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Livro completo escrito por Bakhtin, assinado à época no nome de um amigo e admirador.

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MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEMMikhail Bakhtin

(orelha do livro)

Publicado na Rssia em 1929 e assinado por V. N. Volochnov, Marxismo e Filosofia da Linguagem foi posteriormente atribudo a M. Bakhtin. No so claras as razes efetivas que teriam levado Bakhtin a escolher o nome de um dos seus amigos e discpulos para subscrever a autoria do livro. O fato que o leitor encontrar aqui vrios pontos comuns com A Potica de Dostoievski e mesmo com a sua obra sobre Rabelais e a cultura popular. Volochinov, assim como o terico da literatura Medvidiev outro intelectual que participava das indagaes e pesquisas sobre o chamado mtodo sociolgico , foi vtima dos expurgos stalinistas no comeo da dcada de 30. Desapareceu desde ento, ficando o livro, por muitos anos, relegado ao esquecimento oficial com que os autoritarismos sabem sempre brindar a reflexo crtica. em meio controvrsia de que era objeto o formalismo que se d a sua publicao. O esforo, que nele se observa, para desenvolver uma filosofia da linguagem de fundamento marxista, sem as paranias histricas das receitas oficiais, admirvel. A natureza ideolgica do signo lingstico, o dinamismo prprio de suas significaes, a alteridade que lhes constitutiva, o signo como arena da luta de classes, as crticas ao conservadorismo das posies formalistas; as crticas a Saussure e, lidas hoje, sua adequao ao estruturalismo, os fenmenos de enunciao que a semntica moderna tanto preza, as anlises dos diferentes tipos de discurso (direto, indireto, indireto livre, etc.) so alguns dos temas que o leitor encontrar, neste livro, discutidos, s vezes, com desenvoltura e perspiccia que no decepcionam. Em 1950, publica o Pravda a clebre entrevista de Stlin na qual, repudiando a natureza superestrutural do fenmeno da linguagem, exorcizava ainda o at ento lingista oficial da U.R.S.S., N. Marr. No pronunciamento de St1in, se a recusa se faz no que diz respeito ao mecanicismo das determinaes da estrutura econmica sobre a lngua, seu autor no evita, entretanto, o deslize para uma concepo tambm mecanicista: a da lngua como instrumento de comunicao. Vinte anos antes, o livro de Bakhtin (Volochnov) tratava o problema das relaes entre linguagem e ideologia de forma a superar totalmente as limitaes dessas ortodoxias. (fim da orelha)

Linguagem Coleo dirigida por Carlos Vogt Conselho Editorial Cludia Tereza Guimares de Lemos Luiz Henrique Lopes dos Santos Maurizio Gnerre Jaime Pinsky MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM MIKHAIL BAKHTIN V. N. Volochnov)

Marxismo e Filosofia da LinguagemProblemas fundamentais do Mtodo Sociolgico na Cincia da Linguagem

prefcio de ROMAN JAKOBSON apresentao de MARINA YAGUELLO traduo de MICHEL LAHUD E YARA FRATESCHI VIEIRA com a colaborao de LCIA TEIXEIRA WISNIK e CARLOS HENRIQUE D. CHAGAS CRUZ segunda edio EDITORA HUCITEC So Paulo, 1981 C) 1977 da Agncia de Direitos de Autor da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (VAAP). Direitos de publicao reservados pela Editora de Humanismo, Cincia e Tecnologia "Hucitec" Ltda., Alameda Ja, 404, 01420, So Paulo, SP, Brasil, Telefone (011) 287-1825. Capa de Olmpio Pinheiro.

NOTA DOS TRADUTORES A presente traduo baseou-se, principalmente, na traduo francesa (Paris, Les ditions de Minuit, 1977). Recorremos, contudo, constantemente traduo americana (Nova Iorque/Londres, Seminar Press, 1973), o que nos permitiu, nos casos em que a traduo francesa parecia insatisfatria, optar por uma soluo mais adequada. Consultas ao original russo tornaram-se, entretanto, indispensveis; isso foi possvel graas ajuda de Lucy Seki, a quem agradecemos. Queremos tambm agradecer a Modesto Carone Netto a colaborao no que respeita s passagens em alemo do texto.

PREFCIO No livro publicado com a assinatura de V. N. Volochnov em Leningrado, 1929-1930, em duas edies sucessivas sob o ttulo de Marksizm i filossfia iazik (Marxismo e Filosofia da Linguagem), tudo, desde a pgina de ttulo, s pode surpreender. Acabou-se descobrindo que o livro em questo e vrias outras obras publicadas no final dos anos vinte e comeo dos anos trinta com o nome de Volochnov como, por exemplo, um volume sobre a doutrina do freudismo (1927) e alguns ensaios sobre a linguagem na vida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado - foram, na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975), autor de obras determinantes sobre a potica de Dostoievski e de Kabelais. Ao que parece, Bakhtin recusavase a fazer concesses fraseologia da poca e a certos dogmas impostos aos autores. Os adeptos e discpulos do pesquisador, particularmente Volochnov (nascido em 1895, desaparecido pelo fim de 1930), com um pseudnimo escrupulosamente observado e graas a alguns retoques obrigatrios no texto e at no ttulo, tentaram um compromisso que permitia preservar o essencial do grande trabalho. O que poderia surpreender igualmente aqueles leitores menos avisados da histria do obscurantismo que da histria do pensamento cientfico, o completo desaparecimento do prprio nome desse eminente pesquisador de toda a imprensa russa durante quase um quarto de sculo (at 1963); quanto a seu livro sobre a filosofia da linguagem, s o vemos mencionado nesse mesmo perodo em alguns raros estudos lingsticos do Ocidente. Recentemente, algumas citaes desse livro foram feitas em publicaes soviticas de tiragem insignificante, como a coletnea dedicada ao 75 aniversrio de Bakhtin, cuja edio foi de apenas 1.500 exemplares (Trtu, 1973). A obra em questo reproduzida na srie Janua Linguarum (HaiaParis, 1972) e traduzida para o ingls (Nova Iorque, 1973), mas esse trabalho, como outras obras-primas do pensamento terico russo do mesmo perodo, permanece ainda quase inacessvel aos leitores do seu pas natal. Apesar de toda a singularidade da biografia do livro e de seu autor, pela novidade e originalidade de seu contedo que a obra mais surpreende todo leitor de esprito aberto. Esse volume cujo subttulo diz Os problemas fundamentais do mtodo sociolgico na cincia da linguagem, antecipa as atuais exploraes realizadas no campo da sociolingstica e, principalmente, consegue preceder as pesquisas semiticas de hoje e fixar-lhes novas tarefas de grande envergadura. A "dialtica do signo", e do signo verbal em particular, que estudada no livro conserva, ou melhor, adquire um grande valor sugestivo luz dos debates semiticos contemporneos. Dostoievski o heri preferido de Bakhtin e a maneira como ele o define caracteriza, ao mesmo tempo e da forma mais justa, sua prpria metodologia cientfica: "Nada lhe parece acabado; todo problema permanece aberto, sem fornecer a mnima aluso a uma soluo definitiva". Segundo Bakhtin, na estrutura da linguagem, todas as noes substanciais formam um sistema inabalvel, constitudo de pares indissolveis e solidrios: o reconhecimento e a compreenso, a

