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Dermeval Saviani POLÊMICAS DO NOSSO TEMPO ESCOLA E DEMOCRACIA 5 EDITORA@ AUTORES ASSOCIADOS

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Dermeval Saviani

POLÊMICAS DO NOSSO TEMPO

ESCOLA EDEMOCRACIA

5

EDITORA@AUTORESASSOCIADOS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ClP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Saviani,DerrnevaJ, 1944-Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara,

onze teses sobre educação e política! Dermeval Saviani. - 32. ed.-Campinas, SP: AutoresAssociados, 1999. - (Coleção polêmicas donosso tempo; v.S)

Bibliografia.ISBN BS-BS70 1-23·4

I. Auto-determinação (Educação) 2. Educação - Filosofia3. Ensino 4. Pedagogia 5. Política e educação I. Título. 11.Série.

95-5065

índices para catálogo sistemático:

I. Educação e democrada

CDD-370.11S

370.115

Sumário

I' Edição- t 983Impresso no Brasil- Junho de 1999

Conselho Editorial:Casemiro dos Reis FilIw, Dermeval Saviani,Gilberta S. de M. lannuzzi, Walter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Diretora EditorialGilberta S. de M. Jannuzzi

CapaVlad Canwrgo

Milton José de Almeida

Copyright © 1999 by Editora Autores Associados

EDITORA AUTORES ASSOCIADOSCaixa Postal 6164 • eEP: 13081·970 • Campinas - SP

FoneIFax:(O 19) 289·5930e-mail: [email protected]

Catálogo on-line: www.autoresassociados.com.br

PREFÁCIO À 30' EDiÇÃO 5PREFÁCIO À 20' EDiÇÃO 7APRESENTAÇÃO 13AS TEORIAS DA EDUCAÇÃO E O PROBLEMA DA

MARGINALIDADE 15

• D problema 15• As teorias não·criticas 17• As teorias critico-reprodutivistas 27• Para uma teoria crítica da educação .40• Post-scriptum 42

ESCOLA E DEMOCRACIA 1- A TEORIADA CURVATURA DA VARA. .47

• O homem livre 49• A mudança de interesses 52• A falsa crença da Escola Nova 53• Ensino não é pesquisa 56• A Escola Nova não é democrática 59• Escola Nova: a hegemonia da classe dominante 60

descontinuidade da política educacional, os vícios da má-quina administrativa, a escassez de recursos e a conse-qüente precariedade da educação pública.

A década de 90 surge, assim, marcada por um climade perplexidade e descrença. A orientação dita neoliberalassumida por Fernando Collor e agora pelo governo Fer-nando Henrique- Cardoso vem se caracterizando por políti·cas educacionais claudicantes: combinam um discurso quereconhece a importância da educação com a redução dosinvestimentos na área e apelos à iniciativa privada e orga-nizações não-governamentais, como se a responsabilida-de do Estado em matéria de educação pudesse ser trans-ferida para uma etérea "boa vontad_e pública".

Nesse contexto não deixa de ser reconfortante o fatode que este livro, que se constitui ao meSmo tempo comodenúncia das formas disfarçadas de discriminação educa-cional e anúncio de uma pedagogia superadora das desi-gualdades, tenha atingido 30 edições, quase um terço de-las já nessa difícil década de 90.

Efetivamente, se as condições se tornaram adversas,esse fato, em lugar de nos levar ao desânimo como infeliz-mente tende a acontecer, deve nos conduzir a ampliar anossa capacidade de luta, organizando-nos mais fortemen-te e atuando decisivamente no interior das escolas e juntoao Estado no sentido de transformar em verdade prática aconsciência, já consensual, da importância estratégica daeducação e da urgência da resolução de Seus problemas.

Que esse livro continue a auxiliar os educadores detodos os níveis e de todas as regiões deste país em sualuta tenaz por uma educação de qualidade acessível a to-dos os brasileiros, é a única recompensa que almeja o seuautor.

Campinas, 19 de março de 1996.

Dermeval Saviani

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Prefácio à 20~edição

A primeira edição deste livro data de setembro de1983. Portanto, em pouco mais de quatro anos se esgotaram19 edições, cada uma delas com tiragem de 5.000 exempla-res. A acolhida vem sendo, pois, -calorosa, chegando mesmoalguns leitores a revelar grande entusiasmo por este trabalho.

A par da grande acolhida (e talvez mesmo por causadela), surgiram também algumas críticas. Obviamente, estaobra não está isenta de limitações e defeitos. A julgar pelosdepoimentos dos leitores, o reconhecimento de limitaçõesnão obscurece os méritos que o trabalho contém.

Assim, o primeiro texto, se não esgota a temática queaborda, constitui uma síntese clara e didática das principaisteorias da educação, o que tem sido sobremaneira útil aoseducadores ajudando-os na compreensão de sua prática epermitindo·lhes situarem-se mais claramente no universo pe-dagógico.Os próprios críticos têm se beneficiado dessa sín-tese já que nela se apóiam, o que implica um endosso daclassificação e análise das teorias pedagógicas aí apresen·ladas.

O segundo texto tem um caráter preparatório para ateoria crítica da educação que fora apenas anunciada notexto anterior e cujo eSboço éobjeto da exposição efetuadano terceiro texto. Trata-se dé uma abordagem centrada maisno aspecto polêmico do que no aspecto gnosiol6gico. Por is-

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f:O, mutatis mutandis, vale para ele a observação feita porGramsci a propósito da critica de Groce à concepção mar-xista de "superestrutura ideológica": "Quando, por razões'políticas', práticas, para tomar um grupo social independenteda hegemonia de um outro grupo, fala-se de 'ilusão', como épossfvel - de boa-fé - confundir uma linguagem polêmicacom um principio gnosiológico?" (Gramsci, 1978: 261). A pardos limites ligados ao caráter polêmico, a exposição contémtambém defeitos de estilo derivados do fato de ser transcri-ção direta de uma fala não baseada em texto escrito. Daf otom oral de que está impregnada. O mérito do texto é antesh,eurfstico do que analitico. Não se trata de uma exposiçãoexaustiva e sistemática, mas da indicação de caminhos paraa crítica do existente e para a descoberta da verdade históri-ca. O leitor encontra ar um estfmulo para um ajuste de contasconsigo mesmo ante as tendências pedagógicas com as.quais tem se envolvido.

Se na polêmica avulta a questão da Escola Nova, istonão deve induzir a equfvocos. Este não é um livro contra aEscola Nova enquanto tal. É, antes, um livro contra a peda-gogia liberal burguesa. Por isso, enganam-se aqueles queimaginam que, por efetuar a critica à Escola Nova, o autordesta obra estaria de algum modo reabilitando a pedagogiaburguesa. Ora, não se nega à Escola Nova o seu caráterprogressista em relação à Escola Tradiciooal. Aliás, isso estáformalmente explfcito no terceiro texto. Entretanto, enquantoproposta burguesa, a Escola Nova articula em torno dos inte-resses da burguesia os elementos progressistas que, obvia-mente, não são intlinsêcamente burgueses. É dessa formaque a burguesia trava a luta pela hegemonia procurando su-bordinar aos seus interesses os interesses das demaisclasses. Do ponto de vista do proletariado a luta hegemônicaimplica o processo inverso: "Trata-se de desarticular dos in-teresses dominantes aqueles elementos que estão articula-dos em torno deles, mas não são inerentes à ideologia domi-nante e rearticulá-Ios em torno dos interesses dominados"(Saviani, 1980: 10-11).

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Dessa forma, a denúncia da Escola Nova é apenasuma estratégia visando a demarcar mais precisamente o âm-bito da pedagogia burguesa de inspiração liberal e o âmbitoda pedagogia socialista de inspiração marxista. Aliás, não foioutro o comportamento do próprio Marx que, em 1848, ao seengajar na luta política -elostrabalhadores na Alemanha nãose negou a participar do Movimento Democrático sob a con-dição, porém, de deixar sempre explícita a diferença entre aperspectiva proletária e aquela dos burgueses e pequeno-burgueses progressistas (cf. Fedosseiev at alii, 1983: 190).De minha parte, tenho procurado sistematicamente estabele·cer esta diferenciação como pode ser comprovado de formarecorrente em meus diferentes trabalhos. Dentre eles, citocomo exemplo o texto "A defesa da escola pública" que de-veria integrar este livro, o que não ocorreu por falta de espa~ço - e esta é outra limitação da presente obra. No refe-rido texto me empenho em demarcar a perspectiva burguesada perspectiva socialista, explicitando os limites da concep-ção liberal na defesa da escola pública e registrando como opróprio movimento popular acabou por cair na armadilha da"ilusão liberai" (Saviani, 1984: 10-25).

É esse e não outro o sentido que assume neste livro acrrtica à Escola Nova. Nesse contexto chegam a soar umtanto deslocadas as abordagens que, provocadas por estetrabalho, pretendem reabilitar a Escola Nova a partir da pers-pectiva proletária.

Demarcadas as perspectivas, feita a crítica da visão li-berai burguesa, os elementos progressistas desarticuladosda concepção dominante são, no terceiro texto, articuladosno âmbito da perspectiva pedagógica correspondente aosinteresses da classe trabalhadora. Ainda que não se tenhapodido explorar e aprofundar suas diversas implicações,avança-se ar decididamente na formulação de uma teoria crf~tica (não-reprodutivista) da educação a qual, como foi assi-nalado no final do primeiro texto, s6 pode ser formulada doponto de vista dos interesses dominados (cf. p. 41).

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o último texto, "Onze teses sobre educação e política",procura situar o debate pedagógico muito além dos acanha-dos limites geralmente marcados pela repetição de slogansesvaziados de conteúdo. Com efeito, sem perder de vista arealidade concreta da sociedade de classes, projetou-se areflexão para o horizonte de possibilidades, isto é, para omomento da passagem do reino da necessidade ao reino daliberdade, o momento da constituição da sociedade semclasses, momento catãrtico por excelência em que toda asociedade humana se reencontra consigo mesma. A algunsleitores parece ter e~capado tal intento, talvez em razão docaráter lapidar das teses formuladas e da economia das ex-plicações apresentadas (seria este outro defeito do livro?). Aquestão do "desaparecimento do Estado" permite ilustrar es-se ponto. No texto afirmo: "Sabe-se que não se trata de des-truir o Estado; ele simplesmente desaparecerá por não sermais necessário" (cf. p. 96). Obviamente, o contexto aí é oda passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade,portanto, a passagem do socialismo ao comunismo que sig-nifica o advento da sociedade sem classes. Conseqüente-mente, o Estado que fora utilizado pelo proletariado comoinstrumento de transição para a sociedade sem classes, aoser esta consolidada, perde a razão de ser e desaparece.

Que dizer então da interpretação que considera a colo-cação supra como indicadora de que o Estado burguês não édestruído mas consente no seu desaparecimento? Antes dequalquer outra consideração, cabe registrar que tal interpre-tação não corresponde ao que foi registrado no texto. Comefeito, lá está escrito: "sabe-se que não se trata de destruir oEstado"; e não: "sabe-se que não se trata de destruir () Esta-do burguês". Nesse ponto da reflexão supõe-se já superadaa sociedade burguesa. Ora, a revolução socialista (proletária)não destrói o Estado em si mesmo. Ao conquistar o poder, oproletariado, através do mesmo ato revolucionário, destitui(destrói) o Estado burguês e constitui o Estado proletário. Co-mo falar, nessa nova situação, de destruição do Estado?Quem destruirá o Estado proletário? Não será uma outra

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classe, pois com aconquista do poder pelo proletariado, queéa classe cujo domínio consiste na superação das classes, jánão há outra classe que aele se possa contrapor como histori-camente progressista. Seria, então, o próprio proletariado?Na verdade, não setratajá da destruição do Estado. Uma vezcumprido o papel de instrumento coercitivo para inviabilizaras tentativas de restauração do poder burguês, o Estado (so-ciedade política), não sendo mais necessário, desaparecerá.

A concepção acima exposta é encontrada reitera-tivamente nos escritos de Marx, resultando, assim, umcontrasenso invocar esse autor para desautorizar a linhade reflexão por mim desenvolvida (cf. Marx, s. d.: 38; Marx,1974: 80 e 90; Marx, 1968: 47-8; Marx, 1984: 62-8). Paraeconomia deste prefácio, cito apenas o final de A misériada filosofia: "Somente numa ordem de coisas em que nãoexistem mais classes e antagonismos entre classes asevoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas"(Marx, 1985: 160). O mesmo se diga de Gramsc;: "Ofim doEstado sublinhado por Marx e Lênin é concebido porGramsci como aabsorção, pela sociedade civil, dasocie-dade política que, numa sociedade sem classes, estádes-tinadaà extinção na proporção e na medida em que se har-monizam os interesses do proletariado e os interesses doconjunto do corpo social" (Grisoni & Maggiori, 1973: 177-8). Nas palavras do próprio Gramsci: <lAclasse burguesaestá 'saturada'; não só não se amplia, mas se desagrega;não só não assimila novos elementos, mas desassimilauma parte de si mesma (ou, pelo menos, as desas-similações são muitíssimo mais numerosas do que as as~similações). Uma classe que se considere capaz de as-similartodaa sociedade, e ao mesmo tempo seja realmen-te capaz de exprimir este processo, leva à perfeição estacon cepção do Estado e do direito, de tal modo a conceber ofim do Estadoedodireito, emvirtudedeterem eles comple-tado a sua missão e deterem sido absorvidos pela Socie-dade Civil" (Gramsci, 1976: 147). E, mais adiante: "O ele-mento Estado-coerção pode ser imaginado em processo

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de desaparecimento, à medida que se afirmam elementoscada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estadoético ou sociedade civil)" (Gramsci, 1976: 149).

Para esta edição foi feita uma revisão de todo o traba-lho corrigindo-se algumas falhas de impressão ao mesmotempo em que se procurou minorar os defeitos de estilo dosegundo texto.

Agradecendo a confiança dos leitores espero que osesclarecimentos deste prefácio os ajudem a melhor compre-ender as posições assumidas pelo autor. Os comentáriosfeitos tiveram apenas essa intenção, não cabendo, pois, in-terpretá-los como resposta às objeções dos crfticos. Pelorespeito que merecem os colegas que valorizaram este tra-balho com suas apreciações, cabe considerá-las uma a umade forma detida. Como não é possível fazer isso num simplesprefácio, tais considerações são relT)etidas para outro mo~menta e outro lugar.

São Sepé (RS), 26 de janeiro de 1988

o Autor

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Apresentação

Este pequeno livro foi organizado da seguinte maneira:o primeiro texto reproduz o artigo "As teorias da educação eo problema da marginalidade na América Latina" publicadooriginalmente em Cadernos de Pesquisa, n2 42, a90sto/82,da Fundação Carlos Chagas.

Os textos seguintes, Escola e Democracia (I) e Escolae Democracia (11)reproduzem, respectivamente, os artigos"Escola e democracia ou a 'teoria da curvatura da vara' ",ANDE, 1981 e "Escola e democracia: para além da 'teoria dacurvatura da vara' ", ANDE, 1982.

O último texto, Onze teses sobre Educação e Polftica,foi escrito especialmente para integrar a presente publicação.Seu objetivo é encaminhar, de modo explrcito, a discussãodas relações entre educação e política já que ar reside aquestão central que atravessa de ponta a ponta o conteúdodeste livro.

Dada a estreita conexão entre os artigos acima men-cionados, tem havido uma tendência a estudá-los conjunta-mente, o que, entretanto, tem sido obstado pelas dificuldadesem encontrá-los disponfveis nas livrarias. A decisão de reuni-los numa mesma publicação atende, assim, à solicitação dediversos leitores no sentido de contornar aquelas dificulda-des.

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ESCOLA E DEMOCRACIA li - PARA ALÉM DA TEORIADA CURVATURA DA VARA 69• Pedagogia nova e pedagogia da existência 71• Para além das pedagogias da essência e da

existência 73• Para além dos métodos novos e tradicionais 76• Para além da relação autoritária ou democrática

na sala de aula 0.0 ••••••••••••••••••••••••••••• _ ••••••••••••••••• 85• Conclusão: a contribuição do professor 88

ONZE TESES SOBRE EDUCAÇÃO E POLíTlCA 91

BIBLlOGRAFIA GERAL. 103

Prefácio à 3011 edição

Quando essa obra foi lançada a sociedade brasilei-ra passava por uma fase de grande mobilização. Estáva-mos no início da década de 80 e os primeiros frutos daslutas pela democratização começavam a ser colhidos.Em 1983 tomavam posse os governadores de Estadoeleitos diretamente, após quase 20 anos de eleições in-diretas controladas pelo regime militar instalado no po-der em conseqüência do golpe de 1964. "Escolae Demo-cracia" vinha a público em setembro de 1983 e começa-vam -se as articu lações em torno da campanha pelas el ei-ções diretas para presidente da República, campanhaessa que seria o fato político mais saliente de 1984.

No contexto indicado era intensa a mobilização dos e-ducadores, carregada de expectativas favoráveis. Espera-va-se que, no quadro das transformações políticas, a edu-caçãoencontrarlacanaisadequados parasedesenvolvernosentido da universalização da escola pública, garantindoum ensino de qualidade a toda a população brasileira. En-saios nessa direção foram tentados por alguns governosestaduais e municipais, mas os desdobramentos da transi--ção democrática no âmbito da chamada "Nova República"não corres ponderam àquelas expectativas educacionais.Em verdade, o referido processo de transição acabou sen-do dominado pela "conciliação das elites", mantendo-se a

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Esperamos que este livro, a exemplo dos artigos quelhe deram origem, continue a auxiliar professores e alunos nabusca de uma compreensão mais sistemática e crrtica dasdiferentes teorias da educação.

Finalmente, aproveitamos a oportunidade para agrade-cer a Cadernos de Pesquisa, Revista de estudos e pesqui-sas em Educação, da Fundação Carlos Chagas e ANDE,Revista da Associação Nacional de Educação pela anuênciaà inclusão dos artigos na presente obra.

São Paulo, setembro de 1983.

DERMEVAL SAVIANI

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AS TEORIAS DA EDUCAÇÃOEOPROBLEMA

DA MARGINALIDADE

o PROBLEMA

De acordo com estimativas relativas a 1970, "cerca de50% dos alunos das escolas primárias desertavam em con-dições de sernianalfabetismo ou de analfabetismo potencialna maioria dos pafses da América Latina" (Tedesco, 1981:57). Isto sem levar em conta o contingente de crianças emidade escolar que sequer têm acesso à escola e que, por-tanto, já se encontram a priori marginalizadas dela.

O simples dado acima indicado lança de imediato emnossos rostos a realidade da marginalidade relativamente' aofenômeno da escolarização. Como interpretar esse dado?Como explicá-lo? Como as teorias da educação se posicio-nam diante dessa situação?

Grosso modo, podemos dizer que, no que diz respeitoà questão da marginalidade, as teorias educacionais podemser classificadas em dois grupos.

Num primeiro grupo, temos aquelas teorias que enten-dem ser a educação um instrumento de equalização social,portanto, de superação da marginalidade.

Num segundo grupo, estão as teorias q~e entendemser a educação um instrumento de discriminação social, logo,um fator de marginalização.

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Ora, percebe-se facilmente que ambos os grupos ex-plicam a questão da marginalidade a partir de determinadamaneira de entender as relações entre educação e socieda-de. Assim, para o primeiro grupo a sociedade é concebidacomo essencialmente harmoniosa, tendendo à integração deseus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno aci-dentai que afeta individualmente a um número maior ou me-nor de seus membros o que, no entanto, constitui um desvio,uma distorção que não 56 pode como deve ser corrigida. Aeducação emerge ar como um instrumento de correção des-sas distorções. Constitui, pois, uma força homogeneizadoraque tem por função reforçar 05 laços sociais, promover acoesão e garantir a integração de todos os indivíduos no cor-po social. Sua função coincide, pois, no limite, com a supera-ção do fenômeno da marginalidade. Enquanto esta aindaexiste, devem se intensificar os esforços educativos; quandofor superada, cumpre manter os serviços educativos num ní~vel pelo menos suficiente para impedir o reaparecimento doproblema da rQWginalidade. Como se vê, no que respeita àsrelações entre educação e sociedade, concebe~se a educa~ção com uma ampla margem de autonomia em face da so~ciedade. Tanto que lhe cabe um papel decisivo na conforma-ção da sociedade evitando sua desagregação e, mais do queisso, garanlindo a construção de uma sociedade igualitária.

Já o segundo grupo de teorias concebe a sociedadecomo sendo essencialmente marcada pela divisão entre gru-pos ou classes antagônicos que se relacionam à base daforça, a qual se manifesta fundamentalmente nas condiçõesde produção da vida material. Nesse quadro, a marginalidadeé entendida como um fenômeno inerente à própria estruturada sociedade. Isto porque o grupo ou classe que detém maiorforça se converte em dominante se apropriando dos resulta~dos da produção social tendendo, em conseqüência, a rele~ -gar os demais à condição de marginalizados. Nesse contex-to, a educação é entendida como inteiramente dependente daestrutura social geradora de marginafidade, cumprindo ar a'função de reforçar a dominação e 'legitimar a marginalização.

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Nesse sentido, aeducação, longe de ser um instrumento de su-peração da marginalidade, se converte num fator de margi-nalização já que sua forma específica de reproduzir a margi-nalidade social é a produção da marginalidade cultural e, es~pecificament~scolar.

Tomando como critério de criticidade a percepção doscondicionantes objetivos, denominarei as teorias do primeirogrupo de "teorias não-críticas" já que encaram aeducaçãocomoautônoma e buscam compreendê-Ia a partir dela mesma. In~versamente, aquelas do segundo grupo são críticas uma vezque se empenham em compreender a educação remetendo-asempre aseus condicionantes objetivos, isto é, aos determinan-tes sociais, vale dizer, à estrutura sócio-econômica que con-diciona a forma de manifestação do fenômeno educativo. Co-mo, porém, entendem que a função básica da educação é a re-produção da sociedade, serão por mim denominadas de "teoriascrítico-reprodutivistas" .

