bakhtin - para uma filosofia do ato
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PARA UMA FILOSOFIA DO ATO
M. M. Bakhtin
Texto completo da edio americana Toward a Philosophy of the Act
(Austin: University of Texas Press, 1993 Translation and Notes by Vadim Liapunov
Edited by Michael Holquist & Vadim Liapunov) Importante: esta traduo, ainda no revisada,
destina-se exclusivamente para uso didtico e acadmico.
Traduo de Carlos Alberto Faraco e Cristovo Tezza
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NDICE
PREFCIO Michael Holquist
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PREFCIO DO TRADUTOR DA EDIO AMERICANA Vadim Liapunov
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INTRODUO EDIO RUSSA S. G. Bocharov
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PARA UMA FILOSOFIA DO ATO
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NOTAS
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PREFCIO
Michael Holquist
Em sua longa vida sob o poder sovitico, Bakhtin experimentou todo o
espectro de conseqncias que um escritor pode gerar, da censura, priso e
banimento fama e adulao. O choque de sua priso durante o terror de Stlin
tornou-o extremamente cauteloso nos ltimos anos. Foi com grande dificuldade
que um grupo de jovens admiradores no incio dos anos 60 convenceram-no a
publicar novamente. E foi somente quando ele alcanava aclamao internacional
como conseqncia dessas publicaes, e j sabendo que sua morte era iminente,
que ele confessou a seus admiradores a existncia de um esconderijo com seus
primeiros escritos. Eles estavam ocultos em Saransk, onde ele viveu depois de
retornar de seu exlio oficial no Cazaquisto. Seus jovens amigos ficaram
extasiados em 1972 ao saber que Bakhtin tinha, ao longo de suas muitas
mudanas, conseguido conservar com ele alguns de seus escritos de juventude.
Mas quando foram Assemblia Legislativa da Mordvia recuperar os
manuscritos, ficaram horrorizados ao descobri-los empacotados num depsito de
madeiras, onde ratos e goteiras haviam danificado severamente os blocos de
notas nos quais Bakhtin sempre escreveu seus livros.
Depois de um longo perodo de decifrao e retranscrio por um ainda
outro grupo devotado de jovens discpulos, descobria-se que os blocos de notas
continham os fragmentos de dois importantes projetos que Bakhtin havia
empreendido no incio de sua carreira, quando ainda se propunha trabalhar na
tradio da filosofia alem. O maior dos dois manuscritos foi publicado como Art
and Answerability pela Editora da Universidade do Texas, em 1990.
O fragmento menor agora publicado como Para uma filosofia do ato
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[Toward a Philosophy of the Act], traduzido e anotado por Vadim Liapunov, cujo
trabalho na edio de 1990 recebeu aclamao universal. O aparecimento do
presente livro um evento importante para pelo menos dois pblicos: o nmero
cada vez maior daqueles que se interessam por Bakhtin como a figura fundadora
do dialogismo, um pensador independente, e o nmero ainda maior daqueles que
se interessam pelas questes relativas relao da filosofia com a teoria literria,
particularmente aqueles ocupados com a relao problemtica entre esttica e
tica.
Para o primeiro grupo, este texto leitura obrigatria porque se trata do
mais antigo dos textos confirmados de Bakhtin, datando de 1919-1921. Ele
estava no centro de todas as privaes e estmulos criados pelos efeitos da
Revoluo, em Nevel e Vitebsk. Havia falta de mantimentos e um caos
extraordinrio em volta, mas para os intelectuais e artistas era um perodo de
grande atividade. Havia muitas orquestras, constitudas por refugiados do antigo
conservatrio imperial de So Petersburgo; a escola de arte era animada por
disputas entre Chagall e Malevich. E havia interminveis conferncias pblicas,
debates em palcos e discusses organizadas que atraam grandes multides que
discutiam em torno das questes eternas sobre Deus, liberdade, justia e poltica.
Embora Bakhtin j nesse tempo sofresse de uma grave osteomielite (e de
complicaes decorrentes de um ataque de tifo), ele era jovem, animado e estava
totalmente engajado em projetos vrios, tanto privados como pblicos.
Para uma filosofia do ato o resultado de um desses projetos. Era difcil
ler o manuscrito original do presente volume no apenas pelos estragos do tempo,
mas tambm porque, na sua maior parte, foi escrito com pressa, com algumas
partes mais claras sob a letra de sua esposa, que transcrevia o ditado do marido
durante os perodos em que sua doena ssea impedia-o de escrever com a
prpria mo. Nos garranchos meio apagados ns podemos sentir a corrida entre a
produo das idias e sua transcrio febril. Este volume nos d uma
oportunidade de ver Bakhtin em todo o calor e urgncia de seu pensamento
enquanto ele luta consigo mesmo. Em Para uma filosofia do ato ns captamos
Bakhtin no ato no ato de criao.
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Alm disso, esse texto ilumina o perfil da obra inteira de Bakhtin, na
medida em que demonstra a profundidade de seu precoce envolvimento no
discurso profissional da filosofia. Mais precisamente, ele revela novas filiaes
entre os temas que pela primeira vez aparecem aqui e que guiaro o pensamento
de Bakhtin atravs do curso de sua longa vida. Os tpicos de autoria,
responsabilidade, eu e o outro, o significado moral da exotopia, o estar do
lado de fora, o pensamento participativo, as implicaes do fato de o sujeito
individual viver um no-libi na existncia, a relao entre o mundo
experimentado pela ao e o mundo representado no discurso todos eles so
discutidos aqui no puro calor da descoberta. Esses temas estaro presentes de
uma forma mais clara e especfica em trabalhos futuros, mas o seu poder de
sugesto e de alcance no sero maiores do que eles j so neste volume. Ns
estamos aqui no corao da matria, no centro do dilogo entre o ser e a
linguagem, o mundo e a mente, o dado e o criado que estaro no mago do
dialogismo distintivo de Bakhtin, como ele mais tarde o desenvolver.
Um modo de estabelecer a importncia desse trabalho contrast-lo com
o projeto que ele est procurando criticar e corrigir. Muito tem-se discutido sobre
o interesse do jovem Bakhtin pela escola de Marburg do neo-kantismo. O que
essas pginas deixam claro a obsesso de Bakhtin no tanto com Hermann
Cohen e seus seguidores, mas com o prprio Kant. Ns sabemos que durante o
tempo em que ele trabalhava com Para uma filosofia do ato, Bakhtin
incessantemente lia, debatia e dava conferncias sobre Kant, como ele
continuaria a fazer depois de seu retorno a So Petersburgo em 1924. Colocando
de forma muito crua, este texto uma tentativa de destranscendentalizar Kant, e
mais particularmente pensar alm da formulao kantiana do imperativo tico.
Kant argumentava que a tica poderia ser fundada no princpio de que
todos os agentes morais deveriam fazer julgamentos como se suas
conseqncias no se aplicassem a um caso particular envolvendo os prprios
interesses do agente, mas antes como se cada julgamento pudesse afetar
qualquer pessoa em qualquer tempo. Bakhtin chama esse princpio de a
universalidade do dever. Tal princpio protege a moral do vcio potencial do
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relativismo descontrolado. Ele portanto tem muito a dizer num mundo ps-
iluminismo no mais capaz de invocar a autoridade de um Deus no
problemtico. O princpio de fato uma verso filosoficamente refinada e
racionalmente motivada da regra de ouro continua a ser construdo na maior
parte das nossas teorias correntes do direito, como formalizado, por exemplo, nas
influentes idias de John Rawl na sua Teoria da Justia de 1971.
Mas a tica de Kant deixa alguma coisa importante de fora, de acordo
com Bakhtin. O sistema altamente abstrato: ele ganha autoridade marcando uma
distncia do especfico, do local de qualquer coisa, em outras palavras, que
tenha um toque subjetivo em torno de si. Bakhtin neste volume est procurando
recuperar a imediaticidade nua da experincia como ela sentida de dentro da
mxima particularidade de uma vida especfica, a lava fundida dos eventos
enquanto eles acontecem. Ele procura a qualidade pura do acontecer na vida
antes que o magma de tal experincia esfrie, endurecendo-se em teorias do fogo,
ou relatos do que aconteceu. E justo como a lava difere da pedra que ela se
tornar, assim os dois estados da experincia vivida, de um lado, e sistemas para
registrar tal experincia, de outro, so fundamentalmente diferentes um do outro.
Bakhtin no est falando sobre o agora familiar abismo entre a ordem dos signos
e a ordem das coisas, mas meditando sobre a diferena mais primordial entre atos
(fsicos e mentais) que ns sentimos como unicamente nossos em sua realizao
eventos ocorrendo no que Bakhtin chama aqui de o evento nico do Ser e
as conseqncias de tais eventos. Ele quer compreender como a diferena entre o
que agora e o que depois-de-agora poderia ser vinculada com a relao que
eu formo entre eles em toda a singularidade do meu lugar nico na existncia.
A maioria das pessoas reconhecer intuitivamente que alguma coisa
sempre deixada para fora quando ns descrevemos nossas aes. Bakhtin
argumenta que isso no meramente uma fraqueza do nosso poder de descrio,
mas uma desunidade construda na natureza das coisas. Como, ento, podem as
duas ordens experincia e representao da experincia ser colocadas juntas?
Esse um problema que outros membros do crculo de Bakhtin em Nevel e
Vitebsk estavam tambm procurando resolver, e seus encontros eram devotados a
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interminveis discusses sobre o assunto. O amigo filsofo de Bakhtin, Matvei
Kagan, estava usando a historiografia como um exemplo de como um evento e
sua descrio poderiam ser concebidos para ter coerncia; Pumpiansky lutava
com a questo em suas leituras de Dostoivski. Mas foi Bakhtin quem tentou
confrontar diretamente o problema.
Muito da dificuldade da prosa de Bakhtin deriva, portanto, da
complexidade da tarefa que ele se imps. Num sentido bastante literal, ele volta
ao ponto em que Kant comeou seu questionamento: como podem conceitos, que
por definio devem ser transcendentais (no sentido de serem independentes de
qualquer experincia particular se pretendem organizar a experincia em geral)
relacionarem-se com a minha experincia subjetiva em toda a sua unicidade?
