defesa lado a lado - informações o papel de líderes...
TRANSCRIPT
Setembro de 2018
MOVIMENTO RELIGIOSO PELA JUSTIÇA DE GÊNERO
Defesa Lado a Lado - Informações O Papel de Líderes Religiosos/as* na Luta pela Justiça de Gênero
Defesa Lado a Lado - Informações 2
Autores:
Solène Brabant, funcionária regional de Defesa contra VG, Programa de Ajuda da Igreja Norueguesa
Jenny Brown, assessora de Church Advocacy, Christian Aid e presidência Defesa Lado a Lado
Foto da capa:
Lado a Lado – Simpósio da África Oriental, Nairóbi, novembro de 2015
Lado a Lado é um movimento religioso global em crescimento, dedicado
à mudança transformadora em prol da justiça de gênero. Somos pessoas
de fé, líderes religiosos/as e organizações inspiradas na fé no mundo todo,
comprometidas com uma colaboração que combata obstáculos para a
justiça de gênero. O que nos une é nossa crença de que cada pessoa é
feita na imagem de Deus e tem valor e dignidade intrínsecos. Nos níveis
local, nacional e internacional colaboramos sempre que for possível pela
justiça de gênero na qual cada pessoa tem o mesmo valor e a
possibilidade de participar em pé de igualdade da distribuição de
poder, conhecimento e recursos. Reconhecemos que ensinamentos
religiosos frequentemente têm endossado normas sociais e culturais que
perpetuam a injustiça de gênero, e reconhecemos que pessoas de fé e
nossos/as líderes religiosos/as têm a responsabilidade de revisitar textos
sagrados para promover valores religiosos como amor, dignidade e
justiça de gênero.
A articulação com outros é fundamental para conseguir mudanças. Lado
a Lado busca oportunidades para colaborar com outros movimentos e
redes, como o Conselho Mundial das Igrejas e a ACT Alliance, bem como
com a PaRD – Parceria Internacional de Religião e Desenvolvimento
Sustentável.
Fale conosco
Fone: +44 (0) 20 7620 4444
E-mail: [email protected]
Website: www.sidebysidegender.org
Twitter: www.twitter.com/sbsgender
Facebook: www.facebook.com/sidebysidegender
Endereço: Side by Side, 35 Lower Marsh, Waterloo, London, SE1 7RT, Reino Unido
Defesa Lado a Lado - Informações 3
Introdução
Este pequeno documento foi produzido por Lado a Lado, um
movimento global de líderes religiosos/as e comunidades,
organizações inspiradas na fé e pessoas de fé comprometidas com a
remoção de obstáculos para a justiça de gênero. É oferecido como
contribuição para a emergente conversa sobre o papel distinto de
representantes religiosos/as na luta pela justiça de gênero. Começa
apresentando o contexto e os desafios a serem enfrentados; mostra a
seguir, por meio de exemplos, como líderes religiosos/as têm sido, e
podem ser, parte da solução em vez de parte do problema, e conclui
com recomendações para líderes religiosos/as, governos e
organizações intergovernamentais.
Oitenta e quatro por centos da população mundial se identificam como
membros de um grupo religioso.1 Líderes religiosos/as desempenham
um papel central na formação das pessoas acerca dos valores, das
normas da conduta aceitável, dos seus papéis na vida e da
compreensão de que constitua “a vida boa”. Para pessoas religiosas,
sua identidade de fé é central para o desenvolvimento de muitas das
leis, políticas, programas e relações que formam e determinam as
sociedades nas quais todos/as nós vivemos.
O papel potencialmente transformador de líderes religiosos/as e
pessoas de fé, quando se trata de enfrentar as raízes da desigualdade
de gênero e de combater a injustiça de gênero, levantando o assunto
como uma preocupação tanto política como moral, é muitas vezes
insuficientemente apreciado. Enquanto precisamos reconhecer desde
já que líderes religiosos/as podem ser parte do problema da injustiça
de gênero, podem e estão sendo em medida crescente parte da
solução, como explica o presente paper.