AS TEORIAS NÃO-CRíTICAS

A PEDAGOGIATRADICIONAL

A constituição dos chamados "sistemas nacionais deensino" data de meados do século passado. Sua organiza-ção inspirou-se no princípio de que aeducação édireito deto-dos edever do Estado. O direito detodos àeducação decorriado tipo de sociedade correspondente aos interesses da novaclasse que se consolidara no poder: a burguesia. Tratava-se,pois, de construir uma sociedade democrática, de consoli-dar a democracia burguesa. Para superar a situação deopressão, própria do "Antigo Regime", e ascender a um tipode sociedade fundada no contrato social celebrado "livre-mente" entre os indivíduos, era necessário vencer a barreirada ignorância. Só assim seria possível transformar os súditosem cidadãos, istoé, em indivíduos livres porqueesclarecldos,

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ilustrados. Como realizar essa tarefa? Através do ensino. Aescola é erigida, pois, no grande instrumento para converteros súditos em cidadãos, "redimindo os homens de seu duplopecado histórico: a ignorância, miséria moral e a opressão,miséria política" (ZanoUi, 1972: 22-3).

Nesse quadro, a causa da marginalidade é identificadacom a ignorância. É marginalizado da nova sociedade quemnão é esclarecido. A escola surge como um anUdoto à igno-rância, logo, um instrumento para equacionar o problema damarginalidade. Seu papel é difundir a instrução, transmitir osconhecimentos acumulados pela humanidade e sistematiza-dos logicamente. O mestre-escola será o artífice dessa gran-de obra. A escola se organiza, pois, como uma agência cen-trada no professor, o qual transmite, segundo uma gradaçãológica, o acervo cultural aos alunos. A estes cabe assimilaros conhecimentos que lhes são transmitidos.

À teoria pedagógica acima indicada correspondia de-terminada ma~ira de organizar a escola. Como as iniciativascabiam ao professor, o essencial era contar com um profes-sor razoavelmente bem preparado. Assim, as escolas eramorganizadas na forma de classes, cada uma contando comum professor que expunha as lições que os alunos seguiamatentamente e aplicava os exercícios que os alunos deveriamrealizar disciplinadamente.

Ao entusiasmo dos primeiros tempos suscitado pelo ti-po de escola acima descrito de forma simplificada, sucedeuprogressivamente uma crescente decepção. A referida es-cola, além de não conseguir realizar seu desiderato de uni-versalização (nem todos nela ingressavam e mesmo os queingressavam nem sempre eram bem sucedidos) ainda tevede curvar-se ante o fato de que nem todos os bem-sucedidosse ajustavam ao tipo de sociedade que se queria consolidar.Começaram, então, a se avolumar as críticas a essa teoriada educação e a essa escola que passa a ser chamada deescola tradicional.

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A PEDAGOGIA NOVA

As críticas à pedagogia tradicional formuladas a partirdo final do século passado foram, aos poucos, dando origema uma outra teoria da educação. Esta teoria mantinha a cren-ça no poder da escola e em sua função de equalização so-cial. Portanto, as esperanças de que se pudesse corrigir adistorção expressa no fenômeno da marginalidade, atravésda escola, ficaram de pé. Se a escola não vinha cumprindoessa função, tal fato se devia a que o tipo de escola implan-tado - a escola tradicional - se revelara inadequado. Tomacorpo, então, um amplo movimento de reforma cuja expres-são mais típica ficou conhecida sob o nome de "escolano-vismo". Tal movimento tem como ponto de partida a escolatradicional já implantada segundo as diretrizes consubstan-ciadas na teoria da educação que ficou conhecida como pe-dagogia tradicional. A pedagogia nova começa, pois, porefetuar a crftica da pedagogia tradicional, esboçando umanova maneira de interpretar a educação e ensaiando implan-tá-Ia, primeiro, através de experiências restritas; depois, ad-vogando sua generalização no âmbito dos sistemas escola-res.

Segtlndo essa nova teoria, a marginalidade deixa deser vista predominantemente sob o ângulo da ignorância, istoé, o não domfnio de conhecimentos. O marginalizado já nãoé, propriamente, o ignorante mas o rejeitado. Alguém está in-tegrado não quando é ilustrado, mas quando se sente aceitopelo grupo e, através dele, pela sociedade em seu conjunto.É interessante notar que alguns dos principais representan-tes da pedagogia nova se converteram à pedagogia a partirda preocupação com os "anormais" (ver, .por exemplo, De·croly e Montessori). A partir das experiências levadas aefeito com crianças "anormais" é que se pretendeu generali-zar procedimentos pedagógicos para o conjunto do sistemaescolar. Nota-se, então, uma espécie de biopsicologizaçãoda sociedade, da educação e da escola. Ao conceito de "a-normalidade biológica" construído a partir da constatação de

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deficiências neurofisiológicas se acrescenta o conceito de"anormalidade psíquica" detectada através dos testes de in-teligência, de personalidade etc., que começam a se multipli-car. Forja-56, então, uma pedagogia que advoga um trata-mento diferencial a partir da "descoberta" das diferenças in-dividuais. Eis a "grande descoberta": os homens são essen-cialmente diferentes; não se repetem; cada indivíduo é único.Portanto, a marginalidade não pode ser explicada pelas dife-renças entre os homens, quaisquer que elas sejam: não ape-nas diferenças de cor, de raça, de credo ou de classe, o quejá era defendido pela pedagogia tradicional; mas também dife-renças no domínio do conhecim~nto, na participação do sa-ber, no desempenho cognitivo. Marginalizados são os "anor-mais", isto é, os desajustados e desadaptados de todos osmatizes. Mas a "qnormalidade" não é algo, em si, negativo;ela é, simplesmente, uma diferença. Portanto, podemos con-cluir, ainda que isto soe paradoxal, que a anormalidade é umfenômeno normal. Não é, pois, suficiente para caracterizar amarginalidade. Esta está marcada pela desadaptação ou de-sajustamento, fenômenos associados ao sentimento de rejei-ção. A educação, enquanto fator de equalização social será,pois, um instrumento de correção da marginalidade na medi-da em que cumprir a função de ajustar, de adaptar os indiví-duos à sociedade, incutindo neles o sentimento de aceitaçãodos demais e pelos demais. Portanto, a educação será uminstrumento de correção da marginalidade na medida em quecontribuir .para a constituição de uma sociedade cujos mem-bros, não importam as diferenças de quaisquer tipos, seaceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidadeespedfica.

Compreende-se então que essa maneira de entender aeducação, por referência à pedagogia tradicional tenha des-locado o eixo da questão pedagógica do intelecto para o sen-timento; -do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdoscognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; doprofessor para o aluno; do esforço para o interesse; da disci-plina para a espontaneidade; do diretivismo para o não-direti-

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vis mo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia deinspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pe-dagogia de inspiração experimental baseada principalmentenas contribuições da biologia e da psicologia. Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o importantenãoé aprender, masaprenderaaprender.

Para funcionar de acordo com a concepção acima ex-posta, obviamente aorganização escolar teria que passar poruma sensível reformulação . Assim, em lugar de classes con-fiadas a professores que dominavam as grandes áreas do co-nhecimento revelando-se capazes de colocar os alunos emcontato com os grandes textos que eram tomados como mo-delos a serem imitados e progressivamente assimilados pe-los alunos, a escola deveria agruparas alunos segundo áreasde interesses decorrentes de sua atividade livre. O professoragiria como um estimulador e orientador da aprendizagemcuja iniciativa principal caberia aos próprios alunos. Talaprendizagem seria uma decorrência espontânea do ambien-te estimulante e da relação viva que se estabeleceria entre osalunos e entre estes e o professor. Para tanto, cada professorteriad etrabalhar com pequenos grupos dealunos, sem oque arelação interpessoal , essência da atividade interpessoal, es-sência da atividade educativa, ficaria dificultada; e num ambi-ente estimulante, portanto, dotado de materiais didáticos ri-cos, biblioteca de classe etc. Em suma, a feição das escolasmudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e deparedes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, ba-rulhento e multicolorido.

O tipo de escola acima descrito não conseguiu, entre-tanto, alterar significativamente o panorama organizacionaldos sistemas escolares. Isto porque, além de outras razões,implicava em custos bem mais elevados do que aqueles da es-cola tradicional. Com isto, a "Escola Nova" organizou-se ba-sicamente na forma de escolas experimentais ou como nú-cleos raros, muito bem equipados e circunscritos a pequenosgruposdeelite .Noentanto, o ideário escolanovista, tendo sidoamplamente difundido, penetrou nas cabeças dos educado-

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res acabando por gerar conseqüências também nas amplasredes escolares oficiais organizadas na forma tradicional.Cumpre assinalar que tais conseqüências foram mais negati·vas que positivas uma vez que, provocando o afrouxamentoda disciplina e a despreocupação com a transmissão de co·nhecimentos, acabou por rebaixar o nível do ensino destina-do às camadas populares as quais muito freqüentemente têmna escola o único meio de acesso ao conhecimento elabora-do. Em contrapartida, a "Escola Nova" aprimorou a qualidadedo ensino destinado às elites.

Vê·se, pois, que paradoxalmente, em lugar de resolvero problema da marginalidade, a "Escola Nova" o agravou.Com efeito, ao enfatizar a "qualidade do ensino" eJadeslocouo eixo de preocupação do âmbito político (relativo à socieda-de em seu conjunto) para o âmbito técnico-pedagógico (rela-tivo ao interior da escola), cumprindo ao mesmo tempo umadupla função: manter a expansão da escola em limites su-portáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipode ensino adequado a esses interesses. 6. a esse fenômenoque denominei de "mecanismo de recomposição da hegemo-nia da classe dominante" (Saviani, 1980).

Cabe assinalar que o papel da "Escola Nova" acimadescrito se manifestou mais nitidamente no caso da AméricaLatina. Em verdade, na maioria dos países dessa região ossistemas de ensino começaram a assumir feição mais nítidajá no século atuãl, quando o escolanovismo estava larga-mente disseminado na Europa e principalmente nos EstadosUnidos, não deixando, em conseqüência, de influenciar opensamento pedagógico latino-americano. Portanto, a disse·minação das escolas efetuada segundo os moldes tradicio-nais não deixou de ser de alguma forma perturbada pela pro·pagação do ideário da pedagogia nova, já que esse ideário aomesmo tempo que procl:Jrava evidenciar as "deficiências" daescola tradicional, dava força à idéia segundo a qual é melhoruma boa escola para poucos do que uma escola deficientepara muitos.

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A PEDAGOGIA TECNICISTA

Ao findar a primeira metade do século atual, o escola·novismo apresentava sinais visíveis de exaustão. As espe-ranças depositadas na reforma da escola resultaram frustra-das. Um sentimento de desilusão começava a se alastrarnos meios educacionais. A pedagogia nova, ao mesmo t~m-po que se tornava dominante enquanto concepção teóricaa tal ponto que se tornou senso comum o entendimento se-gundo o qual a pedagogia nova é portadora de todas as virtu·des e de nenhum vrcio, ao passo que a pedagogia tradicionalé portadora de todos os vícios e de nenhuma virtude, na prá·tica se revelou ineficaz em face da questão da marginalidade.Assim, de um lado surgiam tentativas de desenvolver umaespécie de "Escola Nova Popular', cujos exemplos maissignificativos são as pedagogias de Freinet e de Paulo Freire;de outro lado, radicalizava·se a preocupação com os méto-dos pedagógicos presentes no escolanovi~mo que acaba pordesembocar na eficiência instrumental. Articula-se aqui umanova teoria educacional: a pedagogia tecnicista.

A partir do pressuposto da neutralidade cientllica e ins·pirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtivi-dade, essa pedagogia advoga -a reordenação do processoeducativo de maneira a torná·lo objetivo e operacional. Demodo semelhante ao que ocorreu no trabàlho fabril, pretende·se a objetivação do trabalho pedagógico. Com efeito, se noartesanato o trabalho era subjetivo, isto é, os instrumentos detrabalho eram dispostos em função do trabalhador e este dis-punha deles segundo seus desígnios, na produção fabril es·sa relação é invertida. Aqui é o trabalhador que deve seadaptar ao processo de trabalho, já que este foi objetivado eorganizado na forma parcelada. Nessas condições, o traba-lhador ocupa seu posto na linha de montagem e executa de-terminada parcela do trabalho necessário para produzir de-terminados objetos. O produto é, pois, uma decorrência daforma como é organizado o processo. O concurso das açõesde diferentes sujeitos produz assim um resultado com o qual

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nenhum dos sujeitos se identifica e que, ao contrário, lhes éestranho.

O fenômeno acima mencionado nos ajuda a entender atendência que se esboçou com o advento daquilo que estouchamando de "pedagogia tecnicista". Buscou-se planejar aeducação de modo a dotá-Ia de uma organização racionalcapaz de minimizar as- intenerências subjetivas que pudes-sem pôr em risco sua eficiência. Para tanto, era mister ope-racionalizar os objetivos e, pelo menos em certos aspectos,mecanizar o processo. Dar a proliferação de propostas peda-gógicas tais como o enfoque sistêmico, o microensino, o te-leensino, a instrução programada, as máquinas de ensinaretc. Daí também o parcelamento do trabalho pedagógico coma especialização de funções, postulando-se a introduçãono sistema de ensino de técnicos dos mais diferentes mati-zes. Daí, enfim, a padronização do sistema de ensino a partirde esquemas de planejamento previamente fonnulados aosquais devem se ajustar as diferentes modalidades de disci-plinas e práticas pedagógicas.

Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao pro-fessor que era, ao mesmo tempo, o sujeito do processo, oelemento decisivo e decisório; se nà pedagogia nova a incia-tiva desloca-se para o aluno, situando..:se-o nervo da açãoeducativa na relação professor-aluno, portanto, relação inter-pessoal, intersubjetiva - na pedagogia tecnicista, o elementoprincipal passa a ser a organização racional dos meios, ocu-pando professor e aluno posição secundária, relegados quesão à condição de executores de um processo cuja concep-ção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo deespeciaflstas supostamente habilitados, neutros, objetivos,imparciais. A organização do processo converte-se na ga-rantia da eficiência, compensando e corrigindo as deficiên-cias do professor e maximizando os efeitos de sua interven-ção.

Cumpre notar que, embora a pedagogia nova tambémdê grande importância aos meios, há, porém, uma diferençafundamental: enquanto na pedagogia nova os meios 'são dis-

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postos e estão à disposição da relação professor-aluno, es-tando, pois, a serviço dessa relação, na pedagogia tecnicistaa situação se inverte. Enquanto na pedagogia nova são osprofessores e alunos que decidem se utilizam ou não deter-minados meios, bem como quando e como o farão, na peda-gogia tecnicista dir-se-ia que é o processo que define o queprofessores e alunos devem fazer, e assim também quandoe como o farão.

Compreende-se, então, que para a pedagogia tecni-cista a marginalidade não será identificada com a ignorâncianem será detectada a partir do sentimento de rejeição. Margi-nalizado será o incompetente (no sentido técnico da palavra),isto é, o ineficiente e improdutivo. A educação estará contri-buindo para superar o problema da marginalidade na medidaem que formar indivíduos eficientes, portanto, capazes de da-rem sua parcela de contribuição_para o aumento da produtivi-dade da sociedade. Assim, estará ela cumprindo sua funçãode equalização social. Nesse contexto teórico, a equalizaçãosocial é identificada com o equillbriodo sistema (no sentidodo enfoque sistêmico). A marginalidade, isto é, a ineficiênciae improdutividade, se constitui numa ameaça à estabilidadedo sistema. Como o sistema comporta múltiplas funções, àsquais correspondem determinadas ocupações; como essasdiferentes funções são interdependentes, de tal modo quea ineficiência no desempenho de uma delas afeta as demaise, em conseqüência, todo o sistema - cabe à educação pro-porcionar um eficiente treinamento para a execução das múl-tiplas tarefas demandadas continuamente pelo sistema so-cial. A educação será concebida, pois, como um subsistema,cujo funcionamento eficiente é essencial ao equiHbrio do sis-tema social de que faz parte. Sua base de sustentação teóri-ca desloca-se para a psicologia behaviorista, a engenhariacomportamental, a ergonomia, informática, cibernética, quetêm em comum a inspiração filosófica neopositivista e o mé-todo funcionalista. Do ponto de vista pedagógico conclui-se,pois, que, se para a pedagogia tradicional a questão central é

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aprender e para a pedagogia nova aprender a aprender, paraa pedagogia tecnicista o que importa é aprender afazer.

À teoria pedagógica acima exposta corresponde umareorganização das escolas que passam por um crescenteprocesso de burocratização. Com efeito, acreditava-se que oprocesso se racionalizava na medida em que se agisse pla-nificadamente. Para tanto, era mister baixar instruções minl.!-ciosas de como proceder com vistas a que os diferentesagentes cumprissem cada qual as tarefas especfficas aco-metidas a cada um no amplo espectro em que se fragmentouo ato pedagógico. O controle seria feito basicamente atravésdo preenchimento de formulários. O magistério passou entãoa ser submetido a um pesado e sufocante ritual, com resulta-dos visivelmente negativos. Na verdade, a pedagogia tecni-cista, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcio-namento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidadeda educação, ignorando que a articulação entre escola e pro-cesso produtivo se dá de modo indireto e através de comple-xas mediações. Além do mais, na prática educaüva, a orien-tação tecnicista se cruzou com as condições tradicionaispredominantes nas escolas bem como com a influência dapedàgogia nova que exerceu poderoso atrativo sobre oseducadores. Nessas condições, a pedagogia tecnicista aca-bou por contribuir para aumentar o caos na campo educativqgerando tal nível de descontinuidade, de heterogeneidade ede fragmentação, que praticamente inviabiliza o trabalho pe-dagógico. Com isto, O problema da marginalidade só tendeu ase agravar: o conteúdo do ensino tornou-se ainda mais rare-feito e a relativa ampliação das vagas se tornou irrelevanteem face dos altos (ndices de evasão e repetência.

A situação acima descrita afetou particularmente aAmérica Latina já que desviou das atividades-fim para as ati-vidades-meio parcela considerável dos recursos sabida-mente escassos destinados à educação. Por outro lado sa-be-se que boa parte dos programas internacionais de im-plantação de tecnologias de ensino nesses países tinham pordetrás outros interesses como, por exemplo, a venda de ar-

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tefatos tecnológicos obsoletos aos países subdesenvolvidos(cf. Mattelart, 1976 e s.d.).

AS TEORIAS CRiTICO-REPRODUTIVISTAS

Como já assinalei, o primeiro grupo de teorias concebea marginalidade comO um desvio, tendo a educação por fun-ção a correção desse desvio. A marginalidade é vista comoum problema social e a educação, que dispõe de autonomiaem relação à sociedade, estaria, por esta razão, capacitada aintervir eficazmente na sociedade, transformando-a, tornan-do-a melhor, corrigindo as injustiças; em suma, promovendoa equalização social. Essas teorias consideram, pois, ape-nas a ação da educação sobre a sociedade. Porque desco-nhecem as determinações sociais do fenômeno educativo euas denominei de "teorias não-críticas". Inversamente, as teo~rias do segundo grupo - que passarei a examinar - são críti-cas, uma vez que postulam não ser possível compreender aeducação senão a partir dos seus condicionantes sociais.Há, pois, nessas teorias'uma cabal percepção da dependên-cia da educação em relação à sociedade. Entretanto, comona análise que desenvolvem chegam invariavelmente à con-clusão de que a função própria da educação consiste na re-produção da sociedade em que ela se insere, bem merecema denominação de "teorias crítico-reprodutivistas". Tais teo-rias contam com um razoável número de representantes e semanifestam em diferentes versões. Há, por exemplo, oschamados "radicais americanos" cujos principais represen-tantes são Bowles e Gintis, através do livro Schoo};ng in Ca-pita};st America (1976) que podem ser classificados nessegrupo de teorias. Tais autores consideram que a escola tinha,nas origens, uma função equalizadora. Entretanto, atual-mente ela se torna cada vez mais_discriminadora e repressi-va. Todas as reformas escolares fracassaram, tornando ca-da vez mais evidente o papel que a escola desempenha: re-produzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produ-ção capitalista.

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Em que pesem as diferentes manifestações, consideroque, no âmbito .desse grupo, as teorias que maior repercus-são tiveram e que alcançaram um maior n(vel de elaboraçãosão as seguintes:

a) "teoria do sistema de ensino enquanto violência simbóli-ca";

b) ''teoria da escola enquanto aparelho ideológico de Estado(AlE)";

C) "teoria da escola dualista".

A seguir comentarei brevemente cada uma delas.

TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO ENQUANTOVIOL~NCIA SIMBÓLICA

Esta teoria está desenvolvida na obra A reprodução:elementos para uma teoria do sistema de ensino, de P. Bour-dieu e J C. Passeron (1975). A obra é constituída de dois li-vros. No Livro I, fundamentos de uma teoria da violência sim-bólica, a teoria é sistematizada num corpo de proposições lo-gicamente articuladas segundo um esquema analítico-deduti-vo. O Livro 11expôe os resultados de uma pesquisa empíricalevada a cabo pelos autores no sistema escolar francês emum de seus segmentos, qual seja, a Faculdade de Letras.Como as análises do Livro 11podem ser consideradas comoaplicações a um caso historicamente determinado dos princí-pios gerais enunciados no Livro I, ainda que tenham servido,ao mesmo tempo, como ponto de partida para a construçãodos princípios do Livro I, minha exposição se limitará aoconteúdo do Livro I.

