as teorias da educação e o problema da marginalidade - dermeval saviani

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  • 5/17/2018 As teorias da educao e o problema da marginalidade - Dermeval Saviani

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    AS TEORIAS DA EDUCACAo E 0 PROBLEMA DA

    1.0 PROBLEMA:De acordo com estimativas relativas a 1970, "cer-

    ca de 50% dos alunos das escolas primaries desertavamem condlcdes de semianalfabetismo ou de analfabetismopotencial na maioria dos pafses da America Latina" (Te-desco, 1981, pag. 67).lsto sem se levar em conta 0 con-tingente de eriancas em idade escolar que sequer ternacesso a escola e que, portanto, ja se encontram "a prio-ri" marginalizadas dela.o simples dado acima indicado lanca de imediatoem nossos rostos a realidade da marginalidade relativa-mente ao fenorneno da escolarizacao. Como interpretaresse dado? Como explica-lo? Como as teorias da educa-I;ao se posicionam diante dessa sltuacso?

    Grosso modo, podemos dizer que, no que diz res-peito a questao da marginalidade, as teorias educacionaispodem ser classificadas em dois grupos.Num primeiro grupo, temos aquelas teorias que en-

    tendem ser a educacso um instrumento de equalizacaosocial, portanto, de superacao da marginalidade.

    Num segundo grupo, estao as teorias que enten-dem ser a educal;ao um instrumento de dtscriminacaosocial, logo, um fator de marqinalizacdo.

    Ora, percebe-se facilmente que ambos os gruposexplicam a questao da marginalidade a partir de determi-nada maneira de entender as relacoes entre educacao esociedade. Assim, para 0 primeiro grupo a sociedade econcebida como essencialmente harmoniosa, tendendo aintegral;ao de seus membros. A marginalidade e, pois, umfenorneno acidental que afeta individualmente a um nu-mere maior ou menor de seus membros 0 que, no entan-to, constitui um desvio, uma distorcso que nao s6 podecomo deve ser corrigida. A educacao emerge af, comoum instrumento de correcao dessas distorcdes. Constitui,pols, uma forca homogeneizadora que tem por func;:aoreforcar os laces socia is, promover a coesao e garantir aintegral;ao de todos os indivfduos no corpo social. Suafunl;ao coincide, pols, no limite, com a superacso dofenorneno da marginalidade. Enquanto esta ainda existe,devem se intensificar os esforcos educativos; quando forsuperada, cumpre manter os services educativos num n(-vel pelo rnenos suficiente para impedir 0 reaparecimentodo problema da marginalidade. Como se ve, no que res-peita as relacdes entre edueacao e sociedade, concebe-se

    *Oa PontiHcia Universidade Cat61ica de Sao Paulo - BRASI L

    8

    ,..Dermeva l S av ia n i *

    a educacso com uma ampla margem de autonomia emface da sociedade. Tanto que Ihe cabe um papel decisivona conformaeao da sociedade evitando sua desagregac;:aoe, mais do que isso, garantindo a construcao de uma 50-ciedade iqualitaria,

    Ja 0 segundo grupo de teorias concebe a sociedadecomo sendo essencialmente marcadapela divisao entregrupos ou classes antaqonicos que se relacionam a baseda torca, a qual se manifesta fundamental mente nas con-dic;:oes de producso da vida material. Nesse quadro, amarginalidade e entendida como um tenorneno inerentea propria estrutura da sociedade. Isto porque 0grupo ouclasse que detem maior torca se converte em dominantese apropriando dos resultados da producso social tenden-do, em consequencia, a relegar os demais a condlcso demarginalizados. Nesse contexte, a educacao e entendidacomo inteiramente dependente da estrutura social gera-dora de marginalidade, cumprindo af a func;:aode refor-car a dominacso e legitimar a marqinalizacao. Nesse sen-tido. a educacao, longe de ser um instrumento de supera-c;:aoda marginalidade, seconverte num fator de margina-lizal;ao ja que sua forma especffica dereproduzir a mar-ginalidade social e a producao da marginalidade culturale, especificamente, escolar.

    Tomando como criterlo decriticidade a percepcsodos condicionantes objetivos, denominarei as teorias doprimeiro grupo de "teorias nao-crfticas" ja que encarama educacao como- autonorna e buscam compreende-la apartir dela mesma. Inversamente, aquelas do segundogrupo sao cr iticas uma vez que se empenham em com-preender a educacao remetendo-a sempre a seus condi-cionantes objetivos, isto e, aos deterrninantes socias, valedizer, a estrutura socio-economica que condiciona a for-ma de marufestacso do tenomeno educative. Como, po-rem, entendem que a func;:aobasica da educacse e a re-produc;:ao da sociedade, serao por mim denominadas de"teorias cr Itico-reprodutivistas".

    2. ASTEORIASNAO-CRfnCAS2.1. A pedagogia tradicional

    A constituicso dos cham ados "sistemas nacionaisde ensino" data de infcios do seculo passado. Sua or-ganizac;:ao inspirou-se no principia de que a educacao edireito de todos e dever do Estado. 0direito de todos aeducacao decorria do tipo de sociedade correspondenteaos interesses da nova classe que se consolidara no poder:

    Cad. Pesq. Sao Paulo (42):8-18, Agosto 1982

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    MARG INALIDADE NA AMER ICA LAT INA

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    a burguesia. Tratava-se, pols, de construir uma sociedadedernocratica, de consolidar a democracia burguesa. Parasuperar a situacso de opressao, propria do "Antigo Re-gime", e ascender a um tipo de sociedade fundada nocontrato social celebrado "Iivremente" entre os indivi-duos, era necessario vencer a barreira da ignorancia. Soassim seria possivel transformar os suditos em cidadaos,isto e, em individuos livres porque esclarecidos, ilustra-dos Como realizar essa tarefa? Atraves do ensino. Aescola e erigida, pols, no grande instrumento para con-verter os suditos em cidadaos, "redimindo os homens deseu duplo pecado hlstorico: a iqnorancia, miseria moral ea opressso, rniseria polftica" (Zanotti, 1972, pp. 22-23).Nesse quadro, a causa da marginalidade e identifi-cada com a iqnorancia. ~ marginalizado da nova socieda-de quem nao e esclarecido. A escola surge como um anti-doto a iqnorancia, logo, um instrumento para equacionaro problema da marginalidade. Seu papel e difundir a ins-trucso, transmitir os conhecimentos acumulados pelahumanidade e sistematizados logicamente. 0 rnestre-escola sera 0 artifice dessa grande obra. A escola se orga-niza, pols, como uma agencia centrada no professor, 0qual transmite, segundo uma grada

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    mentos pedagogicos para 0 conjunto do sistema escolar.Nota-se, entao, uma espeeie de bio-psicologizac;:ao dasociedade, da educacso e da escola. Ao conceito de"anormalidade bioloqica" construfdo a partir da consta-tac;:ao de deficienclas neuro-fisiol6gicas se acrescenta 0conceito de "anormalidade psfquica" detectada atrevesdos testes de lnteliqencta, de personalidade, etc., quecornecarn a se multiplicar. Forja-se, entao, uma pedago-gia que advoga um tratamento diferencial a partir da"descoberta" das diferenc;:as individuais. Eis a "grandedescoberta": os homens sao essencialmente diferentes;nao se repetem; cada lndlvlduo e unico. Portanto, a mar-ginalidade nao pode ser explicada pelas diferenc;:as entreos homens, quaisquer que elas sejam: nao apenas diferen-cas de cor, de raca, de credo ou de classe, 0 que ja eradefendido pela pedagogia tradicional; mas tambem dife-rencas no domlnio do conhecimento, na partlclpacso dosaber, no desempenho cognitivo. Margin~lizados sao os"anorrnais", isto e, os desajustados e desadaptados detodos os matizes. Mas a "anormalidade" nao e algo, emsi, negativo; ela e , simplesmente, uma diferenc;:a.Portan-to, podemos concluir, ainda que isto soe paradoxal, quea anormalidade e um fenorneno normal. Nao e, pols, su-ficiente para caracterizar a marginalidade. Esta esta mar-cada pela desadaptacao ou desajustamento, fenomenosassociados ao sentimento de rejeic;:ao. A educacao, en-quanto fator de equalizacao social sera, pols, um instru-mento de correcso da marginalidade na medida em quecurnprir a func;:aode ajustar, de adaptar os indivfduos lisociedade, incutindo neles 0sentimento de aceitac;:aodosdemais e pelos demais. Portanto, a educacso sera um ins-trumento de correcso da marginalidade na medida emque contribuir para a constltulcfo de uma sociedade cu-jos membros, nao importam as diferenc;:as de quaisquertipos, se aceitem mutuamente e se respeitem na sua indi-vidualidade especffica.

