bobbio - o caráter do jusnaturalismo

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BOBBIO, N. “O caráter do jusnaturalismo”. IN: BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e estado na filosofia política moderna. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 13-23. § 1º - embora o termo jusnaturalismo remonte à Antiguidade e à Idade Média, utiliza-se aqui o termo para remeter “à revivescência, ao desenvolvimento e à difusão que a antiga e recorrente ideia do direito natural teve durante a idade moderna, no período que intercorre entre o início do século XVII e o fim do século XVIII” (p. 13). Início: Hugo Grócio (1588-1625), De iuri beli ac pacis (1625). Fim: sem data precisa, mas atrelada a acontecimentos como as grandes codificações (especialmente a napoleônica); renascimento (atavismo latinista) de uma reverência aos profissionais do direito (juristas – positivismo jurídico). Historicismo jurídico, ou Escola histórica do direito (em especial o alemão): Hegel (1802) Sobre os diversos modos de tratar cientificamente o direito natural . Crítica das filosofias do direito precedente, de Grócio, Kant e Fichte. § 2º - sob o nome “escola do direito natural” estão autores muito diversos: Locke e Leibniz; Kant e Hobbes; Wolff e Pufendorf; e, principalmente, Rousseau. § 3º - Para Hobbes, Locke e Rousseau (os três maiores teóricos do direito natural), o tema do direito privado (tão comum entre os jusfilósofos da época), é muito menos importante do que o do direito público, “o problema do fundamento e da natureza do Estado” (p. 14). Estes três

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Page 1: Bobbio - O caráter do jusnaturalismo

BOBBIO, N. “O caráter do jusnaturalismo”. IN: BOBBIO, N.; BOVERO, M.

Sociedade e estado na filosofia política moderna. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São

Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 13-23.

§ 1º - embora o termo jusnaturalismo remonte à Antiguidade e à Idade Média, utiliza-se

aqui o termo para remeter “à revivescência, ao desenvolvimento e à difusão que a antiga

e recorrente ideia do direito natural teve durante a idade moderna, no período que

intercorre entre o início do século XVII e o fim do século XVIII” (p. 13).

Início: Hugo Grócio (1588-1625), De iuri beli ac pacis (1625).

Fim: sem data precisa, mas atrelada a acontecimentos como as grandes codificações

(especialmente a napoleônica); renascimento (atavismo latinista) de uma reverência aos

profissionais do direito (juristas – positivismo jurídico).

Historicismo jurídico, ou Escola histórica do direito (em especial o alemão): Hegel

(1802) Sobre os diversos modos de tratar cientificamente o direito natural. Crítica das

filosofias do direito precedente, de Grócio, Kant e Fichte.

§ 2º - sob o nome “escola do direito natural” estão autores muito diversos: Locke e

Leibniz; Kant e Hobbes; Wolff e Pufendorf; e, principalmente, Rousseau.

§ 3º - Para Hobbes, Locke e Rousseau (os três maiores teóricos do direito natural), o

tema do direito privado (tão comum entre os jusfilósofos da época), é muito menos

importante do que o do direito público, “o problema do fundamento e da natureza do

Estado” (p. 14). Estes três pertencem à história das doutrinas políticas, os outros à

história das doutrinas jurídicas.

§ 4º - apesar das diferenças, há duas perspectivas que permitem ver o que há em comum

a todos os jusnaturalistas: o que eles próprios buscaram, cada um a seu modo, atacar; o

que lhes foi oposto pelos adversários.

§ 5º - ambas perspectivas permitem falar num “princípio de unificação” que dá ao

jusnaturalismo o caráter de uma escola: trata-se do método: “o método que une autores

tão diversos é o método racional, ou seja, aquele método que deve permitir a redução do

direito e da moral (bem como da política), pela primeira vez na história da reflexão

sobre a conduta humana, a uma ciência demonstrativa” (p. 16). Não se trata tanto do

objeto (a natureza), mas do método (o racional) o que unifica a escola.

§ 6º - Hegel difere os empiristas (Hobbes) que partem de uma análise psicológica da

natureza humana, e os formalistas (como Kant e Fichte), que deduzem o direito de uma

ideia transcendental do homem. Todos esses autores, porém, têm um mesmo intento: o

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de construir uma “ética racional, separada definitivamente da teologia e capaz por si

mesma, precisamente porque fundada finalmente numa análise e numa crítica racional

dos fundamentos, de garantir – bem mais do que a teologia, envolvida em contrastes de

opiniões insolúveis – a universalidade da conduta humana” (p. 17). Todos os seus

autores concordam em combater o relativismo ético. Acreditavam que o direito natural

era um só, e que as divergências decorreriam de uma incapacidade de alcançá-lo, o que

um método rigoroso deveria suprir.

§ 7º - para todos eles, seria possível uma “verdadeira” ciência da moral, “entendendo-se

por ciências verdadeiras as que haviam começa a aplicar com sucesso o método

matemático” (p. 18). Os matemáticos, examinando as suas figuras, fazem abstração dos

corpos reais. O Galileu das ciências morais é Hobbes.

§ 8º - para Hobbes, dever-se-ia conhecer as regras da conduta humana com a mesma

precisão com que se conhecem as regras das grandezas das figuras.