Experincia possvel um fator maior no sistema de Kant, o que incomoda
Bakhtin, aqui, grandemente. Porque experincia possvel uma ordem de
experincia que no unicamente minha; ela presume que eu possa totalmente
me identificar com um outro: A pura empatia, isto , o ato de coincidir com um
outro e perder o prprio lugar nico no Ser nico, pressupe o reconhecimento de
que minha prpria unicidade e a unicidade do meu lugar constituem um momento
no essencial que no tem influncia no carter da essncia do ser do mundo.
Mas esse reconhecimento da unicidade prpria nica como no essencial para a
concepo do Ser tem a inevitvel conseqncia de que se perde tambm a
unicidade do Ser, e, como resultado, ns chegamos concepo do Ser apenas
como Ser possvel, e no essencial, real, nico, inescapavelmente Ser real. Esse
ser possvel, contudo, incapaz de devir, incapaz de viver. O significado de um
Ser para o qual o meu lugar nico no Ser foi reconhecido como no essencial no
ser jamais capaz de me conferir sentido, nem esse realmente o significado do
Ser-evento (p. 17 da presente traduo).
Bakhtin est condenado, desde o incio, pela natureza de seu assunto, a
realizar uma tarefa impossvel: Todas as tentativas de forar caminho de dentro
do mundo terico para o Ser-evento real so completamente sem esperana (p.
13 da presente traduo). Mesmo reconhecendo que todas as descries dos atos
diferem fundamentalmente dos atos tais como eles realmente so realizados, ele
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procura descrever o prprio ato. uma maneira particularmente complexa de
demonstrar a verdade do velho dito segundo o qual voc no pode escapar da
teoria, porque qualquer oposio teoria em si inelutavelmente terica.
Tambm, e no por coincidncia, Bakhtin aqui revela alguns dos pathos
existenciais que repousam nesta inelutabilidade.
Em sua tentativa de criar uma ponte no abismo entre o ato vivido e a
representao do mesmo ato (que, claro, no nunca o mesmo), Bakhtin
ope-se ao princpio kantiano do como se, colocando no lugar um outro
princpio: aquele do no-libi na existncia. A maior diferena entre os dois
princpios (pelo menos no nvel formal; h, claro, muitas diferenas em outros
nveis que no so menos definidoras) pode ser localizada na fundao que cada
um pressupe como a base da ao tica. Para Kant, a sntese entre
sensibilidade e razo sobre a qual todo o seu sistema baseado. Esta sntese
requer de Kant a postulao de duas formas bsicas de intuio, tempo e espao,
e suas doze categorias (substncia, fora, etc.) como transcendentalmente
necessrias, na medida em que elas so anteriores a qualquer ato especfico de
julgamento.
Bakhtin, tambm, est aqui procurando uma sntese entre sensibilidade (o
ato vivido, o mundo de postupok1) e razo (nossos sistemas discursivos
descrevendo ou dando significado ao ato, um mundo sempre aberto ao perigo de
cair em mero teoreticismo). Mas o todo que ele postula como capaz de conter
ambos no fundado em uma estrutura pr-existente (a necessria co-
dependncia entre razo e compreenso, sensibilidade pessoal e categorias extra-
pessoais que so sempre anteriores a instncias especficas, isto , a sntese
transcendental de Kant).
Para Bakhtin, a unidade de um ato e seu relato, uma ao e seu
significado, se preferir, algo que nunca um a priori, mas que deve sempre e
em toda parte ser conquistado. O ato uma ao, e no um mero acontecimento
(como em uma maldita coisa depois da outra), apenas se o sujeito de tal
1 Postupok: do russo, meu prprio ato ou ao individualmente responsvel. V. nota 10 ao final do
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postupok, de dentro de sua unicidade radical, tece uma relao com ele em seu
relato dele. A responsabilidade, ento, a fundao da ao moral, o modo pelo
qual ns superamos a culpa da ciso entre nossas palavras e nossas aes, mesmo
que no tenhamos um libi na existncia de fato, porque no temos tal libi:
apenas o meu no-libi no Ser que transforma uma possibilidade vazia em um ato
ou ao responsvel e real... (p. 44 da presente traduo).
Uma maneira de imaginar a importncia que o no-libi tem para Bakhtin
pens-lo no como uma carncia que eu deva preencher, mas como uma
carncia no Ser, um buraco no tecido do mundo. O vcuo que o No-libi parece
nomear para Bakhtin alguma coisa de que todos ns temos conscincia. o
espao entre o conhecimento objetivo e subjetivo que, especialmente em face do
poder indubitvel das cincias exatas desde o sculo XVII, manifesta-se com
freqncia crescente. A diferena entre a ordem do mundo matemtico e o mundo
da experincia humana sempre tem sido reconhecida. A impersonalidade do
mundo objetivo da geometria era justamente o que a recomendava para Plato
como um modelo de perfeio que poderia proveitosamente se opor ao mundo
desajeitado dos reflexos no qual os seres humanos reais vivem suas breves
existncias, confundidos por imitaes degradadas e sombras bruxuleantes. A
diferena entre o cosmo objetivo e nosso mundo humano foi demonstrada aos
legionrios romanos cada vez que uma de suas unidades era punida com a
dizimao: na ordem dos nmeros, a diferena entre nove e dez puramente
sistmica; para o soldado postado na nona linha significava vida, enquanto o fato
objetivo de ser o dcimo condenava o prximo homem da linha morte. A
diferena entre este evento como visto apenas da perspectiva da teoria dos
nmeros, e como o que significa para um legionrio real num dia particular a
ciso que a categoria do no-libi de Bakhtin procura conciliar.
A distino se tornou ainda mais profunda na fsica ps-quntica. Como
Richard Feynman define o caso com sua clareza costumeira, em todas as leis da
fsica que ns encontramos at aqui no parece haver qualquer distino entre
volume. (Nota da trad. brasileira)
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passado e futuro2. Isto , as leis da gravidade, eletricidade e magnetismo,
interao nuclear, as leis da partcula beta elas so todas indiferentes ao tempo,
j que so em si processos que permanecem os mesmos, mesmo que a ordem em
que ocorram se inverta. Mas apesar disso, se um copo de gua cai da mesa,
nenhum de ns espera que as gotas se reconstituam, que os cacos estilhaados
voem juntos de volta forma anterior, ou ento que todo o complexo salte do
cho de volta mesa.
O modo mais pungente pelo que manifestamos nossa expectativa de que
o tempo no reversvel o conhecimento seguro que cada um de ns tem de
que um dia morreremos. E entretanto o copo e nossos corpos so feitos no
mais bsico nvel de tomos, molculas e quarks, todos eles comportando-se,
literalmente, como se no houvesse amanh ou ontem. As frias extenses do
espao, o cosmo como ele entendido na fsica terica, um espao no qual os
seres humanos no so necessrios. de fato o caso que, como Bakhtin diz, um
abismo se formou entre o motivo de um ato ou ao realmente realizados e seu
produto (...). Ns evocamos o fantasma da cultura objetiva, e agora no sabemos
como exorciz-lo (pp. 57-58 da presente traduo).
E entretanto no podemos, como fizeram alguns dos assim chamados
filsofos da vida (Dilthey, Bergson), ou os existencialistas nos anos 50, ignorar o
mundo objetivo: nosso mundo como ao responsvel no deve se opor teoria
e ao pensamento, mas incorpor-los em si como momentos necessrios que so
totalmente responsveis (p. 58 da presente traduo).
Isso significa que o mundo no qual um ato ou ao realmente se
desenvolve, no qual ele realmente completado, um mundo unitrio e nico
(...). A unicidade unitria desse mundo (...) garantida realidade pelo
reconhecimento de minha participao nica nesse mundo, por meu no-libi
nele. (...) Esse mundo dado para mim, do meu nico lugar no Ser, como um
mundo que concreto e nico. Para a minha conscincia participativa que age,
esse mundo, como um todo arquitetnico, est disposto em torno de mim como
2 Richard Feynman, The Distinction of Past and Future, em The World Treasury of Physics,
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em torno daquele nico centro do qual minha ao flui o aparece: eu dou com
esse mundo, tanto quanto eu venho ou fluo de dentro de mim mesmo no meu ato
ou ao de ver, pensar ou fazer alguma atividade prtica (p. 59 da presente
traduo).
Para uma filosofia do ato em si um exemplo do que Bakhtin est
procurando compreender. Sua ao tinha um significado para ele como um ser
nico da segunda dcada deste sculo sombrio; mas a possvel camada de
subjetividade que o ato constitua se justifica atravs da ressonncia que ele tem
em um tempo diferente e em um lugar diferente. argumentativamente o caso de
que as diferenas entre Itlia e Rssia, Amalia Riznich e Alexander Pushkin,
analisadas na leitura de Bakhtin do poema de Pushkin de 1830, so nada,
comparadas s diferenas entre o lugar nico de Vitebsk, em 1920, e os Estados
Unidos, em 1993, ou entre o ser nico que foi Bakhtin no momento da
composio deste texto e a unicidade de cada um de ns que l o texto aqui e
agora. Mas o no-libi que Bakhtin procurava sublinhar neste texto encontra
(uma de) sua justificativa(s) na nova configurao do mundo unitrio e nico
constitudo pela apropriao nica que cada um de ns como leitores faremos da
obra. Num tempo e num lugar dominados pela redescoberta da radicalidade
potencial da tradio kantiana, por uma nova volta ao criticismo tico, e pelas
discutidas questes levantadas pelo problema da conhecimento situado,
Filosofia do ato encontrar sua prpria responsabilidade.
Astronomy, and Mathematics (Boston: Little, Brown and Company, 1991), p. 148.
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PREFCIO DO TRADUTOR DA EDIO AMERICANA
Vadim Liapunov
Para uma filosofia do ato uma traduo de um ensaio filosfico
inacabado de M. M. Bakhtin (1895-1975) que foi publicado na Rssia em 1986
por S. G. Bocharov sob o ttulo K filosofii postupka.
De acordo com Bocharov, o manuscrito chegou a ns em pssimas
condies: faltam as pginas de abertura (e portanto no sabemos que ttulo o
prprio Bakhtin deu ao ensaio) e muitas palavras e frases so dificilmente
legveis ou mesmo completamente ilegveis.
Ns sabemos o que Bakhtin planejava realizar, porque na pgina 56 do
presente volume ele nos d um esquema de todo o trabalho. Ele compreenderia
quatro partes, das quais parece que Bakhtin escreveu apenas a primeira (ns no
sabemos qual a extenso do texto). A Parte I comea na pgina 59 do presente
volume; o texto que a precede , portanto, uma introduo, com vrias pginas
faltando no incio.