    Compreende-se, entao, que essa maneira de enten-der a educacao, por referencia a pedagogia tradicionaltenha deslocado 0eixo da questso pedaqoqica do intelec-to para 0 sentimento; do aspecto logico para 0 psicolo-gico; dos conteudos cognitivos para os metodos ou pro-cessos pedag6gicos; do professor para 0 aluno; do esfor-co para 0 interesse; da disciplina para a espontaneidade,do diretivismo para 0 nao-diretivismo; da quanti dadepara a qualidade; de uma pedagogia de inspirac;:aofiloso-fica centrada na ciencla da logica para uma pedagogia deinspiracao experimental baseada principal mente nas con-tribuic;:oe~da biologia e da psicologia. Em suma, trata-sede uma teoria pedaqoqica que considera que 0 importan-te nao e aprender, mas aprender a aprender.Para funcionar de acordo com a concepcso acimaexposta, obviamente a organizac;:ao escolar teria quepassar por uma senslvel reformulacdo. Assim, em lugarde classes confiadas a professores que dominavam asgrandes areas do conhecimento revelando-se capazes decolocar os alunos em contato com os grandes textos queeram tomados como modelos a serem imitados e pro-gressivamente assimilados pelos alunos, a escola deveriaagrupar os alunos segundo areas de interesses decorrentesde sua atividade livre. 0 professor agiria como um esti-mulador e orientador da aprendizagem cuja iniciativaprincipal caberia aos proprios alunos. Tal aprendizagem10

    seria uma oeeorrencla espontanea do ambiente estimu-lante e da relac;:aoviva que se estabeleceria entre os alu-nos e entre estes e 0professor. Para tanto, cada professorteria de trabalhar com pequenos grupos de alunos, semo que a relac;:aointer-pessoal, essencia da atividade edu-cativa, ficaria dificultada; e num ambiente estimulante,portanto, dotado de materia is didaticos ricos, bibliotecade classe, etc. Em suma, a feic;:aodas escolas mudaria seuaspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de paredesopacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhen-to e multicolorido.o tipo de escola acima descrito nao conseguiu,entretanto, alterar significativamente 0 panorama orga-nizacional dos sistemas escolares. Isto porque, alern deoutras razdes, implicava em custos bem mais elevados doque a escola tradicional. Com isto, a "Escola Nova" orga-nizou-se basicamente na forma de escolas experimentaisou como nucleos raros, muito bem equipados e circuns-critos a pequenos grupos de elite. No entanto, 0 idearioescolanovista, tendo side amplamente difundido, pene-trou nas cabecas dos educadores acabando por gerar con-sequencias tambern nas amplas redes escolares oficiaisorganizadas na forma tradicional. Cum pre assinalar quetais consequenclas foram mais negativas que positivasuma vez que, provocando 0 afrouxamentcsda disciplinae a despreocupacao com a transrnissao . conhecimen-tos, acabou por rebaixar 0 nlvel do ensino 'destinado ascamadas populares as quais muito frequenternente ternna escola 0unlco meio de acesso ao conhecimento elabo-rado. Em contrapartida, a "Eseola Nova" aprimorou aqualidade do ensino destinados as elites.Ve-se, pois, que paradoxalmente, em lugar de re-solver 0 problema da marginalidade, a "Escola Nova" 0agravou. Com efeito, ao enfatizar a "qualidade do ensi-no", ela deslocou 0 eixo de preocupacao do ambito po-litico (relativo a sociedade em seu conjunto) para 0ambito tecnico-pedaqoqico (relativo ao interior da esco-la). cumprindo ao mesmo tempo uma dupla func;:ao:man-ter a expansao da escola em limites suportaveis pelos in-teresses dominantes e desenvolver um tipo de ensino ade-quado a esses interesses. ~ a esse fenorneno que denomi-lnei de "mecanismo de recomposicso da hegemonia da i./classe dominante" (Saviani, 1980) e que explicitei me-Ihor em outro texto (Saviani, 1981).Cabe assinalar que 0 papel da "Escola Nova" aci-ma descrito se manifestou mais nitidamente no caso daAmerica Latina. Em verdade, na maioria dos parses dessaregiao os sistemas de ensino cornecararn a assumir feic;:aomais nltida ja no seculo atual, quando 0 escolanovismoestava largamente disseminado na Europa e principal-mente nos Estados Unidos, nao deixando, em consequen-cia, de influenciar 0 pensamento pedaqoqico latino-ame-ricano. Portanto, a disseminacdo das escolas efetuada se-gundo os moldes tradicionais nao deixou de ser de algu-ma forma perturbada pela propaqacao do ideario dapedagogia nova, ja que esse ideario ao mesmo tempo queprocurava evidenciar as "deficiencias" da escola tradicio-nal, dava forca a ideia segundo a qual e melhor uma boaescola para poucos do que uma escola deficiente paramuitos.

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    Cad. Pesq. (42) Agosto 1982

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    2.3. Apedagogia tecnicista

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    Ao findar a primeira meta de do seculo atual, 0 es-colanovismo apresentava sinais vislveis de exaustao, Asesperancas depositadas na reforma da escola resultaramfrustradas. Urn sentimento de desilusao comec;:ava a sealastrar nos meios educacionais. A pedagogia nova, aomesmo tempo que se tornava dominante enquanto con-cepc;:aoteorica a tal ponto que se tornou senso comum 0entendimento segundo 0 qual a pedagogia nova e porta-dora de todas as virtudes e de nenhum vfcio, ao passeque a pedagogia tradicional e portadora de todos os V I-cios e de nenhuma virtude, na pratica se revelou ineficazem face da questao da marginalidade. Assim, de urn ladesurgiam tentativas de desenvolver uma especie de "Esco-\Ia Nova Popular", cujos exemplos mais significativos saoas pedagogias de Freinet e de Paulo Freire; de outrolado, radicalizava-se a preocupacso com os metodos pe-dag6gicos presente no escolanovismo que acaba por de-sembocar na eficiencia instrumental. Articula-se aqui urnuma nova teoria educacional: a pedagogia tecnicista.