Uma definição
de “justiça de
gênero”
(Baseada em
definições usadas
por Lado a Lado e
ACT Alliance)
A justiça de gênero estará alcançada
quando mulheres e homens, meninas
e meninos desfrutarem em igualdade
de direitos humanos,
responsabilidades, perspectivas e
oportunidades de vida, bem como do
poder e dos recursos de construir
suas vidas e contribuir para a
sociedade, sem acepção de gênero
ou sexo. A justiça de gênero quer
todas as pessoas livres de sistemas
culturais e interpessoais de privilégio
e opressão, livres de violência e de
repressão baseadas no gênero.
Oitenta e quatro por
centos da população
mundial se identificam
como membros de um
grupo religioso.1
Defesa Lado a Lado - Informações 4
Sem subestimar o profundo
compromisso de muitos líderes
religiosos com a justiça de gênero […], líderes religiosas são
essenciais para a promoção da justiça de gênero dentro e fora de instituições
religiosas.
Fig. 1: Lado a Lado – Conferência da África Ocidental, Accra, Maio de 2018
Vale a pena destacar a posição particular de líderes religiosas. Sem
subestimar o profundo compromisso de muitos líderes religiosos com
a justiça de gênero e sem negar o fato de que não todas as mulheres
estejam comprometidas com a justiça de gênero, líderes religiosas são
essenciais para a promoção da justiça de gênero dentro e fora de
instituições religiosas. Embora numericamente inferiores e
frequentemente invisíveis nas instituições religiosas fortemente
patriarcais, muitas têm encorajado suas instituições religiosas a
implementar programas que combatem atitudes, crenças e práticas
patriarcais, enquanto teólogas podem ser atoras influentes na
interpretação de escrituras religiosas de uma maneira que seja
libertadora para mulheres.
É um fato bem documentado e não controverso que, no mundo todo,
grupos religiosos são fornecedores de serviços altamente eficazes, por
exemplo, nas áreas da saúde e da educação.2 Um fato muito menos
reconhecido e valorizado é que líderes religiosos/as em níveis local,
nacional, regional e global podem fazer ouvir sua voz em processos
legislativos, de tomada de decisões e construção de políticas, e que
estão fazendo-o efetivamente. Não obstante o desafio de vozes
religiosas regressivas, no mundo todo há exemplos de líderes e grupos
religiosos que lutam forte e eficientemente por medidas que promovam
a justiça de gênero.
Estruturas políticas, econômicas, religiosas, educacionais, culturais, judiciais e administrativas podem criar e reforçar desigualdades de gênero. Defender o gênero significa combater e mudar essas estruturas e sistemas que privilegiam um gênero e marginalizam o outro, influenciando as políticas e práticas das pessoas poderosas. No cerne desta defesa trata-se de transformação e justiça. Líderes religiosos/as podem falar com autoridade e credibilidade morais singulares e frequentemente representam um grande número de pessoas. Em nível de comunidades e congregações ou paróquias
Defesa Lado a Lado - Informações 5
onde têm uma presença permanente, e muitas vezes também em nível nacional e até mesmo internacional, eles e elas ocupam posições respeitadas e são ouvidos/as.3 Dispõem de muitas oportunidades para ensinar suas comunidades, inclusive pelas suas pregações, e para alcançar ambientes mais amplos. De acordo com as disposições constitucionais nacionais, podem ter influência política tanto formal como informal.
Definição do problema
O termo “injustiça de gênero” descreve uma relação de poder desigual
entre mulheres e homens. Embora sejam as mulheres e meninas que
mais sofrem com a injustiça de gênero, ela é uma preocupação para
homens, mulheres, meninos, meninas e a sociedade como um todo,
inclusive líderes religiosos/as.
A injustiça de gênero tem profundas raízes nas normas sociais.
Normas sociais são os valores definidos pelo grupo, e espera-se dos
membros do grupo que os observem. Caso contrário, a pessoa corre o
perigo de desaprovação, marginalização e/ou exclusão. Normas
sociais mudam com o tempo e estão em constante evolução. A religião
e a cultura possuem uma forte influência na definição de normas
sociais, inclusive das normas de gênero. Por isso, guardiões de
costumes, inclusive líderes religiosos/as, precisam desempenhar um
papel decisivo na mudança de normas sociais discriminatórias que
toleram a injustiça de gênero em normas sociais positivas que
defendam direitos iguais e condenem a violência de gênero.