O pargrafo de abertura da introduo (em sua forma truncada) uma
concluso: A atividade esttica tambm incapaz de... Julgando pelo pargrafo
imediatamente seguinte, podemos assumir que nas pginas precedentes Bakhtin
tratava no apenas da atividade esttica (intuio esttica, viso esttica), mas
tambm da atividade do pensamento discursivo terico (realizado pelas cincias
naturais e pela filosofia) e da atividade da descrio-exposio histrica.
Todas essas atividades no tm acesso eventicidade do Ser, no tm
acesso ao Ser como um evento em processo. (Em outro contexto, Bakhtin explica
que o evento em processo do Ser um conceito fenomenolgico, por estar
presente para uma conscincia viva como um evento em processo, e uma
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conscincia viva ativamente orienta-se e vive nele como um evento em
processo). Todas essas atividades passam a estabelecer uma ciso radical entre o
contedo-sentido de um ato dado (isto , seu noema) e a realidade histrica de
seu ser, vale dizer, a real realizao-experimentao nica desse ato. O dado ato,
contudo, uma realidade atual (isto , participa no evento nico do Ser) apenas
como um todo individido: apenas o todo desse ato um participante real, vivo, no
evento em processo do Ser.
O resultado ltimo da separao entre o contedo de um ato e a sua
realizao-experimentao nica que ns nos encontramos divididos entre dois
mundos no comunicantes e mutuamente impenetrveis: o mundo da cultura (no
qual os atos de nossa atividade so objetivados) e o mundo da vida (no qual ns
realmente criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e
morremos isto , o mundo no qual os atos de nossa atividade so realmente
realizados uma vez e uma nica vez). (O leitor pode notar aqui a antecipao de
Bakhtin do conceito de Husserl do Lebenswelt).
Concentrando-se principalmente sobre a cognio terica e sobre a
intuio esttica, Bakhtin argumenta que nenhuma das duas tem qualquer meio
de ganhar acesso (de dentro delas) ao Ser como um evento em processo (isto ,
ao mundo da vida), porque no h nelas unidade e interpenetrao entre o
contedo ou produto de um ato e a realizao histrica real desse ato, em
conseqncia de uma abstrao fundamental e essencial de si mesmo, como
participante, para estabelecer algum sentido e viso. Na intuio esttica,
exatamente como na cognio terica, existe a mesma no-comunicao radical
entre o objeto do ato da viso esttica (o objeto sendo um subiectum e sua vida) e
o subiectum que o portador-realizador desse ato de ver: no contedo da viso
esttica ns no encontraremos o ato realmente realizado daquele que v.
E entretanto o ato inteiro, integral, da nossa atividade, da nossa
experimentao real, tem dupla face: ele se dirige tanto para o contedo quanto
para o ser (a real execuo) do ato. O plano unitrio e nico onde ambos as faces
do ato mutuamente se determinam (isto , onde eles formam um todo individido)
constitudo pelo evento em processo, nico, do Ser. Para refletir-se em ambas
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as direes (no seu sentido e no seu ser) o ato precisa, portanto, ter a unidade da
responsabilidade ou respondibilidade bilateral: precisa responder tanto pelo seu
contedo-sentido quanto pelo seu ser. A responsabilidade pelo seu ser constitui a
sua responsabilidade moral, na qual o responsabilidade pelo seu contedo precisa
ser integrada como um momento constituinte. A desunio perniciosa e a no
interpenetrao da cultura e da vida pode ser superada apenas recuperando-se a
integridade do ato de nossa atividade.
Porque na realidade cada pensamento meu (cada experincia vivida, cada
ato), juntamente com seu contedo, constitui uma ao individualmente
responsvel minha ao ou realizao individualmente responsvel; uma das
minhas aes individualmente responsveis das quais minha vida nica (unitria,
singular, exclusiva) composta como uma ao-realizao ininterrupta. A essa
minha ao individualmente responsvel Bakhtin chama postupok
(etimologicamente, o nome significa um passo dado ou dar um passo) em
distino com o mais geral akt (o equivalente russo ao latim actus e actum). Todo
o ensaio (projetado) de Bakhtin est centrado no fenmeno do meu postupok, da
minha ao ou realizao individualmente responsvel, e no mundo em que meu
postupok orienta-se sob a premissa de sua participao nica no Ser como um
evento em processo (o mundo de uma vida nica, individual, como um postupok).
Para traduzir Bakhtin necessitei de bastante apoio, encorajamento e
conselhos de amigos e colegas. Sou especialmente grato a Michael Holquist,
Savely Senderovich, James Hart, Nina Perlina e Caryl Emerson.
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INTRODUO EDIO RUSSA
S. G. Bocharov
Entre os trabalhos de Bakhtin publicados postumamente na coleo de
seus ensaios Estetika slovesnogo tvorchestva [Esttica da Criao Verbal]
(Moscou: Iskusstvo, 1979), o texto de importncia central o tratado O autor e
o Heri na Atividade Esttica3. Bakhtin trabalhou nesse tratado no incio dos
anos 20, mas no o terminou; ele foi publicado de um manuscrito que se
preservou (infelizmente, de uma forma incompleta) entre seus papis. Os papis
de Bakhtin tambm incluem o manuscrito de um outro tratado filosfico que
bastante similar em sua problemtica, idias bsicas e linguagem ao Autor e
Heri na Atividade Esttica. Esse manuscrito tambm foi preservado de uma
forma incompleta, que ns estamos publicando aqui sob o ttulo K filosofii
postupka [Para uma filosofia do ato]4.
O texto aqui publicado representa apenas a parte inicial de um projeto
filosfico mais extenso. O texto consiste de dois grandes fragmentos. O primeiro
aparentemente a introduo a um tratado sobre filosofia moral que consistiria
de vrias partes, de acordo com o plano esquematizado ao final da introduo.
3 Os trabalhos que compem a coletnea de 1979, qual Bocharov se refere, foram traduzidos em ingls
e publicados em duas coletneas separadas: M.M. Bakhtin, Speech Genres and Other Late Essays, trad. Vern W. McGee (Austin, University of Texas Press, 1986), e Art and Answerability: Early Philosophical Essays de M. M. Bakhtin, trad. Vadim Liapunov (Austin, University of Texas Press, 1990). O autor e o heri na atividade esttica aparece nesse ltimo volume. [No Brasil, O autor e o heri na atividade esttica est na coletnea Esttica da criao verbal. So Paulo, Martins Fontes, 1992].
4 O original russo de Para uma filosofia do ato foi publicado no livro do ano do Conselho Cientfico dos Problemas Sociais e Filosficso da Cincia e da Tecnologia (Academia de Cincias da URSS) em 1986: Filosofiia i sotsiologiia nauki i tekhniki: Ezhegodnik 1984-85 (Moscou: Nauka, 1986, pp. 82-138). Como suplemento, o livro inclui um framento do primeiro captulo de O autor e o heroi na atividade esttica (pp.138-157) que no foi publicado na coletnea de 1979 Estetika slovesnogo tvorchestva [A esttica da criao verbal]. As notas aos dois textos publicados nesse livro do ano so de S. Averintsev (pp. 157-160). A introduo de Bocharov est nas pginas 80-82.
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No manuscrito, faltam as primeiras pginas da introduo: as primeiras oito
pginas de 52, de acordo com a paginao do autor. A introduo seguida
imediatamente por parte I (que como o autor a intitulou no manuscrito);
apenas o incio dessa parte se preservou (dezesseis pginas, de acordo com a
paginao do autor).
Tanto o contedo do texto aqui publicado quanto o plano previsto de
todo o tratado provam que a esttica filosfica caracterstica apresentada em O
Autor e o Heri na Atividade Esttica era apenas uma parte de um projeto
filosfico maior que ia muito alm dos limites da esttica. Esse projeto diz
respeito a questes mais gerais que esto na fronteira da esttica com a filosofia
moral; relaciona-se com o que Bakhtin chamada de mundo da ao humana o
mundo do evento [mir sobytiia], o mundo do ato realizado [mir postupka]. A
categoria principal desse tratado projetado responsabilidade [otvetstvennost],
e a sua concretizao distintiva uma imagem-conceito que Bakhtin introduz
aqui um no-libi no Ser [ne-alibi v bytii]: um ser humano no tem direito a
um libi a uma evaso dessa responsabilidade nica que constituda pela sua
atualizao de seu lugar nico, irrepetvel no Ser; ele no tem direito a uma
evaso desse nico ato ou ao responsvel que toda a sua vida constitui (cf. a
antiga parbola do talento enterrado como uma parbola da transgresso moral).5
com um discurso sobre responsabilidade que Bakhtin entrou na vida
intelectual do seu tempo nos anos imediatamente ps-revolucionrios: sua mais
antiga publicao conhecida (1919) foi um artigo intitulado Arte e
Responsabilidade6. Ele fala em um tom apaixonado sobre superar o velho
divrcio entre a arte e a vida atravs de sua mtua responsabilidade; e essa
responsabilidade deveria se realizar na pessoa individual, que precisa se tornar
totalmente responsvel: Eu tenho que responder com minha prpria vida por
aquilo que eu experimentei e compreendi na arte...7. Bakhtin provavelmente
5Bocharov se refere Parbola dos Talentos: Mateus 25:14-30. Cf. Lucas 19:12-27. 6Uma traduo desse artigo em ingls aparece em Art and Answerability, pp. 1-2. [Nota da traduo
brasileira: esse artigo ainda no foi publido em portugus.] 7V. Bakhtin, Art and Answerability, p. 1.
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comeou a trabalhar no tratado Para uma filosofia do ato logo depois desse
artigo programtico, e ele inspirado pelo mesmo desejo de superar a perniciosa
no-fuso e no-interpenetrao entre a cultura e a vida. Pode-se sentir essa
paixo atrs da linguagem tcnica um tanto difcil do tratado, que reflete,
naturalmente, as linhas filosficas do tempo em que foi escrito. A dimenso
crtica muito pronunciada no texto publicado aqui: Bakhtin desenvolve uma
crtica ao teoreticismo fatal da filosofia daquele tempo (na epistemologia, na
tica e na esttica) e ope a ele, como uma tarefa a ser realizada, a unidade
responsvel do pensamento e da ao realizada; ele tambm introduz categorias
tais como pensamento ao-realizao [postupaiushchee myshlenie] e
pensamento participativo (no-indiferente) [uchastnoe myshlenie]. Um ser
humano que pensa participativamente no destaca [seu] ato realizado de seu
produto esta a tese principal deste original filosofia do ato ou ao
responsvel [filosofii postupka], como o prprio autor define o contedo desse
tratado no texto aqui publicado. Baseado nessa definio, ns intitulamos esse
texto Para uma filosofia do ato [K filosofii postupka], j que no conhecemos o
ttulo dado pelo prprio autor.