cognio e a troca, o dilogo e o monlogo, sejam eles enunciados ou internos, a interlocuo entre o destinador e o destinatrio, todo signo provido de significao e toda significao associada ao signo, a identidade e a variabilidade, o universal e o particular, o social e o individual, a coeso e a divisibilidade, a enunciao e o enunciado. O que mais desperta a ateno e a criatividade do leitor a parte final do livro, onde o autor discute o papel fundamental e variado da citao - patente ou latente - em nossos enunciados e interpreta os diversos meios que servem para adaptar esses emprstimos multiformes e contnuos ao contexto do discurso. Roman Jakobson

INTRODUO I. Bakhtin, o homem e seu duplo M. M. Bakhtin nasceu em 1895, em Oriol, numa famlia da velha nobreza arruinada, de um pai empregado de banco. Passou sua infncia em Oriol e a adolescncia em Vlnius e Odessa. Estudou na Universidade de Odessa, depois na de So Petersburgo, de onde saiu diplomado em Histria e Filologia, em 1918. Em 1920, instalou-se em Vitebsk, onde ocupou diversos cargos de ensino. Casou-se em 1920 com Helena Okolovitch, que foi sua fiel colaboradora durante meio sculo. Bakhtin pertencia a um pequeno crculo de intelectuais e de artistas entre os quais se encontravam Marc Chagall e o musiclogo Sollertinsky, amigo ntimo de Chostakovitch. Tambm fazia parte deste crculo um jovem professor do Conservatrio de Msica de Vitebsk, V. N. Volochnov, e ainda P. N. Medvidiev, empregado de uma casa editora. Os dois tornaram-se alunos, amigos devotados e ardorosos admiradores de Bakhtin. Este crculo, conhecido sob o nome de "crculo de Bakhtin", foi um cadinho de idias inovadoras, numa poca de muita criatividade, particularmente nos domnios da arte e das cincias humanas. Ainda que contemporneo dos movimentos formalista e futurista, ele no participou de nenhum deles. Em 1923, atacado de osteomielite, Bakhtin retornou a Petrogrado. Impossibilitado de trabalhar regularmente, deve ter passado por uma situao material difcil. Seus discpulos e admiradores, Volochnov e Medvidiev, seguiram-no a Petrogrado. Animados pelo desejo de vir ajudar financeiramente a seu mestre e, ao mesmo tempo, divulgar suas idias, ofereceram seus nomes a fim de tornar possvel a publicao de suas primeiras obras. Freidizm (O Freudismo, Leningrado, 1927) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (Leningrado, 1929) saram sob o nome de Volochnov. Formalni mtod v literaturovidenie. Krittcheskoie vvdinie v sotsiologutcheskuiu potiku (O Mtodo Formalista Aplicado Crtica Literria. Introduo Crtica Potica Sociolgica) que constituiu uma crtica aos formalistas, foi publicado em 1928, tambm em Leningrado sob a assinatura de Medvidiev1. Por que, ento Bakhtin no os publicou com seu prprio nome? No h dvidas quanto paternidade de suas obras. O contedo se inscreve perfeitamente na linha de suas publicaes assinadas e, alm disso, dispomos de testemunhos diretos. De qualquer modo, na poca, o segredo foi bem guardado, pois Bors Pasternak, em uma carta endereada a Medvidiev, manifestou seu entusiasmo e sua admirao pela presumida obra deste ltimo e confessa que jamais pudera imaginar que em Medvidiev se ocultava "um tal filsofo". Ento, por que esse jogo de testa-de-ferro? Segundo o professor V. V. Ivnov, amigo e aluno de Bakhtin, haveria duas espcies de motivos: em primeiro lugar, Bakhtin teria recusado as modificaes impostas pelo editor; de carterEsta terceira obra foi sistiemam (Trabalhos sobre As outras duas nunca mais um fac-smile da edio de1

reeditada em 1971, na revista Trudi po znkovim Sistemas de Signos), Universidade de Trtu, 1971. foram reimpressas. Mouton (Haia) publicou em 1972 1929 do Marxismo e a Filosofia da Linguagem.

intransigente, ele teria preferido no publicar do que mudar uma vrgula; Volochnov e Medvidiev ter-se-iam, ento, proposto a endossar as modificaes. A outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao carter de Bakhtin, ao seu gosto pela mscara e pelo desdobramento e tambm, parece, sua profunda modstia cientfica. Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador no tem necessidade, para assegurar sua durao, de ser assinado por seu autor. A este respeito, o professor Ivnov o compara a Kierkegaard, que tambm se escondeu sob pseudnimos. De qualquer forma, em 1929, no mesmo ano em que Volochnov assinava Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin publicou, finalmente, um primeiro livro com seu prprio nome Probliemi tvrtchestva Dostoiesvskovo (Problemas da Obra de Dostoievski2). Ele dedicar o resto de sua vida de pesquisador anlise estilstica e literria. Volochnov e Medvidiev desapareceram nos anos trinta. Nesta poca, Bakhtin vivia na fronteira da Sibria e do Casaquisto, em Kustanai. Sempre ensinando, comeou a compor sua monografia sobre Rabelais. Em 1936, foi nomeado para o Instituto Pedaggico de Saransk. Em 1937, instalou-se no muito longe de Moscou, em Kmri, onde viveu uma vida apagada at 1945, ensinando no colgio local e participando dos trabalhos do Instituto de Literatura da Academia de Cincias da U.R.S.S. A defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946. De 1945 a 1961, data de sua aposentadoria, ensina de novo em Saransk, terminando sua carreira na universidade desta cidade. A partir de 1963, comeou a gozar de uma certa notoriedade, sobretudo aps a reedio de sua obra sobre Dostoievski (1963) e de sua tese sobre Rabelais: Tvrtchestvo Franois Rabelais i nardnaia kultura sriednevekvia i Renessansa (A Obra de Franois Rabelais e a Cultura Popular da Idade Mdia e da Renascena), Moscou, 19653. Em 1969, instalou-se em Moscou, onde publicou contribuies nas revistas Voprssi literaturi (Questes de Literatura) e Kontiekst (Contexto). Morreu em Moscou, em 1975, aps uma longa doena.