A injustiça de gênero perpassa todas as esferas da sociedade e todas as partes do mundo, desde o nível interpessoal até o nível sociopolítico, desde crenças e atitudes até estruturas e políticas. Até mesmo onde princípios internacionais e nacionais progressistas foram estabelecidos, como na Convenção sobre a Eliminação de todas das formas de Discriminação contra as Mulheres (ONU) e na legislação sobre a igualdade que existe em muitos países, na prática, a justiça de gênero ainda não está garantida, já que as normas subjacentes à injustiça de gênero são difíceis de mudar. Líderes religiosos/as, tanto homens como mulheres, podem reforçar o status quo. Por exemplo, em Mali, o Conselho Islâmico e a União Nacional de Mulheres Muçulmanas lideraram com sucesso uma mobilização de massa contra a revisão do Código Familiar em 2011. O resultado foi que a versão adotada do Código foi muito mais leve em termos dos direitos das mulheres e tem sido amplamente criticada nos aspectos referentes à idade legal de casamento, custódia de filhos/as e herança que discriminam mulheres. Em Uganda, a Lei de Divórcio e Casamento havia sido bloqueada por décadas por líderes religiosos/as cristã(o)s, até que movimentos de mulheres e líderes religiosos/as encontrassem uma maneira de entrar nos diálogos e construir uma solução consensual.
A injustiça de gênero tem profundas raízes nas normas sociais… Por isso, guardiões de costumes, inclusive líderes religiosos/as, precisam desempenhar um papel decisivo na mudança de normas sociais discriminatórias que toleram a injustiça de gênero em normas sociais positivas que defendam direitos iguais e condenem a violência de gênero.
Defesa Lado a Lado - Informações 6
Há muitos motivos pelos quais líderes religiosos/as possam não
reconhecer o problema da injustiça de gênero, portanto, deixam de lutar
pela justiça de gênero. A próxima seção identifica alguns desses
motivos.
Uma definição de
“patriarcado”
(Definição usada por uma
rede feminista de
Londres)
Patriarcado é um termo usado para
descrever a sociedade na qual vivemos
hoje e que se caracteriza por históricas e
contemporâneas relações desiguais de
poder entre mulheres e homens, por meio
das quais mulheres são sistematicamente
desfavorecidas e oprimidas. Isto acontece
em todos os âmbitos da vida, mas é
especialmente perceptível na sub-
representação de mulheres em
instituições centrais do Estado (e da
religião), em posições de tomadas de
decisão, bem como em empregos e na
indústria. Também a violência masculina
contra mulheres é uma característica
central do patriarcado. Nesta sociedade,
mulheres em grupos minoritárias
enfrentam opressões múltiplas, já que
raça, classe e sexualidade possuem
intersecções com sexismo, por exemplo.
As grandes religiões do mundo surgiram
em culturas patriarcais que influenciaram o
desenvolvimento e a interpretação das
escrituras religiosas.
Obstáculos enfrentados por líderes religiosos/as:
o A interação entre religião e cultura levou a uma “aliança infeliz
entre culturas [patriarcais] e religião”4. As grandes religiões do
mundo surgiram em culturas patriarcais que influenciaram o
desenvolvimento e a interpretação das escrituras religiosas.
Devido a esta história, a religião frequentemente tem sido
usada, deliberada ou inconscientemente, como uma ferramenta
para oprimir mulheres e meninas. Ao longo do tempo,
interpretações patriarcais de escrituras religiosas têm
contribuído para o desenvolvimento de normas religiosas
estreitamente emaranhadas com crenças e práticas culturais
nocivas. O respeito prestado a normas religiosas torna o
desmantelamento desta “infeliz aliança” ainda mais difícil.
o Paisagens religiosas podem ser complexas. Todas as grandes
religiões estão divididas em numerosos grupos e subgrupos
com diferentes interpretações e visões. Há um amplo leque de
líderes religiosos/as com um amplo leque de perspectives. Esta
complexidade significa que pode ser difícil identificar líderes
religiosos/as progressistas que poderiam estar dispostos/as a
lutar pela justiça de gênero.