Bakhtin aparentemente trabalhou nesse tratado durante sua estada em
Vitebsk (1920-1924). muito provvel que o peridico iskusstvo [Arte] (I
[maro, 1921]:23), de Vitebsk, referia-se a esse trabalho quando noticiou que
M. M. Bakhtin continua trabalhando num livro devotado aos problemas da
filosofia moral. No texto aqui publicado ns encontramos o jovem Bakhtin, no
comeo de sua carreira; e descobrimos aqui as fontes filosficas de algumas
idias capitais que ele continuar a desenvolver no curso de mais de meio sculo
de sua atividade como pensador.
Foi no contexto do trabalho nesse tratado sobre filosofia moral que
Bakhtin comeou a escrever o ensaio sobre esttica que o leitor conhece O
autor e o heri na atividade esttica. Esse ensaio foi aparentemente uma
ramificao do tratado sobre filosofia moral e foi escrito um pouco mais tarde. O
texto de O autor e o heri que foi publicado em Estetika slovesnogo
tvorchestva [A esttica da criao verbal] no incluiu um extenso fragmento do
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18
primeiro captulo, que trata de certas proposies preliminares com respeito ao
ser humano como condio da viso esttica na vida real e na arte. Ns estamos
tambm publicando este fragmento no presente volume (sob o ttulo de todo o
tratado, O autor e o heri na atividade esttica)8. O texto de O autor e o heri
publicado em Estetika slovesnogo tvorchestva segue-se imediatamente depois
desse fragmento. O leitor notar o modo em que o contedo de Para uma
filosofia do Ato transborda para o seu tratado sobre esttica; h formulaes em
ambos os textos que so muito semelhantes, e nos dois textos ns encontramos
variantes de uma anlise do mesmo poema de Pushkin. Era caracterstico para
Bakhtin voltar a certos temas capitais constantes no seu trabalho filosfico e
formular novas variantes de suas idias favoritas. No rascunho de um prefcio
para uma coletnea de seus trabalhos de vrios anos, Bakhtin anotou: Meu amor
pelas variaes e pela diversidade de termos para um mesmo fenmeno.9
Podemos tambm observar esse amor pelas variaes em certos temas e idias
nos dois textos de juventude publicados no presente volume.
O leitor dever ter em mente que Bakhtin no preparou esses manuscritos
para publicao; e por isso que a exposio nesses textos assume s vezes a
forma de enunciados-teses e sumrios. Os manuscritos chegaram at ns em
pssimas condies; algumas palavras no puderam ser decifradas, enquanto
outras foram decifradas como conjecturas (nesse caso, esto indicadas por um
ponto de interrogao entre colchetes em seguida). O difcil trabalho de decifrar
os manuscritos e prepar-los para publicao foi realizado por L. V. Deriugina, S.
M. Aleksandrov e G. S. Bernshtein.
8 Uma traduo desse fragmento em ingls aparece em Bakhtin Art and Answerability, pp. 208-231.
[Nota da traduo brasileira: esse fragmento ainda no foi publicado em portugus] 9 Bakhtin, Speech Genres and Other Later Essays, p. 155.
-
19
PARA UMA FILOSOFIA DO ATO
M. M. Bakhtin
(...) A atividade esttica tambm incapaz de tomar posse daquele
momento do Ser que constitudo pela transitividade e aberta eventicidade do
Ser.1 E o produto da atividade esttica no , com relao ao significado, o Ser
real em processo de devir, e, com respeito ao seu ser, ele entra em comunho
com o Ser atravs de um ato histrico de efetiva intuio esttica.2 A intuio
esttica incapaz de apreender a real eventicidade do evento nico, porque suas
imagens ou configuraes so objetivadas, isto , com relao ao seu contedo,
elas esto situadas do lado de fora do devir nico real elas no participam dele
(elas participam dele apenas como um momento constituinte da conscincia viva
e vivente de um contemplador).3
O momento que o pensamento terico discursivo (nas cincias naturais e
na filosofia), a descrio-exposio histrica e a intuio esttica tm em comum,
e que de particular importncia no nosso estudo, este: todas essas atividades
estabelecem uma ciso entre o contedo ou sentido de um dado ato-atividade, e a
realidade histrica do seu ser, a real e nica experincia dele.4 E em
conseqncia disso que o ato dado perde sua validade e a unidade de seu real
devir e auto-determinao. Este ato verdadeiramente real (ele participa do Ser-
-
20
evento nico) apenas em sua inteireza. Apenas esse ato inteiro est vivo, existe
completa e inescapavelmente vem a ser, completado. Ele um participante
real vivo no evento em processo do Ser: ele est em comunho com a unidade
nica do Ser em processo5. Mas essa comunho ou participao no penetra seu
aspecto de contedo-sentido, que pretende ser capaz de alcanar plena e
definitiva auto-determinao dentro da unidade deste ou daquele domnio de
sentido ou significado (cincia, arte, histria), embora, como mostramos, esses
domnios objetivos, separados do ato que os pe em comunho com o Ser, no
so realidades com respeito ao seu sentido ou significado.6
E como resultado, dois mundos se confrontam, dois mundos que no tm
absolutamente comunicao um com o outro e que so mutuamente
impenetrveis: o mundo da cultura e o mundo da vida, o nico mundo no qual
nos criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos ou
o mundo no qual os atos da nossa atividade7 so objetivados e o mundo do qual
esses atos realmente provm e so realmente realizados uma e nica vez.
Um ato de nosso atividade, de nossa real experincia, como um Jano
bifronte. Ele olha em duas direes opostas: ele olha para a unidade objetiva de
um domnio da cultura e para a unicidade irrepetvel da vida realmente vivida e
experimentada.8 Mas no h um plano unitrio e nico onde ambas as faces
poderiam mutuamente se determinar com relao a uma nica e singular unidade.
apenas o evento nico do Ser no processo de realizao que pode constituir
essa unidade nica; tudo que terico ou esttico deve ser determinado como um
momento constituinte do evento nico do Ser, embora no mais, claro, em
termos tericos ou estticos. Um ato deve adquirir um plano unitrio singular
para ser capaz de refletir-se em ambas as direes no seu sentido ou significado
e em seu ser; ele deve adquirir a unidade de dupla responsabilidade tanto pelo
seu contedo (responsabilidade especial) como pelo seu Ser (responsabilidade
moral).9 E a responsabilidade especial, alm disso, deve ser trazida (deve entrar)
em comunho com a responsabilidade moral nica e unitria como um momento
constituinte dela. Esse o nico meio pelo qual a perniciosa diviso e no-
interpenetrao entre cultura e vida poderia ser superada.
-
21
Cada pensamento meu, junto com o seu contedo, um ato ou ao que
realizo meu prprio ato ou ao individualmente responsvel [postupok]10.
um de todos aqueles atos que fazem da minha vida nica inteira um realizar
ininterrupto de atos [postuplenie]. Porque minha vida inteira como um todo pode
ser considerada um complexo ato ou ao singular que eu realizo: eu realizo, isto
, executo atos, com toda a minha vida, e cada ato particular e experincia vivida
um momento constituinte da minha vida da contnua realizao de atos
[postuplenie]. Como um ato executado, um dado pensamento forma um todo
integral: tanto seu contedo-sentido quanto o fato de sua presena na minha
conscincia real a conscincia de um ser humano perfeitamente determinado
em um tempo particular e em circunstncias particulares, isto , toda a
historicidade concreta de sua realizao ambos os momentos (o momento do
contedo-sentido e o momento histrico-individual) so unitrios e indivisveis
na avaliao desse pensamento como minha ao ou ato responsvel.
Mas pode-se tomar o momento do contedo-sentido abstratamente, isto
, um pensamento como um juzo universalmente vlido. Para esse aspecto
abstrato do sentido do pensamento, o aspecto histrico-individual (o autor, o
tempo, as circunstncias e a unidade moral de sua vida) completamente
imaterial, porque esse juzo universalmente vlido pertence unidade terica do
domnio terico apropriado, e seu lugar nessa unidade determina exaustivamente
sua validade. A avaliao de um pensamento como um ato ou ao individual
leva em considerao e inclui em si, completamente, o momento constitudo pela
validade terica de um pensamento como juzo, isto , uma avaliao da validade
do juzo constitui um momento necessrio na composio do ato realizado,
embora ele ainda no esgote esse ato. Para a validade terica de um juzo, por
outro lado, o momento histrico-individual a transformao de um juzo em um
ato ou ao responsvel de seu autor completamente imaterial. Eu mesmo
como aquele que est realmente pensando e que responsvel pelo seu ato de
pensar eu no estou presente no juzo teoricamente vlido. O juzo teoricamente
vlido, em todos os seus momentos constituintes, impenetrvel minha auto-
atividade individualmente responsvel. Independentemente dos momentos que
-
22
distinguimos num juzo teoricamente vlido tais como forma (as categorias da
sntese) e contedo (o assunto, o dado experimental e sensual), ou objeto e
contedo a validade11de todos esses momentos permanece completamente
impenetrvel ao momento constitudo por um ato individual uma ao realizada
por aquele que pensa.
A tentativa de conceber o dever12 como a mais alta categoria formal (a
afirmao-negao de Rickert)13 est baseada num equvoco. O dever capaz de
fundar a presena real de um juzo dado na minha conscincia sob dadas
condies, isto , a concretude histrica de um fato individual, mas no a terica
veridicidade em si14 do juzo. O momento da veridicidade terica necessrio,
mas no suficiente, para fazer de um juzo um juzo de dever para mim; que um
juzo seja verdadeiro no suficiente para transform-lo num ato de dever
[postupok] do pensamento. Permita-me uma analogia um tanto crua: a irretocvel
correo tcnica de um ato realizado no resolve ainda a questo de seu valor
moral. A veridicidade terica tcnica ou instrumental em relao ao dever. Se o
dever fosse um momento formal de um juzo, no haveria ruptura entre vida e
cultura como criao, entre o ato do julgamento como uma ao realizada (um
momento na unidade do contexto da minha nica vida) e o contedo-sentido de
um julgamento (um momento em alguma unidade terica objetiva da cincia), e
isso significaria que existiria um contexto unitrio e nico da cognio e da vida,
da cultura e da vida (o que no o caso, claro). A afirmao de um juzo como
um juzo verdadeiro relacion-lo a uma certa unidade terica, e essa unidade
no de modo algum a unidade histrica nica da minha vida.
