos actores dá brilho, e a graça da representação harmoniza de tal

forma o espírito com os ouvidos, que se julga lindíssimo o que não deixa de ter as suas

verrugas”450.

O poder da imagem e do ornamento, na autoridade poética horaciana, sobrepunha-se

ao que se ouvia451 e nos espectáculos festivos e moralizadores do teatro neolatino «elle

[tragicomédie latine] enchantait l’esprit, les yeux et les oreilles des previlégiés»452.

A palavra em acto e com discernimento, além de se enfatizar em versos pulchra, estes

teriam de ser dulcia453, para que o animum auditoris fosse estimulado, resultando um

efeito de catarse aristotélica - o terror e a piedade. O aparato cénico e a música, sem a qual

“theatrum non delectat”, eram contributos inigualáveis para este fim hedonístico e

ético454, cabendo aos coros a sua exequibilidade. Desta maneira, esta forma de ling

447 LUÍS DE SOUSA REBELO, “Teatro Clássico…” cit., p. 1061. 448 P. LUIS DA CRUZ, referindo o artifício de que é composto o teatro, pela ornamentação, a beleza dos actores, a graça da representação a sintonia entre o espírito e os ouvidos (O Pródigo, Tragicomédia Novilatina... cit., vol I, p. 9). 449 Ibid., p. 9. 450 Ibid., vol. II, p. 24.

Ibid., vol I, p. 9: Ornatus scenae commendat, venustas actorum cohonestat, & agendi lepor ita animum auresque conciliat, ut pulcherrimum existimetur, quod suo naeuo non caret. 451 HORÁCIO, nos vv. 180-181, sobrepõe o visual ao auditivo Segnius irritant animos demissa per aurem/quam quae sunt oculis subiecta fidelibus et que/ipse sibi tradit spectator […]; (Arte Poética … cit., p. 82). 452 CLAUDE HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p. 247. Acrescenta, na página 11, : «ont finalement développé un besoin inné d’ assouvir la volupté des yeux e de l’ ouie. Le texte latin devint un merveilleux prétexte pour oblier qu’il y en eût un». 453 Nos v v. 99 e segs.: Non satis est pulchra esse poemata; dulcia sunto et, quocumque uolent, animum auditoris agunto - “Não basta que os poemas sejam belos: força é que sejam emocionantes e que transportem, para onde quiserem, o espírito do ouvinte” (Ibid. pp. 70-71). Também nos vv. 343-344, se realça miscuit utile et dulci que apela à beleza, ao prazer artístico e simultaneamente à utilidade, que os humanistas tanto aproveitaram. 454 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Dramaturgia e Actualidade do teatro clássico…” cit., p.180.

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

123

“ não era orientada apenas pela simples necessidade ornamental, - secundarizando o texto literário,

como deixaria pressupor o gosto contemporâneo pelo aparato cénico - mas antes por uma compreensão

potencializada do texto, acompanhando os próprios movimentos retóricos”455.

Como componente necessária nesta construção artística de espectáculo - dicção,

caracteres e fabula456 -, o canto, nas peças de Luís da Cruz e de Miguel Venegas, ganhava

corpo na personagem importante que era o coro. No encerramento de cada um dos cinco

actos, “um coro composto por oito ou nove músicos cantava um comentário ao texto, em

belíssimo modo trágico”457. Todavia, em Prodigus, no segundo acto, no final do canto

oitavo, o tocador de flauta de sugestivo nome, Melpódio, e o cantor Pírrico têm também

um papel importante no banquete de recepção ao filho pródigo (vv. 1451-1474). O motivo

clássico do poder encantatório situa-se no v. 1417, aquando da advertência que Dulófobo

faz a Neomaclo, enfeitiçado pelo “cantus dulcis”: “Tem cautela! Um canto encanta a tua

mente”458. A segunda canção do banquete (vv. 1688-1703) põe a tónica numa visão

epicurista, ligando-nos às odes horacianas. O canto dos peregrinos (vv. 2710-2721) e os

poemas de Dulófobo (vv. 3226-3259) e Andrófilo (vv. 3746-3745) são provas de outras

presenças musicais para além do coro.

Neste teatro retórico de finalidade educativa, para se poder exaltar sentimentos e

formar pensamentos adversos às paixões baixas que desnorteavam, a tragédia bíblica,

fabula sacra, sofria inovação459 na forma e conteúdo, ainda que não se desprendesse do

modelo clássico. Desta feita, apesar do iniciático aviso horaciano para se evitarem as

tragédias sangrentas, Miguel Venegas usa uma poética do horror em cenas da tragédia

455 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica… cit., p.199. 456 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES indica-nos estas componentes aristotélicas da tragédia (“Dramaturgia e Actualidade do teatro clássico…” cit., p. 179). 457 Apud MARGARIDA MIRANDA que nos apresenta a carta quadrimestral de Pero Dias constante dos MONUMENTA HISTORICA SOCIETAS IESU, Litterae quadrimestres ex universis praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae, 7 vols., Madrid-Roma, 1894-1932 (doravante Litt. Quad.), Vol. 6, p. 362-363, e duas versões latinas da mesma carta castelhana, nas quais segundo a estudiosa “deixou escapar alguns aspectos, interessantíssimos para quem busca as origens da música no teatro jesuítico português”. Aí se regista o novo “mos tragicus, em que as notas deveriam corresponder às palavras, respeitar a acentuação do texto e seu significado, potencializar o seu sentido expressivo e acompanhar as suas emoções”. Nas tragédias de Miguel Venegas, a música realçava a palavra, não sendo encarada como mero interlúdio, constituindo um estilo musical novo, more tragico, que “orientada para a compreensão do texto, ia naturalmente ao encontro dos ideais estéticos de Trento. Mas no caso de Coimbra, Dom Francisco de Santa Maria [músico e compositor que trabalhava para o bispo D. João Soares, um dos maiores benfeitores do colégio de Coimbra] parece ter acrescentado aos ideais de Trento os ideais retóricos do dramaturgo”. (“Música para o teatro humanístico em Portugal: Dom Francisco de Santa Maria, Miguel Venegas S.I. e o Colégio das Artes de Coimbra (1559-1562)”, Humanitas, 55 (2003) 325-327 e “Nas origens do melodrama: a tragédia neolatina em Portugal”, Península-Revista de Estudos Ibéricos, 1 (2004) 259 e 261). 458 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, …cit., p. 108

Ibid., vol I, p. 99: Caueto, mentem cantus incantat tuam. 459 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES fala-nos do “maior teorizador do teatro trágico no século XVI, Giraldi Cinzio” que defendia que “o dramaturgo de todos os tempos tinha necessidade de ‘servire a l’età, / a gli spettatori e la matéria” (“Dramaturgia e Actualidade do teatro clássico…” cit., p. 180).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

124

sacra, Acab, procurando um efeito catártico intenso, mais através do poder de violentas e

eficazes palavras proferidas pelas personagens que por meio de acções espectaculares e

impressionantes. Segundo Margarida Miranda, era inegável o efeito poderoso e dominador

da palavra que era prova “da capacidade de persuasão do poeta-orador, para quem a

retórica é o principal veículo do horror, instrumento para intervir directamente no ânimo e

nos sentidos do espectador e lhe transmitir eficazmente as suas teses morais”. Porém,

ainda que “a estética do horrendo também se prende com a moderna teorização literária

sobre a tragédia [Séneca como principal fonte de inspiração], em que se sobrevalorizava a

sua função educativa”, não devem descurar-se as circunstâncias históricas da altura, quer

em termos de mazelas corporais, quer de fraquezas espirituais460.

A classificação de “horrenda visu et auditu”, de que nos fala Florêncio Segura, era

atribuída à exigente forma de expressão latina e à longa duração das peças escolares

jesuítas. Na altura do espectáculo, os gestos e gritos dos actores, complementados com as

explicações prévias do resumo do argumento expressas em romance, antes de cada acto,

seriam os elementos facilitadores da recepção da mensagem. A música e as canções ou

passos cómicos eruditos, que intercalavam os actos, aliviariam o público461.

Para concluirmos estas notas, apropriamo-nos das palavras de Claude Henri Frèches:

“De même les colléges portugais du XVI siécle croyaient-ils une fois par an ressusciter les

Dionysies. Pour ceux-ci la tragédie grecque était avant a tout un spectacle chanté et dansé ; pour nos

ancêtre, une mise en scène d’héroisme ou de faiblesse”462.

460 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., respectivamente, pp. 340, 339.

Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, Teatro Clássico no século XVI. A Castro de António Ferreira. Fontes-Originalidade, Coimbra, 1996, p. 141. 461 FLORÊNCIO SEGURA, “El teatro en los Colégios de los Jesuítas…” cit., p. 326.

Na opinião de LUIS FRANCISCO REBELO, as produções dramáticas dos colégios jesuíticos eram “pesadas e laboriosas tragicomédias da autoria dos respectivos professores, inspiradas na Bíblia, (…) na história da pátria, cuja intrínseca monotonia se procurava compensar mediante a sumptuosidade decorativa da montagem cénica e a opulência do guarda roupa.” (História do Teatro… cit., p. 52).

JOÃO FRANCISCO MARQUES diz-nos que “para além de, por norma, importar que fossem raros estes espectáculos, estava vedada às mulheres a assistência, sendo os papéis femininos proibidos, com excepção das mártires, e regulamentado o cumprimento dos vestidos. A encenação e ensaios ficavam a cargo do mestre de Retórica” (“As formas e os sentidos – O Teatro Religioso e Litúrgico…” cit., p. 454).

Vide infra, p. 149. LUÍS DE SOUSA REBELO indica que esse aparato intentava “ apurar o gosto do público corrompido pela dissolução dos

costumes” (“Teatro Clássico…” cit., p. 1066). FRANÇOIS DE DAINVILLE refere “la curiosité littéraire et le snobisme s’en mêlant, chaque représentation devenait un

événement vers lequel se hâtait un auditoire de choix.» (La naissance de l´Humanisme moderne…cit., p. 125). FRANCISCO RODRIGUES regista as reacções pouco abonatórias da crítica literária (História da Companhia … cit., vol.II,

tomo II, pp. 88-91). 462 CLAUDE HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p. 3.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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2. CONHECER, DIZER E FAZER (O) BEM “FAZER BEM, QUE DEUS É DEUS”463

Ao cultivo da palavra que, num primeiro momento, era a mensageira da inteligência,

acrescia o seu forte papel de mensageira do agir bem, de uma boa vontade, contribuindo os

gestos e as atitudes de exercícios escolares, em geral, os ensaios teatrais, em particular,

para esses cuidados e objectivos educativos. Só com tal orientação pedagógica seria

possível a desejada operacionalidade/mobilidade das acções quer a nível pessoal, nos

vínculos familiares e na ligação de cada um com Deus, quer a nível social, nos gestos

comunitários de amizade, caridade e cooperação com os outros - prova de uma existência

em comunhão e fraternidade entre semelhantes. Nesta aliança, estava subjacente a

educação do espírito e a disciplina da acção, ou melhor, residia a formação do homem

doctus et pius, tão necessária para o aluno atingir a verdade, para saber amar, colaborando

no bem comum. Desta forma,

“professando uma ética do bem, considero que o fundamental dever de cada um é corresponder ao

apelo do bem, dizer sim ao bem; numa palavra: amar”464.

Na temática da ordem e união sociais, interessa demarcar certas reflexões, seguidas de

prescrições teológicas, que no século XVI, essencialmente na segunda metade com o

Concílio, se impunham firmemente. Os laços afectivos do amor e da amizade, como

motores incontestáveis das relações humanas nas suas várias dimensões, necessitavam de

normalização, apesar de serem dons inerentes ao ser humano, ser errante e fraco465.

A disciplina a que deveriam estar sujeitos os sentimentos desse tipo justificava-se pelo

inegável poder efectivo e afectivo que lhes era reconhecido nas e pelas sociedades

humanas. A educação, no contexto que tem vindo a ser explanado, seria, no sentido geral,

463 A repetição desta lei da graça divina - “a obrar bien, que Dios es Dios”- ao longo do auto de CALDERÓN DE LA BARCA por todas as personagens, insistentemente pela alegórica Ley de Gracia, põe como tónica na vida humana o fim último para que foi criada: a obediência ao projecto criador de Deus, na execução de boas obras. Por esta verdade cristã se compreendem os versos que referem a vida terrena como o “teatro de las ficciones” que dará lugar, após a representação do papel terreno atribuído por Deus a cada ser humano, ao “teatro de las verdades”. No mundo das aparências, em “esta comedia aparente/ que hace el humano sentido”, a palavra de Deus é poder - “tendré desde el pobre rey,/para emmendar al que errare/ y enseñar al que ignore/ com el apunto a mi Ley,” (El Grand Teatro del Mundo… cit., pp. 220, 209, respectivamente).

Sobre este assunto, vide supra, p. 121, nota 443. 464 ROQUE CABRAL S.J., “Liberdade e Ética …” cit., p. 205. 465 Julgamos oportuna a invocação do poeta que glorifica os portugueses e apontando-lhes as virtudes, mas não esquecendo os defeitos. Salientamos a estrofes 28 e 29 do canto IX :“ Vê que aqueles que devem à pobreza/Amor divino, e ao povo caridade, / Amam somente mandos e riqueza/ simulando justiça e integridade”; “Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,/ Senão o que sòmente mal deseja.” (CAMÕES, Lusíadas).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

126

o meio adequado a usar num trabalho de “precisa e rígida arquitectura das virtudes que

remontava à tradição aristotélica-tomista”466. O teatro, no sentido restrito, seria um recurso

educativo precioso, onde tais virtudes não dependiam da sorte, mas da dedicação

laboriosa, cabendo à tragédia a preferência, já que era

“um género privilegiado à expressão do amor, entendido como princípio anímico, essência da

vida humana, móbil último das relações dos homens entre si e com o divino. Nesta duplicidade de

sentidos, horizontal e vertical, o tema do amor impunha-se aos gostos estéticos de uma época,

caracterizada pelo sincretismo filosófico, moral e religioso”467.

A herança ética greco-latina (Platão, Aristóteles, Cícero, Séneca)468 seria aproveitada,

tendo sido retocada e cristianizada pelos Padres da Igreja e teólogos como S. Jerónimo e

466 PEDRO CARDIM, “Amor e Amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII”, Lusitânia Sacra, 11 (1999), 37. 467 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “O tema do amor na tragédia humanista: Amor sagrado e Amor profano”… cit., p. 184. 468 Os autores cristãos rejeitaram “erros pagãos” no campo religioso, abrindo as portas à arte greco-latina, substracto da cultura ocidental.

O humanista italiano Marsílio Ficino deu a conhecer em 1484 a visão platónica à Europa renascentista nos sete discursos, Comento sopra lo amore, apoiados na tradução do Banquete de Platão. Os tratados de Amor do séc. XVI e também XVII tinham-no como referência obrigatória, entre eles os Dialoghi di amore de Judeu Leão Abreu (1502-1506). São 3 diálogos, surgindo, no terceiro, textos bíblicos e o diálogo entre os pares Filos e Sofia (sabedoria helénica e bíblica do Antigo Testamento, situada no plano espiritual). Filos (o humanista Leão Abreu) deseja ardentemente possuir Sofia, cuja beleza é predominantemente espiritual e só no absoluto poderá ser possível tal união. Em 1644, Pierre le Moyne no seu tratado moralizante, Les peintures morales, une a iconografia e a poesia para louvar o amor puro e conjugal, no âmbito do Amor Divino e Natural. Por operação do platónico amor, como que uma só alma habita nos corpos de muitos homens que se amam como amigos (Cf. JOSÉ. V. DE PINA MARTINS, “Livros Quinhentistas sobre o amor”, Paris, 1969, respectivamente, pp. 104, 109, 85, 97, 100, 112).

Aristóteles, que com a sua Poética inspirou na definição da composição do teatro clássico com a lei das três unidades dramatúrgicas: unidade de espaço, acção e tempo, foi traduzido pelo humanista Leonardo Bruni. Na obra, Ética a Nicómano, nos livros VIII e IX, aborda a amizade que como “fama de sociabilidade” a liga “ao bom, ao útil e ao agradável”. (Cf. FRANCISCO DE OLIVEIRA, “O conceito de Philia de Homero a Aristóteles”, Humanista, 25-26 (1974) 217-235).

NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES acerca do tratado de educação, De regis institutione et disciplina, escrito pelo pedagogo e moralista cristão do humanismo português, D. Jerónimo Osório, e dedicado ao Rei D. Sebastião quando tinha dez anos, indica os reflexos das teorias do amor vigentes na época sobre esta obra. Afirma a estudiosa que “o sentido da moral prática aristotélica surge assim no tratado de Osório doseado de idealismo platónico. A teoria do sumo bem, da virtude, fruto do amor atraído pela verdadeira beleza, dá a justificação perfeita à felicidade humana e ao prazer que a acompanha, fim último da conduta terrena e antevisão da glória eterna.” A esta filosofia do amor associam-se princípios/conceitos clássicos e humanistas como utile e honestum de Cícero e honestum e iucundum do autor do tratado De Voluptate, Lorenzo Valla. (O Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório. Instituto Nacional de Investigação Científica, Coimbra, 1994, p. 425).

No contexto das épocas arcaica, clássica e helénica, a reflexão filosófica incidia numa ética onde os laços afectivos estavam no centro das preocupações da existência humana. Pela antropologia platónica, a dicotomia corpus/animus está na base da tentativa de compreensão de conceitos como philia e eros, integrados na busca do caminho direccionado para o belo absoluto, o bem: fim da carência humana. A amizade e o amor são conceitos que existem em relação ao homem, sobressaindo na maior parte dos textos da época clássica com o sentido do amor homossexual conferido a eros. FRANCISCO OLIVEIRA refere “eros pedagógico” no âmbito da relação pedagógica grega, denunciando uma base erótica “uma ligação afectiva traduzida em sentimentos que vão das manifestações paternais à formas de erotismo mais acentuado”. A visão de Homero que se baseava apenas “na amizade perene e duradoira” é superada. (“O conceito de Philia de Homero a Aristóteles”, Humanitas, 25-26 (1974) 231).

Dos três diálogos de Platão que focam a temática de eros, Lisis, Banquete e Fedro, salientamos sob a orientação de FREDERICO LOURENÇO, o último, versando “dois temas principais: o amor e a retórica”. A alma imortal que aspira à ascese, ao conhecimento do Bem tem responsabilidades para chegar “à contemplação das Formas, pelo que se alimenta da verdade”. O corpo, no discurso de Fedro, já não é o único entrave, pelas suas paixões, desejos, temores, à alma -

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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Santo Agostinho para estruturar uma doutrina cristã apologista da alma e, por isso, de um

estado de alma fundamental: o amor. O amor ao próximo469 - imbuído de valores como a

fé, a harmonia, a obediência, a protecção, a confiança, a reciprocidade, o respeito e a

concórdia - era “um sentimento fundador da vida comunitária e gerador de laços

espirituais entre as pessoas, impelindo os homens para a colaboração e para a entreajuda

que se materializava na troca de bens e serviços”470.

Se, numa educação aliada à moral doutrinadora, à intelectualidade e também à política,

fosse fomentado um habitus na vida afectiva - sendo este pré-definido e comandado pela

ordem e disciplina - obter-se-ia uma praxis testemunha da urgência em “ensinar a virtude

para que fossem realizados comportamentos adequados”471. Uma prática marcada pelos

deveres inerentes ao amor, amizade e honra, deveres esses instituídos e instruídos sub

signo doutrinal do universo teológico-jurídico472, a que a formação dos colégios jesuítas

deu corpo, reforçando a ortodoxia da Igreja Católica de Roma.

No trilho escolar, parte-se da expressão oral e escrita473 da língua latina correcta,

elegante e cuidada para a eloquência capaz de mover e convencer, sendo a meta almejada

desencadear atitudes pessoais, relegando para segundo plano o fazer (o) bem apenas para

si próprio. Os valores são meio e fim direccionados para o bem comum. Deste modo,

poder-se-á falar de regras e modelos de conduta, filiados na alteridade, sustentáculos de

uma aprendizagem de virtudes cristãs, sendo o amor a sua fonte e dom de Deus474.

Através do poder da palavra, representativo e cénico, aliar saber e amor no

aluno/actor475 e no espectador possibilitava o ensinamento na forma de amar, segundo e

seguindo a verdade e o conhecimento identificados com Deus, Rei de um reino de amor,

“cocheiro que tem de conduzir um carro alado puxado por dois cavalos [um belo e bom, o outro de instintos negativos]” – está ela também ligada ao mau. Eros é “ponte empírica”, “tapete mágico”, “impulso racional” acepções que “pelos nomes ‘amor’, ‘paixão’, ‘desejo’ ou ‘atracção sexual’ convergem todas na concepção platónica de eros”. Na verdade, na obra em destaque, “eros surge, juntamente com a profecia, a mística e a inspiração poética, como uma das quatro loucuras cuja concessão pelos deuses nos traz maior felicidade.” (…) “No Fedro, justamente a retórica é vista por Sócrates como uma ‘psicagogia’, ou seja, uma forma de influenciar e conduzir a alma […]”. (“Philia na Alceste de Eurípides”, Clássica, 21 (1996), respectivamente pp. 21, 23, 18 e 31). 469 “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt. 22, 39). 470 PEDRO CARDIM, “Amor e Amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII”, Lusitânia Sacra, 11 (1999) 35. 471 Apud. Ibid., p. 37. 472 “O mundo católico dava muito valor ao bem-estar afectivo de toda a comunidade, pelo que a entreajuda e a posse colectiva do património foram fenómenos muito generalizados” (Ibid. p. 43). 473 MARGARIDA MIRANDA diz que “o aparelho pedagógico centrar-se-ia na palavra, a qual sofreria um processo cada vez maior de teatralização.” (Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica… cit., p. 255). 474 Tendo como referência os Exercícios Espirituais, JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES afirma que “ o amor procura e defende o bem; evita a crítica destrutiva e o escândalo; dissimula, no possível, a parte débil ou errónea; colabora e tenta remediar, pela raiz, o que está mal. Joga-se aqui a união a Cristo e a comunhão eclesial.” (O Projecto Educativo … cit., p. 30). 475 ETIM lat. Actor, oris ‘o que faz mover, o que representa, o orador, o que executa, dirige’ (ANTÓNIO HOUAISS, MAURO SALLES VILLAR E FRANCISCO MANOEL DE MELLO FRANCO, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 2001, p. 337).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

128

benevolência e fidelidade. Seu Filho, Jesus de Nazaré, surgia, por um lado, num seio

familiar padrão, a sagrada família -, e, por outro, na sua relação amistosa e fraterna com os

discípulos, no Novo Testamento476.

Ao pretender catequizar/moralizar, formando intelectual e emocionalmente, a arte

dramática dos colégios, apoiada na delectatio da representação, vinha ao encontro do fim

de formação religiosa católica: incitar a vontade à decisão e acção, norteadas pelo amor ao

próximo. A tarefa era árdua, precisava-se do esforço, da tecné ou ars de cada um, para que

o bom conhecimento e a boa expressão tivessem reflexos e impacto no fazer bem o Bem -

a Sabedoria477.

Nesta aprendizagem, em que savoir par coeur n’est pas savoir478, esforço e obediência

eram inevitáveis, num ambiente de exercitação variada e contínua, de harmonia, de

auxílios mútuos, de tranquilidade e de silêncio para alcançar sapiência, virtude479.

Desta feita, a inventio e a elocutio480 renascentistas, a tratar nas aulas de Retórica, hão-

de emergir na produção dramática académica, entendida quer como exercício lectivo de

perfeição linguística e literária (mitos e motivos clássicos), quer como “máquina de

espectáculo”481. No palco escolar, pretendia-se formar, impressionando, comovendo e

476 Na Epístola aos Efésios (5, 21-23), o ensaio teológico sobre o casamento, faz-se “da relação Cristo-Igreja a referência com a qual comparar a relação conjugal”. ERICH FUCHS afirma que “o amor humano liberto pelo Evangelho dos conformismos de toda a espécie, bem como do legalismo, pode significar o amor de Cristo à Sua Igreja.” (O desejo e a ternura … cit., respectivamente, pp. 120 e 122).

Vide supra pp. 50 e 51. 477 Já o poeta latino Énio, nos Anais, numa visão pagã dizia que “A sophia, a que chamam sabedoria, ninguém a viu em sonhos, antes de começar a aprendê-la”. Os homens associados à origem da Companhia de Jesus foram todos intelectuais, sendo exemplar o seu mentor que, movido de fervor apostólico, discerniu a importância da formação intelectual, tendo ido já em adulto para as Universidades de Alcalá, Barcelona, Salamanca, Paris.

Atendendo às influências de São Tomás de Aquino em Inácio de Loiola, devemos encarar o conhecimento do homem gradual e interiorizado, cabendo à experiência o seu suporte, daí as implicações dos sentidos, da necessidade de tempo e paciência e perseverança, da fadiga.

Segundo JOSÉ MANUEL MARTINS LOPES, “[…] o saber humano é um processo de crescimento imanente, de integração orgânica entre a mente e a vontade, entre o coração e o afecto, entre o corpo e a alma. Tal tipo de conhecimento não se deve impor de fora, mas deve desenvolver-se a partir do interior do próprio homem.” (O Projecto Educativo… cit., p. 60). 478 Apud FRANÇOIS DAINVILLE, com esta expressão o autor faz o contraponto com a aprendizagem “pelo coração” e a memorização até ao excesso protagonizado pela pedagogia medieval. (La naissance de l´Humanisme moderne… cit., pp. 117 e 141). 479 I«Par le renouveau mystique de la Contre-Réforme, la ‘vertu’ devient ‘une force et une vigueur appartenant à l’âme en propiété’. Par son effort pour l’acquérir, l´homme devient un homme.» (Ibid., p. 272). 480 A Retórica, a segunda das sete artes liberais, “Como arte (ars), compreende a retórica cinco partes: inventio (…), dispositio (…), elocutio (…), memoria (…), actio (…)” (ERNEST ROBERT CURTIUS – Literatura Europeia … cit., pp.106-107). Os temas ideológicos, ou loci communes ou topoi estão na base da elaboração dos discursos, os preceitos estilísticos encontramo-los na elocutio, quer dizer na forma de expor a escrita, ornamento.

Sobre o assunto Cf. MANUEL ALEXANDRE JR., “Retórica, hermenêutica e crítica literária: da retórica antiga à nova hermenêutica retórica”, Euphrosyne, 30 (2002) 21-24. 481 Se recorrermos à etimologia do vocábulo teatro, théa é espectáculo, vista, visão e o sufixo grego –tron indica ‘instrumento’, dá que literalmente seja “máquina de espectáculo” (ANTÓNIO HOUAISS et alii … cit., p. 2682).

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

129

convencendo, em termos morais e religiosos, actores (alunos), espectadores (público

seleccionado) e os próprios encenadores (professores)482.

A ciência permitirá o acesso à virtude e, em termos cristãos, a doutrina será o alimento

da fé e da piedade483. O homem perfeito, pela intelectualidade e pela moral, podia rumar

Ad Maiorem Dei Gloriam, esforçando-se, por livre iniciativa e numa atitude de emulatio,

no cumprimento de um programa educativo ajustado e articulador do pensar e do sentir, do

interior/espiritual e do exterior/religioso, em prol do dever social e moral.

2.1. BOAS MANEIRAS DE SER, ESTAR E PROCEDER O AMOR HUMANO NO ESTUDO É CAMINHO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DA VIRTUDE

Interessa, para melhor compreendermos a análise proposta para o ponto três,

atendermos, numa afirmação cristã, às múltiplas manifestações de um amor humano -

indispensável na componente formativa do perfil humano de cada aluno - o qual se

pretendia equilibrado entre o coração emotivo/vontade do prazer e a razão prudente.

Na acepção humanista, o homem estava predisposto naturalmente para o bem,

constituindo as paixões obstáculos e impedimentos que a razão poderia dominar para

reprimir o império do vício, da perdição, o que era contra naturam.

Tenhamos em mente a formação de carácter dos alunos externos dos colégios da

Companhia. A estes, no futuro, aguardavam-nos decisões perante uma “grande família”,

nos possíveis papéis a desempenhar nos grupos sociais - futuros juristas, médicos,

escritores …-, e perante uma “pequena família”, a doméstica, onde os papéis a cumprir se

relacionavam com os de filhos, irmãos, esposos e pais - gentis homens. Os internos/

escolásticos demonstrariam a vontade eclesiástica e missionária e, comprometidos numa

482 Cf. MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica… cit., p. 258.

Afirma NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES: “A par deste adestramento das competências e capacidades dos alunos, a technê retórica permitia aos dramaturgos, que exerciam o magistério docente, um contacto diuturno com as letras clássicas e uma actualização da sua cultura literária, reflectida nas suas obras teatrais, numa assimilação perfeita de reminiscências e alusões dos autores da Antiguidade.” (“Mito, Imagens e Motivos clássicos…” cit., p. 77). 483 Cf. FRANÇOIS DE DAINVILE: «En veillant avec soin à l’étude des lettres, il promeut la piété, l’une et l’autre étant intimement liées. Ceux qui progressent en science, à l’ordinaire n’avancent pas moins en vertu. Pour se garder de luxure (notamment), l’antidote sera qu’à travailler on veille ». (La naissance de l´Humanisme moderne… cit., pp. 260, 261).

O esforço pelo saber é um tema clássico, que o nosso poeta épico realçou no canto IX, através de uma alegoria cheia e simbolismo: a ilha dos amores. Na estrofe 76, Vasco da Gama segue a ninfa Tétis que “o guia por um mato/Árduo, difícil, duro a humano trato”, dizendo-nos a este propósito HERNÂNI CIDADE ser este “monte espesso, difícil […] a representação poética do esforço pelo saber que do seu cume vai ser descerrado.[…] mostra-lhes a ninfa a máquina do Universo, para que se abarcasse pela inteligência o que se não pudesse submeter pela vontade.” (Luís de Camões, Lisboa, 1985, p.114).

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

130

caminhada ascética, por isso de abnegação interior, estariam ao serviço do Outro,

demonstrando serem virtuosos, desejando a perfeição, sendo obedientes e castos.

No âmbito da crítica da estética literária (Praefatio ad lectorem), o P. Luís da Cruz -

arauto da honestidade, seriedade e decência nas representações teatrais - evidenciava a

virtude cristã da castidade e denunciava a antipatia por “esses tais [comediantes] que se

revelam com bom gosto e talento de temas alheios à castidade”484.

Quer o casamento, quer o celibato eram dons particulares, na linha do Novo

Testamento, ou uma “vocação que significava o dom de Deus”485. Na peça, Pródigo, a

personagem alegórica da Consciência, no acto IV, cena VIII, vv. 3151-3155, ao dirigir-se

a Neomaclo - filho pródigo -, confronta-o com “o bom nome da castidade que devias

desejar podias ter-lhe cerrado os ouvidos mas ensopaste-te em luxúria até à medula dos

ossos, donde a pestilencial peçonha se te insinuou”486.

Focaremos o local por excelência da eclosão dessas manifestações e do modus vivendi

dos laços afectivos e de consanguinidade: a família. Esta “comunidade natural”, com a

finalidade reprodutiva e regida pelo pai, muitas vezes ausente neste tempo de descobertas

e aventuras em prol da pátria, demonstrava as suas fraquezas, as quais já Gil Vicente

denunciara com afinco, na primeira metade do séc. XVI487.

484 “esses tais”, os que estavam ligados às representações teatrais, como iremos ver P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 19.

Serão aqui oportunas as palavras do apóstolo Paulo a quem se atribui a sobrevalorização da castidade, como via espiritual superior. Na sua primeira epístola dirigida aos Coríntios, cap. VII - documento de referência obrigatória quando se fala de uma ética conjugal cristã - diz: “Penso que este estado (de celibato) é bom, por causa das angústias presentes; sim, penso ser bom para o homem conservar-se assim. Tens uma esposa? Procura então não te separares dela. Não és casado? Então, não procures melhor. […] (26-28)”.

Ainda a propósito da castidade indicamos as palavras de ERICH FUCHS, “A vida sobrenatural [fim último querido por Deus, daí o privilégio da alma, do espiritual] exprime-se melhor no celibato do que no casamento, porque o celibato permite libertar-se, melhor que o casamento, do ‘obstáculo da matéria, do peso da carne e de um corpo imperfeitamente submetido ao espírito”. (O Desejo e a Ternura … cit., p.230). 485 Ibid., p. 111.

INÁCIO DE LOIOLA aconselha: “Comporta-se também como um chefe militar para vencer e roubar o que deseja.[…] o inimigo da natureza humana, fazendo a sua ronda, examina todas as nossas virtudes teologais, cardiais e morais, e por onde nos acha mais fracos e mais necessitados para a nossa salvação eterna, por aí nos ataca e procura tomar-nos” (Exercícios Espirituais, nº 327). 486 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II, … cit., p. 150.

Ibid., vol I, p. 193, nos vv. 3151-3155: […] illi occludere / Potuisset aures fama castimoniae / Tibi expetendae, sed tuis lasciuiam / Penitus medullis ebibisti, pestilens / Irrepsit unde uirus in praecordia. 487 A família portuguesa do séc. XVI ressentia-se das consequências das viagens ultramarinas que estavam subjugadas a interesses políticos, económicos apesar de invocados, em primeira ordem, os religiosos para fundamentar a expansão da fé católica. A ausência do marido, do pai, enfim do chefe de família era comum nas famílias e numa sociedade em que o homem assumia todo o protagonismo social, sobressaindo muitas vezes como o herói de acontecimentos histórico-marítimos. Gil Vicente, no Auto da Índia, “dramatiza a picaresca anti-herocidade de uma família num espaço doméstico”, pondo a descoberto as condições sócio-económicas e a degradação de costumes que conduziam as mulheres, perante a solidão e a incerteza, à prática do vício ou pecado do adultério. Assim, elas violavam a lei conjugal e não obedeciam a valores a ela inerentes, a fidelidade. Na verdade, a Igreja recriminava-as e não lhes reconhecia a luta diária pela sobrevivência e subsistência. O pai do teatro português, pelo contrário, colocou em evidência, nesta farsa, a manha e a dissimulação femininas, na personagem da criada de Constança, não para pôr a nu a sua ardileza, mas para as encarar como as armas dessa luta. Desta maneira, relata “a parte mais humana e realista desta aventura de conquista, adoptando o ponto de vista, os desejos, as necessidades sentimentais, fisiológicas e de subsistência material de uma mulher no

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

131

er ser.

Nesta época, os colégios dos Jesuítas, servidores do ensinamento da Igreja, apareciam

com um ensino caritativo e com a responsabilidade de fomentar a aprendizagem de boas

formas de proceder, puras e nobres formas de sentir488. Assim, se justifica o predomínio

do entendimento da educação como arte, porque pessoal e, por isso, insistente na

qualidade de educadores, educandos e métodos, e não mera ciência, onde os ditos “saberes

sábios” são dominantes, ofuscando-se um saber fazer e um sab

Tudo o que desviasse a pessoa, pela sua própria escolha ou conduta, da virtus e do

Ratio, do respeito à sua natureza e do valor sagrado da vida levá-la-ia ao pecado489. O

vitium era o inimigo neste percurso de liberdade e nunca de libertinagem. O filho pródigo

entende esta última como liberalidade490, incluindo esta orgulho, sensualidade, ira, inveja,

paixões e excessos que deviam ser rejeitados, no seguimento de uma cristianização dos

esplendor de suas capacidades físicas, sexuais, e até ‘imaginativas’”. RENÉ P. GARAY considera, deste modo, esta obra como “um documento proto-feminista [um dos primeiros documentos literários que informará a área que conhecemos como Estudos sobre mulheres]. Quer dizer que, na sua defesa dos direitos da mulher na vida social e política quinhentista, Gil Vicente não se afastava, inteiramente, dos cânones que normalizavam as construções simbólicas do mundo masculino. Porém, é de notar que Mestre Gil desconstrói, através duma óptica feminina, e com bastante subtileza, o discurso patriarcal da época. A sua tentativa de desmistificar e de utilizar politicamente, as des-representações do discurso patriarcal tradicional, provocará um questionamento destes cânones de supremacia masculina.” (“Proto-feminismo no Auto da Índia de Gil Vicente”, Brotéria, 158 (2004), respectivamente, pp. 485, 482 e 480).

No que concerne a estudos sobre a educação das mulheres, destacamos duas obras das quais Gil Vicente possivelmente teria tido conhecimento: O espelho de Cristina, tradução portuguesa de 1518 do livro de Cristine de Pizan, Le Livre des trois Vertus, escrito cerca de 1405. Fazia parte da biblioteca da Rainha D. Leonor, irmã do rei D. Manuel. Segundo RENÉ P.GARAY, este manual de educação feminina já teria sido traduzido em meados do séc. XV, entre 1447 e 1455, tratando-se do único tratado medieval sobre o tema, escrito por uma mulher e sobre mulheres. Salienta-se ainda “a primeira peça dramática abertamente ‘feminina’ do teatro peninsular - O Auto de la Sebila Casandra, 1513 - em que se regista não só uma definição tradicional da mulher, mas também a revolta contra esta condição opressora da mulher portuguesa no séc. XVI”. A protagonista, Cassandra, manifesta a sua revolta perante a obrigação do casamento, não tendo as mulheres na altura poder de decisão “Madre, no seré casada, /por no ver vida cansada, /o quiçá mal empleada/la gracia que Dios me dió. / Dizen que me casa yo: /no quiero marido no. (vv. 206-211). (Ibid., pp. 481, 485,486).

A propósito da participação e temática femininas na literatura da época em estudo, vide infra, p. 136, nota 504 e p. 139, nota 514. 488 O teatro escolar assume um papel de destaque na pedagogia do renascimento, já que, segundo escreve MÁRIO BRANDÃO, é um “meio de adestrar os estudantes no latim, na eloquência e nas boas maneiras” (A Inquisição e os professores do Colégio das Artes… cit., p. 232).

Erasmo, no contexto renascentista da cultura da palavra dita e do gesto, demonstrou na sua obra Civilidade Pueril (1530) a preocupação em codificar valores corporais, regulamentando comportamentos sociáveis. A disciplina de gestos e a aquisição de pudor estabeleciam um modelo de relações sociais controladas devido às exigências sociais, comerciais do momento. A urbanidade e a civilidade constavam do plano de valores humanistas. 489 Etimologicamente peccatum, i indica falta, culpa, delito e crime; situando-se vitium, ii na mesma linha de falta, defeito, mancha e imperfeição. Em termos de religião católica existem o pecado capital (sete vícios relacionados pela Igreja católica - avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça) associado ao pecado mortal que faz perder a graça divina, o que mata o espírito; o pecado original que é aquele cometido por Adão e Eva no paraíso e pelo qual todo o ser humano é culpado desde o nascimento e o pecado venal que reduz a graça (“bênção”) divina, sem eliminá-la. (ANTÓNIO HOUAISS et alii, …cit, p.2160)

GIANNINO PIANA entende pecado como a “ruptura da relação do homem com Deus, que se concretiza na recusa de fazer a vontade divina, já manifestada através da Lei/Tora e em Cristo Jesus” (“Pecado”, in Christos- enciclopédia do Cristianismo…cit., p. 701). 490No acto I, cena VI, Sofrónio, irmão de Neomaclo, o filho pródigo, diz ao irmão que o dinheiro que lhe foi entregue pelo pai será para a “libidini” (libertinagem, v. 627), ao que returque o seu irmão, nos a vv. 629-630: “[…] ut uiuas liberaliter, / Non est libido semper, o Sophronie” (P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina... cit., vol I, p. 9). Ibid., vol. II, p. 66: “ […] para viver com liberalidade nem sempre é libertinagem”.

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valores estóicos491. A acção pastoral, mediante as decisões disciplinadoras do Concílio de

Trento, situava-se no reforço da competência da Igreja Católica Romana, sendo a norma

rígida a melhor maneira de controlar as consciências, garantindo, deste modo, a autoridade

- ou autoritarismo - marital e paternal e consequente ordem social. Nesta sequência,

compreendemos que

“As Reformas protestante e católica, tal como as correntes humanistas, impondo uma devoção

interiorizada, teriam convertido as elites cultas aos valores individualistas e lançado as bases de um

novo modelo de gestão dos afectos e das relações conjugais”492.

Inácio de Loiola com a sua Ordem devota ao papa vem ajudar a Igreja. Numa missão

apostólica e com a pedagogia personalista ao sabor do humanismo cristão inaciano, este

ministério da educação da juventude tinha uma base de sustentação legalista fidedigna à

491 O Estoicismo é uma escola filosófica grega ou doutrina do Pórtico fundada por Zenão de Chipre e teorizada, na fase inicial, por Crisipo. A aplicação da sua doutrina ética em sintonia com o pragmatismo que caracterizava o povo romano, apoiados em valores como a justiça, honestidade, contenção pro patria, teria impacto em Roma com o estóico Panécio de Rodes, que “é o grande nome do que é tradicional chamar o Estoicismo Médio”. Na sua estadia na cidade eterna, “talvez chamado por Políbio”, foi membro do Círculo dos Cipiões e “não terá sido indiferente à formação intelectual de Cipião Emiliano”. Entendia este estóico que “o lado irracional da natureza humana (…) é a causa das nossas paixões, e deve ser subserviente à razão, se o homem quiser atingir os seus fins. Para curar as perturbações emocionais, propunha processos ‘irracionais’ com efeito catártico, entre os quais se contavam a poesia e a música.” (Cf. MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, Estudos de História da Cultura Clássica… cit., pp. 95, 96, 98).

Séneca e Musínio Rufo, e, consequentemente os Padres da Igreja seriam os principais transmissores desta filosofia. Pela defesa da humanização das relações humanas, dando atenção à pessoa que deve, como ser individual e pela sua liberdade interior, procurar a sapiência, tendo por base as quatro virtudes cardeais - prudência, justiça, fortaleza e temperança – enquadra-se nos objectivos cristãos. A igualdade entre os homens (no caso romano diluir as diferenças entre escravos e homens livres) que devem aspirar à pureza espiritual (sapiens ou vir bonus), manifestando o domínio de si mesmo e contenção (ataraxia) e indiferença pelas coisas mundanas, corrobora a sintonia ideológica com a fraternidade, solidariedade e ascese cristãs. Estabelece-se a ligação de Séneca a uma concepção de um Deus único, um Deus cristão, atendendo à defesa da igualdade entre os homens, fundamentada na ideia de que cada ser humano é uma parte de Deus, por isso à luz de Deus somos iguais no nascimento e na morte.

Na Roma imperial, Séneca como filósofo e escritor indica esta doutrina, ligada ao mos maiorum pela defesa de valores como a modéstia, a abnegação, a contenção, a serenidade, a coragem, como caminho da virtude, afastando a imoralidade dos vícios visíveis nas paixões: medo, desgosto ou dor, prazer e desejo. Destes interessam-nos, neste trabalho, os dois últimos pela ligação que têm ao amor humano. No desejo, deve evitar-se o excesso e o erro advindos de um amor paixão que é irracional (amor morbus aut furor). Só assim, nos aproximamos da ratio, da sabedoria. Na perspectiva estóica, o casamento, no qual a mulher - “mãe e esposa fiel e recatada”- se liga ao homem mais pelo afecto, pela amicitia, do que pelo amor nefasto, impetus voluptatis, aparece, tal como a educação dos filhos, como dever moral e religioso pró patria. Séneca, na sua obra De Matrimónio, quando rejeita a beleza, a riqueza e o desejo sexual como a base do casamento, “espaço possível para a caminhada conjunta para a virtus”, apresenta a pureza e castidade femininas, para uma propagação genuína da espécie, como recomendáveis na escolha da esposa. O amor conjugal é admitido, se comandado pela ratio, estando conforme à lei da natureza, à lei universal, à qual o homem se deve subordinar por oposição aos seus caprichos ou leis particulares. (Cf. MARIA CRISTINA PIMENTEL, “Figuras Femininas em Séneca”, Brotéria 158 (2004) 251-268).

A ratio, na perspectiva ciceroniana e também estóica, apresenta-se como natura non vitiosa, por isso, com o papel principal no homo que deve ser e agir diferente da bestia.

MARCIANO VIDAL diz-nos que “la justificación del acto conyugal por la sola procreación no es una doctrina fundada en la Bíblia; en realidad, el origen de esta exclusividad de finalidad proviene de tendencias paganas […] los moralistas greco-romanos trataron de elevar a este fin el espíritu de los esposos; los escritores cristianos creyeron ver ahí la traducción pagana de un valor cristiano y ‘cristianizaron’ esa tendência. Un ejemplo de cristianización de valores estoicos lo tenemos en la influencia que tuvo en los escritos cristianos Musonius Rufus.” (Moral del Amor y de la Sexualidad… cit., p.92). 492 ANDRÉ BURGUIÈRE, “A Formação do Casal”, in História da Família, trad. Ana Santos Silva e João Silva Saraiva, vol III, Lisboa, 1998, p. 98.

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ortodoxia da Roma papal que utilizava “como recurso o temor do pecado, [com] a

preocupação de não violar a lei”493.

Como iremos confirmar nas peças a analisar no capítulo posterior, relativo a esta

segunda parte, a conjugalidade só será aceite como resultado do matrimónio legalizado

pela Igreja Católica. A vida sexual no seio do casal, as condutas dos chefes de família

perante as esposas e vice-versa, bem como perante os filhos e destes em relação aos pais

tinham como denominador comum o binómio autoridade/obediência.

Assim, as dimensões sociais e ético-religiosas seriam asseguradas não só pela Igreja

que via “no material o obstáculo ao espiritual e no sexual o obstáculo ao amor”494, como

também pelos Estados que, num intento teórico do catolicismo, deveriam tratar dos bens

materiais. Às próprias famílias, no âmbito das uniões matrimoniais, interessaria mais a

proficuidade material dessas alianças que propriamente a espiritualidade, daí que estivesse

nas mãos da Igreja a regulamentação moral e seu didactismo.

2.1.1. O CASAL - AUTORIDADE DO MARIDO/OBEDIÊNCIA DA ESPOSA

Na relação ou união homem/mulher, a monogamia ou a promoção do casal unido pelo

santo matrimónio para sempre495, constavam das obrigações a formalizar no altar da

igreja. Havia regras definidas para ambas as partes que deviam cumprir os votos mútuos,

testemunhados por um sacerdote e pelos convidados496. A confiança, a amizade perfeita, a

493 ERICH FUCHS, O desejo e a ternura… cit., p. 238.

Nos Exercícios Espirituais, “para se purificar e para melhor confessar”, no exame de consciência, INÁCIO DE LOILA alerta para o pecado, sendo os sete pecados mortais ou capitais o assunto para “a primeira maneira de orar” (nº, 33,3; 35,1; 36,1 entre outros pp. 34 e 35 e nº 238, 2 p. 124). Na primeira regra, “para de alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma”, diz-se: “nas pessoas que vão de pecado mortal em pecado mortal, costuma ordinariamente o inimigo propor-lhes prazeres aparentes, fazendo-lhes imaginar deleitações e prazeres sensuais, para mais as conservar e fazer crescer em seus vívios e pecados. Com estas pessoas o bom espírito usa um modo contrário: punge-lhes e remorde-lhes a consciência pelo instinto da razão.” (nº 314,p. 163). A palavra “pecado” aparece 95 vezes, “pecador” 74, e “pecar” 10 vezes ao longo deste livrinho espiritual. 494 Na Idade Média, já assistíamos à dimensão social dos laços conjugais, colocando em segundo plano a dimensão biológica. (Cf. ERICH FUCHS, O desejo e a ternura… cit., p. 230). 495 “não separe o homem o que Deus uniu” (Mt. 19, 4-6) e paralelamente (Mc. 10,6-9). 496 INÁCIO DE LOIOLA, na décima terceira regra “para de alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma” pronuncia-se sobre a acção maléfica associada a uma união pecaminosa porque clandestina: “[o inimigo] porta-se também como namoro frívolo, querendo ficar no segredo e não ser descoberto. Porque, assim como um homem frívolo, que, falando com má intenção, solicita a filha dum bom pai ou a mulher dum bom marido, quer que as suas palavras e insinuações fiquem secretas”(Exercícios Espirituais, nº 326).

Para uma melhor compreensão deste assunto, apresentamos resumidamente alguns tópicos de referência relacionados com as normas rígidas resultantes da vigésima quarta sessão do Concílio de Trento, decorrida em 1563, tendo sido instituídos, a onze de Novembro desse ano, 12 canônes curtos e um longo decreto disciplinar - “De reformatione matrimonii”. Surgem estes documentos como resposta aos ataques protestantes que não consideravam, como constava do direito canónico do casamento elaborado no final do sec.XII, esta instituição divina “sacramento indissolúvel” (só à Igreja competia a separação dos corpos - divortium). Estavam em desacordo com a exclusividade da Igreja, através do

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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devoção sinalizavam um amor recíproco, ideal dos manuais de confissão dos finais da

Idade Média, dos semões da Reforma e da literatura humanista - tudo isto enraizado numa

tradição judaica com influências/interferências do ambiente helenístico. Na perspectiva

paulina, o universo conjugal, representado pelo matrimónio, rejeita uma felicidade baseada

no amor romântico e dominada pelas vidas amorosa e sexual, o que demonstra a

incompatibilidade entre amor espiritual e acto carnal497.

O sacramento do matrimónio, primeiro reflexo do amor familiar, era condição sine qua

non para que se pudesse falar de vínculo conjugal perfeito, se digno e fecundo e não mero

concubinato, além do, consequente, amor paternal e filial - todos sob a égide de Deus

Amor. Desta forma, através da regularização da vida matrimonial e da legislação de uma

moral sexual, o matrimónio seria o remédio para a concupiscência498 e a idolatria. Só

existia “acto de carne” para a procriação, mas num ambiente de ternura, amor e não por

tribunal eclesiástico, em conceder o divórcio, bem como validar casamentos clandestinos; opunham-se à obrigação do celibato eclesiástico e condenavam os impedimentos ao casamento (eram eles a impuberdade, a impotência provada através de exame e a consanguinidade). A propósito dos casamentos clandestinos que podiam ser efectuados por filhos menores sem a presença de um sacerdote e testumunhas, o geral da Companhia, Laynez, na altura participante do Concílio, dá crédito à decisão livre e responsável da pessoa, já que “segundo o qual o livre consentimento dos esposos, o desacordo dos pais ou a ausência de um sacerdote não podem constituir impedimentos absolutos”. Após o Concílio, o controlo do sacerdote e do pai de família reforçam as condições de validade desse tipo de casamentos.