    A partir do pressuposto da neutralidade cientfficae inspirada nos princlpios de racionalidade, eficiencia eprodutividade, essa pedagogia advoga a reordenacao doprocesso educativo de maneira a torna-lo objetivo e ope-racional. De modo semelhante ao que ocorreu no traba-Iho fabril, pretende-se a objetivacao do trabalho pedaqo-gico. Com efeito, se no artesanato 0 trabalho era subjeti-vo, isto e, os instrumentos de trabalho eram dispostosem func;:aodo trabalhador e este dispunha deles segundoseus deslgnios, na producao fabril essa relacso e inverti-da. Aqui e 0 trabalhador que deve se adaptar ao processode trabalho, ja que este foi objetivado e organizado naforma parcelada. Nessas condicoes, 0 trabalhador ocupaseu posto na linha de montagem e executa determinadaparcela do trabalho necessario para produzir determina-dos objetos. 0 produto e. pols, uma decorrencia daforma como e organizado 0 processo. 0 concurso dasac;:6esde diferentes sujeitos produz assim urn resultadocom 0 qual nenhum dos sujeitos se identifica e que, aocontra rio, Ihes e estranho.o fenorneno acima mencionado nos ajuda a enten-der a tendencia que se esboc;:oucom 0 advento daquiloque estou chamando de "pedagogia tecnicista". Buscou-se planejar a educacao de modo a dota-la de uma orga-nizacao racional capaz de minimizar as interferenciassubjetivas que pudessem por em risco sua eficiencia.Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelomenos em certos aspectos, mecanizar 0 processo. Dal, aproliferaceo de propostas pedaqoqicas tais como 0 enfo-que sisternico, 0 micro-ensino, 0 tele-ensino, a instrucsoprogramada, as rnaquinas de ensinar, etc .. Dal, tarnbern.o parcelamento do trabalho pedaqoqico com a especiali-zac;:aode funcoes, postulando-se a introducao no sistemade ensino de tecnicos dos mais diferentes matizes. Dal,enfim, a padronizacdo do sitema de ensino a partir deesquemas de planejamento previamente formulados aosquais devem se ajustar as diferentes modalidades de dis-ciplinas e praticas pedagogicas.

    Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia aoprofessor que era, ao mesmo tempo, 0 sujeito do proces-so, 0 elemento decisivo e decisorio: se na pedagogia nova

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    a iniciativa desloca-se para 0 aluno, situando-se 0 nervoda ac;:aoeducativa na relac;:aoprofessor-aluno, portanto,relac;:aointer-pessoal, inter-subjetiva - na pedagogia tec-nicista, 0 elemento principal passa a ser a organizac;:aoracional dos meios, ocupando professor e aluno posic;:aoseeundaria, relegados que sao a condlceo de executoresde urn processo cuja concepcso, planejamento, coorde-nacao e controle ficam a cargo de especialistas suposta-mente habilitados, neutros, objetivos, imparciais. A orga- \nizacao do processo converte-se na garantia da eficiencia, !compensando e corrigindo as deficiencies do professor emaximizando os efeitos de sua lntervencso.Cumpre notar que, embora a pedagogia nova tam-bern de grande irnportancia aos meios, ha, porern, umadiferenc;:a fundamental: enquanto na pedagogia nova osmeios sao dispostos e estao a dlsposicao da relac;:aopro-fessor-aluno, estando, pols, a servic;:odessa relacso, napedagogia tecnicista a situacao se inverte. Enquantona pedagogia nova sao os professores e alunos que deci-dem se utilizam ou nao determinados meios, bern comoquando e como 0 farao, na pedagogia tecnicista dir-se-iaque e 0 processo que define 0 que professores e alunosdevem fazer, e assim tarnbsrn quando e como 0 farao.Compreende-se, entao, que para a pedagogia tecni-cista a marginalidade nao sera identificada com a igno-rancia nem sera detectada a partir do sentimento de re-jeic;:ao. Marginaliza~oseraoincompetente (no sentid()tecnicocfa~pala;'raL fsto e: 0 ineficiente e improdutivo. Aeducac;:aoestara contribuindo para superar 0 problemada marginalidade na medida em que formar indivlduoseficientes, portanto, capazes de darem sua parcela decontribuicao para 0 aumento da produtividade da so-ciedade. Assim, estara ela cumprindo sua func;:ao deequalizacao social. Nesse contexte teorico, a equaliza-c;:aosocial e identificada com 0 equillbrio do sistema (nosentido do enfoque sistemicol. A marginalidade, isto e,a ineficiencia e improdutividade se constitui numa amea-ca 11estabilidade do sistema. Como 0 sistema comportamultiples funcoes, as quais correspondem determinadasocupacoes: como essas diferentes funcoes sao interde-pendentes, de tal modo que a ineficiencia no desempe-nho de uma delas afeta as demais e, em consequencia,todo 0 sistema - cabe a educacao proporcionar urn efi-ciente treinamento para a execucso das rnultiplas tarefasdemandadas continuamente pelo sistema social. A edu-cacao sera concebida, pois, como urn sub-sistema, cujofuncionamento eficiente e essencial ao equillbrio do sis-tema social de que faz parte. Sua base de sustentacsoteorica desloca-se para a psicologia behaviorista, a enge-nharia comportamental, a ergonomia, informatica, ciber-netica, que tern em comum a inspirac;:aof ilos6fica neo-positivista e 0 metoda funcionalista. Do ponto de vistapedaqoqico conclui-se, pols, que se para a pedagogia tra-dicional a questso central e aprender e para a pedagogianova aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista 0que importa e aprender a fazer. ~.--

    A teorlapecfag~6gIca acima exposta correspondeuma reorqanizacso das escolas que passam por urn cres-cente processo de burocratlzacso. Com efeito, acredita-va-se que 0 processo se racionalizava na medida em quese agisse planificadamente. Para tanto, era mister baixarinstrucoes minuciosas de como proceder com vistas a

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    que os diferentes agentes cumprissem cada qual as tare-fas especificas acometidas a cada um no amplo espectroem que se fragmentou 0ate pedag6gico. 0controle seriafeito basicamente atraves do preenchimento de formula-rios. 0 meqisterio passou entao a ser submetido a um pe-sado e sufocante ritual, com resultados visivelmente ne-qativos, Na verdade, a pedagogia tecnicista, ao ensaiartranspor para a escola a forma de funcionamento do sis-tema fabril, perdeu de vista a especificidade da educacao,ignorando que a ertlculacso entre escola e processo pro-dutivo se da de modo indireto e atraves de complexasmediacoes. Alern do mais, na pratica educativa, a orien-tacso tecnicista se cruzou com as condlcoes tradicionaispredominantes nas escolas bem como com a influenciada pedagogia nova que exerceu poderoso atrativo sobreos educadores. Nessas condlcoes, a pedagogia tecnicistaacabou por contribuir para aumentar 0 caos no campoeducativo gerando tal nivel de descontinuidade, de hete-rogeneidade e de fraqrnentacso. que praticamente invia-biliza 0 trabalho pedaqoqico. Com isto 0 problema damarginalidade so tendeu a se agravar: 0 conteudo do en-sino tornou-se ainda mais rarefeito e a relativa ampltacaodas vagas se tornou irrelevante em face dos altos indicesde evasfio e repetencia.