No h sentido em falar de alguma espcie de dever terico; enquanto eu
estou pensando, eu devo pensar veridicamente; veridicidade ou ser-verdadeiro o
dever de pensar. Ser mesmo o caso de que o momento do dever-ser seja inerente
prpria veridicidade?15 O dever surge apenas na correlao da verdade (vlida
por si) com nosso ato real de cognio, e esse momento de estar correlacionado
historicamente um momento nico: ele sempre um ato ou ao individual
[postupok] que no afeta em nada a validade terica objetiva de um juzo, um ato
ou ao individual que avaliado e atribudo dentro do contexto unitrio da vida
-
23
real, nica, de um sujeito. A veridicidade sozinha no suficiente para o dever-
ser. Mas, por outro lado, o ato responsvel que vem do interior do sujeito, o ato
de reconhecimento de que o dever verdadeiro esse ato, tambm, no penetra
de modo algum na composio terica e validade de um juzo. Por que, enquanto
eu estou pensando, devo pensar veridicamente? O dever-ser da veridicidade no
decorre em nada da determinao terico-cognitiva da veridicidade. O momento
do dever-ser est completamente ausente do contedo dessa determinao e no
pode derivar dela; ele pode ser apenas ser introduzido de fora e fixado nela
(Husserl)16. No todo, nenhuma determinao e proposio terica pode incluir no
seu interior o momento do dever-ser, nem esse momento derivvel delas. No
existe dever esttico, dever cientfico, e ao lado deles um dever tico; h
apenas aquilo que esteticamente, teoricamente, socialmente vlido, e tais
validades17 podem ser reunidas pelo dever, do qual todas elas so instrumentos.
Essas asseres ganham sua validade no interior de uma unidade esttica,
cientfica ou sociolgica: o dever ganha sua validade dentro da unidade da minha
vida responsvel nica.
Realmente, no se pode falar de nenhuma espcie de normas morais,
ticas, de nenhum dever com um determinado contedo (ns vamos desenvolver
esse tema em detalhe mais adiante)18. O dever no tem um determinado
contedo; ele no tem um contedo especificamente terico. O dever pode descer
sobre qualquer coisa vlida em seu contedo, mas nenhuma proposio terica
contm no seu contedo o momento do dever, nem fundada pelo dever. No h
dever cientfico, esttico, ou outro, mas no h tambm um dever
especificamente tico, no sentido de uma totalidade de normas com um contedo
determinado. Tudo que possui validade, tomado pelo aspecto de sua validade,
fornece o cho para vrias disciplinas especiais, no sobra nada para a tica (o
que se chama de normas ticas so principalmente asseres sociais, e quando
forem fundadas cincias sociais apropriadas, tais normas se incorporaro a elas).
O dever uma categoria caracterstica de atos ou aes em processo
[postuplenie] ou do ato realmente realizado (e tudo um ato ou ao que eu
realizo at mesmo o pensamento e o sentimento); uma certa atitude de
-
24
conscincia, cuja estrutura ns propomos desvelar fenomenologicamente.19 No
existem normas morais que sejam determinadas e vlidas em si como normas
morais, mas existe um sujeito moral com uma determinada estrutura (no uma
estrutura psicolgica ou fsica, claro), e nele que ns temos de nos apoiar: ele
saber o que est marcado pelo dever moral e quando, ou, para ser exato: pelo
dever como tal (porque no h dever especificamente moral).20
Que minha auto-atividade21 responsvel no penetre no aspecto
conteudstico de um juzo parece ser contraditado pelo fato de que a forma de
um juzo (o momento transcendente na composio de um juzo)22 que constitui o
momento da atividade da nossa razo, isto , de que somos ns que produzimos
as categorias da sntese. Devemos ser lembrados de que esquecemos a conquista
copernicana de Kant.23 Ser realmente o caso de que a auto-atividade
transcendente seja a auto-atividade individual e histrica do meu ato realizado
[postupok], a auto-atividade pela qual eu sou individualmente responsvel?
Ningum, claro, afirmaria algo do gnero. A descoberta de um elemento a
priori na nossa cognio no abre um caminho para fora da cognio, isto , de
dentro de seu aspecto conteudstico, para o ato real cognitivo, historicamente
individual; ele no supera a sua dissociao e mtua impenetrabilidade, e da
preciso criar um subiectum puramente terico par essa auto-atividade
transcendente, um subiectum historicamente no-real uma conscincia
universal, uma conscincia cientfica, um subiectum epistemolgico.24 Mas,
claro, esse sujeito terico teria de se incorporar a cada vez em algum ser humano
pensante real, atual, de modo a entrar (junto com o mundo inteiro imanente a ele
enquanto objeto de sua cognio) em comunho com o evento histrico, real, do
Ser, apenas como um momento dele.
Assim, na medida em que ns destacamos um juzo da unidade
constituda pelo ato-ao historicamente real de sua atualizao25 e o
transferimos a alguma unidade terica, no h modo de sair do interior de seu
aspecto conteudstico e entrar no dever e no evento real nico do Ser. Todas as
tentativas de superar de dentro da cognio terica o dualismo da cognio e
da vida, o dualismo do pensamento e da realidade nica concreta, so totalmente
-
25
sem esperana. Tendo destacado o aspecto conteudstico da cognio, do ato
histrico de sua realizao, ns s podemos sair de seu interior e entrar no dever
por meio de um salto. Olhar para o ato cognitivo real como uma ao realizada
no contedo-sentido o mesmo que tentar puxar-se a si mesmo pelos prprios
cabelos. O contedo destacado do ato cognitivo passa a ser governado por suas
prprias leis imanentes, de acordo com as quais ele se desenvolve como se
tivesse vontade prpria. Na medida em que ns entramos nesse contedo, isto ,
realizamos um ato de abstrao, ns somos agora controlados por suas leis
autnomas, ou, para ser exato, ns simplesmente no estamos mais presentes nele
como seres humanos individualmente e responsavelmente ativos.
Isso como o mundo da tecnologia: ele conhece sua prpria lei
imanente, e se submete a essa lei em seu desenvolvimento impetuoso e
irrefrevel, apesar do fato de que h tempos fugiu da tarefa de compreender o
propsito cultural desse desenvolvimento, e pode servir antes ao mal que ao bem.
Assim, os instrumentos so perfeitos de acordo com sua lei interna, e, como
conseqncia, eles se transformam, a partir do que era inicialmente um meio de
defesa racional, numa fora terrvel, mortal e destrutiva. Tudo que tecnolgico,
quando divorciado da unidade nica da vida e entregue vontade da lei imanente
de seu desenvolvimento, assustador; pode de tempos em tempos irromper nessa
unidade nica como uma fora terrvel e irresponsavelmente destrutiva.
Na medida em que o mundo autnomo abstratamente terico (um mundo
fundamentalmente e essencialmente26 alheio historicidade nica e viva)
permanea dentro de seus limites, sua autonomia justificvel e inviolvel. Tais
disciplinas filosficas especiais como lgica, teoria da cognio, psicologia da
cognio, biologia filosfica (todas elas procurando descobrir teoricamente,
isto , por meio da cognio abstrata a estrutura do mundo teoricamente
conhecido e os princpios desse mundo) so igualmente justificveis. Mas o
mundo como objeto de cognio terica procura se fazer passar como o mundo
inteiro, isto , no apenas como um Ser abstratamente unitrio, mas tambm
como um Ser concretamente nico em sua possvel totalidade. Em outras
palavras, a cognio terica tenta construir uma filosofia primeira (prima
-
26
philosophia)27, seja como epistemologia, seja como terico [1 palavra ilegvel]28
(de vrias espcies biolgico, fsico, etc.). Seria uma injustia dizer que isso
representa a tendncia predominante na histria da filosofia; antes uma
peculiaridade especfica dos tempos modernos, e podemos mesmo dizer que
exclusivamente uma peculiaridade dos sculos XIX e XX.
O pensamento participativo29 predomina em todos os grandes sistemas
de filosofia, ou conscientemente e distintamente (especialmente na Idade Mdia),
ou de uma forma inconsciente e mascarada (nos sistemas dos sculos XIX e XX).
Pode-se observar um brilho particular nos prprios termos Ser ou Realidade.
O exemplo clssico de Kant contra a prova ontolgica, de que cem tleres reais
no so iguais a cem tleres pensados, deixou de ser convincente.30 Aquilo que
esteve presente uma vez e apenas uma vez na realidade determinada por mim de
uma maneira nica , de fato, incomparavelmente mais pesado. Mas quando
pesamos nas escalas tericas (mesmo com o acrscimo de uma constatao
terica de sua existncia emprica), separadamente de sua unicidade
historicamente valorativa31, altamente improvvel que acabe por se revelar mais
pesado do que apenas pensado. Historicamente, o Ser nico real maior e mais
pesado que o Ser unitrio da cincia terica, mas essa diferena em peso, que
auto-evidente para uma conscincia viva que a experimente, no pode ser
determinada em categorias tericas.32
O contedo-sentido abstrado do ato-ao pode ser formado em um certo
Ser aberto e unitrio, mas isso, claro, no aquele Ser nico no qual ns
vivemos e morremos, no qual se realizam nossos atos ou aes responsveis; ele
fundamentalmente e essencialmente33 alheio historicidade viva. Eu no posso
incluir meu eu real e minha vida (como momento) no mundo constitudo pelas
construes da conscincia terica, em abstrao do ato histrico individual e
responsvel. Mas tal incluso necessria, se esse mundo o mundo inteiro,
todo o Ser (todo o Ser em princpio ou como projetado34, isto ,
sistematicamente; o sistema do Ser terico pode permanecer aberto, claro).
Nesse mundo, ns nos descobriramos determinados, predeterminados, passados
e terminados, isto , essencialmente no vivos. Ns teramos nos retirado da vida
-
27
como vida responsvel, plena de riscos e transformando-se atravs de aes
realizadas para um indiferente e, fundamentalmente35, completado e terminado
Ser terico (que s est incompleto e para ser determinado no processo de
cognio, mas para ser determinado precisamente como um dado). Deveria estar
claro que isso s pode ser feito se ns abstramos aquilo que absolutamente
arbitrrio (responsavelmente arbitrrio) e absolutamente novo, que est sendo
criado e ainda est-por-ser num ato realizado, isto , se ns abstramos
precisamente aquilo de que um ato realizado realmente vive.