A excomunhão, segundo o instituído em termos de Concílio, era a pena para quem negasse o casamento como sacramento (contrato com livre consentimento mútuo), monogâmico e indissolúvel que não se podia solenizar em certas alturas do ano. A igreja continuará a ser a única a decidir quanto a estas questões, estando os sacerdotes seculares e regulares proibidos deste vínculo sagrado, conferindo ao estado de virgindade a superioridade em relação ao estado de casado. O divórcio seria autorizado pela Igreja em certos casos. (Cf. FRANÇOIS LEBRUN, “O controlo das famílias pelas Igrejas e pelos Estados”, in História da Família, trad. Ana Santos Silva e João Silva Saraiva, vol. 3, Lisboa, 1998, pp. 83-85).

Para mais informação sobre o assunto, remetemos para a obra de MANUEL DIAS DUARTE que aborda a situação das mulheres no Portugal renascentista, dando-nos informações como esta: “a partir das Ordenações Afonsinas o estatuto da barregã [mulher que aceitava a monogamia, mas recusava o casamento pela igreja], começa a identificar-se com o de concubina. As decisões do Concílio de Trento, obrigando todos ao casamento no altar, transformá-la-ão quase numa prostituta.” (História de Portucália – uma História de Portugal no Feminino, Vila Nova de Gaia, 2004, p. 168).

Afirma ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO que “o ideal de família monogâmica já nos é proposto no Génesis (2.23-24). Neste particular, assuma especial significado, nas Sagradas Escrituras, o Cântico dos Cânticos, poema atribuído ao rei Salomão. Prefigura-se aqui a aliança de Deus-esposo com Isabel-esposa, à luz do Antigo Testamento; à luz da revelação cristã configura o ‘matrimónio’ da Nova Aliança, a união mística de Jesus Cristo com a Sua Igreja. São Paulo, na Carta aos Efésios (5.22-23), actualiza esta mensagem à luz de Cristo, renovando o apelo de fidelidade mútua no casamento.” (Teatro Jesuítico em Portugal no século XVI - A tragicomédia Iosephus do P.Luís da Cruz, Braga, 2004, p. 319).

Cf. MARGARET KING, “A Mulher Renascentista”, in Eugénio Garin, O Homem Renascentista, Lisboa, 1991, pp. 200-201. 497 GUY BETCHTEL regista que «S. Paulo afirma-o: «É que, se viverdes de acordo com a carne, morrereis [Rm 8, 13]. Santo Agostinho afirmou: ‘ O desejo é uma doença (libidinis morbus)» (As quatro mulheres de Deus, trad. Ângela dos Santos, Luciana Miguel, Manuel Afonso de Sousa e Paulo Borges Carreira, Lisboa, s.d., p. 70). 498 FRANÇOIS DE DAINVILLE, no âmbito da análise que faz da educação jesuítica, faz referência a“le péché de la chair”( La naissance de l´Humanisme moderne… cit., p. 261).

«La Passion est pour une raison le thème aimé le leurs prélections de vertu : elle démontre à l’evidence que Dieu est amour.» (Ibid., p. 274).

ERICH FUCHS indica que “[…] o amor só é amor se evitar o mais possível a sexualidade” (O desejo e a ternura…cit., p. 235).

NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES fala-nos da cupiditas como uma das duas forças de moção humana. Numa visão humanista, o que é natural no homem, na alma humana, é a ratio, devendo predominar nas honestas decisões e acções. No entanto, o “apetite irascível e concupiscível” contém em si ira que “incita à violência” e libido “alfobre de todos os vícios” “expressão mais viciosa” da cupiditas (O Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório, Coimbra, 1994, p. 420).

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mera felicidade terrena, baseada no frenesim de sentimentos, de prazer, de sexualidade e

de auto-suficiência que nega e recusa o outro499. Pretendia-se um casal estável, regido por

um amor conjugal, forma de amizade, onde a permanência e a exclusividade eram

exigências a cumprir.

Os filhos eram o resultado da procriação em concordância com a natura desse contrato

sagrado e eterno500entre homem/mulher. Estes, como casal, sinalizavam com o seu fruto o

primeiro espaço de humanização, colaborando com Deus no projecto criador da vida e

procurando manifestar a sua comum dedicação aos filhos. Essa reciprocidade de afectos

familiares, que permitia a proximidade de amor com Deus, pressupunha a autoridade total

do homem, chefe da família que fazia lembrar o paterfamilias romano.

As mulheres obedeceriam a uma hierarquia determinada por homens, estando assim

subordinadas a deveres conjugais. A título de comentário acerca de uma missiva que o

conselheiro espiritual Inácio de Loiola escrevera à nobre dona Juana de Aragão, no sentido

de alcançar a reconciliação entre a “diva signoria” e seu “rufião” marido, Ascânio, do qual

estava separada, Jean Lacouture faz o seguinte registo:

“este texto extraordinário onde tudo é dito e alegado, desde a ‘humildade’ imposta à mulher até ao

‘heroísmo’ que se pode esperar de um grande coração (mesmo de mulher), ao culto da ‘honra,

recompensa justa da ‘virtude’ (sobretudo espanhola), à ‘utilidade temporal’ que não deveria ser

desprezada, parece um concentrado da estratégia jesuíta, tanto mais surpreendente quanto se aplica a um

objecto aparentemente mais insignificante”501.

499 Na tradição bíblica, o deslumbramento do encontro amoroso é-nos revelado no Cântico dos Cânticos que faz a apologia da emergência do amor entre homem e mulher. Mais dois livros didácticos ou sapênciais do Antigo Testamento atribuídos ao sábio Rei Salomão, Eclesiastes e Provérbios apresentam-nos várias sentenças relacionadas com a relação homem/mulher. Destacamos, deste último, o elogio da mulher exemplar, solícita ao marido, acolhedora e cumpridora das suas tarefas domésticas (Pr, 31, 10-31). No entanto, o Novo Testamento, com os evangelhos e as epístolas (5, 21-33) aos Coríntios e aos Efésios, no ensinamento de Jesus, ligado aos Génesis, o casamento é encarado como vocação e lugar de um apelo de Deus (Cf. ERICH FUCHS, O desejo e a ternura… cit., respectivamente, pp. 124, 120).

O reconhecimento bíblico da bondade primordial da sexualidade assenta em encará-la como dom do Criador que, ao criar o homem e a mulher, tornou-os “uma só carne”, i.e., reconhecem-se um ao outro. O que está em questão é a relação de alteridade do outro e de Deus e não tanto a relação biológica, a experiência imediata que afasta o amor do seu cariz criativo, portanto de Deus “esse Outro em nós Palavra que nos fala na medida em que nós a falamos.”. O Antigo testamento denunciava este fascínio do homem por si próprio como idolatria, abandono de Deus. “A sexualidade não é pecado na tradição bíblica […] O pecado é a idolatria, a adoração de uma falsa imagem de Deus.” (Ibid., respectivamente, pp. 84, 69, 70, 77).

MARCIANO VIDAL diz-nos que “en los catálogos de vícios aparecen en primer plano constantemente la idolatria (associada a menudo con los desordenes sexuales),la impureza y la codicia.” (Moral del Amor y de la Sexualidad… cit., p. 64). 500 Segundo o discípulo Paulo, “no casal cada um pertence inteiramente ao outro e não pode, por isso, resolver por si mesmo quebrar a união conjugal” (Ibid., p. 110). 501 Nesta longa epístola datada de finais de Novembro de 1552, segundo JEAN LACOUTURE, é “uma espécie de código do matrimónio […] que faz pensar em Napoleão…”. Nela podemos ver que Inácio de Loiola “encontra nada mais nada menos do que vinte e seis razões a favor da reconciliação dos esposos, pelo menos do regresso à vida em comum”, apesar de se saber que o duque Ascânio Colonna tinha uma má conduta matrimonial gastando “o dote nos antros de Nápoles com homossexuais”. O duplo intento inaciano, pois antes de ter escrito a carta já se tinha deslocado de Roma numa longa

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

136

O comportamento que fugisse a estes princípios religiosos/morais seria recriminado,

percebendo que haveria que ter cuidados especiais com as mulheres que, estando em

maioria no género humano, pela tradição cristã católica deviam ter um papel de contenção

e obediência em casa ou no mosteiro, os únicos espaços onde podiam manobrar sob

orientação masculina.

Podemos afirmar que a adaptabilidade, tão defendida por Inácio neste assunto, ficava

de certa forma diluída, julgando serem pertinentes e terem algum impacto questões como

estas: “Terão as almas um sexo - e um menos digno de ser ‘ajudado’ do que o outro?

Ajudado pela acção comum, pela sua própria acção?”502

A identidade feminina, na sociedade europeia renascentista, assumia projecção nos

papéis sociais que tinham: virgem, filha, mãe, casada, viúva, religiosa, bruxa e prostituta.

As que obedeciam e serviam o pai e o marido, concordando com o casamento indicado

pelo progenitor/educador e dando muitos filhos ao seu marido, enquadravam-se nos

modelos de Eva e Maria - “haverá sempre um intermediário entre Deus e elas, seja o pai, o

marido ou o padre”503. Nesse espaço social, económico, político e intelectual de

competência e controlo masculinos, as mulheres “fáceis”, provocadoras e lutadoras

encaixavam-se no modelo das cortesãs, intelectuais, viris, amazonas que não se

restringiam ao ambiente doméstico, lugar apropriado e natural do feminino, porque era aí

onde se rezava, fiava, lia e trabalhava504.

viagem rumo ao sul para conversar com a “diva espanhola”, não teve um final feliz. Afinal, além do bom coração de Inácio de Loiola era preocupante este escândalo conjugal para Roma, pois era comentado por todo o lado, nesta linha, fazem sentido as palavras que se seguem: “É verdade que estão em jogo uma instituição – a do matrimónio – e uma estratégia - a de Carlos V [Ascânio pretendia negociar com o rei de França a anulação das alianças contra Carlos V]. (Os Jesuítas – A Conquista… cit., respectivamente, pp. 200, 201 e 202).

Esta carta de exortação a Joana de Aragão para regressar à vida em comum com o seu marido e, por isso, de apelo à submissão feminina - “comme une femme qui se trouve et doit se trouver en pouvoir de son mari […] -, apresentando 26 razões que fundamentam tal posição inaciana, tais como a humildade, o domínio das paixões, a grande caridade, entre outras, pode ser encontrada na íntegra consultando: HUGO RAHNER, Ignace de Loyola et les femmes de son temps, trad. Gervais Dumeige, S:J:. e Frans Van Groenendaei, vol I, Paris, 1964, pp.231-235). 502 JEAN LACOUTURE, Os Jesuítas - A Conquista…. cit., p. 189. 503 GUY BETCHTEL, As quatro mulheres de Deus … cit., p.28. 504 Apesar de terem sido em número escasso as mulheres que também o almejaram e conseguiram, quando se fala na formação e acção do homem revalorizado do Renascimento, referimo-nos ao mundo do sexo masculino. As Poucas mulheres “bem nascidas” - consideradas eruditas – (em contraste com as que “serviam”) são italianas. Segundo MARGARET KING, “As suas ambições e o seu destino levam-nas a adoptar um papel de amazonas a combater nos reinos masculinos da cultura e da sociedade, a carregar mesmo com o fardo de uma sexualidade confusa ou ilegítima.”; salienta como humanistas italianas Christine de Pisan,- “das primeiras e, talvez, uma das maiores autoras desse período [séc. XV] que nasceu em Veneza e enviuvou em Paris (…) ganhou a vida com a pena.” -, Isotta Nagarola, Laura Cereta, Cassandra Fedele, Alessandra Scala e Olimpia Morata – estas revelaram-se no séc. XVI. Esta autora apresenta a cortesã Túlia de Aragão como uma mulher de valor, sobre a qual o próprio Montaigne mostrou opinião favorável (“A Mulher Renascentista…” cit., respectivamente, pp. 223, 227, 113).

Na sociedade Portuguesa da época em estudo, também se salientam alguns nomes de intelectuais, “donas”, que usavam o latim para se expressarem em poesia ou prosa sobre temas como o amor, em que “as diferenças entre amor-paixão e o amor biológico e as normas e regras do amor continuam a ser debatidas, formando-se verdadeiras ‘Cortes de Amor’, espécie de tribunais onde as mulheres são os únicos juízes”. MANUEL DIAS DUARTE enumera mulheres portuguesas insignes na cultura: D. Leonor de Noronha, discípula de latim do poeta siciliano Cataldo Sículo, Luísa Sigea, Ana

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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Há uma herança medieval e até renascentista nesta tradicional misoginia arreigada na

rigidez normativa da castidade, silêncio e obediência505. Inácio de Loiola, que, antes da

conversão, viveu vaidades humanas e mundanas, contactou e estabeleceu relações

confessionais e epistolares com mulheres de todas as classes sociais, ajudando umas e

sendo ajudado por outras. Também ele se pronuncia sobre este género humano:

“Uma chama que consome ou um fumo que enegrece”506.

“Da cabeça aos pés tudo nelas é uma armadilha para os homens”.

“Elas recomeçam continuamente a converter-se quando a carne ou a lassidão lhes dá vontade

disso”507.

Esta atitude de alerta masculino face ao perigo do género feminino demoníaco - que

não combina com o aforismo à maneira jesuítica, “nestas coisas, nunca se deve pretender

estabelecer uma regra rígida que não permita excepções”508- surge bem discriminada na

décima segunda regra dos Exercícios Espirituais “para de alguma maneira sentir e

conhecer as várias moções que se causam na alma”:

“O inimigo porta-se como uma mulher: fraco ante a resistência, e forte, ante a condescendência.

Porque assim como é próprio da mulher, quando briga com um homem, perder ânimo e põe-se em fuga,

quando o homem lhe mostra rosto firme; e, pelo contrário, se o homem começa a fugir e perde a

coragem, a ira, a vingança e a ferocidade da mulher é muito grande e se torna desmedida. Da mesma

maneira, é própria do inimigo enfraquecer e perder ânimo, dando em fuga com suas tentações, quando

Vicente, Joana Vaz ou Públia Hortênsia, a infanta D. Maria, filha de D. Leonor de Aústria e meia irmã de D. João III, e D. Leonor de Mascarenhas, “considerada igualmente uma das mulheres mais erudita do seu tempo, correspondeu-se com Inácio de Loyola que dela se serviu para erigir a Companhia de Jesus. Foi igualmente amiga de Santa Teresa de Ávila.” (Cf. História de Portucália – uma História de Portugal no Feminino… cit., pp. 174-178). 505 Cf. MARGARET KING, “A Mulher Renascentista…” cit., p. 225.

O humanista pedadogo Juan-Luís Vives, no seu famoso tratado de 1529 para instruir mulheres, De instutuione foeminae christiane, defende que “não existem defeitos congénitos na mente das mulheres que impeçam a obtenção do saber […] Todavia, as mulheres devem ser atentamente postas de sobreaviso para não assumirem comportamentos impróprios porque os principais objectivos da sua educação eram a honestidade e a castidade” (Ibid., p. 219).

A inferioridade e a submissão da mulher era um dado adquirido, filiado numa tradição judaica e helénica, era natural, associando-se ao conceito judaico de “amor (ahabah) como sentimento do mais forte para o mais fraco” - “o marido é cabeça da esposa… como Cristo é cabeça da Igreja - como salvador”. Desta forma, “a tradição bíblica vê bem que, nos factos, a sexualidade é vivida como relação de senhor/escravo (Cf. p. ex. 2 Samuel 13, 1-15), dramático impasse onde a mulher é sempre a vítima” (ERICH FUCHS, O desejo e a ternura…cit., respectivamente, pp. 121, 119, 75).

Em dois provérbios de Cataldo Parísio Sículo diz-se “Para o homem, nenhum animal é mais vantajoso e mais perigoso que a mulher”; “O navegante hábil evita os rochedos; o homem moderado, a lisonja das mulheres” (AMÉRICO DA COSTA RAMALHO E AUGUSTA FERNANDA OLIVEIRA, “Cataldo Parísio Sículo, Provérbios”… cit., pp. 165-196: Homini nullum animal commodius et perniciosus muliere; Solers nautas copulos euitat; uir temperatus mulierum blanditias). 506 Apud JEAN LACOUTURE, Os Jesuítas - A Conquista … cit., p. 187. 507 Ibid., p. 188. 508 Ibid., p. 198.

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

138

mano:

pessoa que se exercita nas coisas espirituais enfrenta, sem medo, as tentações do inimigo, fazendo o

diametralmente oposto”509.

Neste contexto de malvadez, fraqueza, inferioridade e desobediência, a controlar pelos

decretos tridentinos que indicavam o melhor comportamento a adoptar510, merece

destaque a excepção conferida à utilização de um realce artificial da beleza - maquilhagem

- desse ser hu

“desde que a esposa só pretenda agradar o marido, não deverá ver-se nessa prática grande malícia,

mas antes uma ‘imperfeição’ contra a qual convém pôr a penitente de sobreaviso”511.

A proibição de mulheres jesuítas na Companhia, nos colégios512, e a escassa presença

quer nos papéis a representar pelos meninos adolescentes nas peças do teatro neolatino513

509 INÁCIO DE LOIOLA, Exercícios Espirituais, nº 325. 510 A própria Igreja, no séc. XVI, preocupava-se com as mulheres, numa visão educacional. O canonista Domingos Velho, no seu livro Princípios de divino amor e considerações de Jesus (1625) apresenta uma orientação para a oração e a meditação, elaborando a obra “a pensar prioritariamente nos leigos, nomeadamente as mulheres, contrariando de um modo assumido a tradição preferencialmente eclesiástica de muita da literatura de espiritualidade do século XVI. Como fontes principais desta obra espiritual escrita em português, ao contrário da maioria em castelhano, “além dos Padres e Doutores da Igreja (…) mantinha-se a influência de alguns grandes mestres espirituais que marcaram, sobretudo, a segunda metade do séc. XVI ibérico, adquirindo especial relevo a figura, o exemplo e as obras de Teresa de Ávila que, em 1622, vira a consagração do seu trabalho e da sua espiritualidade através da sua canonização formal.”. A opinião de Domingos Velho é citada por MARIA DE LURDES CORREIA FERNANDES : “só o livro de S. Teresa, que escreveu por sua mão, tem levado milhares de almas a Deus e leva cada dia muitas, porque não há pessoa que o leia que não sinta em si um novo fogo de amor” (“Da Reforma da Igreja à reforma dos cristãos: reformas, pastoral e espiritualidade – Os Caminhos cruzados da Espiritualidade e da pastoral”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal – Humanismo e Reformas , Vol. II, como colaborador na transmissão de valores instituídos pela doutrina religiosa professada, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2000, pp. 32, 33.). 511 Apud JEAN LACOUTURE, Os Jesuítas – A Conquista … cit., p. 197. 512 Acerca deste assunto, vamos indicar duas obras onde poderá haver um maior e minucioso esclarecimento. A primeira, os dois volumes de HUGO RAHNER, Ignace de Loyola et les femmes de son temps, trad. Gervais Dumeige, S.J: e Frans Van Groenendaei, Paris, 1964. O autor pela análise da correspondência de Inácio com princesas, damas nobres, benfeitoras, filhas espirituais, mães de Jesuítas, pessoas amigas (na totalidade 139 cartas, das quais 89 têm como remetente o mestre jesuíta), quer-nos mostrar o santo que “manifeste précisément dans le domaine du couer, de l’amitié, des liens et des relations de la terre, la sérénité déjà celeste d’un amour que Dieu possède sans partage.” (ibid., vol I, p. 12). Poderemos encontrar aí nomes como a rainha Catarina, esposa de D. João III de Portugal e a infanta Joana de Espanha, “a única ‘jesuíta’ indiscutível da história” que “não foi, está claro, com o nome prestigioso nem com o seu título soberano que a regente entrou na Companhia, mas com o nome viril e bem banal de Mateo Sanchez” (JEAN LACOUTURE, Os Jesuítas – A Conquista … cit., p. 209).

A segunda obra é do padre e teólogo JOSÉ MARIA JAVIERRE. Em Inglaterra, onde tradicionalmente a independência feminina foi reconhecida antes de esta acontecer no resto da Europa, surge esta mulher que dá título ao livro como a fundadora, em 1609, de uma congregação feminina fora de clausura, Beatae Mariae Virgines. Mary Ward (1585-1645) “en 1611 recibe el mandato de tomar para su Instituto las ‘Reglas de la Compañía de Jesús’”. Conhecidas como ‘jesuitas inglesas’ e “entre si manejan el nombre secreto, ‘madres’ de la Compañia de Jesús”, “a cuenta de esta mujer, surge alarma en la Compañia de Jesus”. Entre os Jesuitas, uns estavam a favor destas Damas, como o caso dos padres Roger Lee e Edward Burton, e outros, os “antiwardistas”, defendiam uma facção mais próxima, mais antifeminista, à semelhança das indicações inacianas. O padre Freeman, subdirector do colégio inglês de Saint-Omer, é um dos representantes dessa oposição e atacou-as, destacando a seguinte invectiva “Su fervor decaerá, pues al fin y al cabo no son más que mujeres”. Como reacção Mary Ward dirige às suas seguidoras algumas mensagens de ânimo, passando a destacar aqui um excerto “Lo que quiere significar esta expresión ‘no son más que mujeres’ es que nosotras somos en todo inferiores a alguna outra criatura, que supongo es el hombre. Lo qual yo me atrevo audazmente a decir que es mentira; y com el debido respecto al buen padre Freeman, añado que también es un error. Quisiera que los hombres

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quer na própria assistência do espectáculo, fazem-nos compreender a atenção na escolha

das poucas personagens femininas e a eliminação e/ou adaptação do discurso das mesmas

em peças de Terêncio. Porém, “a misoginia era também um expediente cómico do teatro

antigo, comum a Plauto e a Terêncio. Os avisos sobre a maldade natural das mulheres

eram igualmente tema recorrente na literatura clássica antiga”514.

2.1.2. OS FILHOS - AUTORIDADE DO PAI / OBEDIÊNCIA DOS FILHOS

À semelhança do direito romano em que o poder indiscutível do paterfamilias (Patria

Potestas), o pai era o chefe de toda a família. Nesta época, como colaborador na

transmissão de valores instituídos pela doutrina religiosa professada, representava a

autoridade do próprio Deus no seu agregado familiar.

A base moral era austera, mas o modelo do pai misericordioso, com amor

incondicional, seria aquele que o teatro jesuítico pretenderia mostrar. Aos filhos caberia o

dever de obedecer, para que pudessem evitar o pecado, daí o quarto dos dez mandamentos

dizer “honrarás pai e mãe”.

No esforço de uma norma de conduta,

“as duas reformas, embora com algumas diferenças navegavam na mesma direcção no que se refere

ao papel dos pais: manutenção, ou mesmo reforço da sua autoridade, maior definição dos seus deveres

relativamente aos filhos no respeito pelos direitos destes, diminuição relativa da sua responsabilidade

educativa”515.

entendieran esta verdad: que nosotras, aunque mujeres, podemos ser perfectas.” (Cf. La Jesuíta Mary Ward, Madrid, 2002, respectivamente pp. 612, 252, 186, 253 e 255). 513 CLAUDE HENRI FRECHES diz que «ce théâtre dépourvu de féminité exalte l’amitié en des termes bucoliques qui cependent ne la doient pas rendre suspecte.» (Le Théatre Neo-latin … cit., p. 499). 514 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., pp. 312-313.

Ainda neste âmbito, MARGARET L. KING informa que “uma longa tradição de literatura misógina foi perpetuada no Renascimento, naquela espécie de competição agonístico-cultural que em França é mais conhecida por querelle des femmes.[…] o erudito e poeta Giovanni Boccaccio pretendia decerto elogiar as mulheres quando compõs o seu De Claris mulieribus, uma obra que teve grande influência. Esta espécie de desfile de mulheres notáveis, que vai do Antigo Testamento até à Idade Média, contribuiu para colocar sob os olhos dos leitores um sexo em geral totalmente esquecido no âmbito literário”. (“A Mulher Renascentista …” cit., pp. 225, 226).

Na obra de Boccacio constam as virtudes exigidas pelos homens às mulheres, “a castidade, a fortaleza, a fidelidade e o amor ao marido. O ciúme poderia ser tolerado, a traição conjugal nunca”. Perante tal tratado, o classicista e humanista português, João de Barros, reage, escrevendo Espelho de Casados (publicado em 1540), num registo de imposição masculina de um modelo comportamental feminino. MANUEL DIAS DUARTE fala-nos da admiração que mestre Gil demonstra face ao género feminino através da galeria das personagens das suas quarenta e quatro peças.”Quer sejam trabalhadoras quer sejam nobres ou burguesas ricas, as mulheres são tratadas pelo nosso dramaturgo com grande dignidade”. (História de Portucália – uma História de Portugal no Feminino... cit., pp. 178, 180).

Vide supra, p. 137, nota 505. 515 FRANÇOIS LEBRUN, “O Controlo das famílias pelas Igrejas e pelos Estados…” cit., p. 90.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Infindáveis são as alusões bíblicas516 à relação de reciprocidade entre pais /filhos,

seleccionando nós as palavras de S. Paulo, que, na epístola aos Colossenses, II, 20-2,

interpelam desta maneira:

“Filhos, obedecei em tudo a vossos pais, pois é o que o Senhor espera de vós. Pais, não exaspereis

os vossos filhos com receio de não os dissuadir”.

A saída da casa paterna acontecia com o casamento, através do qual se iniciaria um

projecto pessoal simultaneamente de libertação e de construção. Era na casa do pai, centro

de educação e estabilidade, que se deviam adquirir as primeiras referências básicas na

aprendizagem de condutas e saberes.

516 A título de exemplo o livro dos Provérbios fala dos conselhos práticos de um pai (Prov. 23, 15-28), das más companhias a evitar (Prov. 1, 8-19).

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3. REPRESENTAR NO REAL COLÉGIO DAS ARTES: PALCO DIDÁCTICO DO SABER E DA PIEDADE

Numa Europa em sobressalto e num mundo em expansão, no “recanto ocidental”, cabe

a D. João III, a transferência da Universidade de Lisboa para Coimbra517, a qual,

recolocada definitivamente nesta cidade em 1537, atingiria projecção em 1543 na

preparação de “quadros superiores do poder régio”518.

Contudo, o ensino superior só poderia ter qualidade se houvesse uma formação

adequada no ensino médio por conta dos colégios. Por conseguinte, “era urgente que a

Universidade possuísse um colégio semelhante ao de St. Bárbara, em Paris e ao de Guiana,

em Bordéus”519.

Dos colégios universitários, situados em Coimbra, na rua da Sofia, salientamos aquele

que “na cidade alta lançava igualmente raízes, a 2 de Julho de 1542 - Colégio de Jesus,

para estudantes jesuítas”520. Seria, mais tarde, a 21 de Fevereiro de 1548, que o Real

Colégio das Artes, parte integrante da Universidade521, teria abertura solene, vindo

517 MARGARIDA MIRANDA escreve que Coimbra era o “maior centro de educação clássica e humanística da Península Ibérica depois de Salamanca” (“Música para o teatro humanístico em Portugal … cit., p. 331).

MÁRIO BRANDÃO refere que “era Coimbra, como se pode depreender, uma Beócia que, graças aos bons cuidados dos professores jesuítas, não tardaria a transmutar-se numa nova Atenas” (O Colégio das Artes … cit., p. 93).

AMÉRICO DA COSTA RAMALHO afirma que “o regresso da Universidade a Coimbra, se trazia alguns inconvenientes ao cidadão comum, traduziu-se em tal progresso para o burgo do Mondego que em algumas décadas progrediu ele mais do que nos séculos decorridos desde a sua longínqua fundação. […] A Universidade estava então muito mais ligada à vida da cidade, do que actualmente.” (“Alguns aspectos da vida Universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554)”... cit., pp. 27). 518ANTÓNIO DE OLIVEIRA, “Portugal no Mundo - Realeza e Poder”. Memória de Portugal - o milénio português, Mem Martins, 2001, p. 297.

“Para D. João III, a sua fixação [Universidade] para longe de Lisboa, cidade corrupta e turbulenta, ambiente nada favorável à concentração para as verdadeiras obrigações escolares.” (ANTÓNIO LOPES, “A Educação em Portugal de D. João III à Expulsão dos Jesuítas em 1759”, Lusitania Sacra, 5 (1993) 37).

Vide supra, pp. 38-40. 519 Ibid. p. 19.MARGARIDA MIRANDA sobre este assunto apresenta-nos informação importante e minuciosa (Cf. Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit, pp. 171-179). 520 DOMINGOS MAURÍCIO GOMES DOS SANTOS, “Buchanan e o ambiente coimbrão do século XVI”, Humanitas, 46 (1994) 267. Nesta página, surgem enumerados esses colégios universitários. 521 Sobre a autonomia deste colégio - 1547 (Regimento) 1548 (discurso inaugural) - Cf. Ibid., pp. 265-266.

O bispo de Coimbra, D. João Soares, “um dos maiores benfeitores do Colégio e um assíduo frequentadpr dos seus Actos Públicos” (MARGARIDA MIRANDA, “Nas origens do melodrama: a Tragédia neolatina em Portugal …” cit., p. 255). As impressões/reacções narradas e descritas registam-se em cartas compiladas in Monumenta Histórica Societatis Iesu.

Neste estabelecimento de ensino, marco português importante na pedagogia humanista e jesuítica desta segunda metadedo século XVI, passará a funcionar, a partir do ano lectivo 1840-1841, o Liceu de Coimbra. Por curiosidade, passamos a indicar um artigo onde se abordam os planos de estudos do Colégio das Artes nos 20 anos anteriores à abertura do Liceu de Coimbra e na década que se segue à sua abertura. (JOAQUIM FERREIRA GOMES, “Do Colégio das Artes ao Liceu de Coimbra”, Revista Portuguesa de Pedagogia, 17 (1983) 335-367).

Julgamos pertinente o registo da impressão de um espectador especial, o poeta GOETHE, após ter presenciado em 1786, em Regensburg a uma peça de teatro no colégio dos Jesuítas - tratando-se de “El Amor humano, tragedia en tres actos, y una ópera, El servidor descartado” (FLORÊNCIO SEGURA, “El teatro en los Colégios de los Jesuítas”…cit., p. 299) -, escreve: “Dirigi-me logo ao Colégio dos Jesuítas, onde alunos representavam o seu espectáculo anual, e ainda assisti ao fim da ópera e ao começo da tragédia. Não se saíram pior que um grupo de teatro amador, e estavam muito bem vestidos, quase excessivamente sumptuosos. Também este espectáculo público voltou a convencer-me da inteligência dos Jesuítas. Não desprezavam nada que pudesse produzir algum efeito, e sabiam fazê-lo com dedicação e cuidado. O que aqui se

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

142

suplantar a insuficiente preparação em Humanidades dos alunos para que, posteriormente,

o trabalho universitário frutificasse.

A presença da família humanista, com reputados mestres portugueses e estrangeiros,

reunidos pelo “le plus grand principal de France”, André Gouveia522, criava, entre 1548 e

1550, expectativas na aquisição por parte dos discentes - normalmente ligados a classes

dirigentes e influentes - de uma incontestável formação intelectual, retórica e moral. O

teatro dos colégios universitários era então instrumento de auxílio imprescindível para

alcançar conhecimento e talento. Após o convite do rei, em 1547, e respectiva anuência

por parte de André Gouveia, vindo este a assumir a gestão do novo Colégio Real, os

designados “bordaleses” iriam marcar o que passamos a considerar como a primeira fase

da vida lectiva deste colégio, subordinado directamente ao rei e completamente

independente da Universidade. A segunda fase seria de gestão jesuítica, sendo Provincial

Diogo Mirão.

3.1. CONTRIBUTO TEATRAL DOS BORDALESES

Mediante o objectivo do assunto em estudo, interessa referir, do grupo vindo de

Bordéus, dois poetas dramaturgos, o escocês Buchanan e o bracarense Diogo de Teive, já

que ambos implementaram uma tradição europeia de representações teatrais escolares do

Humanismo cristão, e.g., o teatro bíblico523.

pode observar não é a inteligência tomada em abstracto; há em tudo uma alegria, uma fruição pessoal e colectiva como a que nos vem da própria vida. […] também estes homens se apossam aqui de coisas mundanas dos sentidos através de um teatro a todos os títulos notável.” (Viagem a Itália, in Obras escolhidas de Goethe, trad., prefácio e notas de João Barrento, vol. VI, Lisboa, 2001, p. 11). 522 MICHEL MONTAIGNE, Essais, 1, cap. 26.

O organizador do grupo, André Gouveia, trouxera os portugueses, João da Costa, Diogo de Teive e António Mendes de Carvalho; a estes haviam de juntar-se os estrangeiros, Elias Vinet, Arnaldo Fabrice, Jorge Buchanan, Nicolau Grouchy e Guilherme de Guérente

Cf. AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, “Alguns aspectos da vida Universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554) …” cit., p. 6. 523 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Mito, Imagens e Motivos clássicos …” cit., p. 75. Muito frequente numa época de lutas doutrinárias, punha em cena o bem e o mal, recorrendo a um passado bíblico que pela retórica e o carácter setencioso pretendia encaminhar para a reflexão das pessoas de quinhentos – o efeito catártico.

“Austère et tragique, le drame biblique s’effacera devant le drame saint, consacré aux apothéoses. Il assimile les trucs des pastorales et des pièces magiques. La cumplicité du public explique aussi l’évolution du drame néo-latin» (CLAUDE-HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p. 542).

Diogo de Teive com o drama Golias ou David, representado em 1550 no mosteiro de Santa Cruz, introduz o teatro neolatino edificante. Das suas obras, Judith segue tema bíblico, enquanto Ioannes Princeps já não foi representada, já que na época eram as tragédias bíblicas o que interessava ao público erudito das universidades (Cf.Ibid., p. 103) Buchanan e os seus dramas Jephete e Baptistes, compostos em Bordéus, seguem a tendência bíblica do teatro desses tempos.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

143

Também o francês Guilherme de Guérente estava ligado às representações teatrais tão

características do colégio de Guyenne. Os dois primeiros são considerados os precursores

da dramatologia jesuítica neolatina, em que a peça de teatro erudito estava incluída numa

concepção de ensino oratório e de regresso ao sagrado e à moral524.

A expressão latina obrigatória será óbvia neste contexto de experiência teatral escolar,

aplicação e consolidação de conhecimentos e os temas escolhidos eram intencionais. Em

Bordéus, Buchanan

“estava obrigado a fazer representar todos os anos uma peça. Nesse mesmo contexto terá composto,

além das peças já conhecidas, um diálogo dramático (hoje perdido) de tema actual, que terá feito

representar em privado e em público no colégio de Bordéus. Era sobre pais que constrangiam os filhos a

entrar na vida religiosa, sem terem em conta a sua idoneidade, com o intuito de os privar dos bens que

herdariam”525.

As tragédias dos dois mestres bordaleses em destaque, que nutriam entre si a amizade tão louvada pelos humanistas526, seguiam uma estrutura teatral clássica, articulando os modelos de Séneca e Eurípides com motivos e personagens bíblicas. O pagão e o cristão aliavam-se para o duplo fim de ensinar e de moralizar/doutrinar527.

Este grupo foi desmantelado após a morte de André Gouveia528, a 9 de Junho de 1548, tendo este leccionado apenas durante um ano, no Colégio das Artes. Buchanan, Teive e João da Costa seriam inquiridos e presos pelo Santo Ofício em 1550529. Até 1555 a maioria dos professores do colégio eram portugueses “quase todos antigos alunos

524 Cf. Ibid., p.10. 525 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., p. 172. 526 Cf. DOMINGOS MAURÍCIO GOMES DOS SANTOS, “Buchanan e o ambiente coimbrão do século XVI …” cit., pp. 299-303.

“Teive cultivait l’ amitié. Ferreira l’appelait, on l’ a vu. ‘douto mestre, doce amigo’ (CLAUDE- HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p. 101). 527 Cf. ibid., pp.95, 96 e 110.

Com a vinda do escocês George Buchanan para a Universidade de Coimbra em 1547, quando foi representada a Castro de António Ferreira, “se radicou o hábito de por em cena tragédias clássicas ou de inspiração clássica, como as do próprio Buchanan ou o Golias (1550) e Iohannes Princeps (1554), de Diogo de Teive. (JOEL SERRÃO, in Dicionário de História de Portugal, vol. IV, pp. 128-129). 528 Buchanan dedica-lhe um epitáfio em dois dísticos elegíacos, realçando nós o segundo que AMÉRICO DA COSTA RAMALHO nos traduz assim:“Se as Musas retribuírem por igual os teus cuidados, nenhuma sombra mais ilustre que a tua habitará o bosque ilustre” (Latim Renascentista em Portugal- antologia. I.N.I.C, Coimbra, 1985,p. 181. 529 Para informações mais detalhadas sobre o assunto, vide MÁRIO BRANDÃO, A Inquisição e os professores do Colégio das Artes, Coimbra, 1948.

Sobre as duas personalidades em destaque sugerimos, além da obra referida, o artigo de DOMINGOS MAURÍCIO GOMES DOS SANTOS que tem vindo a ser citado. Neste é-nos dada A faceta de Buchanan como escritor de poemas satíricos, “o Juvenal escocês”, bem como poemas de pendor erótico. (Cf. CLAUDE- HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., pp. 96-101).

AMÉRICO DA COSTA RAMALHO diz que “das representações dos bordaleses não ficou qualquer descrição, decerto contribuindo para o esquecimento as suspeitas de heresia que a Inquisição lançou sobre os dois professores estrangeiros e o português” (“Alguns aspectos da vida Universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554)…” cit., p. 10).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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estudantes de Paris; mas, entre ‘bordaleses’ e ‘parisienses’ tinham-se registado e continuavam a registar-se constantes desentendimentos e um clima de grande mal-estar”530. Apesar disso, não há dúvida que o magistério destes humanistas, avivando as representações académicas de teatro clássico, impulsionou o Humanismo, em Portugal.

3.2. CONTRIBUTO TEATRAL DOS JESUÍTAS Não entrando em justificações de ordem política e administrativa531, registamos a

segunda fase proposta para análise. A 10 de Setembro de 1555 passa a gestão do colégio para a Companhia de Jesus, cabendo a Pedro Perpinhão assinalar a sessão solene de abertura, com a oração de sapiência “De Societatis Iesu Gymnasiis Oratio”.

As dificuldades impunham-se, pois a herança prestigiosa deixada e imitação/aproveitamento desta tradição de representação, em Universidades e colégios adscritos, exigiriam labor árduo na sua manutenção.

Os Jesuítas iriam seguir argumentos que congregassem, por um lado, a fidelidade à tendência clássica e humanista da época e, por outro, aos seus fins de carácter teológico e moralizante, formando nas letras clássicas e nos valores cristãos, como temos vindo a referir de forma iterativa ao longo desta dissertação.

Na busca da perfeição gramatical e literária, caracterizadora da intensa vida intelectual proporcionada pela universidade, tinha impacto a finalidade ascética e moral no modus operandi da pedagogia dos colégios jesuítas. O P. Luís da Cruz dizia no prólogo que tem vindo a ser citado: “nunca escrevi, nem escreverei seja o que for que vá contra a decência”532. As palavras que se seguem certificavam a sua passagem como aluno no colégio conimbricense:

530 HELENA COSTA TOIPA, “A presença de Quintiliano num opúsculo do padre jesuíta Pedro Perpinhão …” cit., p. 208. 531 A doação absoluta do colégio e pertenças por parte do monarca piedoso à Companhia fora na altura regulada “só com a vontade e promessas de D. João III e nenhuma escritura de contrato ou doação se entregara aos novos moradores do colégio”. Além do edifício “construído à custa da fazenda real depois de 1547” existiam dois colégios emprestados pelos cónegos de Santa Cruz (Crúzios) ao rei - o de S. Miguel e de Todos os Santos - “sob promessa de lhes serem devolvidos”. Com a residência e docência dos religiosos da Companhia para estas instalações geram-se desavenças com os Crúzios que pretendiam reaver o que lhes pertencia e com a Universidade de Coimbra que “porfiava que o colégio não fôra doado à Companhia, porque os Padres não podiam apresentar doação expressa de D.João III.”. Por estas razões acrescidas das de carácter humano, as doenças de mestres e alunos, aproveitamento de recursos, e até moral/ disciplina interna, “maior reconhimento dos Irmãos e do cuidado particular que já se podia ter com eles, e tinha sido até então difícil de guardar”, nas palavras de Pedro da Fonseca, o Provincial Leão Henriques pensou em 1559 na mudança de instalações do colégio Real da parte baixa para a parte alta da cidade. “No dia seis de Março de 1566 inauguraram no Colégio de Jesus as aulas do Real Colégios das Artes”. (FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus em Portugal, Vol. I, tomo II, respectivamente, pp. 141, 146,145,139, 140, 142).

Há um dado importante para que se possa entender algum mal estar entre a Universidade e os Colégios jesuítas “em 1552, o papa Júlio III determinou que a Ordem tivesse direito de dar nos seus colégios os graus àqueles estudantes jesuítas a quem as universidades se recusassem a concedê-los gratuitamente”. (MÁRIO BRANDÃO, O Colégio das Artes… cit., p. 390). 532 .P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II, p. 29.

Ibid., vol I, p. 16: Scripsi nunquam, nec scribam quae modestie obstarent.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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“Ensinavam aqui homens competentíssimos vindos de França e da Itália, atraídos por grandes

honorários. Ensinavam Humanidades à juventude portuguesa. Foram eles, que, para agradecerem a tão

generoso Rei a sua visita, puseram em cena uma comédia plautina cheia do espírito humorístico do seu

autor. Mas as pessoas importantes e os especialistas de todas as literaturas registaram que para nós,

jovens, o assunto não teve graça e foi grotesco”533.

Na Província portuguesa, entre os colégios principais da Ordem - St. Antão em Lisboa,

colégio e Universidade de Évora e S. Paulo, em Braga - passamos a destacar as

representações do Real Colégio das Artes, as quais decorreram entre 1555 e finais da

década de sessenta. Enunciamos, abaixo, as datas, peças representadas e autores que

marcaram a acção pedagógico-didáctica, cultural e social da fase delineada534:

1556- O Passeio da Tarde de Pedro Perpinhão535; 1559- Tragédia Saul Gelboaeus (1ª peça escolar a ser levada à cena no Colégio das Artes); 1560- Tragédia Achabus de Miguel Venegas; 1561- Diálogo entre a Justiça, a Victoria, a esperança e um pregoeiro (usado na distribuição dos prémios); 1562- Tragédia Absalon de Miguel Venegas536; 1568- Tragicomédia O Pródigo de Luís da Cruz.

Atentos ao número de peças representadas na segunda metade do século XVI, será

interessante vermos que, dos vários colégios da província lusa, realçavam-se três, devido à

maior actividade cénica. Vamos enumerá-los por ordem crescente: o de Coimbra com 7

representações, ficando atrás do de Lisboa com 9, assumindo o primeiro lugar o da

Universidade de Évora com 14537.

Competia aos professores de Retórica a escrita das peças e, algumas vezes, essa função

era desempenhada pelos próprios alunos, a quem, por hábito, cabia a representação, “em

teatro, de obras literárias, a que assistiam primeiro os estudantes dos seus colégios, e

também personagens estranhas à escola”538. Seriam representadas noutros colégios

533.Ibid., vol. II, p. 25. 534 Para uma informação mais detalhada sobre o assunto indicamos FRANCISCO RODRIGUES, A Formação Intelectual do Jesuíta… cit., pp. 463-474. 535 Esta data assinala a 1ª representação de Acolastus, uma reelaboração da parábola do filho pródigo de proveniência reformista, no colégio St. Antão (aberto em Fev. de 1573) em Lisboa no final do ano lectivo, 31 de Maio. FLORÊNCIO SEGURA, evidenciando o intercâmbio das peças operado entre os colégios da Companhia, refere a autoria desta peça do humanista holandês Gnaphaeus, tendo sido representada na França, na Alemanha, na Espanha e em Portugal. Nestes dois últimos países em 1555, em Córdoba e no Colégio de Lisboa. (“El teatro en los Colégios de los Jesuítas”… cit., p. 324). 536 Segundo MARGARIDA MIRANDA esta tragédia “até ao presente nada há que prove a sua autoria. O mesmo título corresponde à tragédia de Juan de Mal Lara, representada em 1548 em Salamanca. “uma tragédia bíblica, para mais inspirada, tal como as de Venegas, nos Livros dos Reis” ”(Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., p. 148, nota 324). 537 Cf. ANTÓNIO LOPES, “A educação em Portugal…” cit., p. 30. 538 FRANCISCO RODRIGUES, História da Compahia de Jesus em Portugal … cit., p. 69.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

146

pertencentes à Companhia por toda a Europa, comprovando o espírito de partilha, e

mesmo de caridade, empreendido pelos jesuítas nas obras de sucesso539.

O Prof. Américo da Costa Ramalho prova-nos que as obras também poderiam servir

de oferenda. Miguel Venegas escrevera de propósito um códice “manuseável e de bolso”,

datado de 1561, constando da colectânea várias peças: Achabus, Saul e Absalon e ainda

Dialogi sunt: Gratulatio e Gloria para homenagear o legado pontifício de Pio IV, Próspero

Publícola de Santa Cruz, bispo de Quissamo em Creta, de passagem pelo colégio

conimbricense, no Verão540.

Em Portugal, nesse tempo de esforço didáctico, a nível cultural e religioso, e de

correcção de costumes (produção neolatina em especial), se colégios e universidades eram

os palcos habituais do teatro académico para a alta estirpe, as capelas, as igrejas, salas em

hospitais, conventos e a corte tinham tido até então essa função num teatro de pendor

popular, um “teatro errante”, o “teatro das romarias e de semana santa”. Era “também

errabundo o teatro daquele tempo, por causa das deslocações do público a que se

destinava, o rei, a corte ou o povo”.

A adaptação do teatro ao público e lugar explica “um teatro simples, desnudo e alheio

a grandes encenações. Um teatro vagabundo […]”, um “teatro embarcado”541,

representado nas naus com destino ao Brasil e à Índia. Aqui, os missionários jesuítas

representavam, tal como o iriam fazer nas colónias, para uma multidão pouco ou nada

letrada, temas religiosos em moldes populares; por isso, em língua materna, com cenários

adaptados à modéstia dos espectadores, para que a abrangência catequética fosse maior.

As normas rígidas acerca das encenações teatrais, que a documentação da Companhia

ratificou, eram adaptadas às circunstâncias.

539 Como exemplo, FLORÊNCIO SEGURA indica “en Medina se representa en 1561 la Tragedia de Absalón, escrita por los alumnos del superior. (…) en ese último curso estaba un alumno – que sin duda tomó parte en la representación y tal vez en la redacción de la tragedia- que se llamaba Juan (…) hoy es conocido como una de las cumbres de la poesía y la mística española, Juan de la Cruz.”(“El teatro en los Colégios de los Jesuítas…” cit., p. 325). 540 Esta miscelânea foi encontrada pelo prof Américo da Costa Ramalho num dos arquivos de manuscritos das produções dramáticas dos Jesuítas em Portugal, no séc. XVI: Biblioteca do “Hispanic Society of América”, em Nova Iorque. O códice [de Évora, sem indicação de autor. fol. 202 a 242] contém ainda numerosas composições em verso, em honra de Próspero de Santa Cruz, muitas delas da autoria do mesmo P. Venegas, que assim sendo estaria em Coimbra, quando lá passou o núncio apostólico. Isso mesmo é confirmado em uma, pelo menos, das várias orationes metrificadas.” (p. 343) “o homenageado passou em Coimbra no Verão a caminho de França para onde ía como legado pontifício” (p. 339) e teria levado além das peças, entre as ofertas da corte portuguesa uma “estranha planta”, o tabaco, trazida pelos portugueses para a Europa. Daí a erva Santa Croce designar o tabaco, enquanto em França era conhecida por herbe Nicottinae, pois fora o embaixador deste país em Portugal, Jean Nicot, que introduzira aí a “folha mágica”. (AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, “Um Manuscrito de Teatro Humanístico Conimbrisense”, Estudos sobre a Época do Renascimento, Coimbra, 1997, pp. 333-345). 541 Cf. MÁRIO MARTINS, Teatro Quinhentista nas naus da Índia, Lisboa, 1973, pp. 7-13.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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A título exemplificativo, podemos indicar o padre jesuíta siciliano, Bartolomeu

Vallone, que escreveu um diálogo ou “drama para-litúrgico” em português e com

predominância de personagens femininas. Representado no dia 12 de Abril de 1574, já em

plena viagem marítima, pois a saída de Lisboa fora a 21 de Março, o Diálogo das três

Marias apresentava como “interlocutores as três Maria (quer dizer, Maria Salomé, Maria

Cléofas e Santa Maria Madalena) e alguns anjos”542.

3.3. ACTIVIDADE CÉNICA E PÚBLICO ESPECTADOR A exibição das peças fazia parte do plano de actividades que envolvia o ano lectivo.

Desta feita, na abertura do mesmo, para além da oratio de sapiência inaugural “realçavam

ordinariamente a solennidade poesias e dramas”543.

As representações, fazendo parte das festas colegiais, a par de outras cerimónias

religiosas e profanas, envolviam todo o empenho e esforço da comunidade escolar, aliando

“o amor da Religião com o amor das letras e da patria, triplice affecto que os Jesuitas

sempre procuraram desenvolver nos corações de seus alumnos”544.

