cinema e tango: práticas corporais no cinema argentino
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Cinema e tango: práticas corporais no cinema argentino1
Cinema and tango: bodily practices in Argentine cinema
Natacha Muriel López Gallucci2 (Doutora em Filosofia |
Doutoranda em Cinema, Instituto de Artes, Unicamp)
Resumo:
As manifestações do tango revelam um rico e complexo ideário
sensível, capital na história cinematográfica argentina. Nesta
comunicação, pretende-se analisar, desde uma perspectiva
filosófica, o problema das práticas corporais do tango no cinema
mudo e clássico industrial, entendido esse tópico como o
problema formal da criação trazido por uma mise-en-scène, a da
performance de tango dança, dentro do registro de outra mise-en-
scène, nas produções do cinema argentino.
Palavras-chave: Cinema argentino, mise-em-scène, práticas
corporais, tango-dança.
Abstract:
The manifestations of tango reveal a rich and sensitive complex,
capital in Argentine film history. In this communication, we
1 Trabalho apresentado no XVII Encontro Socine de Estudos deCinema e Audiovisual na sessão: “Corporalidades“ 10/10/2013.
2 Doutora em Filosofia (Unicamp). Doutoranda em Multimeios (IA– Unicamp). Diretora da CIA Típica Tango (www.típicatango.com.) e do GT deTango, Espaço Cultural Casa do Lago, Unicamp. Contato:[email protected]
intend to analyze, from a philosophical perspective, the problem
of corporal practices of Tango in silent and classic films,
understood this topic as the formal problem of creation brought
by a mise-en-scène, the one of the performance of the tango dance
inside the registry of another mise-en-scène, in the productions of
Argentine cinema.
Keywords: Argentine cinema, mise-em-scène, corporal practices,
tango-dance.
Introdução
Nesta comunicação, pretende-se analisar o problema das
práticas corporais do tango dança no cinema mudo e clássico
industrial argentino, entendido esse tópico como o problema
formal de criação trazido por uma mise-en-scène, a da performance
de tango dança, dentro do registro de outra, a mise-en-scène
fílmica. Abordamos neste sentido um corpus fílmico3
representativo dos períodos mudo (1900-1932) e clássico
industrial (1933-1955) do cinema argentino. Seguindo as teses de
Couselo (1977); España (2000); Fuster (2007); Getino (2005) e
3 Este trabalho forma parte de uma pesquisa maior de doutoradonomeada Cinema e performance: Tango dança no cinema argentino (Departamento de Cinema,IA, Unicamp) em que abordamos a história dos valores imagéticos do tango dançatransmitidos no cinema.
Zapata (2010) quando afirmam que, a) o tango e o cinema
partilham de uma fusão de origem e trazem novos questionamentos
técnicos e corporais, b) que o cinema é o âmbito natural do
tango e c) que a cadência e o timming do tango dança esta em
consonância com os caracteres mais próprios do cinema moderno
(Deleuze, 1985); aspiramos objetivar o importante papel do
cinema mudo e clássico industrial na concretização do tango
dança como um dos núcleo imagéticos que definiu uma linguagem
corporal própria na Argentina e, por sua vez, inédita na
história mundial da dança (DINZEL, 2011; LOPEZ GALLUCCI, 2013)4.
A partir de um levantamento dos períodos mudo e clássico,
tornou-se evidente a fusão de origem entre o cinema e o tango na
Argentina. Diretores do incipiente cinema mudo eram autores de
tangos e criaram um fio condutor entre o teatro de varieté
portenho, o circo criollo e o cinema. Na observação das cenas de
tango dança - analisadas à luz dos estudos históricos de Lamas e
Binda (2008) -, conseguimos visualizar núcleos temáticos
diferenciados nas diversas mise-en-scénes cinematográficas (on, back e
off stage). Os estudos históricos, que situam a origem do tango
nas últimas duas décadas do século XIX, permitiram-nos
compreender como o tango dançado serviu a distintos fins em cada
4 Temos elaborado um estudo fotográfico em vídeo “In CORPOTango: matrizes gestuais do tango dança” acessível emhttp://youtu.be/PaXPeQoyZCw.
diretor e em cada período embora aqui só possamos referir a eles
de maneira geral.