Defesa Lado a Lado - Informações 7
o Líderes religiosos/as gozam de um alto status dentro de suas
comunidades. As pessoas os/as veneram como repositórios da
palavra de Deus e como modelos na sociedade. Por isso, o ato
de combater narrativas religiosas injustas pode ser interpretado
como uma tentativa de minar líderes religiosos/as ou de impor
a cultura ocidental dominante que “polui” aquilo que é percebido
como a versão autêntica de uma determinada religião, e pode
ser mal-entendido como uma tentativa de destruir a estrutura
estabelecida de uma comunidade.
o O simbolismo frequentemente constitui um desafio para a
realização da justiça de gênero, e instituições religiosas não
são uma exceção. Por exemplo, líderes religiosos/as podem
apontar pontos de referência de gênero (pessoas responsáveis
por trabalhos e temas vinculados ao gênero) ou estabelecer
secretarias de gênero, mas se não se comprometem
pessoalmente com o combate à injustiça de gênero, os pontos
de referência de gênero e as secretarias de gênero terão um
impacto limitado. Semelhantemente, líderes religiosos/as
podem delegar o trabalho de lutar por justiça de gênero a
grupos de mulheres, uma atitude que pode perpetuar a visão
de que ela seja somente “coisa de mulher”.
o O discurso dos direitos humanos que promove direitos de
mulheres e meninas frequentemente tem sido confrontado por
narrativas religiosas que afirmam a superioridade de homens
sobre mulheres. É uma percepção comum que narrativas de
direitos humanos e narrativas religiosas sejam discursos
separados e incompatíveis. No entanto, discursos religiosos
podem promover, e de fato promovem, os direitos das mulheres
e a justiça de gênero, com base em interpretações
progressistas de escrituras religiosas.5 Uma abordagem
baseada em valores, promovida por instituições religiosas, não
é incompatível com a abordagem baseada em direitos.
Articulando fé e direitos humanos, líderes religiosos/as podem
transformar normas sociais e religiosas através de suas
comunidades e sociedades mais amplas. Devido ao retrocesso
no âmbito dos direitos das mulheres nos últimos anos, isto tem
se tornado cada vez mais urgente.
Fig. 2: Lado a Lado – Exposição na Escócia, Edimburgo, Março de 2018
Líderes religiosos/as gozam de um alto status dentro de suas comunidades. As pessoas os/as veneram como repositórios da palavra de Deus e como modelos na sociedade.
Defesa Lado a Lado - Informações 8
“Líderes religiosos/as
[...] têm um forte
potencial de
influenciar a vida e a
conduta das pessoas
que seguem sua fé e
compartilham suas
crenças. Quando
levantam sua voz,
suas mensagens
podem ter um
impacto forte e de
amplo alcance.”6
Fig. 3: Lado a Lado – Conferência da África Ocidental, Accra, Maio de 2018 Líderes religiosos/as como parte da solução A autoridade moral de líderes religiosos/as e sua presença e influência persistentes em nível individual, familiar, comunitário, nacional, regional e internacional são fatores importantes. “Líderes religiosos/as [...] têm um forte potencial de influenciar a vida e a conduta das pessoas que seguem sua fé e compartilham suas crenças. Quando levantam sua voz, suas mensagens podem ter um impacto forte e de amplo alcance.”6 Aqui há dois aspectos. O primeiro é a capacidade de líderes religiosos/as de mudar as atitudes e normas de suas comunidades locais e mais amplas, bem como as atitudes de seus colegas. O segundo é sua capacidade de falar para o âmbito público, influenciando políticas e práticas públicas. Esta influência pode ser aproveitada de várias maneiras. No âmbito público, líderes religiosos/as têm autoridade religiosa e moral de lutar por justiça de gênero se optarem por fazê-lo. Podem também desempenhar um papel importante em cobrar das autoridades a existência, relevância e eficiência de medidas tomadas para implementar leis, políticas e convenções internacionais. Podem combater o abuso de poder da parte de autoridades, inclusive tomando uma posição pública contra a injustiça de gênero onde for que estejam vendo-a. Em alguns contextos pode ser necessário que líderes religiosos/as progressistas desafiem primeiramente colegas com visões regressivas a afirmarem e acompanharem os esforços do Estado acerca da justiça de gênero. Em outros contextos, precisarão direcionar sua luta por justiça de gênero a autoridades governamentais e legislativas, às vezes enfrentando a oposição de seus colegas de fé menos progressistas. Os exemplos que seguem mostram que líderes religiosos/as podem ser muito eficientes em combater a injustiça de gênero e alcançar mudanças positivas para mulheres e meninas em contextos muito variados.