O arcabouço do Livro I constitui, mais do que uma so-ciologia da educação, uma sócia-lógica da educação. Istoporque não se trata de uma análise da educação como fatosocial, mas da explicitação das condições lógicas de possibi-lidade de toda e qualquer educação para toda e qualquer so-ciedade de toda e qualquer época ou lugar. Trata-se de uma

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teoria axiomática que se desdobra dedutivamente dos princí-pios universais para os enunciados analíticos de suas con-seqüências particulares. Por isso, cada grupo de proposi-ções começa sempre por um enunciado universal (todo po-der de violência simbólica ..., toda ação pedagógica etc.) etermina por uma aplicação particular, expressa através dafórmula "uma formação social determinada ..,". Por outro lado,no intuito de preservar a validade universal da teoria, os auto-res têm o cuidado de utilizar sempre a expressão "grupos ouclasses", jamais se referindo apenas às classes simples-mente; o que indica que a validade da teoria não pretende secircunscrever apenas às sociedades de classes maS se es-tende também às sociedades sem classes que porventuratenham existido ou venham a existir. Em suma, o axiomafundamental (proposição zero), que enuncia a teoria geral daviolência simbólica, se aplica ao sistema de ensino que é de-finido, pois, como uma modalidade específica de violênciasimbólica (proposições de grau 4) através de proposiçõesintermediárias que tratam, sucessivamente, da ação pedagó-gica (proposições de grau 1), da autoridade pedagógica (pro-posições de grau 2) e do trabalho pedagógico (proposiçõesde grau 3).

Por que violência simbólica? Os autores tomám comoponto de partida que toda e qualquer ~ociedade estrutura-secomo um sistema de relações de força material entre gruposou classes. Sobre a base da força mater-ial e sob sua deter-minação erige-se um sistema de relações de força simbólicacujo papel é reforçar, por dissimulação, as relações de forçamaterial. É essa a idéia central contida no axioma funda-mentai da teoria. Senão vejamos o seu enunciado: "Todo po-der de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a im-por significações e a impô-Ias como legítimas, dissimulandoas relações de força que estão na base de sua força, acres-centa sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a es-sas relações de força" (Bourdieu & Passeron, 1975: 19).

Vê-se, pois, que o reforçamento da violência materialse dá pela sua conversão ao plano simbólico onde se produz

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e reproduz o reconhecimento da dominação e de sua legiti-midade pelo desconhecimento (dissimulação) de seu caráterde violência explícita. Assim, à violência material (dominaçãoeconômica) exercida pelos grupos ou classes dominantessobre os grupos ou classes dominados corresponde a via·lência simbólica (dominação cultural).

A violência simbólica se manifesta de múltiplas formas:a formação da opinião pública através dos meios de comuni-cação de massa, jornais etc.; a pregação religiosa; a ativida-de artrstica e literária; a propaganda e a moda; a educaçãofamiliar etc. No entanto, na obra em questão, o objetivo deBourdieu e Passeron é a ação pedagógica institucionalizada,isto é, o sistema escolar. Dar o subtítulo da obra: "elementospara uma teoria 80-sistema de ensino". Para isso, partindo,como já disse, da teoria geral da violência simbólica, buscamexplicitar a Ação Pedagógica (AP) como imposição arbitrãriada cultura (também arbitrária) dos grupos ou classes domi-nantes aos grupos ou classes dominados. Essa imposição,para se exercer, implica necessariamente a autoridade peda-gógica (AuP), isto é, um "poder arbitrãrio de imposição que,só pelo fato de ser desconhecido como tal, se encontra obje-tivamente reconhecido como autoridade legítima" (Bourdieu &Passaran, 1975: 27).

A referida ação pedagógica que se exerce através daautoridade pedagógica (AuP) se realiza através do TrabalhoPedagógico (TP) entendido "como trabalho de inculcaçãoque deve durar o bastante para produzir uma formação durá-vel; isto é, um habitus como produto da interiorização dosprincípios de um arbitrário cultural capaz. de perpetuar-seapós a cessação da ação pedagógica (AP) e por isso deperpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interioriza-do" (Bourdieu & Passeron, 1975: 44).

Para a compreensão do sistema de ensino é de fun-damental importância a distinção entre trabalho pedagógico(TP) primãrio (educação familiar) e trabalho pedagógico se-cundário, cuja forma institucionalizada é o trabalho escolar(TE). Como os autores indicam no "escolio" da proposição 1,

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"reservou-se a seu momento lógico (proposições de grau 4)a especificação das formas e dos efeitos de uma ação peda-gógica que se exerCe no quadro de uma instituição escolar; ésomente na última proposição (4.3) que se encontra caracte-rizada expressamente a AP escolar que reproduz a culturadominante, contribuindo desse modo para reproduzir a es-trutura das relações de força, numa formação social onde osistema de ensino dominante tende a assegurar-se do mono-pólio da violência simbólica legítima" (Bourdieu & Passeran,1975: 20-1).

A proposição 4.3 sintetiza, pois, de modo exaustivo, oconjunto da teoria do sistema de ensino enquanto violênciasimbólica. Vale a pena, então, apesar de sua extensão,transcrevê-Ia integralmente: "Numa formação social determi-nada, o SE dominante pode constituir o TP dominante comoTE sem que os que o exercem como os que a ele se sub-metem cessem de desconhecer sua dependência relativa àsrelações de força constitutivas da formação social em queele se exerce, porque ele produz e reproduz, pelos meiospróprios da instituição, as condições necessárias ao exercí-cio de sua função interna de inculcação, que são ao mesmotempo as condições suficientes da realização de sua funçãoexterna de reprodução da cultura legítima e de sua contribui-ção correlativa à reprodução das relações de força; e porque,só pelo fato de que existe e subsiste como instituição, ele im~plica as condições institucionais do desconhecimento daviolência simbólica que exerce, isto é, porque os meios insti-tucionais dos quais dispõe enquanto instituição relativamenteautônoma, detentora do monopólio do exercfcio legítimo daviolência simbólica, estão 'predisP9stos a servir também, soba aparência da neutralidade, os grupos ou classes dos quaisele reproduz o arbitrário cultural (dependência pela indepen-dência)" (Bourdieu & Passeran, 1975: 75).

Portanto, a teoria não deixa margem a dúvidas. A fun-ção da educação é a de reprodução das desigualdades so-ciôis. Pela reprodução cultural, ela contribui especificamentepara a reprodução social.

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Como interpretar, nesse quadro, o fenômeno da margi~nalidade?

De acordo com essa teoria, marginalizados são osgrupos ou classes dominados. Marginalizados socialmenteporque não possuem força material (capital econômico) emarginalizados culturalmente, porque não possuem forçasimbólica (capital cultural). E a educação, longe de ser umfator de superação da marginalidade, constitui um elementoreforçador da mesma.

Eis a função logicamente necessária da educação.Não há, pois, outra alternativa. Toda tentativa de utilizá-lacomo instrumento de superação da marginalidade não é ape-nas uma ilusão. É a forma através da qual ela dissimula, epor isso cumpre eficazmente, a sua função de marginaliza-ção. Todos os esforços, ainda que oriundos dos grupos ouclasses dominados, reverte sempre no reforçamento dos in-teresses dominantes.

"É pela mediação desse efeito de dominação da APdominante que as diferentes AP que se exercem nos dife-rentes grupos ou classes colaboram objetiva e indiretamentena dominação das classes dominantes (inculcação pelas APdominadas de conhecimentos ou de maneiras, dos quais aAP dominante define o valor sobre o mercado econômico ousimbólico)" (Bourdieu & Passeron, 1975: 22).

/ Eis por que Snyders resumiu sua crítica a essa teoriana seguinte frase: "Bourdieu-Passeron ou a luta de classesimpossívei" (Snyders, 1977: 287).

TEORIA DA ESCOLA ENQUANTO APARELHOIDEOLÓGICO DE ESTADO (AlE)

Ao analisar a reprodução das condições de produçãoque implica a reprodução das forças produtivas e das rela-ções de produção existentes, Althusser é levado a distinguirno Estado os Aparelhos Repressivos de Estado (o Governo,a Atlministração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Pri-

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sões etc.) e os Aparelhos Ideológicos de Estado (AlE) que eleenumera provisoriamente, da seguinte forma:

"-AlE reflgioso (o sistema das diferentes igrejas),-O AlE escolar (o sistema das diferentes escolas públi-

cas e particulares),-OA1Efamiliar,-O AlE jurídico,-O AlE político (o sistema político de que fazem parte os

diferentes partidos),-oAlE sindical,- O AlE da informação (imprensa, rádio-televisão etc.),- O AlE cultural (Letras, Belas Artes, desportos etc.)"

(Allhusser, s.d.: 43-4).

A distinção entre ambos assenta no fato de que o Apare-lho Repressivo de Estado funciona massivamente pela vio-lência e secundariamente pela ideologia enquanto que, in-versamente, os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionammassivamente pela ideologia e secundariamente pela repres-são (Althusser, s.d.:46-7).

O conceito "Aparelho Ideológico de Estado" deriva datese segundo a qual "a ideologia tem uma existência material".Isto significa dizer que a ideologia existe sempre radicada empráticas materiais reguladas por rituais materiais definidos porinstituições materiais (Althusser, s.d.: 88-9).

Em suma, a ideologia se materializa em aparelhos: osaparelhos ideológicos de Estado.

A partir desses instrumentos conceituais, Althusser (s/d.:60) avança a tese segundo a qual "o Aparelho Ideológico deEstado que foi colocado em posição dominante nas formaçõescapitalistas maduras, após uma violenta luta de classes políticae ideológica contra o antigo Aparelho Ideológico de Estado do-minante, éoAparelho Ideológico Escolar",

Como AlE dominante, vale dizer que a escola consti-tui o instrumento mais acabado de reprodução das relaçõesde produção de ti po capitalista. Para isso ela toma a sitodasascrianças d etodas as classes sociais e lhes inculca durante

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anos a fio de audiência obrigatória "saberes práticos" envol~vidas na ideologia dominante (Althusser, s.d.: 64).

Uma grande parte (operários e camponeses) cumpre aescolaridade básica e é introduzida no processo produtivo.Outros avançam no processo de escolarização mas acabampor interrompê~lo passando a integrar os quadros médios, os"pequeno-burgueses de toda a espécie" (Althusser, s.d.: 65).

Uma pequena parte, enfim, atinge o vértice da pirâmideescolar. Estes vão ocupar os postos pr6prios dos "agentesda exploração" (no sistema produtivo), dos "agentes da re~pressão" (nos Aparelhos Repressivos de Estado) e dos"profissionais da ideologia" (nos Aparelhos Ideológicos deEstado) (Althusser, s.d.: 65)

Em todos os casos, trata~se de reproduzir as relaçõesde exploração capitalista. Nas palavras de Althusser (s.d.:66): "é através da aprendizagem de alguns saberes práticos(savoir-faire) envolvidos na inculcação massiva da ideologiada classe dominante, que são em grande parte reproduzidasas relações de produção de uma formação social capitalista,isto é, as relações de explorados com exploradores e de ex~ploradores com explorados". , .

Nesse contexto; como se coloca q problema da margI-nalidade? O fenômeno da marginalização se inscreve nopróprio seio das relações de produção capitalista que se fun-da na eXQIopriação dos trabalhadores pelos capitalistas.Marginalizada é, pois, a classe trabalhadora. O AlE escolar,em lugar de instrumento de equalização social, constitui ummecanismo construído pela burguesia para garantir e perpe-tuar seus interesses. Se as teorias do primeiro grupo (por is~so elas bem merecem ser chamadas de não~críticas) desco-nhecem essas determinações objetivas e imaginam que aescola possa cumprir o papel de correção da marginalidade,isso se deve simplesmente ao fato de que aquelas teoriassão ideológicas, isto é, dissimulam, para reproduzi-Ias, ascondições de marginalidade em que vivem as camadas tra,.balhadoras.

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No entanto, diferentemente de Bourdieue Passeron,Althusser (s/d.: 49) não nega a luta de classes. Ao contrário,chega mesmo a afirmar que "os AlE podem ser não só o alvomas também o local da lutada classes e por vezes de formasrenhidas da luta de classes" .

Entretanto, quando descreve o funcionamento do AlEescolar, a luta de classes fica praticamente diluída, talo pesoque adquire aí a dominação burguesa. Eu diria, então, que aluta de classes resulta nesse caso heróica, mas inglória, jáque sem nenhuma chance de êxito. O parágrafo um tantolongo que me permito transcrever, fundamenta essa conclu-são: "Peço desculpas aos professores que, em condiçõesterríveis, tentam voltar contra a ideologia, contra osistema econtra as práticas em que este os encerra, as armas que po-dem encontrar na história e nosaberque 'ensinam'. Em certamedida são heróis. Mas são raros, e quantos (a maioria) nãotêm sequerum vislumbre de dúvida quanto ao 'trabalho' queo sistema (que-os ultrapassa e esmaga) os obriga afazer, pior,dedicam-se inteiramente e em toda a consciência à realiza-ção desse trabalho (os famosos métodos novos!). Têm tãopoucas dúvidas, que contribuem até pelo seu devotamento amanter e a alimentar a representação ideológica da Escolaque a torna hoje tão 'natural', indispensável-útil e atébenfazeja aos nossos contemporâneos, quanto a Igreja era'natural', indispensável egenerosa para os nossos antepas-sados de hásáculos" (Althusser, s.d.: 67-8).

TEORIA DA ESCOLA DUALISTA

Essa teoria foi elaborada por C. Baudelot e R. Establete exposta no livro L'école capitaliste en France (1971). Cha-mo de "teoria da escola dualista" porque os autores se em-penham em mostrar que a escola, em que pese a aparênciaunifâria e unificadora, é uma escola dividida em duas (e nãomais doque duas) grandes redes, as quais correspondem àdivisão da sociedade capitalista em duas classes funda-mentais: a burguesia e o proletariado.

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Os autores proC::'3deiT'de modo didático, enunciandopreliminarmente as teses básicas que su.cessivamente pas~sam a demonstrar. Assim, na primeira parte, após dissipar as"ilusões da unidade da escola" formulam seis proposiçõesfundamentais que passarão a demonstrar ao longo da obra:

"L Existe uma rede de escolarização que chamare-mos rede secundária-superior (rede 5.S.).

2. Existe uma rede de escolarização que chamare-mos rede primária-profissional (rede P.P.).

3. Não existe terceira rede.4. Estas duas redes constituem, pelas relações que

as definem, o aparelho escolar capitalista. Esteaparelho é um aparelho ideológico do Estado ca-pitalista.

5. Enquanto tal, este aparelho contribui, pela parteque lhe cabe, a reproduzir as relações de produ-ção capitalistas, quer-dizer, em definitivo a divi-são da sociedade em classes, em proveito daclasse dominante.

6. É a divisão da sociedade em classes antagonis-tas que explica em última instância não somentea existência das duas redes, mas ainda (o que asdefine como tais) os mecanismos de seu funcio-namento, suas Causas e seus efeitos" (Baudelot& Establet, 1971: 42).

Através de minuciosa análise estatística os autores seempenham em demonstrar, na segunda parte, as três primei-ras proposições, isto é, a existência de apenas duas redesde escolarização: as redes PP e S5. A quarta proposição éobjeto das terceira e quarta partes; na terceira parte se pro-cura pôr em evidência que "é a mesma ideologia dominanteque é imposta a todos os alunos sob formas necessaria-mente incompaUveis"; na quarta parte se demonstra que adivisão em duas redes atravessa o aparelho escolar em seuconjunto, portanto, desde a escola primária, contrariamente

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às aparências de unidade da escola primária. Mais do que is-so, afirmam os autores que "é na escola primária que o es.,seneial de tudo o que concerne ao aparelho escolar capita-lista se realiza". Finalmente, a quinta parte é dedicada à de-monstração das duas últimas proposições evidenciando,então, que "o aparelho escolar, com suas duas redes opos-tas, contribui para reproduzir as relações soci~l.is de produ-ção capitalista" (Baudelot & Establet, 1971: 47).

Importa reter que, nesta teoria, é retomado o conceitode Althusser ("Aparelho Ideológico de Estado") definindo-seo aparelho escolar como "unidade contraditória de duas re-des de escolarização" (Baudelot & Establet, 1971: 281).

Enquanto aparelho ideológico, a escola cumpre duasfunções básicas: contribui para a formação da força de tra-balho e para a inculcação da ideologia burguesa. Cumpre as-sinalar, porém, que não se trata de duas funções separadas.Pelo mecanismo das práticas escolares, a formação da forçade trabalho se dá no próprio processo de inculcação ideoló~gica. Mais do que isso: todas as práticas escolares, aindaque contenham elementos que implicam um saber objetivo (enão poderia deixar de conter, já que sem isso a escola nãocontribuiria para a reprodução das relações de produção).são práticas de inculcação ideológica. A escola é, pois, umaparelho ideológico, isto é, o aspecto ideológico é dominantee comanda o funcionamento do aparelho escolar em seuconjunto. _Conseqüentemente, a função precípua da escola éa inculcação da ideologia burguesa. Isto é f€!itode duas for-mas concomitantes: em primeiro lugar, a inculcação explícitada ideologia burguesa; em segundo lugar, o recalcamento, asujeição e o disfarce da ideologia proletária.

Vê-se, pois, a especificidade dessa teoria. Ela admite aexistência da ideologia do proletariado. Considera, porém,que tal ideologia tem origem e existência fora da escola, istoé, nas massas operárias e em suas organizações. A escolaé um aparelho ideológico da burguesia e a serviço de seusinteresses. O parágrafo abaixo transcrito é extremamenteesclarecedor a respeito: "A contradição principal existe bru-

talmente fora da, escola sob a forma de uma luta que opõe aburguesia ao proletariado: ela se trava nas relações de pro-dução, que são relações de exploração. Como aparelhoideológico de Estado, a escola é um instrumento da luta declasses ideológica do Estado burguês, onde o Estado bur-guês persegue objetivos exteriores à escola (ela não é senãoum instrumento destinado a esses fins). A luta ideológicaconduzida pelo Estado burguês na escola visa à ideologiaproletária que existe fora da escola nas massas operárias esuas organizações. A ideologia proletária não está presenteem pessoa na escola, mas apenas sob a forma de alguns deseus efeitos que se apresentam como resistências: entre-tanto, inclusive por meio dessas resistências, é ela própriaque é visada no horizonte pelas práticas de inculcação ideo-lógica burguesa e pequeno-burguesa" (Baudelot & Establet,1971: 280).

No quadro da "teoria da escola dualista" o papel da es-cola não é, então, o de simplesmente reforçar e legitimar amarginalidade que é produzida socialmente. Considerando-seque o proletariado dispõe de uma força autônoma e forja naprática da luta de classes suas próprias organizações e suaprópria ideologia, a escola tem por missão impedir o desen-volvimento da ideologia do proletariado e a luta revolucioná-ria. Para isso ela é organizada pela burguesia como um apa-relho separado da produção. Conseqüentemente, não cabedizer que a escola qualifica diferentemente o trabalho inte-lectual e o trabalho manual. Cabe, isto sim, dizer que ela qua-lifica o trabalho intelectual e desqualifica o trabalho manual,sujeitando o proletariado à 1deologia burguesa sob um disfar·ce pequena-burguês. Assim, pode-se concluir que a escola éao mesmo tempo um fator de marginalização relativamente àcultura burguesa assim como em relação à cultura proletária.Em face da cultura burguesa, pelo fato de inculcar à massade operários que tem acesso à rede PP apenas os subpro-dutos da própria cultura burguesa. Em relação à cultura pro-letária, pelo fato de recalcá-Ia, forçando os operários a repre-sentarem sua condição nas categorias da ideologia burgue-

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sa. Conseqüentemente, a escola, longe de ser um instru~mento de equalização social, é duplamente um fator de mar-ginalização: converte os trabalhadores em marginais, nãoapenas por referência à cultura burguesa, mas também emrelação ao próprio movimento proletário, buscando arrancardo seio desse movimento (colocar à margem dele) todosaqueles que ingressam no sistema de ensino.

Pode-se, pois, concluir que, se Baudelot e Establet sei' empenham em compreender a escola no quadro da luta de

classes, eles não a encaram, porém, como palco e alvo daluta de classes. Com efeito, entendem que a escola, en-quanto aparelho ideológico, é um instrumento da burguesiana luta ideológica contra o proletariado. A possibilidade deque a escola se constitua num instrumento de luta do proleta-riado fica descartada. Uma vez que a ideologia proletária ad-quire sua forma acabada no seio das massas e organizaçõesoperárias, não se cogita de utilizar a escola como meio deelaborar e difundir a referida ideologia. Se o prole~ariado serevela capaz de elaborar, independentemente da escola, suaprópria ideologia de um modo tão consistente quanto o faz aburguesia com o auxnio da escola, então, por referência aoaparelho escolar, a luta de classes revela-se inútil. Eis porque Snyders (1977: 338-44) resume sua crítica à teoria daescola dualista com a expressão: "Baudelot-Establet ou aluta de classe inútil".

Ao terminar esse rápido esboço relativo às teorias crí-tico-reprodutivistas cumpre assinalar que, obviamente, taisteorias não deixaram de exercer influência na,América Latinatendo alimentado ao longo da década de: 70 uma razoávelquantidade de estudos críticos sobre o sist'ema de ensino. Setais estudos tiveram o mérito de pôr em evidência o compro-metimento da educação com os interesses dominantes tam-bém é certo que contribuíram para disseminar entre os edu-cadores um clima de pessimismo e de desânimo que, evi-dentemente, só poderia tomar ainda mais remota a possibili-dade de articular os sistemas de ensino com os esforços de

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superação do problema da marginalidade nos países daregião.