Na passagem do período mudo para o sonoro o que persistiu
foi a opção pela representão corporal dos mitos urbanos do
tango, suas ideologias e a transmissão de histórias com as que o
público se identificava e que falavam da consolidação desse novo
grupo social emergente na argentina. Este tópico transformou a
dança do tango num recurso cinematográfico ideal para atrair o
público de massa antes cativado pelo circo criollo e o varité.
Narrar cinematograficamente a história do tango passa a ser um
caminho de definição da cultura emergente, uma forma de nomear o
vinculo que gaúchos, negros, italianos e demais imigrantes
conseguiram forjar no cone sul.
O cinema mudo argentino constrói uma matriz gestual e
simbólica própria representando um tempo e um espaço
interiorizado, acorde à construção desse ideário sensível
nascente. Ao comparar as mise-en-scène de tango em filmes mudos
argentinos com as cenas de dança do cinema mudo e clássico
francês, notamos que a dança do tango trouxe alguns desafios
novos aos diretores rio-platenses. O timming e a decoupage das
cenas de tango dança tornam o corpo e o gesto dos performers um
fio condutor dentro da estrutura diegética atuando em paralelo
da narrativa principal. Do mudo para o sonoro, em Ferreyra,
Romero, Amadori e depois Del Carril, entre outros, a dança do
tango assume um lugar específico na captura do dispositivo de
criação do tango (FOUCAULT, 1995; LOPEZ GALLUCCI, 2012) e sua
apreensão intempestiva do espaço e do tempo fílmicos.
Os registros fílmicos tanto de espaços ritualizados de tango
– o bairro, os cafés (bares), as milongas (bailes de tango), os
bailes de carnaval, os bordéis, etc. – quanto de espaços
espetaculares, como shows e musicais para cinema, apontam a
coexistência das codificações assumidas em todas as
manifestações das práticas corporais de tango (on, back e off stage).
No entanto, as expressões artísticas do tango dança apresentam
matrizes corporais bem definidas.
Para compreender melhor a busca performática das mise-en-scéne
de tango dança as comparamos com alguns exemplos no cinema mudo
francês. Na sequência de dança flamenca no filme Eldorado (L
´HERBIER, 1921) Sibila, interpretada pela atriz Eva Francis,
leva o público do bar andaluz até o êxtase apenas com poucos
movimentos corporais; a câmera enfatiza suas mãos; o baile em si
é esboçado com uma elipse narrativa; véus diante da lente e fora
de foco foram estratégias do cinema impressionista francês para
imaginar movimento, tingido do estado subjetivo da própria
heroína caída em desgraça.
Figura 1: Eldorado, L´Herbier, 1921 Figura 2: Eldorado, L´Herbier, 1921
Figura 3: Eldorado, L´Herbier, 1921 Figura 4 : Eldorado, L´Herbier, 1921
Fonte: Fotogramas extraídos pela autora
Em contrapartida à bailarina quase estática sobre o palco
(in stage) encontramos o puro movimento maquinal da dança no
famoso filme mudo Maldone (GREMILLÓN, 1928). A pretensão do
diretor na cena da Farandole é trazer a dança em sua versão
corporal popular (off stage) como uma dança de roda francesa.
Coreograficamente a cena tem duas grandes partes. Uma em que a
dança é de roda, produz trajetórias no espaço do salão de baile,
cria espessuras e ângulos inusitados quando os bailarinos
aparentemente descontraídos formam filas e sobem as escadas
dançando ritmicamente. O grupo, animados pela sanfona do Maldone
foi registrado pela câmera a 90°, isso tornava as cabeças dos
dançarinos pontos no espaço e peças de uma engrenagem (Deleuze,
1985). A segunda parte da cena esta dedicada ao baile em pares.
Mostrando a integração social e o corpo a corpo. Mas sendo uma
dança tecnicamente espelhada (ambos os parceiros abraçados fazem
os mesmos movimentos) sempre girando em três tempos como em uma
valsa, o diretor demonstra que é possível um trio abraçado
girando sem dificuldades.