Defesa Lado a Lado - Informações 9
Estudo de caso 1:
A Igreja Anglicana fortalece autoridades brasileiras locais em
suas capacidades de implementar a lei
A violência de gênero (VG) é um problema global. No Brasil, ela havia
ficado invisível até recentemente e até mesmo foi considerada normal,
como um assunto da esfera privada. As Igrejas foram amplamente
coniventes com esta “invisibilidade”. A Lei Maria da Penha, aprovada
em 2006, foi criada para proteger as mulheres da violência doméstica.
Sua aplicação, porém, não é automática, e uma grande porcentagem
de mulheres ainda não sabe de seus direitos legais. A falta de
consciência, de vontade política e de verbas significa que a lei
não é completamente implementada e que mulheres continuam
a sofrer violência que fica impune.
Um parceiro da Christian Aid, o Serviço Anglicano para a Diaconia e o
Desenvolvimento (SADD), criou o projeto “Igrejas na prevenção da VG”
para conscientizar dentro das Igrejas sobre o problema e oferecer
assistência prática a mulheres atingidas pela VG. Em Ariquemes foi
fundada uma Casa de Abrigo para oferecer proteção, apoio e conselho
a mulheres atingidas pela VG. Antes de sua fundação, não havia
abrigos para mulheres que viviam em situação de violência doméstica
e que não podiam ficar em seus lares. À medida que o abrigo se
tornasse mais estabelecido ficou clara a necessidade de cobrar as
autoridades municipais acerca de suas políticas públicas. Hoje, a Casa
de Abrigo está responsável pela coordenação dos serviços públicos
municipais para mulheres, inclusive educação, saúde e serviços
sociais. Anteriormente, a polícia local havia demonstrado pouca
compreensão por assuntos de VG e feito poucos esforços para
combatê-la. Uma coordenadora da Christian Aid que visitou a cidade
lembra que “a psicóloga disse que a polícia sempre perguntava as
mulheres o que elas teriam feito para provocar a violência contra elas”7.
A Casa de Abrigo ofereceu formação, desafiando assim a polícia a se
engajar na prevenção da VG, apresentando melhores políticas
públicas no âmbito da VG e explicando como reagir quando uma
mulher afirma ter sofrido violência doméstica. Hoje existe um grupo de
policiais comprometido com o trabalho da Casa de Abrigo e apoiando-
o, com a competência de atender bem mulheres que vêm denunciar
casos de VG.
A conscientização realizada pelo SADD acerca da prevalência da VG
e acerca da respectiva lei, articulada com reflexões e estudos bíblicos,
transformou a ética da Igreja Episcopal Anglicana no Brasil de tal
maneira que ela se tornou um espaço seguro para discutir e combater
a VG. Além disso, capacitou o SADD para se engajar nas cobranças
junto às autoridades municipais, com resultados impressionantes.
A falta de consciência, vontade política e verbas significa que a lei não é completamente implementada e que mulheres continuam a sofrer violência com impunidade.
Defesa Lado a Lado - Informações 10
Estes resultados se tornaram possíveis graças à realização
de intervenções abrangentes de
capacitação para líderes religiosos/as,
mostrando que a legislação
paquistanesa garante os direitos das
mulheres e que estas leis são compatíveis
com os ensinamentos do islã e de outras
religiões.