A expectativa e entusiasmo de numerosa e masculina audiência - nobilitas spectatrix

Lusitana, segundo indicações do P. Luís da Cruz, “pais, intelectuais, altos funcionários,

povo das cidades, reitores, professores das universidades, prelados e nobres”545 -

acentuavam-se no espectáculo teatral que decorria normalmente no final do ano lectivo, à

semelhança do que se passa hoje em dia, nas festas de finalistas das nossas escolas.

Primeiro, atribuíam-se os prémios literários, o que quase sempre se realizava a 4 de Julho,

coincidindo com as festas da padroeira do colégio conimbricense, Rainha Santa Isabel.

Neste dia, a par do discurso em louvor desta santa figura feminina, que, pelo percurso de

542 Este género de teatro marítimo com raízes no teatro litúrgico do ciclo pascal, neste caso, a ressurreição do Senhor, era celebrado na idade média, pois “na catedral de Ruão, no séc. XIII, celebrava-se o Officium Sepulchri, em torno da ressurreição do Senhor. Três diáconos, vestidos de dalmáticas e com os amitos pela cabeça, representavam de mulheres e levavam na mão um recipiente com perfumes. Claro está que tais mulheres eram Maria Salomé, Maria Cléofas e Maria Madalena. Não a mãe do Senhor.”. “Representações litúrgicas deste género, havia-as um pouco por toda a Europa ocidental. E afirma Du Cange que os clérigos que faziam o papel das três Marias, pela festa da Páscoa, chamavam-se vulgarmente mariolae, quer dizer Mariazinhas.” (Ibid., respectivamente, pp.18, 22 e 25). 543 FRANCISCO RODRIGUES, A Formação Intelectual do Jesuíta… cit., p. 24). 544 Ibid., p. 25. 545 P. LUÍS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. I, respectivamente, p. 15, 23: ad parentes, ad viros eruditos, urbium magistratus atq. Ciues, Academiarum rectores &magistros, Antistites deniq; nobiissimos magna.

Ibid., vol. II, respectivamente, pp. 28, 37: “a nobreza de Portugal que é sua espectadora” (referindo-se à Tragédia Sedecias).

DUARTE IVO CRUZ, que considera este novo teatro neolatino como “pausa neolatina”, já que a língua vernácula fica à espera de vez no teatro de expressão nacional, afirma que era “esta dramaturgia muito apreciada na época por uma elite letrada, que tinha a cúpula nos reis: D. João III, D. Sebastião, D. Henrique “ (História do Teatro Português, Lisboa, 2001, p. 77).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

148

bra.

vida, era virtuoso modelo apresentado aos alunos, eram afixadas composições de autoria

discente. A temática era alusiva às virtudes da Rainha Santa; sendo tal exposição

característica de dias festivos e de certames poéticos. Professores e alunos escreviam sobre

“a piedade e a religiosidade da rainha, a sua benemerência e munificência, a sua caridade e

humildade, o seu feitio pacificador”, tal como o fizera pela primeira vez na sua oratio de 4

de Julho de 1557 Pedro Perpinhão”546.

Puer era a designação do aluno “personagem obrigatória […] que anunciava os

premiados e lhes entregava o prémio, bem como a exortação moralizante dirigida aos

vencidos e aos vencedores”547. Para os discentes, estes momentos lúdico-didácticos eram

motivo de júbilo e, essencialmente, de recompensa e simultaneamente motivação em anos

lectivos que os interpelavam a um persistente e esforçado estudo548.

Lector humanissime, como diria P.Luís da Cruz, a duração destas lentas e complexas

“invenções” correspondiam a um dia ou dois, o que se afastava dos canônes clássicos. Tal

facto parece que não incomodava nem dramaturgos nem público espectador, já que “não

eram exibidas frequentes vezes, mas sim com intervalo de anos”549. Convém dizer que

esta última afirmação do prólogo do autor de Pródigo não coincide com a enumeração,

feita acima, das representações dos anos sessenta no colégio de Coim

Na exibição das peças - “com aparato célebre em dia tirado à sorte para cada uma, e

não costumavam ser representadas segunda vez, nem ver a luz por via do progresso

tipográfico”550-, o ornato551 de cenários e as vestimentas estariam ao serviço de uma maior

eficácia da palavra552. No entanto, será que estas exigências de certa sociedade, certa

546 HELENA COSTA TOIPA refere que “as orações comemorativas do aniversário do passamento da rainha Santa Isabel, Laudationis in Beatam Elisabetham, Lusitaniae Reginam libri três, […] respeitantes aos anos de 1557, 1558 e 1559 […] começaram a pronunciar-se anualmente a 4 de Julho por determinação régia de 1556” (“O papel dos Jesuítas no culto da Rainha Santa em meados do séc. XVI. A obra de Pedro João Perpinhão, S.I.”, in Universidade Católica Portuguesa – 20 anos de estudos humanísticos em Viseu, Viseu, 2002, p. 78). 547 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., p. 190.

FRANCISCO RODRIGUES fala-nos da representação no colégio de Évora de uma comédia, João de Espera em Deus, que, em 1562, fora “representada na festa de premiação solene” e “toda ela se referia aos prémios” (História da Companhia de Jesus … cit., vol. II, tomo II, p. 72). 548 Ibid., p. 31. 549 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II, p. 26. 550 Ibid., p. 23. 551 Do lat. Ornatus, us “aparato, equipamento, recursos, ornamento, adereço’ (ANTÓNIO HOUAISS et alii, … cit., p. 2082).

CLAUDE HENRI FRECHES indica que «la richesse des ornements et des parures, l’exhibition des armes damasquinées flattent l’oeik d’ un public essentiellement masculin, sensible au faste à tel point que le souverain en édicte le règlement et la mod´`eration. L’ honneur du gentil homme se nourrit au-delà du livre: tambours et fifres le rappellent à ordre.» (Le Théatre Neo-latin … cit., p 499). 552 FRANCISCO RODRIGUES afirma que “muita vez se attentava a prender e admirar mais pelo apparatoso do scenario do que pela belleza artística da composição”(A Formação Intelectual… cit., p. 456).

Vide supra, pp.122-124.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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cultura e de certo grupo não entravam em contradição com condutas aconselhadas de

gravitas, constantia, modéstia, humildade que se pretendiam veicular?

Será que, na prática, o poder da imagem se sobrepunha ao da palavra?

Será que durabilidade das peças se justificava pelo insistente intento e convencimento

na prática virtuosa dada pelas acções e atitudes das personagens?

Será que toda a preparação que pressupõe o espectáculo trágico combina com o

provérbio de Cataldo Parísio Sículo “Devemos fazer o melhor antes de o apregoar”?

Talvez as palavras que se seguem nos possam elucidar, reconhecendo a gravitas das

tragédias neolatinas em Portugal, em sintoma com a própria vida do país553:

“En Portugal n’aimant pas la comédie: les pièces devaient être d’une gravité rehaussée par la

pompe de la mise en scène et par la durée du spectacle”554.

A ordem, no modo de aqui se proceder, assentava nas leis do decoro555 e na contenção

dos abusos, como temos vindo a confirmar pela regulamentação a que estava sujeita no

Ratio e no prólogo de Luís da cruz. Assim, as representações “ganham corpo pela sua

preparação, pela decoração buscada com requinte e pelo número de horas que

demoram”556.

Com efeito, os alvarás régios também tiveram o seu papel regulador, nesta área557.

Como já foi indicado anteriormente, “estava vedada às mulheres a assistência, sendo os

papéis femininos proibidos, com excepção das mártires, e regulamentado o comprimento

dos vestidos”558.

553 Em Portugal, ”marcado pelo comércio e as comunicações resultantes da exploração dos mares “nunca dantes navegados”, a população lisboeta sofre catástrofes naturais como a do terramoto de1531, e consequentes fomes e pestes generalizadas a todo o país. Daí a fuga da família real ora para Évora ora para Coimbra. “A corte que, por fugir à peste grande de Lisboa, demorava em Évora, ofereceu o colégioa da Companhia, em 1569, o proveitoso e nobre entretenimento de uma tragédia sobre a parábola evangélica de Lázaro e o Rico Avarento”. (FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia… cit., p. 73).

Na segunda metade do séc. XVI, a sombra cobriria esta Pátria “que está metida/No gosto da cobiça e na rudeza/Dua austera, apagada e vil tristeza” e esta “gente surda e endurecida” denúncia registada na epopeia escrita na década de sessenta pelo satírico Luís Vaz de Camões (CAMÕES, Lusíadas. Canto X, estrofe 145). 554 FRANÇOIS DAINVILLE, La naissance de l´Humanisme moderne… cit., p. 127. 555 O étimo decor-, é oriundo do lat. Decus, oris ‘ornato, enfeite’ ou decorum, i ‘decência, decoro, conveniência’ (ANTÓNIO HOUAISS et alii, … cit., p. 921). 556 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina…cit., vol. II, p. 25. 556 Ibid., vol. I, p. 11: quae paratu, quae gestu, quae conquisita supellectili, quae spatio horarum moraque creuerunt. 557 MÁRIO BRANDÃO, refere o Alvará de 30 de Janeiro de 1538 em que D. João III proibia o uso de vestidos de seda e objectos de ouro nas comédias e tragédias nos colégios de Santa Cruz em Coimbra. Tendo existido outro datado de 28 de Setembro de 1546 (Cf. A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes…cit., p. 232).

Sobre este assunto, cf. CLAUDE- HENRI FRÈCHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p 95. 558 Vide supra, p. 124, nota 461.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

150

Segundo Margarida Vieira Mendes, “o povo assistia por vezes, pois algumas das

tragicomédias eram levadas à cena nos pátios dos colégios, abertos ao exterior. Em Évora

há notícia de públicos populares”559.

Para o entendimento das falas latinas recorria-se a “curtos letreiros a elucidar as cenas,

a padres, ao ensaiador, a alguém capaz que ia resumindo ou mesmo explicando partes da

acção, e a breves sínteses impressas, distribuídas antes do espectáculo pela assistência que

as lia e ouvia em surdina”560.

A catarse pretendida pelas tragédias neolatinas na assistência era conseguida e a

descarga, a purificação e purgação de paixões e sentimentos de terror ou piedade,

proporcionados pela acção dramática, aconteciam em todas as idades561. Daí que o

espectador merecesse a maior atenção por parte do professor, escritor e teorizador Luís da

Cruz como no-lo realça Claude- Henri Frèches

«L’auteur néo-latin forme le goût du spectateur, mais il s’y doit égalemente soumettre. C’est l’aveu

de Crucius, en sa Préface»562.

O teatro dos colégios estava confinado a interesses escolares de uma pedagogia

confessional. Deste modo, nos principais colégios nacionais em Coimbra, Lisboa e Évora,

a representação “não pretendia senão aproveitar a acção educativa da sugestão, nem era

mais que um festivo episódio escolar, nem projectava sua influência para além das

famílias dos estudantes”563. Neste posicionamento, esse teatro deve ser entendido num

âmbito diferente do teatro nacional e clássico, questão tratada pelo jesuíta Francisco

Rodrigues que nos diz a este propósito serem “diferentes, ambos eles, no género de poesia

e no local da representação; nos espectadores que os contemplavam, e na língua em que se

exprimiam; nos objectivos particulares, a que olhavam, e no aparato de que se revestiam,

cada um se movia no seu campo próprio, e tendia cada um para o fim peculiar, a que se

destinava”564.

559 MARGARIDA VIEIRA MENDES, A Oratória Barroca de Vieira, Lisboa, 2003, p. 45. 560 JOÃO FRANCISCO MARQUES, “As formas e os sentidos - O teatro religioso e litúrgico”… cit., p. 460. 561 Assim nos faz crer LUÍS DA CRUZ quando nos fala da reacção do adolescente rei D. Sebastião, aquando da assistência à tragédia Sedecias; quando indica a resistência de um homem avançado na idade manifestada na imobilidade de sete horas do espectáculo Pródigo. Apesar da longa duração, tal facto não impedia a atenção e comoção das pessoas que não demonstravam aborrecimento ou pressa na saída. (Cf. P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 25). 562 CLAUDE- HENRI FRECHES, Le Théatre Neo-latin … cit., p. 507. 563 Apud FRANCISCO RODRIGUES, História da Companhia de Jesus… cit. p. 92. 564 Ibid., p. 92.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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AUTORES DE COMÉDIAS CLÁSSICAS, TRAGÉDIA E TRAGICOMÉDIA NEOLATINAS, NO TEATRO ESCOLAR JESUÍTICO DA 2ª METADE SÉC. XVI 1. TERÊNCIO E AS TRÊS COMÉDIAS DA ANTOLOGIA JESUÍTA SELECCIONADA

Indo ao encontro do propósito já enunciado, iremos ver como o teatro de Terêncio -

“Terêncio cristão” - foi subordinado à moral cristã católica veiculada numa antologia

escolar dos jesuítas datada de 1593 - Sylvae variorum autorum, qui inferioribus classibus

idonei sunt. Tomus secundus. In quo poemata selecta continentu. No livro IV da mesma,

encontram-se as três comédias que temos intenção de analisar, aparecendo enumeradas

aqui, segundo a ordem dada pelo antologista. Os textos latinos originais serão retirados,

sempre que seja oportuno, dos dois volumes, Térence Comédies, I-II, Texte établi et

traduit par J. Marouzeau, Paris, 1942-1947. Na tradução das peças Andria (A Moça que

veio de Andros) e Heautontimorumenos (O Homem que se puniu a si mesmo), teremos

como referência Walter de Medeiros do Instituto Nacional de Investigação científica -

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra; para Eunuchus

(O Eunuco), seguiremos a tradução de Aires Pereira do Couto, colecção Clássicos Gregos

e Latinos da Edições 70. As três comédias do comediógrafo latino, ausentes desta

antologia, são Hecyra (‘A Sogra’), Adelphoe (‘Os Irmãos’) e Phormio (Formião); esta

última fora imitada do grego Apolodoro e não de Menandro, como as outras.

Do autor e obra limitar-nos-emos a fornecer alguns dados que julgamos necessários

para o esclarecimento e compreensão da análise das três comédias indicadas, em função do

intuito inicial. Propomos, desde já, a articulação com informações e reflexões do primeiro

capítulo desta segunda parte, com o fim de as actualizarmos e evidenciarmos a relação

153

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

154

entre realidade vivida e ficcionada. Tendo como ponto de partida o texto terenciano,

adaptado pelo antologista jesuíta da segunda metade do século XVI, será nosso intento

expor e comprovar a manipulação e reestruturação dos actos e cenas originais das obras,

subordinadas à visão da época em que se deu a implementação e a notoriedade da

Companhia de Jesus.

Os prólogos originais serão mantidos565, só que a apresentação em cada uma das peças

de um Periocha, criado pelo antologista e que substitui o argumentum ou Periocha do

gramático cartaginês, C. Sulpicio Apolinar (séc II d.c.), irá condicionar falas de

personagens e, consequentemente, o próprio enredo. A versão portuguesa destes

argumentos de Apolinar será da nossa autoria, apresentando-a, em nota de rodapé, em

forma de resumo fiel à ideia inscrita no original.

Terêncio fez parte do Círculo dos Cipiões, séc II a.c., altura em que Roma vivia o

fervor de uma sociedade romana fortemente influenciada pela Grécia, sentindo-se “um

esforço crescente pela formação intelectual, pela cultura que se pode sintetizar no conceito

de Paideia566. Daí o aparecimento das primeiras escolas em Roma, com a consequente

organização do ensino”567. Os tempos, por conseguinte, eram de procura e conquista

espirituais, almejando-se na valorização da pessoa humana, na sua individualidade, a

universalidade que se reflectia na humanidade ou humanitude das relações humanas e de

fraternidade.

Nesta linha, será óbvia a sintonia dos pedagogos humanistas do Renascimento e dos

seguidores da Devotio Moderna, que vigorava nessa época, com este comediógrafo

romano, que, na linha da comédia nova grega (comédia de costumes em que os defeitos

565 AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES apresenta-nos os Prólogos das obras de Terêncio, Andria, Eunuchus, Heautontimorumenos, Adelphoe, Hecyra e Phormio, que o antologista da Sylva de 1587 reproduziu na íntegra. (Cf. Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas… cit., pp. 238-241. 566 Sobre estas temáticas, para mais informação, vide supra, p. 19, nota 8, p. 30, nota 39, p. 132, nota 491.

Reafirmamos, mais uma vez, que a humanitas, tornando o homem mais humano (culto) para ser útil e auxiliar os outros, associa-se a ideia de amor ao próximo ou, em termos cristãos, à caridade. 567 ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Ideias Pedagógicas na Comédia de Terêncio… cit., p. 28.

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA informa que a educação defendida por Cipião Emiliano, mentor do Círculo, retomava a complementaridade do intelectual e físico da educação grega. O pai dele, Paulo Emílio mais conhecido como Cipião-o-Africano, terá seguido esta visão educativa também defendida por Terêncio. Contrapunha-se ao tradicionalismo, no âmbito do mos maiorum, defendido pelo inflexível Catão. “Terêncio era uma das pessoas que gravitavam no Círculo dos Cipiões, e, segundo as más línguas da época, Cipião Emiliano seria mesmo o verdadeiro autor das suas peças.”(Estudos de História da Cultura Clássica… cit., 80).

Escritores romanos como Cícero e César louvaram o poeta pela pureza da linguagem, prolongando-se a apreciação nos poetas de gosto clássico como Horácio e Quintiliano. Na patrística, S. Agostinho não ficaria indiferente ao homo sum de Terêncio. A freira Rhosvitha, no séc. X, na óptica de um teatro cristão tomou frases do dramaturgo escrevendo peças, onde personagens femininas como a cortesã Taís seria reajustada a uma finalidade purificadora no tocante ao amor. (Cf. ETTORE PARATORE, História da Literatura Latina, trad. de Manuel Losa, S.J., Lisboa, 1987, pp. 131, 132).

Para informações mais detalhadas sobre Terêncio, vide supra, pp.61-62, nota 144; pp. 102-103, nota 365; pp. 115-117.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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são apresentados como o reverso da medalha das virtudes, provocando diversão e

moralização), seguia como modelo, Menandro. Apelidado no seu tempo de dimidiatus

Menander (meio Menandro), nele baseava a sua contaminatio568 a favor do humano569,

questionando-o através do “faz de conta”, à semelhança de um fingimento pessoano

carregado de pensamento.

As exigências espirituais ganhavam forma nas temáticas, no tom íntimo e individual

das personagens e na sua “relativa liberdade, limitada pelo bom-senso”570, o que confluía

para um teatro de reflexão, sério e de possível força interventiva, logo motivo de todos os

cuidados e atenções na sua reapropriação cristã. Em contrastre com o tom jocoso, popular

e duro da comédia-farsa de Plauto, promotor imediato do riso, a expressão linguística

erudita e equilibrada terenciana, mais inclinada para o siso, era mais apropriada para o

estudo da palavra latina.

Todavia, Terentius arte571, tal como regista Horácio, exigiria uma articulação entre

pensamento e sentimento, de tal modo que o poder cognitivo pudesse ser aplicado na

adequada e abrangente compreensão de sentimentos benéficos na e para a juventude.

Como o homem é um ser singular, serão o experienciar, a vivência e a convivência

com os outros que o poderia conduzir à formação e à aprendizagem. As palavras da

personagem Cremes - “A habilidade está em tomar dos outros a experiência que te pode

ser útil”572 - elucidam a perspectiva da educação pelo exemplo que os outros nos dão,

ainda que Terêncio coloque em causa esta lição moral, visto que estava ligada à posição de

568 ANTÓNIO FREIRE diz que Contaminatio é o “processo literário que consiste em fundir numa só duas ou mais obras de escritores gregos, por vezes, os autores romanos imitavam uma só obra; outras vezes inspiram-se em dois ou mais autores” (Humanismo Clássico, Braga, 1986, p. 202).

A Comédia Nova grega com os seus maiores representantes, Menandro, Filémon e Dífilo, é a fonte para esta prática já usada por Énio e Plauto, como o próprio Terêncio escreve no prólogo da Andria (v. 18). A peça a estudar O Homem que se puniu a si mesmo é a prova de que “o autor contaminou muitas peças gregas para fazer uma latina” (Cf. MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA, Estudos de História da Cultura Clássica… cit., p. 74).

Menandro era o comediógrafo grego “ preferido por Terêncio, foi dito, justamente, que a sua comédia não faz rir, que as suas personagens não têm vícios, mas apenas defeitos, que a humanidade e um sentido de afectuosa fraternidade caracterizam o seu mundo, que os escravos são, no fundo criaturas honestas, apegados profundamente aos seus patrões.” (ETTORE PARATORE, História da Literatura Latina, trad. de Manuel Losa, S.J., Lisboa, 1987, p. 125). 569 “Sou homem;nada do que é humano tenho por estranho” (“Homo sum: humani nil a me alienum puto”) fala de Cremes em relação ao seu vizinho que se auto-punia, trabalhando sem descanso (TERÊNCIO, Heaut., v. 77).

A propósito deste verso, MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA afirma que “o verso referido de Terêncio é um dos mais citados de todos os tempos. (…) não sabemos se este pensamento estava ou não no original grego de Menandro” (Estudos de História da Cultura Clássica… cit., p. 415). Vide supra, p. 28, nota 32; vide infra, p. 236, nota 896. 570 ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Ideias Pedagógicas … cit., p. 93. Esta expressão aplica-se às personagens das comédias Andria ou A Rapariga que veio de Andros e O Homem que se puniu a si mesmo 571 Na primeira epístola Ad Augustum, Horácio realça a habilidade artística de Terêncio Les auteurs latins, Horace les épitres, livre II, 1858, v. 59, p. 140. 572 Heaut., v. 210 Hoc scitumst periculum ex aliis facere tibi quod ex usu siet. No verso 221 o filho de Cremes, Citifão, pouco convencido imita o pai, parafraseando-o “Periculum ex aliis facito, tibi quod ex ussu siet” (Toma dos outros a experiência que te pode ser útil), no sentido de demonstrar, através da sua experiência, “que o modo de viver varia de idade para idade e de indivíduo para indivíduo, condenando-se, assim, a lição moral fundada nos exemplos alheios” (ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Ideias Pedagógicas … cit., p. 71).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

156

Catão, na qual a primazia é dada, em exclusivo, aos mais velhos, maiorum. Na sebenta em

estudo, o antologista não aproveitou esta sentença, pois a cena onde se encontra foi

eliminada, apesar de nos parecer, à primeira vista, compatível com a pedagogia jesuítica

do exemplo.

Através da educação, vinculada ao poder do amor visível e vivido nas acções e

interacções quotidianas, poder-se-ão evitar os desencontros afectivos e as relações

humanas integrar-se-ão num diálogo acompanhado de verdade, tolerância, compreensão,

paciência, confiança e, essencialmente, benevolência.

Veremos que, na análise das falas das personagens e nos problemas inerentes às

interacções entre elas, nada é alheio ao dramaturgo latino. A juventude aparece

representada quer nas belas raparigas afectuosas, honestas e casadoiras, nas cortesãs que

“são flores de poesia, na sua desencantada e dolorosa experiência de vida”573, quer nos

jovens filhos reflectidos e dotados de sentido de responsabilidade, apesar da

conflituosidade com a autoridade do pai, benignus ou durus574. A família, instituição

sagrada de Roma, tem lugar de destaque incontestável nas cenas e “vem afirmar que essa

autoridade (imperium) seria reforçada se fosse baseada na amicitia e, consequentemente, a

convivência humana seria mais humanizada”575. A autoridade do paterfamilias [Patria

Potestas ], com base no medo, muitas vezes, choca com a emancipação, a individualidade

que reivindicam os jovens filhos para quem o casamento era proposto e imposto como o

desvio de vícios. Os escravos, com suas artimanhas, eram os coadjuvantes ou do pai ou do

filho, assumindo, muitas vezes, em relação a este o papel que caberia ao pai, o de

confidente e protector. Desta feita, pela leitura dos prólogos, onde o autor se defende das

acusações de contaminação, plágio, falsa paternidade das suas peças576, intuímos a

importância que o teatro tinha nessa altura na Roma dos Cipiões, usando-o Terêncio como

meio pedagógico.

É do nosso interesse colocar em cena apenas as manifestações do amor humano ou os

códigos para as ditas condutas virtuosas nesse amor que se quer oblativo, à luz da

573 ETTORE PARATORE, História da Literatura Latina … cit., p. 124. 574 A par do pai duro, identificado como o pai tradicional à imagem de Catão, aparece-nos, em comédias como A moça que veio de Andros e O Homem que se puniu a si mesmo, o pai com coração. Do mesmo modo, o filho obediente e o libertino. Este conflito põe em cena caracteres. O compromisso com a vida social séria e regrada, com a sociedade romana, fazia-se pelo casamento, sendo os excessos e os vícios próprios da libertinagem dos rapazes precedente a esse acto social. “Terêncio, contudo, quererá demonstrar que é precisamente nesta fase que o verdadeiro carácter do jovem se manifesta.” (ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Ideias Pedagógicas… cit., p. 68). 575 Ibid., p. 92. 576 Cf. Ibid., pp. 22-24.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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finalidade formativa deste sistema educativo perante a pessoa católica cristã da segunda

metade do séc.XVI.

A família, palco de pedagogia e moralização, chefiada pela autoridade paternal, tem a

sua origem no casamento. Por isso, a selecção dos tópicos orientadores da análise

corresponderá a uma perspectiva gradativa de relações afectivas integradas nessa célula

imprecindível no tecido civil e religioso apontado.

1.1. ANDRIA (166 A.C ) A RAPARIGA QUE VEIO DE ANDROS ou ANDRIA577

RESUMO DO ARGUMENTO (Periocha) da antologia da Companhia

“Procura Simão, que desempenha o papel de pai solícito, desviar o filho Pânfilo de

uma prática viciosa de pecado e atraí-lo a um casamento honesto. Apaziguam-se as

desavenças, que constituíam obstáculo, e a comédia remata por um final feliz”578.

ACTOS E CENAS

Seguindo os canônes clássicos, a antologia manteve o prólogo e os cinco actos, no

entanto algumas cenas foram eliminadas, predominantemente as que se relacionavam com

o tópico que desenvolveremos no ponto 1.1.1. Na antologia de 1593, o novo argumento irá

577 Apresentaremos as comédias pela ordem que nos aparecem na antologia. As duas primeiras, Andria ou A Rapariga que veio de Andros e Eunuco, são fabulae motoriae, sobrepondo-se a acção ao diálogo. O Homem que se puniu a si mesmo é uma comédia stataria, onde a predominância do diálogo dá relevância à psicologia das personagens, comédia de caracteres.

ISIDRO ARAÚJO afirma que “segundo as didascálias, as seis comédias de Terêncio seguir-se-iam nesta ordem: Andria, em 166, Heautontimorumenos, em 163, Eunuhcus e Phormio em 161, e Adelphoe e Hecyra em 160. Hoje em dia, depois de estudo mais preciso sobre os prólogos das comédias chegou-se à conclusão de que as indicações cronológicas das didascálias são falsas,e que a primeira comédia de Terêncio é Hecyra e as outras seguiram-se da seguinte forma: Andria, Phormio, Eunuchus, Heautontimorumenos e Adelphoe.” (A Mulher em Terêncio, Braga, 1993, p. 64).

Na nossa transcrição, omitimos as “letras ramistas” (j e v), apesar de se verificar o uso das mesmas na antologia jesuítica. Seguimos, assim, a metodologia consagrada modernamente na transcrição do texto latino. 578 AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES, Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas… cit. p. 225: Ninitur Simo, qui soliciti patris personam gerit, Pamphilium filium a vitio peccandi consuetudine, ad honestas nuptias avocare. Componuntur dsicordiae, quae impedimento erant, et comoedia felici exitu conccludit.

Na obra original, C. Sulpici Apollinaris Periocha, o sumário indica: Pânfilo viola Glicério, considerada erradamente irmã de uma meretriz vinda de Andros; e tendo ficado grávida, promete-lhe casamento, pois o pai (de Pânfilo) tinha-lhe prometido outra para casa, a filha de Cremes; e quando descobriu o amor (proibido), (o pai) simula a boda, desejando conhecer o que o seu filho sentiria. Pânfilo não se opõe por conselho de Davo. Mas quando vê a criancinha nascida de Glicério, Cremes não aceita o casamento e renuncia o genro (Pânfilo). De seguida, reconhecendo inesperadamente Glicério como sua filha casa esta com Pânfilo e a outra (Filúmena) com Carino. (Cf. TERENCE, P., Comédies, I, .Texte établi et traduit par J. MAROUZEAU, Paris, 1942, p. 123).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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condicionar a estrutura formal da peça, não sendo indiferente tal facto à economia de

espaço.

PERSONAGENS

Mantêm-se o pai, Simão; seu jovem filho, Pânfilo; Sósia, liberto de Simão; Dromão,

escravo de Simão; Davo, escravo de Simão e Pânfilo; Carino, amigo de Pânfilo, e o

escravo, Bírria. O velho Cremes, pai de Filúmena; o velho Critão, forasteiro de Andros.

Das três personagens femininas, somente surge Mísis, escrava da jovem Glicério,

namorada de Pânfilo. Glicério, protegida e irmã da bela Crísis (meretriz579 por

necessidade, proveniente de Andros), encantou Pânfilo, quando este foi ao funeral de

Crísis, que os deuses levaram prematuramente. Confrontando os argumentos, nota-se o

intento do antologista em colocar na sombra mulheres pouco convenientes. Glicério não

fala na obra do autor latino, tendo como porta-voz a parteira Lésbia, que conjuntamente

com Mísis e as outras personagens divulgam o que se passa em relação à amada de

Pânfilo. Na antologia, não aparecendo a cena I do acto III, encobre-se o nascimento de um

filho surgido de uma relação fora do casamento, e consequentemente a reacção da parteira.

1.1.1. Amor conjugal (dimensão comunitária) /Amor Paixão (dimensão

individualista)

O QUE SE OMITIU…

…ACERCA DO AMOR -PAIXÃO DE PÂNFILO E GLICÉRIO

Acto I - Na cena I, omitem-se os últimos vv. 131-136, correspondentes à fala do pai de

Pânfilo, Simão. Este conta ao seu liberto, Sósia, o que acontecera no funeral de Crísis - “e

é nessa altura que Pânfilo, fora de si, revela o amor que trazia bem disfarçado e escondido.

579 Segundo ORLANDO NEVES, a raiz grega mer, com origem em meros (“parte, segmento, porção”), está presente na palavra portuguesa meretriz. Daí que esta pertença à mesma família de palavras como merecer, mérito, mercê, mercenário, que se ligam, na sequência anterior, aos significados de “prémio, ganho, paga”. Quando alguém “merece” alguma coisa, “merece” a sua parte, a sua porção, neste caso através do corpo. (Dicionário da Origem das Palavras, Lisboa, 2001, p.171). Vide infra, p. 159, nota 581; p. 172, nota 630 e p. 180.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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Atira-se para a frente e abraça a mulher pela cintura: ‘Minha Glicério’- exclama - ‘que

estás a fazer?... Porque te vais destruir?...’ Então ela - assim se podia entender, sem

rebuços, a intimidade do amor - lançou-se nos braços dele… E chorava…com enorme

confiança!...”580.

… ACERCA DA PECADORA MULHER MERETRIZ, QUE ENFEITIÇA COM A BELEZA581

Acto I - Na cena I, omitem-se os vv. 76-79, quando Simão, dialogando com Sósia, se

refere ao início do mau caminho escolhido por Crísis que “quando se chegou a ela um

galante a acenar com dinheiro, agora um e depois outro… como a natureza inclina toda a

gente a apartar-se do trabalho para seguir os seus caprichos, aceitou um arranjo…depois lá

entra pelo caminho da profissão”582.

…ACERCA DA FELICIDADE E FIDELIDADE NO PRETENDIDO CASAMENTO ENTRE PÂNFILO E

GLICÉRIO, EM QUE MÍSIS É COADJUVANTE

Acto III - As cenas I e II da obra original são eliminadas na íntegra. Desta forma, as

cinco cenas da peça original, neste acto, ficam na antologia restringidas a três. A cena IV

não é eliminada, passando na antologia a corresponder à cena I do acto II.

Na cena I, Mísis, no v. 460, afirma a infidelidade do homem no casamento com estas

palavras: “poucos homens se encontram que sejam fiéis a uma mulher”583.

Na cena II, nos vv. 486-488, Mísis, criada de Glicério, invocando Castor, comenta o

nascimento do filho proibido da ligação entre a sua ama e Pânfilo “Sim, senhor, que

580 Na análise da peça A Moça que veio de Andros, a tradução é transcrita de TERÊNCIO, A Moça que veio de Andros., Introdução, versão do latim e notas de Walter de Medeiros, Coimbra, 1992.

O texto latino, quando necessário, surgirá de seguida, recorrendo a Térence Comédies, I-II, texte établi et traduit par J. Marouzeau, Paris, 1942-1947.

O texto da antologia, surgirá no final, sempre que for oportuno. Esta sequência será a adoptada nas outras duas comédias a analisar. Há a assinalar apenas a tradução por nós seguida na peça Eunuco - TERÊNCIO, O Eunuco, introdução, tradução do latim e notas de Aires Pereira do Couto, Lisboa, 1996.

Cf. pp. 37; 131: […] Ibi tum exanimatus Pamphilus / Bene dissimulatum amorem et celatum indicat: / Acurrit, mediam mulierem complectitur: / Mea Glycerium’, inquit ‘ quid agis? Cur te is perditum? / Tum illa, ut consuetum facile amorem cerneres, / reiecit se in eum flens quam familiariter. 581 Nesta omissão soam pertinente as palavras de ANTÓNIO FREIRE, “Terêncio pinta o vício com cores tão sedutoras, descreve meretrizes e libertinos com aspectos tão simpáticos, que os leitores incautos se podem deixar facilmente atrair por certa melopeia falsa destas sereias traiçoeiras.” (Humanismo… cit., p. 293). 582 Cf. pp. 33; 128: postquam amans accessit pretium pollicens / Vnus et item alter, ita ut ingenium est omnium / Hominum ab labore procliue ad lubidinem, / Accepit condicionem, dehinc quaestum occipit. 583 Cf. pp. 83; 157: fidelem haud ferme mulieri inuenias uirum.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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perfeição de menino que nasceu a Pânfilo!”584. Depois, considera a mãe da criança como

uma rapariga encantadora, optumae adulescenti. Nos vv. 519- 520, o criado de Pânfilo,

Davo, comenta o quanto o seu amo amava Glicério, “sim, porque todos nós sabemos que

ele a amava como um perdido”585.

Na cena IV, no v. 581, Davo dialogando com Simão referindo-se à noiva, Filúmena,

filha de Cremes, pergunta “Porque é que se não vai buscar a noiva?”586. Na antologia, a

palavra uxor é eliminada587, já que não fazia sentido perante a alteração do argumento.

Acto IV - As cenas II e III são eliminadas na antologia. Assim, constam da antologia

três cenas e não cinco, como no original.

Na cena II, nos vv. 684-685, Mísis num tom de amizade e cumplicidade feminina,

anime mi, promete a Glicério encontrar e trazer Pânfilo para junto de si - “É para já…

Onde quer que ele esteja, eu vou tratar de o achar e de o trazer comigo…sim, o teu

Pânfilo… Mas tu, meu amor, não te atormentes”588.

Mais à frente, nesta mesma cena eliminada pelo antologista, aparecem as palavras

reveladoras das boas intenções de Pânfilo que considera Glicério a mulher que sempre

desejou, pretendendo a união com ela em harmonia, rejeitando a oposição por parte dos

que querem a ruptura, como o pai e o escravo Davo. Assim, nos vv. 694-697, o enamorado

e desejoso noivo dirige-se a Mísis “por todos os deuses te juro que nunca a hei-de

abandonar, nem que soubesse que iria provocar o ódio de todos os homens contra mim:

Foi esta a mulher que desejei para mim: em sorte me tocou… Os nossos feitios

harmonizam-se bem… Que vão bugiar aqueles que pretendem entre nós uma

ruptura!...”589.

Na cena III, nos vv. 716-720, Mísis lamenta as falsas expectativas de Glicério, quando

descobre que Pânfilo iria casar com outra, Filúmena, por arranjo do pai Simão com o pai

da noiva, Cremes - “Não pode uma pessoa contar com nada que diga ‘é seguro’!... O céu

nos valha!... A suprema felicidade - cuidava a minha ama que tinha neste Pânfilo: um

584 Cf. pp. 87; 159: Per ecastor scitus puer est natus Pamphilo. 585 Cf. pp. 91, 162: […] Nam omnes nos quidem / scimus quam misere hanc amarit; nunc sibi uxorem expetit. 586 Cf. pp. 98; 166: Cur uxor non accersitur?. […]. 587 Cf. Sylvae variorum autorum qui inferioribus classibus idonei sunt. Tomus secundus. In quo poemata selecta continentu. 1593, livro IV, p. 93: Cur non accersitur?. 588 Cf. pp. 113; 175: Iam iam ubi ubi erit, inuentum tibi curabo et mecum adductum / tuom Pamphilum; tu modo, anime mi, noli te macerare. 589 Cf. pp. 114; 176: Per omnis tibi adiuro deos numquam eam me deserturum, / non si capiundos mihi sciam esse inimicos omnis homines. / Hanc mihi expetiui: contigit; conueniunt mores; ualeant / qui inter nos discidium uolunt: hanc nisi mors mi adimet nemo.

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161

amigo, um amante, um marido, ali em qualquer altura, sempre pronto… Mas agora é por

causa dele que a pobrezinha está a sofrer esta tribulação”590.

O QUE SE ALTEROU…

… ACERCA DA NECESSIDADE E DAS OBRIGAÇÕES DO CASAMENTO

Acto I - Na cena II, o antologista coloca como fala de Davo uma interrogação “Hoc

quid sit?”, que no original cabe a uma fala de Simão. A sentença sobre o casamento será

proferida na antologia, desta maneira, com mais coloquialidade. Segundo a versão

original, no v. 191, Simão diria “Percebes aonde eu quero chegar? Todos os que têm uma

amante suportam mal que se lhes dê uma esposa”591.

Acto I - Na cena V, que corresponde à cena IV da antologia (as cinco cenas deste acto

passam na antologia a ser quatro, pois a cena IV, constituída por um solilóquio de Mísis é

eliminada, ocultando o momento em que a criada vai buscar Lésbia, uma parteira para

Glicério).

Nos vv. 292-296, Pânfilo confessa o seu desejo de união com Glicério, contra a

vontade de seu pai, recordando as palavras da irmã falecida de Glicério, a qual dera, em

tom fraternal, os seus tesoiros, os bens materiais, o bem precioso que é a sua querida irmã,

ao futuro “marido, amigo, tutor e pai”. A honra é invocada no v. 296, mas na antologia o

verbo permitto é substituído por committo, possibilitando, no nosso entender, uma maior

carga afectiva e humana filiada na confiança - “ Se te amei como a um verdadeiro irmão,

se Glicério te considerou sempre (e a ti somente) como o maior dos bens, se Glicério te fez

sempre todas as vontades - a ela te dou para que sejas marido, amigo, tutor, pai. Todos

estes nossos bens eu tos entrego e os confio à tua honra” 592.

… ACERCA DO NAMORO.

590 Cf. pp. 119; 178: Nihilne esse proprium cuiquam! Di uostram fidem! / Summum bonum esse erae putaui hunc Pamphilum, / amicum, amatorem, uirum in quouis loco / paratum; uerum ex eo nunc misera quem capit / laborem […]. 591 Cf. pp. 44, 135: Hoc quid sit?Omnes qui amant grauiter sibi dari uxorem ferunt.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 86: Hoc quid sit?. 592 Cf. pp. 54; 142, 143: Si te in germani fratris dilexi loco / siue haec te solum semper fecit maxumi / seu tibi morigera fuit in rebus omnibus, / te isti uirum do, amicum, tutorem, patrem; /Bona nostra haec tibi permitto et tuae mando fidei.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 88: Bona nostra haec tibi committo, tuae mando fidei.

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

162

Acto III - Na cena III que corresponde à cena I da antologia e ao acto III, no v. 555,

Cremes recorre a um provérbio, i.e., à sabedoria das nações : “arrufos de namorados são

extremos redobrados”593. Na antologia a palavra “integratio” aparece substituída por

“redintegratio”, talvez para dar uma carga mais intensa à palavra.

O QUE SE MANTEVE…

… ACERCA DO COMPROMISSO DE HONRA E RESPEITO PELA PESSOA AMADA

Acto I - Na cena V, que corresponde na antologia à cena IV, Pânfilo reage com ímpeto

e indignação, quando confrontado com a fala de Crísis que lhe apresenta o medo de

Glicério perante o possível abandono dele. As seis interrogações retóricas que constituem

a sua fala comprovam a reacção do apaixonado Pânfilo.

A convivência com ela e o amor respeitoso são denunciados nos vv. 273-275 “Que

confiou o seu coração e toda a sua vida?... Ela que eu amei de todo o meu coração e que

tratei como minha mulher?... Uma alma educada e modelada na honra e no pudor – eu

deixaria que se abastardasse sob a coacção da necessidade?”594.

Nos vv. 277-280 da versão original, o ofendido Pânfilo, considerado por Mísis como

ignauom …ingratum aut inhumanum aut ferum, reage, discordando dela e vincando a sua

palavra de honra, o seu compromisso bem como o apego amoroso sentido pela amada:

“cobarde…ingrato ou desumano ou selvagem que nem a intimidade nem o amor nem a

vergonha me perturbem e persuadam a honrar a palavra dada”595.

...ACERCA DO CASAMENTO COMO DEVER RESULTANTE DA VONTADE E AUTORIDADE

PATERNAL, LOGO COACÇÃO E SACRIFÍCIO

593 Cf. pp. 95; 164: amantium irae amoris integratiost.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 93: Amantium irae , amoris redintegratio est. 594 Cf. pp. 53; 141: quam ego animo egregie caram pro uxore habuerim? / Bene et pudice eius doctum atque eductum sinam / coactum egestate ingenium inmutarier?

Cf. Sylvae variorum … cit p. 88: Qua ego animo egregie cara pro uxore habuerim: /Bene, & pudice eius docyum, atque eductum sinam / coactum egestate ingenium immutarier. 595 Cf. 53; 142: […] ignauom […] / Adeon porro ingratum aut inhumanum aut ferum / ut neque me consuetudo neque amor neque pudor / commoueat neque commoneat ut seruem fidem?

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 88: o texto latino original é mantido.

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163

Acto I - Na cena V, que corresponde na antologia à cena IV, Pânfilo parafraseia, em

tom reprovador, o pai que o quer casar com Filúmena. Nos vv. 254-255, “Tens de casar,

Pânfilo. E é hoje. Prepara-te, vai lá para casa.’ Foi como se me tivesse dito: ‘Vai, depressa

- e enforca-te!’596.

Acto III - Na cena V, que corresponde na antologia à cena III, no v. 620, Pânfilo passa

de “uma situação de perfeita acalmia” para ser lançado “nos braços do matrimónio” sem o

querer597.

… ACERCA DO CASAMENTO COMO SOLUÇÃO CONVENIENTE PARA O HOMEM DE

CARÁCTER (PRECAVIDO E NO CAMINHO DE PERDIÇÃO ESCONDE A AMANTE; NOIVO E NO

CAMINHO DO MATRIMÓNIO ABANDONA AS PAIXÕES)

Acto II - Na cena III, no v. 396, o cuidado do pai Simão que vê no casamento a

salvação, pois, nas palavras de Davo:”teu pai mais depressa te arranjará uma pobretana do

que te deixará enfiar pelos caminhos da perdição”598.

Acto II - Na cena VI, nos vv. 444-446, Davo, a propósito da situação de Pânfilo,

afirma: “e tomou as suas precauções - não fosse a história causar-lhe algum desdouro:

assim convém a um homem de carácter. Agora é preciso aceitar uma esposa: pois ele

afeiçoou a ideia à dita esposa”599.

…ACERCA DO CASAMENTO COMO EMPREENDIMENTO DOS PAIS, COM INTERESSES

COMUNS (CASAMENTO É CURA DOS FILHOS, COLOCADOS, DESTE MODO, NO BOM CAMINHO DA

PIEDADE E DA HONESTIDADE)

Acto III - Na cena III, nos vv. 548-549, Cremes fala com Simão do casamento da sua

filha Filúmena com Pânfilo como de um negócio ou sociedade, sobrepondo-se,

596 Cf. 51; 140: ‘Uxor tibi ducendast, Pamphile, hodie’, inquit, ‘para, / abi domum.’ Id mihi uisust dicere: ‘Abi cito ac suspende te’.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 87 597 Cf. 105; 170: […] ex tranquilíssima re […] in nuptias!

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 94 598 Cf. 72; 151: […] inueniet inopem potius quam te corrumpi sina

Cf. Sylvae variorum … cit., p, 91 599 Cf: pp. 80; 155: […] cauit, ne unquam infamiae / ea res sibi esset, ut uirum fortem decet. / Nunc uxore opus est; animum ad uxorem appulit.

Cf. Sylvae variorum … cit., p.93

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164

explicitamente, a razão ao coração - “peco-te que reflictas no interesse comum, como se

Filúmena fosse tua e eu fosse o pai de Pânfilo”600.

Nos vv. 559-562, Simão, dialogando com Cremes, considera o casamento via de

acesso “à piedade”, “à intimidade da vida” e “à honra” do seu filho “de coração doente”, o

que está apaixonado pela mulher errada - “reconduzir à piedade aquele coração doente,

tratemos de lhe dar uma esposa. Espero que, vinculado pela intimidade da vida e pela

honra do casamento, ele possa depois, Cremes, emergir facilmente daqueles males 601.

Acto V – Na cena III, no v. 891, Pânfilo, constatando amargurado que terá de aceitar o

casamento arranjado pelo pai, apresenta as implicações de tal compromisso - “Casa,

mulher, filhos”602.

Nos vv. 896-897, Pânfilo confessa o seu amor pecador e abre o coração ao pai,

obedecendo-lhe mesmo considerando um sacrifício da sua parte o que lhe ordena o pai:

“Eu amo esta mulher, confesso… Se este amor é um erro, confesso-o também… Nas tuas

mãos, meu pai, me entrego…Impõe-me o sacrifício que entenderes…ordena”603.

…ACERCA DA AMBIVALÊNCIA DO AMOR: DOENÇA E FORMA DE IMORTALIDADE

Acto II - Na cena I, no v. 305, Bírria, respondendo a Carino a modo de sentença

estóica, remete para a sensatez e moderação que deve existir no desejo do apaixonado,

para que se possa viver bem no amor: “Quando não se pode ter aquilo que se quer… mais

vale querer aquilo que se pode”604.

No v. 309, Carino, amigo de Pânfilo e apaixonado por Filúmena, considera-se doente

de amor, e nem os conselhos que lhe dá Bírria servem de remédio - “É fácil (sucede com

todos), quando se tem saúde, dar conselhos aos doentes605.

600 Cf. pp. 94; 164: […] id oro te in commune ut consulas, / quasi illa tua sit Pamphilique ego sim pater.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 93. 601 Cf. pp. 95; 164, 165: reducunt animum aegrotum ad misericordiam, / uxorem demus. Spero consuetudine et / coniugio liberali deuinctum, Chreme, / dein facile ex illis sese emersurum malis.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 93. 602 Cf. pp. 145; 192: Domus, uxor, liberi […].

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 99. 603 Cf. p. 146; 193: Ego me amare hanc fateor; si id peccare est, fateor id quoque. / Tibi, pater, me dedo; quiduis oneris inpone, impera.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 99. 604 Cf. pp. 57; 144: […] quoniam non potest id fieri quod uis , id uelis quod possit.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 89. 605 Cf. pp. 57; 144: Facile omnes cum ualemus recta consilia aegrotis damus.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 89.

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165

Acto V - Na cena V, no v. 960, Pânfilo diz que alcançou a imortalidade ao casar com

Glicério, entretanto reconhecida por Cremes como sua filha e, consequentemente, cidadã

do país: “É que alcancei a imortalidade”606.

…ACERCA DAS MULHERES TENTADORAS E ENGANADORAS COM AS SUAS ARTIMANHAS

Acto I - Na cena I, no v. 105, Sósia faz um comentário de alívio e alegria sobre a morte

de Crísis da qual tinha medo devido ao reconhecido poder manipulador de mulher: “Agora

é que me encheste as medidas. / Livra!... Estava com medo dessa Crísis”607.

Nos vv. 125-126, Simão conta a Sósia o episódio do funeral, em que a dolorosa

Glicério, queria também morrer, tendo sido impedida por Pânfilo. O pai deste interpreta as

lágrimas e compaixão como encenação da falsidade feminina “Pois é, pois é…Aqui é que

bate o ponto!... Daí aquelas lágrimas, daí aquela compaixão!...”608.

Acto III - Na cena III, nos vv. 556-559, Simão, estrategicamente, adverte Cremes para

agirem rapidamente antes que “as lágrimas fingidas” e os “enganos” dessa gente de má

vida tomem a dianteira: “enquanto há maré de feição e enquanto o capricho do moço está

travado pelas ofensas. Antes que as patifarias desta gente e as suas lágrimas fingidas

consigam, à força de enganos, reconduzir à piedade aquele coração doente, tratemos de lhe

dar uma esposa”609.

1.1.2. Amor Paternal (autoridade- patria potestas) e Filial (respeito)

Se prestarmos atenção nas palavras que o antologista colocou no resumo do

argumento, Periocha, reparamos que é na relação entre pai, soliciti patris, e filho,

606 Cf. pp. 160; 200: […] nam mihi immmortalitas. Cf. Sylvae variorum … cit., p. 100.

607 Cf. pp. 35; 130: Beasti. Ei! Metui a Chryside. Cf. Sylvae variorum … cit., p. 84.

608 Cf. pp. 36; 131: […] Attat hoc illud esta, / hinc illae lacrumae, haec illast misericordia! Cf. Sylvae variorum … cit., p.85.