    A situacso acima descrita afetou particularmente aAmerica Latina ja que desviou das atividades-fim para asatividades-meio parcela consideravel dos recursos sabida-mente escassos destinados a educacao. Por outro lado sa-be-se que boa parte dos program as internacionais de im-plantacdo de tecnologias de ensino nesses palses tinhampor detras outros interesses como, por exemplo, a vendade artefatos tecnol6gicos obsoletos aos paises sub-desen-volvidos (Cf. Mattelart, 1976 e s/d.),

    3. AS TEORIAS CRITICO-REPRODUTIVISTASComo ja assinalei, 0 primeiro grupo de teorias con-cebe a marginalidade como um desvio, tendo a educacao

    por func;:ao a correcso desse desvio. Amarginalidade evista como um problema social e a educac;:ao, que dispoed e autonornla em relacso a sociedade, estaria, por estarazao, capacitada a intervir eficazmente na sociedade,transforrnando-a, tornando-a melhor, corrigindo as in-justic;:as; em suma, promovendo a equatizacfo social.Essas teorias consideram, pols, apenas a ac;:aoda educa-c;:aosobre a sociedade. Porque desconhecem as determi-nac;:oessocia is do fenorneno educativo eu as denomineide "teorias nao-crfticas". Inversamente, as teorias do se-gundo grupo - que passarei a examinar - sao crfticas,uma vez que postulam nao ser possivel compreender a 7educacso senao a partir dos seus condicionantes sociais. ~Ha, pols, nessas teorias uma cabal percepcso da depen->dencia da educacso em relac;:aoa sociedade. Entretanto,como na analise que desenvolvem chegam invariavel-mente a conclusao de que a func;:aopropria da educacaoconsiste na reproducao da sociedade em que ela se inse-re, bem merecem a denorninacso de "teorias crftico-re-produtivistas". Tais teorias contam com um razoavel nu-mero de representantes e se manifestam em diferentesversoes. Ha, por exemplo, os chamados "radicals ameri-canos" cujos principais representantes sao Bowles e Gin-

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    tis, atraves do livro "Schooling in Capitalist America"(1976) que podem ser classificados nesse grupo de teo-rias. Tais autores consideram que a escola tinha, nas ori-gens, uma func;:ao equalizadora. Entretanto, atualmenteela se torna cada vez mais discriminadora e repressiva.Todas as reformas escolares fracassaram, tornando cadavez mais evidente 0 papel que a escola desempenha: re-produzir a sociedade de classes e reforc;:ar 0 modo deproducso capitalista.

    Em que pesem as diferentes rnanifestacoes, consi-dero que, no ambito desse grupo, as teorias que maiorrepercussso tiveram e que alcanc;:aramum maior nfvel deelaboracso sao as seguintes:

    - .a) "teo ria do sistema de ensino enquanto violenciasimb6lica";b) "teoria da escola enquanto Aparelho ideoloqicode Estado (AlE)";c) "teoria da escola dualista",A seguir comentarei brevemente cada uma delas.

    3.1. Teoria do sistema de ensino enquanto violenciasimb61icaEsta teoria esta desenvolvida na obra "A Reprodu-

    c;:ao:elementos para uma teoria do sistema de enslno",de P. Bourdieu e J.C. Passeron (1975). A obra e consti-tufda de dois livros. No Livro I, fundamentos de umateoria da violencia simb6lica, a teoria e sistematizadanum corpo de proposicoes logicamente articuladassegundo um esquema anal itico-dedutivo. 0 Livro II ex-poe os resultados de uma pesquisa empfrica levada a ca-bo pelos autores no sistema escolar frances em um deseus segmentos, qual seja, a Faculdade de Letras. Comoas analises do Livro II podem ser consideradas como apli-cacoes a um caso historicamente determinado dos prlncf-pios gerais enunciados no Livro I, ainda que tenham ser-vido, ao mesmo tempo, como ponto de partida para aconstrucso dos princfplos do Livro I, minha exposicaose llmitara ao conteudo do Livro I.o arcabouc;:o do Livro I constitui, mais do que umasociologia da educecso. uma socio-loqica da educacso,Isto porque nao se trata de uma analise da educacaocomo fato social, mas da explicitacao das condic;:6es16gi-cas de possibilidade-det()da equalquer educacdo paraiodae qualquer sociedade de toda e qualquer epoca oulugar. Trata-se de uma teoria axiornatica que se desdobradedutivamente dos princfpios universais para os enuncia-dos analfticos de suas consequencias particulares. Porisso, cada grupo de proposicdes comec;:asempre por umenunciado universal (todo poder de violencia simb6li-ca ... , toda ac;:aopedagogica ... , etc.) e termina por umaaplicaceo particular, expressa atraves da f6rmula "umaformac;:ao social determinada ...", Por outro lado, no in-tuito de preservar a validade universal da teoria, os auto-res tem 0 cuidado de utilizar sempre a expressso "gruposou classes", jamais se referindo apenas as classes simples-mente; 0 que indica que a validade da teoria nao preten-de se circunscrever apenas as sociedades de classes mas-seestende tarnbern associedades sem classes .queporventu-ra ten ham existido ou venham a existir. Em suma, 0axioma fundamental (proposicso zero), que enuncia a

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    teoria geral da violencia sirnbolica, se aplica ao sistemade ensino que e definido, pois, como uma modalidadeespecffica de violencia simbOlica {proposlcdes de grau 4)atraves de proposicdes interrnediarias que tratam, suces-sivamente, da ar;:ao pedaqoqica (proposicoes de grau 1).da autoridade pedaqoqica (proposicoes de grau 2) e dotrabalho pedaqoqico (proposicoes de grau 3).

    Por que violencia simbolica? Os autores tomamcomo ponto de partida que toda e qualquer sociedadeestrutura-se como um sistema de relacoes de forca mate-rial entre grupos ou classes. Sobre a base da forc;:a mate-rial e sob sua deterrninacso erige-se um sistema de rela-r;:oes de forc;:a sirnbolica cujo papel e reforcar, por dissi-rnulacao, as relacoes de forca material. E essa a ideia cen-tral contida no axioma fundamental da teoria. Sensevejamos 0 seu enunciado:

    "To do poder de violencia simbolica, isto e , todopoder que chega a impor significac;:6es e a irnpo-las comolegitimas, dissimulando as relac;:6es de torca que estsona base de sua forca, acrescenta sua propria forca, isto e,propriamente sirnbolica, a essas relac;:6es de forca" (Bour-dieu-Passeron, 1975, pag. 19).

    Ve-se, pols. que 0 reforc;:amento da violencia mate-rial se da pela sua conversao ao plano simb61ico on de seproduz e reproduz 0 reconhecimento da dominacso e desua legitimidade pelo desconhecimento (dissimulacsolde seu carater de violencia ex pi icita. Assim, a violilnciamaterial (dominacso economical exercida pelos gruposou classes dominantes sobre os grupos ou classes domina-dos corresponde a violencia simb61ica (dorninacao cultu-ral).

    A violilncia sirnbolica se manifesta de rnultiplasformas: a formacao da opiniao publica atraves dos meiosde cornunicacao de massa, jornais, etc.; a pregac;:ao reli-giosa; a atividade artfstica e literaria: a propaganda e amoda; a educacao familiar, etc. No entanto, na obra emquestao, 0 objetivo de Bourdieu e Passeron e a ar;:aopedag6gica institucionallzada, isto e , 0 sistema escolar.Dai, 0 subtitulo da obra: "elementos para uma teoria dosistema de ensino". Para isso, partindo, como ja disse,da teoria geral da violencia sirnbollca, buscam explicitara ac;:ao pedag6gica (AP) como il11Posir;:ao arbitrarla dacultura (tarnbern arbitraria) dos grupos au classes domi-nantes aos grupos ou classes dominados. Essa imposicao.para se exercer, implica necessaria mente a autoridadepedaqogica (AuP), isto e, um "poder arbitrario de impo-sic;:ao que, so pelo fa to de ser desconhecido como tal, seencontra objetivamente reconhecido como autoridadelegitima" (Ibidem, Proposlcao 2.1., pag. 27). A referidaac;:ao pedag6gica (AP) que se exerce atraves da autorida-de pedag6gica (AuP) se realiza atraves do Trabalho Peda-g6gico (TP) entendido "como trabalho de lnculcacaoque deve durar 0 bastante para produzir uma forrnacaoduravel: isto e. um habitus como produto da interiori-zacso dos princfpios de um arbitrario cultural capaz deperpetuar-se apos a cessacao da ac;:ao pedaqoqica (AP) epor isso de perpetuar nas praticas os princfpios do arbi-trario interiorizado" (Ibidem, Proposicao 3, paq. 44).