Figura 5 : Maldone, Gremillon, 1928 Figura 6 : Maldone, Gremillon, 1928
Figura 7 : Maldone, Gremillon, 1928 Figura 8 : Maldone, Gremillon, 1928
Fonte: Fotogramas extraídos pela autora
O que prima é a engrenagem e como o corpo serve á maquina
que a câmera quer apresentar. Esta dança simétrica desenha no
espaço vestígios de movimento. A velocidade acelerada de giro
das duplas traz a deformação dos corpos produzindo borrões na
tela; uma indefinição que traduz o desapontamento e a angústia
do próprio Maldone, quando vê com outro à mulher que ele ama.
Nestes dos exemplos a dança acentua a progressão narrativa e diz
da maestria dos diretores franceses na apresentação dos estados
psicológicos através de movimentos corporais populares e
espetaculares on e off stage.
Figura 9 - Tango no CabaréArmenonville
Fonte: Gobello, 1979a (Fotogramaperdidos)
Figura 10: Los Tres berretines, Susini, 1933
Fonte: Fotogramas extraídos pelaautora
Ícone do cinema mudo argentino, Nobleza gaucha apresenta
valiosas imagens históricas que ainda se conservam. O filme
consegue mostrar o início desse processo de transculturação do
tango que o traveste ao estilo francês. Esse processo cultural
coloca a dança como eixo de uma forte crítica. O tango dança se
insere na cena do famoso Armenonville; mistura de bordel e salão
de baile à francesa cujo público representa o mito (LAMAS;
BINDA, 1998) de que as classes altas portenhas teriam aceitado o
tango só porque era furor na frança. Tanto Nobleza Gaucha quanto
Juan sin ropa trazem a idéia de que a pureza não esta na moderna
cidade mas no campo argentino, representada nas danças
folclóricas.
Entre os filmes conservados encontramos outros mitos tomados
literalmente o como referêcia implícita. Em La borrachera del tango
surge um salão de baile em plena loucura do foxtrote; a câmera
faz foco em um rádio e superposta a montagem de uma orquestra
típica de tango parece estar dentro.
Figura 11: La borrachera del Tango,Cominetti,1928
Figura 12: La borrachera del Tango,Cominetti,1928
Fonte: Fotogramas extraídos pela autora
No filme La mujer de medianoche a cena transcorre num barco; um
casal dança tango enquanto a partitura do tango Buenos Aires de
Romero e Jovés surge no inferior da tela; o diretor enfatiza o
drama que significa abandonar Buenos Aires com cartazes que
apresentam o refrão da canção. Em La vuelta al bulín nos deparamos
com o tango dançado em um típico cabaré portenho, sem exotismos;
as duplas se deslocam com um abraço fechado cercadas pelas mesas
e a fumaça que moldam a pista de dança; a orquestra típica de
tango em perspectiva de profundidade sobre um palco em destaque
fecham o magnífico postal. Estes filmes mudos apresentaram a
gestualidade de tango previa à exacerbação que caracterizou ao
cinema clássico industrial argentino. A transformação do cinema
em uma indústria, a partir do sonoro, trouxe visibilidade
internacional ao tango dançado em estilo argentino, mas, o
problema da competitividade do gênero melodramático e da
distribuição no mercado latino americano cuja linguagem falada
era tão heterogênea produziu uma mudança crucial na apresentação
do corpo e da dança no cinema.
Figura 13: La vuelta al bulín,
Ferreyra, 1926
Figura 14: La vuelta al bulín,
Ferreyra, 1926
Fonte: Fotogramas extraídos pela autora
Em principio o cinema sonoro manteve as cenas de dança
moldadas pelo tom popular como em Tango!, Los três berretines, El alma del
bandoneon, ou Noches de Buenos Aires; mas os performers convocados
começaram a ser grandes dançarinos ou simplesmente estrelas que
apresentam uma drástica mudança na concepção coreográfica para
essas mise-em-scénes.