609 Cf. p. 95; 164: […] dum tempus datur / dumque eius lubido occlusast contumeliis; / priusquam harum scelera et lacrumae confictae dolis / reducunt animum aegrotum ad misericordiam.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 93.

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166

Pamphilium filium a uitiosa peccandi, que se centra a acção. Tópico a que atende com

insistência Terêncio nas suas peças, como já referenciámos, e válido para a educação dos

colégios jesuítas. Desta forma, será previsível no texto do antologista que as falas se

apresentem, ipsis verbis, as do original latino, passando a destacar algumas que achamos

mais elucidativas.

O QUE SE MANTEVE…

… ACERCA DO CONFLITO DE GERAÇÕES - EVIDÊNCIA DA AUTORIDADE PATERNAL E DA

EMANCIPAÇÃO FILIAL

Acto I - Na cena I, nos vv. 151-153, Simão conversando com Sósia imita as palavras

do filho, jovem que se quer emancipar, quando este for confrontado com o costume a

seguir, alieno more, e a sua maneira de agir, meo modo. Resistência filial em se submeter

ao jugo do casamento arranjado pelo pai - “Tu mesmo, pai, é que fixaste um limite para

esta situação. Está próximo o momento em que terei de viver à moda dos outros; neste

entretanto, deixa-me viver agora à minha maneira”610.

Acto I - Na cena V, a que corresponde na antologia a cena IV, nos vv. 261-263, Pânfilo

sente-se dividido entre o amor a Glicério e o respeito a um pai bondoso e pouco autoritário

- “O amor, a comiseração pela sorte desta rapariga, a angústia do casamento… e também o

respeito devido a meu pai, que com tanta brandura de coração suportou até agora tudo

quanto ao meu apeteceu fazer”611.

Acto V - Na cena II, nos vv. 869-870, Simão, desgostoso com a insistência do filho em

casar com Glicério, rejeitando o casamento seguro com Filúmena, lamenta-se à frente de

Cremes, também ele pai, denunciando alguma ingratidão filial -“Oh Cremes, então este é

que é o afecto de um filho!... Não tens pena de mim?... Sofrer tantos amargores por um

filho como este!...”612.

610 Cf. pp. 39; 132: Tute ipse his rebus finem praescripsti, pater; / prope adest cum alieno more uiuendumst mihi; / sine nunc meo me uiuere interea modo.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 85. 611 Cf. pp. 51, 52; Amor, misericordia huius, nuptiarum sollicitatio, / tum patris pudor, qui me tam leni passus est animo usque adhuc / quae meo cumque animo libitumst facere.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 88. 612 Cf. pp. 143; 191: O Chreme, pietatem gnati! Nonne te miseret mei? / Tantum laborem capere ob talem filium!

Cf. Sylvae variorum … cit., p.99.

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167

1.1.3 - Amizade

Entre os criados e os patrões emerge uma relação de cumplicidade, confidência e

lealdade. O recurso às sentenças, em forma de conselho, subsiste inalterado na antologia

humanista jesuítica.

O QUE SE MANTEVE…

Acto I - Na cena I, nos vv.67-68, o liberto Sósia diz a Simão: “pela sabedoria pautava a

sua vida. Nos tempos que correm, a condescendência faz amigos; a sinceridade,

ressentimentos”613. Nesta conversa de amigos, nos vv. 60-61, Sósia, segundo o princípio

estóico, afirma: “Por mim entendo que na vida, a regra que mais nos aproveita é evitar os

excessos”614.

Acto I - Na cena III, nos vv. 216-218, Davo comenta a relação entre Pânfilo e Glicério

“:sei lá se é mulher ou amante do rapaz - está grávida de Pânfilo. E vale a pena ouvir o

descaramento desta gente (aquilo é tenção de amalucados, não é de amigados!)”615.

Acto IV - Na cena IV, correspondendo na antologia à cena II, nos vv. 794-795, o

mesmo Davo, conversando com Mísis, em tom pedagógico - “Achas que é pouca a

diferença entre fazer tudo por instinto, como a natureza o pede, ou por um propósito

deliberado?...”616.

613 Cf. pp. 32; 128: Sapienter uitam instituit; namque hoc tempore / obsequium amicos, ueritas odium parit. Cf. Sylvae variorum … cit., p. 84.

614 Cf. pp. 32; 128: nam id arbitror / adprime in uita esse utile, ut nequid nimis Cf. Sylvae variorum … cit., p. 84.

615 Cf. pp. 29, 30; 137: si ista uxor siue amicast, grauida e Pamphilost. / audire eorum est operae pretium audaciam; / nam inceptiost amentium, haud amantium.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 87. 616 Cf.. pp. 130; 184: Paullum interesse censes ex animo omnia, / ut fert natura, facias an de industria?

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 97.

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168

1.2. EUNUCHUS (161 A.C.) EUNUCO

RESUMO DO ARGUMENTO (Periocha) da antologia da Companhia

“O jovem Fédria por cansaço de uma vida de vícios retira-se para o campo. Um seu

irmão, após chegada do pai à cidade, casa-se. Um soldado jactancioso é escarnecido”617.

ACTOS E CENAS

Seguindo os canônes clássicos, a antologia manteve o prólogo e os cinco actos, no

entanto as quinze cenas eliminadas, como iremos comprovar, não estariam em sintonia

com o periocha do antologista. Mantêm-se apenas as que contribuem para esse argumento

alterado, onde as acções masculinas imperam, dando-nos a entender que a saída de Fédria

para o campo não resulta do pedido que Taís lhe fez no texto original de Terêncio, mas

sim do cansaço ou desgaste urbanos. Além disso, realça-se, deste modo, um topos

clássico: o elogio da vida simples do campo. Neste contexto, apropriando-nos da sabedoria

popular, podíamos adaptar aqui o ditado o que não é visto [e ouvido] não é desejado!

PERSONAGENS

Mantêm-se todas as personagens: Fédria, jovem amante de Taís que é uma cortesã;

Quérea, jovem irmão de Fédria; os jovens Cremes e Antifão; o velho, Démea ou Laques,

pai de Fédria e Quérea; Doro, o eunuco; Trasão, soldado, rival de Fédria, e o seu parasita,

Gnatão e seu escravo Sanga; as criadas de Taís, Pítias e Dórias; a ama Sófrona e o escravo

de Fédria, Parmenão.

617 AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES, Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas… cit., p. 228: Phaedria adolescens taedio vitae vitiosae in agrum recedit. Eius frater, postquam pater in urbem venit, uxorem ducit. Miles iactabundus illuditur.

Na obra original, C. Sulpici Apollinaris Periocha, diz que uma rapariga era, erradamente, irmã de Taís. Trasão, um soldado que ignorava esta circunstância, dá-lha de presente. Ela era cidadã de Ática. O amante Fédria manda entregar à mesma (Taís) um eunuco que comprara e ele (Fédria) vai para o campo, o que lhe fora pedido (pela amante), para ceder o seu lugar a Trasão (a fim de resolver a situação). Quérea, irmão de Fédria, como se apaixonasse pela jovem ofertada a Tais, disfarça-se de eunuco (persuadido por Parmenão), entra na casa e viola a rapariga. Mas um cidadão de Ática reconhecido por seu irmão, casa-a com quem a desonrou. Trasão procura demover Fédria.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

169

1.2.1. Amor Paixão, amor de perdição (dimensão individualista)

O QUE SE OMITIU…

…ACERCA DA MANIFESTAÇÃO DO AMOR PAIXÃO DE FÉDRIA POR TAÍS, MULHER DA “MÁ

VIDA”, POR ISSO CHEIA DE ESTRATÉGIAS FINGIDAS E ENGANOSAS

As cenas I e II do acto I da peça de Terêncio são eliminadas na íntegra da antologia da

Companhia. Será o acto II e a cena I que vão iniciar o texto latino que consta da antologia,

assumindo a designação de acto I. Sendo assim, iremos ver de forma progressiva, ao longo

da análise, que actos e cenas foram cortados e alterados. A razão, a priori, já a sabemos.

Acto I - Na cena I, nos vv. 53-55; 59-61; 67- 69, Parmenão, criado e confidente de

Fédria, diz-lhe que a paixão é um estado de perdição, em que a mulher é vencedora e o

homem o vencido, sendo motivo de troça por parte daquela. Fala deste estado instável,

apontando os vícios do amor (“as afrontas, as suspeitas, as inimizades, as tréguas, a guerra,

e de novo a paz.”), num plano em que a manha feminina encaminha para o suplício

masculino - “virás espontaneamente para junto dela, sem se ter feito a paz, dando a

entender que estás apaixonado e que não consegues resistir,e então não há nada a fazer,

estás perdido! Ela vai troçar de ti, quando se aperceber que estás vencido […] No amor

encontram-se todos estes vícios: as afrontas, as suspeitas, as inimizades, as tréguas, a

guerra, e de novo a paz […] Todas estas palavras podes crer, ela conseguirá aniquilá-las

apenas com uma lagrimazinha fingida que, com custo, ela terá arrancado, à força de

miseramente esfregar os olhos; e depois será a vez de ela te acusar, e tu vais-te oferecer de

livre vontade para o castigo” 618.

Nos vv. 70-73, Fédria vem confirmar as palavras do seu criado, quando confessa o seu

estado de paixão e desaire miserum sentio, amore ardeo, denunciando, por outro lado, a

manha, illam scelestam da sua amada.- “Oh, que acção indigna! Agora é que eu percebo

que ela é mais manhosa e que eu sou um desgraçado. Estou farto, mas estou loucamente

618 pp. 23, 24; 226, 227: infecta pace ultro ad eam uenies indicans / te amare et ferre non posse, actumst,ilicet, / peristi; eludet ubi te uictum senserit. / […] In amore haec omnia insunt uitia: iniuriae / suspiciones, inimicitiae, indutiae; / bellum, pax rursum: […] Haec uerba una mehercle falsa lacrimula / quam oculos terendo misere uix ui expresserit / restinguet, et te ultro accusabit, et dabis / ultro supplicium.

Sobre este assunto, julgamos conveniente relembrar a décima segunda regra Dos Exercícios Espirituais, onde INÁCIO DE LOIOLA adverte o homem para o perigo que corre se subjugado por uma mulher. Vide supra, pp. 137, 138, nota 510.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

170

apaixonado; e, cheio de vida, dou-me conta de que me estou a destruir, e não sei o que

fazer”619.

Acto I - Na Cena II, nos vv. 91-93, o jovem Fédria declara o seu amor sofrido e

inseguro, pois sabe que Taís terá de falar com o soldado Trasão para acabar qualquer

vestígio de relação afectiva entre os dois - “Oh, Taís, Taís, quem me dera que tu me

amasses tanto como eu te amo e que nos acontecesse a mesma coisa, isto é, ou que tu

sofresses com isto tanto como eu sofro”. Anseia pela reciprocidade deste sentimento por

parte da amada. Esta, nos vv. 95-97, jura-lhe sinceramente que o ama da mesma forma -

“Não te atormentes, suplico-te, ó homem da minha vida, meu querido Fédria. Juro-te que

agi daquela forma não porque eu ame ou queira mais a alguém do que a ti, mas é que era

necessário; tinha de se fazer”620.

Nos vv. 119-120, ficamos a saber pela própria Taís de forma clara e precisa - “Eu vim

para aqui com um estrangeiro, o único homem com quem mantinha, então, relações e que

me deixou tudo o que agora tenho” 621.

Nos vv. 195-196; o apaixonado Fédria, depois de concordar em se ausentar dois dias

para o campo a pedido de Tais, que iria resolver as coisas com o homem que a sustentava

(Trasão), continua a demonstrar a sua dependência amorosa e consequente insegurança.

Pede a Taís “que estejas à minha espera, que penses em mim, que estejas todinha comigo.

Enfim, procura ser a minha alma, visto que eu sou a tua”622.

…ACERCA DO AMOR À PRIMEIRA VISTA

ActoII - Na cena III, que na antologia aparece eliminada na íntegra, nos vv. 296-297,

Quérea está ansioso em encontrar Pânfila, a rapariga (presente de Trasão a Taís) por quem

se apaixonara à primeira vista. Confessa a Parmesão o seu sentir - “Ai! Cara linda! A

partir deste momento apago do meu espírito todas as mulheres; estou farto destas belezas

de todos os dias” 623.

619 pp. 24; 227: O indignum facinus! Nunc ego / et illam scelestam esse et me miserum sentio; / et taedet et amore ardeo, et prudens sciens, / uiuos uidensque pereo, nec quid agam scio. 620 pp. 26, 27; 229: O Thais, Thais, utinam esset mihi / pars aequa amoris tecum ac pariter fieret, / ut aut hoc tibi doleret itidem ut mihi dolet; Ne crucia te, obsecro, anime mi, <mi> Phaedria. / Non pol quo quemquam plus amem aut plus diligam / eo feci; sed ita erat res, faciundum fuit. 621 pp. 28; 230: Ego cum illo, quocum tum uno rem habebam hospite, / abii huc: qui mihi reliquit haec quae habeo omnia. (A expressão latina: rem habere cum aliquo é usada quando se quer dizer eufemisticamente que uma pessoa mantém relações sexuais com alguém). 622 pp. 33; 234: me speres , me te oblectes,mecum tota sis; / meus fac sis postremo animus, quando ego sum tuos. 623 pp. 44; 243: O faciem pulchram! Deleo omnis dehinc ex animo mulieres: / taedet cotidianarum harum formarum.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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171

…ACERCA DAS MULHERES, DOS SEUS ARTIFÍCIOS E ENGANOS

Acto II - Na cena III, os vv. 313-317 revelam, através de Quérea, que são vários os

estratagemas maternos, para que as filhas arranjem namorados - “Não é uma rapariga igual

às daqui, que as mães procuram trazer com os ombros caídos, com o peito apertado, para

serem elegantes. Se alguma é um pouco cheinha, dizem que é um pote e reduzem-lhe a

comida. Ainda que a sua constituição física seja boa, transformam-nas, através de um

regime, em autênticos palitos. E é assim que arranjam namorados!”624.

No v. 385, com o intuito de convencer Parmesão a ser seu cúmplice para entrar em

casa de Taís, disfarçado de Eunuco, substituindo o verdadeiro, Quérea apresenta como

argumento de supremacia e vingança masculinas - “pagar agora da mesma moeda,

enganando-as assim como elas nos enganam?”625.

Acto IV – Na cena VII, que na antologia corresponde ao acto IIII, cena I, os vv. 812-

813 aparecem cortados. Assim, o v. 791 é o último que consta na antologia. Deste modo,

fica-se privado da sabedoria que Gnatão afirma ter sobre as mulheres - “eu conheço a

psicologia das mulheres: elas não querem quando tu queres; quando não queres, elas

desejam logo”626.

…ACERCA DA BONDADE, SENSIBILIDADE, DIGNIDADE E PODER DA CORTESÃ TAÍS

Acto III - As cenas I, II e III são eliminadas na íntegra.

A cena II, no v. 505,mostra-nos uma Tais dedicada e sensível, quando adverte a criada

Pítias, para cuidar bem de Pânfila: “Ah! Cuida bem desta rapariga” 627.

Acto IV - As cenas I, II ,III e VI são eliminadas na íntegra.

Na Cena VI, no v. 747, perante a incredulidade e o espanto de Cremes, quando Taís

lhe diz que a irmã dele “foi educada duma maneira que é digna de ti e dela”628, notamos o

preconceito associado a Taís e sua casa.

Acto V - As cenas I, II, III, VII e IX são eliminadas na íntegra.

624 pp. 45, 46; 244: Haud similis uirgo est uirginum nostrarum, quas matres student / demissis umeris esse,uincto pectore, ut gracilae sient. / Si quae est habitior Paulo, pugilem esse aiunt, deducunt cibum; / tametsi Bona est natura, reddunt curatura iunceas; / itaque ergo amantur. 625 pp. 55; 250: nunc referam gratiam atque eas itidem fallam ut ab illis fallimur? 626 pp. 108; 288: Immo certe; noui ingenium mulierum: / nolunt ubi nolis cupiunt ultro.

Cf. Sylvae variorum … cit. p. 106 627 pp. 69; 258: Ehem! Curate istam diligenter uirginem. 628 pp. 98; 281: Educta ita uti teque illaque dignumst.

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172

ma mulher631.

Na cena II, nos vv. 880-881, Taís, em conversa com Quérea que lhe diz ter violado

Pânfila não por ultraje mas por amor, mostra a sua sensibilidade ao amor e o seu papel de

benfeitora - “Eu não tenho uma natureza assim tão desumana, Quérea, nem sou tão

inexperiente que não saiba o que pode o amor”. Nos vv. 886-888, Quérea suplica-lhe

auxílio nomeando-a sua protectora no casamento com Pânfila - “Confio e entrego-me à tua

protecção. Tomo-te como minha protectora, Taís; suplico-te, é que eu morro, se não casar

com ela”629.

Na cena IV, que corresponde na antologia à cena II do acto IIII, os vv. 923-944, que

iniciam o acto, são eliminados, já que correspondem às falas de Parmenão e Pítias. Em

monólogo, o assunto é a descrição do retrato negativo de Taís, a meretrix mala630,

segundo o tom tradicional da comédia, Na antologia, o começo do acto, depois de

eliminados estes versos, corresponde a palavras de Parmenão que demonstram a desgraça

do rapaz, neste caso Quérea, que se perde por u

Na cena V, a que corresponde na antologia a cena II do acto II, a partir do v. 563 até ao

v. 668, há um corte, que faz desaparecer o acto IV, cenas I, II e III, eliminando desta forma

a conversa de Quérea com seu amigo Antifão. Deixa de aparecer no texto adaptado o

início da narração que aquele iria fazer a Antifão sobre o que lhe acontecera: apaixonara-

se pela rapariga que morava na casa de Taís, a mulher amada de seu irmão Fédria632.

Com este corte e outros já expressos, parece-nos óbvio que o antologista tivesse

omitido, no acto V, na cena V, os vv. 985-995, onde Parmenão põe o velho pai dos dois

jovens apaixonados a par do acontecido com Quérea - “apaixonado por uma tocadora de

lira” e preso “como adúltero”, cabendo ao criado a conclusão:“Vê só o atrevimento das

pegas”633.

Nos vv. 584-589, Quérea continua a contar ao seu amigo a sua saga na casa de Taís,

onde entrara disfarçado de eunuco para poder estar com a mulher por quem se apaixonara,

629 Cf. pp. 117; 293, 294: Non adeo inhumano ingenio sum, Chaerea, / neque ita inperita ut quid amor ualeat nesciam; ego me tuae commendo et committo fidei, / te mihi patronam capio, Thais; te obsecro, / emoriar si non hanc uxorem duxero. 630 Cf. pp. 122; 296-298.

Devido à dimensão dos versos apontados, passamos a citar o que julgamos mais apropriado para comprovarmos o que pretendemos: (ver a sua imundície, a sua sujidade, a sua miséria, como elas são repugnantes quando sozinhas em casa, e, ávidas de comida, como elas devoram o pão negro molhado no molho da véspera… Conhecer todas estas coisas é a salvação dos rapazinhos.”); v. 927, meretrice auara (pega ambiciosa), vv. 937-940 harum uidere inluuiem, sordes, inopiam, / quam inhonestae solae sint domi atque auidae cibi, /quopacto ex iure hesterno panem atrum uorent, / nosse omnia haecsalus est adulescentulis. 631 Cf. Sylvae variorum … cit., p. 106. 632 Cf. pp. 74-86; 263-273.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 105. 633 Cf. pp. 128-129; 301- 302: quamdam fidicinam (v. 985); pro moecho (v. 993); Audaciam meretricum specta (v.994).

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 107. Na antologia, este acto e cena correspondem ao acto V, cena I.

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Pânfila. Tal como Júpiter, também ele no jogo do amor recorre ao disfarce, narrando ao

seu interlocutor como tudo se passou, no momento em que estava no quarto634.

Na cena VII, no v. 1026, o soldado Trasão, respondendo ao seu parasita, Gnatão,

revela a sua entrega incondicional a Taís, mulher poderosa, embora esta ame e vá casar

com Fédria - “Eu? Entregar-me a Taís e fazer o que ela mandar”635.

Na cena IX, no v. 1051, Quérea louva Taís ao seu irmão Fédria, destacando que

“Ninguém é mais digno de ser amado, irmão, do que a tua querida Taís; tão benfeitora é

para toda a nossa família”636. No v. 1055, Trasão, vendo que já não há nenhuma hipótese

de ficar com Taís, em desespero ainda pede a ajuda final ao seu esperto parasita, Gnatão,

para “por meio de preces ou de dinheiro, ficar ligado, de alguma forma, a Taís”637.

…ACERCA DA VERDADEIRA RAZÃO PORQUE FÉDRIA SE RETIROU DOIS DIAS PARA O

CAMPO: PEDIDO DE TAÍS, A MERETRIZ

Acto IV - As cenas I, II ,III e VI são eliminadas na íntegra.

Na cena II, nos vv. 636-641, Fédria, em monólogo, põe o espectador a par do que se

passou nesse retiro forçado, demonstrando a sua inquietude e inseguranças advindas do

pensamento constante na sua amada - a sua paixão638. Na antologia, não ficamos a saber

que foi Taís a autora deste pedido, cumprido pelo obediente Fédria.

…ACERCA DO CONCEITO DE EUNUCO

Acto IV- Na cena III, no v. 665, Pítias, depois de ter contado a Fédria o crime operado

por seu irmão (pretenso eunuco), expressa a sua admiração perante tal facto com Dórias,

634 Cf. pp. 76; 274: “onde estava pintado o modo como dizem que, outrora, Júpiter enviou para o seio de Dánae uma chuva de ouro. Também eu me pus a olhar para ele; e como já outrora o deus jogara semelhante jogo, muito mais se alegrava o meu espírito com a ideia de que um deus se transformou em homem e veio clandestinamente pelo implúvio para telhas alheias para seduzir uma mulher”; ibi inerat pictura haec, Iouem / quo pacto Danaae misisse aiunt quondam in gremium imbrem aureum. / Egomet quoque id spectare coepi, et quia consimilem luserat / iam olim ille ludum, inpendio magis animus gaudebat mihi / deum sese in hominem conuertisse atque in alienas tegulas / uenisse clanculum per inpluuium fucum factum mulieri. 635 Cf. pp. 132; 305: Egone? Ut Thaidi me dedam et faciam quod iubeat. 636 Cf. pp. 136; 308: Nihil est Thaide hac, frater, tua / dignius quod ametur: ita nostrae omni est fautrix familiae. 637 Cf. pp. 136; 308: precibus pretio ut haeream in parte aliqua tandem apud Thaidem. 638 Cf. 82; 270: “Hem! Vou ficar aqui dois dias sozinho, sem ela ? – Então e depois? Não é nada. – Como nada? Se não tenho possibilidade de lhe tocar, não poderei, ao menos, vê-la? Se aquilo me não é possível, isto pelo menos será. Amar, ainda que de longe, já é alguma coisa.” ; […] Hem! Biduom hic / manendumst soli sine illa? – Quid tum postea? / Nihil est. – Quid nihil ? Si non tangendi copiast, / eho ne uidendi quidem erit ? Si illud non licet, / saltem hoc licebit. Certe extrema linea / amare haud nihil est.

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174

pois “Caramba, eu tinha ouvido dizer que eles eram grandes apreciadores de mulheres,

mas que eram impotentes”639.

O QUE SE MANTEVE…

…ACERCA DE UMA VIOLAÇÃO QUE NA ANTOLOGIA NÃO NOS É CONTADA POR QUÉREA

Acto III - Na Cena V, que na antologia corresponde ao acto II, cena II, no v. 560,

Quérea manifesta a sua satisfação e alegria a seu amigo Antifão, quando este o questiona

após ter saído de casa de Taís, onde violara, por amor, Pânfila - “Ó dia feliz! Viva,

amigo!”640.

…ACERCA DA ASSOCIAÇÃO CLÁSSICA ENTRE O AMOR E O VINHO

Acto IV - Na cena V, que na antologia corresponde ao acto III, cena III, no v. 732,

encerrando a cena na antologia, aparece em jeito de sentença herdada da Antiguidade

Clássica - Cícero, De Natura Deorum, II, 23, 60 - os coadjuvantes do amor, a comida e a

bebida: “Sem Ceres e sem Liber, Vénus é fria”641.

…ACERCA DA APOLOGIA DA SAUDÁVEL VIDA NO CAMPO

Acto V - Na cena V, que na antologia corresponde ao acto V, cena I, nos vv. 971-973,

o velho, pai de Quérea e Fédria, louva a proximidade com o campo, donde regressa do

trabalho: “Ora aqui está a vantagem que tiro de ter próximo o campo: nunca me aborreço

nem do campo nem da cidade. Quando começo a ficar farto, mudo de lugar” 642.

639 Cf. pp. 86; 272: At pol ego amatores audieram mulierum esse eos maxumos. 640 Cf. pp. 73; 263: O festus dies hominis! Amice, salue!

Cf. Sylvae variorum … cit., p.105. 641 Cf. 96; 279: Sine Cerere et Libero friget Venus.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 106. 642 Cf. 126; 300: Ex meo propinquo rure hoc capio commodi: / neque agri neque urbis odium me umquam percipit. / Ubi satias coepit fieri commuto locum.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 107.

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…ACERCA DA MULHER CORTESÃ

Acto V - Na cena V, que na antologia corresponde ao acto V, cena I, nos vv. 999-1001,

Parmenão demonstra o seu gáudio “pelo facto de, por minha causa, ir acontecer algo de

mau a estas fulanas; é que já faz tempo que o velho andava à procura de algum pretexto

para lhes dar uma lição; agora encontrou-o”643. Este trecho foi recuperado para a antologia

da Companhia, tendo sido eliminadas as falas anteriores entre o velho pai e Parmenão, em

que este o informava da situação de “refém” que o filho tinha na casa de Taís.

1.2.2. Amor Paternal

O QUE SE MANTEVE…

…ACERCA DA BONDADE PATERNAL - PATER BENIGNUS

Acto V – Na cena VIII, a que correspondem na antologia acto V, cena III, nos vv.1046-

1049, Quérea, feliz pelo seu casamento e por tanta felicidade, louva a bondade do pai e a

fortuna/destino - “ou será que devo louvar a fortuna que foi quem dirigiu e quem encerrou

tão oportunamente num só dia tantas e tão importantes coisas? Ou ainda a bondade e a

condescendência do meu pai? Ó Júpiter, por favor, conserva-nos estes bens!”644.

643 Cf: 129; 302: propter me hisce aliquid esse euenturum Mali; / nam iam diu aliquam causam quaerebat senex / quam ob rem insigne aliquid faceret eis; nunc repperit.

Cf. Sylvae variorum … cit., p.107. 644 Cf. pp. 135; 307: incipere, an fortunam conlaudem, quae gubernatrix fuit, / quae tot res tantas tam opportune in unum conclusit diem, / na mei patris festiuitatem et facilitatem? O Iuppiter, / serua, obsecro, haec Bona nobis!

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 109.

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176

1.2.3. -Amizade

Gnatão, o amigo bajulador e interesseiro, servirá de referência a Jerónimo Osório,

tratadista de pedagogia política, usando este a expressão “Gnatones Terentiani” como

sinónimo de aduladores. Este papel era desempenhado por certas entidades cortesãs que,

pelos seus interesses pessoais - ambição e cobiça-, pervertiam com cinismo e bajulação

(obsequium/adsentatio) o ideal de uera amicitia, de fides et gratia apregoados por

Terêncio, Cícero e adoptados por todos os humanistas renascentistas, como veremos, a

posteriori, na análise da peça de Luís da Cruz, Pródigo645.

645 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Gratidão e Lealdade…” cit., pp. 252, 253.

Sobre os Gnatões Terencianos, vide infra, p. 225.

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1.3. HEAUTONTIMORUMENOS (163 A.C ) O HOMEM QUE SE PUNIU A SI MESMO

RESUMO DO ARGUMENTO (Periocha) da antologia da Companhia

“Menedemo, no campo, atormenta-se, por ter sido a causa da partida do filho Clínia

para o serviço militar. Com o regresso do filho, o pai regozija-se; e, concluído o

casamento, a comédia tem um remate feliz”646.

ACTOS E CENAS

Seguindo os canônes clássicos, a antologia manteve o prólogo e os cinco actos, no

entanto as doze cenas eliminadas, como veremos, não se ajustavam ao periocha do

antologista jesuíta que queria dar destaque à relação pai/filho. São desprezados por

completo diálogos relacionados com a trama amorosa de jovens enamorados. As paixões

dos dois jovens vizinhos, Clínia e Clitifão, por mulheres estrangeiras, pobres, traiçoeiras e

gananciosas, colocava-os, na visão paterna, em situação de risco, já que poderiam perder o

discernimento e os bens paternos. Mesmo o diálogo do casal, Cremes e Sóstrata, é

eliminado. Aliás as relações desta família não interessavam ao argumento da antologia

Aqui, mantêm-se apenas as cenas que contribuem para esse argumento idóneo à educação

dos alunos, onde impera a compaixão relacionada com a personagem principal, o pai

Menedemo, tão ilustrativa do espírito cristão do auto-penitente, que se “auto-flagela”,

assumindo o mea culpa num amor de pai encarado pelo próprio progenitor como amparo,

conforto, abastança, linhagem e integridade da pátria. Os pais, mais experientes e

sabedores das coisas da vida, queriam escolher o que na sua óptica era o bem e o melhor

para os seus filhos. Estes nem sempre estavam receptivos às ordens daqueles, que lutavam

por os afastar das paixões que entendiam ser perdição; porém os (des)mandos do coração

dos jovens eram mais incisivos que as sábias advertências dos velhos pais - o eterno

conflito de gerações.

646 AGOSTINHO DE JESUS DOMINGUES, Os Clássicos Latinos nas Antologias Escolares dos Jesuítas nos Primeiros …cit., p. 234: In agro cruciatur Menedemus, quod Cliniam filium abire in militiam compulerit. Adventu filii, laetatur pater: et initis nuptiis fabula feliciter absolvitur .

Na obra original, C. Sulpici Apollinaris Periocha, diz que o pai severo impeliu o descendente Clínia, apaixonado por Antífila, a partir para a guerra e arrependido atormenta-se a si próprio por esta sua conduta. Mais tarde, quando regressa (Clínia), desvia-se da casa do pai para ir para casa de Clitifão, este amava a cortesã Báquis. Como Clínia mandasse chamar a sua desejada Antífila, aparece Báquis como amiga/amada de Clínia e traz consigo Antífila, vestida de escrava; Clitifão enganaria o seu pai com este facto; este (Clitifão), com as artimanhas de Siro, tira ao velho (pai) dez minas para a sua cortesã. Antífila é reconhecida como irmã de Clitifão. Clínia casa com ela e Clitifão com outra esposa (não a cortesã).

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PERSONAGENS

Mantêm-se os velhos Cremes, pai de Clitifão, e Menedemo, pai de Clínia; os dois

jovens, Clitifão , filho de Cremes e amante de Báquis, e Clínia, filho de Menedemo e

amante de Antífila; Siro, escravo de Clitifão; e a matrona Sóstrata, mulher de Cremes e

mãe de Clitifão.

São eliminadas três mulheres: Antífila, a jovem namorada de Clínia; Báquis, a cortesã

amante de Clitifão, Frígia, a escrava de Báquis; a Ama de Sóstrata, escrava Cantara (?);

Dromão, escravo de Menedemo, também é eliminado.

1.3.1.- Amor Paixão (dimensão individualista) / Amor matrimonial-conjugal

(dimensão comunitária)

O QUE SE OMITIU…

…ACERCA DE INTRIGAS E ENREDOS AMOROSOS, DESENCAMINHADORES DOS JOVENS

FILHOS. ESSES MALES AFASTAM DA OBEDIÊNCIA AOS DESEJOS E ÀS ORDENS PATERNAS,

APROXIMAM DOS DESMANDOS DE SENSUALIDADE E DA MÁ FORMAÇÃO DE CARÁCTER.

No acto I, a cena II da peça de Terêncio é eliminada na íntegra da antologia. Acontece

o mesmo às cenas II, III e IV do acto II. É significativa a redução das cenas originais no

texto adaptado pelo antologista, quando adicionamos ainda a eliminação das cenas II e III

do acto III e das cenas I, II, IV, V e VI do acto IV.

Acto I - Na cena II, Cremes, imagem do paterfamilias romano - à luz do mos maiorum

- é o pregador de serviço com as suas lições de moral sobre comportamento e verdadeiro

querer filial. Nos vv.194-196, o mesmo, dialogando com seu filho Clitifão sobre Clínia,

afirma que a prosperidade e a felicidade (Bona) encontram-se nos “Pais, pátria florescente,

amigos, família, parentes, riqueza…Verdade seja que estas coisas o são consoante o

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espírito de quem as possui. Para quem as sabe usar, são um bem; para quem as usa com

desacerto, um mal”647.

Acto II - Na cena II, nos vv. 233-234, movido pelo pensamento de que a sua amada

Antífila o tenha colocado “longe da vista e do coração”, revela a Clitifão a sua inquietação

e angústia nas coisas do amor, expondo as possíveis causas para a perda e perdição da

amada - “a ocasião, o lugar, a idade, a mãe depravada que a tem em seu poder e que só no

dinheiro acha doçura”648.

Na cena IV, após ter ouvido e visto Antífila, que, em conversa com Báquis, diz ter-se

empenhado “sempre a fundo em acomodar a felicidade dele à minha felicidade.” (vv. 396-

397), no v. 398, Clínia confessa o seu grande amor - “Ah, é por isso, minha querida

Antífila, que só tu me fazes regressar à pátria”649.

…ACERCA DAS MULHERES AMADAS, ANTÍFILA E BÁQUIS - PAR FEMININO DE CONDUTA

OPOSTA -, MAS AMBAS VALORIZADAS PELO “FEMINISMO DE TERÊNCIO”

Acto II - Na cena I, desaparecidos da antologia os versos a partir do v. 223 até ao final,

v. 229, resta-nos o início do monólogo de Clitifão que denuncia o relacionamento que

mantém com o seu pai. (como veremos mais abaixo).

Nos versos eliminados, Clitifão compara as duas mulheres, a de Clínia é “uma cachopa

educada com honestidade e recato, ignorante das artes das cortesãs. A minha é mandona,

provocante, altaneira, pródiga, com a mania das grandezas.”. A reprodução das palavras da

amante no discurso do submisso Clitifão revelam-nos a mulher dominadora, que não é

para brincadeiras: “são as palavras da minha amante: ‘Dá-me isto’ e ‘Traz-me aquilo” […]

E tudo o que posso dar é ‘Está bem: sem dúvida’650.

Na cena II, nos vv. 239, 240, Clitifão, tentando acalmar o ansioso Clínia que

aguardava pela sua Antífila, atribui às mulheres o dom da demora em se aprumar - “E

sabes como são os costumes das mulheres: enquanto bolem daqui, enquanto se afreimam

dacolá, um ano é passado”651.

647 Cf. pp. 51; 30: Parentis, patriam incolumem, amicos, genus, cognatos, ditias…, / Atque haec perinde sunt ut illius animust qui ea possidet: / Qui utinscit,ei Bona; illi qui non utitur recte,mala. 648 Cf. pp. 54; 33: Occasio, locus, aetas, mater cuius sub imperiost mala, / Cui nihil iam praeter pretium dulcest. 649 Cf. pp. 70; 44:Vah! Ergo, mea Antiphilia, tu nunc sola reducem me in patriam facis; 650 Cf. pp. 53; 32: Habet bene et pudice eductam, ignaram artis meretriciae. / Meast potens, procax, magnifica, sumptuosa, nobilis; […] amicae dictae […] «Da mihi! » atque «adfer mihi!».; Tum quod dem ei «Recte» est.

Vide supra, p. 158, nota 579; p. 159, nota 582; p. 172, nota 630. E ainda, vide infra, p. 203, nota 751; pp. 203-206. 651 Cf. pp. 55; 33, 34: […] Et nosti mores mulierum: / Dum moliuntur, dum conantur, annus est.

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Nos vv. 285-291, o hábil Siro esclarece quer Clínia quer Clitifão quanto à fidelidade

de sentimentos e à vida casta da zelosa, recatada e fiel amada daquele, Antífila, durante a

ausência do seu amado. Assim, quando o escravo da casa de Cremes, juntamente com o

escravo da casa de Menedemo, Dromão, apareceu de improviso na residência dela para a

trazer à presença do inquieto e descrente Clínia, fica-se a saber - “Encontrámos a moça a

tecer cuidadosamente a sua teia, modestamente vestida com um traje de luto (por causa,

penso, da morte da velha), sem uma jóia e arranjada como as que se arranjam para si

mesmas, sem nenhum desses arrebiques femininos de má sorte; tinha os cabelos soltos e

lançados negligentemente em torno da cabeça…E já chega!”652. Continua o criado, no v.

307, a dizer que a reacção dela face ao nome Clínia, pronunciado pelos mensageiros, foi

de emoção e saudade - “Claramente se entendia que esta reacção era filha da saudade”653.

Nos vv. 322-323, Siro comprova-nos a paixão de Clitifão por Báquis, dizendo-lhe: “Tu

queres amá-la, tu queres possuí-la, tu queres estar em condições de lhe dar prendas. E não

queres que haja riscos nessa posse”654.

Acto II – Na cena III, nos vv. 365-368., Siro fala com Clitifão que fica admirado por

este ter convencido a sagaz Báquis a entrar no engodo/disfarce de se fazer passar por

amante de Clínia, passando Antífila sua escrava. Aqui, através da situação descrita pelo

criado, aparece como a mulher habilidosa e ciente dos seus intentos: “Topei com um

soldado que lhe pedia desesperadamente uma noite: e ela manobrava o fabiano com

habilidade para lhe inflamar o coração desejoso com a abstinência; e, ao mesmo tempo,

para se conservar, o melhor possível, nas tuas boas graças”655.

Na cena IV, esta cortesã que nos é apresentada pelas personagens que dela falam como

Clitifão e Siro como ávida e faustosa, revela um espírito reflexivo, resignado e saudoso de

uma vida virtuosa, como a de Antífila. A meretrix bona, conceito genuinamente

terenciano, depreende-se das palavras proferidas por Báquis (modelo típico da mulher

agarrada à opulência das jóias, vestidos e banquetes) em tom confessional a Antífila

(modelo típico da mulher reservada, pobre dedicada ao lar e ao amor conjugal). Nos vv.

388- 395, nota-se o desânimo desta cortesã que compara o uso da beleza e o procedimento

destes dois tipos de mulheres com destinos diferentes, de vários homens umas, de um

652 Cf. pp. 59; 36, 37: Texentem telam studiose ipsam offendimus, / Mediocriter uestitam ueste lugubri, / Eius anuis causa opinor quae erat mortua, / Sine auro, tum ornatam ita uti quae ornantur sibi, / Nulla mala re esse expolitam muliebri; / Capillus pexus prolixus circum caput/ Reiectus neclegenter, pax! 653 Cf. pp. 60; 38: Facile scires desiderio id fieri tuo. 654 Cf. pp. 62; 39: Vis amare, uis potiri, uis quod des illi effici; / Tuom esse in potiundo periculum non uis […]. 655 Cf. pp. 67; 42: […] nam miserum quemdam offendi ibi militem / Eius noctem orantem; haec arte tractabat uirum / Vt illius animum cupidum inopia incenderet / Eademque ut esset apud te hoc quam gratissimum.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

181

homem só outras- “É vantajoso, para vocês, serem bem comportadas; a nós, a gente com

quem temos de lidar, não no-lo permite. É a atracção da nossa beleza que induz os nossos

amantes a cortejar-nos; quando esta declina, transferem o coração para outro lado. E se,

neste entretanto, não tivermos tomado algumas providências, vivemos no abandono.

Vocês, quando decidem passar a vida só com um homem, cujo carácter está em harmonia

perfeita com o vosso, têm pessoas que a vocês se dedicam. Graças a isso, estão realmente

ligadas um ao outro, de tal sorte que nenhuma desgraça pode cair sobre o vosso amor”656.

Acto III - Na cena II, nos vv. 522-524, as palavras de Siro, em conversa com o seu

patrão Cremes, traçam-nos o perfil da cortesã Báquis - “ Mulher simpática e espirituosa, a

cortesã”; “tem uma beleza de arregala-olho”; “Não como as mulheres de outras eras, mas,

pelos padrões de agora, uma pêssega de estalo”657.

…ACERCA DA ATRACÇÃO SEXUAL

Acto III - Na cena III, no v. 570, Cremes, alertando o filho Clitifão, depois de o ter

visto apalpar a que ele julgava amante de Clínia (Báquis), e nunca desconfiando que

realmente era amante do seu filho, acaba por lhe confidenciar de homem para homem: “Eu

sei o que são amantes: ofendem-se gravemente com coisas que nem sequer se

imaginariam”. Nos vv. 573-574, continua - “a atracção sexual comporta muitas exigências.

A tua presença impede-os de as satisfazer. Faço ideia por mim próprio”658.

…ACERCA DA BOA MÃE, DA ESPOSA SUBMISSA E APAZIGUADORA, SÓSTRATA

Acto IV – Na cena I, no v. 623 demonstra por um lado a obediência cega às ordens do

marido de coração duro, à maneira do mos maiorum, o qual rejeitando ter um filho do sexo

feminino, leva-a a dar a filha - “não cuides que me atrevi a fazer algo contrário às tuas

ordens”659. Todavia, por outro lado, nos vv. 631; 649- 652, ao jeito de humilde fêmea

656 Cf. pp. 70; 43, 44: Nam expedit bonas esse iobis; nos, quibuscum est res, non sinunt; / Quippe forma inpulsi nostra nos amatores colunt; / Haec ubi imminuta est, illi suom animum alio conferunt; / Nisi si prospectum interea aliquid est, desertae uiuimus. / Vobis cum uno semel ubi aetatem agere decretumst uiro, / Cuius mos maximest consimilis uostrum, hi se a duos adplicant; / Hoc beneficio utrique ab utrisque vero deuincimini / Vt numquam ulla amori uestro incidere possit calamitas. 657 Cf. pp. 81; 52: Mulier commoda et faceta haec meretrix; Et quidem hercle forma Iuculenta; Ita non ut olim, sed uti nunc, sane bona. 658 Cf. pp. 86; 55: Noui ego amantium animum: aduortunt grauiter quae non censeas; Multa fert libido: ea facere prohibet tua praesentia. / Ego de me facio coniecturam; […]. 659 Cf. pp. 95; 60: […] ne quid credas me aduersum edictum tuom facere esse ausam.

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

182

submissa ao dominador macho, deixa transparecer que a sua atitude foi a salvação para a

criança (Antífila): “Se errei, meu caro Cremes, foi sem saber.”; “Tontas e tremendamente

supersticiosas como somos todas, quando dei a criança a expor à tal mulher, tiro do dedo o

anel e digo-lhe que o exponha juntamente com a menina. Assim, se a velha morresse, a

menina não ficaria privada de uma parte dos bens”660.

O QUE SE MANTEVE…

…ACERCA DA PAIXÃO DE CLÍNIA

Acto I -Na cena II, nos vv. 188-189, Clitifão confirma-nos, através das informações

que dá a Cremes, que Clínia, após ter regressado da Ásia e se ter “refugiado” na sua casa,

“ tem medo de tudo: da zanga do pai e da reacção da amante a seu respeito. Está perdido

de amor por ela. E por causa dela é que houve esta desavença e a sua largada para fora”661.

… ACERCA DOS DISPENDIOSOS RECURSOS NECESSÁRIOS NO RELACIONAMENTO COM UMA

CORTESÃ.

Acto III – Na cena I, nos vv. 446-449, Cremes apresenta a Menedemo a forma como

ele entendia a vida de Antífila, julgando-a cortesã. Assim, ela poderia estar “obrigada pela

necessidade e contra vontade, começou depois a ganhar a sua subsistência com os

dinheiros do povinho. Agora, que ninguém a pode possuir senão à custa de grande

dispêndio”662.

… ACERCA DA RELAÇÃO CONJUGAL DE CREMES E SÓSTRATA

660 Cf. pp. 96, 97; 61, 62: Si peccaui, mi Chreme, insciens feci.; Ut stultae et misere omnes sumus / Religiosae, cum exponendam do illi, de digito anulum / Detraho et eum dico ut uma cum puella exponeret, / Si moreretur, ne expers partis esset de nostris bonis. 661 Cf. pp. 50; 30: Timet omnia: patris iram et animum amicae se erga ut sit suae; / Eam misere amat; propter eam haec turba atque abitio euenit. 662 Cf. pp. 76; 47: […] ea coacta ingratiis / Postilla coepit uictum uolgo quaerere. / Nunc cum sine magno intertrimento non potest / Haberi […].

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 114: o texto latino original é mantido.

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

183

Acto V - Na cena III, que na antologia correspode à cena II, nos vv. 1008; 1019-1022,

podemos ver que na conversa entre o casal Cremes e Sóstrata aquele usa palavras pouco

lisonjeadoras para a sua companheira - “ficas na tua com essa impáfida toda, minha

estúpida!”; “porque ele é a tua cara estampada no feitio. Facilmente provarás que ele

nasceu de ti, porque é tal-qual como tu. Não há defeito nele que não tenha herdado de ti:

ninguém, a não seres tu, poderia ter dado ao mundo um filho semelhante”663.

…ACERCA DO EMPENHO MATERNO NA RESOLUÇÃO DE DESAVENÇAS FAMILIARES E NA

APRESENTAÇÃO DE SOLUÇÕES: ARRANJAR UMA MOÇA DA MESMA TERRA PARA CASAR COM O

FILHO

Acto V - Na cena IV, nos vv. 1025- 1027, Clitifão, em jeito de filho renegado e num

tom épico-trágico, dirige-se à sua mãe Sóstrata e apela ao sentir materno - “suplico-te que

te lembres dele e tenhas agora piedade do meu desamparo, e que me digas quem são os

meus pais: é o que te peço e rogo”664.

Na cena V (corresponde à cena IIII da antologia), nos vv. 1053; 1060, “Anda lá, meu

querido Cremes!”; “Meu querido filho, eu te darei, podes crer, uma mocinha jeitosa de

quem vais gostar sem esforço - a filha do nosso vizinho Fanócrates”665.

1.3.2.- Amor Paternal (autoridade- patria potestas) e Filial (respeito)

Realçamos no acto I, cena I, bem como no acto III, cena I e no acto IV, cena VIII

(corresponde ao acto IIII, cena III da antologia) os diálogos das personagens pela

predominância das questões paternais e filiais, seguindo o rigor da tradição - Menedemo,

pai afectivo de Clínia e homem recolhido e o seu vizinho extrovertido Cremes, pai esperto

de Clitifão. Apenas é retirada da antologia jesuíta a cena I do acto V, ainda que sejam

663 Cf. pp. 138, 90: In qua re nunc tam confidenter restas, stulta; pp. 140; 91: Id quod est consimilis moribus; / Conuinces facile ex te natum; nam Tui similis est probe; / Nam illi nihil uiti est relictum quin sit et itidem tibi; / Tum praeterea talem nisi tu nulla pareret filium. 664 Cf. pp. 140; 92: obsecro, / Eius ut memineris atque inopis nunc te miserescat mei, / Quod peto aut uolo, parentes meos ut commonstres mihi.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 119: o texto latino original é mantido. 665 Cf. pp. 143, 145; 94, 95: Age, Chremes mi; Gnate mi, ego pol tibi dabo illam lepidam quam tu facile ames.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 120: o texto latino original é mantido.

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Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

184

interlocutores as mesmas personagens destacadas. No entanto, aí o motivo da conversa

não interessa para o enredo preferido pelo antologista que destaca as relações dos pais

preocupados com as “freimas de amor” (v. 110) dos seus filhos de “coração doente” (v.

100). Estes correm o risco de se afastarem de um casamento como manda a lei de Deus e

dos Homens católicos, de maneira a cumprir a tradição.

O QUE SE OMITIU…

…ACERCA DO CONHECIMENTO DA VERDADE POR PARTE DE CREMES SOBRE A RELAÇÃO

AMOROSA ENTRE CLITIFÃO E A SUA AMANTE, A CORTESÃ BÁQUIS

Acto V - Na cena I, nos vv. 900, 902, 903 e 908, Menedemo esclarece o seu vizinho

quanto a Báquis ser amante de Clitifão e não Clínia, como tinha acreditado Cremes levado

pelas artimanhas de Siro. Informa-o do que viu em casa - “Já não falo dos beijos e

abraços.”; “Tenho, no fundo da casa, um compartimento que dá para as traseiras. Levaram

lá para dentro uma cama, estenderam-lhe as cobertas…”666. Cremes, elucidado, reconhece:

“Menedemo, então é a amante do meu filho. Estou morto.”

Nos vv. 925-927, é Menedemo que dá conselhos a Cremes, ao invés do que se passa

nos primeiros actos e cenas - “faz que ele sinta em ti um pai; faz que ele se atreva a

confiar-te tudo, a fazer-te pedidos e solicitações - não vá buscar ajuda alhures e

abandonar-te”667.

Nos vv. 945-946, Cremes desenganado, depois de descoberta toda a tramóia de seu

filho e Siro, toma uma atitude radical em relação ao seu descendente - “que desbarata em

devassidão e sem-vergonhice, eu o abata, o reduza ao ponto de não saber para onde se há-

de voltar”668. Nos vv. 949-:952, acrescenta algo mais - “como se deve fazer com os filhos,

é com palavras que o meterei na ordem. Mas Siro, se eu tiver vida e saúde, hei-de deixá-lo

666 Cf. pp. 126, 127, 128; 82, 83: Mitto iam osculari atque amplexari […]; Est mihi ultimis conclaue in aedibus quoddam retro; / Huc est intro latus lectus, uestimentis stratus est. 667 Cf. pp. 129; 84: […] fac ut audeat / Tibi credere omnia, abs te petere et poscere, / Nequam aliam quaerat copiam ac te deserat. 668 Cf. pp. 131; 85: […] qui nunc luxúria et lasciuia / Diffluit, retundam, redigam ut quo se uortat nesciat.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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de tal maneira ataviado, de tal maneira penteado que, enquanto viver, se há-de lembrar de

mim. Um tipo que cuida que estou aqui para lhe servir de desfrute e deleitação!...”669.