II. Marxismo e Filosofia da Linguagem difcil afirmar com exatido quais as partes do texto que se devem a Volochnov. Sempre segundo o professor Ivnov, que deve a informao ao prprio Bakhtin, o ttulo e certas partes do texto ligadas escolha deste ttulo so de Volochnov. No se poderia, evidentemente, colocar em questo as convices marxistas de Bakhtin; o livro marxista do comeo ao fim. Todavia como sublinha Jakobson em seu prefcio, o ttulo no deixa de surpreender, pois o contedo do livro muito mais rico do que a capa deixa entrever. Bakhtin expe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem, mas ele aborda, ao mesmo tempo, praticamente todos os domnios dasTraduo francesa sob o ttulo: Problmes de la Potique de Dostozevski, Lausanne, L'ge d'Homme, 1970. 3 Traduo francesa sob o ttulo: Franois Rabelais et la Culture Populaire sous la Renaissance, Gallimard, 1970.2

cincias humanas, por exemplo, a psicologia cognitiva, a etnologia, a pedagogia das lnguas, a comunicao, a estilstica, a crtica literria e coloca, de passagem, os fundamentos da semiologia moderna. Alis, ele possui de todos esses domnios uma viso notavelmente unitria e muito avanada em relao a seu tempo. Contudo, e nesse aspecto o subttulo Tentativa de aplicao do mtodo sociolgico em lingstica muito revelador; trata-se, principalmente, de um livro sobre as relaes entre linguagem e sociedade, colocado sob o signo da dialtica do signo, enquanto efeito das estruturas sociais. Sendo o signo e a enunciao de natureza social, em que medida a linguagem determina a conscincia, a atividade mental; em que medida a ideologia determina a linguagem? Tais so as questes que constituem o fio condutor do livro. Bakhtin foi o primeiro a abordar essas questes, que a humanidade se colocou muitas vezes antes dele, numa perspectiva marxista. Portanto, indispensvel situar sua reflexo em relao ao problema fundamental que foi suscitado pela aplicao da anlise marxista lngua - a lngua uma superestrutura? - e conseqentemente, em relao controvrsia da lingstica sovitica em torno desta questo, controvrsia qual Stlin ps fim em 1950 com A Propsito do Marxismo em Lingstica.4 Ao mesmo tempo, preciso notar que, por sua crtica a Saussure o representante mais eminente do que Bakhtin chamou o objetivismo abstrato - e aos excessos do estruturalismo nascente, ele antecede de quase cinqenta anos as orientaes da lingstica moderna. Veremos que os dois aspectos se confundem. Bakhtin coloca, em primeiro lugar, a questo dos dados reais da lingstica, da natureza real dos fatos da lngua. A lngua , como para Saussure, um fato social, cuja existncia se funda nas necessidades da comunicao. Mas, ao contrrio da lingstica unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da lngua um objeto abstrato ideal, que se consagra a ela como sistema sincrnico homogneo e rejeita suas manifestaes (a fala) individuais, Bakhtin, por sua vez, valoriza justamente a fala, a enunciao, e afirma sua natureza social, no individual: a fala est indissoluvelmente ligada s condies da comunicao, que, por sua vez, esto sempre ligadas s estruturas sociais. Se a fala o motor das transformaes lingsticas, ela no concerne os indivduos; com efeito, a palavra a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditrios; os conflitos da lngua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema: comunidade semitica e classe social no se recobrem. A comunicao verbal, inseparvel das outras formas de comunicao, implica conflitos, relaes de dominao e de resistncia, adaptao ou resistncia hierarquia, utilizao da lngua pela classe dominante para reforar seu poder etc. Na medida em que s diferenas de classe correspondem diferenas de registro ou mesmo de sistema (assim, a lngua sagrada dos padres, o "terrorismo verbal" da classe culta etc.), esta relao fica ainda mais evidente; mas Bakhtin se interessa, primeiramente, pelos conflitos no interior de um mesmo sistema. Todo signo ideolgico; a ideologia um reflexo das4

Traduo francesa das Editions de la Nouvelle Critique, 1950.

estruturas sociais; assim, toda modificao da ideologia encadeia uma modificao da lngua. A evoluo da lngua obedece a uma dinmica positivamente conotada, ao contrrio do que afirma a concepo saussuriana. A variao inerente lngua e reflete variaes sociais; se, efetivamente, a evoluo, por um lado, obedece a leis internas (reconstruo analgica, economia), ela , sobretudo, regida por leis externas, de natureza social. O signo dialtico, dinmico, vivo, ope-se ao "sinal" inerte que advm da anlise da lngua como sistema sincrnico abstrato. o que leva Bakhtin a atacar a noo de sincronia. E o surpreendente, que Bakhtin no critica Saussure em nome da teoria marxista, largamente proclamada; ele o critica no interior do seu prprio domnio, isto , encontra a falha no sistema de oposio lngua/fala, sincronia/diacronia. No plano cientfico, objetivo, o sistema sincrnico uma fico; com efeito, em nenhum momento o sistema est realmente em equilbrio, e isto todos os lingistas admitem. Mas, para o locutor-ouvinte ingnuo, usurio da lngua, esta no tampouco um sistema estvel e abstrato de sinais constantemente iguais a si mesmos e isolados por procedimentos de anlise distribucional. Ao contrrio, a forma lingstica sempre percebida como um signo mutvel. A entonao expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual no haveria enunciao, o contedo ideolgico, o relacionamento com uma situao social determinada, afetam a significao. O valor novo do signo, relativamente a um "tema" sempre novo, a nica realidade para o locutor-ouvinte. S a dialtica pode resolver a contradio aparente entre a unicidade e a pluralidade da significao. O objetivismo abstrato favorece arbitrariamente a unicidade, a fim de poder "prender a palavra em um dicionrio". O signo , por natureza, vivo e mvel, plurivalente; a classe dominante tem interesse em torn-lo monovalente. Trata-se, justamente, de uma crtica ao distribucionalismo "neutro". Segundo Bakhtin, a lingstica saussuriana (o objetivismo abstrato), que pensa estar afastada dos procedimentos da filologia, na realidade, apenas os perpetua. Da a crtica implcita da noo de corpus, prtica reducionista que tende a "reificar" a linguagem. Toda enunciao, fazendo parte de um processo de comunicao ininterrupto, um elemento do dilogo, no sentido amplo do termo, englobando as produes escritas. O corpus transforma as enunciaes em monlogos. Nesse sentido, o procedimento dos lingistas o mesmo que o dos fillogos. Donde a idia sempre reiterada de que o corpus, fundamento da lingstica descritiva e funcionalista, leva ao descritivismo abstrato e faz do signo um sinal (anlise distribucional, estabelecimento de classes de contexto e de classes de unidade que fornecem, implicitamente, uma norma, mesmo se o mtodo se pretende "objetivo" e "no normativo" pelo fato de se abster de evocar regras de carter prescritivo). Os imperativos pedaggicos no deixam de ter influncia sobre a prtica do lingista, na medida em que se procura transmitir um objeto-lngua to homogneo quanto possvel. Bakhtin coloca igualmente em evidncia a inadequao de todos os procedimentos de anlise lingstica (fonticos, morfolgicos e sintticos) para dar conta da enunciao completa, seja ela uma palavra, uma frase ou uma seqncia de frases. A enunciao,