Estudo de caso 2:
Líderes religiosos/as* do Paquistão se pronunciam e atuam a favor dos direitos das mulheres nos Distritos de Mansehra (Província de Khyber Pakhtunkhwa) e de Shaheed Benazirabad e Mirpurkhas (Província de Sindh) No Paquistão, 381 líderes religiosos/as engajaram-se a favor dos direitos das mulheres, e seu apoio foi decisivo para garantir os direitos constitucionais das mulheres. Líderes religiosos/as ministraram mais de 11.000 sermões e depoimentos sobre justiça de gênero (especialmente sobre o tema do consenso de noivo e noiva ao casamento e o direito das mulheres à herança), e isso resultou na mudança de atitudes e comportamentos de comunidades acerca da VG. Num período de dois anos e meio, celebradores de casamentos muçulmanos (nikah khuwah) pegaram 636 consentimentos de noivas ao casamento e também asseguraram para mulheres e meninas o haq maher (o dote em dinheiro dedicado à noiva no momento da celebração do casamento, para o caso de divórcio). Com o apoio do Programa VG de NCA Pakistan, os parceiros nesta implementação, Khwendo Kor (KK) e a Parceria Sul-Asiática – Paquistão (South Asia Partnership Pakistan, SAP-PK), sensibilizaram e capacitaram líderes religiosos/as da comunidade muçulmana e de comunidades minoritárias, inclusive a comunidade hindu, acerca de vários assuntos da justiça de gênero. O projeto estava especialmente focado no direito de consentir ou não a casamentos, desencorajando casamentos de crianças, apoiando os direitos das mulheres à herança, combatendo a violência doméstica e encorajando a educação de meninas e as masculinidades positivas. Através de sermões, líderes religiosos/as muçulmanos/as alcançaram um público amplo. No Paquistão, a participação dos sermões da sexta-feira é obrigatória, de modo que os homens recebem estes ensinamentos reunidos numa mesquita, e as mulheres os ouvem através dos alto-falantes das mesquitas mais próximas. Nas áreas do projeto, líderes religiosos/as foram mobilizados/as para ministrar todo mês três sermões de sexta-feira sobre assuntos relacionados à justiça de gênero. Estes resultados se tornaram possíveis graças à realização de intervenções abrangentes de capacitação para líderes religiosos/as, mostrando que a legislação paquistanesa garante os direitos das mulheres e que estas leis são compatíveis com os ensinamentos do islã e de outras religiões. Construir a confiança necessária para convencer líderes religiosos/as muçulmanos/as a se pronunciarem sobre estes assuntos delicados e para superar as percepções equivocadas de que ONGs têm segundas intenções levou tempo. Os parceiros locais reuniram líderes religiosos/as de correntes muçulmanas como xiitas e sunitas e de comunidades hinduístas e cristãs. Isso ajudou a enfrentar assuntos controversos semelhantes em várias comunidades e assegurar que fossem tratados com cuidado e sem conflitos religiosos.
Defesa Lado a Lado - Informações 11
Estudo de caso 3:
Etiópia: agentes inspirados na fé combatem M/CGF de mãos dadas com autoridades nacionais
Ao longo da última década, organizações inspiradas na fé com o
constante apoio de NCA Etiópia deram passos importantes na Etiópia
para acabar com práticas nocivas e a violência de gênero.
Organizações inspiradas na fé engajaram-se de modo proativo na
criação de um diálogo sobre a mutilação/circuncisão de genitálias
femininas (M/CGF). Conseguindo consenso e fazendo declarações
contra esta prática, trabalharam em estreita ligação com partes
interessadas governamentais (construção de relações) e articularam
eventos sobre a M/CGN que ajudaram a motivar os responsáveis
políticos a tomarem medidas afins em nível nacional, regional e local.
Os resultados da Etiópia são apresentados como um exemplo de como
líderes religiosos/as podem impactar políticas e estruturas.
Entre 2009 e 2015, grandes denominações e grupos, como a Igreja
Ortodoxa Etíope, a Comunhão das Igrejas Evangélicas da Etiópia e a
Igreja Católica da Etiópia, declararam-se publicamente contra a
mutilação genital feminina e outras práticas nocivas. Elas deram
passos para mobilizar as respectivas comunidades religiosas e para
desenvolver reflexões teológicas e outros materiais sobre o assunto da
M/CGF. Também o Supremo Conselho Islâmico da Etiópia articulou
diálogos em nível nacional e regional sobre a visão islâmica acerca da
M/CGF. Líderes religiosos/as desempenharam um papel importante ao
levantar este assunto e educar as comunidades durante sermões,
encontros de massas, bem como através de suas mídias e fóruns de
diálogo. O resultado foi que organizações e instituições inspiradas na
fé incluíssem os assuntos das práticas nocivas e da violência de
gênero em seus respectivos currículos em escolas superioras
teológicas, escolas bíblicas e centros de formação do clero.