…ACERCA DO PERFIL DE UM PAI DEDICADO AO FILHO, POR ISSO VIGILANTE - PATER

DURUS

Acto I - Na cena II, nos vv. 204-210, Cremes em conversa como filho Clitifão, que o

informa sobre o regresso de Clínia, demonstra-lhe que a dureza de um pai se justifica pelo

bem que quer para o filho obediente e exemplar, que se deve mostrar resignado e acatar os

mandamentos do pai - “as chamadas ‘injustiças’ dos pais são, quase sempre, de uma única

espécie, desde que o pai seja de uma razoável tolerância. Não querem que os filhos andem

amiúde atrás das galdérias; não querem que eles andem amiúde em comezainas. Por isso,

lhes dão uma mesada reduzida. E tudo isto se faz em nome da formação do carácter. Mas

quando o espírito se agrilhoa a desejos malsãos, é inevitável, Clitifão, que o procedimento

siga caminhos desta sorte. A habilidade está em tomar dos outros a experiência que te

pode ser útil”670.

…ACERCA DO PERFIL DE UM FILHO OBEDIENTE QUE RECOLHECE AS SUAS FALTAS

Acto II - Na cena III, nos vv. 259-26, Clínia sente-se enganado devido a um mal

entendido e não aos factos verdadeiros. Por esse facto, faz maus juízos de valor em relação

à sua pobre e estrangeira (vinda de Corinto) amada, sentindo-se mal no seu papel de filho

ingrato - “Por tua causa, eu estou no auge da indignidade e em franca desobediência a meu

pai. Agora tenho vergonha dele e sinto-me infeliz. Ele bem mas cantava sobre os costumes

desta gente!...Mas os seus conselhos foram vãos e jamais conseguiu que eu me separasse

dela.”671.

O QUE SE ALTEROU…

669 Cf. pp. 132; 85: […] ut liberos est aequom dictis confutabitur. / Sed Syrum quidem ego ne, si uiuo, adeo exornatum dabo, / Adeo depexum ut dum uiuat meminerit semper mei, / Qui sibi me pro deridiculo ac delectamento putat! 670 Cf. pp. 51, 52; 31: […] nam parentum iniuriae / Vnius modi sunt ferme, Paulo qui est homo tolerabilis:/ Scortari crebo nolunt, nolunt crebo conuiuarier, / Praebent exigue sumptum; atque haec sunt tamen ad uirtutem omnia. 671 Cf. pp. 58; 35: Propter quam in summa infâmia sum et meo patri minus sum obsequens, / Cuius nunc pudet me et miseret, qui harum mores cantabat mihi, / Monuisse frustra, neque eum potuisse umquam ab hac me expellere.

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… ACERCA DA REPREENSÃO OU CONSELHO PATERNAL Nos vv. 972-974, Cremes, perante o desespero de seu filho Clitifão (“morrer é que me

apetece”) que acabara de ser deserdado pelo pai, num tom moralizador diz-lhe: “Mas

primeiro, por favor, aprende o que é viver. Quando souberes, se a vida te desagradar, então

lança mão desse recurso.”

O QUE SE MANTEVE…

… ACERCA DO MODELO DE PAI DE ACORDO COM “PROCESSOS HABITUAIS DE TRADIÇÃO

PATERNAL” (PERUOLGATA PATRUM)-MOS MAIORUM, MAS DE CORAÇÃO ABERTO.

Acto I - Na cena I, nos vv. 99-101, 106-111, ficamos a saber, segundo o dolorido

Menedemo, o modelo de pai indicado acima. Conta ao seu vizinho Cremes o que se

passou entre ele e o filho - “comecei a tratá-lo não com humanidade nem como convém a

um coração doente de rapazola, mas com a dureza e os processos habituais da tradição

paternal. […] Desejo que sejas considerado meu filho enquanto fizeres o que é digno de ti;

se o não fizeres, eu acharei o que é digno de se fazer a teu respeito. Ora nada disto

acontece senão quando há excesso de ociosidade. Eu quando tinha a tua idade, não me

entregava a estas freimas de amor, mas fui daqui para a Ásia”672.

Nos vv. 151-156, Cremes reage ao quadro traçado por Menedemo - “Tenho a

impressão de que a tua natureza é indulgente para os filhos; e de que o teu rapaz é

obediente, se o tratarem com rectidão e bons modos. Mas nem tu o conhecias

suficientemente, nem ele a ti. Como podem acontecer tais coisas? Quando se não vive a

vida com verdade. Tu nunca lhe mostraste quanto o apreciavas nem ele ousou abrir-te o

coração como é justo que se abra a um pai”673.

Acto IV - Na cena VII (que corresponde à cena II da antologia), nos vv. 839-341,

Cremes, enganado por Siro e Clitifão, profere palavras de desconforto, após a entrega do

672 Cf. pp. 43, 44; 25: Ubi rem resciui, coepi non humanitus / neque ut animum decuit aegrotum adulescentuli / Tractare, sed ui et uia peruolgata patrum.; Ego te meum esse dici tantisper uolo / Dum quod te dignumst facies; sed si id non facis, / Ego quod me in te sit facere dignum inuenero. / Nulla adeo ex re istuc fit nisi ex nimio otio. /Ego istuc aetatis non amori operam dabam, / Sed in Asiam hinc abii […].

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 112: o texto latino original é mantido 673 Cf. pp. 45, 46; 27: Ingenio te esse in liberos leni puto / Et illum obsequentem, siquis recte aut commode / Tractaret; uerum nec tu illum satis noueras / Nec te ille; hoc qui fi? Ubi non uere uiuitur; Tu illum numquam ostendisti quanti penderes / Nec tibi ille est credere ausus quae est aequom patri.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 112: o texto latino original é mantido.

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suposto dote na casa de Menedemo - “Que injustiças e desconchavos se têm de fazer em

obediência à tradição! Agora que pus de lado os meus negócios, tenho de encontrar

alguém a quem dê os bens angariados com o meu trabalho!...”674.

… ACERCA DO CONFLITO DE GERAÇÕES

Os dois pares de pais e filhos apresentados, Menedemo e Clínia; Cremes e Clitifão,

exibem diferentes comportamentos. Contudo, quer no pater durus (Cremes) quer no pater

beneuolus (Menedemo) vislumbra-se uma autoridade paternal que requer uma obediência

filial e que pode ser entendida, nalguns casos, como motivo de temor e distanciamento

entre os envolvidos. Assim nos faz crer Cremes quando informa Menedemo da possível

causa do filho Clínia “fugir da sua presença. Por causa do seu erro, tem medo de que o teu

rigor antigo tenha aumentado ainda mais” (vv. 433-435)675. Todavia, há por parte de

Menedemo uma perspectiva de aproximação, porque gosta deles, assumindo a sua culpa -

“Que ele faça o que lhe aprouver: que suma, consuma, desbarete! …Estou decidido a

sofrer, desde que o tenha agora comigo.” (vv. 464-466)676 e reconhece que “Cremes está a

atormentar o rapazola com muita dureza e muita desumanidade” (v. 1045)677.

Acto II - Na cena I, nos vv. 213-219, o monólogo de Clitifão revela-nos o seu

comportamento de filho irreverente, o filho pródigo, queixoso e discordante do poder

paternal - “Como são injustos os pais em relação a todos os jovens: e ainda armam em

juízes! Acham que nós desde a meninice tenhamos logo nascido velhos e sem nenhuma

daquelas propensões que a mocidade traz consigo. Com a veneta que têm agora é que nos

querem governar, não com o a que tinham outrora. Por mim, se alguma vez tiver um filho,

ele há-de encontrar em mim um pai indulgente, porque há-de haver ensejo para conhecer e

perdoar os erros. Não como o meu pai, que, valendo-se do exemplo alheio, me revela os

seus sentimentos”678.

674 Cf. pp. 119; 77: Quam multa iniusta ac praua fiunt moribus! / Mihi nunc relictis rebus inueniundus est / Aliquis, labore inuenta meã cu idem Bona!

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 116: o texto latino original é mantido. 675 Cf. pp. 75; 47: […] et tuom / Conspectum fugitat; propter peccatum hoc timet / Ne tua duritia antiqua illa etiam adaucta sit.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 114: o texto latino original é mantido. 676 Cf. pp. 76; 48: Facit quidlubet; / Sumat consumat perdat: decretumst pati, / Dum illum modo habeam mecum..

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 114: o texto latino original é mantido. 677 Cf. pp. 142; 93: […] Chremes nimis grauiter cruciat adulescentulum nimisque inhumane; […].

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 119: o texto latino original é mantido. 678 Cf. pp. 53; 31, 32: Quam iniqui sunt patres in omnes adulescentis iudices! / Qui aequom esse censent nos iam a pueris ilico nasci senes / Neque illarum adfinis esse rerum quas fert adulescentia. / Ex sua libidine moderantur, nunc quae est,

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Acto III - Na cena I, nos vv. 421-424, o saudoso Menedemo mostra a sua amargura

perante a ausência do filho, dizendo que “é falsa aquela sentença que ouço dizer ao vulgo:

que o tempo retira aos homens o amargor das suas penas. Em mim cresce mais a amargura

que sinto pelo meu filho”679.

Acto V - Na cena II (corresponde à cena I na antologia), nos vv. 954-956, Clitifão, numa

situação penosa como filho, mostra a sua revolta e ao mesmo tempo o seu temor quanto a

“um pai, em tão breve espaço de tempo, lance fora do seu coração todos os sentimentos

paternos?!... Que ofensa é que eu lhe fiz? Que crime tão grande é que cometi, pobre de

mim?... São coisas que faz toda a gente”680. No v. 980, afirma “Pensar que as coisas

chegaram a tal ponto que estou em risco de passar fome!”, queixando-se de “um pai, em

tão breve espaço de tempo, lance fora do seu coração todos os sentimentos paternos?!...”

(vv.- 954-955).681. Nos vv. 961-964, Cremes, não querendo correr riscos com o seu filho

e, essencialmente, para o repreender, diz-lhe que os seus bens serão entregues a Clínia, já

que seria marido de Antífila, reconhecida como filha - “fi-lo de olhos postos no teu futuro

e na tua insensatez. Quando te vi ânimo tão fraco e disposto a dar primazia aos prazeres da

hora presente e a não fazeres planos a longo prazo, tomei providências para não passares

necessidade nem poderes desbaratar os nossos bens”682.

Na cena IV (corresponde à cena III na antologia), nos vv. 1033-1034, Cremes, depois

de Clitifão se queixar face ao castigo que o duro pai lhe impôs devido aos maus

comportamentos, profere insultos atributivos desajustados de um pai, segundo o próprio

filho, mas ajustados ao riso da comédia - “parlapatão, quebra-esquinas, aldrabão, comilão,

frascário, esbanjador!”683. Nos vv. 1039-1041, continua com tom moralizador e

repreensivo, omitindo uma palavra que se pressupõe obscena e por isso, inconveniente -

“Tu procuras uma coisa que tens, pais; o que te falta, não procuras, isto é, o modo de

non quae olim fuit. / Mihi si umquam filius erit, ne ille facili me utetur patre; / Nam et cognoscendi et ignoscendi dabitur peccatis locus. / Non ut meus, qui mihi per alium ostendit suam sententiam.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 113: o texto latino original é mantido. 679 Cf. pp. 73; 46: […] aut illud falsumst quod uolgo audio / Dici, diem adimere aegritudinem hominibus; / Nam mihi quidem cottidie augescit magis / De filio aegritudo, […]

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 113: o texto latino original é mantido. 680 p. 135; 88: Adeon rem rediise ut periclum etiam fami mihi sit, Syre! 86: […] pater / Tam in brevi spatio omnem de me eiecerit animum patris? / Quodnam ob facinus? Quid ego tantum sceleris admisi miser? Uolgo faciunt.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 117: 681 Cf. pp. 133; 86: […] ut pater / Tam in breui spatio omnem de me eiecerit animum patris?

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 117. 682 Cf. pp. 133; 86: […] tibi prospexi et stultitiae tuae. / Vbi te uidi animo esse omisso et suauia in praesentia / Quae essent prima habere neque consulere in longitudinem, / Cepi rationem ut neque egeres neque ut haec posses perdere.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 117 : o texto latino original é mantido. 683 Cf. pp. 141; 92: […] gerro, iners, fraus, helluo, gneo, damnosus […]

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 119: o texto latino original é mantido.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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agradar a teu pai e conservar o que ele adquiriu com trabalho. Não é vir trazer-me para

casa, com aldrabices, um …”684.

…ACERCA DO PERFIL DE UM FILHO OBEDIENTE

Acto IV - Na cena III (corresponde à cena I na antologia), no v. 681, o feliz Clínia que

vai casar com a sua amada, Antífila, e abençoado pelo pai Menedemo afirma: “De ora

avante, a meu pai me confio, ao ponto de ser mais disciplinado do que ele deseja”685.

Acto V - Na cena V (corresponde à cena IIII da antologia), nos vv. 1049; 1051, Clitifão

anseia o perdão do pai, apelando ao sentimento - “Pai, rogo-te que me perdoes.”; “Se me

queres vivo, pai, perdoa-me”686.

Nos vv. 1055-1056; 1064 Clitifão obedece ao desejo de casamento manifestado pelo

pai, fazendo-lhe a vontade pois não há outra forma de reaver a boa relação familiar e evitar

ser deserdado. Assim, mostra-se disponível para casar com a filha do vizinho Arcónides,

afastando-se da cortesã Báquis - “Pai, tudo farei: é só mandares.”; “Que posso fazer?... Se

tenho mesmo de me casar, indico uma que é mais ou menos o que eu quero”687.

684 Cf. pp. 142; 93: Quaeris id quod habes, parentes; quod abest non quaeris, patri / Quo modo obsequare et ut serues quod labore inuenerit, / Non mihi per fallacias adducere ante oculos…

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 119: o texto latino original mantem-se, apenas são substituídas as reticências pelo ponto de interrogação. 685 Cf. pp. 100; 64: Dedo patri me nunciam, ut frugalior sim quam uolt.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 115: o texto latino original é mantido (uult) 686 Cf. pp. 143; 94: Pater, obsecro mihi ignoscas; Si me uiuom uis, pater, ignosce.

Cf. Sylvae variorum … cit., pp. 119, 120: o texto latino original é mantido. 687 Cf. pp. 144, 145; 94, 95: Pater, omnia faciam; impera. / Vxorem ut ducas; Quid istic? Quandoquidem ducenda est, egomet habeo propemodum

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 120: o texto latino original é mantido.

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190

1.3.3 - Amizade

O QUE SE MANTEVE…

… ACERCA DA LIGAÇÃO ENTRE VIZINHANÇA E AMIZADE

Acto I - Na cena I, nos vv. 56-58, Cremes começa a peça, tentando captar a atenção do

vizinho Menedemo, diz: “a tua seriedade e a nossa vizinhança - que, no meu entender,

corre paredes meias com a amizade -, dão-me ousadia para te aconselhar com desassombro

e franqueza”688.

Acto III- Na cena I, nos vv. 505-507, Menedemo depois de ter desabafado com Cremes

sobre a sua situação, tendo este demonstrado firmeza e clareza no discurso e atitude para a

resolução do problema - trazer de volta para casa Clínia. Daí que com prudência diz: “Será

porque, nos assuntos que nos dizem respeito, estamos embaraçados pelo excesso de

alegria ou de amargor?... Este meu amigo quanto mais avisado do que eu se mostra em

relação a mim próprio!”689.

O QUE SE OMITIU…

… ACERCA DA AMIZADE REVELADA NAS ARTIMANHAS AMOROSAS

Acto II - Na cena II, nos vv. 351-352 e v. 360, Clitifão mostra a sua confiança nos

amigos e envolvidos no plano arquitectado em relação a Antífila e Báquis, quer ao seu

criado Siro - “confio-te a minha pessoa, o meu amor e a minha reputação. Tu és o juiz”;

quer a Clínia -“Tenho razão para te querer bem, Clínia”690.

Acto III - Na cena III, nov. 571,Clitifão reafirma a relação de amizade, baseada na

confiança, com o vizinho Clínia em frente de seu pai que o alerta para não se meter entre

688 Cf. pp. 39; 22:Tamen uel uirtus tua me uel uicinitas, / Quod ego in propinqua parte amicitiae puto, / Facit ut te audacter moneam et familiariter.

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 111: o texto latino original é mantido. 689 Cf. pp. 79; 50: […] An eo fit quia in re nostra aut gaudio / Sumus praepediti nimio aut aegritudine? / Hic mihi nunc quanto plus sapit quam egomet mihi!

Cf. Sylvae variorum … cit., p. 115: o texto latino original é mantido. 690 Cf. pp. 66; 41: Et me et meum amorem et famam permitto tibi; / Tu es iudex […]; Merito te amo, Clinia.

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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amantes, ou melhor com a amante que julga ser de Clínia, Báquis. O jovem afirma que “o

meu amigo tem confiança em mim: sabe que eu não lhe iria fazer nada do que pensas,

pai”691. O pai, nos vv. 574-575, explica-lhe que no caso dele, em assuntos de amantes,

íntimos, “hoje não há nenhum dos meus amigos a quem eu me atreva, Clitifão, a revelar

todos os meus segredos”692.

… ACERCA DO VERDADEIRO CARÁCTER DE CREMES, AMIGO DE MENEDEMO

Acto III – Na cena II, nos vv. 537-538, Siro fica estupefacto com a revelação do seu

patrão ser apologista de não olhar a meios para alcançar os fins - “Alto lá, por quem és!...

Tu aplaudes os que enganam os seus patrões?!...”, ao que returque Cremes: “Se for na hora

própria, aplaudo”693.

Acto V – Na cena I, no entendimento de Menedemo o plano de seu filho, Clitifão e

Siro em levar Báquis para casa daquele é entendido como auxílio entre amigos, o mesmo

não é reconhecido por Cremes que fica aterrorizado, quando descobre que afinal Báquis

não era amante de Clínia, mas do seu filho como lhe fizeram acreditar. Nos vv. 910, diz

Menedemo: “Estás com medo só porque Clitifão dá uma ajuda ao seu amigo?...”694.

691 Cf. pp. 86; 55: At mihi fides apud hunc est nihil me istius facturum, pater. 692 Cf. pp. 86; 55: […] nemost meorum amicorum hodie / Apud quem expromere omnia mea occulta, Clitipho, audeam. 693 Cf. pp. 83; 53: Eho, quaeso, laudas qui eros fallunt?; In loco ego uero laudo. 694 Cf. pp. 128; 83: […] Istuc times quod ille operam amico dat suo?

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192

2. MIGUEL VENEGAS E A TRAGÉDIA SACRA ACHABUS (1562)

O espanhol Michael Venegas, Absulensis, com vinte e cinco anos - já mestre formado

pela Universidade de Alcalá de Henares e com reconhecido valor artístico -, entrou para a

Companhia de Jesus em 1554, donde sairia 12 anos mais tarde695. Interessa-nos focar aqui

a sua actividade pedagógica no Colégio das Artes, onde leccionou humanidades e retórica

entre 1558-1562, embora já tivesse desempenhado tal função, durante 3 anos, no colégio

de Santo Antão em Lisboa, onde chegara em 1555696.

Da sua obra produzida em território luso, não se podem descurar os vários discursos ou

orações inaugurais e de encerramento dos anos lectivos, tais como as composições

poéticas e diálogos em louvor da Rainha Santa Isabel697. Contudo, era na produção de um

teatro sem fronteiras ao serviço da instrução académica, moral e religiosa ou da reflexão

intelectual e do empenho pastoral, por isso educativo, que obras como Saul Gelboeus,

Achabus e Absalon contribuíam para a sua internacionalização, comprovada pelos

manuscritos espalhados pelas cidades europeias onde leccionara698.

695 Sobre os pormenores da vida atribulada deste jesuíta - denominado l’ enfant terrible - e, essencialmente, as razões da saída da Companhia, indicamos a tese de doutoramento de MARGARIDA MIRANDA. Na página 10 e nota de rodapé 6, a autora refere Nigel Griffin como grande investigador da biografia de Mestre Venegas, tendo sido publicado o produto da investigação em 1973. “O temperamento apaixonado e exaltado” não se coadunava com a obediência e moderação apregoadas pela Ordem, constando dos catálogos de Coimbra de 1561 observações como esta: “Es mui immortificado y no parece tener mucha forma de persona de la Compagnia; en el modo de hablar poco cortez a los superiores y libré a hablar lo que quiere. Es de condizion (sic) mui vario y mudável. Es apaixonado. Afeiçoado a ninhos (sic). Tiene otras cosas boas, como arrepentirse y conhecerse. Trabaia (sic) en letras bien y es mui docto en humanidad” Plasença, Lisboa, Roma, Paris, Ávila, Alcalá foram cidades que estiveram incluídas na sua peregrinação como jesuíta, estabelecendo-se, depois de “declarada a ruptura em 1566 […] após uma longa e penosa peregrinação por várias cidades da Europa”, na Universidade de Salamanca como gramático.(Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica … cit., pp. 9-61e pp.30, 38, 47-61). 696Antes de vir para o colégio de Lisboa tinha sido leitor para formação de elementos da Ordem no colégio de Plasença (Andaluzia), tendo sido aqui que o primeiro contacto com o teatro escolar se efectuara. Viria suplantar a falta sentida pelo colégio lisboeta de mestres jesuítas que ficariam nos anais da história da Companhia como modelos académicos: Pedro Fonseca (Artes/filosofia), Cipriano Soares (Retórica), Manuel Álvares (Gramática), e Pedro Perpinhão (Oratória). Estes foram destacados para o colégio das Artes para o abrilhantar, tal era a fama que adquirira com os ‘Bordaleses’, esforçando-se Venegas em assegurar a qualidade do ensino em Santo Antão. Em 1558, juntar-se-á com os ditos mestres em Coimbra, onde, durante quatro anos lectivos, dará grande projecção à instituição por meio do teatro. Com Perpinhão voltará a encontrar-se no colégio de Roma, onde ambos leccionarão. 697 Cf. MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica… cit., pp. 63-72. Lista das obras do professor dramaturgo.

A título de exemplo, data de 1556 o discurso inaugural no Colégio Santo Antão que salienta o estudo do latim, grego e hebraico, louvando o amor às letras e à virtude - assunto já abordado por Cipriano Soares no discurso de ano lectivo 1553-1554. Em Coimbra, no ano de despedida (1562), salientamos o Diálogo composto para entrega de prémios Dialogus in praemia, juntamente com a tragédia Achabus e a oração solene em honra da Rainha Santa. (Ibid., pp. 184-195).

“Até deixar Coimbra, Miguel Venegas compôs duas tragédias bíblicas sobre Saul e sobre Acab, vários diálogos dramáticos para a distribuição de prémios literários e para a recepção de visitas ilustres, algumas orações públicas, inúmeros epigramas e enigmas” (Ibid., p. 35). 698 Cf. Ibid., pp.179-199.

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O registo das representações didácticas, científicas e religiosas dos jesuítas encontra-se

nos manuscritos/códices, impeditivos do desaparecimento definitivo das palavras em acto,

que, actualmente, os perseverantes estudiosos vão tirando da sombra dos arquivos de

bibliotecas, residindo nas bonae litterae todo o poder do averbamento da memória

histórica e cultural, que in illo tempore seria o meio adequado para atingir a virtude. A

epistolografia jesuítica é também um contributo precioso na reconstituição de cenários e

reacções do público espectador pré-determinado perante exercícios teatrais. Destes, de

grande preocupação espectacular, não era revelada a autoria o que condizia com a

modéstia testemunhada nas palavras de Luís da Cruz, discípulo do mestre em destaque,

“nada é considerado mais próximo da virtude, do que ser discreto”699.

O teatro escolar de Venegas - recurso exclusivo à tragédia bíblica - vinha dar

continuidade e aprimorar a tradição universitária conimbricense reafirmada e enriquecida

pelos ilustres bordaleses no Colégio das Artes700. Em Lisboa, este hábito humanístico

europeu fora implementado por Venegas, visto que, antes da sua chegada, os únicos

registos oratórios/dramáticos eram os discursos, as declamações e as récitas de poesia. Em

1556, o jesuíta espanhol representava no Colégio de Santo Antão, o “Coleginho”

inaugurado em 1553, uma peça de um mestre holandês, Guilherme Gnapheus, intitulada

Acolastus reveladora da temática bíblica - a parábola do Filho Pródigo - tão característica

dos dramaturgos do Norte da Europa701.

A imagética mítica cristã, visível no subtexto bíblico (denunciador do regresso às

fontes, às escrituras, neste caso, aos livros históricos da Vulgata, Reis702), articulava-se

699 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina … cit., vol II, p. 24.

Ibid., vol. I, p. 9: apud quam nihil sanctius quam morigerari. 700 Vide supra, pp. 142-144. 701 Vide supra, p. 145, nota 535. 702 Será oportuno, atendendo aos títulos das tragédias escritas por este dramaturgo e pelo seu discípulo Luís da Cruz, indicar alguns dados bíblicos. Nos livros primeiros e segundos de SAMUEL, REIS e CRÓNICAS estão em foco os monarcas de Israel desde Saul até à conquista e destruição de Jerusalém por Nabucodonosor. Desde a introdução da monarquia em Israel com Saul, passando por figuras reais como David (sua inimizade com Saul e sua amizade com Jónatas; e o relacionamento com o filho Absalão) e Salomão numa fase de união territorial; até ao reconhecimento de nomes reais como Acab, Josafat (já reis de um reino dividido: o primeiro do norte - Israel / Samaria -; o segundo do sul – Judá /Jerusalém). Ainda os dois reis de Judá, Manasses e Sedecias. Tendo presente que a realeza era a instituição da religião em Israel, esta divisão norte/sul atendia a critérios religiosos fundados na fidelidade a Deus/Javé (verdadeiro rei do povo) - exemplo de Josafat na tragédia em estudo - ou na infidelidade baseada na idolatria, levando ao afastamento desse Deus único e verdadeiro Senhor. Neste último caso, situamos Acab e sua esposa fenícia, Jezabel, ligados à superstição – deus fenício Baal. Esta religião pagã era considerada grotesca pelos bons e verdadeiros profetas israelitas, representados nesta tragédia por Elias e Miqueias que se opunham aos maus e falsos profetas fenícios trazidos por Jezabel para Israel. Estas narrativas bíblicas encaixavam na perfeição no teatro pedagógico do Renascimento, onde a política e a religião, o poder e a fé /moral católicas eram indissociáveis. Este era o resultado de uma herança aristotélica, estóica e cristã que colocava a razão acima de vontades pessoais e paixões.

É nesta linha de pensamento que ecoam as palavras de NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES: “Esta interligação do mundo do amor com a idealização política, a que as cidades ideais do Renascimento não são alheias, é bem reveladora da

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

194

com o intertexto clássico, concretizando objectivos pedagógicos de formação humanística

e de preparação exegética. Com este intuito, tanto as tragédias de Venegas como as

comédias e tragicomédias de Luís da Cruz dariam corpo às palavras que, na pena de

professores encenadores e na voz e gestos de alunos actores, serviriam para expor

conhecimentos estético/artístico aglutinadores do humanismo clássico e cristão ou bíblico.

Na tragédia em estudo, poderemos atender às designações de Céu (“Olimpo”), Inferno

(“Orco, Averno, Estiges, Tártaro”); de Deus Pai associada ao Rei do Olimpo (v. 2255),

Júpiter (“Deus do Trovão”); os nomes de forças da natureza como os ventos Noto e Euro;

a força do fatum representada pelas Fúrias; as imagens naúticas de naufrágio relacionado

com o percurso vivencial703.

Além disso, os diálogos e os monólogos, característicos do teatro de Séneca,

provinham de personagens bíblicas que protagonizavam modelos virtuosos de difícil

alcance em todas as idades, especialmente nas jovens, e nas mais reconhecidas formações

(mesmo para o erudito e o religioso que não deixavam de ter condição mortal).

Como em tempo de reforma católica ou contra-reforma se pretendia aproximar e

cativar os envolvidos no palco e na plateia para o serviço de colaboração com o projecto

de Deus, o alvo principal era o homem, obra de Deus. Por isso, urgia o afastamento do mal

- tudo o que não se coadunasse com a doutrina defendida pela Igreja católica apostólica

romana. O spiritus mendax encarna o mal, já que pretende aliciar, iludir, advertindo, deste

modo, para caminhos de perdição, daí que nos vv. 29-30 diga: “Tenho riso, tenho volúpia,

jogo e divertimento / em enganar e inquietar os mortais com males sem fim”704.

Recorrendo à visão inaciana de diálogo (representação), poderíamos apropriá-la a este

ambiente de ver, ouvir, sentir e pensar que, assim, possibilitaria aos actores e espectadores

“leer juntos las diversas manifestaciones de la voluntad de Dios para seguir lo que este

más de acuerdo com su plan de salvación”705. Adicionamos e integramos neste

discernimento o carácter setencioso senequiano para maior aprofundamento psicológico

importância do papel que assume nesta época a esfera dos afectos humanos e sua realização” (“O tema do amor na tragédia humanista: Amor sagrado e Amor profano”…cit., p. 187).

Sobre o assunto remetemos para a tese de MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica…cit., pp. 328, 330. 703 Cf. Ibid., pp.343-347. 704 Na análise da Tragoedia cui nomen inditum Achabus (1562), do P. Miguel Venegas, o texto latino e a respectiva tradução são transcritos de MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica …cit. Desta forma, indicar-se-á em primeiro lugar o número da página correspondente aos versos da tradução transcritos, seguindo-se o número da página inerente aos versos latinos, os quais aparecem registados sempre nas notas de roda pé.

Cf. Ibid., pp. 397, 396 : Decipere, multis premere mortales malis, /Risus, uoluptas, lupus est mihi, et iocus. 705 CARLOS PALMÉS, S.J., Del Discernimiento a la Obediencia Ignaciana, Roma, 1988, p 176. Esta citação está incluída no capítulo III, pp. 141-192, intitulado “Obediência, entrega incondicional por amor”, sendo aqui a obediência o meio virtuoso proposto por Inácio de Loiola para se poder alcançar as restantes virtudes.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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perante violentas paixões, bem como a espiritualidade do “peregrino” nos Exercícios

Espirituais. Na mira tridentina da ajuda e cura das almas, os afectos e as “moções da

sensibilidade”, os “prazeres aparentes” deviam sujeitar-se ao exercício da boa vontade

gerida pelas “moções da razão”, como sugere Abdias ao seu rei, pois só assim a

fragilidade do homem e “os vícios de escravo condenado e acorrentado”706poderiam ser

dominados.

A vida humana ou, nas palavras proferidas por Elias no v. 414, “o breve caminho da

vida enganadora”707ficavam muito aquém dessas vidas heróicas e sublimes que estavam

para além dos limites da normalidade - o ascetismo era a via para tal aproximação, sob a

égide do espírito de servir e amar, de autodomínio e de moderação, enfim do desejo de

obediência. Na espiritualidade inaciana, “amor y servicio van unidos indisolubelmente”708.

Será um bom exemplum, para saber usar a vida709, anunciarmos aqui a opção livre do

lavrador seguidor e servidor de Elias, a qual o profeta nos divulga - «‘Só esta licença te

peço, ó pai’, diz ele, / ‘possa eu ir ter com os meus, dar a extrema despedida, / meu pai

beijar e receber o último beijo seu / e de minha mãe anciã, e depois contente te seguirei’

‘Podes ir e vir como quiseres’ - lhe retorqui”710.

Das relações e emoções colocadas em cena, realçamos no plano familiar, o casal, Acab

e Jezabel, os filhos de Acab e, num plano social e político, o poder régio que, numa

perspectiva renascentista, deveria manter com os súbditos servidores uma relação fraternal

e de protecção parental, fundamentada numa exemplar conduta moral.

Num plano transcendente, a manifestação de amor entre o Pai e os filhos, unidos no

vínculo de fidelidade, assentava na relação entre o homem pecador e o Deus severo e de

706 Elias refere-se a Acab nestes termos. Cf. pp. 517, 516, v. 1475: Vitiisque seruis nexus, addictus tuis.

ALAIN COUPRIE afirma que «De fait, en dehors de toute considération morale, la tragédie présente souvent l’amour comme une ‘faiblesse’. La mythologie grecque avait inauguré la tradition […]» (Lire la Tragédie, Paris, 1994, p. 151. 707 Cf. pp. 423, 424: Vitae dolosae transit ignotus, latens.

A visão que nos é dada da vida terrena, enganadora, errante, fatigante surge, quando Elias profere tais palavras: “Não é a nossa vida dura fadiga / de uma peleja permanente, um horror constante, / breve quimera, aparência fugaz de uma flor, / um contentamento enganador, leve sombra de alegria, / uma sementeira de dores, um triste lugar de exílio, / a escória imunda, enfim, de todos os males?!”.(Cf. pp. 453, 452, vv. 702-707: Quid uita nostra? Nonne militiae grauis / Labor perennis, horror assiduus, breuis / Imago somni, floris adspectus fugax, / Fallax uoluptas, umbra laetitiae leuis, / Seges dolorum, tristis exilii locus, / Denique malorum foeda colluuio omnium?).

A visão platónica-cristã da existência, em que a eucaristia é ajuda indispensável é expressa assim pelo coro: “Não podeis levar a cabo a travessia longa da terra / sem à ajuda recorrerdes / quer da água, quer do pão” (Cf. pp. 493, 492, vv. 1238-1240: […] terrae peragrare uastos / Vix potes tractus, ope destitutus / Farris et undae). 708 CARLOS PALMES, S.I., La obediência religiosa ignaciana, S.A., Barcelona, 1963, p. 35. Cf. Exercícios Espirituais, nº 233. 709 Cf. pp. 521, 520, vv. 1548-1549: “[…] A ninguém é dada a vida em propriedade. / Dela a todos os mortais tão somente é dado o uso.”; […] Nulli uita mancipio datur, / Utenda quae datur omnibus mortalibus. 710 Cf. acto III, vv. 1430-1435, pp.513, 512: […]“Hanc unam, pater, / Hanc” inquit “unam posco te ueniam,pater./ Liceat salutem dicere supremam méis / Et oscula patri figere, accipere ultima / Grandique matri, teque post laetus sequar.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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autoridade suprema do Antigo Testamento, mas compassivo, o qual tem aqui como

principal agente na terrra o profeta Elias. É na luta de afectos e emoções que Acab,

presunçoso e regido pelo libido regni711, revela ser um mau rei, subjugado pelos caprichos

da esposa - “Arderão ambos de amor pelo poder efémero?”712. Os seus súbditos estariam

bem entregues ao tipo de rei piedoso representado pelo seu real e leal amigo Josafat713ou

ao próprio Acab, se este desse ouvidos àquele e a Abdias, “servo bom, é rei das suas

paixões”714 e o seu leal conselheiro. Este apresenta-lhe o modelo de “pai da pátria,

David”715. Será o piedoso Abdias que, numa atitude de respeito para com o arauto/nuntius

de Deus - o profeta Elias -, toca o chão com a fronte para o saudar, seguindo costume

oriental716.

Os filhos, Ocazias e Jorão, choram a morte do pai que respeitavam. A esposa Jezabel é

uma mulher viril, dominada por um muliebris furor, acredita no amor próprio e é estorvo

no rumo à verdadeira religião, que é rejeitada pelos maus conselheiros e aduladores - o

coro dos maus profetas (adoradores de Baal) e o representante destes, Sedecias. Esta

idólatra situa-nos em quadros afectivos subjugados a uma lei individualista, parcial que

entra em choque com uma moral cristã apologista do amor imbuído de honra, de estima e

do respeito pela liberdade do outro. Deste modo, ela representa a rejeição de verdadeiros

valores como a caridade, o respeito, a clemência e o perdão.

Como personagem central, o rei temporal Acab, afastando o seu agir da vontade do

Rei Celeste, não obedece à graça divina conferida por Deus, e usa a sua liberdade sem

discernimento. Como servo de Deus e em Seu nome deveria exercer o poder vinculado ao

amor e não ao temor.

711 No acto I, nas advertências de Elias, no v. 394, pp. 423, 422: “Infeliz de quem aspira ao bem e se fia das coisas passageiras” (Quisquis caducis fidat, et inhiet bonis!). Nos versos seguintes, até ao v. 412, aparecem-nos discriminadas essas “coisas passageiras”, próprias da desmedida ambição humana.

No acto III, v. 1359, pp. 507, 506: Acab diz que “Só a vontade eu tenho, por minha lei” (Solaque uoluntas instar est legis mihi) 712 No acto I, v. 389, pp. 523, 522, é colocada na boca de Elias a interrogação retórica transcrita: Et amore quisque lubrici solii ardeat? 713 O rei de Judá, aliado de Acab na luta contra os Sírios é, ao contrário do rei de Israel, piedoso e “esclarecido / e ao Deus verdadeiro prestou culto” (vv. 1019-1020 – […] inclito / Sub rege, uerum coluit et coluit Deum).

MARGARIDA MIRANDA dá-nos a panorâmica de uma filosofia política renascentista, tema de capital importância na literatura quinhentista portuguesa, remetendo também em notas de rodapé para estudos mais aprofundados como os de Nair de Nazaré Castro Soares e A. Costa Ramalho (Cf. Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica …cit.,pp. 322-339) 714 No acto I, vv. 387-388, pp. 423, 422, Elias apresenta-nos Acab como “Aquele, o mau amo, é escravo da sua mulher” (Malus ille dominus coniugi seruit suae) em contraste com o seu servo movido pelo controlo estóico das paixões: “este, o servo bom, é rei das suas paixões” (Bonus hic minister imperat menti suae). 715 Cf. pp. 505, 504, vv. 1327-1334. 716 No acto I, v. 303, pp. 415, 414. Elias, o “Senhor”, após ter sido saudado por Abdias que se autodenomina servo (v. 345-346) e filho de tal “Senhor” pede-lhe: “Ergue do chão profundo teu nobre rosto” (Atolle ab ima nobiles uultus humo

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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Expostos laços de confiança, de autoridade/submissão, de clemência ou misericórdia,

do domínio do amor em detrimento da perdição e do pecado (cupidez, sensualidade,

orgulho, ambição), o drama Achabus - que “proferirá duras palavras contra a heresia e

contra os que adoram falsos deuses”717 - situava-se num contexto histórico nacional e

europeu projectado em cenas de um teatro erudito e pomposo, mas condutor de uma

educação ideológica718. Daí a conveniência das palavras de Margarida Miranda, quando

diz que “Venegas é afinal o apóstolo da Igreja de Roma”719.

ACHABUS (1562)

RESUMO DO ARGUMENTO

A acção segue de forma fidedigna vários quadros que nos são apresentados no

primeiro livro dos Reis, correspondendo aos capítulos 17, 18 e 19 (História de Elias); 21

(episódio da vinha de Nabot que revela a ambição de Acab, Elias anuncia o castigo de

Jezabel) e 22 (aliança entre Acab e Josafat, os dois reis, do sul e do norte de Israel

respectivamente, que viviam em harmonia. Morte de Acab).

ACTOS E CENAS

Um prólogo, onde nos surge o resumo da acção apresentado pelo spiritus mendax

(espírito sedutor/diabo) com o intuito da captatio benevolentiae, recorrendo ao aparato

cénico. Cinco actos, ao modo clássico, que não seguem uma narrativa cronológica, como

era próprio da tragédia. São 18 cenas, 2836 versos e os coros no final de cada acto apelam,

com auxílio da música e da dança, à reflexão e à educação da virtude, condenando os

717 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica …cit., p. 173. 718 Em Portugal, estava-se a viver uma época de insegurança a nível político e de decadência a nível social. D. Sebastião com apenas três anos de idade em 1562, subiria ao trono no ano da representação de Prodigus de Luís da Cruz, tendo desaparecido misteriosamente dez anos mais tarde na batalha em África que o denominaria “o Encoberto”.

Segundo MARGARIDA MIRANDA, “a Achabus e a Saul Gelboeus de Miguel Venegas permitirão pois alargar a compreensão do fenómeno cultural e literário que foi o sebastianismo entre nós.”. A estas peças juntam-se, neste intento, a tragédia do príncipe João - Ioannes Princeps Tragoedia - de Diogo de Teive e a tragédia Sedecias de Luís da Cruz (1970) (Ibid., p. 325).

Além disso, como diz CLAUDE HENRI FRECHES « On peu donc considérer cette tragedie comme la défense d’une thèse catholique, au moment où le Protestantisme propage l’idée quasi augustinienne d’une totale gratuité de la miséricorde et de l’amour divins » (Le Theatre neo-latin au Portugal…cit., p. 204).

Acerca da situação em Portugal, vide supra, p.149, nota 554. 719 MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica …cit., p. 173.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

198

vícios e as paixões, surgindo no acto IV o coro dos maus profetas como força oponente a

essa função.

PERSONAGENS

Das vinte e quatro personagens, entre alguns papéis secundários, os servos que são

colaboradores na obra de Deus, Auriga de Acab, e dois papéis sobrenaturais, Prólogo e o

Anjo que protege e alimenta Elias, salientamos o rei temporal, Acab e sua esposa Jezabel.

Os filhos de Acab, Ocozias e Jorão, o seu aliado rei Josafat, e os profetas bom e

verdadeiro, Miqueias, e o mau/falso, Sedecias, além do imprescindível profeta Elias.

2.1.1. Amor de Pai e ao Pai

PLANO IMANENTE - REI /SÚBDITOS

CARIDADE, BONDADE, PERDÃO

Acto III - No v. 1253, o autoritário Acab, referindo-se à recusa de Nabot em vender o

terreno que era “herança paterna”, “da qual não podia abrir mão”, porque “não quis

abandonar a herança dos maiores”720 (v. 1369) afirma: “E rogos de rei valem por

ordens”721.

No diálogo de Abdias, fiel a Javé, com Acab sobre a apologia dos valores regentes de

um “forte império”, sobressai o dualismo entre o Amor/Clemência e o Medo/Terror. Aos

vv. 1305-1306, onde Acab diz: “pois pior é o amor. Vastas vezes o [império] guarda o

medo: / Guarda aquilo que, imprudentemente, o amor deita a perder”. Returque o avisado

Abdias com os vv. 1309-1310 e v. 1312 - “Poucos poderia eu lembrar que o amor a perder

deitasse / Muitos lembro todavia que o medo fez perder.”; “Seja o amor a governá-lo”722.

720 Cf. pp. 507, 506: Hereditate cedere patrum noluit 721 Cf. pp. 497, 496: Et regiae sunt instar imperii preces 722 Cf. pp. 501,500: Peior amor! Illum saepe custodit metus. / Custodit ea quae perdit imprudens amor.;Paucos amore perditos, multos metu / Memorare possem!; Amor gubernet!

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Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

199

Nos vv. 1316; 1317-1320, insiste Abdias na sua tese do amor ao próximo - “Acho mais

prudente que os reis sejam amados.”; “Se amassem, os que fazem a guerra…”; “Mais

força pode dar o perdão cedido aos súbditos. / Até inimigos estrangeiros a clemência sabe

mover, / e melhor do que o ferro, vence sempre a bondade”723.

Acto V- Nos vv. 2365-2366, o diálogo entre o príncipe Ocozias e Amon revela certo

paralelismo com o debate anteriormente exposto. Ocozias diz que “o amor da Pátria

aconselha-nos o temor”, ao que Amon acrescenta: “Mas proíbe-to a virtude da pátria”724

Acto IV - No v. 2039, Josafat adverte Acab para a impaciência e desagrado deste em

relação às prudentes palavras do profeta de Deus, Miqueias, setenciando: “Quem fere o

servo fere também a Deus”725.

DOR E SOFRIMENTO

Acto III - Nos vv. 1766-1768, o coro perante a “conversão” de Acab que mostra o seu

arrependimento e pede perdão profere tais palavras: “à dor vencedora / se oferecem aliadas

a Fé e o Amor, / a Esperança unida ao temor”726.

Acto V- Nos vv. 2308-2309, após o conhecimento da desgraça de Acab, o solilóquio do

Auriga revela-nos reflexos dolorosos naqueles que se relacionam com o rei. Trata-se da

morte do pai e esposo da nação e de família - “Os filhos chorarão seu pai, e logo a esposa

seu marido; / seu senhor os servidores, e os soldados seu chefe”727.Nos vv. 2435-2436, o

mesmo Auriga ao dar a fatal notícia aos “reais rebentos” afirma que […] Caiu por terra / o

reino com seu Rei. Com o pai ruiu a Pátria.”. Ocozias, nos vv. 2442-2443, reage “[…] Ó

triste mãe com tristes filhos! / Ficou viúva a Pátria. Ei-la vencida, hoje, posta de rastos”728.

Nos vv. 2622-2624, o mesmo Ocozias mostra a sua desolação - “[…] Um pai invencível

pereceu, / pereceu um império. Para mim o estado de Israel / pereceu pela raiz. […]”729.

723 Cf. pp. 503, 502: Tutius amari puto; Bella qui gerunt, ament; Securiorem uenia quae ciui datur. / Clementia quoque bárbaros hostes mouet. / Meliusque uincit saepe, quam ferrum, fauor. 724 Cf. pp. 595-594: Patrius iubet Amor timere / Pátria sed uirtus uetat 725 Cf. pp. 567, 566: Quisquis ministrum laedit, et laedit Deum 726 Cf. pp. 541, 540: […] Comites ruenti / Se fides praestant, amor, et timori / Iuncta spes, lapsus odium prioris. 727 Cf. pp. 591-590: Nati parentem, protinus coniux uirum, / Dominum ministri, milites flebunt ducem. 728 Cf. pp. 603, 602: […] Incubit suo / Cum rege regnum. Patria cum patre corruit.; […] O mísera cum natis parens! / Nunc uidua pátria est, uicta nunc, nunc funere 729Cf. pp. 617, 619; 616, 618 […] Periit inuictus pater, / Imperia pereunt, res mihi funditus / Hebrea periit. […].

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200

PLANO TRANSCENDENTE - JAVÉ (REI INTEMPORAL)/ACAB (REI TEMPORAL)

BONDADE, MISERICÓRDIA, PIEDADE - AMOR

Acto I - Nos vv. 269-271 e 276-277, o profeta Elias refere-se à condição de bonus

Deus, Pai da bondade, e ao amor deste Pai Celeste pelos seus “filhos pecadores”, a quem

perdoa730. Confessa o seu amor (v. 287) a este Pai Praepotens aetheris Dux (Omnipotente

Senhor dos Céus) (v. 366).

Também Abdias revela a piedade, quando, em diálogo com Elias, provando a sua

lealdade para com o profeta e o seu Deus, Javé, lhe diz ter socorrido e alimentado,

escondendo-os “em fundas cavernas”, cem profetas que faziam parte daqueles, “santos

profetas” (uates sacros), que a profana Jezabel “aos deuses fenícios imolava”(Tyriis

mactabat Deis)731. Elias havia escapado deste massacre ocorrido para instituir o culto ao

deus fenício, Baal. No entanto, também o bom profeta será autor de outro massacre, de

que nos fala o coro, no acto II, vv. 631-632, “Não nos escapou, a nós ausentes, a fama

loquaz / do grande massacre que Elias perpetrou”732.

Acto II - Nos vv. 963-964, para evidenciar o louvor a um só Deus e rejeitar aos

exageros da idolatria, Elias diz: “Oh, feliz aquele que esquecido de si mesmo, / num só

Deus coloca sempre toda a esperança”733.

Nos vv. 1133-1134 e 1168, Elias invoca mais uma vez o Pater alme (v. 1143 – Pai

bondoso) para manifestar o caminho Ad amorem com o divino - “Arrebatado pelo fogo

ardente do Vosso amor, / ó Deus bondoso, da alada gente soberano”, “Ardo de profundo

amor por Vossa glória”734. Nos vv. 1213-1214, o coro reforça esta relação entre Deus e o

homem, fundamentada no amor - “Ó bondoso criador do universo, / foi tão grande o

Vosso amor para com a raça humana”735.

Acto III - Nos vv. 1335-1337, Abdias apresenta como modelo de virtudes para um rei,

o piedoso e misericordioso rei David “que ao alcance dos seus olhos, as injúrias com

730 Cf. pp. 413, 412: “ […] ó Pai, ó fonte / de todos os bens, e isento de todo o mal. / Se algum amor de pai resta ainda para com estes filhos pecadores / e nossos crimes de todo Vos não apartam da condição de Pai; e perdoai-lhes, ao menos, para mais severamente punirdes os culpados”; Pater bonorum fons, et omnis inops Mali / Si quid nocentes residet in natos patris, / Nec nostra totum scelera uacarunt patrem; Et parce saltem, grauius ut lapsos premas. 731 Cf. acto I, vv. 345-360, pp. 419, 418. 732 Cf. pp. 447, 446: Non fama nos fefellit absentes loquax / Quid strage uero gessit Elias edita. 733 Cf. pp. 471, 470: O ille felix, quisquis oblitus sui, / Omnes in uno spes locat semper Deo! 734 Cf. pp. 487, 486; 489, 488: Amoris aestu feruido abreptus Tui, / Magnanime gentis ductor alatae, Deus; Amore laudis intimo accensus tuae. 735 Cf. pp. 493, 492: Te, sator rerum boné, tene tantum / stirpis humanae tenuisse amorem.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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201

injúrias se pagassem. / Eis a mais alta virtude de um rei, que o torna semelhante a Deus, /

caro aos seus, famoso à posteridade”736.

Acto V - No v. 2819, o coro invoca a bondade de Deus - “Ó bondoso criador de todo o

mundo”737.

HUMILDADE, MODÉSTIA, ARREPENDIMENTO

Acto I - No v. 378, o profeta Elias em tom sentencioso, expondo ao seu servo a

crueldade de Acab em oposição à piedade de Abdias, afirma: “Quanto mais alto for o

lugar que ocupas, mais humilde deves ser”738.