compreendida como uma rplica do dilogo social, e a unidade de base da lngua, trate-se de discurso interior (dilogo consigo mesmo) ou exterior. Ela de natureza social, portanto ideolgica. Ela no existe fora de um contexto social, j que cada locutor tem um "horizonte social". H sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditrio social bem definido. "A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua doutrina a enunciao, como realidade da lngua e como estrutura scioideolgica." "O signo e a situao social esto indissoluvelmente ligados." Ora, todo signo ideolgico. Os sistemas semiticos servem para exprimir a ideologia e so, portanto, modelados por ela. A palavra o signo ideolgico por excelncia; ela registra as menores variaes das relaes sociais, mas isso no vale somente para os sistemas ideolgicos constitudos, j que a "ideologia do cotidiano", que se exprime na vida corrente, o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constitudas. Se a lngua determinada pela ideologia, a conscincia, portanto o pensamento, a "atividade mental", que so condicionados pela linguagem, so modelados pela ideologia. Contudo, todas estas relaes so inter-relaes recprocas, orientadas, verdade, mas sem excluir uma contra-ao. O psiquismo e a ideologia esto em "interao dialtica constante". Eles tm como terreno comum o signo ideolgico: "O signo ideolgico vive graas sua realizao no psiquismo e, reciprocamente, a realizao psquica vive do suporte ideolgico". A questo exige mais que um tratamento esquemtico. Na verdade, a distino essencial que Bakhtin faz entre "a atividade mental do eu" no modelada ideologicamente, prxima da reao fisiolgica do animal, caracterstica do indivduo pouco socializado) e a "atividade mental do ns" (forma superior que implica a conscincia de classe). "O pensamento no existe fora de sua expresso potencial e, por conseqncia, fora da orientao social desta expresso e do prprio pensamento". Tambm no se pode tratar esquematicamente a questo da lngua como superestrutura. Nos anos 20, no momento em que Bakhtin compe sua obra, duas tendncias se confrontam em lingstica, o formalismo e o sociologismo dito "vulgar", o marrismo. Nicolau Marr leva a suas ltimas conseqncias a assimilao da lngua a uma superestrutura: existncia de lnguas de classe e de gramticas de classe independentes e teoria da evoluo "por saltos"; difcil confirmar essa teoria nos fatos: a toda revoluo na base deveria corresponder uma to pronta evoluo da lngua. Tal , em todo caso, a imagem, sem dvida parcialmente deformada, que se pode fazer da teoria de Marr a partir da controvrsia de 1950. Bakhtin, por sua vez, insiste sobre a noo de processo ininterrupto. Para ele, a palavra veicula, de maneira privilegiada, a ideologia; a ideologia uma superestrutura, as transformaes sociais da base refletem-se na ideologia e, portanto, na lngua que as veicula. A palavra serve como "indicador" das mudanas. Bakhtin no afirma jamais que a lngua uma superestrutura no sentido estrito definido por Marr, o qual acarretar, em 1950, a inapelvel condenao stalinista: a base e as superestruturas esto sempre em interao. Em compensao, ele afirma

claramente que a lngua no assimilvel a um instrumento de produo. Ora, precisamente esta assimilao que ser formulada por Stlin, numa tentativa de dar uma imagem unificante, homognea, neutra da lngua em relao luta de classes, o que o leva, paradoxalmente, a uma posio prpria do objetivismo abstrato. Sabemos sobre que motivaes de poltica interna (a questo das lnguas nacionais na U.R.S.S.) repousava sua argumentao. Bakhtin denuncia o perigo de toda sistematizao ou formalizao exagerada das novas teorias: um sistema que estanca, perde sua vitalidade, seu dinamismo dialtico. A acusao poderia se dirigir tanto a Marr como a Stlin. Bakhtin define a lngua como expresso das relaes e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material. Como sua obra permaneceu desconhecida tanto do pblico sovitico como do pblico ocidental, s o confronto de posies extremas reteve a ateno. Todos aqueles que tinham escrpulos em considerar a lngua como uma superestrutura suspiraram aliviados em 1950, e procuraram esquecer a relao da lngua com as estruturas sociais at uma poca muito recente, com a emergncia da sociolingstica como lingstica e no como variante perifrica ou meramente anedtica.5 Na terceira parte do livro, consagrada ao estudo da transmisso do "discurso de outrem", Bakhtin fez uma aplicao prtica das teses desenvolvidas nas duas primeiras. Dessa forma, busca demonstrar a natureza social e no individual das variaes estilsticas. Com efeito, a maneira de integrar "o discurso de outrem" no contexto narrativo reflete as tendncias sociais da interao verbal numa poca e num grupo social dado. Apia-se, para firmar sua tese, em citaes extradas de Pchkin, Dostoievski, Zola, Thomas Mann, isto , de obras individuais que ele insere no contexto da poca e, portanto, da orientao social que a se manifesta. Aborda, igualmente, o papel do "narrador", que toma o lugar do autor da narrativa, com as interferncias que isso implica. Esta , certamente, uma de suas contribuies mais originais. No h para ele fronteira clara entre gramtica e estilstica. O discurso indireto constitui um discurso encaixado no interior do qual se manifesta uma interao dinmica. A passagem do estilo direto ao estilo indireto no se faz de maneira mecnica (isto lhe d a oportunidade de criticar os exerccios escolares "estruturais", crtica que permanece totalmente pertinente hoje em dia). Essa passagem implica anlise e reformulao completa, acompanhadas de um deslocamento e/ou de um entrecruzamento dos "acentos apreciativos" (modalidade). A anlise estilstica, parte integrante da lingstica, aparece como a preocupao essencial de Bakhtin. A lingstica - como, ao que parece, para Saussure6 - surge como o instrumento privilegiado e indispensvel para levar a bom termo os trabalhos de anliseVer a este respeito, na Frana, as posies de Cohen, Mounin, Marcellesi, Gardin, Dubois, Calvet, Encrev, etc. Eu citaria simplesmente Marcel Cohen: " preciso ver em que medida a linguagem, assim como a cincia vai dar na superestrutura por certos aspectos de seu emprego, ligando-se a instituies propriamente ditas ou a elementos ideolgicos". (Matriaux pour une Sociologie du Langage, Maspero, 1956). 6 Ver L. J. Calvet, Pour et contre Saussure, Payot, 1976.5

literria, que ocuparo a maior parte de sua vida. Como Saussure, ele , em vrios aspectos, um homem do sculo XIX, um homem de gabinete, de cultura enciclopdica, um verdadeiro "no-especialista". entre pessoas assim que, freqentemente, encontramos os melhores especialistas de uma disciplina.