    Para a compreensao do sistema de ensino e de fun-damental importancia a distincso entre trabalho pedag6-gico (TP) prirnario (educacso familiar) e trabalho peda-gogico secundario, cuja forma institucionalizada e 0

    ..

    trabalho escolar (TE). Como os autores indicam no "es-colic" da proposicao 1 (pag. 20). "reservou-se a seu rno-mento loqico (proposicoes de grau 4) a especlflcacso dasformas e dos efeitos de uma Ar;:ao Pedaqoqica (AP) quese exerce no quadro de uma lnstltulcso escolar; e so-mente na ultima proposicao (4.3.) que se encontra carac-terizada expressamente a AP escolar que reproduz a cul-tura dominante, contribuindo desse modo para reprodu-zir a estrutura das relacoes de forca, numa formacaosocial onde 0 sistema de ensino dominante tende a asse-gurar-se do monopolio da violencla simbOlica legftima"(Ibidem, pp. 20-21). A proposicso 4.3. sintetiza, pois, demodo exaustivo, 0 conjunto da teoria do sistema de ensi-no enquanto violencia simbOlica. Vale a pena, entao,apesar de sua extensao. transcreve-la integralmente:

    "Numa forrnacao social determinada, 0 SE domi-nante pode constituir 0 TP dominante como TE sem queos que 0 exercem como os que a ele se submetem cessemde desconhecer sua dependencia relativa as relacoes deforca constitutivas da formacao social em que ele seexerce, porque (1) ele produz e reproduz, pelos meiosproprios da lnstituicao, as condicdes necessarias ao exer-cicio de sua funr;:ao interna de incutcacso, que sao aomesmo tempo as condic;:6es suficientes da realizacao desua funcao externa de reproducao da cultura legftima ede sua contribuicao correlativa a reproducso das relacdesde forca: e porque (2). s6 pelo fa to de que existe e sub-siste como lnstituicao. ele implica as condicdes institu-cionais do desconhecimento da violilncia sirnbolica queexerce, isto e, porque os meios institucionais dos quaisdispfie enquanto institutceo relativamente autonorna,detentora do rnonopollo do exercfcio legitimo da vio-lencia simbolica, estao predispostos a servir tambern, soba aparencia da neutralidade, os grupos ou classes dosquais ele reproduz 0 arbitrario cultural (dependenciapela independilncia)" (Ibidem, pag. 75).

    Portanto, a teoria nao deixa margem a duvidas, Afunc;:ao da educacao e a de reproducao das desigualdadessocials. Pela reproducao cultural, ela contribui especifica-mente para a reproducao social.

    Como interpretar, nesse quadro, 0 tenorneno damarginalidade?

    De acordo com essa teoria, marginalizados sao osgrupos ou classes dominados. Marginalizados social menteporque nao possuem forca material (capital econornicole marginalizados cultural mente porque nao possuem for-ca sirnbolica (capital cultural). E a educacso, longe de serum fator de superacao da marginalidade, constitui umelemento reforcador da mesma.

    Eis a funr;:ao logicamente necessaria da educacao.Nao ha, pols, outra alternativa. Toda tentativa de utilize-la como instrumento de superacso da marginalidade naoe apenas uma ilusao. E a forma atraves da qual ela dissi-mula, e por isso cum pre eficazmente, a sua funr;:ao dernarqinalizacao. Todos os esforcos, ainda que oriundosdos grupos ou classes dominados, reverte sempre no re-forcamento dos interesses dominantes. "E pela rnedlacsodesse efeito de dorninacao da AP dominante que as dife-rentes AP que se exercem nos diferentes grupos ouclasses colaboram obje: 'vamente e indiretamente nadomlnacao das classes dominantes (inculcacso pelasAP dominadas de conhecimentos ou de maneiras, dos

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    quais a AP dominante define 0 valor sobre 0 mercadoeconornlco ou simb6lico)" (Ibidem, p~g. 22). Eis porque,Snyders resumiu sua critica a essa teoria na seguintefrase: "Bourdieu-Passeron ou a luta de classes impossf-vel" (Snyders, 1977, p~g. 287).

    3.2. Teoria da escola enquanto aparelho ideol6gico deEstado (AlE)Ao analisar a reproducao das condicoes de produ-

    c;:aoque implica a reproducao das forc;:as produtivas edas relacoes de producso existentes, Althusser e levadoa distinguir no Estado, os Aparelhos Repressivos de Es-tado (0 Governo, a Adrninistracdo, 0 Exercito, a Poll-cia, os Tribunais, as Prisdes, etc.) e os Aparelhos ldeolo-gicos de Estado (AlE) que ele enumera, provisoriamente,da seguinte forma:

    "_ 0 AlE religioso (0 sistema das diferentes igre-jas},

    _ 0 AlE escolar (0 sistema das diferentes escolaspublicas e particulares),_ 0 AlE familiar,

    _ 0 AlE juridico,_ 0 AlE politico (0 sistema politico de que fazem

    parte os diferentes partidos),_ 0 AlE sindical,_ 0 AlE da lnformacso (imprensa, radio-televisao,

    etc.I,_ 0 AlE cultural (Letras, Belas Artes, desportos,etc.)" (Althusser, sid., pp, 43-44).A distincso entre ambos assenta no fato de que 0

    Aparelho Repressivo de Estado funciona massivamentepela violencia e secundariamente pela ideologia enquantoque, inversamente, os Aparelhos Ideoloqicos de Estadofuncionam massivamente pela ideologia e secundaria-mente pela repressao (Cf. pp. 46-47). 0 conceito "Apa-relho ldeoloqico de Estado" deriva da tese segundo aqual "a ideologia tem uma existencia material" (Ibidem,pag. 83). Isto significa dizer que a ideologia existesempre radicada em praticas materiais reguladas por riotuais materiais definidos por instltuicoes materiais (Cf.pp. 8889). Em suma, a ideologia se materializa em apa-relhos: os aparelhos ideoloqicos de Estado.

    A partir desses instrumentos conceituais, Althusseravanc;:aa tese segundo a qual "0 Aparelho ldeoloqico deEstado que foi colocado em posic;:aodominante nas for-rnacoes capltalistas maduras, apes uma violenta luta declasses polrtica e ideoloqica contra 0 antigo Aparelholdeoloqico de Estado dominante, e 0Aparelho Ideologi-co Escolar" (Ibidem, pag. 60).

    Como AlE dominante, vale dizer que a escolaconstitui 0 instrumento mais acabado de reproducao dasrelacoes de producao de tipo capitalista. Para isso ela to-rna a si todas as crianc;:asde todas as classes socia is e Ihesinculca durante anos a fio de audiencia obriqatoria "sa-beres praticos" envolvidos na ideologia dominante (Cf.pag. 64). Uma grande parte (operarios e camponeses)cumpre a escolaridade basica e e introduzida no processoprodutivo. Outros avanc;:am no processo de escolariza-c;:aomas acabam por interrornpe-lo passando a integrar

    14

    os quadros medios, os "pequeno-burgueses de toda aespecie" (Cf. pag. 65). Uma pequena parte, enfim, atingeo vertlce da pirarnlde escolar. Estes vao ocupar os postosproprios dos "agentes da exploracao" (no sistema produ-tivo). dos "agentes da repressao" (nos Aparelhos Repres-sivos de Estado) e dos "profissionais da ideologia" (nosAparelhos ldeoloqlcos de Estado) (Cf. pag. 65). Em to-dos os casos, trata-se de reproduzir as relacoes de explo-rac;:aocapitalista. Nas palavras de Althusser: " e atraves daaprendizagem de alguns saberes praticos (savoir-faire) en-volvidos na lnculcacso massiva da ideologia da classe do-minante, que sao em grande parte reproduzidas as rela-ciies de orodudio de uma torrnecao social capitalista,isto e, as relacoes de explorados com exploradores e deexploradores com explorados" (Ibidem, pag. 66).