Acto III - A mudança de Acab, atribuída pelo coro no final do acto à “Incansável,

operosa, hábil, arguta dor, / filha fiel do amor divino”739 (vv.1752-1753), surge-nos nas

próprias palavras piedosas do rei - “Deus misericordioso” (v. 1616), “Ó Pai Altíssimo!

Assim tão pouco minha mão bateu no peito? / Após tantos sinais de dor, permanece

escondido ainda / se é real ou fingida a minha dor, e com que ânimo me arrependo?”, (vv.

1621-1623)740. Nos vv. 1715-1716, diz: “Perdoai Vós, ó Pai clemente, ao réu confesso. /

Concedei-me poder enfim avistar um porto, concedei!”741.

SERVIÇO, OBEDIÊNCIA, JUSTIÇA

Acto I - Nos vv. 240-245, o profeta Elias, “rico dos bens divinos” (Opis supernae diues

– v. 203), direccionando-se a Deus demonstra o seu dever de obediência cega,

incondicional - “Mandai apenas, que isso me basta / para eu pensar que Vos deva

obedecer, / pois que, mandam verbalmente os sentimentos e também. / Obedeci-Vos

736 Cf. pp. 505, 504: Spectante sese, proba pensari probris. / Haec summa uirtus Regis. Haec similem Deo, / Suisque gratum, posteris notum facit. 737 Cf. pp. 637, 636: O rerum pater optime. 738 Cf. pp. 421, 420: Quanto altiori praestes humilior loco. 739 Cf. pp. 539,538: Impiger, solers, operosus, acer, / Certa diuini soboles amoris. 740 Cf. pp. 527, 526: Pro summe genitor, quantulum hac egi manu! / Post tot doloris signa, sit uerus dolor / Na fictus, etiam mente qua doleam, latet? 741 Cf. pp. 537, 536: Tu, bone, fatenti da, Pater, ueniam reo. / Da, da uidere posse iam portum mihi.

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202

outrora, quando as forças me não faltavam; / obedeço-Vos agora, enquanto vida me restar,

e obedecer-Vos-ei eternamente. / E quem Vos resistirá, a menos que insano seja?”742.

No v. 423, o servo de Elias, em tom setencioso diz a este: “Não temais, meu pai. Deus

vem em auxílio daquele que é corajoso na justiça”743.

Acto II - Elias, sozinho, confessa ao Clemens Pater, (v. 726), as suas penas terrenas

“Afligem-me também as longas agruras desta vida penosa. / Por Vosso amor, porém,

suave é padecer seja o que for, / longas e constantes agruras, o exílio até.” (vv. 720-

722)744.

Nos vv. 1074-1075, diz Elias: “Alimento porém mais grato é a Deus obedecer. /

Obedecer-Lhe-ei, pois. Pela mão ele guiará quem Lhe obedece”745.

2.1.2. Amor de filhos

AMOR E DOR FILIAIS

Acto V - Nos vv. 2556-2559 e 2728-2729, o filho Jorão mostra o seu coração

despedaçado com a morte do pai - “[…] Ó pai, pai, pai! / Não mais será dado ver-vos,ó

pai! / Não mais será possível gozar da vossa presença. / Flecha cruel, que tão caros

corações apartas…”; “O triste fim de meu pai, ou da pátria chorarei? / Ou ambos a um

tempo?746.

Nos vv. 2645-2646, e v. 2665, o amor dolorido do filho Ocozias perante a morte do pai

manifesta-se assim: “[…] Aonde vos impelem / a dor e o amor? […]”; “Túmulo que

encerra um pai, encerra também seus filhos!”. Amon, no v. 2630, já havia evidenciado a

piedade dos filhos de Acab -“filhos tão ternos”747.

742 Cf. pp. 411, 410: Tu iussa tantum profer. Hoc unum sat est / Iubere te quiduis ut audendum rear, / Dans quippe iussa das et obsequii modum./ Tibi obsecutus uita dum mansit fui, / Dum maneat, olim, nunc, et aeternum obsequar. / Et quis repugnet, sit nisi insanus, tibi? 743 Cf. pp. 425, 424 : Ne metue, pater. Aequa iuuat audentem Deus. 744 Cf. pp. 455, 454: Iam taedia grauis longa me uitae occupant / Et taedia tamen longa, perpetuam, fugam / Et amore Dulce est perpeti quiduis tuo. 745 Cf. pp. 481, 482: Parere tamen est gratior cibus Deo. / Parebo.Ducet ille parentem manu. 746 Cf. pp. 613, 612; 629, 628: […] O pater, pater, pater, / Te mihi uidere non dabitur ultra, pater! / Faz nec erit isto rursus aspectu frui! / Atrox sagitta, pectora ut chara abstrahis…; Casumne durum patris,an patriae fleam? / An omnia simul? […]. 747 Cf. pp. 621-620: […] Aut quo te dolor / Amore mistus pellit? […]; Quicunque patrem tumulus is natos tegit.. pp. 619-618: “piis natis”.

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Nesta manifestação do amor filial, num contexto trágico, também Jorão, o outro

príncipe, põe nas delirantes palavras proferidas a dor de um filho que admirava e amava

incondicionalmente o pai e, ao mesmo tempo, se compadece da mãe - “Ó pai valoroso!”;

“ó pai querido!”; “Fostes capaz, pai, de abandonar a terna esposa?; “Mata-me antes a mim

e viva invicto meu pai”748. Nos vv. 2496 e 2498, esta interpelação ao desconhecido

assassino do pai é reconhecida pelo próprio como desaire/desespero resultante da

associação de amor e dor - “Até onde me arrasta o amor? Procuro o conhecido de

ninguém!; “Quantas visões para si inventam a dor e o amor!”749. Por isso o apelo a um

discernimento por parte da Companhia.

2.1.3. Amor dos cônjuges

Começamos por indicar as expressões proferidas pelas personagens da tragédia que

nos traçam perspectivas do matrimónio, resultando como modelo aconselhável aquele que

segue uma ordem, uma hierarquia em que a obediência cabe à esposa, à semelhança do

instituído nas escrituras. Eva foi a primeira esposa e foi ela que dependeu de Adão na sua

criação, por isso será natural a submissão feminina, ao contrário do que se passa no casal

real da peça de Venegas.

De seguida, na relação matrimonial em causa, assinalamos dois momentos: Acab,

servo da esposa dominadora; Acab, arrependido da união nefasta, mudando o seu parecer

sobre a esposa, “cabeça pecaminosa” (v. 1666 - nocens caput). É ao primeiro momento

proposto que associamos a maior parte das expressões e palavras caracterizadoras que

iremos enumerar e que, per se, nos traçam um modelo matrimonial a evitar750.

748 Cf. pp. 607-606: v. 2473, O magne genitor; v. 2477 o dulcis pater; v. 2480 Deserere poteras coniugem dulcem, pater?; v. 2492 - Me perime potius. Viuat inuictus pater. 749 Cf. pp 609-608, Quo me trahit amor? Quaero non ulli agnitum ; Sibi quanta fingit dolor, amorque insomnia. 750 No âmbito do papel educativo do teatro, nesta temática, serão oportunas as palavras de GUY BECHTEL “Amar, estar apaixonado é, até ao século XVIII, destino e desgraça”; “[…] no Ocidente, antes do século XVIII, não há um único defensor dos casamentos por amor, mesmo entre os poetas e na literatura cortesã”.; “Na escala descendente dos seres do mundo, tudo se encontra de acordo com uma ordem social e religiosa… em que a mulher é uma criatura fraca, submetida ao pai, ao marido, a Deus. Jesus nunca disse isto. Reconhecemos aqui ideias que Paulo herdou da Velha Lei, mas há outras que chegam directamente do mundo greco-romano” (As Quatro Mulheres de Deus … cit., respectivamente, pp. 68, 69, 35).

S. PAULO dizia “Quero que saibais que a cabeça de todo o homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem, e a cabeça de Cristo é Deus” (I Cor 11, 3); “O homem não foi tirado da mulher, mas sim a mulher do homem” (I Cor 11, 8).

Vide supra, pp. 133-135.

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MATRIMÓNIO - ACAB /JEZABEL

NAS PALAVRAS DE ELIAS

Acto I - Nos vv. 154; 161; 184-186; 387 e 481-482, “Não foi, ó mulher, para reinares

sobre o teu marido?”; “Submissa, enfim, expõe-te às leis do teu marido”; “Com mais razão

vos acuso a vós, homens mais prevenidos, / de quem se esperaria que dominásseis a

rebeldia dos sentidos /e à força sujeitásseis a arrogância de vossas mulheres”; “ […] é

escravo da sua esposa”; “É honesto amá-la; adorá-la é ignóbil. / Mas o rei não se

envergonha de servir a uma ignóbil mulher!751.

Acto III - Nos vv. 1515 e 1533, “Será na pena companheira aquela que na culpa o foi”;

“Os que a vida assemelhou, assemelhe-os também a morte”752.

NAS PALAVRAS DE ABDIAS

Acto III - No v. 1377, “Dos maridos é dever coibir as iras do ânimo feminino”753.

NAS PALAVRAS DE JEZABEL, REVOLTADA PELA INFERIORIDADE, SUJEIÇÃO DA MULHER E PELO

RECATO DOMÉSTICO

Acto II - Nos vv. 903; 905-907; 911-912; 917, “e a quem deixou a lã mesquinha e a

inábil peneira!”; “com que desigualdade tu repartes entre todos os teus dons! / Tão caro te

foi criares invencível o homem, / e a mim, Jezabel, me criaste mulher?”; “já que fui

escarnecida, desonrada, pobre de mim, / casada com um homem que tolera afrontas vindas

de um velho.”; “Aqui tenho eu de ficar, seja o final ditoso ou desditoso”754.

NAS PALAVRAS DE ACAB

751 Cf. pp. 405, 404; 407, 406; 423, 422; 431, 432: Regina, regeres ut tuum, mulier, uirum?;Leges subacta iam maritales subi; Vos cautiores grauius accuso, uiri, / Cohibere sensus quos reluctantes decet /Et arrogantes coniugum fastus manu;[…] coniugi seuit suae; Amare honestum, turpe adorare est tamen. / Seruire regem feminae turpi haud pudet. 752 Cf. pp. 519, 518; 521, 522: Erit illa poenae quae fuit culpae comes; Quos uita fecit, mors faciet eadem pares. 753 Cf. pp. 509, 508: Cohibenda mentis ira feminea est uiris. 754 Cf. pp. 467, 466: Largita lanam sordidam et inertem colum!;Vt dona sorte diuidis iniqua omnibus! / Fecisse tanti fuerat inuictum uirum, / Me Iezaelem feminam! […]/; Irrisa, inulta, unius opprobrium senis / Heu misera, nimium nupta patienti uiro;Hic est manendum, faustus infaustus, mihi.

Vide supra, p. 136.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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Acto III - Nos vv. 1706-1713, salientamos apenas os dois primeiros: “Jugo ruim de

servidão, lhe chamo eu, / e bem mais pesado fardo do que todas as montanhas!” e

expressões como “pior dos males”, “vida sempre exposta”, “jogado no meio destas

ondas”755.

NAS PALAVRAS DO ESPÍRITO DA MENTIRA – PRÓLOGO

Acto I - Nos vv. 62 e 76, “Há-de faltar-te, ó infeliz, a ajuda da esposa para suportar

tuas penas.”; “Aquilo que deixas por concluir, julga-o coisa vergonhosa, de mulheres”.

MATRIMÓNIO - ACAB, O MARIDO SUBJUGADO /JEZABEL, A ESPOSA INSUBMISSA

Acab é caracterizado pelos homens, servos fiéis de Deus/Javé, como um “péssimo

marido” (v. 261- pessimo uiro), segundo Abdias; “envenenado”, na perspectiva de Elias

(v. 1487 – venati Achabi). Todavia, o seu guarda considera que “Ele é clemente e piedoso,

/ comparado com a esposa que não sabe refrear o que sente” (v. 1100). Esta esposa,

inconformada e reivindicativa - “Ó corações brandos de mulheres sem audácia” (v. 900) -

considera o marido “um homem assim tão fraco” (v. 909).

Em contrapartida, o marido subjugado considera-a “leal Jezabel” e “pia esposa” (v.

1265 e 1267); “mulher dotada de viril lealdade” (v. 1272); com poder político (vv. 1284-

1285 - “pois tudo o que a nossa esposa, com nosso anel selar, / nós selamos também […]);

“honesta esposa” (v. 1374) e uma companheira preciosa (vv. 1380-1381 – “Oh, três vezes

feliz de mim, companheiro de tal esposa / que rico me torna e poderoso!”).

Esta favorável caracterização de Jezabel é eliminada por um retrato antifeminista

construído pela maior parte das personagens para denegrir a imagem de uma mulher

soberana da relação conjugal, sujeita a um furor selvático e irracional, defensora de uma

simulata uirtus (v. 1005), pois adora Baal e converte seu marido a este culto. Além disso,

manipula o marido nas decisões governativas, o que demontra que Jezabel, tal como no

seu país de origem, Fenícia, também estava convencida que em Israel a realeza podia deter

755 Cf. pp. 535, 534: Ego seruitutis asperum iugum uoco, / Grauiusque multo montibus cunctis onus!

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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direitos absolutos sobre os vassalos756. O feminino aparece associado a “ardis femininos”

(v. 183 - artes femineas), a “paixão rebelde” (v. 158 -contumaces adfectus), “pensamentos

altivos” (v. 159 - insolentes spiritus); apenas a maternidade escapa ao quadro negativo,

pois os filhos compadecem-se da mãe viúva.

Passamos a enumerar as expressões que comprovam os defeitos morais que levam ao

pecado e que são protagonizados por Jezabel. Poderemos encará-la como a Eva bíblica

que conduz Adão à desobediência ou a épica e despeitada rainha cartaginesa Dido, e ainda

a cruel grega Clitemnestra757.

NA OPINIÃO DO INIMIGO ELIAS758

Acto I - Nos vv. 146, 150-152, refere a “bela esposa” (consorte pulchra), “celerada”

(Nefaria), “a terrível, a torpe, a aleivosa, a cruel, a feroz, / a sinistra Jezabel, ruína do

Vosso reino!”759.

Nos vv. 155, 162, 165-166, é, segundo ele, “mulher insana e rude” (feminae insanae,

rudi). “A pintura repelente limpa dessa boca imunda”; “A que mal, a que miséria somos

chegados: / que o sagrado poder divino nos venha / pela boca e pela mão de uma

mulher”760.

Nos vv. 170-172, “Ó língua impostora de mulher, de deuses artífice! / Ó áspide, que de

fundo sono os corações inundas! / O teu veneno mortal, com que boca sedutora o

vomitas”761.

Acto II - Nos vv. 719, 745 e 750, “mulher desvairada e sacrílega” (feminae, insanae,

impiae), “mulher desarmada”(inermem feminam); “Vou ao encontro das ventas selvagens

da rainha furibunda”762.

756 MARGARIDA MIRANDA diz que “Para o melhor e para o pior, a Jezabel criada por Venegas em 1562 foi assim a primeira e talvez a mais poderosa personagem feminina do teatro escolar do séc. XVI” (Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica …cit., p. 308). Esta personagem feminina, pelo furor e sedução das palavras e do figurino, terá contribuído para o estipulado nas normas do Ratio, quer em 1586, quer em 1599.

Sobre este assunto, Cf. Ibid., p. 309, nota 616. 757 Cf. Ibid., p.313 e 319 758 No acto II, v. 935, pp. 469, 468, o anjo denuncia o medo que Elias tem da poderosa Jezabel: “atormentado por ameaças de mulher” (Et femineis agitate minis). 759 Cf. pp. 405, 404: Violenta, turpis, uana, crudelis, ferox, / Funesta regni Iezabel labes Tui! 760 Cf. pp. 405, 404: Immunda tetris ora pigmentis uacent.

Sobre o uso da maquinhagem, vide supra, p. 138. Huccine miseriae, et huccine Mali uenimus:/ Diuinitas ut ore muliebri et manu. 761 Cf. pp. 407, 406:O mala deorum feminae língua artifex! / O aspis altum cordibus somnum irrigans / Letale uirus ore quam blando uomis! 762 Cf. pp. 457, 456: Impia frementis ora reginae peto.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

207

NA OPINIÃO DO AVISADO ABDIAS

Acto I - Nos vv. 348, 351, Abdias denomina-a “sacrílega Jezabel” (Profana Iezabel);

“furor mulheril” (muliebri furori).

NA OPINIÃO DA PRÓPRIA JAZEBEL

Acto II - Nos vv. 821, 830-835, salientamos: “Dai-me então um ânimo viril” (Mihi uos

uiriles spiritus tamen date); “vingadora”(ultrix), “leoa”(leaena), “furibunda” (Omnis

impatiens morae). Nas próprias palavras de Jezabel, o furor selvagem e irracionalidade

revelam-se nos versos atrás citados e prolongam-se aos vv. 840-843.

NA OPINIÃO DE UM CIDADÃO

Acto II - No v. 1024, “A mulher assanhada servo algum deve obedecer”763.

NA OPINIÃO DE UM GUARDA

Acto II - Nos vv. 1102-1103, em contraste com Acab “clemente e piedoso”, ela é

“insolente, indómita, fora de si e pertinaz, / essa mulher poderosa uma vez ferida não logra

vingar-se”764.

NA OPINIÃO DE UM SERVO

Acto V - No v. 2757, “Grande dor está ferindo a viúva, vossa mãe. Ela grita, chora,

geme”765.

NA OPINIÃO DOS CLEMENTES FILHOS

763 Cf. pp. 477, 476: Famulus iratae obsequi non debet ullus. 764 Cf. pp. 483, 482: Et insolens, indómita, demens, pertinax, / Si laesa mulier nequeat ulcisci potens. 765 Cf. pp. 631, 630: Maximi uiduam opprimunt matrem Dolores. Ululat, ingemit, eiulat,

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

208

Acto V - Nos vv. 2480-2481, 2767, “Fostes capaz, pai, de abandonar a terna esposa? /

Oh, feliz aquela a quem é poupada a morte de seu marido!”; “Como é infeliz a mãe, de seu

marido apartada”766.

NA OPINIÃO DO CORO

Acto II - Nos vv. 1203-1204, “Ó impostora, ó cruel, ó sangrenta, aleivosa Jezabel, /

esposa ruim de um marido que em tudo a ti se iguala”767.

MATRIMÓNIO - ACAB, O MARIDO DESENGANADO / JEZABEL, A ESPOSA INIMIGA

Acto III - Nos vv. 1684-1685, o arrependido Acab toma consciência da desgraça que

foi o seu matrimónio com esta mulher, traçando o verdadeiro, ou melhor, o correcto retrato

da sua esposa, em particular, e da mulher, em geral, e em sintonia com as clarividentes

observações da quase totalidade das personagens.

Nos vv. 1680-1682, “Ai esposa, esposa minha, fatal inimiga minha”; “Perdição da

minha linhagem”, “praga primeira da desgraça”768.

Nos vv. 1700-1701, “Ó animal ferido, indómito e insolente, / vário e aleivoso, instável,

hipócrita e arrogante, ó mulher”769.

UNIÃO - ACAB /ISRAEL

Acto II - No v. 809, as palavras de Jezabel - “e ao morrer uma esposa deixe viúvo um

reino” - realçam o papel de rainha, pois era o rei, na época renascentista, que esposava a

nação770.

766 Cf. pp. 607, 607: Deserere poteras coniugem dulcem, pater? / O illa félix quam uiri interitus latet!; Deiecta quanto est mater infelix uiro! 767 Cf. pp. 491, 490: Perfida, immanis, uiolenta, fallax / Iezabel, coniux similis mariti, 768 Cf. pp. 535, 534: O uxor, uxor, hostis o potius mihi / Mortífera tibique, generis excidium mei! / Prima imminentis Jezabel labes Mali. 769 Cf. pp. 535, 534: O animal aegrum, femina, indomitum, insolens / Varium, dolosum mobile, ambiguum, procax. 770 .Cf. MARGARIDA MIRANDA, Miguel Venegas S.I. e o Nascimento da Tragédia Jesuítica …cit., p. 658, nota 107.

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209

2.1.4. Amizade

FIDELIDADE, LEALDADE, GRATIDÃO, OBEDIÊNCIA

Acto IV - O rei do norte de Israel, Acab, e o de Judá, do sul de Israel, Josafat, aliam-se

com um intento comum, o de “reconquistar as cidades roubadas”. São fiéis a deuses

diferentes, o primeiro a Baal e o segundo a Javé, mas a gratidão é visível na aliança e

companheirismo para que, com “comum interesse” (v. 2184), se consolide o poder de

Acab, expandindo o seu território771. No v. 2182, Acab diz: “E se vencer, gloriar-me-ei de

ter um rei por companheiro da minha glória”772.

A lealdade e a obediência são manifestadas nas palavras do piedoso Josafat que, apesar

dos receios em aceitar tal hybris no apelo à guerra protagonizada por Acab, invoca,

timidum Dei (“temente a Deus”, v. 2208), sempre um “Deus propício”, o “Senhor

Omnipotente”. Encara a coligação como virtuosa, mesmo que “fiel a vós me repute, e a

Deus infiel” (v. 2211)773.

Passamos a indicar as falas dos envolvidos. No v.1822 e no v. 1825, Acab diz: “Não

sofrerei por muito mais tempo ficar devendo-vos tal gratidão” (Debere me non patiar has

grates diu) “[…] maior é o aliado que procuro” (maius hoc, maius paro).

Nos vv. 1856-1859 e 1862, em diálogo com o seu “leal companheiro de batalha” (v.

2192, belli comes), continua: “Eu próprio vos rogo agora, pelos santos laços de família /

que nos unem, e por Jorão, vosso filho, / que muitas vezes vos pedi para genro, / queirais

ser chefe ou companheiro nesta batalha”; “na guerra hostil achareis prova de amizade e

lealdade”774.

Nos vv. 1871-1872, Josafat reage aos rogos de Acab - “Assim como nós somos um só

no ânimo e dois no corpo / assim também convém que dos dois exércitos um só se faça”775

. Tais palavras levam Acab a realçar a lealdade do rege cordato (“rei avisado” - v. 1886);

771 Cf. Ibid. p. 259 e cf. pp. 549, 548, vv. 1840-1855. 772 Cf. pp. 577, 576: Si uinco, laudis comité rege glorior. 773 Cf. pp. 581, 580 deo infidelem, tibi fidelem censeant. 774 Cf. pp. 549, 548: Te per ego sancta uincula contractae rogo / Affinitatis, perque Ioranum tuum / Natum, generumque saepe quaesitum mihi, / Vel dux uel huius esse conflictus comes ; Bello probatur amica in hostili fides. 775 Cf. pp. 551, 550: Nos sumus ut unus mente, corporibus duo; / Sic e duobus agminibus unum fore.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

210

nos vv. 1876-1877 - “ Demonstrais um coração que não se esquece da aliança contraída. /

Com maior razão excedeis ainda a lealdade prometida”776.

Nos vv. 2216-2217, a obediência ouve-se, à maneira de fides romana, nas palavras de

Josafat - “A vós e às vossas ordens obedecerei, como convém. / Assim mo exige o

princípio da hospitalidade”777. Já no v. 1960, Acab atendera ao pedido que o seu

companheiro de guerra lhe fizera em relação à convocação do profeta Miqueias, apesar de

o odiar, pois não pertencia ao grupo dos profetas de Baal – “Odeio esse Miqueias, mas

mandais-me amá-lo? Pois amo-o”778.

Nos vv. 2161-2162, a piedade de Josafat reconhece-se, quando este apela à clemência

de Acab para com o bom profeta Miqueias - “Concedei o perdão, Acab! Uma sagrada

profecia vo-lo manda. / Não deixarei que odiosamente se perca um amigo e aliado”779.

ADULAÇÃO

Acto IV - O Profeta Sedecias e o coro dos Maus Profetas representam aqui os

aduladores que as palavras de Josafat, nos vv. 1989-1994, esclarecem - “Tenho eu por

mim que estes são de Baal e não de Deus, os verdadeiros. / Estes profetas, Acab, os seus

ritos, a aparência, as fúrias, / tudo me é suspeito. Quem receia ser verdadeiro / prefere ser

agradável, e embora certo da desgraça, / leva-nos, transviados, aos perigos mais evidentes.

/ Não deis fé à voz do adulador”780.

776 Cf. pp. 551, 550: Ostendis initi foederis pectus memor. / Maiore pactam uincis et mérito fidem. 777 Cf. pp. 581, 580: Tibi, ut uidetur, obsequar, iussis tuis, / Ut hospitalis ratio iuris postulat. 778 Cf. pp. 559, 558: Odi Michaeam, sed iubes amare? Amo. 779 Cf. pp. 577, 576: Ignosce, Achabe! Sacra relligio incitat. / Nec foede amicum labi et affinem sinam. 780 Cf. pp. 563, 562: Hos ego Baalis, non Dei ueri, rear. / Achabe, uates, ritus, aspectus, furor / Suspecta mihi sunt. Esse qui ueri timent / Grati esse malunt, nosque tranuersos agunt / In aperta certi funeris discrimina. / Caue blandientis arroges linguae fidem.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

211

3. LUÍS DA CRUZ E A TRAGICOMÉDIA PRODIGUS (1568) Tal como fizemos anteriormente, não nos vamos deter na análise detalhada da vida e

obra do P. Luís da Cruz, denominado, segundo o costume humanista, Ludouicus Crucius,

o qual entrara para o “Noviciado da Companhia, no colégio de Jesus, em Coimbra.

Estávamos no início de 1558”781.

Devemos atender aos seus papéis de teorizador poético, eloquente orador, prefeito de

estudos e à sua acção como docente das bonae litterae em Coimbra782, onde fora também

aluno/actor na classe de Humanidades de Miguel Venegas. A sua ocupação no teatro

académico

“representava um complemento da sua actividade quotidiana de docente. Nele procurava para a

fadiga de todos os dias uma distracção culta, que aproveitava também aos alunos e derivava para

quantos, e muitos eram, os que desde pais dos alunos e autoridades académicas e religiosas até a

nobreza local, acorriam a estes espectáculos783.

Anteriormente já abordámos o Praefatio ad lectorem que acompanhará a edição de

seis peças em Lyon, um ano após a sua morte, 1605; bem como o prefácio inédito, anterior

àquele, “que inclui igualmente o texto de dois dramas do autor, a tragicomédia Prodigus e

a comédia Vita-Humana, divulgado por Manuel José de Sousa Barbosa784. Este estudioso

adverte para duas fases distintas e separadas cronologicamente, quando se fala das peças

de Luís da Cruz, a da representação e a da edição, efectuando-se, assim, a impressão de

Prodigus 37 anos após a sua representação na cidade universitária. A sua redacção,

possívelmente, localiza-se no Colégio bracarense de São Paulo785. Os registos epistolares,

781 ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, Teatro Jesuítico em Portugal no século XVI – A tragicomédia Iosephus do P.Luís da Cruz … cit., p. 23. Sobre dados biobibliográficos mais pormenorizados remetemos para a obra citada pp. 21-51. 782 CLAUDE HENRI FRECHES diz que «il fut douze ans professeur à Coimbra. Puis durant neuf ans, préfet des études au Collège des Arts» (Le Theatre neo-latin au Portugal… cit., p. 241). 783 P. LUIS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina… cit., vol. II, p. 9. 784 MANUEL J. S. BARBOSA, “Luís da Cruz e a poética teatral dos Jesuítas: o prefácio que ficou inédito”, in Euphrosyne 28 (2000) 376.

Vide supra, p. 103, nota 371 e p. 108, nota 388. 785 Luís da Cruz iniciara a sua carreira de docente neste colégio, onde leccionara humanidades e retórica, desde 1563 a 1566. (Cf. ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, “No IV centenário da morte do P. Luís da Cruz, S. J. (1543?-1640)…”cit., p. 470-471).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

212

como foi dito quando falámos de Miguel Venegas, contribuem para a recriação do

ambiente em palco e na plateia786.

A escolha desta primeira peça de Crucius, sobre quem se teceram tais elogios - “Que

potência criadora! Que profundo estudo do coração humano!”787-, foi condicionada pelo

valor que encerra no plano dos afectos de um pai de intenção pura e apaixonado por dois

filhos diferentes, mas iguais nas fraquezas humanas. O mais novo, protagonista da

prodigalidade e de “afeições desordenadas”, é o desobediente, enquanto a obediência e

serviço do mais velho ainda se encontra longe da perfeição, devido ao despeito

manifestado no último acto, como veremos. Poderemos estabelecer paralelismo com as

relações de governação entre rei e súbditos da corte788. A caridade e a amizade fraternas

são sustentáculos no trabalho e no compromisso de cada qual consigo e com os outros.

Ainda devemos ter em mente a comunicação amorosa entre Deus Pai misericordioso,

de que Cristo nos dá o exemplo de paciência perante o pecador e frágil homem. Daí a

necessidade cristã de iniciar o caminho da espiritualidade de serviço, como o faz o

exercitante nos Exercícios Espirituais. Os próprios colégios poderiam ser encarados como

lugares onde o estudo, a oração e a interacção pedagógico-didáctica, seguindo um modo e

uma ordem bem definidos, auxiliavam na procura da condição de “filho obediente e

disciplinado”, para poder tomar consciência da “responsabilidade que tenho de ser uma

pessoa espiritualmente adulta”789.

Podemos estabelecer a ligação entre a mimesis ficcional e seu valor normativo com a

pedagogia vivida e descrita no espaço e no tempo e a finalidade última que se propõe

alcançar - aspectos analisados no segundo capítulo da primeira parte deste trabalho.

A uis tragica e a uis comica da peça interessam aqui em função de uma pedagogia de

afectos, contra as paixões e a favor de hábitos virtuosos, assentes na obediência e na ca-

ridade essenciais na concepção do amor ordenado. Tudo isto se enquadra numa dimensão

espiritualizada, ascética, diríamos de maturidade e até de discernimento inaciano.

786 A propósito CLAUDE HENRI FRECHES apresenta-nos um excerto de uma carta datada de 1 de Janeiro de 1569, onde Manuel de Góis nos revela o entusiasmo do público, aquando da representação de Pródigo, bem como a forma como se vestiam os actores (Cf. Le Theatre neo-latin au Portugal…cit., p. 280). 787 Apud FRANCISCO RODRIGUES, “História da Companhia de Jesus…cit., vol.II, tomo II, p. 90. 788 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES refere a típica “interligação do mundo do amor com a idealização política, a que as cidades ideais do Renascimento não são alheias, é bem reveladora da importância do papel que assume nesta época a esfera dos afectos humanos e sua realização” (“O tema do amor na tragédia humanista: amor sagrado e amor profano”…cit.p.187).

Nesta peça, Luís da Cruz, que irá ver Portugal a perder a sua independência em 1580, reagindo com alguns epigramas, em 1584, Pro patria e contra o dominador da península ibérica, Filipe II, irá fazer o paralelo entre a casa paterna e a pátria, como veremos. 789 HENRI J. M. NOUWEN, O regresso do filho pródigo… cit., s.d., p. 156.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

213

Num teatro festivo de atracção dos sentidos, à maneira humanista, mas que almeja

formar o espírito do homem de boa vontade, todas as outras peças de Luís da Cruz

poderiam servir para exemplificar um código moral no que diz respeito às relações

afectivas. Na comédia Vita Humana, representada em 1571 ou 1572 no Colégio das Artes,

a luxúria aparece fugazmente representada por um jovem casal de namorados. Na tragédia

Sedecias, representada em 1570, destacando-se na assistência o jovem rei de 16 anos, D.

Sebastião, leva-se a cena “o quadro harmonioso do amor do pai, Sedecias, e do amor

heróico dos filhos, ao morrerem juntos e abraçados”790. A tragicomédia Iosephus,

representada entre 1572 e 1577, apresenta-nos o exemplum do pai Jacob, com as

preocupações e afectos associados ao amor paternal, tal como o exemplum do virtuoso

filho protagonista da peça, José. Esta personagem mostra a força do amor, sabendo

perdoar aos 12 irmãos que se arrependeram e ainda apela à confiança a ter no Pai do Céu,

fazendo apologia da perseverança791.

Todas as representações deste teatro didáctico-pedagógico, que não tinha como

prioridade explícita a expressão amorosa, mas não descurava este tema como fonte do

trágico e do humano, atendiam a uma temática erudita protagonizada por heróis que

induziam à meditação sobre o dizer, o saber e o poder. Deste modo, os “argumentos

verdadeiros tirados das páginas sagradas”, como diria o próprio autor, não deviam ser

considerados fábulas - entendemos este vocábulo na acepção pagã de narrativas acerca de

deuses, semideuses e heróis mitológicos - mas sim constituiriam invenções792 e

representações apologéticas com implicações religiosas e políticas ilustrativas de um

theatrum castum, “salutar para a inteligência e o pensamento”793.

A tragicomédia bíblica recorre à parábola794 dos dois filhos datada do séc. I a.c. que

aparece no Evangelho de S. Lucas (Lc 15, 11-32), juntamente com mais duas, “a ovelha

perdida” (Lc 15, 3-7) e “a dracma perdida” (Lc 8-10), sob a temática da misericórdia. A

790 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “O tema do amor na tragédia humanista: amor sagrado e amor profano”…cit., p. 190. 791 Remetemos para ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO indicando algumas páginas do seu estudo sobre esta peça, as quais seguem a ordem da explanação de ideias feita. Estas dependem da perspectiva de submissão filial, “um profundo amor e veneração a Jacob marcam esta relação filius/pater. Laços marcados pela emulação, numa grande afinidade com a educação pelos exempla, de tradição clássica” (Teatro Jesuítico em Portugal no século XVI – A tragicomédia Iosephus do P.Luís da Cruz. … cit., p. 307; pp. 112, 116, 128, 299, 302; pp. 129, 275, 327). 792 Vide supra, pp. 110-111. 793 MANUEL J. S. BARBOSA, “Luís da Cruz e a poética teatral dos Jesuítas”…cit., pp. 394-395: uera argumenta ex sacris literis petita […] Nostrum porro thetrum castum est […] menti et cogitationi salutaria esse possint 794 Etimologicamente, parábola, com origem grega significa “comparação; aproximação; semelhança; discurso alegórico; encontro…. No Evangelho aparece na acepção de narrativa alegórica que encerra um preceito religioso ou moral” (ANTÓNIO HOUAISS … cit., p.2126).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

214

fonte onde foi beber esta tragicomédia é a parábola mais dominante do Evangelho,

inspiradora de peças como Acolastus, representada em Lisboa em 1556, depois de 27 anos

após a sua estreia e motivo de referência para Crucius, e Asotus, datada de 1540795. Sendo

exclusiva de S. Lucas, ela sublinha o carácter do “evangelista da misericórdia”. Neste tipo

de narrativa alegórica, a mensagem é indirecta, cabendo a cada um tirar a ilação ou a lição

devidas para a sua vida humana.

Com uma dimensão muito maior que a fonte de inspiração, “uma média de quase 200

versos por cada um dos versículos do texto de S. Lucas”796, esta peça, em cena, no ano de

1568, no pátio do colégio de Coimbra, mostrava todo o labor esforçado do professor

autor/encenador e dos alunos actores.

Dos saberes clássicos apropriados à ética cristã podemos salientar o recurso a

metáforas marítimas797 e a sentenças que reflectem o estoicismo798 e o epicurismo -

doutrinas filosóficas que as canções e cantos põem em cena, à maneira das odes

horacianas. As intervenções dos coros, no final de cada acto, também constituem

contributos preciosos neste campo. As entidades divinas pagãs como Baco e Ceres – liga-

das aos excessos e prazeres dos banquetes (gula), tão atractivos à adolescência - o Cupido

e a “fatal Vénus” com os prazeres da carne (luxúria), tal como alusões directas à cultura

latina comprovam, no seu todo, a eruditio de professores e alunos, porém advertem,

simultaneamente, para a ruptura e a recusa do homem em fazer a vontade de Deus799.

Com a escolha deste argumento, podemos estabelecer um paralelismo entre o

famigerado dramaturgo jesuíta e Jesus de Nazaré, já que este ensinara e comunicara a Boa

795 Esta obra de Machropedius não inspirou Luís da Cruz como a obra de Gnapheus (Cf. CLAUDE HENRI FRECHES , Le Theatre neo-latin au Portugal…cit., pp. 278-280). 796 LUÍS DA CRUZ, O Pródigo, Tragicomédia Novilatina … cit, vol. I, p. 9).

CLAUDE HENRI FRECHES aponta os actos I e V como os fidedignos à parábola, sendo os restantes a prova do mérito e imaginação do autor (Cf. Le Theatre neo-latin au Portugal… cit., p. 241). 797 Nos vv. 206, 207, 209, a imagem típica do renascimento do belo barco sujeito aos ventos da vaidade e consequente naufrágio A propósito das imagens naúticas remetemos ainda para os vv. 319-322, Fileno equipara Neomaclo a um rochedo resistindo ao intento a que se propõe, apesar da “tempestade familiar”; nos vv. 1058-1060; a imagem do pescador, neste caso o falso amigo que “lança o anzol” a Neomaclo. 798 Na análise a fazer da Tragicomoedia Prodigus, seguiremos o critério apontado na pág. 108, nota 389.989. O número da primeira página refere-se à tradução e o número da segunda ao texto latino, seguindas pela indicação dos versos, sempre que esta indicação não constar do corpo do texto.

São várias as sentenças, destacando a título de exemplo duas retiradas do acto IV, cenas II e V, respectivamente: Cf. pp. 178; 168, vv. 2692-2693: “Ó vida, que não és estável nem boa para ninguém, a não ser para o sábio.”; O vita nulli stabilis, nulli Bona / Nisi sapienti! […]”; Cf. pp. 188; 182, v. 2981: “Não tenho ócios para te ouvir, tenho negócios”; Non audiendi est otium, est negotium 799 Salientaremos apenas os versos onde se poderá confirmar que: são três as vezes que Baco aparece associado aos prazeres (vv. 901; 1920, 2024); duas vezes a aparição do nome do Cupido (vv. 796 e 4003); duas a damnosa Venus (v.v 1953 e 3249); uma referência ao vento Austro (v. 1967); à morada de Plutão (v. 2144). Palavras como “senado” (v 1484) para designar o grupo dos Sicofantas e os “triúnviros”, “litores” (vv. 1592, 1593) remetem-nos para a organização política de Roma. As intervenções do coro, no fim de cada acto, comprovam claramente uma linguagem com imagens e motivos clássicos e romanos.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

215

Nova de viva voz aos seus discípulos, através de parábolas. A escrita dessa doutrina de

salvação, baseada em exemplos e parábolas, propunha como principal ensinamento a lei

do amor, o mandamento novo: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”. Imperativo

que condicionará duplamente a conduta moral da pessoa cristã: amor a Deus Pai e amor ao

seu semelhante, ao seu irmão - amor ao próximo.

Na pedagogia jesuítica, a educação, baseada nas ideias, vontade e coração, permitiria o

conhecimento pessoal - chegar à “casa interior” - e a libertação do pecado, para assim ir ao

encontro do fim último: chegar à casa do Pai Celeste.

Esta parábola, como veremos, alerta para a atenção a ter com cada pessoa. Aplicada ao

contexto escolar, o cuidado com cada aluno (cura personalis), mesmo que seja um caso

perdido, pois como no-lo diz o coro no acto V: “por um só réu que chora as culpas há

alegria no céu”800. Apela para evitar a indiferença em relação a tudo e a todos que fazem

parte da caminhada terrestre, diríamos neste contexto do trilho escolar.

Os actores e os espectadores podiam ser tocados pelo sinal de reconhecimento e de

confronto perante a imagem de ser um verdadeiro cristão no relacionamento afectivo com

o outro e no relacionamento transcendental com Deus. O plano terreno e celeste

intersectam-se, estando em palco personagens que ensinavam e catequizavam e, ao mesmo

tempo, eram exercício vivo de todas as capacidades dos alunos, às quais estavam atentos

cultos espectadores. Todos podiam tomar consciência - até esta virtude está representada

como personagem alegórica no acto IV801 - de virtudes como castidade802, caridade803,

piedade804, bondade805, penitência. Esta última, também é personagem que recita o

Prólogo e que no acto IV, cena X, é chamada de mãe, de “guia e mestre”806.

800 Cf. pp. 229; 234, v. 3974: Sic reo culpas lachrymante caelum gaudet in uno. 801 Na cena II, dá-se o diálogo entre Neomaclo, o filho Pródigo, e a sua “inexorável consciência”, sem “nenhuma piedade” que se diz “Castigadora do mal” recordando de forma persistente e aterrorizadora as faltas cometidas e dizendo “Caminha, que eu te acompanharei e te queimarei com a tocha sempre ardente os flancos à espera” (Cf. pp. 175-177 e p. 166, vv. 2647-2649: […] Perge, te sequar comes / Uramque taeda semper ardenti latus / In spem […]. 802 No acto IV, cena VIII, a consciência acusa Neomaclo de ter rejeitado “o bom nome da castidade” (Cf. p. 197e p. 193, vv. 3151-3152: […] illi occludere / potuisset aures fama casimoniae […]. 803 No acto V, cena II, Neomaclo de regresso a casa do pai apela à “caridade para o mau que sou tu que és sempre bom” (Cf. p. 216 e p 217, v. 3664: Non charitatem: me malo es semper bonus. 804 Das vezes que é referida em palavras e em gestos, com maior incidência nas últimas cenas do acto V, salientamos a título de exemplo a cena VI, Neomaclo realça a “piedade inata do pai” (Cf. p. 227 e p 231, v. 3915: Pietate fretus patris ingénita […]. 805 No acto IV, cena III, vv. 2710-2720, o canto dos peregrinos recebidos por Andrófilo vai ao encontro desta virtude cristã – Cf. pp. 178; 168, vv. 2710-2711: “Quem a nós amigavelmente / ajudar com dinheiro”; Qui Peregrinos amicus / Acre nos adiuuerit. As próprias palavras de Andrófilo revelam a sua bondade: Cf. pp.179; 171, vv. 2754-2755: “a nossa casa foi sempre hospitaleira. Vinde comigo e gozai da hospedagem”; Est hospitalis nostra iam pridem domus: / Venite mecum: hospitio fruimini. 806 No Prólogo diz “que todas as idades se arrependam” e no acto IV, cena X, diz a Neomaclo “filho, dá-me a mão. Vence a vergonha, procuremos o pai bondoso, benigno, aberto às súplicas”; Nesse mesmo acto e cena, Neomaclo dirige-se-lhe apelidando-a de “guia e mestre”(Cf. pp. 43 e 203 e 205 e pp. 31 e 203, v. 120; v. 331; v. 3359: Resipiscat aetas omnis

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216

Correndo sempre o risco, nalguns casos necessário, de se perder, de conhecer maus

caminhos, a pessoa na sua caminhada poderá ceder a tentadores prazeres, à luxúria, à

utopia807 tal como o Neomaclo e os sicofantas (patifes) e foliões808. O filho pródigo

acabaria por ceder, desta forma, ao apelo da cobiça à semelhança da serpente do paraíso

perdido - voz do sonho ilimitado, do poder e prazeres totais, luxúria, cobiça, caprichos.

Todos estes males, objectivos a atingir pela louca e ansiosa vontade da juventude, em

usufruir de tudo rapidamente, se encontram no sítio onde as artes gastronómicas e teatrais

se combinam para a perdição809.

Pelo intuito pedagógico, podemos remeter ao teatro terenciano no que diz respeito a

situações criadas entre as personagens e as ideias expostas, salientando a irreverência dos

adolescentes expressa na necessidade de emancipação em relação à patria potestas, à auto-

ridade do pai poderoso, a quem se deve prestar obediência.

Mesmo sendo bom, obediente, prudente e respeitador, como Sofrónio, filho mais

velho, no início da peça, quando se é colocado à prova810, exige-se o ascetismo - denun-

ciado pelo próprio antropónimo - o esforço e a força da vontade em ser confiante no amor

paterno que é incondicional e em ser obediente e disciplinado. Deste modo, poder-se-á

evitar a inveja e de “perdido” se passe a “não perdido”811. O coro, também ele voz da consciência, poderia funcionar como um docente que

auxiliava na interpretação e, consequente, reflexão de cada um. Numa visão dua-lista/binária, ao jeito de painel setencioso, destacaríamos, por um lado, o que era característico do reino do Mal e por outro o que era exemplo no reino do Bem, propício à relação com Deus -“Aprendei a evitar as faltas com o exemplo do mísero Pródigo. Quem

[…]; […] Da manum, fili, audeo. / Unum pudorem uince, repetamus patrem /Balandum, benignae mentis exorabilem; Duci, magistra debitas grates ago . 807 CLAUDE HENRI FRÈCHES referindo-se ao mundo novo ambicionado por Neomaclo, diríamos actualmente ao “sonho americano”, afirma “Il est vrai que Neomachlus se débauche au pays des faux dieux” (Le Theatre neo-latin au Portugal…cit., p. 281). 808 Veremos que personagens constituem este grupo que representa todos os vícios e prazeres desviantes de uma conduta do bem. 809 No Acto II, cena X, Fédromo diz: “O que vós costumais fazer na arte cénica fiz eu próprio na arte culinária.” (Cf. p. 131 e p. 120, vv. 1813-1814: Quod vos in arte factitatis Scenica, / Hoc ipse factitaui arte culinária) 810 A chegada do irmão Neomaclo e a recepção calorosa do pai, desagradaram Sofrónio, que revela, num primeiro momento, incapacidade de perdoar, reagindo de forma negativa “Contas coisas detestáveis” (Cf. p. 222 e p. 225, v. 3818: Odiosa narras. 811 No acto V, cena IV, depois de Sofrónio demonstrar o seu desagrado a Sósia pela recepção “de pompa e circunstância”, levando-o a querer abandonar a casa paterna, o servo honesto diz “Acaba de chegar aquele perdido; o não perdido prepara a saída. Não consentirei; vou chamar o pai” (Cf. p.224 e p. 226;vv. 3839-3840: Modo uenit ille perditus; non perditus / Parat itionem: non feram, patrem uoco”.

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conspurca, com manchas funestas, a divina imagem, atormenta-se com a ferida da alma consciente”812.

Pela sua acção docente, pelas palavras e pelas obras, no sentido duplo que este termo

encerra no contexto em estudo, poderemos concluir que

“Numa perspectiva cívica, o humanista Luís da Cruz procurou, desta forma, a decência, a modestia,

a edificação e a formação nos bons costumes. Numa palavra, a moralidade, a seueritatem que a Societas

Iesu prescrevia. A defesa da castidade, a castimonia, era uma das suas mais altas bandeiras”813.

PRODIGUS (1568)

RESUMO DO ARGUMENTO

Um homem amigo dos homens, Andrófilo, tinha dois filhos, o jovem perdulário

Neomaclo (Pródigo) e o obediente Sofrónio. O bem parecido Neomaclo, movido pelas

inclinações e paixões da mocidade sem freio na ânsia de libertação do jugo do seu velho e

bom pai, pede-lhe a parte que lhe cabe da herança - “sete talentos”. Consegue tal intento

com a cumplicidade e apoio do servo mau, Fileno. Arrogante e petulante, rejeita as

advertências paterna, fraterna e até de Sósia, o servo honesto, e parte com Fileno para um

país longínquo. Aí tem novas companhias, amigos bajuladores - sicofantas e foliões - que

têm intenção de o roubar. É aliciado com belas palavras e prazeres de mesa, de carne, de

fascínio para todos os sentidos. Está constantemente a ser avisado, em vão, pelo servo

temente Dulófobo perante os perigos que corre e a falácia de que está a ser alvo.

Neomaclo vê-se sem dinheiro e sem roupa, depois de envolvido numa zaragata, para ser

logo de seguida roubado. Antes, porém, já houvera presenciado como espectador uma

divertida zaragata, um jogo de diversão, em que os camponeses Cepário e Celerdo eram o

alvo dos malfeitores. Perante tal situação, Neomaclo será levado a procurar uma maneira

de, afastando a arrogância e a vaidade, pôr cobro à sua penúria, chegando a guardar porcos

e a comer bolotas. Reencontra o escravo do temor, Dulófobo, do qual passará a ser

súbdito, ainda que, pelo orgunho, finja não o conhecer ao contrário do reconhecimento

reafirmado pelo outro.

812 Cf. p. 173 e pp.160, 161, vv. 2541-2544:Exemplo miseri discit Prodigi / Euitare nefas. Exitialibus / Qui diuam maculis foedat imaginem, / Se mentis lacerat vulnere consciaeÉ assim que canta o terceiro coro. 813 ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO, “No IV centenário da morte do P. Luís da Cruz, S. J. (1543?-1640) … cit., p. 479.

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218

Após toda a tortura personificada pela Consciência, auxiliado pela Penitência,

arrepende-se e regressa a casa, pedindo perdão ao benévolo pai, que o recebe com um

amor incondicional. Há uma festa faustosa para comemorar este momento de reencontro e

alegria, testemunhado por Polimedes, amigo de Andrófilo, que tinha estado presente na

reivindicativa emancipação de Neómaclo e apoiara o pai deste na dor. Apesar de Sofrónio

se ter sentido magoado e indignado com a atitude do pai perante o seu mal comportado

irmão, merecedor de castigo, Andrófilo convence-o com o seu amor igual, acabando tudo

em bem.

ACTOS E CENAS

Um prólogo, onde nos surge o argumento apresentado pela Penitência, e cinco actos;

ao modo clássico. São 43 cenas e 5 coros e um poema heróico de exortação final aos

espectadores constituem os 4033 versos desta tragicomédia. Grande extensão em relação à

parábola, já que a esta corresponderão com fidelidade o primeiro e quinto actos. O final

feliz da tragicomédia não é visível no texto de São Lucas.

PERSONAGENS

Vinte e cinco personagens com nomes intencionais, i. e., fusão entre nomes e formas

de ser e estar, além dos antropónimos provarem a formação clássica dos colégios

jesuíticos. Um coro em cada um dos actos, o que vem contrastar com as parcas

personagens e sem nome da parábola bíblica.