Bibliografia V. V. Ivnov, "O Bakhtine i semiotike" ("Bakhtin e a Semitica"), in Rossa (Rssia), 1, Npoles, 1975- "Znatchnie idii Bakhtina o znkie, viskazivnie i dialguie dli sovreminnoi semiotiki" (A Significao das Idias de Bakhtin sobre o Signo, a Enunciao e o Dilogo para a Semitica Moderna), in Trdi po znkovim sistiemam (Trabalhos sobre Sistemas de Signos) Universidade de Trtu, 1973. Ver tambm "tcheki po istorii semiotiki v SSSR" (Ensaios para uma Histria da Semitica na U.R.S.S.), Moscou, 1976. Marina Yaguello

SUMRIO

NOTA DOS TRADUTORES PREFCIO, Roman Jakobson INTRODUO PRLOGO PRIMEIRA PARTE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTNCIA PARA O MARXISMO Capitulo 1. Estudo das Ideologias e Filosofia da Linguagem. A cincia das ideologias e a filosofia da linguagem. O problema do signo ideolgico. O signo ideolgico e a conscincia. A palavra como signo ideolgico por excelncia. A neutralidade ideolgica da palavra. A propriedade da palavra de ser um signo interior. Concluses. Captulo 2. Relao entre a Infra-estrutura e as Superestruturas. Por qu razo inadmissvel aplicar a categoria da causalidade mecanicista cincia da ideologia. A evoluo da sociedade e a da palavra. Expresso semitica da psicologia social. Dialetologia social. Formas da comunicao verbal e formas dos signos. Tema do signo. Luta de classes e dialtica do signo. Captulo 3. Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva. Problema da descrio objetiva do psiquismo. Estudo da psicologia cognitiva e interpretativa (Dilthey). Realidade semitica do psiquismo. Ponto de vista da psicologia funcionalista. Psicologismo e antipsicologismo. Especificidade do signo interior (discurso interior). Problema da introspeco. Natureza scio-econmica do psiquismo. Concluses. SEGUNDA PARTE PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM Captulo 4. Duas orientaes do Pensamento Filosfico Lingstico. Problema da realidade concreta da linguagem. Princpios fundamentais da primeira orientao do pensamento filosfico-lingstico (o subjetivismo individualista) e seus representantes. Princpios fundamentais da segunda orientao do pensamento filosficolingstico (objetivismo abstrato). Razes histricas da segunda orientao. Representantes contemporneos do objetivismo abstrato. Concluses. Captulo 5. Lngua, Fala e Enunciao. A lngua, enquanto sistema de formas sujeitas a uma norma, A lngua como sistema de normas e o ponto de vista real da do locutor. Que realidade lingstica est na base do lngua? Problema da palavra estrangeira. Erros do abstrato. Concluses. objetiva? conscincia sistema da objetivismo

Captulo 6. A Interao Verbal. Teoria da expresso do subjetivismo individualista. Crtica da teoria

da expresso. Estrutura sociolgica da atividade mental e de sua expresso. Problema da ideologia na vida cotidiana. A fala como base da evoluo da lngua. A enuncriao completa e suas formas. Captulo 7. Tema e Significao na Lngua. Tema e significao. Problema da apreenso significao. Dialtica da significao, ativa. Apreciao e

TERCEIRA PARTE PARA UMA HISTRIA DAS FORMAS DA ENUNCIAO NAS CONSTRUES SINTTICAS Tentativa de Aplicao do Mtodo Sociolgico aos Problemas Sintticos Captulo 8. Teoria da Enunciao e Problemas Sintticos. Significao dos problemas sintticos. Categorias sintticas e enunciaes completas. Problema dos pargrafos. Problemas das formas de transmisso do discurso de outrem. Captulo 9. O "Discurso de Outrem". Apresentao do problema. Determinao do discurso de outrem. Problema da apreenso ativa do discurso vinculado ao problema do dilogo. Dinmica da inter-relao do contexto narrativo e do discurso citado. O "estilo linear" em matria de transmisso do discurso de outrem em relao ao "estilo pictrico" Captulo 10. Discurso indireto, Discurso Direto e suas variantes. Esquemas e variantes. Gramtica e estilstica. Caracteres gerais da transmisso do discurso de outrem na lngua russa. Esquema do discurso indireto. Variante analisadora do contedo do discurso indireto. Esquema do discurso direto. Discurso direto preparado. Discurso direto esvaziado. Discurso direto antecipado, disseminado oculto. Fenmeno da interferncia verbal. Interrogaes retricas e exclamaes. Discurso direto de substituio. Discurso indireto livre. Captulo 11. Discurso Indireto Livre em Francs, Alemo e Russo. Discurso indireto livre em francs. Teoria de Tobler. Teoria de Kalepky. Teoria de Bally. Critica do objetivismo abstrato hiposttico de Bally. Bally e os vosslerianos. Discurso indireto livre em alemo. Teoria de Eugen Lerch. Teoria de Lerch. Teoria de Lorck sobre o papel da imaginao na lngua. Teoria de Gertraud Lerch. O discurso citado em francs antigo. Na poca do Renascimento. Discurso indireto livre em La Fontaine e La Bruyre. Discurso indireto livre segundo Vossler. Apario do discurso indireto livre em alemo. Critica do subjetivismo hipostatizante dos vosslerianos.