    Nesse contexto, como se coloca 0 problema damarginalidade? 0 fenomeno da rnarqinalizacao se inscre-ve no proprio seio das relacdes de producso capitalistaque se funda na expropriacao dos trabalhadores pelos ca-pitalistas. Marginalizado e, pois, a classe trabalhadora. 0AlE escolar, em lugar de instrumento de equallzacaosocial constitui urn mecanisme construfdo pela burguesiapara garantir e perpetuar seus interesses. Se as teorias doprimeiro grupo (por isso elas bern merecem ser chama-das de nao-crfticas) desconhecem essas determlnacoesobjetivas e imaginam que a escola possa curnprir 0 papelde correcao da marginalidade, isso se deve simplesmenteao fate de que aquelas teorias sao ideoloqicas, isto e, dis-simulam, para reproduzf-las, as condicoes de margina-lidade em que vivem as camadas trabalhadoras.No entanto, diferentemente de Bourdieu-Passeron,Althusser nao nega a luta de classes. Ao contrario, chegamesmo a afirmar que "os AlE podem ser nao so 0 alvomas tambern 0 local da luta de classes e por vezes deformas renhidas da luta de classes" (Ibidem, pag. 49).Entretanto, quando descreve 0 funcionamento do AlEescolar, a luta de classes fica praticamente dilufda, talo peso que adquire al a dorninacao burguesa. Eu diria,entao, que a luta de classes resulta nesse caso heroica,mas inqloria, ja que sem nenhuma chance de exito. 0 pa-raqrafo urn tanto longo que me permito transcrever, fun-damenta essa conclusso:"Peco desculpa aos professores que, em condicfiesterrfveis, tentam voltar contra a ideologia, contra 0 siste-rna e contra as praticas em que este os encerra, as armasque podem encontrar na historia e no saber que 'ensi-narn'. Em certa medida sao herois, Mas sao raros, e quan-tos (a maioria) nao tern sequer urn vislumbre de duvidaquanto ao 'trabalho' que 0 sistema (que os ultrapassa eesmaga) os obriga a fazer, pior, dedicam-se inteiramentee em toda a consclencia a realizacao desse trabalho (osfamosos rnetodos novos!). Tern tao poucas duvidas, quecontribuem ate pelo seu devotamento a manter e a ali-mentar a representacao ideoloqica da Escola que a tornahoje tao 'natural', lndispensavel-util e ate benfazeja aosnossos conternporsneos, quanto a Igreja era 'natural',indispensavel e generosa para os nossos antepassadosde ha seculos" (Ibidem, pp. 67-68).

    - .. . . .

    3.3. Teoria da escola dualistaEssa teoria foi elaborada por C. Baudelot e R. Es-

    Cad. Pesq. (42) Agosto 1982

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    ..

    tablet e exposta no livro L 'ecole capitaliste en France(1971). Chamo de "teoria da escola dualista" porque osautores se empenham em mostrar que a escola, em quepese a a pa ren cia u nita rla e unificadora, e uma escoladividida em duas (e nao mais do que duas) grandes redes,as quais correspondem a divisao da sociedade capitalistaem duas classes fundamentais: a burguesia e 0 proletaria-do.

    Os autores procedem de modo dldatico, enuncian-do preliminarmente as teses basicas que sucessivamentepassam a demonstrar. Assim, na primeira parte, ap6s dis-sipar as "ilusoes da unidade da escola" formulam seisproposicdes fundamentais que oassarso a demonstrar aolongo da obra:

    "1. Existe uma rede de escolarizacao que chama-remos rede secundaria-superior (rede S.S.).

    2. Existe uma rede de escolarizacao que chamare-mos rede prirnaria-profissional (rede P.P.).

    3. Nao existe terceira rede.4. Estas duas redes constituem, pelas relacoes que

    as definem, 0 aparelho escolar capitalista. Este aparelhoe um aparelho ideol6gico do Estado capitalista.5. Enquanto tal, este aparelho contribui, pela parte

    que Ihe csbe, a reproduzir as retacoes de producao capi-talistas, quer dizer em definitivo a divisao da sociedadeem classes, em proveito da classe dominante.

    6. ~ a divlsao da sociedade em classes antagonistasque explica em ultima instancia nao somente a existsnciedas duas redes, mas ainda (0 que as define como tais) osmecanismos de seu funcionamento, suas causas e seusefeitos". (Baudelot-Establet, 1971, paq, 42).

    Atraves de minuciosa analise estatfstica os autoresse empenham em demonstrar, na segunda parte, as tresprirneiras proposicdes, isto e, a existencia de apenas duasredes de escolarlzacso: as redes PP e SS. A quarta propo-sic;:ao e objeto das terceira e quarta partes; na terceiraparte se procura por em evidencia que "e a mesma ideo-logia dominante que e imposta a todos os alunos sobformas necessariamente incompativeis" (Ibidem, pag.47); na quarta parte se demonstra que a dlvisao em duasredes atravessa 0 aparelho escolar em seu conjunto, por-tanto, desde a escola prirnaria, contrariamente as aparen-cias de unidade da escola prirnaria. Mais do que isso, afir-mam os autores que " e na escola primaria que 0 essencialde tudo 0 que concerne ao aparelho escolar capitalistase realiza" (Ibidem, pag. 47). Finalmente, a quinta partee dedicada a demonstracao das duas ultirnas proposi-c;:oes evidenciando, entao, que "0 aparelho escolar, comsuas duas redes opostas, contribui para reproduzir asrelacoes sociais de producso capitalista" (Ibidem, pag.47).

    Importa reter que, nesta teoria, e retomado 0 con-ceito de Althusser (" Aparelho Ideol6gico de Estado")definindo-se 0 aparelho escolar como "unidade contradi-t6ria de duas redes de escolarizacao" (Cf. ibidem, pag.281). Enquanto aparelho ideoloqico, a escola cumpreduas funcoes basicas: contribui para a formacao da forcade trabalho e para a inculcacao da ideologia burguesa.Cumpre assinalar, porem, que nao se trata de duas fun-c;:oes separadas. Pelo mecanisme das praticas escolares, aforrnacao da forca de trabalho se da no proprio processode inculcacao ideoloqica. Mais do que isso: todas as pra-

    ticas escolares, ainda que contenham elementos que irn-plicam um saber objetivo (e nao poderia deixar de con-ter, ja que sem isso a escola nao contribuiria para a re-producao das relac;:6es de producso) sao praticas de in-culcacso ideoloqica, A escola e , pols, um aparelho ideo-logico, isto e ~0 aspecto ideoloqico e dominante e coman-da 0 funcionamento do aparelho escolar em seu conjun-to. Consequenternente, a func;:ao precfpua da escola e alnculcacao da ideologia burguesa. Isto e feito de duasformas concomitantes: em primeiro lugar, a lnculcacsoexplicita da ideologia burguesa; em segundo lugar, 0recalcamento, a sujeic;:ao e 0 disfarce da ideologia prole-taria,

    Ve-se, pols, a especificidade dessa teoria. Ela admi-te a existencia da ideologia do proletariado. Considera,porern, que tal ideologia tem origem e existencia fora daescola, isto e , nas massas operarias e em suas organiza-c;:oes. As escola e um aparelho ideol6gico da burguesia e aservice de seus interesses. 0 paraqrafo abaixo transcritoe extrema mente esclarecedor a respeito:"A contradicao principal existe brutalmente forada escola sob a forma de uma luta que opoe a burguesiaao proletariado: ela se trava nas relacdes de producao,que sao relacoes de exploracao. Como aparelho ideoloqi-co de Estado, a escola e um instrumento da luta de clas-ses ideoloqicas do Estado burques, onde 0 Estado bur-gues persegue objetivos exteriores a escola (ela nao esenao um instrumento destinado a esses fins). A lutaideoloqica conduzida pelo Estado burques na escola visaa ideologia proletsrie que existe fora da escola nas mas-sas operarias e suas orqanizacdes. A ideologia proletarianao esta presente em pessoa na escola, mas apenas sob aforma de alguns de seus efeitos que se apresentam comoresistencias: entretanto, inclusive por meio dessas resis-tencias, e ela propria que e visada no horizonte pelaspraticas de inculcacao ideoloqica burguesa e pequeno-burguesa" (Ibidem, pag. 280-grifos no original).