Figura 15: La mujer de medianoche,Campogagliani, 1925
Figura 16: Tango! Moglia Barth, 1933
Fonte: Fotogramas extraídos pela autora
Em Los muchachos de antes no usaban gomina, Carnaval de antaño, Derecho
viejo, Pobre mi madre querida, Corrientes, calle de ensueño, entra em jogo o
debate social acerca da origem do tango, mas também toma corpo o
aspecto simbólico e expressivo que traz a poética e o timming
próprio á concepção rítmica e intempestiva do improviso, gesto
diferencial do tango argentino.
Figura 17: Derecho viejo 1951 Figura 18: Pobre mi madre querida,Manzi-Papier, 1947
Fonte: Fotogramas extraídos pela autora
À diferença dos musicais norte-americanos que destacam em
primeiríssimo plano os rostos dos dançarinos, o registro fílmico
do tango argentino traz um problema espacial relativo ao
enquadramento, pois, o eixo da câmera está endereçado para dois
corpos que nunca a confrontam e dois rostos que estão sempre
mirando al sesgo (para o lado). Seus rostos e olhares (tão
importantes para o cinema e o star system) estão endereçados para o
lado de maneira oblíqua.
Referências
COUSELO, Jorge Miguel. El Tango en el Cine. La historia del tango,
Tomo 8. Vol. 1, Buenos Aires: Corregidor, 1977.
DELEUZE, Gilles. Cinèma 1, L´image mouvement, Paris: Seuil, 1983.
________. Estudios sobre cine 2. La imagen-tiempo, Barcelona: Paidós,
1985.
________. Qué es un dispositivo. In: Michel Foucault, filósofo, Barcelona:
Gedisa, 1995.
DINZEL, Rodolfo. El tango una danza. Esa ansiosa búsqueda de la libertad,
Buenos Aires: Corregidor, 2011
ESPAÑA, Claudio. Org. Cine Argentino. Industria y Clasicismo I y II. Buenos
Aires: Fondo Nacional de las Artes, 2000.
FOUCAULT, Michel. Arqueología del saber. Madrid: Siglo XXI, 1997
FUSTER, Sergio Luis. Tango y Cine Nacional. Una fusión de origen. Rosario:
Ciudad Gótica, 2007.
GETINO, Octavio. Cine Argentino. Entre lo posible y lo deseable. Buenos
Aires: Ciccus, 2005.
LAMAS, Hugo; BINDA, Enrique. El tango en la sociedad porteña 1880-1920.
Unquillo: Abrazos, 2008.
LOPEZ GALLUCCI, Natacha Muriel, Práticas corporais do tango no cinema
mudo argentino 1900-1933 Comunicação apresentada nas III Jornadas de
Estudos de Cinema e Fotografia, Unicamp 03/12/2012. Ebook em
andamento.
ZAPATA, Néstor El tango en el cine argentino (Entrevista), Rosario,
07/2010. In: LÓPEZ GALLUCCI, Natacha M. Coletânea performance e
cinema: tango dança no cinema argentino. Argentina, 28’, 2011.
Disponível em:
http://www.tipicatango.com/cinemaeperformance.html.
Filmografia (Ordem cronológica)
Nobleza Gaucha, Gunche e De La Pera, 1915.
Juan sin ropa, Benoit, 1919.
Eldorado, coprodução franco española, L´Herbier, 1921.
La Mujer de Medianoche, Campogagliani, 1925.
La vuelta al bulín, Ferreyra, 1926.
Perdón Viejita, Ferreyra, 1927.
La borrachera del tango, Cominetti, 1928.
Maldone, França, Gremillón, 1928.
Mosaico Criollo, Idibarren, 1929,
Tango!, Moglia Barth, 1933.
Los Tres Berretines, Susini, 1933.
El alma del bandoneon, Sofici, 1934.
Noches de Buenos Aires Romero 1935.
Los muchachos de antes no usaban gomina, Romero, 1937.
Carnaval de Antaño, Romero, 1940.
Pobre mi madre querida, Manzi, H.; Papier, R., 1947.
Otra cosa es con guitarra, Antonio Ber Ciani, 1949.
La historia del tango, Romero, 1949.
Corrientes, calle de ensueño, Román Viñoly Barreto, 1949.
Derecho viejo, Romero, 1951.