PRLOGO

No existe, atualmente, uma nica anlise marxista no domnio da filosofia da linguagem. Nem sequer h nos trabalhos marxistas relativos a outras questes, prximas daquelas da linguagem, alguma formulao, a respeito desta, que seja um pouco precisa e desenvolvida. Portanto, a problemtica de nosso trabalho, que desbrava, de certa forma, um terreno ainda virgem, s pode, evidentemente, situar-se num nvel bastante modesto. No se trata de uma anlise marxista sistemtica e definitiva dos problemas bsicos da filosofia da linguagem. Tal anlise s poderia resultar de um trabalho coletivo de grande flego. De nossa parte, tivemos que nos restringir simples tarefa de esboar as orientaes de base que uma reflexo aprofundada sobre a linguagem deveria seguir e os procedimentos metodolgicos a partir dos quais essa reflexo deve estabelecer-se para abordar os problemas concretos da lingstica. A atual inexistncia, na literatura marxista, de uma descrio definitiva e universalmente reconhecida da realidade especfica dos problemas ideolgicos tornou nossa tarefa particularmente complexa. Na maioria dos casos, esses problemas so percebidos como manifestaes da conscincia, isto , como fenmenos de natureza psicolgica. Uma tal concepo constituiu um grande obstculo ao estudo correto dos aspectos especficos dos fenmenos ideolgicos, os quais no podem, de forma alguma, ser reduzidos s particularidades da conscincia e do psiquismo. Por isso, o papel da lngua, como realidade material especfica da criao ideolgica, no pde ser justamente apreciado. preciso acrescentar a isso que categorias do tipo mecanicista implantaram-se solidamente em todos os domnios a respeito dos quais os pais fundadores - Marx e Engels - pouco ou nada disseram. Esses domnios, portanto, encontram-se, com respeito ao essencial, no estdio do materialismo mecanicista pr-dialtico. Todos os domnios da cincia das ideologias acham-se, atualmente, ainda dominados pela categoria da causalidade mecanicista. Alm disso, persiste ainda a concepo positivista do empirismo, que se inclina diante do "fato", entendido no dialeticamente, mas como algo intangvel e imutvel. Praticamente, o esprito filosfico do marxismo ainda no penetrou nesses domnios. Por essas razes, foi-nos quase totalmente impossvel encontrar apoio em resultados precisos e positivos que tivessem sido obtidos pelas outras cincias que se relacionam com a ideologia. Mesmo a crtica literria, que, graas a Plekhnov, , todavia, a mais desenvolvida dessas cincias, nada pde fornecer de til a nosso objeto de estudo. Este livro apresenta-se, essencialmente, como um trabalho de pesquisa, mas tentamos conferir-lhe uma forma acessvel ao grande pblico. Na primeira parte de nosso trabalho, tentamos mostrar a importncia dos problemas da filosofia da linguagem para o marxismo em seu conjunto. Essa importncia no tem sido, como dissemos, suficientemente apreciada. E, no entanto, os problemas da filosofia da linguagem situam-se no ponto de convergncia de uma srie de domnios

essenciais para a concepo marxista do mundo e de alguns domnios que tm interessado muito, atualmente, nossa opinio pblica. Convm acrescentar que, nesses ltimos anos, os problemas fundamentais da filosofia da linguagem adquiriram uma acuidade e uma importncia excepcionais. Pode-se dizer que a filosofia burguesa contempornea est se desenvolvendo sob o signo da palavra. E essa nova orientao do pensamento filosfico do Ocidente est ainda s nos seus primeiros passos. A "palavra" e sua situao no sistema so a parada de uma luta inflamada somente comparvel quela que, na Idade Mdia, ops realistas, nominalistas e conceitualistas. Na realidade, no realismo dos fenomenlogos e no conceitualismo dos neokantianos, assistimos, numa certa medida, a um renascimento da tradio das escolas filosficas medievais. Na lingstica propriamente dita, aps a era positivista, marcada pela recusa de qualquer teorizao dos problemas cientficos, a que se adiciona uma hostilidade, por parte dos positivistas retardatrios, em relao aos problemas de viso do mundo, assiste-se a uma ntida tomada de conscincia dos fundamentos filosficos dessa cincia e de suas relaes com os outros domnios do conhecimento. E isso serviu para denunciar a crise que a lingstica atravessa, na sua incapacidade de resolver seus problemas de modo satisfatrio. Indicar o lugar dos problemas da filosofia da linguagem dentro do conjunto da viso marxista do mundo: este o objetivo de nossa primeira parte. por isso que ela no contm demonstraes e no prope concluses definitivas. Seu interesse est mais voltado para a relao entre os problemas do que para a relao entre os fatos estudados. A segunda parte tenta resolver o problema fundamental da filosofia da linguagem, ou seja, o problema da natureza real dos fenmenos lingsticos. Esse problema constitui o eixo em torno do qual giram todas as questes essenciais do pensamento filosficolingstico contemporneo. Problemas to fundamentais quanto o da evoluo da lngua, da interao verbal, da compreenso, o problema da significao e muitos outros ainda esto estreitamente vinculados a esse problema central. Evidentemente, apenas esboamos as principais vias que conduzem sua resoluo. Toda uma srie de questes permanece em suspenso. Toda uma srie de direes de pesquisa, indicadas no comeo, permanece inexplorada. Mas no poderia ser de outro modo num pequeno livro que, pela primeira vez, tenta abordar esses problemas de um ponto de vista marxista. Na ltima parte de nosso trabalho, realizado um estudo concreto de uma questo de sintaxe. A idia diretiva de toda nossa pesquisa, o papel produtivo e a natureza social da enunciao, requer exemplos concretos que a sustentem: indispensvel mostrar sua importncia, no s no plano geral da viso do mundo e para as questes bsicas da filosofia da linguagem, mas tambm para todas as questes da lingstica, por mais particulares que sejam. Se essa idia realmente justa e fecunda, ela deve poder ser aplicada em todos os nveis. Mas o tema da terceira parte, a questo do discurso citado, tem ele mesmo uma significao profunda que vai muito alm do quadro da sintaxe. Vrios aspectos essenciais da criao literria, o

discurso do heri (a estruturao do heri de maneira geral), o "Skaz"*, a estilizao, a pardia, nada mais so do que refraes diversas do "discurso de outrem". , portanto, indispensvel compreender esse tipo de discurso e as regras sociolgicas que o regem para analisar de maneira fecunda os aspectos da criao literria acima citados. A questo tratada na terceira parte no foi objeto de nenhum estudo na literatura lingstica. Por exemplo, o discurso indireto livre - que Pchkin j utilizava - no foi mencionado nem descrito por ningum. Tambm nunca foram estudadas as variantes muito diferentes do discurso direto e do discurso indireto. Portanto, a orientao de nosso trabalho vai do geral ao particular, do abstrato ao concreto: das questes de filosofia geral s questes de lingstica geral; a partir disso, abordamos, finalmente, uma questo especfica que diz respeito tanto gramtica (sintaxe) quanto estilstica.