    No quadro da "teoria da escola dualista" 0 papelda escola nao e , entao, 0 de simplesmente reforc;:ar e le-gitimar a marginalidade que e produzida socialmente.Considerando-se que 0 proletariado dispde de uma torcaautonoma e forja na pratica da luta de classes suas pro-prias orqanizacoes e sua propria ideologia, a escola tempor rnlssso impedir 0 desenvolvimento da ideologia doproletariado e a luta revolucionaria. Para isso ela e orga-nizada pela burguesia como um aparelho separado daproducso. Consequenternente, nao cabe dizer que a esco-la qualifica diferentemente 0 trabalho intelectual eo tra-balho manual. Cabe, isto sirn, dizer que ela qualifica 0trabalho intelectual e desqualifica 0 trabalho manual,sujeitando 0 proletariado a ideologia burguesa sob umdisfarce pequeno-burques, Assim, pode-se concluir quea escola e ao mesmo tempourn fa:f6raemarginalizac;:aorelatlvamente a cultura burguesa assim como em relac;:aoa cultura proletarla. Em face da cultura burguesa, pelotato de inculcar a massa de operarios que tem acesso arede PP apenas os sub-produtos da propria cultura bur-guesa. Em relacao a cultura proletaria, pelo fato de recal-ca-la, torcando os operarlos a representarem sua condi-c;:ao nas categorias da ideologia burguesa. Consequents-mente, a escola, longe de ser um instrumento de equali-zac;:ao social e duplamente um fator de marqinalizacso:

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    converte os trabalhadores em marginais, nao apenas porreferencia a cultura burguesa, mas tarnbern em relalfaoao proprio movimento proletario, buscando arrancar doseio desse movimento (colocar a margem dele) todosaqueles que ingressam no sistema de ensino.Pode-se, pols, concluir que, se Baudelot e Establetse empenham em compreender a escola no quadro daluta de classes, eles nao a encaram, porern, como palco ealvo da luta de classes. Com efeito, entendem que a esco-la, enquanto aparelho ideoloqico, e um instrumento daburguesia na luta ideoloqica contra 0 proletariado. Apossibilidade de que a escola se constitua num instru-mento de luta do proletariado fica descartada. Uma vezque a ideologia proletaria adquire sua forma acabada noseio das massas e orqanizacdes operarias, nao se cogita deutilizar a escola como meio de elaborar e difundir a refe-rida ideologia. Se 0 proletariado se revela capaz de elabo-rar, independentemente da escola, sua propria ideologiade um modo tao consistente quanto 0 fat a burguesiacom 0 auxllio da escola, entso, por referencia ao apare-Iho escolar, a luta de classes revela-se inutil, Eis porqueSnyders (1977, III Parte, Cap. V, pp. 338-344) resumesua crftica a teoria da escola dualista com a expressao:"Baudelot-Establet ou a luta de classes inutil",

    Ao terminar esse rapido esboco relativo as teoriascritico-reprodutivistas curnpre assinalar que, obviamente,tais teorias nao deixaram de exercer influencia na Ame-rica Latina tendo alimentado ao longo da decada de 70uma razoavel quantidade de estudos criticos sobre 0 sis-tema de ensino. Se tais estudos tiveram 0 rnerito de porem evidencia 0 comprometimento da educacso com osI! interesses dominantes tarnbern e certo que contribufram

    i para disseminar entre os educadores um clima de pessi-j mismo e de desanimo que, evidentemente, so poderia[tornar ainda mais remota a possibilidade de articular os'sistemas de ensino com os esforcos de superacao do pro-'blerna da marginalidade nos paises da regiao.

    4. PARA UMA TEORIA CRITICA DA EDUCACAoo leitor tera notado que, quando me referi as teo-rias nao-crrtlcas, apos expor brevemente 0 conteudo decada uma, procurei mostrar a forma de orqanizacao e

    funcionamento da escola decorrente da proposta pedaqo-gica veiculada pela teoria. Ja em relacao as teorias crfti-co-reprodutivistas isto nao foi feito. Na ver(jade estesteorias .nao .contern .uma pro posta '.pedag6gica. "Elas se;-~-penham-tao-somimte em explicar 0 mecanlsrno defuncionamento da escola tal como esta constituida. Emoutros terrnos, pelo seu carater reprodutivista, estas teo-rias consideram que a escola nao poderia ser diferente doque e. Empenharn-se, pols, em mostrar a necessidade 1 0 -gica, social e historica da escola existente na sociedadecapitalista, pondo em evidencia aquilo que ela desconhe-ce e mascara: seus determinantes materiais.

    Em retacao a questao da marginalidade ficamos,pois, com 0 seguinte resultado: enquanto as teorias nao-crfticas pretendem ingenuamente resolver 0 problemada marginalidade atraves da escola sem jamais conseguirexrto, as teorias crItico-reprodutivistas explicam a razao

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    do suposto fracasso. Segundo a concepcao crftlco-repro-dutivista 0 aparente fracasso e, na verdade, o sxito daescola; aquilo que se julga ser uma disfunlfao e , antes, afunlfao propria da escola. Com efeito, sendo um instru-rriento de reproducso das relacoes de producao a escolana sociedade capitalista necessariamente reproduz a do-mlnacao e exploracao. Dai, seu carater segregador e mar-ginalizador. Dai, sua natureza seletiva. A lrnpressso quenos fica e que se passou de um poder ilusorio para a im-potencia, Em ambos os casos, a Historia e sacrificada. Noprimeiro caso, sacrifica-se a Historia na ideia em cuja har-monia se pretende anular as contradicoes do real. No se-gundo caso, a Historia e sacrificada na reiflcacso da es-trutura social em que as contradicdes ficam aprisionadas. ,o problema permanece, pols, em aberto. E pode Iser recolocado nos seguintes termos: e possivel encarar aescola como uma realidadehistorica, isto e, suscetivel deser transformada intencionalmente pela alfao humana?Evitemos de escorregar para uma poslcso idealista e vo-

    ~ luntarista. Retenhamos da concepcso crttico-reproduti-vista a importante lilfao que nos trouxe: a escola e deter-minada socialmente; a sociedade em que vivemos, funda-da no modo de producao capitalista, e dividida em clas-ses com interesses opostos; portanto, a escola sofre adeterrnlnacso do conflito de interesses que caracteriza a'sociedade. Considerando-se que a classe dominante naotem interesse na transforrnacao historica da escola (elaesta empenhada na preservacao de seu dornfnio, portan-to apenas acionara mecanismos de adaptacso que evitema transformacaol segue-se que uma teoria critica (quenao seja reprodutivista) so podera ser formulada do pon-to de vista dos interesses dominados. 0 nosso problemapode, entfo, ser enunciado da seguinte maneira: e possf-vel articular a escola com os interesses dominados? Daperspectiva do tema deste artigo a questso recebe a se-guinte torrnulacao: e possivel uma teoria da educacsoque capte criticamente a escola como um instrumentocapaz de contribuir para a superacso do problema damarginalidade? (Limito-me aqui a afirmar a possibilidadedessa teoria, ja que escapa aos objetivos desse artiqo, 0desenvolvimento da mesma).Uma teoria do tipo acima anunciado se impde atarefa de superar tanto 0 poder ilusorio (que caracterizaas teorias nao-crfticas) como a irnpotencia (decorrentedas teorias critico-reprodutivistas) colocando nas maosdos educadores uma arma de luta capaz de perrnitir-lheso exercfcio de um poder real, ainda que limitado.