3.1.1. Amor paternal e filial

JOGOS DE PODER : O JUGO PATERNO/PÁTRIO E A DESOBEDIÊNCIA FILIAL/CIVIL

Acto I - Na cena I, ficamos a saber que Neomaclo, em conversa com o bom servo

Sósia, é o filho mais novo de Andrófilo. Considerando-se já crescido, diz-nos que é

“penoso e duro a um moço fidalgo obedecer a outrem”, neste caso seu pai, “amo”;

“velho”; “inimigo”; “severo”, porque “pensa talvez que sou filha, não filho. Por isso, me

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

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retém sob guarda em casa”814. O conflito de gerações está bem visível nos vv. 141-142 -

“a velhice odeia a adolescência e é raro um mais velho tratar com deferência um novo”815.

Este filho reivindicador do seu livre arbítrio assegura: “Já tenho idade para governar

uma família de harmonia com os meus critérios”816. Será Pânfago, no acto II, cena III, nos

vv. 1204-1207, a explicitar o conceito de prodigalidade, pois Neomaclo “chama à

prodigalidade imoderada, urbanidade, educação liberal. E assim o que, para quem sabe, é

manifesta prodigalidade, para este ignorante é a própria liberalidade.”817. Desta feita,

acção virtuosa encontra-se para o desobediente ao pai no “fazer o que convém”. Perante

tal facto, o leal Sósia, defensor de seu amo, “pai excelente”, apela à vontade dominada

pelo entendimento e não pelos sentidos e os apetites - “A virtude é fazer o que convém,

não o que agrada”818.

Acto I - Na cena II, nos vv. 330-331, a submissão, servidão, escravidão ao jugo paterno

(palavra que aparece três vezes referida no acto I pelo Pródigo) são denunciadas por

Neomaclo: “ao jovem é lícito gozar livremente desta flor da idade”819. Nos vv. 287-288, o

mau servo Fileno reforça tais palavras, dando conselhos - “Deixa a pátria, que o maior

prazer para qualquer é entregar-se às suas inclinações”820. A casa paterna pode ser

encarada, em sentido lato, como a nação, e o pai corresponde ao modelo de rei pretendido.

Acto III - Na cena V, nos vv. 2195-2197, Fileno conta a Arquédono, chefe dos glutões,

que Pródigo “não podendo suportar a autoridade do pai, recebido o dote em dinheiro,

fugiu da pátria”821.

Acto V - Na cena I, nos vv. 3452-3453 e nos vv. 3566-3567, o desespero do extremoso

e indulgente pai leva-o a desejar o regresso do seu filho perdido à pátria - “regressa à

morada paterna. Demanda berço da terra onde nasceste”; “ao solo pátrio”822. Nos vv.

3586-3587, o amigo Polimedes salienta o poder educativo e corrector da fuga que leva os

814 Cf. pp. 44; 33 e 44; 34; vv. 128-129; : Grave ac acerbum est adolescente nobilem / Alii parere, quod meu probrum, Seni (Os atributos do pai encontram-se entre os vv. 133-147, salientamos: dominum; senem; hostis, hostica; durus; Forte arbitratur filiam, non filium / Ita domi sub custodia obseruat (vv. 148-149). 815 Cf. pp. 44; 33: Omnem senectus odit adolescentiam / Et raro iuuenem senior officiis colit. 816 Cf. pp. 44; 33-34; vv. 130-131: Possem familiam grandis ad normam meam / iam discipline regere […]. 817 Cf. pp. 97; 87: Iam prodigalitatem essusam nominat / Vrbanitatem, eductam liberaliter./ Itaque scienti nota prodigalitas, /Isti inscienti est ipsa liberalitas. 818 Cf. pp. 47; 37; v. 198: Virtus esta gere quod decet, non quod ludet 819 Cf. pp. 53; 42: […] iuueni licet / Aetatis isto flore liberius frui. 820 Cf. pp. 52; 41 Relinque patriam, plurimum oblectat suo / Quemq. Indulgere genio […. 821 Cf. pp. 152, 142: […] cum nequiret patris imperium pati, / Infraenus animi iuuenis, accepta domum / Profugus reliquit patriam pecunia. 822 Cf. pp. 207; 207e pp. 211; 212: […] patriam ad sedem redi / Repete soli natalis incunabula; […] solum / Natale […].

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desertores a que voltem “modestos, próvidos, tratáveis, e trazem do exílio para a pátria

outros costumes”823.

O JUGO PATERNO E A OBEDIÊNCIA FILIAL

Acto I - Nas cenas VI, IV, nos vv. 760-761, o filho bom e obediente, Sofrónio, tenta

convencer o irmão mais novo a desistir da ideia de sair de casa, apelando ao sentimento e

advertindo - “domina o teu espírito por momentos: ama a ti mesmo, a teu pai, aos teus.

Amarás, se ficares.”824. Pretendia, assim, auxiliar a vã tentativa do pai em demover o seu

Pródigo - “quanta torpeza se apodera, com as paixões, de uma alma desprevenida” (vv.

777-778) 825. Depois da tentativa falhada em relação ao irmão, aconselha o seu velho pai a

retirar-se e lança um aviso nos vv. 781-782 - “lembra-te de que és tu que te mortificas sem

qualquer proveito”826. No v. 507, não entende a piedade paterna, sugerindo o

esquecimento do filho rebelde - “Para quê essa piedade?”827.

O PAPEL DO PAI DILIGENTE QUE AMA OS FILHOS

Acto I - Nas cenas III, IV, VI, nos vv. 353-354, Andrófilo vai traçando o perfil do pai

esperançoso e doloroso na “conservação da casa e o amor da descendência”828, que pode

servir de exemplo a pais e aos próprios docentes dos colégios:

- Educador esforçado, “Que trabalho tão grande é educar crianças. Que canseira tão

pesada incutir-lhes bons sentimentos! Quantas vezes iludem o esforço, o trabalho, a

aplicação, o cuidado dos pais” (vv. 357-359)829;

- Observador atento que alerta os pais, “Aprendei, ó pais, com o meu exemplo, a

cuidar dos filhos. As más companhias envenenam com o seu contágio funesto” (vv. 367-

369)830;

- Educador com autoridade, “Exorto-vos a que sejais severos com os filhos […] quem

quer que o veja recusar o jugo já nos anos verdes, obrigue-o a obedecer, domine os ânimos

823 Cf. pp 212; 213: Redeunt modesti, prouidi, tractabiles: / Aliumq. Morem in patriam ab exilio ferunt 824 Cf. pp 73; 63: […] tuo impera / Animo parumper: te, patrem, tuos ama. 825 Cf. pp 74; 64: Libidinosam quanta per licentiam / Irrepet animo improuido vecordia. 826 Cf. pp 74; 64: Eum memineris esse te, quem perculit /Fortuna nulla […]. 827 Cf. pp 60; 51: Quorsum ista pietas? 828 Cf. pp. 53; 44: […] seruanda domus, / Et amore prolis […]. 829 Cf. pp. 54; 44: […] Quantus in pueris labor / est educandis? cura quam grauis bonis / Imbuere studiis? Saepe quam sallunt patrum /Operam, laborem, industriam, curam. 830 Cf. pp. 54; 45: […] Discite exemplo meo / Consulere patres liberis. Foeda inquinat / Contagione praua societas.

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221

asa.

raivosos” (vv. 391-396)831; todavia “Gosto de ser respeitado e amado, de livre vontade.

[…] Nem me agrada a obediência extorquida com medo”832. Palavras que estão em

sintonia com a liberdade interior preenchida de entusiasmo defendida por Inácio de Loiola

nos Exercícios Espirituais, refutando uma submissão servil.

- Implicado num amor constante e inesquecível que “não sabe odiar nem os seus

penhores nem os seus rebentos” (vv. 525-526)833, não faz distinções “Tu és menor, não em

amor mas na ordem dos anos” (v. 554)834 e é sofrido “por estas lágrimas de amor” (v.

739)835.

Embora a atitude emancipada de Neomaclo o leve a proferir palavras de agravo e

desobediência, após ter recebido os sete talentos, segundo seu pai “veneno mortal”,

despede-se respeitosamente do pai - “Tenho de beijar, pela última vez a tua santa dextra,

pai” (vv. 746-747)836. O abraço paterno não é de despedida definitiva, pois receberá o

filho de braços abertos, se este voltar a c

Acto IV - Nos vv. 3417-3418, o quarto coro antevê o reencontro que se vai operar no

acto V, entre o pai e o filho pródigo e expõe as manifestações de afecto paterno, apesar do

conhecido comportamento repreensível do filho - “abraçando-se-lhe ao pescoço cobri-lo-á

de beijos, misturando as lágrimas com a alegria”837.

AMOR PATERNAL / INGRATIDÃO838 FILIAL

Acto I - Na cena V, nos vv. 606-607, obstinado e indiferente às palavras do pai,

Neomaclo diz: “tenho um coração de pedra mais duro que o rochedo”839. Nos vv.727-728,

denuncia alguma bondade e sentido de dever - “Peço-te pelo respeito que me mereces,

venerando progenitor, que nada receies; espera que tudo me corra bem”840.

831 Cf. pp. 54; 45 e 46: Adeste patres, hortor, ut gnatis patres / Sitis seueri […]/ […] Quisquis indomita suum / Ceruice natum prospicit, quisquis iugum / Aetate prima iam recusantem videt, / Parere cogat, spiritus rábidos domet. 832 Cf. pp. 72; 61: […] Sponte gaudeo / Coli ac amari[…] / Et seruitus extorta non places metu. 833 Cf. pp. 61; 51: […] patris amor / Odisse nescit stirpem suam. 834 Cf. pp. 62; 53: Tu, non amore, sed ordine annorum es minor. 835 Cf. pp. 73; 63: Per has amoris lachrymas […]. 836 Cf. pp. 73; 63: Tua dextra, genitor, sancta supremum mihi / Est osculanda […]. 837 Cf. pp. 206; 205: […] colla tenens, oscula figet, / Inter Lachrymas gaudia miscens 838 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES indica a gratidão, juntamente com a lealdade, um dos valores da humanitas , o qual assente na relação recíproca entre beneficium e gratia (agradecimento) “estimula a honestidade e atrai a benevolência. (“Gratidão e Lealdade: dois valores humanistas”, Humanitas, 46 (1994) 248). 839 Cf. pp. 65; 55: […] saxeum nam cor gero, / Magis, durum rupe,quam frustra mare. 840 Cf. pp. 72; 62: […] At obsecro, / Venerande genitor, nihil time; spera omnia / De me secunda […].

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

222

Acto IV - cena X, nos vv. 3312-3313, a Penitência fala no amore magno do “pai

bondoso, benigno, aberto às súplicas”, que nos vv. 3325 e 3327 é designado de forma

poética - “O amor de teu pai é igual a uma chama […] aquele amor abrasará todo o

oceano”841.

Acto V - Na cena I, nos vv. 3563-3564, em confidências com o seu amigo Polimedes,

Andrófilo confessa o seu exclusivo e inigualável amor - “eu não vivo como pai, à maneira

dos outros pais. Costumo amar mais ternamente que os outros”842.

Acto V - Na cena III, no v. 3672, Neomaclo apelida o seu pai - misericors pater -,

quando este o recebe sem mágoa, com piedade, manifestando todo o seu amor, como

podemos verificar pelas reacções paternais, bem como do seu amigo Polimedes, e do filho

pródigo:

- “A chama de amor moveu-me à clemência” (v. 3668)843;

-“Recebe um beijo como prova do meu amor” (v. 3671)844;

-“Ó filho, já te abraço e beijo” (v. 3675)845;

- “Andrófilo, recebes com alma, o coração e o peito aquele que podias expulsar” (vv.

3710-3711)846.

-“Filho goza com teu pai, pois o pai goza com o filho regressado. Não te conserva

abraçado a minha mão direita? Acaso o amor ardente engana, quando acaricia um falso

amante?” (vv. 6723-6726)847.

No final da cena III, dá-se o remate desta proliferação de expressão amorosa,

reveladora do “amor ardente de pai verdadeiro”, com o poema de Andrófilo para o

banquete de recepção do filho perdido. Aí salienta-se a relação pai-filho com seus nós e

laços848.

841 Cf. pp. 203, 204; 201: […] patrem / Blandum, benignae mentis exorabilem; Tui parentis par amor flammae calet. / Amor ille totum prorsus exuret fretum. 842 Cf. pp. 211; 212: Ego caeterorum more, non viuo pater: / Amare soleo dulcius quam caeter. 843 Cf. pp. 216; 218: Me flamma amoris egit in clementiam. 844 Cf. pp. 216; 218: Habeto amoris osculum pignus mei. 845 Cf. pp. 216; 219: O nate iam te amplector, atque osculor. 846 Cf. pp. 217; 220: […] Mente, corde, pectore, / Androphile, recipis, agere quem posses foras. 847 Cf. pp. 218; 221: Fruere parente nate, nam nato pater / Fruitur reuerso. Te ne complexum tenet. / Mea dextra? Forsan decipit flagrans amor, / Qui falso amanti saepe blandiri solet? 848 Cf. pp. 219; 222; vv. 3747-3766; v. 3763:- Carmen Androphili ad Conuiuium– Amor veri genitoris ardens!

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

223

3.1.2. Amor Fraternal

(DES)ENCONTRO DE IRMÃOS

Acto I - Na cena VI, no v. 652, Andrófilo põe cobro à discussão e evita a agressão

entre os dois irmãos - “Que ódio furioso é esse? Que loucura?”849.

Acto V - Nas cenas V e VI, nos vv vv. 3847-3849, Sofrónio, nada misericordioso com

o irmão, sente-se traído pelo pai, quando este acolhe em casa “um filho celerado, monstro

infame da nossa casa, alvo de torpeza, nu, totalmente despojado de bens”850.

Acaba por vencer o bom senso, conversando abertamente com o pai que lhe pede “dá-

lhe um abraço. Abraçai-vos com mútuo amor. Amarei os dois filhos com amor igual.” (vv.

3910-3912)851.

Nos vv. 3921-3923, tal como seu pai, Andrófilo revela a sua misericórdia, fruto do

amor fraternal, para com o irmão - “Imito de boa mente o carácter do pai, perdoo de boa

vontade, irmão: alegro-me com a tua presença. Aceito, irmão, o abraço do irmão

amigo”852.

3.1.3. Amizade Nos padrões do Humanismo Renascentista, a amicitia, já tratada por Cícero no diálogo

Laelius ou De Amicitia, é um dos valores mais nobres, que arrasta consigo a lealdade, a

gratidão e mesmo a obediência, esta virtude característica e compêndio das restantes vir-

tudes da Companhia de Jesus. Na acção dramática a vivenciar, pelas litterae et virtus,

incentivava-se o aluno ao magis, à emulação para com excelência mental e moral servir a

Deus, cumprindo com os de-veres terrenos tais como os de serviço às autoridades re-

849 Cf. pp. 68; 58: Quaenam furoris flamma? Quae dementia? 850 Cf. pp. 224; 227: Ille sceleratum filium, nostrae domus / Infame monstrum, albumque turpitudinis, / Nudum, bonisque penitus exutum capit. 851 Cf. pp. 226; 230: […] complexum dato: / Amore vosmei mutuo amplectimini: / Vtrumque amore diligam gnatum pari. 852 Cf. pp. 227; 231: Imitabor ultro patris ingenium, valens / Germane parco: laetor aspectu tuo, / Fratris amantis frater amplexus habe.

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ligiosas e políticas. O papa e o rei, porque eram os servos representantes de Deus na terra,

teriam de estar rodeados de servidores e conselheiros fiéis853.

RELAÇÃO FILHO PRÓDIGO / AMIGOS FIÉIS E LEAIS O SENSATO SÓSIA Acto I - Na cena I, nos vv. 180-181, em diálogo com Neomaclo que em tom de lisonja

o considera o seu maior amigo e confidente, Sósia revela a sua prudência perante uma

amizade interesseira. Em resposta ao seu interlocutor adulador, que o pretendia cúmplice

no intento de rejeitar a autoridade paterna e adquirir os bens que lhe correspondiam, diz:

“sei que há muitos com esta arte: Quando precisam de nós, falam com palavras doces.

Quando obtêm o que querem, com palavras nos despacham, como estrangeiros854.

O AUTÊNTICO DULÓFOBO

Acto II - Nas cenas I, II, no v. 925, o pródigo, depois de conhecer Dulófobo, escravo

do medo e futuro servidor, promete-lhe a felicidade imediata e fácil “De miserável far-te-

ei feliz num só dia”855.

Nos vv. 941-945, o prudente Dulófobo, já marcado pela dura vida (tem como esposa a

má fortuna), apresenta-lhe o verídico mundo novo e maravilhoso, onde o pródigo procura

e acredita encontrar o bem-estar, a felicidade:

- Os indivíduos “são preguiçosos, velhacos, mentirosos, mas dados aos prazeres”; “o

bando dos noctívagos anda à mistura com ávidos ladrões”;

- Os prazeres, “Jogos, chistes, gracejos, riso, facécias, comédias, tragédias,

prestidigitação e os dados que são a mãe da nudez”856.

Nos vv. 1038-1039, adverte-o para dois elementos do grupo dos sicofantas (Pânfago,

Gastrófilo) - “Repara nos olhos vesgos, naquelas pálpebras: as sobrancelhas rapadas

denunciam falsidade”857.

853 Cf. NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Gratidão e Lealdade: dois valores humanistas…” cit., pp. 250-255. 854 Cf. pp. 45; 36: […] scio. / Hac esse multos arte. Cum nostri indigent, / Blandum loquuntur. Qua volunt ubi impetrant, / Valere verbis ut peregrinos, iubent. 855 Cf. pp. 79; 71: Uno beatum ex misero te faciam die 856 Cf. pp. 81; 72: Est desidiosum, subdolum, fallax, tamen / Voluptuosum […] Ioci, / Sales, lepores, risus, facetiae, / Comoediae, tragoediae, pristigiae, / Et nuditatis illa mater, alea. 857 Cf. pp. 87; 77: Oculos nota retortos, illas palpebras: / Abrasa supercilia indicant fallaciam.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

225

Nos vv. 1097 e 1128, apesar de Neomaclo não tomar em consideração as advertências

de Dulófobo, este acabou por insistir - “E ainda os amigos que sei serem teus inimigos”;

“Ladrões cruéis esvaziam-te da alma”858.

RELAÇÃO FILHO PRÓDIGO / AMIGOS FALSOS, ADULADORES (GNATÕES TERENCIANOS) O HIPÓCRITA FILENO

Acto I - Na cena II, no vv. 289-290, Neomaclo é apoiado no seu intento pelo

desencaminhador Fileno que, na óptica ilusória do filho pródigo lhe parece amizade - “só

tu te preocupas amigavelmente comigo e com os meus desejos”859.

OS MALFEITORES E BAJULADORES SICOFANTAS E FOLIÕES

Actos II e III - Comprovamos as más companhias de Neomaclo, o grupo dos sicofantas

(Arquédono, o chefe, Pânfago, Gastrófilo, Artótrogo); o cozinheiro Fedromo; os escravos

Cilindro e Anarco; os músicos, Melpódio e Pírrico e o chefe de mesa Quirónomo. Pelos

nomes, também reveladores da latinitas, e pelas suas acções representam pecados como a

gula, a luxúria, a avareza e a ira, por isso incapazes de uma vera amicitia, afastados do

pudor e da modéstia e presos aos seus males, aos vícios dessa terra longínqua e

desconhecida, por isso tão desejada pelo filho pródigo. Vivem num mundo privado de

valores cristãos, como por exemplo a lealdade, como no-lo dizem Celerdo e Cepário, os

dois camponeses atacados pela gente pecadora, no acto II, cena IX, vv. 1564-1566 -

“Grito. Que nos defenda a lealdade, se nesta cidade se encontra alguma”; “Vizinhos,

acorrei aos desgraçados, trazei-me auxílio”860.

As mulheres comediantes, “as moças à mistura com moços”, “os coros libertinos”, a

“bailarina excitante”. Estas companhias femininas, “que dão a beber aos amantes filtros

causadores de furiosa loucura”, participam do lautíssimo jantar, em que o pródigo

“diverte-se lá dentro com infame companhia. Dança e toca a cítara com mão lasciva”,

858 Cf. pp. 90, 92; 80, 82: Praeterea amicos, quos tuos hostes scio e Anima latrones te feri exinaniunt. 859 Cf. pp. 52; 41: […] solus consulis amice mihi / Meisque votis. […]. 860 Cf. pp. 119; 108: […] Clamo. Defendat fides, / In isto si qua repperitur oppido / Acurre pressos subleua vicinia.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

226

todavia não fazem parte do elenco das personagens da peça, sabemos da sua presença

pelas palavras do coro do acto IV e pelas palavras de Anarco no acto III, cenas I e VII861.

Esta ausência de personagens femininas em palco, como já provamos era bem vinda ao

teatro jesuítico. Será na intervenção de Anarco que se regista o lema da gente desregrada e

pecadora, ou melhor, a primeira lei dos estalajadeiros a qual “deve estar no coração e na

afeição deve ser esta: tirar a todos, não dar a ninguém”862. Também Arquédono, no acto

III, cena X, nos vv. 2497-2498, descreve o cenário de excessos - “Agradará o luxo, as

prostitutas, a prodigalidade. Companheiros, vinde gozemos estes despojos dentro de

casa”863.

Iremos, de seguida, destacar algumas passagens reveladoras da amizade ilusória e da

falsa generosidade das más companhias.

Acto II - Na cena II, nos vv. 1082-1083, Neomaclo sela o seu afecto com os novos

amigos não com um aperto de mão, mas de forma mais profunda, com um abraço - “O

aperto de mão é um símbolo pequeno de amor Eu amo-vos; estreitai-me com os

braços”864.

Várias são as lisonjas, as virtudes que os malfeitores associam ao vaidoso Neomaclo

que as considera verdadeiras e sinalizadoras de amizade. Na cena III, no v. 1117,

Gastrófilo, nos preparativos para o banquete de recepção ao Pródigo, diz ao mensageiro

Pânfago: “Comunica-lhe que chegou um príncipe”865.

Na cena IV, nos vv. 1267-1269, Fédromo põe em evidência o fingimento de

Arquédrono e seus seguidores - “Quer dizer, adaptas o discurso às conveniências; dentro

de pouco o brando louvor converte-se no raio fulminante da ira”866.

No final da cena IX, nos vv. 1613-1616, o grato e reconhecido Neomaclo e o chefe dos Sicofantas, Arquédono, trocam juras de amor leal e perene. Neomaclo afirma:

861 Nos vv. 3238, 3239 e 3248 o coro pronuncia-se de forma setenciosa quanto a tais venenos: Cf. pp. 201; 197e 198: Et mistae pueris ubi puellas?; chori procaces ; […] tincta mima. Nos vv. 2002 e 2004, Anarco contribui para tal esclarecimento: Cf. pp. 141; 131: […] mimae faeminae, quae pocula / Medicata philtro porrigunt amantibus / Unde furiosam contrahunt amentiam. Nos vv. 2365-2366, continua Anarco: Cf. pp. 162, 150: ludit intus in coetu improbo, / Mollique citharam pulsat exiliens manu.

A ausência das mulheres comediantes, segundo CLAUDE HENRI FRECHES, foi opção de Luís da Cruz, o que não se tinha verificado na peça que lhe serviu de referência, Acolastus. Nesta, aparece a cortesã Lais abraçada pelo Pródigo, o qual é arrastado para o quarto da mulher impura. Na peça Asotus, da mesma temática, aparecem duas raparigas como personagens. (Cf. Le Theatre neo-latin au Portugal…cit., p. 278). 862 Cf. pp. 141; 131; vv. 2008-2010: Tenacius auara sic est omnibus / Cordi ac amori, qui hisce tectis viuimus, / Vt disciplina prima sit Cauponiae. 863 Cf. pp. 172; 159: Luxus placebit, scorta, scorta, prodigalitas. / Venite socii, intus his fruamini. 864 Cf. pp. 90; 80: Paruum est amoris symbolum datae manus, / Vestris amantem me capite complexibus. 865 Cf. pp. 92, 82: Venisse narra principem […]. 866 Cf. pp.100; 90: […] Scilicet, pro commodo / Orationem flectitis, laus vertitur / Modo blanda in acre fulmen iracundiae.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

227

“Reconheço; esta dedicação será devidamente compensada”; ao que responde Arquédono”: Será bem compensada, se nos amares como nós te amamos.”; finalizando o pródigo: “Obrigado; este amor não mudará com o tempo”867.

Acto III - Na cena VIII, nos vv. 2422-2423, Neomaclo demonstra a sua soberba, arrogância e insolência perante os falsos amigos, quando estes revelam os seus verdadeiros intentos. Diz o Pródigo: “A mim todos me devem respeito, eu a nenhum. Sei que a ninguém devo respeito”868. Na cena X, no v. 2471, a mudança de discurso opera-se quando se apercebe da sua impotência em relação ao grupo que o quer roubar, apelando ao lado humano e complacente, recorrendo a palavras mansas - “Muitas vezes os inimigos poupam aos próprios inimigos”869.

A HIPOCRISIA E INTERESSE ESTRATÉGICO ENTRE OS MALFEITORES Acto III - Na cena VII, nos vv. 2354-2355, 2359 Arquédono, o chefe, trata o escravo

Anarco como um filho e exalta-lhe a esperteza, pois é conveniente que desempenhe na perfeição o seu papel na obra arquitectada pelo mestre - “Quem te adoptou por filho querido”; “És esperto. Honras o mestre”870.

Acto II - Na cena V, nos vv. 2212-2213, Arquédono apela à fidelidade de Fileno, que ingressa no grupo auxiliando-o no estratagema montado para roubar Neómaclo - “Dá-me a tua mão. Mostra a tua fidelidade como companheiro de Arquédono”871.

RELAÇÃO PAI / AMIGOS VERDADEIROS (BONS CONFIDENTES E CONSELHEIROS) O LEAL, VERDADEIRO E ESTÓICO AMIGO DAS MÁS E DAS BOAS HORAS - POLIMEDES Acto I - Na cena V, nos vv. 618- 619, Andrófilo manda que Sósia chame Polimedes,

como testemunha da entrega da herança ao filho mais novo - “Sósia, vai chamar aquele homem de grande prudência e amigo”872.

Na cena VI, nos vv. 667-668, Polimedes mostra disponibilidade para ouvir o discurso angustiado de seu amigo Andrófilo, com o intuito de o aliviar e ajudar - “Diz, a ver se posso dar-te remédio à alma com minhas consolações”873. No v. 790, Polimedes adverte o

867 Cf. pp. 122; 110: […] Agnosco, hic amor / Pensabitur merendo. AR. Sat pensabitur, / Amamus ut te, si ipse nos amaueris./. Amabo, amorem nulla mutabit dies. 868 Cf. pp. 166; 164: Omnes modesti sint mihi, nullis ego: / Debere scio me nemini modestiam. 869 Cf. pp. 170; 157: At saepe parcunt hostes ipsis hostibus. 870 Cf. pp. 162; 150[…] Filii qui te in locum / Cari recepit […]; Sapis magistrum laudo […]. 871 Cf. pp. 153; 142: […] Praebe manum, / Sodalitatem fidus Archedoni proba. 872 Cf. 65; 55: Eum vocato, Sosia, consilii virum / stulti, ac amicum […]. 873 Cf. 69; 59: Expone, consolando si possum tuo / Medebor animo […].

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

228

amigo para a atitude estóica conveniente na dor - “Mas o sábio deve chorar com moderação”874.

Acto V - Na cena I, o diálogo filosófico entre os dois amigos assume a tendência clássica marcada pelo estoicismo e certo socretismo. Salientaremos apenas alguns exemplos:

- Nos vv. 3424-3425, Andrófilo, com a alma atormentada pela incerteza do paradeiro e situação em que se encontrava o filho mais novo, manda chamar Polimedes - “apraz-me servir-me dum amigo que me ajude com as suas palavras e me alivie os cuidados”875;

- Nos vv. 3478-3479, o estóico Polimedes aconselha o amigo à moderação e ao auto-domínio, terminando o seu conselho com uma interrogação retórica - “Porque me hei-de mortificar com um mal a que não posso resistir, quer aconselhando-me, quer acautelando-me?”876. Nos vv. 3493 e 3496-3499, continua: ”nada de exageros […] e nenhum sábio acoimará de vício, a título de humanidade, o lastimoso motivo do mal. Mas deve censurar-se o pranto demasiado que a razão não reprime, impondo-lhe moderação”877.

- Nos v. 3590-3591, Andrófilo confirma o benefício de uma verdadeira amizade -“de ti recebi conforto. Tamanho é o proveito da amizade feita de lealdade profunda”878.

O CONFIDENTE E SERVIDOR - SÓSIA Acto I - Na cena III, nos vv. 419-420 e 425, Sósia, em diálogo com Andrófilo, tenta

trazê-lo à dura realidade: “um amor novo expulsa outro amor / Filho que odeie os pais ama os estranhos”; “o teu filho substitui os antigos amores por novos”879.

RELAÇÃO PAI / SERVO FALSO O DISSIMULADO FILENO Acto I - Na cena III, nos vv. 465 e 478-479, Andrófilo expulsa Fileno - “Retira-te,

adulador […]” ; lamentando a má companhia do seu filho mais novo - “Nenhuma virtude resistirá por muito tempo com tais amigos. E nenhuma fé estará em lugar seguro”880.

874 Cf. 74; 65: Moderate oportet flere sapientem tamen. 875 Cf. 207; 206: Ad me venire ne recuset, unicum / Vt sit meae solamen aegrimoniae. 876 Cf.208; 208: Cur macerabo me malo, cui non queo / Vel consulendo, vel cauendo obsistere? 877 Cf. 209; 209: […] nequid nimis / Sapiens nemo flebilem vitio dabit. / Humanitatis iure, materiam Mali, / At arguenda est illa comploratio, / Quam non coercet ratio praescribens modum. 878 Cf. 212; 213, 214: Ex te leuamen habeo. Tantum proficit. / Necessitudo non constans fide. 879 Cf. 55, 56; 46, 47: […] amores sic superueniens amor. / Odit parentes gnatus, alienos amat. e Priscos amores filius mutat nouis. 880 Cf. pp. 58, 49: Seductor abeas […]; Nulla his amicis sanctitas stabit diu, / Et nulla tuto existet in loco fides.

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Terêncio influenciará na situação e na ideia (Ver Freches p. 261, 279)

Parte II – Monere oblectando (in frontispício do Colégio de Faro)

Expressões Culturais, Estéticas e Morais na comunicação interpessoal

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CAPÍTULO I

REFLEXÃO

1. ALCANCE DESTA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA

Durante a primeira e segunda partes, embalados pelo Humanismo881, movimento

cultural, filosófico, intelectual e social situado na época moderna, quisemos avivá-lo como

impulsor de uma prioridade europeia de então, a educação e, por consequência, a escola, o

ensino e a pedagogia – caminho de crescimento humano.

Opiniões como a do poeta Goethe, resultantes de uma visita ao Colégio jesuíta de

Regensburg no ano de 1786, levam-nos a tomar a direcção da paciente experiência de

pedagogia humanista em retrospectiva, mas que se projecta em perspectiva. Segundo o

escritor nomeado,

“tudo aí [entre os Jesuítas] converge para uma finalidade, que é a de não continuar, como outras

Ordens, a tradição de uma devoção adormecida, mas antes renová-la por meio da pompa e da riqueza,

indo ao encontro do espírito do tempo”882.

Nesta última parte, procuraremos, em síntese e com prenúncios conclusivos, apreciar a

lição de pedagogia singular dada pelos protagonistas Jesuítas desse tempo, fazendo, desde

já, ecoar as palavras do pedagogo jesuíta de hoje, Manuel Pereira Gomes - “a História está

repleta de histórias que não passam de mensagens humanas para humanos a dar sentido,

‘ordem e maneira’ ao modo de viver”883.

Estes homens de Jesus - modelo a seguir pela pessoa cristã - vincaram uma educação cristianizadora, onde valor e possibilidades/capacidades do homem estavam no centro das

881 Vide supra, pp. 19, 20. 882 GOETHE, Viagem a Itália, in Obras escolhidas de Goethe, trad., prefácio e notas de João Barrento, vol. VI, Lisboa, 2001, p. 12. 883 MANUEL PEREIRA GOMES, “Ratio Studiorum dos jesuítas: carisma, inovação, actualidade”, Revista Portuguesa de Filosofia, 55 (1999) 223.

231

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

232

atenções, em função de um projecto inesgotável, que devia efectuar-se pela via da excelência. Este ser actuante e agente activo comprometia-se com a origem divina/transcendente, aderindo, servindo e desempenhando da melhor forma o seu papel entre, com e para os seus semelhantes, o que iria testemunhar a sua obediente colaboração com o bom Pai Criador.

Iremos expor, hic et nunc, um entendimento pessoal, produto de uma implicação proveniente quer do nosso estudo e da reflexão que fizemos e continuamos a fazer acerca de questões educativas, quer da nossa experiência e acção de docência durante treze anos no ensino da Língua Portuguesa e do Latim. Pretendemos, principalmente, tecer algumas considerações assentes na relação educação e teatro escolar - ponto fulcral de toda esta análise -, acreditando ser elemento importante a requerer na formação/educação para a vida de salvação e para a humanização do homem. Na nossa opinião, este recurso didáctico concilia, nesse duplo intento, tanto a perspectiva da Igreja do séc. XVI, quanto a perspectiva do Estado, figura preponderante na regulação da educação, nos tempos actuais.

Explanámos aspectos basilares da pedagogia confessional e ascética dos “soldados de Cristo” e seu contributo na melhoria cultural da idade moderna - marcada pela exigência espiritual a que a Igreja Católica acorria na tentativa de preservação e hegemonia do Catolicismo. Seguimos, agora, para tempos contemporâneos ou de pós-modernidade, em que esse “tesoiro educativo da Companhia”884 continua a ser o cerne do seu apostolado educativo.

Insiste-se na defesa fidedigna a uma cultura religiosa e a um humanismo cristão ou, no âmbito de uma espiritualidade inaciana, um humanismo espiritual, promotor da uma vida social solidária e tolerante, ainda que sujeito aos programas e sistema uniformes que reforçam o poder central (art. 44º, Lei de Bases do Sistema Educativo -LBSE) e favorecem o modelo económico e social pretendido pelo estado, para a organização da sociedade actual. Esse “tesoiro”, na opinião do Superior Geral que marcou o séc. XX, P. Pedro Arrupe SJ, “é para a Igreja de uma importância absolutamente vital”, sendo a educação da Juventude a opção prioritária, “conforme a doutrina do Concílio Vaticano II”885.

884 Designação associada à sigla T.S.I. usada para falar da riqueza pedagógico-didáctica da educação dos colégios jesuítas, manifestando-se no fim, nos meios e nos métodos (Cf. Princípios Educativos dos Colégios da Companhia de Jesus, trad. E. Vasconcelos S. J., Tipografia Particular, 1963, p. 13). 885 PEDRO ARRUPE, S.J., Um Projecto de Educação. Cartas e Discursos, Braga, 1981, pp. 5, 57.

Foi confirmada a atenção dada à pessoa pela Pedagogia dos Jesuítas na segunda metade do século XVI, e, como veremos seguidamente e de forma breve, continua a ser a principal finalidade na Pedagogia actual dos Colégios.

O Concílio ecuménico Vaticano II (1962-1965) e os documentos que marcam a Pedagogia dos sécs. XX e XXI, Características da Educação da Companhia de Jesus (1986)- são 28 -, Pedagogia Inaciana: Uma Abordagem Prática (1993), vieram assinalar uma adaptabilidade da Igreja católica às exigências actuais. Embora estes documentos não evidenciem o proselitismo e a ortodoxia que sinalizaram o período estudado, seguem os princípios espirituais e pedagógicos da Parte IV das Constituições e do Ratio Studiorum, sobressaindo as recomendações flexíveis e adaptáveis aos novos tempos e aos desafios das sociedades, à qual convém uma praxis unificadora. Desta forma, os Jesuítas continuam na linha do seu mentor, colocando a experiência pessoal e a partilha de experiências humanas como base imprescindível nas questões educativas.

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

233

Como ponto comum e nevrálgico de todos estes cuidados aplicados aos projectos

educativos, quer no passado estudado quer no presente, situa-se a educação da pessoa, ser

único, ao nível intelectual, moral e afectivo e consequentes implicações pessoal, social e

religiosa. O saber estar e o saber ser são fundamentais, para que cada um possa vir a

praticar virtudes do foro particular e social, nesta aprendizagem centrada na opção livre e

ordenada, de tal maneira que as moções, sentimentos, afectos confluam para a boa e útil

integração e contribuição sociais, “ Ad Maiorem Dei Gloriam”. Deste modo, se justificam

currículos estruturados e métodos ajustados à construção de uma personalidade em

consonância com o modelo pretendido pela sociedade, onde os poderes políticos,

económicos e religiosos são os projectistas.

À luz do princípio inaciano, nesta tarefa de educar, não se pode ficar cego e surdo a

dados circunstanciais e contextuais. O velho continente europeu e um dos seus estados, o

português, têm vindo a apresentar-se como cenários de obrigatória referência, por um lado,

comprometidos com paradigmas comuns - Helenismo, Romanismo, Cristianismo-

Judaísmo - e, por outro, em constante mudança e adaptação num mundo em que impera a

globalização e o universalismo. A preservação de uma identidade e unidade europeias

assenta, sem dúvidas, na cultura, pedra angular no diálogo multicultural e de construção de

uma sociedade humanizante. Se “a vasta rede de colégios durante tanto tempo mantida e os

sólidos fundamentos antropológicos e pedagógicos de um coeso plano de estudos

uniformizado valeu bem à antiga Companhia de Jesus o título de ‘mestra da Europa”886,

não duvidamos do seu exemplo para um humanismo europeu, v.g., para a construção de

uma identidade europeia radicada em fundamentos espirituais e éticos comuns. A

interdependência e solidariedade entre os povos ainda é requerida, apesar da consciente

ruptura e desmoronamento de uma tradição moral e de um pensamento comum.

Pelo testemunho explorado nesta pesquisa dedicada à pedagogia jesuíta, em geral, e ao

teatro literário, pedagógico e pastoral dos seus colégios, em particular, verificámos que

LUIZ FERNANDO KLEIN, recorrendo ao documento Características e às palavras do actual Superior Geral da

Companhia, P. Peter-Hans Kolvenbach, informa: “Contudo, dado que o ‘currículo é centrado na pessoa antes que na matéria a ser desenvolvida’ (C:42), é preciso adequá-lo às etapas evolutivas do aluno, evitando o enciclopedismo conteudista, o que se poderá lograr mediante um consciencioso planeamento do programa e a articulação entre as matérias (C: 32, 161). Prevalece o princípio dos Exercícios Espirituais: ‘Non multa, sed multum’, ou seja, ‘ não é a quantidade de matéria tratada que é importante, mas antes uma formação sólida, profunda básica. Também o antecessor de Kolvenbach, Pedro Arrupe, este com muitos mais pronunciamentos que aquele, numa perspectiva de constante adaptação face a um mundo em constante mudança “empenhou-se em mostrar a força da mediação pedagógica do testemunho de vida, de pessoa, de fé, de valores, de compromisso do educador, pois ‘o que somos é mais forte do que o que fazemos ou dizemos’ (1981c: 67)” (Actualidade da Pedagogia Jesuítica, São Paulo, Brasil, 1997, respectivamente, p. 111, p. 60).

Cf. DOMINGOS DE FREITAS S.J., “Actualidade e pertinência da pedagogia inaciana”, Brotéria, 161 (2005) 479-480. 886 MARGARIDA MIRANDA, “Humanismo Jesuítico e Identidade da Europa…” cit., p. 11.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

234

aber ser.

coube à educação887, pelo modo, maneira e conteúdos literários/dramáticos, o papel

principal na edificação e, essencialmente, consolidação de fundamentos éticos e espirituais

para se ser uma boa pessoa nas palavras e nas atitudes. Assim, esta missão apostólica

também pode ser cumprida hoje através deste recurso didáctico, de forma a não só

transmitir cultura clássica - ou não (atendendo à crise das Humanidades)-, mas também a

saber interpretá-la e aplicá-la. Cremos firmemente que essa herança da antiguidade clássica

- “o novo permanente”- tem que ser encarada, pelo seu valor formativo, como factor de

união europeia, numa família unida por determinadas traços civilizacionais comuns que

definem a sua identidade no mundo

Servir-nos-emos de documentos laicos, para estabelecermos a ponte entre este modelo

de educação, crente numa cultura à luz da fé e preocupada com o modo de ensinar cada

aluno, e as inquietações dominantes de uma educação completa, necessária ao projecto

social e humano de sociedade humana. A nível europeu, salientamos o reconhecido

relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI para a

UNESCO888, e, a nível nacional, a actual Lei de Bases do Sistema Educativo português889.

A atenção recairá nos pontos de convergência que poderão ser estabelecidos no âmbito da

educação como meio para que cada homem deseje tornar-se mais homem, encarando o

saber não como fim em si mesmo, mas articulando-o com o saber fazer e s

O teatro escolar, iniciativa cultural e recreativa, integrado no sistema de ensino, poderá

e deverá ser visto como técnica didáctica atenta ao homem no seu todo, de maneira a que

este aprenda letras e simultaneamente reflicta e favoreça as relações humanas, à

semelhança do que se defendia nos processos de estética teatral renascentista890. Nesta

887 ROBERTO CARNEIRO define-a, na sequência dos três anos de “aturada reflexão” da Comissão sobre Educação para o século XXI, como “esse tesouro a descobrir pelas gerações vindouras, o qual pode constituir os alicerces de um ‘humanismo XXI’ a partilhar no oceano da intensa comunicação que caracteriza o tempo próximo, é nada mais nada menos do que a Educação” (JACQUES DELORS et alii, Educação - um tesoiro a descobrir, trad. José Carlos Eufrázio, Porto, 2003, p. 9). 888 Este relatório resultou de três anos de trabalho por parte de uma comissão internacional criada pela UNESCO no início de 1993 para reflectir sobre Educação para o Século XXI. Nas palavras de ROBERTO CARNEIRO, antigo ministro da educação em Portugal e um dos quinze membros desta comissão, “[a comissão] desde logo, negou-se a fornecer um roteiro preciso para a viagem pelo mundo desconhecido do próximo século. Antes, deu-se por satisfeita ao conseguir identificar algumas tendências pesadas do passado recente e em propor consensualmente certas pistas de reflexão que podem ajudar a ganhar inteligibilidade sobre o nosso futuro colectivo”. (Cf. Ibid., p. 9). 889 JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA CASULO refere que “as finalidades da LBSE parecem estruturar-se partindo de três grandes valores: pessoa, democracia e nacionalidade. A estes, outros valores se subordinam ou com eles se articulam. Os valores corporais, estéticos, cívicos, espirituais e morais subordinam-se à pessoa […] há um modelo antropológico de feição personalista adaptado à circunstância nacional e à vocação universalista dos portugueses.” (“As Leis de Bases da Educação Nacional: Percurso Histórico e Condições de aplicabilidade”, Revista Portuguesa de Educação, 1 (1988-3) 28. 890 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, reconhecendo o teatro “como género insuperável de pedagogia e parénese, que desde a Antiguidade aos nossos dias, o tempo não desvanece”, refere a personalidade marcante da Igreja Católica Romana do séc. XX, Sua Santidade o Papa João Paulo II, que “às portas da segunda guerra mundial, em 1939-1940,o então estudante universitário polaco Karol Wojtyla, que se distinguia pela inteligência, sensibilidade estética, imaginação criativa, acuidade filosófica e reflexiva dos problemas humanos, escreve e faz representar, na clandestinidade, duas peças

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

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sequência, soam mais uma vez oportunas as palavras registadas numa carta do P. Pedro

Arrupe, datada de 25 de Agosto de 1965 e dirigida aos padres dos colégios de França

reunidos em Amiens. O assunto centra-se no apostolado dos colégios:

“Ajudemo-los [os nossos alunos] a descobrir as aspirações que naturalmente surgem da

evolução actual da cultura, ensinando-os já a discernir os verdadeiros valores. Para tanto, lancemos

mão dos meios modernos de formação e de comunicação, como outrora a Companhia soube, por

exemplo, integrar na pedagogia a declamação e o teatro. Façamo-los cair na conta de que hoje a

rádio, o cinema, a televisão, a imprensa, etc., podem contribuir grandemente para a formação dos

jovens e crianças, meios estes que, por sua vez, mais tarde eles mesmos terão de usar como meios

ordinários na profissão e na vida social”891.

Na actual situação do sistema de ensino português, apresentaremos uma pequena

amostra de dinâmicas curriculares exemplares de escolas de ensino público, onde no

ensino básico (no terceiro ciclo), superior e universitário se aliam educação e teatro. A

transmissão e reflexão de atitudes e valores estarão em foco, servindo a arte dramática para

progressiva aquisição de competências no primeiro caso, acrescida da contribuição para a

formação do gosto pelo espectáculo teatral e animação de espaços monumentais e

arqueológicos, no segundo caso.

A Companhia continua a dar o exemplo, ciente que “o fim último e razão de ser dos

colégios é formar homens e mulheres para os outros à imitação de Jesus Cristo - o Filho de

Deus, o homem para os outros por excelência. Por essa razão, a educação da Companhia de

Jesus - fiel ao princípio da encarnação - é humanista”892. Cada um deve desejar a conquista

de saber, nunca excluindo o humanismo literário dos clássicos e a construção e conquista

de si próprio (litterae/virtus), enveredando por um caminho no sentido do bem comum, já

que “toda a existência terrena pode ser entendida como uma grande aprendizagem do

amor, não só para cada um mas para a humanidade inteira”893. Nesta direcção, todos os

que vêem na educação a forma de edificar uma sociedade educativa, podem entender que

“a reflexão destes paradigmas clássicos muito pode contribuir para atitudes humanizadoras

de teatro de assunto bíblico, David e Job. Nelas combina a história bíblica com a história polaca recente e se debruça, em termos interventivos, sobre a injustiça e a luta dos oprimidos, que incentiva à esperança através da fé.” (“Mito, Imagens e Motivos Clássicos…” cit., pp., respectivamente, 76, 75. 891 P. PEDRO ARRUPE, Um Projecto de Educação…cit., p. 15.

Apontamos como pertinentes dois discursos do P. Pedro Arrupe, que podem ser encontrados na obra citada: o discurso datado de 29 de Agosto de 1971 - “Sobre a Construção da Nova Europa” - e o de 11 de Novembro de 1972 - “Novo Humanismo Cristão – (Cf. Ibid., respectivamente, pp.75-77 e pp. 95-106. 892 Pedagogia Inaciana – Abordagem Prática, Braga, 1994, p.59. 893 GIOVANNI CERETI, “Amor”, in Christos - enciclopédia do Cristianismo… cit, p. 66.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

236

atureza”895.

da relação educativa”894, adaptando-os aos tempos, lugares e pessoas. Além disso, as

palavras que Terêncio pôs na boca da personagem Cremes não deviam ser indiferentes a

educadores e educandos de condição humana - “Sou um homem: e nada do que é humano

eu considero alheio à minha n

1.1. LIÇÃO DO PASSADO

Na Europa do Humanismo renascentista896, o privilégio dado ao apostolado educativo

fez com que, na Companhia de Jesus, o ensino, vinculado à actividade cultural -

aglutinadora da beleza greco-latina e do amor de Cristo - e à actividade pastoral, fosse o

meio utilizado activamente a favor de uma mensagem de humanismo cristão/espiritual,

imbuído de humanismo clássico.

Apregoavam-se e mostravam-se normas dogmáticas e disciplinadoras resultantes do

Concílio de Trento, apreensivo com um continente dividido pelas posições religiosas

indissociáveis das políticas. O proselitismo e a ortodoxia do catolicismo romano não se

filiavam apenas nos poderes espirituais, visto que os poderes temporais, in illo tempore,

estavam contidos nos representantes de Deus na terra, o papa e o rei, os príncipes,

detentores de riquezas, a quem “todo o rebanho” teria de obedecer, desempenhando cada

qual o papel que lhe fora atribuído dentro da hierarquia social/natural. Porém, a atitude de

comunicação e serviço, como forma de manifestar o amor que devemos ter uns para com

os outros - revelação na doutrina de Jesus Cristo - era norma para todos no interagir.

Através de uma pedagogia da escuta de Deus897, a praxis educativa jesuítica tinha o

cuidado de indicar os valores cristãos que, comandados pela obediência, se enraizavam no

amor de Deus, Pai Celeste898. Este devia ser a inspiração máxima de todo o aluno - pai,

filho, marido, profissional, missionário, santo - que na peregrinação terrestre, num percurso

ascético, à maneira inaciana, podia tornar-se mais homem e humanizava, respeitando,

894 MANUEL PEREIRA GOMES, “Ratio Studiorum dos jesuítas…” cit., p. 226. 895 TERÊNCIO coloca estas palavras na boca do personagem Cremes na Comédia O Homem que se puniu a si mesmo.

Cf. pp. 40; 23; v. 77: Homo sum: humani nihil a me alienum puto. Sobre este assunto, vide supra, p. 28, nota 32; p. 155, nota 569.

896 Vide supra, pp. 19-25. 897 CECÍLIA OSOWSKI, “Ética e modo de proceder inaciano: implicações pedagógicas”, Estudos Leopoldenses, 5 (1999-3).p. 44. 898 Vide supra, p. 50.

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

237

cumprindo a lei, amando e servindo o seu semelhante. Para conseguir enveredar por tal

rumo, teria de aprender a seguir valores proclamados nos conteúdos ensinados, onde

reinavam paradigmas e expressões clássicas, e nas respectivas actividades escolares,

impregnadas de “philantropia essência da humanitas”899, com alcance ideológico e

sociológico. A exemplaridade, proveniente da organização administrativa e da dinâmica

pedagógico-didáctica instituída nos colégios, transparecia nas representações académicas e

nos jogos dramáticos, tendo o professor o papel de auxiliar na condução Ad Maiorem Dei

Gloriam.