Narrativa em primeira pessoa, freqentemente num estilo popular. V. traduo francesa de La Potigue de Dostoevski, Paris, Seuil, 1970, p. 243. (N.T.).*

PRIMEIRA PARTE

A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTNCIA PARA O MARXISMO

CAPTULO I ESTUDO DAS IDEOLOGIAS E FILOSOFIA DA LINGUAGEM Os problemas da filosofia da linguagem adquiriram, recentemente, uma atualidade e uma importncia excepcionais para o marxismo. Na maioria dos setores mais importantes de seu desenvolvimento cientfico, o mtodo marxista vai diretamente de encontro a esses problemas e no pode avanar de maneira eficaz sem submet-los a um exame especfico e encontrar-lhes uma soluo. Para comear, as bases de uma teoria marxista da criao ideolgica - as dos estudos sobre o conhecimento cientfico, a literatura, a religio, a moral, etc. - esto estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da linguagem. Um produto ideolgico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo fsico, instrumento de produo ou produto de consumo; mas, ao contrrio destes, ele tambm reflete e refrata uma outra realidade, que lhe exterior. Tudo que ideolgico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que ideolgico um signo. Sem signos no existe ideologia. Um corpo fsico vale por si prprio: no significa nada e coincide inteiramente com sua prpria natureza. Neste caso, no se trata de ideologia. No entanto, todo corpo fsico pode ser percebido como smbolo: o caso, por exemplo, da simbolizao do princpio de inrcia e de necessidade na natureza (determinismo) por um determinado objeto nico. E toda imagem artstico-simblica ocasionada por um objeto fsico particular j um produto ideolgico. Converte-se, assim, em signo o objeto fsico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade. O mesmo se d com um instrumento de produo. Em si mesmo, um instrumento no possui um sentido preciso, mas apenas uma funo: desempenhar este ou aquele papel na produo. E ele desempenha essa funo sem refletir ou representar alguma outra coisa. Todavia, um instrumento pode ser convertido em signo ideolgico: o caso, por exemplo, da foice e do martelo como emblema da Unio Sovitica. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideolgico. Todo instrumento de produo pode, da mesma forma, se revestir de um sentido ideolgico: os instrumentos utilizados pelo homem prhistrico eram cobertos de representaes simblicas e de ornamentos, isto , de signos. Nem por isso o instrumento, assim tratado, torna-se ele prprio um signo. Por outro lado, possvel dar ao instrumento uma forma artstica, que assegure uma adequao harmnica da forma funo na produo. Nesse caso, produz-se uma espcie de aproximao mxima, quase uma fuso, entre o signo e o instrumento. Mas mesmo aqui ainda discernimos uma linha de demarcao conceitual: o instrumento, enquanto tal, no se torna signo e o signo, enquanto tal, no se torna instrumento de produo. Qualquer produto de consumo pode, da mesma forma, ser transformado em signo ideolgico. O po e o vinho, por exemplo, tornam-se smbolos religiosos no sacramento cristo da comunho. Mas o

produto de consumo enquanto tal no , de maneira alguma, um signo. Os produtos de consumo, assim como os instrumentos, podem ser associados a signos ideolgicos, mas essa associao no apaga a linha de demarcao existente entre eles. O po possui uma forma particular que no apenas justificvel pela sua funo de produto de consumo; essa forma possui tambm um valor, mesmo que primitivo, de signo ideolgico (por exemplo o po com a forma de nmero oito ou de uma roseta). Portanto, ao lado dos fenmenos naturais, do material tecnolgico e dos artigos de consumo, existe um universo particular, o universo de signos. Os signos tambm so objetos naturais, especficos, e, como vimos, todo produto natural, tecnolgico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas prprias particularidades. Um signo no existe apenas como parte de uma realidade; ele tambm reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreend-la de um ponto de vista especfico, etc. Todo signo est sujeito aos critrios de avaliao ideolgica (isto : se verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domnio do ideolgico coincide com o domnio dos signos: so mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se tambm o ideolgico. Tudo que ideolgico possui um valor semitico. No domnio dos signos, isto , na esfera ideolgica, existem diferenas profundas, pois este domnio , ao mesmo tempo, o da representao, do smbolo religioso, da frmula cientfica e da forma jurdica, etc. Cada campo de criatividade ideolgica tem seu prprio modo de orientao para a realidade e refrata a realidade sua prpria maneira. Cada campo dispe de sua prpria funo no conjunto da vida social. seu carter semitico que coloca todos os fenmenos ideolgicos sob a mesma definio geral. Cada signo ideolgico no apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas tambm um fragmento material dessa realidade. Todo fenmeno que funciona como signo ideolgico tem uma encarnao material, seja como som, como massa fsica, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo totalmente objetiva e, portanto, passvel de um estudo metodologicamente unitrio e objetivo. Um signo um fenmeno do mundo exterior. O prprio signo e todos os seus efeitos (todas as aes, reaes e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experincia exterior. Este um ponto de suma importncia. No entanto, por mais elementar e evidente que ele possa parecer, o estudo das ideologias ainda no tirou todas as conseqncias que dele decorrem. A filosofia idealista e a viso psicologista da cultura situam ideologia na conscincia1. Afirmam que a ideologia um fato deNotemos que, sobre esse ponto, possvel detectar uma mudana de perspectiva no neokantismo moderno. Estou pensando no recente livro de Ernst Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen, Vol. I, 1923. Embora continue se situando no terreno da conscincia, Cassirer considera que seu trao dominante a representao. Cada elemento de conscincia representa alguma coisa, o suporte de uma funo simblica. O todo existe nas suas partes, mas uma parte s compreensvel no todo. Segundo Cassirer, a idia to sensorial quanto a matria: no entanto, o aspecto sensorial introduzido aqui1

conscincia e que o aspecto exterior do signo simplesmente um revestimento, um meio tcnico de realizao do efeito interior, isto , da compreenso. O idealismo e o psicologismo esquecem que a prpria compreenso no pode manifestar-se seno atravs de um material semitico (por exemplo, o discurso interior), que o signo se ope ao signo, que a prpria conscincia s pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnao material em signos. Afinal, compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos j conhecidos; em outros termos, a compreenso uma resposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividade e de compreenso ideolgicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, nica e contnua: de um elo de natureza semitica (e, portanto, tambm de natureza material) passamos sem interrupo para um outro elo de natureza estritamente idntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum ponto ela penetra a existncia interior, de natureza no material e no corporificada em signos. Essa cadeia ideolgica estende-se de conscincia individual em conscincia individual, ligando umas s outras. Os signos s emergem, decididamente, do processo de interao entre uma conscincia individual e uma outra. E a prpria conscincia individual est repleta de signos. A conscincia s se torna conscincia quando se impregna de contedo ideolgico (semitico) e, conseqentemente, somente no processo de interao social. Apesar de suas profundas diferenas metodolgicas, a filosofia idealista e o psicologismo em matria de cultura cometem, ambos, o mesmo erro fundamental. Situando a ideologia na conscincia, eles transformam o estudo das ideologias em estudo da conscincia e de suas leis: pouco importa que isso seja feito em termos transcendentais ou em termos emprico-psicolgicos. Esse erro no s responsvel por uma confuso metodolgica acerca da inter-relao entre domnios diferentes do conhecimento, como tambm por uma distoro radical da realidade estudada. A criao ideolgica - ato material e social - introduzida fora no quadro da conscincia individual. Esta, por sua vez, privada de qualquer suporte na realidade. Torna-se tudo ou nada. Para o idealismo ela tornou-se tudo: situada em algum lugar acima da existncia e determinando-a. De fato, na teoria idealista, essa soberania do universo a mera hipstase de um vnculo abstrato entre as formas e as categorias mais gerais da criao ideolgica. Para o positivismo psicologista, ao contrrio, a conscincia se reduz a nada: simples conglomerado de reaes psicofisiolgicas fortuitas que, por milagre, resulta numa criao ideolgica significante e unificada. A regularidade social objetiva da criao ideolgica, quando indevidamente interpretada como estando em conformidade com as leis da conscincia individual, deve, inevitavelmente, ser excluda de seu verdadeiro lugar na existncia e transportada quer para a empreo supra-existencial do transcendentalismo, quer para os recnditos prsociais do organismo psicofisiolgico, biolgico. No entanto, o ideolgico enquanto tal no pode ser explicado em o do signo simblico, uma sensorialidade representativa.