Qualquer espcie de orientao prtica da minha vida impossvel no
interior do mundo terico: impossvel viver nele, impossvel realizar aes
responsveis. Nesse mundo eu sou desnecessrio; eu sou essencialmente e
fundamentalmente36 no-existente nele. O mundo terico alcanado atravs de
uma abstrao essencial e fundamental do fato do meu ser nico e o sentido
moral desse fato como se eu no existisse. E esse conceito de Ser
indiferente ao fato central central para mim da minha comunho nica e real
com o Ser (eu, tambm, existo), e ele no pode por princpio acrescentar nada a
ele ou subtrair nada dele, porque ele permanece igual a si mesmo e idntico em
seu sentido e significncia, independentemente de eu existir ou no; ele no pode
determinar minha vida como uma realizao responsvel de aes, no pode
fornecer nenhum critrio para a vida prtica, a vida da ao, porque ele no o
Ser no qual eu vivo, e, se ele fosse o nico Ser, eu no existiria.
O que decorre disso no , claro, nenhuma espcie de relativismo, que
nega a autonomia da verdade e tenta torn-la alguma coisa relativa e
condicionada (em algum momento alheio a ela um momento constituinte da
vida prtica, por exemplo) precisamente com respeito sua veracidade. Quando
considerada do nosso ponto de vista, a autonomia da verdade, sua pureza e auto-
determinao do ponto de vista do mtodo esto completamente preservadas.
precisamente na condio de ser pura que a verdade pode participar
responsavelmente no Ser-evento; a vida-como-evento no precisa de uma verdade
que seja internamente relativa. A validade da verdade suficiente por si, absoluta
e eterna37, e um ato ou ao de cognio responsvel leva em conta essa
-
28
peculiaridade sua; isso que constitui sua essncia. A validade de uma assero
terica no depende de ter sido conhecida ou no por algum. As leis de Newton
eram vlidas em si mesmo antes de Newton t-las descoberto, e no foi essa
descoberta que as tornou vlidas pela primeira vez. Mas essas verdades no
existiam como verdades conhecidas como momentos participantes do Ser-
evento nico, e isso de essencial importncia, porque isso que constitui o
sentido da ao que as conhece. Seria um erro grosseiro imaginar que essas
verdades eternas existissem antes que Newton as descobrisse, do mesmo modo
que a Amrica existia antes de Colombo descobri-la. A eternidade da verdade
no pode ser contraposta nossa temporalidade como uma durao sem fim, para
a qual o nosso tempo apenas um mero momento ou segmento.
A temporalidade da historicidade real do Ser apenas um momento da
historicidade abstratamente conhecida. O momento abstrato da validade extra-
temporal da verdade pode ser contraposto ao momento igualmente abstrato
constitudo pela temporalidade do objeto da cognio histrica. Mas essa
contraposio inteira no vai alm dos limites do mundo terico, e possui sentido
e validade apenas dentro desse mundo, enquanto a validade extra-temporal de
todo o mundo terico da verdade entra, em sua totalidade, na historicidade real
do Ser-evento. Entra nela no temporalmente ou espacialmente, claro (porque
esses so todos momentos abstratos), mas como um momento que enriquece o
Ser-evento. S o Ser da cognio em categorias cientfico-abstratas , por
princpio, alheio teoricamente ao significado abstratamente conhecido. O ato
real da cognio no do interior de seu produto terico-abstrato (isto , do
interior de um juzo universalmente vlido), mas como um ato ou ao
responsvel incorpora toda validade extra-temporal ao Ser-evento nico.
Contudo, a contraposio comum entre a verdade eterna e a nossa temporalidade
perniciosa tem um significado no-terico, porque essa proposio inclui no seu
interior um leve sabor valorativo e assume um carter emocional-volitivo: aqui
est a verdade eterna (e isso bom), e aqui est nossa transitria e deficiente vida
(e isso mau). Mas nesse caso temos uma instncia de pensamento participativo
(que procura superar seu prprio carter de dado, em favor daquilo que-est-para-
-
29
ser-alcanado)38, sustentada em tom penitente; esse pensamento participativo,
contudo, provm de dentro da arquitetnica do Ser-evento que afirmado e
fundado por ns. Essa a natureza da concepo de Plato.39
Uma instncia ainda mais grosseira de teoreticismo a tentativa de
incluir o mundo da cognio terica do Ser unitrio na capacidade do ser
psquico. O ser psquico um produto abstrato do pensamento terico, e
totalmente inadmissvel conceber o ato-ao do pensamento real como um
processo psquico, e ento incorpor-lo no Ser terico com todo o seu contedo.
O ser psquico um produto abstrato na mesma medida da validade
transcendente. Nesse caso ns cometemos um absurdo palpvel, dessa vez
puramente terico: ns tornamos o grande mundo terico (o mundo como o
objeto de todas as cincias, de toda cognio terica) um momento do pequeno
mundo terico (do ser psquico como o objeto da cognio psicolgica). A
psicologia se justifica dentro de seus prprios limites na medida em que ela
reconhea a cognio apenas como um processo psquico e traduza para a
linguagem do ser psquico tanto o momento conteudstico do ato de cognio,
quanto a responsabilidade individual da execuo real de tal ato. Mas ela comete
um erro grosseiro tanto do ponto de vista puramente terico, quanto do ponto de
vista da prtica filosfica, quando pretende ser cognio filosfica e apresenta
sua transcrio psicolgica como se ela fosse o Ser real nico, recusando-se a
admitir ao seu lado a igualmente legtima transcrio lgico-transcendente.
O ser psquico no tem nada a ver com a minha vida-ao (exceto
quando eu ajo [postupaiu] como um psiclogo terico). Quando agindo
responsvel e produtivamente na matemtica trabalhando, por exemplo, em
algum teorema eu posso conceber mas nunca realizar a tentativa de operar com
um conceito matemtico como se ele fosse uma instncia do ser psquico. O
trabalho da ao no se realizar, claro: a ao vive e se move num mundo que
no um mundo psquico. Quando eu estou trabalhando em um teorema, eu me
oriento para o seu significado, que eu responsavelmente incorporo no Ser
conhecido (o objetivo real da cincia), e eu no sei nada e no tenho de saber
nada sobre uma possvel transcrio psicolgica deste ato responsvel que eu
-
30
realmente realizo, embora para o psiclogo, do ponto de vista de seus objetivos,
essa transcrio seja responsavelmente correta.40
Uma instncia similar de teoreticismo so as vrias tentativas de
incorporar a cognio terica na vida nica, concebida em categorias biolgicas,
econmicas e outras, isto , todas as tentativas de pragmatismo em todas suas
variedades. Em todas essas tentativas, uma teoria se transforma num momento de
uma outra teoria, e no num momento do Ser-evento real. Uma teoria precisa
entrar em comunho no com construes tericas e vida imaginada, mas com o
evento realmente existente do ser moral com a razo prtica, e isso
responsavelmente completado por quem quer que conhea, na medida em que ele
aceita a responsabilidade por cada ato integral de sua cognio, isto , na medida
em que o ato de cognio esteja includo como minha ao, com todo o seu
contedo, na unidade da minha responsabilidade, na qual e pela qual eu
realmente vivo executo aes. Todas as tentativas de forar caminho de dentro
do mundo terico para o Ser-evento real so completamente sem esperana. O
mundo teoricamente conhecido no pode abrir-se de dentro da prpria cognio
ao ponto de se tornar aberto ao mundo real nico. Mas do ato executado (no da
sua transcrio terica) h um caminho para o seu contedo-sentido, que
recebido e includo do interior daquele ato realmente executado; porque o ato
realmente executado no Ser.
O mundo como o contedo do pensamento cientfico um mundo
particular: um mundo autnomo, mas no um mundo separado; antes um
mundo que se incorpora no evento unitrio e nico do Ser atravs da mediao de
uma conscincia responsvel, em uma ao real. Mas o evento nico do Ser no
mais algo que pensado, mas algo que , alguma coisa que est sendo real e
inescapavelmente completado atravs de mim e de outros (completado, inter alia,
tambm na minha ao de conhecer); ele realmente experimentado, afirmado de
uma maneira emocional-volitiva, e a cognio constitui apenas um momento
desse experimentar-afirmar. A unicidade nica ou singularidade no pode ser
pensada; ela s pode ser participativamente41 experimentada ou vivida. Toda a
razo terica em sua totalidade apenas um momento da razo prtica, isto , a
-
31
razo da orientao moral nica do sujeito, no interior do evento do Ser nico.
Esse Ser no pode ser determinado nas categorias da conscincia terica no
participante ele pode ser determinado apenas nas categorias da comunho real,
isto , de um ato realmente realizado, nas categorias da efetiva-participativa
experincia42da unicidade ou singularidade concreta do mundo.
Um trao caracterstico da filosofia da vida [lebensphilosophie] 43contempornea, que procura incluir o mundo terico no interior da unidade da
vida-em-processo-de-devir, uma certa estetizao da vida, e isso mascara at
certo ponto a bvia incongruncia do puro teoreticismo (a incluso do grande
mundo terico dentro de um pequeno mundo, tambm terico). Como regra, os
elementos tericos e estticos se fundem nessas concepes de vida. isso que
caracteriza a tentativa mais significativa de construir uma filosofia da vida
aquela de Bergson.44 A fraqueza principal de todas as suas construes
filosficas (um defeito freqentemente notado na literatura sobre ele) a
indiscriminao, no seu mtodo, dos componentes heterogneos de sua
concepo. O que tambm permanece obscuro no seu mtodo sua definio de
intuio filosfica, que ele ope cognio intelectual, analtica. No pode haver
dvida de que a cognio intelectual (teoreticismo), entretanto, entra como um
elemento necessrio na construo da intuio tal como realmente usada por
Bergson; isso foi exaustivamente mostrado por Losskii em seu livro excelente
sobre Bergson.45 Quando esses elementos intelectuais so subtrados da intuio,
o que permanece puramente contemplao esttica, com uma mistura
insignificante, uma dose homeoptica, de pensamento participativo real.46 Mas o
produto da contemplao esttica tambm abstrado do efetivo ato de
contemplao, e no essencialmente necessrio47 para esse ato. Portanto, a
contemplao esttica tambm incapaz de agarrar o Ser-evento nico em sua
singularidade. O mundo da viso esttica, obtido em abstrao do sujeito real da
viso, no o mundo real em que eu vivo, embora seu contedo esteja inserido
em um sujeito vivo. Mas exatamente como na cognio terica, existe a mesma
no-comunicao essencial e fundamental48 entre o sujeito e sua vida como
objeto da viso esttica, de um lado, e o sujeito como portador do ato da viso
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esttica, de outro.