§ 9º - no campo das ciências morais, dominava a máxima de Aristóteles, segunda a qual

não seria possível obter o mesmo rigor no conhecimento do justo e do injusto do que no

conhecimento geométrico (Ética a Nicômaco, 1094b). Os argumentos jurídicos

estiveram circunscritos, desde então, à lógica da dialética e da retórica, do

convencimento e das querelas, e não à lógica propriamente dita, “que analisa e

prescreve as regras dos raciocínios demonstrativos” (p. 21). Dever-se-ia, portanto,

substituir a interpretatio pela demonstratio.

§ 10º - para os jusnaturalistas, em contraposição ao direito em voga, a tarefa dos juristas

não seria mais a de interpretar regras já dadas (indexadas às condições históricas em

que foram emitidas), mas descobrir “as regras universais da conduta, através do estudo

da natureza do homem, não diversamente do que faz o cientista da natureza, que

finalmente deixou de ler Aristóteles e se pôs a perscrutar o céu” (p. 22). Não se punha a

ler o Corpus iuris, mas a natureza das coisas.

Page 3: Bobbio - O caráter do jusnaturalismo

BOBBIO, N. “Razão e história”. IN: BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e estado

na filosofia política moderna. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense,

1987, pp. 24-33.

§ 1º - Pufendorf foi o primeiro a refutar a Aristóteles que no conhecimento das coisas

morais só se pode alcançar um conhecimento provável. Para Pufendor, existem além

dos entes físicos, os entes morais, até então negligenciados: “Os entes morais são

modalidades das ações humanas que são atribuídas a estas pelas regras postas por quem

detém a autoridade legítima de impor leis aos homens” (p. 24). Os entes físicos são,

portanto, criados, enquanto os entes morais são impostos segundo regras pressupostas.

A ciência moral deve estudar a conformidade ou a desconformidade das ações humanas

com tais regras.

§ 2º - Spinoza também tenta realizar algo parecido no Tratado político.

§ 3º - Locke também perseguiu o ideal de uma ética demonstrativa.

§ 4º - Leibniz também propunha uma ciência do direito que se desenvolvesse não a

partir de experimentos, mas de definições (ciência que, a exemplo da lógica, da

matemática, da geometria e da ciência do movimento, não depende dos fatos, mas da

razão). Wolff também o objeto do direito deve ser demonstrado, sob pena de, em não o

fazendo, não ser ciência.

§ 5º - Todos os jusnaturalistas refutam o método indutivo de Aristóteles, segundo o qual

o consenso (a partir de um estudo comparativo de todas as legislações) criaria o modelo

verdadeiro da moral. A demonstração do direito deveria ser feita não a posteriori (como

em Aristóteles, o que só conduz a conclusões prováveis), mas a priori, único método

que conduz a conclusões universais e necessárias.

§ 6º - Hobbes é o que melhor refuta o argumento do consenso: para ele, “do consenso de

todos os homens pode-se inferir tudo e o contrário de tudo” (p. 28). Pufendorf concorda

com essa tese.

§ 7º - Locke também critica os argumentos do consenso num texto intitulado A lei de

natureza não pode ser conhecida com base no consenso universal dos homens. “A

demonstração [da lei da natureza] só pode ser obtida por meio da dedução a partir dos

princípios, não da análise das crenças alheias (p. 29).

§ 8º - o primeiro grande antagonista do direito natural é Vico, para quem “o direito

natural das nações nasceu certamente com os costumes comuns das mesmas” (La

scienza nuova prima, apud p. 30).

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§ 9º - IMPORTANTE: “Se o jusnaturalismo acreditara poder descobrir leis universais

da conduta para além da história, remontando-se à natureza do homem abstraída das

condições que determinam as leis mutáveis de povo para povo, de época para época, e,

ao fazer isso, combatera uma memorável batalha contra o princípio de autoridade,

dominante no estudo do direito, o historicismo – em suas várias formas – repôs em

posição de honra, contra a crítica racionalista, a autoridade da história, condenando em

bloco, indiscriminadamente, todos os que, mesmo pertencendo a orientações metafísicas

diversas, mesmo chegando a conclusões políticas opostas, mas igualmente fascinados

pelo sucesso das ciências físicas e atraídos pela ideia de encontrar uma ordem racional

no mundo humano, tal como os grandes cientistas, de Descartes a Newton, haviam

encontrado uma ordem natural no cosmo, tinham se empenhado no sentido de construir

um sistema universal do direito, ou seja, um sistema válido para qualquer tempo e para

qualquer lugar” (p. 31).

§ 10º - Meinecke: “Toda a tarefa do historicismo consistiu em enfraquecer e tornar

móvel o rígido pensamento jusnaturalista, com sua fé na invariabilidade dos supremos

ideais humanos e na igualdade absoluta e eterna da natureza humana” (apud pp. 31-32).

§ 11º - mais importante, porém, do que uma crítica metodológica ao jusnaturalismo, o

historicismo efetuou uma crítica política, de duas ordens diametralmente opostas: “a

conservadora, que viu no abstratismo do direito de razão o princípio da subversão da

ordem constituída”; “e a revolucionária, que viu no mesmo abstratismo a ilusão, mas

apenas a ilusão, senão mesmo o enganoso pretexto de uma nova ordem fundada na

liberdade e na igualdade, enquanto a liberdade e a igualdade efetivamente reivindicadas

eram limitadas e parciais, não um bem de todos, mas um bem da classe hegemônica”

(pp. 32-33).