Ao mesmo tempo, organizações inspiradas na fé e líderes religiosos/as
têm-se dirigido, em suas consultas e fóruns de diálogo, continuamente
ao governo acerca o assunto da M/CGF. Isto resultou em duas
conquistas notáveis. Declarações de organizações inspiradas na fé
contra a M/CGF foram reconhecidas na Estratégia Nacional contra
Práticas Nocivas que proíbe esta prática. O reconhecimento do
Conselho Inter-Religioso da Etiópia como uma agência líder na
coordenação do engajamento de organizações inspiradas na fé na
Etiópia, especialmente em assuntos de M/CGF e casamentos infantis,
confirmou a parceria entre autoridades nacionais e líderes
religiosos/as. Estas duas conquistas mostram como agentes
religiosos/as podem influenciar políticas através de uma forte
cooperação entre os governos e organizações inspiradas na fé.
Conseguindo consenso e fazendo declarações contra a prática, trabalharam em estreita ligação com partes interessadas governamentais (construção de relações) e articularam eventos sobre M/CGN que ajudaram a motivar os responsáveis políticos a tomar passos afins em nível nacional, regional e local.
Defesa Lado a Lado - Informações 12
No esboço inicial da estratégia, a única
referência à religião foi negativa, destacando
narrativas religiosas que oprimem
mulheres e meninas. No início das
consultas oficiais, representantes
religiosos/as não foram incluídos/as.
Fig. 4: Delegação da CPAI no Quartel Geral da União Africana (UA) em Addis
Abeba, janeiro de 2016
Estudo de caso 4:
CPAI introduz a perspectiva religiosa no processo de políticas de
gênero na UA
A Conferência Pan-Africana das Igrejas (All Africa Conference of
Churches, AACC/CPAI) é uma fraternidade de Igrejas cristãs que
representa mais de 120 milhões de cristã(o)s em todo o continente
africano. A CPAI tem uma longa história de atuação junto à União
Africana (UA) e organizou juntamente com a Comissão da União
Africana consultas a organizações inspiradas na fé na Agenda 2063,
um quadro estratégico para a transformação socioeconômica do
continente nos próximos 50 anos. A CPAI trabalha regularmente sobre
assuntos de migração, paz e tráfico humana em nível da UA.
Em 2016, a CPAI se pôs pela primeira vez a caminho para cobrar a UA
acerca de assuntos da justiça de gênero. O desenvolvimento da nova
Estratégia de Gênero da União Africana foi identificado como uma
importante oportunidade e porta de entrada. No esboço inicial da
estratégia, a única referência à religião foi negativa, destacando
narrativas religiosas que oprimem mulheres e meninas. No início das
consultas oficiais, representantes religiosos não foram incluídos/as.
Não obstante, graças a um engajamento informal e um contínuo
Defesa Lado a Lado - Informações 13
trabalho de lobby junto à Diretoria Mulheres, Gênero e
Desenvolvimento (DMGD) e Relações de Gênero da UA, responsável
pela redação do esboço da Estratégia, a CPAI foi convidada a contribuir
nas consultas oficiais.
O engajamento da CPAI também levou à organização de uma consulta
oficial inter-religiosa sobre o esboço da estratégia, o que não fazia parte
dos planos originais. Como resultado desta consulta de dois dias,
juntamente com a participação da CPAI em outras consultas off line e
online e seu contínuo trabalho de lobby junto à WGDD e Relações de
Gênero, elementos propostos por representantes religiosos/as foram
incorporadas no esboço da estratégia. Foi um grande sucesso e um
bom sinal para o engajamento futuro de líderes religiosos/as junto à
AU.