PARA UMA TEORIA CRíTICADA EDUCAÇÃO

o leitor terá notado que, quando me referi às teoriasnão-críticas após expor brevemente o conteúdo de cadauma, procurei mostrar a forma de organização e funciona·mento da escola decorrente da proposta pedagógica veicula-da pela teoria. Já em relação às teorias crítico-reprodutivistasisto não foi feito. Na verdade estas teorias não contêm umaproposta pedagógica. Elas se empenham tão-somente emexplicar o mecanismo de funcionamento da escola tal comoestá constituída. Em outros termos, pelo seu caráter reprodu-tivista, estas teorias consideram que a escola não poderiaser diferente do que é. Empenham-se, pois, em mostrar anecessidade lógica, social e histórica da escola existente nasociedade capitalista, pondo em evidência aquilo que eladesconhece e mascara: seus determinantes materiais.

Em relação à questão da marginalidade ficamos, pois,com o seguinte resultado: enquanto as teorias náo·criticaspretendem ingenuamente resolver o problema da marginali-dade através da escola sem jamais conseguir êxito, as teo-rias crítico-reprodutivistas explicam a razão do suposto fra-casso. Segundo a concepção crítico·reprodutivista o apa-rente fracasso é, na verdade, o êxito da escola; aquilo que sejulga ser uma disfunção é, antes, a função própria da escola.Com efeito, sendo um instrumento de reprOdução das rela-ções de produção a escola na sociedade capitaflsta neces-sariamente reproduz a dominação e exploração. Daí seu ca-ráter segregador e marginalizador. Daí sua natureza seletiva.A impressão que nos fica é que se-passou ae um poder ilu-sório para a impotência. Em ambos os casos, a História ésacrificada. No primeiro caso, sacrifica-se a História na idéiaem cuja harmonia se pretende anular as contradições do real.

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II

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I

No segundo caso, a História é sacrificada na reificação daestrutura social em que as contradições ficam aprisionadas.

O problema permanece, pois, em aberto. E pode serrecolocado nos seguintes termos: é pOSSívelencarar a es-cola como uma realidade histórica, isto é, suscetível de sertran15formadalmencionalmente pela ação humana? Evitemosde escorregár para uma posição idealista e voluntarista. Re-tenhamos da concepção crftico-reprodutivista a importante li-ção que nos trouxe: a escola é determinada socialmente; asociedade em que vivemos, fundada no modo de produçãocapitalista, é dividida em classes com interesses opostos;portanto, a escola sofre a determinação do conflito de inte-resses que caracteriza a sociedade. Considerando-se que aclasse dominante não tem interesse "na transformação his-tórica da escola (ela está empenhada na preservação de seudomínio, portanto apenas acionará mecanismos de adapta-ção que evitem a transformação) segue-se que uma teoriacrítica (que não seja reprodutivista) só poderá ser formuladado ponto de vista dos interesses dominados. O nosso pro-blema pode, então, ser enunciado da seguinte maneira:" épossível articular a escola com os interesses dominados? Daperspectiva do tema deste artigo a questão recebe a seguinteformulação: é possível uma teoria da educação que captecriticamente a escola corno um instrumento capaz de contri-buir para a superação do problema da marginalidade? (Limito-me aqui a afirmar a possibilidade dessa teoria, já que escapaaos objetivos desse artigo o desenvolvimento da mesma).

Urna teoria do tipo acima enunciado se impõe a tarefade superar tanto o poder ilusório (que caracteriza as teoriasnão-cn1icas) como a impotência (decorrente das teorias críti-co-reprodutivistas) colocando nas mãos dos educadoresuma arma de luta capaz de permitir·lhes o exercício de umpoder real, ainda que limitado.

No entanto, o caminho é repleto de armadilhas, já queos mecanismos de adaptação acionados periodicamente apartir dos interesses dominantes podem ser confundidas comos anseios da classe dominada. Para evitar esse risco é ne-

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cessário avançar no sentido de captar a natureza específicada educação, o que nos levará à compreensão das comple-xas rn~diações p~la~ quai,s se dá sua inserção contraditóriana socIedade capItalIsta. E nessa direção que começa a sedes~nvolver um promissor esforço de elaboração teórica.O leitor encontrará um esboço dessa teoria no texto "Escolae Democracia 11:para além da teoria da curvatura da vara"·neste livro, pp. 69·89. '

Do ponto de vista prático, trata·se de retomar vigoro·'sarnente a luta contra a seletividade, a discriminação e o re-baixamento do ensino das camadas populares. Lutar contra amarginalidade através da escola significa engajar-se no es·forço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhorqualidade p~ssrv~1 nas condições históricas atuais. O papelde uma teoria crítica da educação é dar substância concrelaa ~ssa ba~deira de luta de modo a evitar que ela seja apro-priada e articulada com os interesses dominantes, -

POST -SCRIPTUM

OS leitores certamente terão estranhado que, ao longode um texto ve~sa~do sobr~ as teorias da educação e o pro-blema d? m~rglnalldade, não apareceu uma palavra sequersobre a teoria da educação compensatória", Tal estranheza~a.rece procedente já que, se há alguma proposta educativaIntImamente ligad~ à questão da marginalidade, esta é achamada educaçao compensatória. Com efeito, não é exa·lamente a situação de marginalidade vivida pelas assimchamadas "crianças carentes" que constitui a razão de serda, educação compensatória? Não é a educação compensa-t~na ,a estratégia acionada para superar o problema da mar-g~nahdade na m.edida em que propõe nivelar as pré-condi-çoes de aprendIzagem pela via da compenstlÇão das des-vantagens das crianças carentes?

Entre~nto, devo di,zer que não considero a educaçãocomp.ensatóna uma teoria educacional seja no sentido deuma Interpretação do fenômeno educativo que acarreta de.

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terminada proposta pedagógica (como ocorre com as teoriasnão·crrticas), seja no sentido de explicitar os mecanismosque regem a organização e funcionamento da educação ex-plicando, em conseqüência, as suas funções (como no casodas teorias crítico-reprodutivistas) seja, ainda, no sentido deum esforço para equacionar, pela via da compreensão teóri·ca, a questão prática da contribuição especifica da educaçãono processo de transformação estrutural da sociedade (comoserá o caso de uma teoria crftica da educação).

A meu ver, a educação compensatória configura umaresposta não-crítica às dificuldades educacionais postas emevidência pelas teorias crítico-reprodutivistas. Assim, umavez que se acumulavam as evidências de que o fracassoescolar, incidindo predominantemente sobre os alunos sócio-economicamente desfavorecidos, se devia a fatores externosao funcionamento da escola, tratava-se, então, de agir sobreesses fatores. Educação compensatória significa, pois, o se-guinte: a furi'ção básica da educação continua sendo inter·pretada em termos da equalização social. Entretanto, paraque a escola cumpra sua função equalizadora é necessáriocompensar as deficiências cuja persistência acaba sistema~

_ticamente por neutralizar a eficácia da ação pedagógica. Vê·se, pois, que não se formula uma nova interpretação da açãopedagógica. Esta continua sendo entendida em termos dapedagogia tradicional, da pedagogia nova ou da pedagogiatecnicista encaradas de forma isolada ou de forma combi-nada.

O caráter de compensação de deficiências préviasao processo de escolarização nos permite compreender aestreita ligação entre educação compensatória e pré-escola.Dar porque a educação compensatória compreende um con-junto de programas destinados a compensar deficiências dediferentes ordens: de saúde e nutrição, familiares, emotivas,cognitivas, motora$, lingüísticas etc. Tais programas acabamcolocando sob a responsabilidade da educação uma série deproblemas que não são especificamente educacionais, o quesignifica, na verdade, a persistência da crença ingênua no

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poder redentor da educação em relação à sociedade. Assim,se a educação se revelou incapaz de redimir a humanidadeatravés da ação pedagógica, não se trata de reconhecerseus limites mas de alargá-los: artribui-se então à educaçãoum conjunto de papéis que no limite abarcam as diferentesmodalidades de política social. A conseqüência é a pulveri-zação de esforços e de recursos com resultados pratica-mente nulos do ponto de vista propriamente educacional.

Essas constatações me levaram à conclusão de que aprópria expressão "educação compensatória" coloca o pro-blema em termos invertidos, isto é, o termo que aparece co-mo substantivo deveria ser o adjetivo e vice-versa. Portanto,se se quer compensar as carências que caracterizarizam asituação de marginalidade das crianças das camadas popu-lares, é preciso considerar que há diferentes modalidades decompensação: compensação alimentar, compensação sani-tária, compensação afetiva, compensação familiar etc. Nestequadro, constatada a existência de deficiências especifica-mente educacionais, caberia se falar não em educação com·pensatória (atribuindo-se à educação a responsabilidade decompensar todo tipo de deficiência) mas em compensaçãoeducacional. E aqui fica, finalmente, evidenciada a não-auto-nomia teórica da "educação compensatória", uma vez que aexigência de tratamento diferenciado, de respeito às diferen-ças individuais e aos diferentes ritmos de aprendizagem bemcomo a ênfase na diversificação metodológica e técnica, nosentido de suprir as carências dos educandos, são preocu-pações próprias do tipo de teoria denominada neste texto de"pedagogia nova".

No contexto da América Latina, a tendência atualmenteem curso (freqüentemente reforçada pelo patrocfnio de orga-nismos internacionais) de difusão da educação compensató-ria com a conseqüente valorização da pré-escola entendidacomO mecanismo de solução do problema do fracasso es-colar das crianças das camadas trabalhadoras no ensino deprimeiro grau deve, pois, ser submetida a crítica. Com efeito,tal tendência acaba por se configurar numa nova forma de

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contornar o problema em lugar de atacá·lo de frente. Exemploeloqüente desse desvio é o caso da cidade de São Paulo,onde, após dez anos de merenda escolar, os -rndices de fra-casso escolar na passagem da primeira para a segunda sé-rie do primeiro grau, em lugar de diminuir, aumentaram em6%.

Cumpre, pois, não tergiversar. Não se trata de negar aimportância dos diferentes programas de ação compensató-ria. Considerá-los, porém, como programas educativos impli-ca um afastamento ainda maior, em lugar da aproximaçãoque se faz necessária em direção à compreensão da nature-za especrtica do fenômeno educativo.

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ESCOLA E DEMOCRACIA IA teoria

da curvatura da vara

o tema desta exposição1 é a Abordagem Política doFuncionamento Interno da Escola de 19 grau. Parece-me àprimeira vista, que poderíamos fazê-lo de duas maneiras:

j' abordarmos a questão da organização da escola de 112 grau,e ar então colocaríamos ênfase nas atividades-meio, focali-zando o papel do diretor, suas relações com os técnicos in-termediários, orientadores, supervisores, assim por diante,chegando em seguida ao professor e aos alunos. Neste casoo enfoque estaria nas atividades-meios, ou seja, na organi-i:ação'~:--~Àoutra forma de abordar serla_enfatizar as ativida-des-fins, e nesse sentido examinar mais propriamente como

-sã-desenvolve o ensino, que finalidades ele busca atingir,que procedimentos ele adota para atingir suas finalidades, emque medida existe coerência entre finalidades e procedimen-tos. Bem, é melhor me preocupar com as atividades-fins edeixar à margem a questão da organização da escola de 1Q

grau. Enfatizarei justamente a problemática do ensino que se,desenvolve no. interior da escola de 112 grau, pensando que(funções políticas 'esse ensino desempenha. Já que a aborda-gem é política, vou logo me colocar no coração do poJitico.

1. Exposição oral apresentada no Simpósio" Abordagem polRicado funcionamento interno da escola de 12gmu". 1ªCBE. São Paulo. 31-03-1980.

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Nesse sentido, farei uma exposição centrada em três teses.Enunciarei para vocês as três teses, que vou apenas co-mentar rapidamente; em seguida, extrairei delas algumasconseqüências para a educação brasileira e complementareicom um apêndice. Para retirar o suspense sobre a forma daminha exposição, eu já antecipo quais são as teses e tam-bém qual é o apêndice. Vejam bem, todas elas são teses po-líticas; no entanto, a primeira, por ser mais geral, eu a consi-dero uma;'!Jesefilosófico-histórica. Poderíamos enunciá-la da3eguinte maneira: "do caráter revolucionário da pedagogia daessência e do caráter reacionário da pedagogia da existên-cia".

Uma segundct'tese, que se articula com essa, é umatese que eu chamaria,·pedag.~gico-metodológi~a! e a enuncioassim: "do caráter científico do método tradicional e do cará-ter pseudo-científico dos métodos novos".

Vejam, então, que estou me colocando diretamente nocoração do político. Estou enunciando teses; isso significaposições, e posições polêmicas. Dessas duas teses eu retirouma terceira, que, portanto, opera como uma conclusão dasduas primeiras. As duas primeiras funcionam como premis-sas para extrair umã")erceira tese co"..clusiva. Essa é umatese especificamente "política,} de política educacional. Eu aenuncio da seguinte ma.neira: "de como, quando mais se fa-lou em democracia no interior da escola, menos democráticafoi a escola; e de como, quando menos se falou em demo-cracia, mais a escola esteve articulada com a construção deuma ordem democrática".

Bem, essa terceira tese eu derivo das duas primeiras.Em seguida examinaremos as conseqüências diss,su)aedu-cação brasileira, e por último farei referência a um. apêndice::INes$.e aRêndice farei uma pequena consideração sobre-·â;:têQriél:da curv3~tt~Ji3--P?y-~uaj. Eu não sei se a teoria da cur-vatura da vara é conhecida. Ela foi enunciada por Lênin aoser criticado por assumir posições extr~mistas e radicais.Lênin responde o seguinte: "quando a vara está torta, ela ficacurva de um lado e se você quiser endireitá-Ia, não basta

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colocá-la na posição correta. É preciso curvá-Ia para o ladooposto".

Com essa teoria da curvatura da vara, completareieste texto.

A impossibilidade de desenvolver todas as teses acimacolocadas faz com que eu apenas as enuncie para, em se-guida, tirar algumas conseqüências e, a partir delas, provocarum debate e, mais do que isso, deixá-las para serem explo-radas mais profundamente em outros trabalhos. Entre pa-rênteses, eu acrescentaria apenas que essas teses derivamde uma reflexão relativamente amadurecida, que venho de-senvolvendo há algum tempo. Alguma coisa já tenho até ex·posto em alguns textos ou palestras.

Quanto à primeira tese, "do caráter revolucionário dapedagogia da essência e do caráter reacionário da pedagogiada existência", o que eu quero dizer com isso é, basicamen-te, o seguinte: nós estamos hoje, no âmbito da política edu~caciona! e no âmbito do interior da escola, na verdade nos di-gladiando com duas posições antitéticas e que, via de regra,convencionalmente são traduzidas em termos do novo e dovelho, da pedagogia nova e da pedagogia tradicional. Essapedagogia tradicional é uma pedagogia que se funda numaconcepção filosófica essencialista, ao passo que a pedago-gia nova se funda numa concepção filosófica quê privilegia aexistência sobre a essência. O que isso significa do ponto devista histórico-filosófico?

Se nós voltarmos à antigüidade grega, vamos verificarque, em verdade, a filosofia da essência não implicava maio-res problemas lá, e a pedagogia que decorria dessa filosofia,por sua vez, não implicava problemas políticos muito sérios,na medida em que o homem, o ser humano, era identificadocom O homem livre; o escravo não era ser humano, conse-qüentemente a essência humana só era realizada nos ho-mens livres. Então, o problema do escravismo, sobre o qual

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se assentava a produção da sociedade grega, fica descarta-do e nem era um problema do ponto de vista filosófico-peda-gógico. • ..

Durante a Idade Média, essa concepçao essenclahstarecebe uma inovação, que diz respeito justamente à articula-ção da essência humana com a criação divina; portanto, aoserem criados os homens segundo uma essência predeter-minada, também já seus destinos eram definidos previamen-te; conseqüentemente, a diferenciação da sociedade entresenhores e servos já estava marcada pela própria concep-ção que se tinha da essência humana. Então, a essênciahumana justificava as diferenças.

Ora, coisa diversa vem a ocorrer na época moderna,com a ruptura do modo de produção feudal e a gestação domodo de produção capitalista. Nesse momento a burguesia,classe em ascensão, vai se manifestar como uma classe re-volucionária, e, enquanto classe revolucionária, vai advogar afilosofia da essência como um suporte para a defesa daigualdade dos homens como um todo e é justamente a partirdar que ela aciona as crfticas à nobreza e ao clero. Em outrostermos: a dominação da nobreza e do clero era uma domina~ção não~naturaJ,não-essencial. mas, social e acidental, por-tanto, histórica. Vejam que toda postura revolucionária é umapostura essencialmente histórica, é uma postura que se co-loca na direção do desenvolvimento da história. Ora, naquelemome.nto, _aburguesia se colocava na direção do desenvol-vimento da história e seus interesses coincidiam com 05 inte-resses do novo, com os interesses da transformação; e énesse sentido que a filosofia da essência, que vai ter depoiscomo conseqüência a pedagogia da essência, vai fazer umadefesa intransigente da igualdade essencial dos homens.Sobre essa base da igualdade dos homens, de todos os ho-mens, é que se funda então a liberdade, e é sobre, justa-mente, a liberdãâe, que se vai postular a reforma da socieda-de. Lembrem-se, de passagem, de Rousseau. O que qefen-dia Rousseau? Que tudo é bom enquanto sai do autor dascoisas. Tudo degenera quando passa às mãos dos homens.

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Em outros termos, a natureza é justa, é boa, e no âmbito na-tural a igualdade está preservada. As desigualdades (vejam oDiscurso sobre a origem da desigualdade entre os homens)são geradas pela sociedade. Ora, esse raciocínio não signifi·ca outra coisa senão colocar diante da nobreza e do cleroa idéia de que as diferenças, os privilégios de que eles usu~fruíam, não eram naturais e muito menos divinos, mas eramsociais. E enquanto diferenças sociais, configuravam injusti-ça; enquanto injustiça, não poderiam continuar existindo. Lo-go, aquela sociedade fundada em senhores e servos não po-deria persistir. Ela teria que ser substituída por uma socieda-de igualitária. É nesse sentido, então, que a burguesia vaireformar a sociedade, substituindo uma sociedade com basenum suposto direito natural por uma sociedade contratual.

Vejam então como é que se tece todo o raciocínio. Oshomens são essencialmente livres; essa liberdade se fundana igualdade natural, ou melhor, essencial dos homens, e seeles são livres, então podem dispor de sua liberdade, e narelação com os outros homens, mediante contrato, fazer ounão concessões. É sobre essa base da sociedade contratualque as relações de produção vão se alterar: do trabalhadorservo, vinculado à terra, para o trabalhador não mais vincula·do à terra, mas livre para vender a sua força de trabalho e elea vende mediante contrato. Então, quem· possui a proprieda-de é livre para aceitar ou não a oferta de mão-de-obra, e vice·versa, quem possui a força de trabalho é livre de vendê~la ounão de vendê-la a este ou aquele, de vender, então, a quemqui;er. Esse é o fundamento jurídico da sociedade burguesa.Fundamento, como veremos, formalista, de uma igualdadeformal. No entanto, é sobre essa base de igualdade que vaise estruturar a pedagogia da essência e, assim que a bur-guesia se torna a classe dominante, ela vai: em.meados .doséculo passado, estruturar os sistemas naCIonaiS de ensinoe vai advogar a escolarização para todos. Escolarizar tc?0sos homens era condição de converter os servos em clda~dãos, era condição de que esses cidadãos participassem doprocesso político, e, participando do processo político, eles

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, consolidariam a ordem democrática, democracia burguesa, éóbvio, mas o papel político da.~::>colaestava aí muito claro. A,eg,cola era p~oposta como condição para a consolidação daordem democrática.

A MUDANÇA DE INTERESSES

Ocorre que a história vai evoluindo, e a participação',política das massaS -entra em contradição com os interesse::;da própria burguesia. Na medida em que a burguesia, de.classe em ascensão, portanto, de classe revolucionária, setransforma em classe consolidada no poder, aí os interessesdela não caminham mais em direção à transformação da so~ciedade; ao contrário, os interesses dela coincidem com aperpetuação da sociedade. É nesse sentido que ela já nãoestá mais na linha do- desenvolvimento histórico, mas estácontra a história. A história se volta contra os interesses daburguesia. Então, para a burguesia defender seus interesses,ela não tem outra sarda senão negar a história, passando areagir contra o mOvimento da história. É nesse momento quea escola tradicional, a pedagogia da essência, já não vai ser-vir e a burguesia vai propor a pedagogia da existência. Ora,vejam vocês: o que é a pedagogia -da existência, senão dife~rentemente da pedagogia da essência, que é uma pedagogiaq~e se fund~va no igualitarismo, uma pedagogia da legitima-çao das deSigualdades? Com base neste tipo de pedagogia,considera-se que os homens não são essencialmente iguais;os homens são essencialmente diferentes, e nós temos querespeitar as diferenças entre os homens. Então, há aquelesque têm mais capacidade e aqueles que têm menos capaci-dade; h~ aqueles que aprendem mais devagar; há aquelesque se Interessam por isso e os que se interessam por a-quilo.

Eis, em síntese, o que eu quis dizer com a minha pri~meira tese, tese filosófico-histórica, "do caráter revolucionárioda pedagogia da essência, e do caráter reac'lon'ário da peda-gogia da existência".