No contedo da viso esttica ns no encontraremos o ato realmente
realizado daquele que v. O que no penetra no contedo da viso esttica a
reflexo bilateral unitria do ato unitrio que ilumina e atribui a uma
responsabilidade nica tanto o contedo quanto o ser-como-ao do ato. De
dentro dessa viso, no h sada para a vida. Isso de modo algum contraditado
pelo fato de que algum possa tornar-se e tornar a prpria vida um contedo da
contemplao esttica. O prprio ato-ao de tal viso no penetra no contedo; a
viso esttica no se transforma em uma confisso49, e se isso ocorre, ela deixa
de ser viso esttica. E, de fato, existem obras que esto na fronteira da esttica
com a confisso (orientao moral no interior do Ser nico).
Um momento essencial (ainda que no o nico) da contemplao esttica
a identificao (empatia)50 com um objeto individual da viso v-lo de dentro
de sua prpria essncia. Esse momento de empatia sempre seguido pelo
momento de objetivao, isto , colocar-se do lado de fora da individualidade
percebida pela empatia, um separar-se do objeto, um retorno a si mesmo. E
apenas essa conscincia de volta a si mesma d forma, de seu prprio lugar,
individualidade captada de dentro, isto , enforma-a esteticamente como uma
individualidade unitria, ntegra e qualitativamente original. E todos esses
momentos estticos unidade, integridade, auto-suficincia, originalidade so
transgredientes51 individualidade que est sendo determinada: de dentro dela,
esses momentos no existem para ela em sua prpria vida, ela no vive por eles
em si. Eles tm significado e so realizados por quem se identifica, que est
situado do lado de fora dos limites daquela individualidade, atravs do ato de
formar e objetivar a matria cega obtida pela empatia. Em outras palavras, a
reflexo esttica da vida viva no , por princpio, a auto-reflexo da vida em
movimento, da vida em sua real vivacidade: ela pressupe um outro sujeito, um
sujeito da empatia, um sujeito situado do lado de fora dos limites dessa vida.52
No se deve pensar, claro, que o momento de pura empatia seguido
cronologicamente pelo momento de objetivao, pelo momento de formao. Na
realidade, ambos os momentos so inseparveis. A empatia pura um momento
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abstrato do ato unitrio da atividade esttica, e no deveria ser pensada como um
perodo temporal; os momentos de empatia e de objetivao interpenetram-se
mutuamente.
Eu me identifico ativamente com uma individualidade e,
conseqentemente, eu no me perco completamente, nem perco meu lugar nico
do lado de fora dela, sequer por um momento. No o objeto que
inesperadamente toma possesso de mim como algum passivo. Sou eu que me
identifico ativamente com o objeto: criar empatia um ato meu, e apenas isso
constitui sua produtividade e novidade (Schopenhauer e a msica).53 A empatia
realiza alguma coisa que no existia nem no objeto de empatia, nem em mim
mesmo, antes do ato de identificao, e atravs dessa alguma coisa realizada o
Ser-evento enriquecido (isto , ele no permanece igual a ele mesmo). E esse
ato-ao que traz alguma coisa nova no pode mais ser uma reflexo esttica em
sua essncia, porque ela se transformaria em algo localizado do lado de fora da
ao-realizadora e sua responsabilidade. A pura empatia, isto , o ato de coincidir
com um outro e perder o prprio lugar nico no Ser nico, pressupe o
reconhecimento de que minha prpria unicidade e a unicidade do meu lugar
constituem um momento no essencial que no tem influncia no carter da
essncia do ser do mundo. Mas esse reconhecimento da unicidade prpria nica
como no essencial para a concepo do Ser tem a inevitvel conseqncia de
que se perde tambm a unicidade do Ser, e, como resultado, ns chegamos
concepo do Ser apenas como Ser possvel, e no essencial, real, nico,
inescapavelmente Ser real. Esse Ser possvel, contudo, incapaz de devir,
incapaz de viver. O significado de um Ser para o qual o meu lugar nico no Ser
foi reconhecido como no essencial no ser jamais capaz de me conferir sentido,
nem esse realmente o significado do Ser-evento.
Mas a pura empatia como tal impossvel. Se eu realmente me perdesse
no outro (em vez de dois participantes haveria um um empobrecimento do Ser),
isto , se eu cessasse de ser nico, ento esse momento do meu no-ser nunca
poderia se tornar um momento do ser da conscincia; o no-ser no pode se
tornar um momento do ser da conscincia ele simplesmente no existiria para
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mim, isto , o ser no se completaria atravs de mim nesse momento. Empatia
passiva, ser-possudo, perder-se isso nada tem em comum com o ato-ao
responsvel da auto-abstrao ou auto-renncia. Na auto-renncia eu realizo com
a mxima atividade, plenamente, a unicidade do meu lugar no Ser. O mundo no
qual eu, do meu prprio lugar nico, renuncio a mim mesmo no se torna um
mundo no qual eu no exista, um mundo indiferente, em seu significado, minha
existncia: a auto-renncia um ato ou realizao que abrange o Ser-evento. Um
grande smbolo da auto-atividade, a descida [?] de Cristo [32 palavras
ilegveis].54 O mundo do qual Cristo partiu jamais ser o mundo no qual ele
nunca existiu; ele , por princpio, um mundo diferente.
Este mundo, o mundo no qual se completou o evento da vida e da morte
de Cristo, tanto no fato como no significado de sua vida e morte este mundo
fundamentalmente e essencialmente indeterminvel, seja em categorias tericas,
seja em categorias da cognio histrica, ou atravs da intuio esttica. No
primeiro caso, ns conhecemos o sentido abstrato, mas perdemos o fato nico da
realizao histrica real do evento; no segundo caso, ns captamos o fato
histrico, mas perdemos o sentido; no terceiro caso, ns temos tanto o ser do fato
quanto o seu sentido como o momento de sua individuao, mas ns perdermos
nossa prpria posio em relao a ele, nossa participao de dever-ser. Isto ,
em nenhum caso ns temos a realizao em sua plenitude na unidade e
interpenetrao do fato-realizao-sentido-significncia nico e nossa
participao nele (porque o mundo dessa realizao unitrio e nico).
A tentativa de encontrar-se a si mesmo no produto do ato-ao da viso
esttica uma tentativa de lanar-se no no-Ser, uma tentativa de abandonar
tanto minha auto-atividade do meu lugar prprio nico situado do lado de fora de
qualquer ser esttico, quanto a sua plena realizao no Ser-evento. O ato
realizado da viso esttica se eleva acima de qualquer ser esttico um produto
desse ato e parte de um mundo diferente: ele entra na unidade real do Ser-
evento, incorporando no Ser tambm o mundo esttico, como um momento
constituinte. A pura empatia seria, de fato, uma queda do ato-ao em seu prprio
produto, e isso, claro, impossvel.
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A viso esttica uma viso justificada enquanto no v alm de seus
prprios limites. Mas na medida em que ela pretenda ser uma viso filosfica do
Ser unitrio e nico em sua eventicidade55, a viso esttica est inevitavelmente
condenada a fazer passar uma parte abstratamente isolada como o todo real.
A empatia esttica (isto , no a pura empatia em que algum se perde,
mas a empatia que objetiva) no pode fornecer o conhecimento do Ser nico em
sua eventicidade; pode fornecer apenas uma viso esttica do Ser que est
localizada do lado de fora do sujeito (e do prprio sujeito localizado do lado de
fora de sua auto-atividade, isto , em sua passividade). A identificao esttica
com o participante de um evento no ainda a consecuo de uma compreenso
plena do evento. Mesmo que eu conhea inteiramente uma dada pessoa, e
tambm conhea a mim mesmo, eu ainda tenho de captar a verdade de nossa
interrelao, a verdade do evento nico e unitrio que nos liga e do qual ns
somos participantes. Isto , o lugar e a funo meus e dele, e nossa interrelao
no evento do Ser em processo, isto , eu mesmo e o objeto da minha
contemplao esttica devem estar [1 palavra ilegvel] determinados dentro do
Ser unitrio e nico [dentro da unitria unidade do Ser?] que nos abrange
igualmente e no qual o ato da minha contemplao esttica realmente
executada; mas isso no pode mais ser um ser esttico.56 apenas de dentro
desse ato como minha ao responsvel que pode haver um caminho para a
unidade do Ser, e no de seu produto, tomado em abstrao. apenas de dentro
da minha participao que a funo de cada participante pode ser compreendida.
No lugar de um outro, exatamente como em meu prprio lugar, eu estou no
mesmo estado de falta de sentido. Compreender um objeto compreender meu
dever em relao a ele (a atitude ou posio que devo tomar em relao a ele),
isto , compreend-lo em relao a mim mesmo no Ser-evento nico, e isso
pressupe minha participao responsvel, e no uma abstrao de mim mesmo.
apenas de dentro da minha participao que o Ser pode ser compreendido como
um evento, mas esse momento de participao nica no existe dentro do
contedo, visto em abstrao do ato como ao responsvel.
Contudo, o ser esttico est mais prximo da real unidade do Ser-como-
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vida do que o mundo terico. por isso que a tentao do esteticismo to
persuasiva. Pode-se viver no ser esttico, e h aqueles que o fazem, mas eles so
outros seres humanos e no eu mesmo. Essa a vida passada de outros seres
humanos, amorosamente contemplada, e tudo que est situado fora de mim est
correlacionado com eles. Mas eu no me encontro nessa vida; eu vou encontrar
apenas um duplo de mim mesmo, apenas algum pretendendo ser eu. Tudo que
eu posso fazer a representar um papel, isto , assumir, como uma mscara, a
carne de um outro de algum morto. Mas a responsabilidade esttica do ator e
de todo o ser humano pela adequao do papel representado permanece na vida
real, porque a representao de um papel como um todo uma ao responsvel
executada por aquele que interpreta, e no por quem representado, isto , o
heri. O mundo esttico inteiro como um todo apenas um momento do Ser-
evento, incorporado legitimamente no Ser-evento atravs de uma conscincia
responsvel atravs de uma ao responsvel de um participante. A razo
esttica um momento da razo prtica.