Recomendações
A justiça de gênero estará alcançada quando mulheres e homens,
meninas e meninos desfrutarem em igualdade de direitos humanos,
responsabilidades, perspectivas e oportunidades de vida, bem como
do poder e dos recursos de construir suas vidas e contribuir para a
sociedade, sem acepção de gênero ou sexo. Este paper descreveu e
exemplificou como líderes religiosos/as têm o potencial, a
responsabilidade e as oportunidades de possibilitar movimentos
positivos rumo à justiça de gênero. Aumentar a energia e o escopo
deste movimento requer o seguinte:
o Revisitação dos textos religiosos, para combater narrativas
opressoras e para explorar e partilhar o potencial da religião em
libertar mulheres e meninas, homens e meninos de estereótipos
nocivos de gênero e da injustiça de gênero;
o Defesa da parte de líderes religiosos/as em todos os níveis –
em suas paróquias, congregações, comunidades, sociedades
mais amplas e em âmbito internacional – para desafiar e
responsabilizar as pessoas que desenham políticas e tomam
decisões e para promover e defender a justiça de gênero;
o Colaboração e cooperação crescentes entre líderes
religiosos/as, inclusive de religiões diferentes, para se
apoiarem, informarem e encorajarem mutuamente e para
agirem e se pronunciaram juntos/as com uma só voz para
combater a injustiça de gênero onde for que seja encontrada;
o Mais agentes governamentais e de desenvolvimento que
envolvam líderes religiosos/as e apoiem seu potencial de se
tornarem agentes-chave no alcance da justiça de gênero.
A justiça de gênero estará alcançada quando mulheres e homens, meninas e meninos desfrutarem em igualdade de direitos humanos, responsabilidades, perspectivas e oportunidades de vida, bem como do poder e dos recursos de construir suas vidas e contribuir para a sociedade, sem acepção de gênero ou sexo.
Defesa Lado a Lado - Informações 14
Fig. 5: Lado a Lado – Simpósio da África Oriental, Nairóbi, novembro de 2015
Notas * Nota da tradutora: Na falta da distinção dos gêneros gramaticais no original
inglês optei por traduzir “religious leaders” sempre usando a forma não
inclusiva “líderes religiosos/as”, mesmo quando, pessoalmente, duvidei da
existência de líderes femininas, como no caso das mesquitas paquistanesas.
1 <http://www.pewresearch.org/fact-tank/2017/04/05/christians-remain-worlds-largest-religious-group-but-they-are-declining-in-europe/>. 2 Cf., por exemplo: “Humanitarian crises and the role of faith”, Oxfam The politics of poverty, janeiro de 2017: <https://politicsofpoverty.oxfamamerica.org/2017/01/humanitarian-crises-and-the-role-of-faith/>. 3 Cf., por exemplo: “Religion and Diplomacy”, John Kerry, America, setembro de 2015: <https://www.americamagazine.org/issue/religion-and-diplomacy>. 4 Expressão usada pela Reva. Dra. Lydia Mwaniki, Diretora do Departamento de Teologia, Valores Familiares e Justiça de Gênero na Conferência Pan-Africana de Igrejas, durante sua apresentação oficial num painel sobre “Jovens Trabalhando para Mudar Estereótipos de Gênero” na IX Pré-Cúpula “Gênero” da União Africana, em Addis Abeba 2017. 5 Ferramentas como a “Campanha Tamar” e “Criadas na Imagem de Deus: Da Hegemonia para a Parceria” foram desenvolvidas para promover a justiça de gênero no cristianismo. Atualmente, NCA está apoiando o desenvolvimento de uma ferramenta como a “Campanha Tamar”, mas baseada no islã, para o uso em Mali e na Somália. Link para o manual Tamar: <http://sidebysidegender.org/library/tamar-campaign-contextual-bible-study-manual-on-gender-based-violence/>; link para “Criadas na Imagem de Deus: Da Hegemonia para a Parceria”: <https://berkleycenter.georgetown.edu/publications/created-in-Deus-s-image-from-hegemony-to-partnership>. 6 Plano de Ação da ONU para Líderes e Agentes Religiosos/as para a Prevenção da Incitação à Violência que Pode Levar a Crimes de Atrocidades, p.6: <http://www.un.org/en/genocideprevention/documents/publications-and-resources/Plan%20of%20Action_Religious_Prevent-Incite-WEB-rev3.pdf 7 Christine Jadav, coordenadora regional da Christian Aid Cornwall.