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Com efeito, apedagogiadaexistênciavaiteresse cará-ter reacionário, Isto é, vai contrapor-se ao movimento de Ii-ber~ação da humanidade em seu conjunto, vai legitimar asdeSigualdades, legitimar a dominação, legitimar a sujeiçãoleAgiti~a~os p~ivilégios. Nesse contexto, a pedagogia da es~senClanao delxadeter um papel revolucionário, pois, ao de-fendera igualdade essencial entreos homens, continua sen-do uma bandeira que caminha na direção da eliminação da-q,uele,sprivilégios que impedem a realização de parcela con-slderavel dos homens. Entretanto, neste momento, não é aburguesia que assume o papel revolucionário, como assu-mira no início dos tempos modernos. Nesse momento, aclasse revolucionária é outra: não émais aburguesia, éexata~mente aquelaclasseq ue a burguesia explora.

A FALSA CRENÇA DA ESCOLA NOVA

A segunda tese eu enunciei da seguinte forma: "do ca-ráter científico do método tradicional, e do caráter pseudo-científico dos métodos novos".

Vejam que nofundo as minhas teses estão indo contra atendência corrente, contra atendência dominante. Epor queisso? Porque, vejam bem, tanto na primeira tese, comovere-mos agora na segunda, o queem verdade aburguesia faz, aodefender a posição que corresponde aos seus interesses écontrapô-Ia ao momento anterior. Assim, no caso da ped~-gogia da existência e da essência, a burguesia constrói osargumentos que defendem a pedagogia da existência con-tra a pedagogia da essência, pintando essa última comoalgo tipicamente medievel. Nesse sentido, ela deixa de as-su~ir.a pedagogia da essência como uma construção delapropna. Veremos agora, em relação ao método, como essaquestão se coloca de modo também bastante claro. Eu vouespe~ifj~arum pouco mais aquestão do método, porque dizrespeito Justamente ao modo como a gente trabalha no inte-rior da própria escola, no interior da sala de aula. E aqui nóspoderíamos nos lembrar, já diretamente, do movimento da

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,Escola Nova, que pintou o método tradicional como um mé-iOdo pré-cieiltífico, como um método dogmático e como ummétodo medieval. Basta nós nos lembrarmos, por exemplo,de Kilpatrick, Educação para uma civilização em mudança,onde ele vai·caracterizar a civilização que foi se construindocom base no surgimento da ciência moderna a partir do Re-nascimento como sendo a civilização em mudança. Nessesentido. os métodos tradicionais são remetidos para a IdadeMédia, a, portanto, para um caráter pré-científico, e mesmoanticientífico ou seja, dogmático. Ora, no entanto, essa cren-ça que a Escola Nova propaga é uma crença totalmente fal-sa. Com efeito, o chamado ensino tradicional não é pré-cien-tífico e muito menos medieval. Esse ensino tradicional queainda predomina hoje nas escolas se constituiu após a revo-lução industrial e se implantou nos chamados sistemas na-cionais de ensino, configurando amplas redes oficiais, cria-das a partir de meados do século passado, no momento emque, consolidado o poder burguês, aciona-se a escola re-dentora da humanidade, universal, gratuita e obrigatória comoum instrumento de consolidação da ordem democrática.

O que estou querendo enfatizar COmisto é que essemétodo tradicional foi constituído após a revolução industrial,contrariamente, portanto, ao argumento que os escolanovis-tas comumente levantam de que a revolução industrialtransformou a sociedade, determinou uma sociedade nãomais estática, em mudança contínua, que essa revolução in-dustrial, que tem seu fundamento na ciência, não teve suacontrapartida na educação, que continuou sendo pré-científi-ca, seguindo lemas medievais. Dar a razão do método novoproclamar-se científico, proclamar-se instrumento de introdu-ção da ciência na atividade educativa e, em conseqüência,colocar a educação à altura do século, à altura da época. Noentanto, esse ensino dito tradicional se estruturou através deum método pedagógico, que é o método expositivo, que to-dos conhecem, todos passaram por ele, e muitos estão pas-sando ainda, cuja matriz teórica pode ser identificada noscinco passos formais de Herbart. Esses passos, que são o

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pas~o da pr~p.aração, o passo da apresentação, da compa-raç~o e assimilação, da generalização e, por último, da apli-caça0, correspondem ao esquema do método cientrfico indu-tivo, tal como ~ora formulado por Bacon, método que pode-mos esquematizar em três momentos fundamentais: a ob-servação, a generalização e a confirmação. Trata-se, por-tanto, daquele mesmo método formulado no interior do movi-mento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvi·menta da ciência moderna. Eu acho que esse ponto precisaser explicitado um pouco melhor.

. No ensino herbartiano, o passo da preparação significabaSIcamente a recordação da lição anterior, logo, do já co-nhecido; através do passo da apresentação, é colocadodiante do aluno um novo conhecimento que lhe cabe assimi-lar; a assimilação, portanto o terceiro passo, ocorre por com-paração, daí por que eu o denominei assimilação-compara-ção - a assimilação ocorre por comparação do novo com °velho; o novo é assimilado, pois, a partir do velho. Esses trêspassos correspondem, no método científico indutivo, ao mo-mento da observação. Trata-se de identificar e destacar odiferente entre os elementos já conhecidos. O passo se-guinte, o da generalização, significa que, se o aluno já assi-milou o novo conhecimento, ele é capaz de identificar todosos fenômenos correspondentes ao conhecimento adquirido.Ora, no método indutivo, o momento da generalização não éoutra coisa senão a subsunção, sob uma lei extraída doselementos observados, pertencentes a determinada classede f~nômenos, de todos os elementos (observados ou não),que Integram a mesma classe de fenômenos. O passo daaplicação, que é o quinto passo do método herbartiano coin-cide, via de regra, com as "lições para casa". Fazen'do osexercícios, o aluno vai demonstrar se ele aprendeu, se assi-milou ou não o conhecimento. Trata-se de verificar atravésde exe':lplos novos, não manipulados ainda pelo aluno, seele efetivamente assimilou o que foi ensinado. Corresponde,pois, ao momento da confirmação, no caso do método cientí-fico, uma vez que, se o aluno aplicou corretamente 0$ co-

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nhecimentos adquiridos, se ele acertou os exercícios, a as-similação está confirmada. Pode-se afirmar que ao ensinocorrespondeu uma aprendizagem. Por isso, a preparação dalição seguinte começa com a recapitulação da anterior, o queé feito normalmente mediante a correção da lição de casa.Eis, pois, a estrutura do método tradicional; na lição seguintecomeça-se corrigindo os exercícios, porque essa correção éo passo da preparação. Se os alunos fizeram corretamenteos exercícios, eles assimilaram o conhecimento anterior, en-tão eu posso passar para o novo. Se eles não fizeram cor-retamente, então eu preciso dar novos exercícios, é precisoque a aprendizagem se prolongue um pouco mais, que o en-sino atente para as razões dessa demora, de tal modo que,finalmente, aquele conhecimento anterior seja de fato assi-milado, o que será a condição para se passar para um novoconhecimento.

Cabe aqui perguntar: por que o movimento da EscolaNova tendeu a classificar como pré-científico, e até mesmocomo anticientífico, dogmático, o método aqui citado? Acre-dito que demonstrei a sua cientificidade. Mas vamos tentaragora responder a essa pergunta. A Escola Nova deve tersuas razões.

ENSINO NÃO É PESQUISA

Na verdade, o que o movimento da Escola Nova fez foitentar articular o ensino com o processo de desenvolvimentoda ciência, ao passo que o chamado método tradicional o ar-ticulava com o produto da ciência. Em outros termos, a Es-cola Nova buscou considerar o ensino como um processo depesquisa; daí por que ela se assenta no pressuposto de queos assuntos de que trata o ensino são problemas, isto é, sãoassuntos desconhecidos não apenas pelo aluno, como tam-bém pelo professor. Nesse sentido, o ensino seria ° desen-volvimento de uma espécie de projeto de pesquisa, quer di-zer uma atividade - vamos aos cinco passos do ensino novoque se contrapõem simetricamente aos passos do ensino

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I

tradicional: então, o ensino seria uma atividade (1º passo)que, suscitando determinado problema (2º passo), provocariao levantamento dos dados (3º passo), a partir dos quais se-riam formuladas as hipóteses (4º passo) explicativas do pro-blema em questão, empreendendo alunos e professores,conjuntamente, a experimentação (Sº passo), que permitiriaconfirmar ou rejeitar as hipóteses formuladas.

Vê-se, pois, que o ensino novo basicamente se fundanessa estrutura: ele começa por uma atividade; na medidaem que a atividade não pode prosseguir por algum obstáculo,alguma dificuldade, algum problema que surgiu, é preciso re-solver esse problema. Como se vai resolver esse problema?Então, todos, alunos e professores, saem à cata de dados,dados dos mais diferentes tipos, dados documentais, biblio-gráficos, dados de campo etc. Esses dados, uma vez le-vantados, permitirão acionar uma ou mais hipóteses explica-tivas do problema. Formulada a hipótese, é preciso passar àexperimentação, é preciso testar essa hipótese. São essesos cinco passos do método novo. Diferentemente disso, oensino tradicional se propunha a transmitir os conhecimentosobtidos pela ciência, portanto, já compendiados, sistematiza-dos e incorporados ao acervo cultural da humanidade. Eispor que esse tipo de ensino, o ensino tradicional, se centrano professor, nos conteúdos e no aspecto lógico, isto é, secentra no professor, o adulto, que domina os conteúdos logi-camente estruturados, organizados, enquanto que os méto-dos novos se centram no aluno (nas crianças), nos procedi-mentos e no aspecto psicológico, isto é, se centra nas moti-vações e interesses da criança em desenvolver os procedi-mentos que a conduzam à posse dos conhecimentos capa·zes de responder às suas dúvidas e indagações. Em suma,

_aqui, nos métodos novos, se privilegiam os processos deobtenção/dos conhecimentos, enquanto que lá, nos métodostradicionais, se privilegiam os métodos de transmissão dosconhecimentos já obtidos. ~, ',i

Bem, acho que, isto posto, um e outro método, uma eoutra pedagogia, estão indicadas também as razões de cien-

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ti

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",,•I

tificidade de uma e de outra. Mas, que conseqüências issotem?

Vejam que com essa maneira de interpretar a educa-ção, a Escola Nova acabou fX)r dissolver a dife~ença entrepesquisa e ensino, sem se dar conta de que, .asslm f~z~nd.~,ao mesmo tempo que o ensino era empobrecido, se Invlablh-zava também a pesquisa. O ensino não é um processo depesquisa. Querer transformá-lo num processo de pesquisa éartificializá-lo. Dar o meu prefixo pseudo ao científico dosmétodos novos. Eu vou tentar explicar um pouquinho aindaisso. Por que é que o ensino era empobrecido e ao mesmotempo se inviabilizava a pesquisa?

Vejam bem que, se a pesquisa é incursão no desco-nhecido, e por isso ela não pode estar atrelada a esquemasrigidamente 16gicos e preconcebidos, também é verdade que:primeiro, o desconhecido s6 se define por confro~to co_moconhecido, isto é, se não se domina o já co~hecld~, nao épossível detectar o ainda não conhecido, a fIm d~ Incorpo-rá-Ia, mediante a pesquisa, ao domínio do já conhecIdo. Aí meparece que está uma das grand.es frc:quezas ~os ~étod?snovoS. Sem o domínio do conhecIdo, nao é posslvellncurslo-nar no desconhecido. E aí que está também a grande forçado ensino tradicional: a incursão no desconhecido se faziasempre através do conhecido, e isso é um negócio ~uitosimples; qualquer aprendiz de pesquisador passou ~or ISSOou está passando, e qualquer pesquisador sabe .mu~to bemque ninguém chega a ser pesquisador, a ser clent!sta, seele nãó domina os conhecimentos já existentes na area emque ele se propõe a ser investigador, a ser cien~i~ta. Em se-gundo lugar, o desconhecido não po?~ s~r definIdo em ter-mos individuais, mas em termos SOCiaIS,IStOé, trata-se da-quilo que a sociedade e, no limite, a humanidade em seuconjunto desconhece. S6 assim seria possív.el encontrar-seum critério aceitável para distinguir as pesquIsas relevantesdas que não o são, isto é, para se distinguir a pesquisa ,dapseudopesquisa,da pesquisa de "mentirinha", da ~e~qUlsade brincadeira, que, em boa parte, me parec~, constitUi o ma-

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nancial dos processos novos de ensino. Em suma, s6 assimserá possível encetar investigações que efetivamente con-tribi..!am para o enriquecimento cultural da humanidade.Creio que está demonstrada a minha segunda tese, isto é, ocaráter científico do método tradicional e o caráterpseudocienlíftco dos métodos novos.

A ESCOLA NOVA NÃO É DEMOCRÁTICA

Destas duas teses, eu vou, então, extrair à terceirª,que é aquela conclusão segundo a qual quando--m-ais sefalou em democracia no interior da escola, menos demo-crática foi a escola; e, quando menos se falou em demo-cracia, mais a escola esteve articulada com a construçãode uma ordem democrática.

Parece-me que, como diziam os escolásticos, conclusiopatet, isto é, essa tese éevidente depois do que foi explicitadoem relação às duas primeiras, porque, obviamente, nós sabe-mos que, em relação à pedagogia nova, um elemento que estámuito presente nela é a proclamação democrática, a procla-mação da democracia. Aliás, inclusive, o próprio tratamentodiferencial, portanto, o abandono da busca de igualdade éjustificado em nome da democracia e é nesse sentido tambémque se introduzem no interior da escola procedimentos ditosdemocráticos. E hoje nós sabemos, com certa tranqüilidade,já, a quem serviu essa democracia e quem se beneficiou dela,quem vivenciou esses procedimentos democráticos no in-teriordas escolas novas. Não foi o povo, não foram os operá-rios, não foi o proletariado. Essas experiências ficaram restri-tas a pequenos grupos, e nesse sentido elas se constituíram,via de regra, em privilégios para os já privilegiados, legitiman-do as diferenças. Em contrapartida, os homens do povo (opovão, como se costuma dizer) continuaram a ser educadosbasicamente segundo o método tradicional, e, mais do queisso, não só continuaram a ser educados, à revelia dos mé-todos novos, como também jamais reivindicaram tais pro-cedimentos. Os pais das crianças pobres têm uma consciência

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muito clara de que a aprendizagem i~elic~ a a9uisição denteúdos mais ricos, têm uma conSClenCla mUlto clara de

~~e a aquisição desses conteúdos nã~. se dá sem ~sforço,não se dá de modo espontâneo; consequentemente, tem umaconsciência muito clara de que para se aprender é precisodisciplina e, em funçã~ disso, eles exigem mesmo dos pro-fessores a disciplina. E comum a gente encontrar esta rea-ção nos pais das crianças das classes trabalhadoras: se omeu filho não quer aprender, vocês têm que fazer com queele queira. E o papel do professor é o de garantir que o co-nhecimento seja adquirido, às vezes mesmo contra a vonta-de imediata da criança, que espontaneamente não tem con-dições de enveredar para a realização dos esforços nece~-sários à aquisição dos conteúdos mais ricos e sem os quaisela não terá vez, não terá chance de participar da sociedade.

É nesse sentido que digo que quando mais se falou e~democracia no interior da escola, menos democrática ela fOI,e quando menos se falou em democracia, mais ela est~vearticulada com a construção de uma ordem democrática.Ora, na explicação da minha primeira tese, eu tinha indicadoque a burguesia, ao ~ormular a pedagogia da essência,. aocriar os sistemas nacionais de ensino, colocou a escolanza-ção como uma das condições para a consolidação da ordemdemocrática. Conseqüentemente, a própria montagem doaparelho escolar estava aí a serviço da participação demo-crática, embora no interior da escola não se falasse muito emdemocracia embora no interior da escola nós tivéssemos. -aqueles professores que assumiam, não abdicavam: naoabriam mão da sua autoridade, e usavam essa autoridadepara fazer com que os alunos ascendessem a um nível ele-vado de assimilação da cultura da humanidade.

ESCOLA NOVA, A HEGEMONIA DACLASSE DOMINANIE

Passemos, enfim, às conseqüências para a situaçãoeducacional brasileira.

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Vou tomar dois momentos para ilustrar. o primeiromomento seria aí em torno da década de 30 e o segundo se-riadadécadade 70, mais exatamente umareferênciaàrefor-ma do ensino instituída pela Lei n g5.692 para verificar comoé que ela se enquadra nesse esquema mais amplo de com-preensão ecomo éque ela interferiu no interior da escoladoponto de vista político, determinando que, interiormente,as escolas cumprissem certas funções políticas.

Em relação ao momento de 30, eu o tomo justamenteporque o movimento da Escola Nova toma força no Brasilexatamente a partir daí. A Associação Brasileira de Educa-ção, ABE, foi fundada em 1924 e, num certo sentido,aglutinou os educadores novos, os pioneiros da educaçãonova, que vão depois lançar seu manifesto, em 1932, e vãotravar em seguida uma polêmica com os católicos em tornodo capítulo da educação da Constituição de 34. Esse mo-mento, 1924, com a criaçào daABE, 1927, com a IConferên-cia Nacional de Educação, 1932, com o lançamento do ma-nifesto dos pioneiros, é marco da ascendência escola-novista no Brasil, movimento este que atingiu o seu augepor volta de 1960, quando, em seguida, entra em refluxo,emfunção de uma nova tendência da política educacional, quea gente poderia chamar de "os meios de comunicação demassa" e "as tecnologias de ensino". Eu não vou poderentrar nesse detalhe. Já tratei disso em algumas palestrasque estão publicadas no livro Educação: do senso comumà consciência filosófica.

O que eu queria destacar em relação ao momento de30 é, basicamente, o seguinte: o contraste entre o "entusias-mo pela educação" e "otimismo pedagógico". J. Nagle ana-lisa isso com razoável detalhe na sua tese de livre-docênciaque versou sobre a década de20, e foi publicada sob o títuloEducação e sociedade na 1'República. Ali, Nagle faz refe-rênciaa duas categorias, uma que ele chama"o entusiasmopela educação", que foi uma marca característica do iníciodo século e também da década de 20 que, no entanto, en-tra em refluxo no final dessa década, cedendo lugar àquilo

que ele chama "otimismo pedagógico" que é uma caracterís-tica do escolanovismo. Ora, o importante do ponto de vistapolítico a -salientar aqui é que nessa fase do entusiasmo pelaeducação se pensava a escola como instrumento de partici·pação poll'tica, isto é, se pensava a escola como uma funçãoexplicitamente política; a primeira década desse século, asegunda, a década de 10, e a terceira, a década de 20, forammuito ricas em movimentos populares que reivindicavam umaparticipação maior na sociedade, e faziam reivindicaçõestambém do ponto de vista escolar. Nós sabemos que a dé-cada de 20 foi uma década de grande tensão, de grande agi-tação, de crise de hegemonia das oligarquias até então domi~nantes. Essa crise de hegemonia foi de certo modo aguçadapela organização dos trabalhadores; várias greves operáriassurgiram nesse perrodo e vários movimentos organizacionaistambém se deram. Com o escolanovismo, o que ocorreu foique a preocupação política em relação à ~scola refluiu. Deuma preocupação em articular a escola como um instrumentode participação política, de participação democrática, passou-se para o plano técnico-pedagógico. Daí essa expressão deJorge Nagle "otimismo pedagógico". Passou-se do "entu-siasmo pela educação", quando se acreditava que a edl;!ca-ção poderia ser um instrumento de participação das massasno processo político, para o "otimismo pedagógico", em quese acredita que as coisas vão bem e se resolvem nesse pla-no interno das técnicas pedagógicas. Num outro texto, façoreferência à Escola Nova como desempenhando a função derecompor os mecanismos de hegemonia da classe domi-nante. Com efeito, se na fase do "entusiasmo pela educação"o lema era "Escola para todos", essa era a bandeira de luta,agora a Escola Nova vem transferir a preocupação dos obje-tivos e dos conteúdos para os métodos e da quantidade paraa qualidade. Ora, vocês não sabem o que existe de significa-do político por detrás dessa metamorfose! Em verdade, osignificado político, basicamente, é o seguinte: é que quandoa burguesia acenava com a escola para todos- (é por issoque era instrumento de hegemonia), ela estav3 num período

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capazdeexpressarosseus interesses abarcando também osinteresses dasdemais classes. Nessesentido advogar esco-la para todos correspondia ao interesse da burguesia, por-que era importante uma ordem democrática consolidada ecorrespondia também ao interesse do operariado, do prole-tariado, porque para ele era importante participar do proces-so político, participardasdecisões.

Ocorre que, na medida em que tem início essa parti-cipação, as contradições de interesses que estavam sub-mersas sob aquele objetivo comum vêm àtona efazem sub-mergir o comum; o que sobressai, agora, é a contradição deinteresses, ou seja, o proletariado, o operariado, as camadasdominadas, na medida em que participavam das eleições,não votavam bem, segundo a perspectiva das camadas do-minantes, quer dizer, não escolhiam os melhores; a bur-guesia acreditava que b povo instruído iria escolher os me-lhores governantes. Mas o povo instruído não estava esco-lhendo os melhores. Observe-se que não escolhiam os me-lhores do ponto de vista dominante. Ocorre que os melhoresdo ponto de vista dominante não eram os melhores do pontode vista dominado. Naverdade, o povoescolhia os menos pi-ores, porqueé claro queos melhores ele não podiaescolher,uma vez que o esquema partidário não permitia que seus re-presentantes autênticos se candidatassem. Então ele tinhaque escolher, entre as facções em luta no próprio campo bur-guês, as opções menos piores; só que as menos piores, doponto de vista dos interesses dos dominados, eram as pioresdo ponto de vista dominante. "Ora, então essa escola nãoestá funcionando bem", foi o raciocínio das elites, das ca-madas dominantes; e se essa escola não está funcionandobem, éprecisc reformaraescola. Não bastaaquantidadenãoadianta dar a escola para todo mundo desse jeito. E surgiu aEscola Nova, que tornou possivel, ao mesmo tempo, o apri-moramento do ensino destinado às elites e o rebaixamentodo nível de ensino destinado às camadas populares. É nes-se sentido que a hegemonia pôde ser recomposta. Sobre is-so haveria coisas interessantíssimas para a gente discutir

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em relação ao que está ocorrendo no Brasil, hoje; a contradi-ção da política educacional atual, em que a proposta de base,referente ao ensino fundamental, é, a meu modo de ver, po-pulista, e a proposta de cúpula, em relação à pós-graduação,é elitista.