Assim, nem a cognio terica nem a intuio esttica podem fornecer
uma abordagem ao Ser real nico de um evento, porque no h unidade e
interpenetrao entre o contedo-sentido (um produto) e o ato (uma ao
histrica real) em conseqncia da essencial e fundamental57 abstrao-de-mim-
mesmo, como participante de processo de afirmar significado e viso. isso que
leva o pensamento filosfico, que em princpio procura ser puramente terico, a
um estado peculiar de esterilidade, no qual sem dvida alguma ele se encontra
atualmente. Uma certa mistura de esteticismo produz a iluso de uma vitalidade
maior, mas no mais do que uma iluso. Para aqueles que desejam e sabem como
pensar participativamente58, parece que a filosofia, que deveria resolver os
problemas ltimos (isto , que coloca os problemas no contexto do Ser unitrio e
nico na sua integridade), fracassa em falar daquilo que deveria falar. Mesmo
que suas proposies tenham alguma validade, elas so incapazes de determinar
um ato-ao responsvel e o mundo em que ele real e responsavelmente
executado uma e nica vez.
O que est em tela aqui no s uma questo de diletantismo, que
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incapaz de avaliar a grande importncia das aquisies da filosofia moderna no
campo da metodologia de domnios particulares da cultura. Pode-se e deve-se
reconhecer que no domnio das tarefas especiais a que ela se imps, a filosofia
moderna (e o neo-kantismo em particular) obviamente alcanou grandes alturas e
foi capaz, finalmente, de articular mtodos perfeitamente cientficos (algo que o
positivismo, em todas as suas variedades, incluindo o pragmatismo, foi incapaz
de fazer). O nosso tempo merece plenamente o crdito de trazer a filosofia para
mais perto do ideal de uma filosofia cientfica. Mas essa filosofia cientfica pode
ser apenas uma filosofia especializada, isto , uma filosofia dos vrios domnios
da cultura e de sua unidade na forma de uma transcrio terica do interior dos
objetos de criao cultural e da lei imanente de seu desenvolvimento.59 E por
isso que essa filosofia terica no pode pretender ser uma filosofia primeira60,
isto , um ensinamento no sobre a criao cultural unitria, mas sobre o Ser-
evento unitrio e nico. Uma filosofia primeira assim no existe, e mesmo os
caminhos que levam sua criao parecem estar esquecidos. Da a profunda
insatisfao com a filosofia moderna da parte daqueles que pensam
participativamente, uma insatisfao que leva alguns deles a recorrer a outros
meios, tais como a concepo do materialismo histrico, que, apesar de todos os
seus defeitos e lacunas61, atraente conscincia participativa62 por causa de seu
esforo em construir seu mundo de tal modo a reservar um lugar nele para a
execuo de aes reais determinadas, concretamente histricas; uma conscincia
que luta e age pode realmente orientar-se no mundo do materialismo histrico.
No presente contexto ns no lidaremos com a questo das [substituies
ilegtimas? faltas?] particulares e incongruncias63 metodolgicas por meio das
quais o materialismo histrico realiza a sua sada de dentro do mundo terico
mais abstrato e sua entrada no mundo vivo da ao responsvel realmente
realizada. O que importante para ns, contudo, que ele completa essa sada, e
nisso que est sua fora, a razo do seu sucesso. Outros ainda procuram
satisfao filosfica na teosofia, na antroposofia64, e em outras doutrinas
similares. Essas doutrinas absorveram muito da sabedoria real do pensamento
participativo da Idade Mdia e do Oriente; mas elas so profundamente
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insatisfatrias, contudo, como concepes unitrias, mais do que como simples
compilaes de abordagens particulares do pensamento participativo atravs dos
tempos, e cometem o mesmo pecado metodolgico que o materialismo histrico
comete: uma indiscriminao metdica entre o que dado e o que colocado
como tarefa, entre o que e o que deve ser.65
Minha conscincia participativa e exigente pode ver que o mundo da
filosofia moderna, o mundo terico e teorizado da cultura, em certo sentido
real, que ele tem validade. Mas o que ela tambm pode ver que esse mundo no
o mundo nico no qual eu vivo e no qual eu executo responsavelmente meus
atos. E esses dois mundos no se intercomunicam; no h um princpio para
incluir e envolver ativamente o mundo vlido da teoria e da cultura teorizada no
Ser-evento nico da vida.66
O homem contemporneo sente-se seguro de si, prspero e inteligente,
quando ele prprio no est essencialmente e fundamentalmente67 presente no
mundo autnomo de um domnio da cultura e de sua lei de criao imanente. Mas
ele se sente inseguro, deficiente e destitudo de compreenso, quando se trata
dele mesmo, quando ele o centro emissor de atos ou aes responsveis, na
vida real e nica. Isto , ns agimos com segurana apenas quando o fazemos no
como ns mesmos, mas como algum possudo pela necessidade de significado
imanente de algum domnio da cultura.
O trajeto de uma premissa a uma concluso percorrido sem falhas,
irrepreensivelmente, porque eu mesmo no existo nesse trajeto. Mas como e onde
se deveria incluir esse processo do meu pensamento, que internamente puro e
irrepreensvel, e totalmente justificado de ponta a ponta? Na psicologia da
conscincia? Ou talvez na histria de uma cincia correspondente? Ou no meu
oramento material como pago de acordo ao nmero de linhas que o
constituem? Ou talvez na ordem cronolgica do meu dia, como minha ocupao
das cinco s seis? Ou nas minhas obrigaes como um cientista ou um professor?
Mas todos esses contextos e possibilidades de dar sentido esto por si mesmos
flutuando num espao peculiarmente sem ar, e no esto enraizados em nada,
nem em alguma coisa unitria, nem em alguma coisa nica.
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A filosofia contempornea tem sido incapaz de criar um princpio para
uma incluso assim, e isso que constitui o seu estado de crise. O ato realizado
ou ao cindido em um contedo-sentido objetivo, e um processo subjetivo de
realizao. Do primeiro fragmento se cria uma nica unidade sistmica da cultura
que realmente esplndida em sua rigorosa clareza. Do segundo fragmento, se
ele no descartado como completamente intil (ele pura e inteiramente
subjetivo, uma vez que o seu contedo-sentido foi retirado), pode-se no mximo
extrair e aceitar alguma coisa esttica e terica, como a dure ou lan vital de
Bergson [12 palavras ilegveis]. Mas nem no primeiro mundo nem no segundo h
espao para a execuo real e responsvel de uma ao.
Mas a filosofia moderna, afinal, conhece a tica e a razo prtica. Mesmo
a primazia da razo prtica de Kant devotamente observada pelo neo-kantismo
contemporneo. Quando ns falamos do mundo terico e o opomos ao ato
responsvel, no dissemos nada sobre as construes ticas contemporneas, as
quais tm a ver, depois de tudo, precisamente com o ato responsvel. Mas a
presena do significado tico na filosofia contempornea no acrescenta [1
palavra ilegvel] nada; quase toda a crtica do teoreticismo pode ser estendida
tambm aos sistemas ticos. por isso que no entramos numa anlise detalhada
das doutrinas ticas existentes; falaremos de algumas concepes ticas
(altrusmo, utilitarismo, a tica de Cohen, etc.)68e das questes especiais ligadas a
elas nos contextos correspondentes do nosso estudo. O que ainda precisamos
fazer nesse ponto mostrar que a filosofia prtica em suas linhas bsicas difere
da filosofia terica apenas quanto ao seu objeto, no no seu mtodo ou modo de
pensar, isto , mostrar que est tambm completamente impregnada de
teoreticismo, e que para a soluo desse problema no h diferena entre os
vrios ramos.
Todos os sistemas ticos so normalmente, e corretamente, subdivididos
em tica material (tica do contedo) e tica formal.69 Ns temos duas objees
fundamentais e essenciais70 contra a tica material (conteudstica) e uma contra a
tica formal. A tica material procura encontrar e fundar normas morais especiais
que tenham um contedo definido normas que so algumas vezes
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universalmente vlidas e algumas vezes primordialmente relativas, mas em
qualquer caso universais, aplicveis a qualquer um. Um ato realizado tico
apenas quando governado completamente por uma norma moral apropriada que
tenha um contedo universal71 definido.
A primeira objeo fundamental contra a tica material (ns j tocamos
nesse ponto anteriormente) esta: no h especificamente normas ticas. Cada
norma que tenha um contedo definido deve ser fundada especificamente na sua
validade por uma disciplina correspondente lgica, esttica, biologia, medicina,
uma das cincias sociais. Claro, se ns subtramos todas as normas
especificamente fundadas por uma disciplina correspondente, ns descobriremos
que a tica contm um certo nmero de normas (geralmente passando por
fundamentais, alm do mais) que no foram fundadas em lugar nenhum ( s
vezes mesmo difcil dizer em que disciplina elas poderiam possivelmente estar
fundadas), mas que, apesar de tudo, soam perfeitamente convincentes. Na sua
estrutura, contudo, essas normas em nada diferem das normas cientficas, e o
acrscimo do epteto tico no diminui ainda a necessidade de provar
cientificamente que elas so verdadeiras. Em relao a tais normas, o problema
da prova permanece forte, independentemente de ser ou no resolvido algum dia:
cada norma que tenha um contedo particular deve ser levantado ao nvel de uma
proposio cientfica especial. Antes disso, ela continuar sendo no mais que
uma conjectura ou generalizao prtica til. As cincias sociais futuras
filosoficamente fundadas (elas esto hoje num estado altamente deplorvel)
reduziro consideravelmente o nmero de tais normas flutuantes no enraizadas
em nenhuma unidade cientfica (a prpria tica no pode constituir tal unidade
cientfica; pode apenas ser uma compilao de proposies prticas teis, s
vezes no comprovadas).
Na maioria dos casos tais normas ticas representam, do ponto de vista
do mtodo, um aglomerao indiscriminada de vrios princpios e avaliaes.
Assim, a proposio mais alta do utilitarismo, quanto sua validade cientfica,
est sujeita competncia e crtica de trs disciplinas especiais: psicologia,
filosofia do direito e sociologia. O dever como tal (a transformao