    No entantc, 0 caminho e repleto de armadilhas, jaque os mecanismos de adaptacso acionados periodica-mente a partir dos interesses dominantes podem ser con-fundidos com os anseios da classe dominada. (,,

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    contra a marginalidade atraves da escola significa engajar-se no esforco para garantir aos trabalhadores um ensinoda melhor qualidade possivel nas condlcdes hist6ricasatuais, 0 papel de uma teoria crftica da educa~ao e darsubstancia concreta a essa bandeira de luta de modo aevitar que ela seja apropriada e articulada com os interes-ses dominantes.

    . .5. POST -SCRIPTUM

    Os leitores certamente terao estranhado que, aolongo de um texto versando sobre as teorias da educacaoe 0 problema da marginalidade, nao apareceu uma pala-vra sequer sobre a "teoria da educacso compensat6ria".Tal estranheza parece procedente ja que, se ha algumaproposta educativa intimamente ligada a questao damarginalidade, esta e a chamada educacao compensat6-ria. Com efeito, nao e exatamente a situacao de margina-lidade vivida pelas assim chamadas "crlancas carentes"que constitui a razao de ser da educacao compensat6ria?Nao e a educacao compensat6ria a estrateqia acionadapara superar 0 problema da marginalidade na medida emque se pro poe a nivelar as pre-condicdes de aprendiza-gem pela via da compensacso das desvantagens das crian-cas carentes?

    Entretanto, devo dizer que nao considero a educa-~ao compensat6ria uma teoria educacional seja no senti-do de uma interpretacao do fen6meno educativo queacarreta determinada proposta pedag6gica (como ocorrecom as teorias nao-criticas), seja no sentido de explicitaros mecanismos que regem a orqanlzacao e funcionamen-to da educacao explicando, em consequencia, as suasfuncoes (como no caso das teorias crrtlco-reprodutivis-tas) seja, ainda, no sentido de um esforco para equacio-nar, pela via da compreensao te6rica, a questao praticada contribuicao especffica da educacao no processo detranstormacso estrutural da sociedade (como sera 0 casode uma teoria crftica da educacso}.

    A meu ver, a educacao compensat6ria configurauma resposta nao-crftica as dificuldades educacionaispostas em evidencia pelas teorias critico-reprodutivistas.Assim, uma vez que se acumulavam as evidencias de queo fracasso escolar, incidindo predominantemente sobreos alunos s6cio-economicamente desfavorecidos, se deviaa fatores externos ao funcionamento da escola, tratava-se, entao, de agir sobre esses fatores. Educacao compensa-t6ria significa, pois, 0 seguinte: a fun~ao basica da edu-ca~ao continua sendo interpretada em termos da equali-za~ao social. Entretanto, para que a escola cumpra suafun~ao equalizadora e necessario compensaras deficien-cias cuja persistencia a c a b a sistematicamente por neutra-lizaraeficacia da a~ao pedag6gica. Ve-se, pols, que naoseformula uma nova interpretacso da a~ao pedag6gica.Esta continua sendo entendida em termos da pedagogiatradicional, da pedagogia nova ou da pedagogia tecnicistaencaradas de forma isolada ou de forma combinada.o carater de compenseceo de deficlencias previasao processo de escolarizaeao nos permite compreender aestreita liga~ao entre educacdo compensat6ria e pre-es-cola. Oaf porque a educacso compensat6ria compreendeum conjunto de programas destinados a compensar defi-

    clencias de diferentes ordens: de saude e nutricdo, fami-liares, emotivas, cognitivas, motoras, linguisitcas, etc.Tais programas acabam colocando sob a responsabilidadeda educa~ao uma serle de problemas que nao sao especi-ficamente educacionais, 0 que significa, na verdade, apersistencla da crenca ingenua no poder redentor da edu-ca~ao em rela~ao a sociedade. Assim, se a educa~ao serevelou incapaz de redimir a humanidade atraves da a~aopedag6gica nao se trata de reconhecer seus limites, mas

    de alarqa-los: atribui-se entao a educacso um conjunto depapeis que no limite abarcam as diferentes modalidadesde politica social. A consequencia e a pulverizacso de es-forces e de recursos com resultados praticamente nulosdo ponto de vista propriamente educacional.

    Essas constatacoes me levaram a conclusao de quea propria expressao "educacao compensat6ria" coloca 0problema em termos invertidos, isto e, 0 termo que apa-rece como substantivo deveria ser 0 adjetivo e vice-versa.Portanto, se se quer compensar as carencias que caracte-rizam a situacao de marginalidade das criancas das cama-das populates, epreciso considerar que ha diferentesmodalidades de cornpensacso: compensacao alimentar,cornpensacao sanitaria, cornpensacao afetiva, compensa-~ao familiar, etc. Neste quadro, constatada a existenciade deficiencies especificamente educacionais, caberia sefalar nao em educacao cornpensatoria (atribuindo-se aeducacao a responsabilidade de compensar to do tipo dedeficiencia] mas em cornpensacao educacional. E aquifica, finalmente, evidenciada a nao-autonomia teorica da"educacao cornpensatoria". uma vez que a exiqencia detratamento diferenciado, de respeito as diferencas indi-viduais e aos diferentes ritmos de aprendizagem bemcomo a mfase na diversificacao rnetodoloqica e tecnic rno senti do de suprir as carencias dos educandos, saopreocupacoes proprlas do tipo de teoria denorninadaneste texto de "pedagogia nova".

    No contexte da America Latina, a tendsncia atual-mente em curso (frequenternente reforcada pelo patro-cfnio de organismos internacionais) de difusao da educa-~ao cornpensatoria com a consequents valorizacjo dapre-escola entendida como mecanisme de solucso doproblema do fracasso escolar das crlancas das camadas

    As teorias da educecso e 0problema da marginalidade na America Latina 17

  • 5/17/2018 As teorias da educao e o problema da marginalidade - Dermeval Saviani

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    trabalhadoras no ensino de primeiro grau deve, pols, sersubmetida a critica. Com efeito, tal tendencia acaba porse configurar numa nova forma de contornar 0 proble-ma em lugar de ataca-lo de frente. Exemplo eloquentedesse desvio ~.0 .caso da cidade de Sao Paulo onde, apos.dez anos de merenda escolar, os Indices de fracasso esco-lar na passagem da primeira para a segunda serie do prk'rneiro grau, em lugar de diminuir, aumentaram em 6%.

    COmpre, pols, nao tergiversar. Nao se trata denegar a lrnportancla dos diferentes programas de a{:aocompensatoria. Considera-los, porern, como program aseducativos implica um afastamento ainda maior, em lu-gar da aproxlmacao que se faz necessaria em direcao acompreensso da natureza especffica do fenorneno educa-tivo.

    ".

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