Em suma, o movimento de 30, no Brasil, através daascensão do escolanovismo, correspondeu a um refluxo eaté a um desaparecimento daqueles movimentos popularesque advogavam uma escola mais adequada aos seus inte-resses. E por que isso? A partir de 30, ser progressista pas-sou a significar ser escolanovista. E aqueles movimentossociais, de origem, por exemplo, anarquista, socialista, mar-xista, que conclamavam o povo a se organizar e reivindicar acriação de escolas para os trabalhadores, perderam a vez, etodos os progressistas em educação tenderam a endossar ocredo escolanovista. Bem, eu poderia me estender, puxar ofio da história, de 30 até agora, mas vamos fazer um corte, evou tomar a reforma de 1971 como uma outra indicação prá-tica dessa tese que enunciei.

O que fez a Lei nº 5.692? Tomemos, por exemplo, oprincípio de flexibilidade, que é a chave da lei, que é a grandedescoberta dessa lei, a sua grande inovação. Ela é tão flexí-vel que pode até não ser implantada. E mais ainda: é tão fle-xível que pode até ser revogada sem ser revogada; e eu nãoestou inventando, não. Peguem o Parecer nº 45/72, da pro-fissionalização, em confronto com o Parecer nº 76/75, tam-bém da profissionalização. O primeiro parecer regulamentouo artigo 5º da Lei; o segundo revogou o primeiro e, com ele,revogou também o artigo 5º da Lei; s6 que, mediante o princí-pio da flexibilidade, ele não revogou, ele reinterpretou. Rein-terpretbu, e o artigo 5º permanece nela.

Através dessa flexibilidade, se instituiu, por exemplo,aquela diferenciação entre terminalidade real e terminalidadelegal ou ideal. Ora, o que é a terminalidade real sen~o admitirque quem tem pouco continua tendo menos ainda? As vezeseu digo, brincando, que nesse sentido o capitalismo é bemevangélico. Ele aplica ao pé da letra a máxima evangélica

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)

enunciada na parábola dos talentos: "ao que tem se lhe dará;e ao que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado".

Em relação a essa diferenciação entre terminalidadeideal e terminalidade real, se diz comumente o seguinte: todoo conteúdo de aprendizagem do 1º grau será dado em oitoanos; eis o legal, ou seja, o ideal. Mas, naqueles lugares emque não há condições de se ter escola de oito anos, entãoque se organize esse conteúdo para seis anos, em outroSpara quatro ou para dois, e assim por diante; e, numa mesmaregião, a escola que não tem condição de dar oito, que dêseis, e assim por diante; e, numa mesma classe, para -aque-les alunos que não têm condições de chegar lá no oitavo, vo-cê dá uma formação geral em quatro anos, que é quase s6 oque eles vão ter mesmo; em seguida, sondagem de aptidão,e se encaminha para o mercado de trabalho. Ora, vejam vo-cês como está aqui de modo bem caracterizado aquilo queeu chamo o aligeiramento do ensino destinado às camadaspopulares. Dessa maneira, o ensino das camadas popularespode ser aligeirado até o nada, até se desfazer em mera for-malidade.

Outro ponto apenas, e eu já passo para a teoria dacurvatura da vara, porque acho que estão todos curiosos emrelação a ela. Então, uma observação só, socre a reformula-ção curricular. Uma outra "descoberta" da Lei nº 5.692 foi areformulação curricular através de atividades, áreas de estu-dos e disciplinas, determinando que o ensino, nas primeirasoito séries, se desenvolvesse predominantemente sob a for-ma de atividades e áreas de estudo. Ora, essas atividades eáreas de estudos são outra maneira de diluir o conteúdo daaprendizagem das camadas populares; e todos sabem queisso efetivamente ocorreu e vem ocorrendo.

Vou dispensar outras ilustrações vinculadas à Lei nº5.692; apenas eu gostaria de enfatizar isso: que contra essatendência de aligeiramento do ensino destinado às camadaspopulares n6s precisaríamos defender o aprimoramentoexatamente do ensino destinado às camadas populares. Es-sa defesa imli'lica na prioridade de conteúdo. Os conteúdos

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,•

são fundamentais e, sem conteúdos relevantes, conteúdossignificativos, a aprendizagem deixa de existir, ela se transMforma num arremedo, ela se transforma numa farsa. PareceMme, pois, fundamental que se entenda isso e que, no interiorda escola, nós atuemos segundo essa máxima: a prioridadede conteúdos, que é a única forma de lutar contra a farsa doensino. Por que esses conteúdos são prioritários? JustaMmente porque o domínio da cultura constitui instrumento inMdispensável para a participação política das massas. Se osmembros das camadas populares não dominam os conteú-dos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses,porque ficam desarmados contra os dominadores, que seservem exatamente desses conteúdos culturais para legiti-mar e consolidar a sua dominação. Eu costumo, às vezes,enunciar isso da seguinte forma: o dominado não se libertase ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam.Então, dominar o que os dominantes dominam é condição delibertação.

Nesse sentido, eu posso ser profundamente político naminha ação pedagógica, mesmo sem falar diretamente de po~Iftica, porque, mesmo veiculando a própria cultura burguesa,e instrumentalizando os elementos das camadas popularesno sentido da assimilação desses conteúdos, eles ganhamcondições de fazer valer os seus interesses, e é nesse sen·tido, então, que politicamente se fortalecem. Não adianta na·da eu ficar sempre repetindo o refrão de que a sociedade édividida em duas classes fundamentais, burguesia e proleta-riado, que a burguesia explora o proletariado e que quem éproletário está sendo explorado, se o que está sendo explo-rado não assimila os instrumentos através dos quais elepossa se organizar para se libertar dessa exploração. AssoMciada a essa prioridade de conteúdo, que eu já antecipe~ meparece fundamental que se esteja atento para a importânciada disciplina, quer dizer, sem disciplina esses conteúdos reMlevantes não são assimilados. Então, eu acho que nós con-seguiríamos fazer uma profunda reforma na escola, a partirde seu interior, se passássemos a atuar segundo esses

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.I

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II, ,

pressupostos e mantivéssemos uma preocupação constantecom o conteúdo e desenvolvêssemos aquelas fórmulas disMciplinares, •aqueles procedimentos que garantissem que es~ses conteudos fossem realmente assimilados. Por exemplo,o problema dos elementos das camadas populares nas salasde. aula impli~a redobrados esforços por parte dos responsáMvels pelo enSinO,por parte dos professores, mais diretamenMte. O que ocorre, via de regra, é que, dadas as condições detrabalh~, e dado o próprio modelo que impregna a atividadede ensIno e traz, então, exigências e expectativas para prOMfessores e alunos, tudo isso faz com que o próprio professortenda a cuidar mais daqueles que têm mais facilidade, deiMxando à margem aqueles que têm mais dificuldade. E é as~sim que nós acabamos, como professores, no interior da salade aula, reforçando a discriminação e sendo politicamentereacionários. '

Quanto ao apêndice, relativo à "teoria da curvatura davara", eu faço apenas um comentário rápido e encerro. Naverda~e, introduzi esse apêndice simplesmente pelo seguin-te: a enfase que dei, invertendo a tendência corrente decorreda consideração de que, na tendência corrente, a ~ara estátorta; está torta ~ara o lado da pedagogia da existência, parao lado dos movImentos da Escola Nova. E é nesse sentidoq~e o raciocf~io habitual tende a ser o seguinte: as pedagoMglas novas sa~ portadoras de todas as virtudes, enquantoque a pedagogia tradicional é portadora de todos os defeitose de ne~huma virtude. O que se evidencia através de minhasteses é Justamente o inverso.

Creio ter conseguido fazer curvar a vara para o outrolado. A minha expectativa é justamente que com essa infle~xão a vara atinja o seu ponto correto, vejam bem, ponto cor-reto esse que não está também na pedagogia tradicionalmas está justamente. na valorização dos conteúdos qU~apont,am ~ara uma pedagogia revolucionária; pedagogia re-volucionária esta que identifica as propostas burguesas co-mo elemen~os_de recomposição de mecanismos hegemOni-cos e se dlspoe a lutar concretamente contra a recomposi-

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ção desses mecanismos de hegemonia, no sentido de abrirespaço para as forças emergentes da sociedade, para asforças populares, para que a escola se insira no processomais amplo de construção de uma nova sociedade.

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I~

ESCOLA E DEMOCRACIA 11Para além da teoria

da curvatura da vara

No texto anterior, partindo dasuposição de que o ideárioescolanovista-Iogrou converter-se em senso comum para oseducadores, isto é, se tornou a forma dominante deseconce-ber a educação, enunciei teses polêmicas visando a contestaras crenças que acabaram por tomar conta das cabeças doseducadores. Meu objetivo era reverter a tendência dominan-te. Uma vez que a concepção corrente, na qual o reformismoacabou por prevalecer sobre otradicionalismo, tendeaconsi-derar a pedagogia nova como portadora de todas as virtudese de nenhum vício atribuindo, inversamente, à pedagogia tra-dicional todos os vícios e nenhuma virtude, empenhei-me, notexto citado, em demonstrar exatamente o inverso. Eo fizatra-vés de três teses que enunciei e explicitei de modo sucinto, asquaís constituíram o arcabouço daquilo que denominei, uti-lizando uma expressão tomada de empréstimo a Lênin, de "te-oria da curvatura da vara"(Althusser, 1977: 136-38).

Para comodidade dos leitores penso ser útil reprodu-ziraqui as teses referidas:

Primeira tese (filosófico-histórica)

Do caráter revolucionário da pedagogia da essência(pedagogia tradicional) e do caráter reacionário da pedago-gia da existência (pedagogia nova).

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Segunda tese (pedagógico-metodotógica)

Do caráter científico do método tradicional e do caráterpeseudocientrfico dos métodos navos.

Terceira tese (especiticamente polflica)

De como, quando menos se falou em democracia nointerior da escola mais ela esleve articulada com a constru-ção de uma ordem democrática; e quando mais se falou emdemocracia no interior da escola menos ela foi democrática.

Como se percebe de imediato, o próprio enunciadodessas proposições evidencia que, mais do que teses, elasfuncionam como antíteses por referência às idéias dominan-tes nos meios educacionais. É este sentido de negaçãofrontal das teses correntes que se traduz metaforicamente naexpressão "teoria da curvatura da vara". Com efeito, assimcomo para se endireitar uma vara que se encontra torta nãobasta colocá-la na posição correta mas é necessário cur-vá~la do lado oposto, assim também, no embate ideológiconão basta enunciar a concepção correta para que os desviossejam corrigidos; é necessário abalar as certezas, desautori-zar o senso comum. E para isso nada melhor do que de-monstrar a falsidade daquilo que é tido como obviamenteverdadeiro demonstrando ao mesmo tempo a verdade da-quilo que é tido como obviamente falso2• Meu objetivo, pois,ao introduzir no debate educacional a "teoria da curvatura davara" foi o de polemizar, abalar, desinstalar, inquietar, fazerpensar. E creio ter conseguido, ao menos em parte, uma vezque as reações não tardaram, tendo alguns, ainda que com

2. ~ interessante assinalar que o procedimento acima indicadopode, até certo ponto, ser considerado uma caraeterCsticada filosofia.Com efeito, ele é encontrado nos diálogos platônicos; na expressãomaior da filosofia medieval, a Summa TheoJogica de Tomás de Aquino,através da expressão "videtur quod non"; em Descartes, com a dúvidamet6dica e assim por diante. Com a filosofia dialética tal procedimentoadquire sua máxima expressão te6rica.

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i1,11,

certa ponta de ironia, insinuado que eu seria conservador emmatéria de educação. Entretanto, no final daquele texto, afir-mei textualmente: "Creio ter conseguido fazer curvar a varapara o outro lado. A minha expectativa é justamente que comessa inflexão a vara atinja o seu ponto correto, vejam bem,ponto correto esse que não está também na pedagogia tradi-cional, mas está justamente na valorização dos conteúdosque apontam para uma pedagogia revolucionária".

Neste texto pretendo prosseguir o debate tentando ul-trapassar o momento da antftese- na direção do momento dasfntese.

Por isso a estrutura deste texto parte do arcabouço doanterior. Assim, após -esclarecer a razão do emprego indife-rendado das expressões "pedagogia da existência" e "peda-gogia nova" serão retomadas consecutivamente, com intentode superação, cada uma das três teses anteriormente enun-ciadas com inteto negador.

PEDAGOGIA NOVA E,PEDAGOGIADA EXISTÊNCIA

Entendidas em sentido amplo, as expressões "peda-Q9gia nova" e "pedag()Qia _daexistência" se equivalerrt.lstoporque ámbas sãõ-tributárias dãquilo que poderíamos chamarde "concepção humanista moderna de Filosofia da Educa-ção". Tal concepção centra-se na vida, na existencia, na ati-vidade, por oposição à concepção tradicional que se centra-va no intelecto, na essenCia, no conhecimento. Nesta acep-ção, estamos nos referindo a um amplo movimento filosóficoque abrange correntes tais como o Pragmatismo, o Vitalismo,

'o Historicismo, o Existencialismo e a Fenomenologia, comimportantes repercussões no campo educacional. Obvia-mente, assim com_onão se ignora a diversidade de correntesfilosóficas, também não se perde de vista a existência de di-ferentes nuances pedagógicas no bojo do que denominamos"Concepção 'humanista' moderna da filosofia da educação".Em outros termos: as expressões "pedagogia nova" e "pe~

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dagogia da existência" se equivalem sob a condição de nãoreduzir a primeira à pedagogia escolanovista e a segunda, àpedagogia existencialista. Esse esclarecimento se faz ne-cessário uma vez que a concepção "humanista" moderna se .manifesta na educação predominantemente sob a fonna domovimento escolanovista cuja inspiração filosófica principalsitua-se na corrente do pragmatismo. Atualmente algunseducadores buscam rever suas posições pedagógicas à luzda fenomenologia e do existencialismo (Husserl, Merleau·Ponty, Heidegger). A esses educadores soou estranho o fatode eu ter utilizado a expressão "pedagogia da existência"como equivalente à "pedagogia nova". Entretanto, quando emoutro texto caracterizei a concepção "humanista" modernade filosofia da educação, registrei de modo explícito essa di-ferença de matiz ao afirmar que a referida concepção admitea existência de formas descontrnuas na educação, entendi·das, porém, em dois sentidos: "num primeiro sentido (maisamplo) na medida em que, em vez de se considerar a educa-ção como um processo continuado, obedecendo a esquemaspredefinidos, seguindo uma ordem lógica, considera·se que aeducação segue o ritmo vital que é variado, determinado pe-las diferenças existenciais ao nível dos indivíduos; admiteidas e vindas com predominância do psicológico sobre o ló-gico; num segundo sentido (mais restrito e especificamenteexistencialista), na medida em que os momentos verdadei-ramente educativos são considerados raros, passageiros,instantâneos. São momentos de plenitude, porém fugazes egratuitos. Acontecem independentemente da vontade ou depreparação. Tudo o flue se pode fazer é estar predisposto eatento a esta possibilidade" (Saviani, 1980).

É nesse segundo sentido que se desenvolve o trabalhode O. F. Bollnow (1971). Já Suchodolski (1978) entende apedagogia da existência no primeiro sentido. Cabe observar,por fim, que o primeiro sentido abrange o segundo e que, a ri-gor, não se p:>de falar numa "pedagogia existencialista" umavez que esta não chegou a se configurar, havendo mesmo

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controvérsias no que diz respeito à compatibilidade entre pe-dagogia e existencialismo (Bollnow, 1971 : 11-35).

PARA ALÉM DAS PEDAGOGIAS DAESSÉNCIA E DA EXISTÊNCIA

<.Na primeira tese do texto anterior empenhei-me emdemonstrar ao mesmo tempo o caráter revolucionário da pe-dagogia tradicional e o caráter reacionário da pedagogia no-va. Isto foi feito através da historicização de ambas as peda-gogias. Em outros termos, evidenciou-se como se deu histo-ricamente a passagem de uma concepção pedagógica igua-Jitarista para uma pedagogia das diferenças, com sua conse-qüência polrtica: a justificação de privilégios. Ora, ao proce-der desta maneira eu já estava, naquele mesmo texto, mesituando para além das pedagogias da essência e da exis-tência. Com efeito, nessas pedagogias está ausente a pers-pectiva historicizadora. Falta-lhes a consciência dos condi-cionantes histórico-sociais da educação. São, pois, ingênuase não críticas já que é próprio da consciência crítica saber-secondicionada, determinada objetivamente, materialmente, aopasso que a consciência ingênua é aquela que não se sabecondicionada, mas, ao- contrário, acredita-se superior aosfatos, imaginando-se mesmo capaz de determiná-los e alterá-los por si mesma. Eis por que, tanto a pedagogia tradicionalcomo a pedagogia nova entendiam a escola como "redentorada humanidade". Acreditavam que era possível modificar asociedade através da educação. Nesse sentido, podemosafirmar que ambas são ingênuas e idealistas. Caem na ar-madilha da "inversão idealista" já que, de elemento determi-nado pela estrutura social, a educação é convertida em ele-mento determinante, reduzindo-se o elemento determinante àcondição de determinado. A relação entre educação e estru-tura social é, portanto, representada de modo invertido.

Foi destacado que o caráter revolucionário da pedago-gia da essência centra-se na defesa intransigente da igual-dade essencial entre os homens. É preciso insistir em que tal

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posição linha um caráter revolucionário na fase de constitui~ção do poder burguês e não o deixa de ter agora. No entantoé preciso acrescentar que seu conteúdo revolucionário éhistórico, isto é. se mOdifica historicamente. Assim, o 8c:essodas camadas trabalhadoras à escola implica a pressao nosentido de que a igualdade formal (''todos são iguais perantea lei") própria da sociedade contratual instaurada com a re-volução burguesa se transforme em igualdade real. Nessesentido, a importância da transmissão de conhecim~ntos, deconteúdos culturais, marca distintiva da pedagogia da essên-cia, não perde seu caráter revolucionário. A pressão em dire-ção à igualdade real implica a igualdade de acesso ao saber,portanto, a distribuição igualitária dos conhecimentos dispo~nfveis. Mas aqui também é preciso levar em conta que osconteúdos culturais são históricos e o seu caráter revolucio-nário está intimamente associado à sua historicidade. Assim,a transformação da igualdade formal em igualdade real estáassociada à transformação dos conteúdos formais, fixos eabstratos, em conteúdos reais, dinâmicos e concretos. Aoconjunto de pressões decorrentes do acesso -dasca~adastrabalhadoras à escola, a burguesia responde denunciandoatravés da Escola Nova o caráter mecânico, artificial, desa~tualizado dos conteúdos próprios da escola tradicional. Ob-viamente, tal denúncia é procedente e pode ser contabmzadacomo um dos méritos da Escola Nova. Entretanto, ao reco-nhecer e absorver as pressões contra o caráter formalista eestático dos conhecimentos transmitidos pela escola, o Mo~vimento da Escola Nova funcionou como mecanismo de re-composição da hegemonia burguesa. Isto porque subordinouas aspirações populares aos interesses burgueses tor.na~dopossível à classe dominante apresentar-se como a pnnclpalinteressada na reforma da escola, reforma esta que viria fi-nalmente atender aos interesses de toda a sociedade con~templando ao mesmo tempo suas diferentes aspiraçães,ca-pacidades e possibilidades. Com isso a importância d~transmissão de conhecimentos foi secundarizada e subordi-nada a uma pedagogia das diferenças, centrada nos métodos

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e processos: a pedagogia da existência ou pedagogianova.

Uma pedagogia revolucionária centra-se, .pois, naigualdade ·essencial entre os homens. Entende. porém, aigualdade em termos reais e não apenas formais. Busca,pois, converter-se, articulando-se com as forças emergentesda sociedade, em instrumento a serviço da instauração deuma sociedade igualitária. Para isso a pedagogia revolucio~nária, longe de secundarizar os conhecimentos descuidandode sua transmissão, considera a difusão de conteúdos, vivose atualizados, uma das tarefas primordiais do processo edu-cativo em geral e da escola em particular.

Em suma: a pedagogia revolucionária não vê necessi-dade de negar a essência para admitir o caráter dinâmico darealidade como o faz a pedagogia da existência, inspirada naconcepção "humanista" moderna de filosofia da educação.Também não vê necessidade de negar o movimento paracaptar a essência do processo histórico como o faz· a peda~gogia da essência inspirada na concepção "humanista" tradi-cional de filosofia da educação.

{A pedagogia revolucioná ri? é crrtlca. E por ser crftica,sabe-se condicionada. Longe de entender a educação comodeterminante principal das transformações sociais, recQnhe-ce ser ela elemento secundário e determinado. Entretanto,longe de pensar, como o faz a concepção crftico-reproduti-vista3 que a educação é determinada unidirecionalmente pelaestrutura social dissolvendo-se a sua especificidade, entendeque a educação se relaciona dialeticamente com a socieda~de. Nesse sentido, ainda que elemento determinado, não dei~xa de influenciar o elemento determinante. Ainda que secun-dário, nem por isso deixa de ser instrumento importante e porvezes decisivo no processo de transformação da sociedade.

A peaagogia revolucionária situa-se, pois. além daspedagogias da essência e da existência. Supera-as, incorpo~

3• .Para um entendimento do que está sendo denominado de"concepção crrtico-reprodutivista", ver, neste livro, p. 27 - 40.