Nesta pedagogia pacientemente programada e ajustável às características e

necessidades de cada um, os textos clássicos manipulados para serem fiéis à doutrina da

Igreja Católica, a imposição temática das peças escritas pelos professores de Retórica e

levadas a cena em dias coincidentes com festividades religiosas eram pontos assentes no

projecto educativo da Companhia da segunda metade do séc. XVI, em Portugal, como

chegámos a verificar.

Na época estudada, o Colégio das Artes de Coimbra sobressaiu pelo impacto

humanístico a nível nacional e europeu900. Além das representações que foram focadas e

analisadas na segunda parte do trabalho, na esfera de normas de comportamento ou de

urbanidade de diferentes culturas, a oriental e a ocidental, torna-se pertinente a referência

ao espectáculo ocorrido nesse colégio, em 1585. Nessa peça representada, “a Europa

aparecia frequentemente como personagem alegórica em diálogos escolares dirigidos aos

povos do Oriente, e justamente em contexto de encontro de culturas e de continentes”901.

A beneficência deste teatro, na instituição educativa circunscrita, ganhava projecção

didáctica num mundo de incontestável poder e saber masculinos, ultrapassando, sem

dúvida, a mera função recreativa e popular. Nos colégios, esse veículo cultural e doutrinal,

factor de união entre Humanismo e Cristianismo, não podendo ser considerado uma área

disciplinar, era um processo activo de estudo e uma prova final para apreciação/avaliação

de competências e conteúdos eruditos, onde a palavra latina emergia como veículo de

fundamento ético e estético. A linguagem - mais especificamente, o sistema linguístico -

899 NAIR DE NAZARÉ CASTRO SOARES, “Gratidão e Lealdade…” cit., p. 251. 900 Vide supra, pp. 141-150. 901 MARGARIDA MIRANDA, “Humanismo Jesuítico e Identidade da Europa…” cit., p. 91.

A estudiosa fala-nos do diálogo De Missione que foi escrito “para dar a conhecer a Europa aos japoneses e os japoneses à Europa” e se encontra traduzido por Américo da Costa Ramalho. Esta representação decorreu no âmbito da visita que quatro jovens japoneses, acompanhados por padres jesuítas seus educadores, fizeram ao colégio conimbricense. Cf. DUARTE DE SANDE S.I., Diálogo sobre Missão dos Embaixadores Japoneses à Cúria Romana, prefácio, tradução do latim e comentário de Américo da Costa Ramalho, Macau, Fundação Oriente, 1997. e AMÉRICO DA COSTA RAMALHO, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. III, Lisboa, 1998, pp. 209-288.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

238

,enquanto actividade colectiva, envolvia os vários níveis de acções e interacções (por si

mesma, pelas que se fazem sobre ela , pelas que permite fazer e pelas que se lhe

associam). Nunca devemos obnubilar que a Retórica era, nessa época, arma de combate no

debate (no discurso oratório), assumindo o ensino/aprendizagem dos estudos humanísticos

os alicerces curriculares, num ‘treino’ constante.

O método parisiense - predominante nos colégios herdeiros de um ideal pedagógico

assente na docta pietas e de uma espiritualidade à imagem de Jesus Cristo - dava primazia

à progressão gradativa das matérias/conteúdos e sua exercitação, à assiduidade e

pontualidade obrigatórias nas aulas, à experiência implicada e activa de cada um dos

alunos de acordo com o seu todo, idade, capacidades cognitivas e apetências, e ao seu

tempo, a sua circunstância, para que da motivação se passasse à acção e ao conhecimento.

Esta aprendizagem do querer (EE, nº 48), orientada pela disciplina, dedicação, esforço

- visíveis e sentidos na variedade dos exercícios activos e contínuos -, encontrava-se em

vigor nessa época, estando documentada, no que diz respeito aos colégios jesuítas, na Parte

IV das Constituições e no Ratio Studiorum, como ficou comprovado, com especial detalhe

no segundo capítulo da primeira parte. Cimentada na honra e glória e planeada para a

formação da personalidade e superação de si próprio numa aprendizagem mais com e entre

os outros que contra os outros, a emulação académica permitia o progresso, a excelência no

saber e no ser, o magis personalizado.

O teatro de produção e de formação, que se planificava para cada ano lectivo nos

colégios da Companhia, era processo mobilizador do estudo rigoroso e do são convívio,

com interacção professor/alunos e alunos/alunos no palco da sala de aula e com a relação

dupla, professor/aluno (ensaio) e escola/meio (espectáculo), no palco do pátio colegial902.

Mais que a promoção escolar, o docente sacerdote poderia, com o texto dramático

enriquecido pelos ornamentos na transmissão da mensagem, provocar e alimentar nos seus

discentes o desejo do entusiasmo, do amor, e o sentimento do dever ético perante as

fragilidades e vulnerabilidades humanas, como o tentámos comprovar através das peças

analisadas.

Expunham-se e dogmatizavam-se modos de ser e estar do catolicismo romano para a

vida privada e colectiva. No entanto, pretendia-se que esta condicionasse aquela, como

chegámos a ver, ao longo da segunda parte, nas normas de relacionamento afectivo

902MARGARIDA MIRANDA diz-nos que “havia sobretudo uma intenção clara de mover, comover, apaixonar e para isso não chegava o exercício escolar de composição” (“Teatro Bíblico Novilatino: A Tragédia de Acab de Miguel Venegas”, Humanitas, 46 (1994) 367).

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

239

colocadas em cena, representando quadros de exigentes, diríamos até, ascéticos,

comportamentos humanos. Estes eram vivificados por personagens clássicas e evangélicas,

modelos de virtudes a seguir ou de vícios a rejeitar. Haveria que vigiar e ter cuidados na

transmissão e consequente recepção do mandamento novo do amor, “tendência

fundamental da pessoa”, a desenvolver como elemento harmonizador do conhecer, querer

e sentir e como “forma de todas as virtudes morais”. Isto, porque o amor “integra, ainda, as

energias sexuais e as energias do eros, que, segundo o desígnio divino das origens, são

destinadas a uma função de relacionamento e de sociabilização (Gn, 2, 18-25)”903.

Encarado como “empresa educativa y promotora de las relaciones sociales de la

Compañía de Jesús” e “empresa didáctico-social”904, este exercício do intelecto aplicava

conhecimentos linguísticos clássicos. Se, nas declamações, as peças de Terêncio e Plauto,

sujeitas à inspecção teológica, serviam de treino oratório da latinitas, do ornatus e

garantiam, em simultâneo, um encontro com valores - afins a uma moral cristã católica

reguladora das relações afectivas -, os textos neolatinos, ao saltarem para o palco,

potencializavam competências de um número significativo de alunos/actores e

estimulavam a faceta de autor-encenador do docente.

Erudição, experiência estética, promoção escolar, exibição e diversão de festas

escolares anuais, deleite dos sentidos na visualização de cenários e no guarda-roupa

esplendoroso, emoção e excitação na audição musical e moralização dos dramas

alegóricos-bíblicos eram o cunho deste teatro escolar de intervenção que demonstrava as

suas facetas humanística, religiosa - reacção à heresia - e política. Queria atingir-se, com a

palavra ornamentada, o carácter e os corações do maior número de alunos (daí a grande

quantidade de personagens por peça), dos professores avessos à glória pessoal e do

emocionado público letrado e com relevância social. Este “homem interior” com instrução

e potencial agente activo e virtuoso, em comunicação com o Criador, era, assim, auxiliado

pela Igreja católica apostólica romana. Neste caso, a servidora e missionária Companhia de

Jesus auxiliava numa educação intencional que manifestava modos de ser e agir

determinados face aos problemas da época.

“Modernidade, escolarização e pedagogia foram três vectores que definiram o capital

educativo do teatro”, sendo “o projecto jesuítico de um teatro retórico-moral, fiel ao

903 GIOVANNI CERETI, “Amor…” cit., p. 65. 904 ALFREDO HERMENEGILDO, El teatro del siglo XVI, s.l., 1994, pp.127, 136.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

240

‘exercício espiritual’ de Loyola” 905. Como contributo potenciador do desenvolvimento e

da formação em sabedoria, estatura e graça do aluno, elucidava-o para uma conduta

moral, enquanto actor e simultaneamente espectador, o mesmo se esperando, em termos

comunitários, do distinto público espectador. Assumia formas de comédias clássicas, de

tragédias sacras e tragicomédias neolatinas. Se, nas primeiras, estava, como diz o povo, “o

riso tão perto do pranto”, atendendo à preferência dada a Publius Terentius Afrus, podemos

dizer que em todas se advertia, implicitamente, para um homo homini lupus plautino

(Asinária).

Entretanto, nesta socialização sob a égide da catequização e do doutrinamento, nesta

orientação espiritual de apelo ao exercício da liberdade interior e à comunhão (acto

amoroso e generoso), estavam fora de questão o pluralismo e a liberdade religiosa, tão

familiares à nossa época contemporânea, que requerem como sólido pilar a tolerância,

valor que se liga, indubitavelmente, ao humanismo.

O princípio do Cristianismo que considera a pessoa como um ser de valor único -

marca dominante de todos os tempos -, adoptava, nestes tempos de guerras religiosas e

políticas, orientações que devem ser reflectidas, tais como a distinção entre o valor e

reconhecimento do homem e da mulher na sociedade; a sobreposição e valorização dos

valores colectivos - religiosos e políticos - aos individuais; o reforço dos poderes materiais,

de domínio e de autoridade, em nome do espiritual, enfim, as conveniências de vária

ordem.

1.2. RESSONÂNCIAS DO PRESENTE

Mudaram-se os tempos, mas as vontades continuam a deixar transparecer a

preocupação humanística de formar um homem in fieri, em constante acção dentro de si,

em constante trabalho de concentração numa missão educativa contínua. Procura-se a

formação de um homem clássico/culto, entendido no sentido original do termo (cultus e

cultura têm a sua origem no verbo colere - cultivar/procurar)906, aquele que se relaciona

com a realidade material e espiritual, consigo e com o outro - “ser de relação”.

905 FERNANDO MATOS OLIVEIRA, Teatralidades – 12 percursos pelo território do espectáculo, Coimbra, 2003, p. 163. 906 Vide supra, p. 19, nota 9.

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

241

Hoje, tal como no Renascimento, são marcos da história o progresso - que de forma

acelerada e gradativa almeja o melhor, a globalização - que poderemos também considerar

como característica desses tempos de descoberta e expansão e, por isso, de intercâmbios

culturais e económicos -, o pluralismo e consequente necessidade de diálogo inter-cultural,

de comunicação entre os povos e de um espaço comum e aberto ao mundo. Porém, a

importância dada hoje à especialização/fragmentação, tão visível na diversidade de

formações académicas e tão compatível com a ciência, a evolução técnica e a económica -

em oposição à uniformidade das Universidades do séc. XVI com o Trivium e o

Quadrivium -, faz acreditar num homem definido e auto-suficiente, desconectado da sua

essência e transcendência. Indiferente ao chamamento interior, à importância da

transcendência e à evidência de um mundo sempre aliado ao devir, cada pessoa, na sua

singularidade, não poderá sentir a sua liberdade com responsabilidade e sabedoria e rumará

na direcção do anti-humanismo ou desumanização. É nesta sequência que soam

convincentes e, ao mesmo tempo, inquietantes as palavras que se seguem:

“ a confiança e a fé no futuro dissolveu-se, nos amanhãs radiosos da revolução e do progresso

já ninguém acredita, doravante o que se quer é viver já, aqui e agora, ser-se jovem em vez de forjar

o homem novo”907.

Compreende-se a necessidade da Companhia de Jesus908 continuar a fazer a apologia

inaciana da pessoa, do humano, tal como acontecia na época do seu aparecimento,

permanecendo fiel a uma formação humana integral, onde o revigoramento moral e

religioso têm presença obrigatória. Segundo P. Pedro Arrupe, há que atender à formação

não só académica, mas àquela que procura “homens de serviço segundo o evangelho”,

“homens novos, transformados pela mensagem de Cristo, cuja morte e ressurreição eles

[alunos] devem testemunhar com a sua própria vida”, “homens abertos ao seu tempo e ao

907 GILLES LIPOVETSKY, A Era do Vazio. Ensaio sobre o Individualismo Contemporâneo, Lisboa, 1989, p.11.

No Jornal Expresso de 11 de Setembro de 2004, MÁRIO SOARES, na rubrica “Contra Corrente”, fala-nos do XVIII Encontro de Religiões e Culturas, organizado pela comunidade de Santo Egídio e pela Arquidiocese de Milão, subordinado ao tema: “A coragem de um Novo Humanismo”. Em destaque podemos ler “Abertura ao diálogo”e “Por um mundo melhor”, estando os 36 painéis de debate deste Encontro Ecuménico centrados na “preocupação de repor o homem (e a mulher, obviamente) no centro de todas as preocupações, na igual dignidade da sua condição humana”. 908 LUIZ FERNANDO KLEIN, SJ, referindo-se à história da pedagogia da Companhia de Jesus, apresenta-nos oito etapas, distribuídas por três períodos, o da fundação e expansão dos colégios (1542-1814); o de busca da recuperação da tradição pedagógica (1814-1965); o de intensificação da renovação pedagógica jesuítica (1975-1993). As datas apresentadas estão indicadas ao longo das etapas referidas, interessando avivar aqui a primeira “do início do trabalho dos jesuítas em colégios (1542) até a publicação da Ratio studiorum (1599)” e a oitava “a adequação constante ao mundo cambiante: a partir da publicação das Características, passando pela Pedagogia Inaciana, em 1993, o novo paradigma pedagógico jesuítico” (Atualidade da Pedagogia Jesuítica… cit., p. 23).

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

242

futuro”, homens equilibrados […] o nosso ideal está mais perto do insuperado modelo do

homem grego, na sua versão cristã, equilibrado, sereno e constante, aberto a tudo o que é

humano”909. O Padre Geral Peter Hans Kolvenbach segue Arrupe no que toca à temática

dos valores - “antídoto contra a desumanização” - aprofundando-a e preocupando-se em

apresentar critérios de operacionalização aos educadores que “devem evitar qualquer traço

de doutrinamento, manipulação, imposição ou indução da sua visão, julgamentos e

soluções, assim como propostas utópicas e inoperantes (1993ª:14). Não podemos deixar de

assinalar a semelhança de tais advertências com as que Inácio de Loiola regista no Ratio

Studiorum910. A consideração de cada aluno como pessoa exige preservar sempre o valor

da sua liberdade (1993h: n. 132)”911. Nesta atenção dada aos educadores, ou melhor, ao

perfil e funções originárias do Ratio, Carlos Vásques Posada transcreve um pequeno

excerto do Padre Geral da actualidade:

“En efecto, dice, sin semejantes vínculos de amistad, gran parte de la fuerza única de nuestra

educación se perdería. Una relación auténtica de confianza y amistad entre profesor y el estudiante

es una condición fundamental para todo crecimiento genuino de valores”912.

Declarado na interacção pessoal e social com o outro - pai, filho, irmão, cônjuge,

amigo, enfim, homem criado à imagem de Deus, por isso, ser ‘ amável’ e de ‘bem’ - , o

amor continua a ser a base de sustentação para que se possa falar de uma “scholla

affectus”, à maneira dos Exercícios Espirituais. Também se encara a sua utilidade num

projecto de vida inserido num mundo que se quer impregnado de colaboração fraterna, de

humanismo “aberto e inteiramente livre” e “ao mesmo tempo aberto para o mundo

inteiro”913. Para tal, “a educação jesuítica busca sua inspiração no Evangelho ‘que é o selo

distintivo do ensino jesuítico’ (1989, 123)”914, demonstrando a sua abertura face à

colaboração de educadores leigos nos seus colégios, que continuam a primar pela

excelência.

909 PEDRO ARRUPE, S.J., “Os nossos colégios: Hoje e amanhã, alocução final aos participantes no Encontro sobre Educação e Ensino Secundário, em Roma, a13 de Setembro de 1980”, publicado em Pedro Arrupe, S.J., Um Projecto de Educação … cit., pp 198-200.

Cf. DOMINGOS DE FREITAS S.J., “Actualidade e pertinência da pedagogia inaciana…” cit., pp. 473-474. 910 Para mais informações sobre este assunto, vide supra, p. 85, nota 279. 911 LUIZ FERNANDO KLEIN, S.J., Atualidade da Pedagogia Jesuítica … cit., p. 85. 912 Apud CARLOS VÁSQUEZ POSADA, “La Ratio: sus inícios, desarrollo y proyección”, Revista Portuguesa de Filosofia, 55 (1999) 246. 913 PEDRO ARRUPE, S.J., Um Projecto de Educação…cit., p.77. 914 LUIZ FERNANDO KLEIN, S.J., Atualidade da Pedagogia Jesuítica …cit, p. 84.

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

243

A par dos conhecimentos curriculares em consonância com o currículo nacional,

continua a fazer-se a apologia da vivência dos modelos da Sagrada Escritura e dos

sacramentos, como são contemplados nos Exercícios espirituais, cumprindo normas que

orientam para uma formação integral baseada na imitação de Jesus Cristo e numa relação

de amor - ágape divina. Nesta visão cristã, alicerce deste plano de estudo, pode dizer-se

que “toda a obra de educação deve ser considerada uma educação para o amor”915.

Nesta sequência, julgamos pertinente direccionar o nosso discurso para um caso

concreto, ou melhor, para um colégio jesuíta com sucesso no tempo e no espaço que ocupa.

Para tal, sugerimos a leitura do actual Projecto Educativo do Instituto Nun’Alvres -

Colégio das Caldinhas -, que tivemos oportunidade de visitar, sendo nosso cicerone o

Prefeito João Regueiras, leigo que colabora neste serviço de missão/excelência como

responsável pelo Teatro Experimental deste colégio (TEINA). Entre organização,

objectivos, normas e orientações, esta escola católica, que forma hoje em dia alunos desde

o 1º até ao 12º anos, continua fidedigna ao princípio inaciano da adaptabilidade e procura

fomentar união mútua, ambiência afectiva/familiar entre todos os membros da comunidade

educativa. Focamos por exemplo na admissão do aluno a preferência dada a quem resida

na área, a quem seja irmão de aluno de qualquer das Escolas do Colégio; a quem seja filho

de colaborador do Colégio ou de antigo aluno916. Além disso, “respeito”, “cortesia”,

“correcção”, “dignidade pessoal” são, entre muitos na mesma linha de significação, termos

recorrentes que assumem maior dimensão se repararmos em dois tópicos fornecidos pelo

índice e relativos aos normativos e orientações comuns - “Normas de Convivência” e

“Contributos para uma Disciplina Assumida”.

Actualmente, o teatro surge nesta escola, sita nas Caldas da Saúde - fronteira dos

concelhos de Santo Tirso e Vila Nova de Famalicão-, como actividade extra-curricular.

Todavia, são 70 os alunos envolvidos neste projecto artístico. Segundo o seu timoneiro,

sempre houve, nas várias peças representadas intra e extra muros, durante estes últimos

onze anos, o objectivo e cuidado de mostrar “aos ‘miúdos’ que afinal não é difícil ‘fazer

teatros’ (como eles dizem!). Ensinámo-los a voar, a construir, … e a desconstruir. Foram

vencidas muitas batalhas: a do medo, da timidez, do mau relacionamento, da

desmotivação, etc”. As comédias musicais têm dominado as preferências de actores,

encenador e público espectador, estando sempre subjacente nos argumentos - ultimamente

915 GIOVANNI CERETI, “Amor”…cit., p. 66. 916 Cf. Colégio das Caldinhas / Instituto Nun’Alvres -Projecto Educativo, p. 17.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

244

da autoria de João Regueiras - uma educação cívica, não recorrendo normalmente a

temáticas de pendor religioso.

Isto não se verificou em tempos idos, já que, pelo registo do P. José Carvalhaes, na sua

obra Arte no Instituto nun’Alvres, O Filho Pródigo consta de uma lista de dramas e

comédias representadas pelos alunos desse Colégio e o de La Guardia, desde 1932. Entre

as páginas 33 e 35 da referida obra podemos verificar que as fotografias só mostram

personagens masculinas, e quando aparece uma mulher em palco é um homem com vestes

femininas917. Afinal os avisos do Ratio Studiorum também se adequam a tais imagens

fotográficas. Nesta sequência de ideias, será curioso saber que em 1984 deu-se uma

representação “por alguns Professores e pais de alunos, de uma opereta um tanto burlesca,

cujo texto é inspirado pelo episódio da morte de Inês de Castro”918.

Retomando a visão global com que iniciámos, no relatório para a UNESCO em prol de

uma Educação para o futuro que garanta o desenvolvimento humano sustentável, esta é

encarada como “bússola orientadora” e “fabuloso tesouro a descobrir pelas gerações

vindouras, o qual pode constituir os alicerces de um ‘humanismo XXI”919. Defende-se uma

perspectiva educacional permanente e baseada em valores universais e inter-culturais, um

“processo de comunicação dos sentidos e dos significados”920 que denote uma educação

pessoal e social, considerada “passaporte para a vida”, passando o ser humano a ser o fim

último do desenvolvimento e não um mero agente económico.

Desta feita, a Comissão Internacional, autora deste estudo, apresentou quatro pilares

básicos para uma educação do futuro, almejando uma sociedade mais do sentir e do

partilhar que do saber e possuir. Aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer e

aprender a viver juntos são esses quatro pilares921. Julgamos que é óbvia a sintonia com a

pedagogia da Companhia, percepcionando, nesta arquitectura educativa, a união de letras e

virtude; ciência e vida; saber e conduta922. A espiritualidade inaciana pode ver-se em

917 Vide anexo I, no final deste trabalho, p. 287. 918 JOSÉ CARVALHAES S.J., “a arte e o teatro”, in Arte no Instituto Nun’Alvres. Caldas da Saúde, Santo Tirso, 1999, Santo Tirso, p. 35. 919JACQUES DELORS et alii, Educação- um tesoiro a descobrir…. cit., p. 9. 920 Ibid., p. 340. 921 Cf. Ibid., pp. 77-88. 922 Cf. ESTEBAN OCAMPO FLÓREZ, “Claves de la Ratio Studiorum”, Revista Portuguesa de Filosofia, 55 (1999) 343-356. O professor da Universidade Javeriana Cali de Colômbia regista pontos que marcam a actualidade da educação dos Jesuítas. Atendendo aos inícios da actividade pedagógica e sua caminhada histórica até a projecções futuras, enumera o que permaneceu, o que não permaneceu e o que virá. Passamos a indicar os 12 pontos que, na opinião do estudioso, se mantêm: 1)“Pedadogia Humanista Cristiana” –“Virtud, Letras, Servicio y Compromisso con los demás” -;2) “Atención personal al estudiante”; 3) “respecto por la persona del estudiante y sus particulares maneras de relacionarse con Dios, con los otros y con el mundo”; 4) Formación del Cáracter hoy más conocida como FORMACIÓN INTEGRAL”; 5) “la consideración en torno a tiempos, lugares y personas, como critério básico para la aplicación de cualquier

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

245

palavras desse estudo, como por exemplo, “a educação é antes de mais uma viagem

interior, cujas etapas correspondem às da maturação contínua da personalidade”923.

Actualmente, em Portugal, a regulamentação estatal programa uma educação pública,

para todos os portugueses, respeitando o “princípio da liberdade de aprender e de ensinar,

com tolerância para com as escolhas possíveis”, o que implica a defesa de um neutralismo

ético-ideológico, não se submetendo a “quaisquer directrizes filosóficas, estéticas,

políticas, ideológicas ou religiosas” (art. 2º, 3-a). Sabemos que esta intenção teórica não se

efectua em termos práticos, aliás não há educação neutra924.

A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), quando afirma como princípio

organizativo no seu art 3º - “Contribuir para a realização do educando, através do pleno

desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania, preparando-o

para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e

proporcionando-lhe um equilibrado desenvolvimento físico”925 - coloca a pessoa/aluno no

centro das preocupações formativas. Podemos dizer que está também a abrir portas ao

teatro, meio de humanização da cultura e da combinação perfeita, a nível escolar, de

saberes, competências e valores numa experiência de interactividade humana.

Quer nos objectivos do ensino básico, quer do ensino secundário, a formação integral e

a perspectiva de humanismo universalista estão presentes em finalidades, onde a educação

artística ajudará a desenvolver competências físicas, pessoais, relacionais, cognitivas e

técnicas, “de modo a sensibilizar para as diversas formas de expressão estética, detectando

e estimulando aptidões nesses domínios”. No ensino secundário, fala-se de “facultar aos

jovens conhecimentos necessários à compreensão das manifestações estéticas e culturais e

possibilitar o aperfeiçoamento da sua expressão artística”.

recomendación, norma o precepto”; 6) “consideración en torno al Magis […] Excelencia Humana”; 7) “el enseñar a pensar”; 8) “el encontro con los otros” – “trabajo en grupo; trabajo individual; tutoría” -; 9) “la consideración de que los estudiantes poseen saberes previos a su ingreso a la institución o al inicio de cada curso”; 10) “sínteses entre teoria y prática, entre pensar yhacer,entre conocer y sentir o experimentar, entre razonar y creer, entre aprender y eercitar o praticar”; 11) “la Actividad y la Comunicación”; 12) “la promoción de grupos para la acción”. 923 Ibid., p.87. Indicamos de seguida algumas páginas onde nos pareceu encontrar paralelismo entre este relatório sobre a educação do futuro e o paradigma defendido pela Companhia de Jesus: pp. 15-19, 75, 78, 84 e 135. 924Nesta linha de pensamento, julgamos oportuna a referência de um pedagogo francês contemporâneo, OLIVIER REBOUL, que nos fala de valores e educação, no sétimo capítulo do livro que será indicado (pp. 73-87). Passamos a citar dois excertos que a nosso ver se adaptam a exposição de ideias que estamos a fazer: 79 “Nos nossos dias, o grande perigo de endoutrinamento, aparentemente, não vem da religião nem da política, mas da indiferença, ou de uma demissão dos próprios educadores.”; “Assim se sacrifica o agradável ao útil, o útil ao nobre, etc. Todo o valor se situa, pois, numa hierarquia de valores. Se há educação sem valor, é lógico que também não há educação sem sacrifícios; aprender é renunciar ao jogo pelo trabalho, ao prazer imediato por uma alegria duradoira, à ilusão inebriante de saber pelo saber crítico, à satisfações de amor próprio pelo respeito de outrem. Nada se aprende a não ser renunciando a alguma coisa.” (A Filosofia da Educação, trad. de António Rocha e Artur Morão, Lisboa, s.d., respectivamente, pp. 79, 80). 925 JORGE LEMOS e TEOLINDA SILVEIRA, Autonomia e Gestão das Escolas – legislação anotada, Porto, 1999, p. 274.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

246

O Departamento de Educação Básica, no âmbito dos curricula correspondentes aos

sétimo, oitavo e nono anos de escolaridade, apresenta a Oficina de Teatro ou Educação

Artística como disciplina de opção que cada escola de ensino público poderá oferecer no

acto de matrícula dos alunos.

No caso da Escola Secundária de Amares, nosso local de docência nestes últimos oito

anos, esta disciplina tem vindo a ser leccionada por duas professoras de Português/Francês,

desde o ano lectivo de 2002-2003. O ano lectivo 2005-2006 é o de finalização desta

disciplina (com duração programada para três anos), designada disciplina de Teatro. No

ano de iniciação, no sétimo ano de escolaridade, foi feita a divisão, em dois grupos, dos

alunos matriculados no sétimo ano, cabendo a uma das metades da turma a frequência da

disciplina escolhida, durante uma sessão de noventa minutos semanais, ao longo do

primeiro semestre, enquanto a outra metade assistia às aulas de Educação Tecnológica. No

segundo semestre, trocavam-se os turnos. No ano lectivo 2003-2004, neste sistema, houve

aulas no sétimo e oitavo anos; no ano lectivo seguinte, 2004-2005, a escola não

possibilitou mais matrículas nesta disciplina a alunos de sétimo ano. Desta feita, restavam

apenas turmas do oitavo ano e, pela primeira vez, nono ano. No ano lectivo vigente (2005-

2006), a carga horária aumenta, apenas no último ano de ensino básico (o nono),

decorrendo durante todo o ano uma sessão semanal de noventa minutos. As orientações

curriculares foram apresentadas à escola, seguindo programas oficiais estruturados por

módulos organizados e atentos às dimensões sócio-afectiva, integradora e estética. A

moldagem de emoções, sentimentos - ideais para um conhecimento de si, dos Outros e do

mundo - são a base desta disciplina que, apesar de curto tempo de vida, segundo as

professoras envolvidas, pôde:

-“desenvolver o sentido estético”;

-“motivar e melhorar as relações interpessoais, a cooperação, a capacidade de trabalhar

em equipa”;

- “desenvolver a auto-confiança”;

-“proporcionar a descoberta e o trabalho com outras linguagens e formas de expressão,

a saber, a gestual, a corporal e a prosódia”;

-“estimular a imaginação e a criatividade”.

Os próprios alunos, na avaliação qualitativa que caracterizava a disciplina,

“valorizaram os aspectos concernentes à relação com os outros e a confiança em si

próprios”. No primeiro ano de funcionamento desta disciplina, a comunidade escolar e os

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

247

familiares dos alunos assistiram, a 15 de Dezembro, à récita de Natal, organizada por

alunos e respectivas professoras. Excertos dos Evangelhos de S. Lucas e de S. Mateus

foram fonte de nove cenas, fazendo parte da décima o poema de José Carlos Ary dos

Santos, “Kírie”. Na representação, os textos bíblicos e os nomes dos antepassados de Jesus

levam-nos a estabelecer alguma analogia analéptica com o que se passava nos colégios

jesuítas.

Nas aulas de Língua Portuguesa, no 3º ciclo, e de Português, no Secundário, o texto

dramático faz parte dos programas, mas só sai fora da sala de aula quando professor e

alunos se esforçam e se motivam para a sua representação, concretizando actividades do

plano anual por altura de Jornadas Culturais ou efemérides escolares, nacionais e

internacionais, com data marcada mais para o final do ano lectivo. Acerca da actual

utilização do teatro como recurso pedagógico-didáctico, julgamos oportuna a divulgação

das seguintes palavras:

“somos levados a crer que o teatro acontece lá onde o texto autoriza e legitima, crescendo a

qualidade deste na proporção directa das suas afinidades estatuárias e discursivas com os demais

modos e géneros literários. Tal sucede porque a escola, voluntária ou involuntariamente, apenas

tende a resgatar aquela parte do passado teatral que lhe assegura a sobrevivência de um texto e de

uma autoria concretas. Apoiando-se em categorias tão poderosas na cultura ocidental, não há como

negar à escola a sujeição quase exclusiva do ‘teatro dramático’ à condição familiar das Belas Letras

e ao domínio dos seus protocolos hermeneûticos”926.

Além disso, é presença constante dos planos de actividades anuais da escola a saída de

alunos para assistirem a representações teatrais - quase sempre ligadas a obras a leccionar

no âmbito do texto dramático -, principalmente nas cidades de Braga, Porto e Lisboa.

Na cidade de Coimbra, em termos de dinâmica universitária, merece o nosso registo e

homenagem a Associação FESTEA - Teatro de Tema Clássico - do Instituto de Estudos

Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade dessa cidade do conhecimento. O

festival escolar de Teatro e o festival internacional de Verão são resultados anuais da sua

acção. Com espírito formativo, esta associação promove, ainda, cursos sobre o teatro

greco-romano. Nos festivais, indo já no VI Festival de teatro Escolar de Tema clássico,

apontam como objectivos principais: ”Contribuir para a formação do gosto pelo

926 FERNANDO MATOS OLIVEIRA, Teatralidades… cit., p. 158.

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

248

espectáculo teatral e permitirá animar espaços monumentais e arqueológicos”; “Formar o

gosto pelo espectáculo teatral e permitir animar espaços monumentais”. Pelo teatro,

recorrendo a temas e mitos greco-romanos, alunos universitários permitem-nos reviver,

sentir valores e ideais antigos que permanecem pujantes e vivos e ganham forma nas

culturas ocidental e universal, nestas representações com adaptações ao tempo, lugar e

pessoas.

Será, no mínimo, curioso, remeter para imagens que Maria de Fátima Sousa Silva

compilou em livro, já que elas revivificam tantas personagens do teatro clássico, no

Portugal Contemporâneo. Aí nos aparecem peças de Terêncio que o teatro radiofónico da

Emissora Nacional (E. N. /RDP) transmitia em 1957927.

Ainda nesta visão educativa do teatro, indicamos, na mesma cidade, a existência de um

curso da Escola Superior de Educação que se apresenta direccionado para a via ensino -

“Teatro e Educação”.

Nesta terceira parte, per se, conclusiva, julgamos que o nosso humilde intento, perante

tão rico e vasto assunto, incidiu primordialmente num interesse e comprovação de ordem

histórica, ainda que o interesse humanista, no sentido pelo do termo, fosse aquele que

comandasse a escolha deste estudo. Talvez este facto justifique alguma explanação mais

pormenorizada, mais sentida e até certa inquietude que o cariz científico/académico do

trabalho obrigou a conter. Em jeito de imitatio et emulatio, lema pelo qual nos deixámos

envolver ao longo desta dissertação, não nos restringindo à especificidade e qualidade dos

modelos clássicos (portadores de sentimento de pertença), apresentamos para finalizar a

visão defendida por Luís Francisco Rebelo que encara o interesse do teatro como acção

colectiva na escola não só para o “dever da personalidade” mas também para o “dever de

solidariedade”928.

927 Cf. MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA, Representações do teatro clássico no Portugal Contemporâneo, vol. II, Lisboa, 2001, pp. 338-339. 928 LUÍS FRANCISCO REBELO diz: ”eis, através do teatro, o cumprimento daquele duplo dever de personalidade e solidariedade posto em relevo por Langevin, e de cuja harmoniosa articulação depende, em última análise, o futuro tanto do indivíduo como da colectividade humana.” (“O teatro e a Juventude”, in Educação Estética e ensino escolar, Lisboa, 1966, p. 139).

Parte III – Age quod Agis

Tudo o que pertence ao passado não é senão um prólogo, onde se esboça já o futuro

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Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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Hoje nas onzas escolas a educação sexual, a educação cívica

Sujeição às ordens /espírito crítico

Diz Marcial, “os meus escritos sabem a homem – hominem pagina nostra sapit

CONCLUSÃO

As ideias pessoais de encerramento resultam da análise e reflexões operadas ao longo

deste percurso. O cariz sumário deste registo, a modo de anotações críticas, contrasta com

o desenvolvimento detalhado, ocorrido ao longo das três partes expostas, e pretende,

breviter et simpliciter, tocar e fixar aspectos dominantes. Tudo se encadeia de forma a

verificarmos e crermos que, independentemente do caso concreto estudado, na formação

integral há um substrato intemporal: o bom e o adequado uso da linguagem, do

pensamento, do conhecimento por parte de cada pessoa, no contacto consigo, com os

outros e com o mundo. Com efeito, esta, enquanto protagonista da educação, é o centro

das atenções e preocupações no processo de ensino-aprendizagem, em várias épocas e

lugares; logo, na procura de prioridades educativas, a escolha deve recair,

necessariamente, na boa formação do coração, do espírito e da vontade. Só assim poderá

ter sentido o que se aprende, obtendo, para além de ciência, a sapiência. Queremos, neste

parecer final, reforçar e defender com convicção uma formação com a sua essência não

tanto na doutrina ensinada, mas, primordialmente, no despertar e avivar de capacidades,

destrezas e sensibilidades no ser humano, rumando em direcção a uma liberdade

responsável e um coerente sistema de valores.

No teatro do colégio jesuíta do séc. XVI, punha-se a uso um conhecimento de base

humanística/clássica em comunhão com a doutrina cristã/católica, espelhada em palco e

iluminada pela graça divina. Verificámos que, na segunda metade desse século, a literatura

dramática ocidental - coincidente com algumas peças adaptadas de autores clássicos como

Terêncio e Plauto e com produções de padres pedagogos jesuítas - ocupou um lugar im-

portante nas manifestações/experiências académicas e nas festas escolares. Nesta (inter)

acção, as vivências dos metódicos colégios jesuítas eram exibidas e, em simultâneo,

amenizadas, além de se procurar ajudar a própria pátria lusa, em franco declínio e

retraimento, após o optimismo e confiança da primeira metade quinhentista.

251

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

252

Para o mundo católico apostólico romano, com o encerramento, em 1563, do Concílio

de Trento e respectiva afixação dos cânones da Contra-Reforma ou Reforma Cristã, as

palavras de ordem assentavam no absolutismo eclesiástico, na ortodoxia, no dogmatismo,

na disciplina doutrinária e no proselitismo. Em seu nome, escalas literárias de herança

clássica, que vigoravam nas Selectas jesuíticas, podiam ser subvertidas, alteradas e até

alienadas, como analisámos. Apesar disto, solicitando-se a nova ideia de tolerância, numa

Europa em plena guerra de religiões e consequentes Reformas, assistia-se ao empenho de

príncipes e seus povos na afirmação das nações e, consequentemente, à esperança numa

convivência de pluralismo religioso. Neste panorama, em Portugal, as Constituições

Sinodais (1565) apoiavam a Igreja Católica no esforço implementado em definir,

prescrever e clarificar, com rigor e com limites, uma moralidade tridentina, defensora da

cura das almas.

Os Jesuítas, apóstolos do Papa, bem acolhidos por D. João III em território nacional,

seguiam, defendiam e, consequentemente, pretendiam ensinar as bonae litterae, mediante

objectivos de carácter catequético e moralizante, ajustados a pessoas, tempos e lugares

concretos. Foi preocupação pessoal e um dos principais cuidados do seu fundador a

regulamentação aplicada aos seus regrados colégios. Estes eram meios promotores de uma

educação católica bem definida e fomentadores da devoção e da conversão a virtudes

como a caridade, piedade, bondade, modéstia, decência, castidade e penitência. Numa

pedagogia vivida e com traços espácio-temporais bem assentes, o peregrino Inácio de

Loiola apelara à unidade, construída sobre o labor, a doutrina, a força ‘delicada’ da

obediência e a atenção às experiências de vários sítios e de diversas pessoas.

Seguindo metodologias de comprovado sucesso na Europa de então - modus

parisiensis -, a composição dramática e os textos jesuíticos colocados em acção (fusão

entre intertexto clássico e subtexto bíblico) podiam ser transmissores polivalentes de uma

herança judaico-cristã e de uma adaptada sabedoria greco-romana tão cara a esse momento

histórico. No palco, o grande número de personagens dava voz e expressão latina a

diálogos e extensos monólogos, seguindo estes o modelo do tragediógrafo latino, Séneca.

Na verdade, este “theatrum castum”, assim designado pelo reconhecido dramaturgo

jesuíta P. Luís da Cruz, fazia parte de um projecto educativo sui generis, onde as relações

humanas e a convivência com paciência exigiam e ditavam as normas para a formação de

homens de carácter e de boa vontade. Encarada a pessoa como ser culto, o teatro podia, e

pode, humanizar a imprescindível cultura, por meio das “letras mais humanas”.

Conclusão

O pendor eclesial era óbvio nesta pedagogia que não se deixou absorver por um rigor

matemático-renascentista e, apesar de procurar atender ao desenvolvimento de todas as

dimensões do ser humano, teria de obedecer especificamente ao que devia de ser recto,

isto é, à ortodoxia instituída pela Igreja Católica Apostólica Romana, que, no modus

dicendi de hoje, assumia a expressão do ‘politicamente correcto’, à qual nós

acrescentamos a do ‘catolicamente correcto’.

O idealismo moral professado e os modelos de comportamento - protagonizados por

pais brandos ou duros, mães dedicadas, filhos obedientes ou emancipados, esposas

submissas ou dominadoras, amigos verdadeiros ou falsos, senhores dedicados ou não ao

reino e seus súbditos - filiavam-se nas exigências de ordem e rigor da religiosidade de

Roma. Por isso, nos locais de estudo indicados, a formação do adolescente instável, na

faixa etária da inteligência contestatária e de mudanças repentinas na afectividade - no

caso estudado, alunos externos e escolásticos da Companhia -, socorria-se de modelos

antropológicos com condutas de altos níveis de exigência moral, sem mácula. Havia

incidência numa retórica de valores, dignos de uma comunidade movida por caridade e

piedade e, por conseguinte, entrelaçados com a obediência a um sistema controlador.

Neste contexto e processo, consideramos a linguagem um acontecimento interactivo e

multifacetado a quem reconhecemos a dupla função do estudo da estrutura linguística e do

efeito estruturante na aprendizagem operada por cada um.

Tentámos (de)mostrar como o texto dramático espelhava um discurso moral do amor

humano sob a égide da Igreja Católica. Nesse recurso didáctico, com conteúdos e

objectivos programáticos, a edificação de um bom coração demonstrava ser o fruto

virtuoso que podia desviar a pessoa de cair na tentação. Os abusos e vícios que conduziam

a caminhos de perdição eram ouvidos e/ou, pelo menos, vistos em imagens. É exemplo

disto a personagem alegórica, que inicia a peça Achabus do P. Miguel Venegas, spiritus

mendax (Diabo). A vontade dos homens - vontade da carne - exigia, pois, cuidados e

atenções que, através do pensamento, palavras, actos e as omissões devidamente

legalizadas, iam ao encontro do projecto criador de Deus Pai, procurando o desvio do

pecado e, obviamente, a pretendida organização social e política. Combatia-se o

individualismo e a subjectividade, num tempo e lugar onde se professava uma moral cristã

pragmática a favor de um sentido de sociabilidade concordante com o valor assumido pela

amizade arreigada na lealdade, gratidão e fidelidade. Rejeitava-se, pois, tudo o que se

filiasse na auto-suficiência e, consequentemente, no desrespeito pela liberdade do outro,

253

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

254

no desapego de um espírito de serviço e dedicação ao seu semelhante e na valorização de

formas de excesso como a concupiscência, a gula e a opulência.

No segundo capítulo da segunda parte, através do levantamento, da menção e da

interpretação literárias, enumerámos e analisámos, entre a uis comica e a uis tragica,

práticas e laços afectivos congruentes com a razão da fé católica, com a “decência”, com o

decorum e com valores cristãos em que a disciplina, interior e exterior, seria obrigatória

para uma prática e familiarização constante dos mesmos. Certamente, tanto pela mimesis

ficcional e sua configuração disciplinadora/intransigente, como pela interacção

regulamentada na sala e no palco, os sentimentos e as emoções poderiam mover e

discernir vontades e, por consequência, fortalecer personalidades, facilitando a

identificação com modelos de ser, estar e agir apropriados a um viver católico.

Todo o aparato, que abarcava a análise, encenação e representação das peças com

marca da casa jesuítica, pretendia impressionar os presentes, tanto os actuantes como os

observantes. Todos os gestos humanos, as letras ‘humanas’, os silêncios e o ornato

contribuíam para a exigente captatio beneuolentiae de um público masculino. Às

personagens, representantes do Bem ou do Mal, era dada a estatura e a graça dos colegiais

de verdes anos. Nomeadamente, as raras personagens femininas, ligadas quase sempre

com a manha, o artifício, a perdição, eram encarnadas também por eles. Entre muitos

avisos sobre o género feminino, havia necessidade de confirmar e lembrar os perigos que

os homens poderiam correr perante uma esposa dominadora. A personagem Jezabel é

elucidativa deste caso, já que leva o seu marido Acab à perdição, acabando este rei por ser

desleal e desobediente com o seu povo de Israel.

Com efeito, o caminho longo, lento e faseado, configurado pelo exercício dramático,

desde a escrita, estudo e sua representação, ajustava-se na totalidade ao modelo de

educação atenta e sem pressas que apresentámos ou, na linha de pensamento que com

insistência expusemos, à cura personalis a ele inerente e à humanização.

Giuseppe Angelini, apresentando a fé como pressuposto básico para a compreensão da

virtude cristã, profere palavras, que nós aqui adaptamos à realidade estudada, sublinhando,

mais uma vez, o facto de o teatro :

“ predispor as condições propícias para um uso das imagens bíblicas para exprimir e interpretar ao mesmo tempo o todo da experiência humana. Portanto, não através da repetição obsessiva dos supremos

Conclusão

princípios, mas também da hermenêutica cristã de cada lado da experiência, será possível alimentar a virtude humana e ao mesmo tempo cristã”929. Nos nossos tempos, os sistemas educativos na aplicação dos seus programas oficiais

podiam ver neste exemplo de pedagogia e didáctica do passado uma lição de trabalho, de

sujeição a ordens - não subserviência, advertimos nós -, de ideias antigas, todavia,

intemporais no apelo ao esforço, à integração e ao sentimento de pertença. Isto, visto que

pensamos num presente e num futuro ao serviço de uma educação que integre saber,

ciência e humanidade, sem as exigências hodiernas da velocidade e da perfeição

irrefutável.

Julgamos que, por esse caminho longo e lento, mas mais seguro e experiente, será mais

difícil demitir-se e ficar indiferente à construção pessoal e social, levando educadores e

educandos a reconhecer além do poder da razão e do intelecto o da afectividade. Só assim,

tal como tentámos provar com alguns exemplos nomeados na terceira parte deste trabalho,

julgamos estar no caminho rigoroso, mas certo, para formar homens de sucesso e de

excelência. Estes são entendidos aqui como potencializadores de novas atitudes, a base do

relacionamento e desenvoltura de cada um dos intervenientes no processo educativo.

Alicerçada num diálogo de amor com força para destronar a preponderância do tão

irrefutável diálogo intelectualista, essa nova maneira de ver e fazer não deixaria de encarar

o pensamento/discernimento como peça fundamental para aprender a amar. Desta maneira,

pretendemos fazer a apologia da sensibilidade, do amor e dos afectos marcados pela

incompletude, por um ir fazendo pessoal, ao contrário de um amor programado, que está

pronto a usar e consumir, submetendo-se a esquemas de poder e utilidade e à ligeireza de

vivências, consciências e de relações.

Se a educação é processo de humanização, procurámos comprovar e alertar para o

proveito que teve o teatro nos colégios dos Jesuítas, usado como instrumento de estudo da

língua e estratégia de ensino de valores, subsidiando o bem agir e o bom ser. Afastados da

visão representada por Tartufo de Moliére930, queremos manifestar, hic et nunc, a urgência

na recuperação criativa desta tradição. Não temos a pretensão de dar uma lição impositiva

e definitiva, mas gostaríamos de objectivar novos comprometimentos que pudessem

extravasar o mero exercício académico, inspirando ou hipóteses de investigação com

929 GIUSEPPE ANGELIS, “Para uma reconsideração da virtude”, in Christos … cit., p. 872. 930 ORLANDO NEVES diz que este nome fora “inventado por Molière para título e personagem de uma sua comédia onde satiriza os devotos e a moral dos jesuítas, então todo-poderosos na sociedade francesa” (Dicionário da origem das palavras, Lisboa, 2001, p. 221).

255

Cura Personalis na Pedagogia dos Jesuítas:

Reflexos no teatro escolar do séc. XVI, em Portugal

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efeitos práticos ou estratégias e métodos para iluminar formas de ensinar, que

valorizassem o professor como ser do Dever e mestre dos sentidos e dos prazeres.

Princípios organizativos e objectivos, delineados na LBSE, para os ensinos básico e

secundário931 podem, através do resgate desta opção didáctica, atingir maior amplitude e

concretização mais plena, respondendo, em acto, à necessidade de formação integral da

pessoa, o mesmo é dizer, à qualificação do ensino. A opacidade da dimensão afectiva,

tantas vezes encoberta e preterida, embora legislada, não se atribui ao esquecimento e/ou

desconhecimento do seu valor, mas sim à dificuldade, à exigência de empenhamento e de

cooperação na sua concretização. Na sociedade hodierna marcada pela debilidade da reli-

gião, invocamos esforço persistente, discernimento interior, amor, serviço e consciência

nas responsabilidades nos planos privado e público, ressonâncias da espiritualidade

inaciana. Com efeito, na tarefa de educare (alimentar/ dar conhecimento) e educere

(conduzir/ levar ao bom aproveitamento/comportamento), exige-se compromisso pessoal e

profissional face às múltiplas dimensões que envolvem a formação da pessoa, duvidando

das formas rápidas, imediatas e indolores de sucesso garantido e contínuo.

Por que razão há tanta dificuldade na implementação escolar de realidades a conhecer

e a aprender tais como a educação cívica e a educação sexual?

É premente renovar e reeducar de maneira a “ir ao encontro do espírito do tempo”. Se

hoje a religião não tem o poder doutrinador dos diligentes tempos nomeados, há outras

forças bem poderosas que apelam a um humanismo terra a terra, a um nivelar de costumes,

a novas exigências sociais que requerem o princípio perene de formação integral da

pessoa. Somente uma relação pedagógica, onde se alia exigência e afectividade, pode

combater crises e descrenças. Na escola de hoje, à semelhança do que se passava na

experiência colectiva contada - que se interrogava a si mesma para uma formulação -, o

teatro podia e devia ser encarado como auxílio enérgico e valoroso na formação de

professores, alunos e também daqueles que observam e presenciam todo o testemunho

desse pedaço de vida. Sem dúvida que a acção dramática educa e desperta sentidos, pois,

“ descubre la persona tal cual es, es un juego abierto de espontaneidade donde conocemos al

alumno-a. Ortega, en Estudios sobre el amor dice: ‘Según se es, así se ama. Por esta razón, podemos hallar en el amor el síntoma más decisivo de lo que una persona es”932.

931 Cf. JORGE LEMOS E TEOLINDA SILVEIRA, Autonomia e Gestão das Escolas – legislação anotada … cit., art. 3; 7 e 9, pp. 274, 275, 278,281, 282. 932 JOSÉ MARIA CALLEJAS, El Teatro Educa – Experiências didácticas en filosofia, Madrid, 1988, p. 181.

Conclusão

257

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