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rando suas críticas recíprocas numa proposta radicalmentenova. O cerne dessa novidade radical consiste na superaçãoda crença seja na autonomia, seja na dependência absolutasda educação em face das condições sociais vigentes.

PARA ALÉM DOS'MÉTODOS NOVOS ETRADICIONAIS

Na segunda tese (;lo texto anterior afirmei o carátercientífico do método tradicional e o caráter pseudocielitíficodos métodos novos. Questionei com isso o principal argu-mento da crítica escolanovista ao método tradicional de ensi-no. Isto significa que a referida crítica é inteiramente infunda-da? Eu diria que não se trata disso. A crítica escolanovistaatingiu não tanto o método tradicional mas a forma como es-se método se cristalizou na prática pedagógica, tornando-semecânico, repetitivo, desvinculado das razões e finalidaçlesque o justificavam. Essa defasagem entre a proposta originale suas aplicações subseqüentes me faz lembrar da afirma-ção de Goldmann (1976 : 37) segundo a qual Durkheim foisuficientemente inteligente para não tomar ao pé da letra oseu lema "tratar os fatos sociais como coisas". Com isto,trouxe contribuições decisivas à constituição da ciência so-ciológica. Já os sociólogos quantitativistas, de modo especial05 americanos, tomando ao pé da letra o lema de Durkheim,acabaram por desenvolver uma tendência esterilizadora daciência sociológica.

Aplicando o mesmo raciocfnio à situação educacional,cabe observar que as críticas da Escola Nova atingiram ométodo tradicional não em si mesmo mas em sua aplicaçãomecânica cristalizada na rotina burocrática do funcionamentodas escolas. A procedência das críticas decorre do fato deque uma teoria, um método, uma proposta devem ser avalia-dos não em si mesmos, mas nas conseqüências que produ-ziram historicamente. Essa regra, porém, deve ser aplicadatambém à própria Escola Nova. Nesse sentido cumpreconstatar que as críticas, ainda que procedentes, tiveram,

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como assinalamos no texto anterior, o efeito de aprimorar aeducação das elites e esvaziar ainda mais a educação dasmassas. Isto porque, rea!izando-se em algumas poucas es-colas, exatamente aquelas freqüentadas pelas elites contri-buíram para o Seu aprimoramento. Entretanto, ao estendersua influência em termos de ideário pedagógico às escolasda rede oficial, que continuaram funcionando -de acordo comas condições tradicionais, a Escola Nova contribuiu, peloafrouxamento da disciplina e p.ela secundarização da trans-missão de conhecimentos, para desorganizar o ensino nasreferidas escolas. Daí, entre outros fatores, o rebaixamentodo nível da educação destinada às camadas populares.

Ora, se o principal problema da pedagogia nova estáno seu efeito discriminatório, surge, então, a questão: osmétodos novos não seriam generalizáveis? Assim como es-ses métodos foram capazes de aprimorar a educação daselites, não seriam eles úteis também para aprimorar a educa-ção das massas?

É nessa direção que surgem tentativas de constituiçãode uma espécie de "Escola Nova Popular". Exemplos des-sas tentativas são a "Pedagogia Freinet" na França e o "Mo-,vimento Paulo Freire de Educação" no Brasil. Com efeito, demodo especial no caso de Paulo. Freire, é nítida a inspiraçãoda "concepção 'humanista' moderna de filosofia da educa-ção", através da corrente personaHsta (existencialismo cris-tão). Na fase de constituição e implantação de.sua pedagogiano Brasil (1959-1964), suas fontes de referência são princi-palmente Mounier, G. Marcel, Jaspers (Freire, 1967).

Parte-se da crftica à pedagogia tradicional (pedagogiabancária) caracterizada pela passividade, transmissão deconteúdos, memorização, verbalismo etc. e advoga-se umapedagogia ativa, centrada na iniciativa dos alunos, no diálogo(relação dialógica), na troca de conhecimentos. A diferença,entretanto, em relação à Escola Nova propriamente dita,consiste no fato de que Paulo Freire se empenhou em colo-car essa concepção pedagógica a serviço dos interesses

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populare~. Seu alvo inicial foi, com efeito, os adultos analfa-betos.

Esse fenômeno histórico do surgimento daquilo quechamei de "Escola Nova Popular" põe em evidência que aquestão escolar na sociedade capitalista, dada a sua divisãoem classes com interesses opostos, é objeto de disputa. As-sim como a escola tradicional, proposta pela burguesia, volta-se contra seus interesses obrigando a uma recomposição dehegemonia através da Escola Nova, assim também a EscolaNova não fica imune à luta que se trava no seio da sociedap

de. Se o credo escolanovista se torna predominante e tomaconta das cabeças dos professores, é inevitável o surgi-mento de pressões no sentido de que a Escola Nova se ge,-neralize. Se o escolanovismo pressupõe métodos sofistica-dos, escolas mais bem equipadas, menOr número de alunosem classe, maior duração da jornada escolar; se se trata deuma escola mais agradável, capaz de despertar o interessedos alunos, de estimulá-los à iniciativa, de permitir-lhes as-sumir ativamente o trabalho escolar, por que não implantaresse tipo de escola exatamente para as camadas popularesonde supostamente a passividade, o desinteresse, as dificul-dades de aprendizagem são maiores?

Não é, pois, por acaso que justamente quando esse ti-po de questionamento vai se tornando mais agudo; quandosurgem propostas de renovação pedagógica articuladas comos interesses populares; quando aparecem críticas à EscolaNova que visam incorporar suas contribuições no esforço deformulação duma pedagogia popular, exatamente nesse mo-mento, novos mecanismos de recomposição de hegemoniasão acionados: os meios de comunicação de massa e astecnologias de ensino. Passa-se, então, a minimizar a im-portância da escola e a se falar em educação permanente,educação informal etc. No limite, chega-se mesmo a defen-der a destruição da escola. Ora, nós sabemos que o povonão está interessado na desescolarização. Ao contrário; elereivindica o acesso às escolas. Quem defende a desescola-rização são os já escolarizados, portanto, também já deses-

colarizados. Conseqüentemente, para eles a escola não temmais importância uma vez que eles já se beneficiaram dela.Os ainda não escolarizados, estes estão interessados naescolarização e não na desescolarização.

, Uma pedagogia articulada com os interesses popula-resvalorizará, pois, a escola; não será indiferente ao queocorre em seu interior; estará empenhada em que a escolafuncione bem; portanto, estará interessada em métodos deensino eficazes. Tais métodos se situarão para além dosmétodos tradicionais e novos, superando por incorporaçãoas contribuições de uns e de outros. Portanto, serão métodosque estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrirmão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogodos alunos entre si e com o professor mas sem deixar devalorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente;levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos deaprendizagem e o desenvolvimento psicológico mas semperder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos,sua ordenação e gradação para efeitos do processo detransmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos.=-', Não se deve pensar, porém, que os métodos acima in-dicados terão um caráter eclético, isto é, constituirão umasomatória dos métodos tradicionais e novos. Não. Os méto-dos tradicionais assim como os novos implicam uma auto-nomização da pedagogia em relação à sociedade. Os méto-dos que preconizo mantêm continuamente presente a vincu-lação entre educação e sociedade. Enquanto no primeiro ca-so professor e alunos são sempre considerados em termosindividuais, no segundo caso, professor e alunos são toma-dos como agentes sociais. Assim, se fosse possfvel traduziros métodos de ensino que estou propondo na forma de pas-sos à semelhança dos esquemas de Herbart e de Dewey, eudiria que o ponto de partida do ensino não é a preparação dosalunos cuja iniciativa é do professor (pedagogia tradicional)nem a atividade que é de iniciativa dos alunos (pedagogianova). O ponto de partida seria a prática social (~--Eà~SQ),que é comum a professor e alunos. Entretanto, em relação a

essa prática comum, o professor assim como os alunos po-dem se posicionar diferentemente enquanto agentes sociaisdiferenciados. E do ponto de vista pedagógico há uma dife-rença essecial que não pode ser perdida de vista: o profes-sor, de um lado, e os alunos, de outro, encontram-se em ní-veis diferentes de compreensão (conhecimento e experiên-cia) da prática social. Enquanto o professor tem uma com-preensão que poderíamos denominar de "síntese precária", acompreensão dos alunos é de caráter sincrético. A compre-ensão do professor é sintética porque implica uma certa arti-culação dos conhecimentos e experiências que detém relati-vamente à prática social. Tal síntese, porém, é precária umavez que, por mais articulados que sejam os conhecimentos eexperiências, a inserção de sua própria prática pedagógicacomo uma dimensão da prática social envolve uma antecipa-ção do que lhe será possível fazer com alunos cujos níveisde compreensão ele não pode conhecer, no ponto de partida,senão de forma precária. Por seu lado, a compreensão dosalunos é sincrética' uma vez que, por mais conhecimentos eexperiências que detenham, sua própria condição de alunosimplica uma impossibilidade, no ponto de partida, de articula-ção da experiência pedagógica na prática social de que parti-cipam.

j) O(segundo passo não seria a apresentação de novosconhecimentos por parte do professor (pedagogia tradicional)nem o problema como um obstáculo que interrompe a ativi-dade dos alunos (pedagogia nova). Caberia, neste momento,addentificação dos prin_12'ºª[~Lproblemaspostos_pela, práticaq9CJãI}Chamemos a este segundo passo de problematiza-'ção. Trata-se de detectar que questões precisam ser resolvi-das no âmbito da prática social e, em conseqüência, que co-nhecimento é necessário dominar.

-)~' Segue-se, pois, o terceiro passo que não coincide coma assimilação de conteúdos transmitidos pelo professor porcomparação com conhecimentos anteriores (pedagogia tra-dicional) nem com a coleta de dados (pedagogia nova) aindaque por certo envolva transmissão e assimilação de conhe-

cimentos podendo, eventualmente, envolver levantamento dedados. !rrata-se de se apropriar dos instrumeotos teóricos epr~Vços.....ri~Q~ssários ,fiO equacionamento dos problemas de-

--tectados na prática social. Como tais instr.umentos são pro-duzidos socialmente e preservados historicamente, a suaapropriação pelos alunos está na dependência de sua trans-missão direta ou indireta por parte do professor. Digo trans-missão direta ou indireta porque o professor tanto podetransmiti-los diretamente como pode indicar o.s meios atravésdos quais a transmissão venha a se efetivar. Chamemos,pois, este terceiro passo de instrumentalização. Obviamente,não cabe entender a referida instrumentalização e(l'l sentidotecnicista. Trata-se da apropriação pelas camadas popularesdas ferramentas culturais necessárias à luta social que tra-vam diuturnamente para se libertar das condições de explo-ração em que vivem.

"".-\O (quarto pass9> não será a generalização (pedagogiatradicional)' nem a hipótese (pedagogia nova). Adquiridos osinstrumentos básicos, ainda que parcialmente, é chegado omomentp da expressão elaborada da nova forma de enten-dimento da prática soe!al a que se ascendeu. Chamemoseste quarto passo de..@tarse, entendida na acepção grams-ciana de "elaboração superior da estrutura em superestruturana consciência dos homens" (Gramsci, 1978: 53). Trata-seda efetiva incorporação dos instrumentos culturais, tra.nsfor-ma~os9-gora em elementos ativos de transformação _social.

'-S ,,O quinto passo; finalmente, também não será a aplica-ção (pedagogia tradicional) nem a experimentação (pedago-gia nova). O ponto de chegada é a própria práticp social,compreendida agora não mais em termos sincréticos pelosalunos. Neste ponto, ao mesmo tempo que os alunos ascen-dem ao nfvel sintético em que, por suposto, já se encontravao professor no ponto de partida, reduz-se a precariedade dasíntese do professor, cuja compreensão se torna mais e maisorgânica. Essa elevação dos alunos ao nfvel do professor éessencial para se compreender a especificidade da relaçãopedagógica. Daí porque o momento catártico pode ser consi-

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derado o ponto culminante do processo educativo, já que é arque se realiza pela mediação da análise levada a cabo noprocesso de ensino, a passagem da sfncrese à srntese; emconseqüência, manifesta-se nos alunos a capacidade de ex-Pressarem uma compreensão da prática em termos tão ela-borados quanto era possfval ao professor. É a esse fenôme-no que--eu me referia quando dizia em outro trabalho que aeducação é uma atividade que supõe uma heterogeneidadereal e uma h'omogeneidade passfval; urna desigualdade noponto de partida e uma igualdade no ponto de chegada (5a-viani, 1980a). "! .

Ora, ~ravés do processo acima indicado, a compre-ensão dCi(Erática sodaf)Jassa por uma alteração qualitativa.Conseqüentémente, a prática social referida no ponto de par-tida (primeiro passo) e 'no ponto de chegada (quinto passo) ée não é a mesma. É a mesma, uma vez que é ela própria queconstitui ao mesmo tempo o suporte e o contexto, o pressu-posto e o alvo, o, fundamento e a fina~dade da prática peda-gógica. E não é a mesma, se considerarmos que o modo denos situarmos em seu interior se alterou qualitativamente pelamediação da ação pedagógica; e já que somos, enquantoagentes sociais, elementos objetivamente constitutivos daprática social, é I(cito concluir que a própria prática se alterouqualitativamente. É preciso, no entanto, ressalvar que a alte-ração objetiva da prática s6 pode se dar a partir da nossacondição de agentes sociais ativos, reais. A educação, por-tanto, não transforma de modo direto e imediato e sim de mo-do indireto e l,Tlediato, isto é, agindo sobre- os sujeitos da prá-tica. Como diz Vãzquez (1968: 206-7): "A teoria em si (...)não transforma o mundo. Pode contribuir para a sua trans-fonnação, mas para isso tem que sair de si mesma, e, emprimeiro lugar tem que ser assimilada pelos que vão ocasio-nar, com seus atos reais, efetivos, tal transformação. Entre ateoria e a atividade prática transformadora se insere um tra-balho de educação das consciências, de organização dosmeios materiais e planos concretos de ação; tudo isso comopassagem indispensável para desenvolver ações reais, efe-

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tivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medida em quematerializa, através de uma série de mediações, o que antessó existia idealmente, como conhecimento da realidade ouantecipação ideal de sua transformação".

As reflexões acima desenvolvidas podem ser conslde-r~da~ co~9 uma tentativa de adUZir elementos para a expli-cltaçao de .uma definição de. educação ,na qual venho insis~tindo há alguns anos4. Trata-se da conceituação de educa.ção como "uma atividade mediadora no seio da prática socialglobal" (Saviani, 1980a: 129). Daí porque a prãtica social foitomada como ponto de partida e ponto de chegada na ca-racterização qos momentos do método de ensino por mimpreconizado. E fácil identificar ar o entendimento da educaçãocomo mediação no seio da prática social. Também é fácilperceber de onde retiro o critério de cientificidade do métodoproposto. Não é do esquema indutivo tal como o formularaBacoo; n,em é do modelo experimentàlista ao qual se filiava

1?,Dewey. E, sim, da concepção dialética de ciência tal como oexplicitou Marx no "método da economia política" (Marx,1973: 228-40), Isto não quer dizer, porém, que eu esteja in-cidindo na mesma falha que denunciara na Escola Nova:confundir o ensino com a pesquisa científica. Simplesmenteestou querendo dizer que o movimento que vai da sfncrese("a visão caótica do todo") à síntese ("uma rica totalidade dedeterminações e de relações numerosas") pela mediação daanális.e .("as ab~trações e determinações mais simples")constItuI uma onentação segura tanto para o processo dedescoberta de novos conhecimentos (o método científico)como para o processo de transmissão-assimilação de co-nhecimentos (o método de ensino).

4. Ainda não tive tempo de elaborar por escrito a referida defini-ção. Entretanto, minha insistência em diferentes oportunidades já produ-ziu seus frutos. Assim, Carlos Roberto Jamil Cury tomou a si a tarefa dedesenvolver o conceito de mediação como uma das categorias chavesde compreensão do fenômeno educativo (Cury, 1979). Algo semelhante?COrreu com Guiomar N. Mello que construiu uma visão da escola a par-tir do conceito de mediação (Mello, 1982).

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Cabe. por fim, levar em conta que o empenho em apre-sentar simetricamente aos cinco passos de Herbart e deDewey as características do método pedagógico que, nomeu entendimento, se situa para além doS métodos novose tradicionais, correspondeua um esfórço heurístico e didáti-co cuja função era facilitar aos leitores a compreensão domeu posicionamento. Em lugar de passos que se ordenamnuma seqüência cronológica, é mais apropriado falar al demomentos articulados num -mesmo movimento, único e orgâ-nico. O peso e a duração de cada momento obviamente irávariar de acordo com as situações especfficas em que sedesenvolve a prática pedagógica. Assim, nos infcios da as-colarizaçãoa problematização é diretamente dependente dainstrumentaliz~ção. uma vez que a própria capacidade deproblematizar depende da posse de certos instrumentos. Anecessidade da alfabetização, por exemplo, é um problemaposto diretamente pela prática social não sendo necessária amediação da escola para detectá-lo. No entanto, é fácii deperceber que as crianças captam de modo sincrético, isto é",de modo f;ónfuso, caótico, a relação entre a alfabetização e aprática social; já o professor capta essa relação de modosintético, ainda que em tennos de uma "síntese precária".A instrumentalização no sentido de se passar da condição deanalfabeto para alfabetizado se impõe. E aqui o momentocatártico é fixado com nitidez, e, embora metaforicamente porreferência ao sentido contido na frase de Gramsci, dá-se, defato, uma "elaboração superior da estrutura em superestrutu-ra na consciência dos homens", isto é, a assimilação subjeti-va da estrutura objetiva da Ifngua. E o alfabetizado adquirecondições de se expressar em nrvel tão elaborado quanto oera capaz o professor no ponto de partida, isto é, ele se ex-pressa agora não apenas oralmente mas também por escrito.

r::~,o'~De outro lado, se as pedagogias tradicional e nova po-diam alimentar ...a expectativa de que os métodos por elaspropostos poderiam ter aceitação universal, isto se devia aofato de que dissociavam a educação da sociedade, conce-bendo esta· como harmoniosa, não-contraditória. Já o método

que preconizo deriva de uma concepção que articula educa-ção e sociedade e parte da consideração de que a sociedadeem que vivemos é dividida em classes com interessesopostos. Conseqüentemente, a pedagogia proposta, uma vezque se pretende a serviço dos interesses populares; terácontra si os interesses até agora dominantes. Trata-se, por-tanto, de lutar também no campo pedagógico para fazer pre-valecer os interesses até agora rião dominantes. E esta lutanão parte do consenso mas do dissensó: O consenso é vis-lumbrado no ponto de chegada. Para se chegar lá, porém, énecessário, através da prática ;iocial, transformar as rela-ções de produção que impedem a construção de uma socie-dade ig$litária. A pedagogia por mim denominada ao longodeste texto, na falta de uma expressão mais adequada, de"pedagogia revolucionária", não é outra coisa senão aquelapedagogia empenhada decididamente em colocar a educa~ção a serviço da referida transformação das relações de pro-dução.

PARA ALÉM DA RELAÇÃO AUTORITÁRIAOU DEMOCRÁTICA NA SALA DE AULA

Com o enunciado da terceira tese -'procurei "evidenciarcomo a Escola Nova, a despeito de considerar a pedagogiatradicional como intrinsecamente autoritária, proclamando-se,por seu lado, democrática e estimulando a livre iniciativa dosalunos, reforçou as desigualdades tendo, portanto, um efeitosocialmente antidemocrático.

Ora, assim como aquela terceira tese derivava direta-mente das duas anteriores de tal modo que, uma vez de-monstradas as duas primeiras a terceira ficava evidente,penso também que neste artigo, após a superação das anti-nomias' contidas nas duas teses iniciais, fica também supe-rada a antinomia própria da terceira tese. Assim, após asconsiderações anteriores resulta óbvio que, ao denunciar osefeitos socialmente antidemocráticos da Escola Nova, nempor isso est~va eu defendendo que a relação pedagógica no

interior da sala de aula.devesse assumir um caráter autor~tá-rio. Simplesmente importa reter que o critéri? para s~ afem ograu em que a prática pedagógica contribuI para a Instaura-ção de relações democráticas não é interno mas tem suasraízes para além da prática pedagógica propria~ente ~ita: .Sea educação é mediação, isto significa que ela nao.se JustIfIcapor si mesma mas tem sua razão de ser nos efeitos que seprolongam para além dela e que persistem mesmo ap?s acessação da ação pedagógica. Considerando-se, como.Já~êexplicitou, que, dado o caráter da educação como.medlaçaono seio da prática social global, a relação pedagógica tem naprática social o seu ponto de partida e seu ponto de ~hegada,resulta-inevitável concluir que o critério para se afem o graude democratização atingido no interior das escolas dev-e serbuscado na prática social. . '

Se é razoável supor que não se ensina democraciaatravés de práticas pedagógicas antidemocráticas, _ne~ porisso se deve inferir que a democratização das r~laç~es Inter-nas à escola é condição suficiente de democratlzaçao d.a~o-ciedade. Mais do que isso: se a democracia supõe condlçoesde igualdade entre os diferentes agentes sociais, como aprãtica pedagógica pode ser democrática já no ponto de p~r-tida? Com efeito, se, como procurei esclarecer, a educaçaosupõe a desigualdade no ponto de partida e a igualdade noponto de chegada, agir como se as cond~çõe~ d~,igualda_deestivessem instauradas desde o início nao slgmflca, entao,assumir uma atitude de fato pseudodemocrática? Não resul-ta, em suma, num engodo? Acrescente-se, ainda, que essamaneira de encarar o problema educacional acaba por des-naturar o próprio sentido do projeto pedagógico. Isto p?r.q~ese as condições de igualdade estão dadas desde o iniCIO,'então já não se põe a questão de sua realização no ponto dechegada. Com isto o processo educativo fica sem senti~o.Veja-se o paradoxo em que- desemboca a Escola Nova, acontradição interna que atravessa de ponta a ponta a suaproposta pedagógica: de tanto endeusar o processo, de tantovalorizá-lo em si e por si, acabou por transformá-lo em algo

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m(stico, uma entidade metaffsica, uma abstração esvaziadade conteúdo e sentido. Ora, com isso perdeu·se de vista queo processo jamais pode ser justificado por si mesmo. Ele ésempre algum tipo de passagem (de um ponto a ~utro); umacerta transformação (de algo em outra coisa). E, enfim, aprópria catarse (elaboração--transformação da estrutura emsuperestrutura na consciência dos homens).

Entendo, pois, que o processo educativo é passagemda desigualdade à igualdade. Portanto, só é possrvel consi-derar o processo educativo em seu conjunto como democrá-tico sob a condição de se distinguir a demvcracia como pos-sibilidade no ponto de partida e a democracia como realidadeno ponto de chegada. Conseqüentemente, aqui também valeo aforismo: democracia é uma conquista; não um dado. Esteponto, porém, é de fundamental importância. Com efeito, as-sim como a afirmação das condições de igualdade 'como umarealidade no ponto de partida torna inútil o processo educati-vo, também a negação dessas condições CQmouma possibi-lidadeno ponto de partida, inviabiliza o trabalho pedagógico.Isto pOrque, se eu não admito que a desigualdade é umaigualdade poss(vel, isto é, se não acredito que a desigualda-de pode ser convertida em igualdade pela mediação da edu-cação (obviamente não em termos isolados mas articu!adacom as demais modalidades que configuram a prática socialglobal), então, não vale a pena desencadear a ação pedag6-~ica. E neste ponto vale lembrar que, se para os alunos apercepção dessa possibilidade 'é sincrética, o professor devecompreendê-la em termos sintéticos. Isto porque o profes~ordeve antever com uma certa clareza a diferença entre oponto de partida e o ponto de chegada sem o que não serápossrvel organizar e implementar os procedimentos necessá-rios para se transformar a possibilidade em realidade. Diga-se de passagem que esta capaci~ade de antecipar mental-mente os resultados da ação é a nota distintiva da atividade'especificamente humana. Não sendo preenchida essa exi-gência cai-se no espontaneísmo. E a especificidade da açãoeducativa se esboroa.

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Em srntese, não se trata de optar entre relações auto-ritárias ou democráticas no interior da sala de aula mas dearticular o trabalho desenvolvido nas escolas com o proces-so de democratização da sociedade. E a prática pedagógicacontribui de modo especnico, isto é, propriamente pedagógico,para a democratização da sociedade na medida em que secompreende como se coloca a questão da democracia relati-vamente à natureza própria do trabalho pedagógico. Foi issoo que tentei indicar ao insistir em que a natureza da práticapedagógica implica uma desigualdade real e uma igualdadepossrvel. Conseqüentemente, uma relação pedagógica iden-tificada como supostamente autoritária quando vista pelo ân-gulo do seu ponto de partida pode ser, ao contrário, demo-crática, se analisada a partir do ponto de chegada, isto é,pelos efeitos que acarreta no âmbito da prática social global.Inversamente, uma relação pedagógica vista como democrá-tica pelo ângulo de seu ponto de partida não só poderá comotenderá, dada a própria natureza do fenôrTleno educativo nascondições em que vigora o modo de produção capitalista, aproduzir efeitos socialmente antidemocrãticos.

CONCLUSÃO: A CONTRIBUiÇÃO DO PROFESSOR

Como assinalei na introdução, o objetivo deste textoera prosseguir o debate iniciado em "Escola e democracia I -a teoria da curvatura da vara". Para isso lancei uma série deidéias que, obviamente, necessitam ser mais desenvolvidase detalhadas. Eventualmente, poderá ser o caso de que elasnecessitem ser retificadas. Dar a importância de que se dêprosseguimento ao debate.

Entretanto, penso não ser demais lembrar que o de-senvolvimento, o detalhamento e a eventual retificação dasidéias expostas passam pela sua confrontação com a práticapedagógica em curso na sociedade brasileira atual. Dar o in-teresse em que os professores as submetam a uma crfticaimpiedosa à luz da prática que desenvolvem. Com isso espe-ro também contribuir para que os professores revejam sua

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própria ação pedagógica auxiliados elou provocados pelasminh~s posições.

Evidentemente, a proposição pedagógica apresentadaaponta na direção de uma sociedade em que esteja· superadoo problema da divisão do saber. Entretanto, ela foi pensadapara ser implementada nas condições da sociedade brasilei~ra atual, onde predomina a divisão do saber. Entendo, pois,que um maior detalhamento dessa proposta implicaria a veri-ficação de como ela se aplica (ou não se aplica) às diferentesmodalidades de trabalho pedagógico em que se reparte aeducação nas condições brasileiras atuais. Exemplificando:um professor de história ou de matemática, de ciências ouestudos sociais, de comunicação e expressão ou de literatu·ra brasileira etc., têm cada um uma contribuição específica adar, em vista da democratização da sociedade brasileira, doatendimento aos interesses das camadas populares, datransformação estrutural da sociedade. Tal contribuição seconsubstancia na instrumentalização, isto é, nas ferramentasde caráter histórico, matemático, cientffico, literário etc., cujaapropriação o professor seja capaz de garantir aos alunos.Ora, em meu modo de entender, tal contribuição será tantomais eficaz quanto mais o professor for capaz de compreen-der os vínculos da sua prática com a prática social global.Assim, a instrumentalização se desenvolverá como decor-rência da problematização da prática social atingindo o mo-mento catártico que concorrerá a nível da especificidade damatemática, da literãtura etc., para alterar qualitativamente aprática de seus alunos enquanto agentes sociais. Insistoneste ponto porque via de regra tem-se a tendência a sedesvincular os conteúdos especfficos de cada disciplina dasfinalidades sociais mais amplas. Então, ou se pensa que oeconteúdos valem por si mesmos sem necessidade de refe-ri-los à prática social em que se inserem, ou se acredita queos conteúdos específicoS-não têm importânCia colocando-setodo o peso na luta política mais ampla. Com isso se dissolvea especificidade da contr'lbuição pedagógica anulando-se, emconseqüência, a sua importância política.

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ONZE TESESSOBRE EDUCAÇÃOE POLíTICA

Conclur o texto anterior sugerindo que a importânciapolftica da educação está condicionada à garantia de que aespecificidade da prática educativa não seja dissolvida.

A compreensão do que foi dito requer detimitar maisprecisamente: as relações entre polrtica e educação.]

De uns tempos para cá se tornou lugar comum a afir-mação de que a educação é sempre um ato polrtico. Mas oque significa essa- afirmação? Obviamente, trata-se de um"slogan" que tinha por objetivo combater a idéia anterior-mente dominante segundo a qual a educação era entendidacomo um fenômeno estritamente técnico-pedagógico, por-tanto, inteiramente-autônomo e independente da questão polí-tica. Nesse sentido o "slogan" cumpriu uma função cuja vali-dade se-inscreve nos limites da "teoria da curvatura da vara".Com efeito, se a vara havia sido curvada para o lado técnico-pedagógico, o referido "sbgan" forçou-a em direção ao pólopolllico. Com isto, entretanto, corre~se o risco de se identifi-car educação com polftlca, a prática pedagógica com a práti-ca política, dissolvendo-se, em conseqüência. a especificida-de do fenômeno educativo.

Cabe, pois, indagar: educação e política se equiva-lem, se identificam? Se são diferentes, em que consiste adiferença?

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Entendo que educação e polftica, embora inseparáveis,não são idênticas. Trata-se de práticas distintas, dotadas ca~da uma de especificidade própria.

Em que consiste a especificidade de cada uma dessaspráticas?

O problema de se determinar a especificidade da edu-cação coincide com o problema do desvendamento da natu-reza própria do fenômeno educativo. Trata-se de uma ques-tão nodal que vem ocupando o centro de minhas reflexõesnos últimos anos. Penso que é necessário enfrentá-la eacredito dispor já de algumas evidências que me indicam adireção por onde tal questão pode ser elucidada. Tal tarefaimplica, porém, um projeto mais ambicioso, impossível de serdesenvolvido a curto prazo. Neste texto pretendo apenasadiantar alguns elementos relativos à natureza da práticaeducativa por confronto com a especificidade da práticapollüca.

Uma análise, ainda que superficial, do fenômeno edu-cativo nos revela que, diferentemente da prática PÇ:lítica,a,.educação configura uma relação que se trava entre não-an-tagônicos. É pressuposto de toda e qualquer relação educa"tiva que o educador está a serviço dos interesses do edu-cando. Nenhuma prática educativa pode se instaurar semeste suposto. 1

Em se tratando da"poU'ticaocorre o inverso. A mais su-perficial das análises põe em evidência que a,r~lação políticase trava, fundamentalmente, entre a{ltagônicos' ..No jogo polí-tico se defrontam interesses e perspectivas mutuamente ex~cludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e nãoconvencer.

Inversamente, em educação o objetivo é convencer enão vencer. O educador, seja na famnia, na escola ou emqualquer outro lugar ou circunstância, acredita sempre estaragindo para o bem dos educandos. Os educandos, por suavez, também não vêem o educador comO adversário. Acre-ditam, antes, que o educador está af para ajUdá-los, parapossibilitar o seu desenvolvimento, para abrir-lhes perspecti-

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vas, iniciá-los em domrnios desconhecidos. Ainda quandotais caracterfsticas são negadas pelos fatos a nível de super-ffcie, elas permanecem como suporte, como a estrutura, co-mo o substrato que permite à relação manter-se enquantoeducativa. Assim, a rebeldia dos educandos tende a ser en-carada pelo educador como um desafio que lhe cumpre su~perar, conduzindo-os à percepção de que eles próprios sãoOS maiores prejudicados com tal comportamento. Já no planopolftico a rebeldia da classe dominada tende a ser interpreta-da pela classe dominante como rebelião e, como tal, reprimi-da pela força.

As diferenças acima assinaladas nos permitem enten-der por que, em polftica, seria ingenuidade acreditar que oadversário está na posição oposta porque está equivocado;porque não compreendeu o seu erro e a validade da propostacontrária, compreensão essa que, uma vez atingida, o levaráa aderir à proposta que atualmente combate. Por isso, via deregra, o fato de um partido perder uma batalha (eléições, pro~postas etc.) não o demove de sua posição; ao contrário, elepassa para a oposição e continua fustigando o partido contrá~rio buscando alterar a correlação de forças para, na oportuni-dade seguinte, reverter a situação. Em suma, ele pode servencido, mas não convencido.

Parece claro que em educação o comportamento é cla-ramente diferente do acima descrito. Um professor, porexemplo, acredita que, se ele fundamentar adequadamenteos assuntos em torno dos quais se trava sua relação com osCj;lunos;se ele os expuser de modo claro, se suas .posiçõesforem consistentes e os alunos chegarem ao entendimentode seu significado, eles tenderão a concordar com ele. Se is-so não ocorrer, é normal atribuir o desentendimento a umainsuficiente compreensão, a algum tipo de equívoco. Por issoé comum na relação pedagógica expressões do tipo: "se eunão estiver enganado ...", "se vocês me convencerem queestou errad.o..." etc., comportamento, no mínimo, inusitadonuma assembléia ou num palanque.

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Com as considerações anteriores espero ter esclare-cido a não-identidade e, em conseqüência, a distinção entrepolftica e educação. Trata-se, pois, de práticas diferentes,cada uma com suas características próprias. Cumpre, por-tanto, não confundi-Ias, o que redundaria em dissolver umana outra (a dissolução da educação na polrtica configuraria opoliticismo pedagógico do mesmo modo que a dissoluç~o dapolllica na educação implicaria o viés do pedag091smopolftico).

Entretanto, se se trata de práticas distintas isso nãosignifica que sejam inteiramente independentes, dotada~ deautonomia absoluta. Ao contrário, elas são inseparáveis emantêm íntima relação.

Como se configuram as relações entre educação e po-lítica?

Primeiramente é preciso considerar a existência deuma rel~ção interna, isto é, toda prática educativa, enqua~total, possui uma dimensão polftica assim como toda práticapolítica possui, em si mesma, uma dimensão educativa.

A dimensão polftica da educação consiste em que, diri-gindo-se aos não-antagônicos a educação os fortalece (ouenfraquece) por referência aos antagônicos e desse modopotencializa (ou despotencializa) a sua prática política. E adimensão educativa da polrtica consiste em que, tendo comoalvo os antagônicos, a prática polrtica se fortalece (ou enfra-quece) na medida em que, pela sua capacidade de luta elaconvence -os não-antagônicos de sua validade (ou não-vali-dade) levando-os a se engajarem (ou não) na mesma luta.

A dimensão pedag6gica da polftica envolve, pois, a ar-ticulação, a aliança entre os não-antagônicos visando à der-rota dos antagônicos. E a dimensão polrtica da educação en-volve, por sua vez, a apropriação dos instrumentos culturais

_ que serão acionados na luta contra os antagônicos.Em segundo lugar cabe considerar que existe também

uma relação externa entre educação e política, isto é, o de-senvolvimento da prática especificamente polftica pode abrirnovas perspectivas para o desenvolvimento da prática espe-

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cificamente educativa e vice-versa. Configura-se, aí, umadependência recfproca: a educação depende da polftica noque diz respeito a determinadas condições objetivas como adefinição de prioridades orçamentárias que se reflete naconstituição-consolidação-expansão da infra-estrutura dosserviços educacionais etc.; e a polftica depende da educaçãono que diz respeito a certas condições subjetivas como aaquisição de determinados elementos bãsicos que possibili-tem o acesso à informação, a difusão das propostas políti-cas, a formação de quadros para os partidos e organizaçõespolrticas de diferentes tipos etc.

Por fim, é de fundamental importância levar em contaque as relações entre educação e política cuja des.crição es-bocei acima em nrvel conceitual, têm existência histórica; lo-go, s6 podem ser adequadamente compreendidas enquantomanifestações sociais determinadas. E aqui se evidencia,por um outro ângulo, a inseparabilidade entre educação e po-lítica. Com efeito, trata-se de práticas distintas, mas que aomesmo tempo não são outra coisa senão modalidades espe-cíficas de uma mesma prática: a prática social. Integram as-sim, um mesmo conjunto, uma mesma totalidade.

Ora, em sua existência histórica nas condições atuais,educação e política devem ser entendidas como manifesta-ções da prática social própria da sociedade de classes. Tra-ta-se, pois, de uma sociedade cindida, dividida em interessesantagônicos. Está ar a raiz do primado da polrtica. Com efeito,já que a relação polftica se trava fundamentalmente entreantagônicos, nas sociedades de classes ela é erigida emprática social fundamental.

Percebe-se por af que a autonomia relativa da educa-ção em face da polftica e vice~versa, assim como a depen-dência recíproca anteriormente referidas não têm um mesmopeso, não são equivalentes. Em outros termos: se se trata dedependência recfproca, é preciso levar em conta que o graude dependência da educação em relação à polftica é maior doque o desta em relação àquela. Poderfamos, pois, dizer queexiste uma subordinação relativa mas real da educação

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diante da política. Trata-se, porém, de uma subordinaçãohistórica e, como tal, não somente pode como devesersupe-rada.lsto porque se as condições de exercício da práticapolí-tica estão inscritas na essência da sociedade capitalista, ascondições de exercício da prática educativa estão inscritasna essência da realidade humana, mas são negadas pela so-ciedade capitalista não podendo se realizar aísenão de formasubordinada, secundária. Por aí, penso, se pode entender o"realismo" da política eo "idealismo" da educação. Com efei-to, acreditar que estão dadas, nesta sociedade, ascondiçõespara o exercício pleno da prática educativa éassumir umaati-tude idealista. Entretanto, em relação às condições da práti-ca política tal atitude resultarealista.

As reflexões supra estão em consonância com a posi-ção segundo a qual a superação da sociedade de classesconduz ao desaparecimento do Estado. Sabe-se que não setrata de destruir o Estado; ele simplesmente desaparecerápor não ser mais necessário. Ora, o que significa isso senão aafirmação de que cessou o primado da política?

Essa questão fica ainda mais clara na formulação deGramsci. Sabemos que Gramsci alargou o conceito de Esta-do incluindo aí além da sociedade política (aspecto coerciti-vo) a sociedade civil (aspecto persuasivo). Nessa perspecti-va o Estado não desaparece, mas é identificado com a socie-dade civil, aqual absorve asociedade política. Querdizer, su-perada a sociedade de classes, chegado o momento históri-co em que prevalecem os interesses comuns, a dominaçãocede lugar à hegemonia, a coerção à persuasãQ, a repressãose desfaz, prevalecendo acompreensão. Aí, sim, estarão da-das historicamente as condições para o pleno exercício daprática educativa.

Falei antes em exercício pleno da prática educativacomo algo só possível num tipo de sociedade que se delineiano horizonte de possibilidades das condições atuais masque não chegou ainda a se concretizar. Isto porque a plenitu-de da educação como, no limite, a plenitude humana, estácondicionada à superação dos antagonismos sociais.

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Ora, ser idealista em educação significa justamenteagir como se esse tipo de sociedade já fosse realidade. Serrealista, inversamente, significa reconhecê-Ia como um idealque buscamos atingir.

No processo histórico que implica o desenvolvimento etransformação da sociedade, isto é, a substituição de deter-minadas formas por outras, educação e polftica se articulamcumprindo, entretanto, cada uma funções espedficas e in-confund(veis. Porque é uma relação que se trava fundamen-talmente entre antagônicos, a polftlca supõe a divisão da so-ciedade em partes inconciliáveis. Por isso a prática polftlcanão pode não ser partidária. Em contrapartida, a educação,sendo uma relação que se trava fundamentalmente entrenão-antagônicos, supõe a união e tende a se situar na pers-pectiva da universalidade. Por isso ela não pode ser parti-dária.

Em outras termos: a prática polrtica se apóia na verda-de do poder; a prática educativa no poder da verdade. Ora, averdade (o conhecimento), nós sabemos, não é desinteres·sada. Mas nós sabemos também que, numa sociedade divi-dida em classes, a classe dominante não tem interesse namanifestação da verdade já que isto colocaria em evidência adominação que exerce sobre as outras classes. Já a classedominada tem todo interesse em que a verdade se manifesteporque isso só viria patentear a exploração a que é submeti-da, instando-a a se engajar na luta de libertação.

Eis ar o sentido da frase "a verdade é sempre revolu-cionária". Eis aí também por que a classe efetivamente capazde exercer a função educativa em cada etapa histórica éaquela que está na vanguarda, a classe historicamente re-volucionária. Daí, o caráter progressista da educação. É esteo sentido da afirmação de Gramsci segundo a qual" a bur-

- guesia não consegue educar os seus jovens", os quais sedeixam atrair culturalmente pelos operários; "os jovens (...)da dasse dirigente (...) se rebelam e passam para a classeprogressista, que se tornou historicamente capaz de tomar o

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poder". (A. Gramsci, Os intelectuais e a organização da cu/~tura, p. 52).

De ludo o que foi dito conclui-se que a importância polf~lica da educação reside na sua função de socialização doconhecimento. É, pois. realizando-se na especificidade quelhe é própria que a educação cumpre sua função polftica. Daíter eu afirmado que ao se dissolver a especificidade da con-tribuição pedagógica anula-se, em conseqüência, a sua im·portância política.

As reflexões expostas podem ser ordenadas e sinteti-zadas através das teses seguintes:

Tese 1: Não existe identidade entre educação e política.

COROLÁRIO: educação e política são fenômenos insepará-veis, porém efetivamente distintos entre si.

Tese 2: Toda prática educativa contém inevitavelmente umadimensão política.

Tese 3: Toda prática política contém, por sua vez, inevita-velmente uma dimensão educativa.

085: As teses 2 e 3 decorrem necessariamente da insepa-rabilidade entre educação e política afirmada no corolá-rio da tese 1.

Tese 4: A explicitação da dimensão política da prática educa-tiva está condicionada à explicitação da especificidadeda prática educativa.

Tese 5: A explicitação da dimensão educativa da prática polí-tica está, por sua vez, condicionada à explicitação daespecificidade da prática política.

08S: As teses 4 e 5 decorrem necessariamente da efetivadistinção entre educação e política afirmada no corolá-

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rio da tese 1. Com efeito, 56 é possível captar a dimen-são política da prática educativa e vice-versa na medi-da em que essas práticas forem captadas como efeti-vamente distintas uma da outra.

Tase 6: A especificidade da prática educativa se define pelocaráter de uma relação que se trava entre contráriosnão-antagônicos.

COROLÁRIO: a educação é, assim, uma relação de hege·monia alicerçada, pois, na persuasão (consenso, com-preensão).

Tese 7: A especificidade da prática política sê define pelo ca-ráter de uma relação que se trava entre contrários an-tagônicos.

COROLÁRIO: a polrtica é, então, uma relação de dominaçãoalicerçada, pois, na dissuasão (dissenso, repressão).

Tese 8: As relações entre educação e política se dão na for-ma de autonomia relativa e dependência recfproca.

Tese 9: As sociedades de classe se caracterizam pelo pri-mado da política, o que determina a subordinação realda educação à prática polrtica.

Tese 10: Superada a sociedade de classes, cessa o primadoda política e, em conseqüência, a subordinação daeducação.

08S: Nas sociedades de classes a subordinação real daeducação reduz sua margem de autonomia mas não aexclui. As teses 9 e 10 apontam para as variaçõeshistóricas das formas de realização da tese 8.