termos de razes supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar o material social particular de signos criados pelo homem. Sua especificidade reside, precisamente, no fato de que ele se situa entre indivduos organizados, sendo o meio de sua comunicao. Os signos s podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de um terreno que no pode ser chamado de "natural" no sentido usual da palavra2: no basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. fundamental que esses dois indivduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): s assim um sistema de signos pode constituir-se. A conscincia individual no s nada pode explicar, mas, ao contrrio, deve ela prpria ser explicada a partir do meio ideolgico e social. A conscincia individual um fato scio-ideolgico. Enquanto esse fato e todas as suas conseqncias no forem devidamente reconhecidas, no ser possvel construir nem uma psicologia objetiva nem um estudo objetivo das ideologias. justamente o problema da conscincia que criou as maiores dificuldades e gerou a formidvel confuso que encontramos em todas as discusses relativas tanto psicologia quanto ao estudo das ideologias. De maneira geral, a conscincia tornou-se o asylum ignorantiae de todo edifcio filosfico. Foi transformada em depsito de todos os problemas no resolvidos, de todos os resduos objetivamente irredutveis. Ao invs de se buscar uma definio objetiva da conscincia, esta foi usada para tornar subjetivas e fluidas certas noes at ento slidas e objetivas. A nica definio objetiva possvel da conscincia de ordem sociolgica. A conscincia no pode derivar diretamente da natureza, como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingnuo e a psicologia contempornea (sob suas diferentes formas: biolgica, behaviorista, etc.). A ideologia no pode derivar da conscincia, como pretendem o idealismo e o positivismo psicologista. A conscincia adquire forma e existncia nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relaes sociais. Os signos so o alimento da conscincia individual, a matria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lgica e suas leis. A lgica da conscincia a lgica da comunicao ideolgica, da interao semitica de um grupo social. Se privarmos a conscincia de seu contedo semitico e ideolgico, no sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu nico abrigo. Fora desse material, h apenas o simples ato fisiolgico, no esclarecido pela conscincia, desprovido do sentido que os signos lhe conferem. Tudo o que dissemos acima conduz ao seguinte princpio metodolgico: o estudo das ideologias no depende em nada da psicologia e no tem nenhuma necessidade dela. Como veremos, antes o contrrio que verdadeiro: a psicologia objetiva deve se apoiar no estudo das ideologias. A realidade dos fenmenos ideolgicos a realidade objetiva dos signos sociais. As leis dessa realidade so asA sociedade, evidentemente, tambm uma parte da natureza, mas uma parte que qualitativamente distinta e separada dela e que possui seu prprio sistema de leis especficas.2

leis da comunicao semitica e so diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econmicas. A realidade ideolgica uma superestrutura situada imediatamente acima da base econmica. A conscincia individual no o arquiteto dessa superestrutura ideolgica, mas apenas um inquilino do edifcio social dos signos ideolgicos. Preliminarmente, portanto, separando os fenmenos ideolgicos da conscincia individual ns os ligamos s condies e s formas da comunicao social. A existncia do signo nada mais do que a materializao dessa comunicao. nisso que consiste a natureza de todos os signos ideolgicos. Mas esse aspecto semitico e esse papel contnuo da comunicao social como fator condicionante no aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A palavra o fenmeno ideolgico por excelncia. A realidade toda da palavra absorvida por sua funo de signo. A palavra no comporta nada que no esteja ligado a essa funo, nada que no tenha sido gerado por ela. A palavra o modo mais puro e sensvel de relao social. O valor exemplar, a representatividade da palavra como fenmeno ideolgico e a excepcional nitidez de sua estrutura semitica j deveriam nos fornecer razes suficientes para colocarmos a palavra em primeiro plano no estudo das ideologias. , precisamente, na palavra que melhor se revelam as formas bsicas, as formas ideolgicas gerais da comunicao semitica. Mas a palavra no somente o signo mais puro, mais indicativo; tambm um signo neutro. Cada um dos demais sistemas de signos especfico de algum campo particular da criao ideolgica. Cada domnio possui seu prprio material ideolgico e formula signos e smbolos que lhe so especficos e que no so aplicveis a outros domnios. O signo, ento, criado por uma funo ideolgica precisa e permanece inseparvel dela. A palavra, ao contrrio, neutra em relao a qualquer funo ideolgica especfica. Pode preencher qualquer espcie de funo ideolgica: esttica, cientfica, moral, religiosa. Alm disso, existe uma parte muito importante da comunicao ideolgica que no pode ser vinculada a uma esfera ideolgica particular: trata-se da comunicao na vida cotidiana. Esse tipo de comunicao extraordinariamente rica e importante. Por um lado, ela est diretamente vinculada aos processos de produo e, por outro lado, diz respeito s esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas. Trataremos, no prximo captulo, com maior detalhe desse domnio especial que a ideologia do cotidiano. Por ora, notemos apenas que o material privilegiado da comunicao na vida cotidiana a palavra. justamente nesse domnio que a conversao e suas formas discursivas se situam. H uma outra propriedade da palavra que da maior importncia e que a torna o primeiro meio da conscincia individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivduos, uma palavra , ao mesmo tempo, produzida pelos prprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espcie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra como material

semitico da vida interior, da conscincia (discurso interior). Na verdade, a conscincia no poderia se desenvolver se no dispusesse de um material flexvel, veiculvel pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de material. A palavra , por assim dizer, utilizvel como signo interior; pode funcionar como signo sem expresso externa. Por isso, o problema da conscincia individual como problema da palavra interior, em geral constitui um dos problemas fundamentais da filosofia da linguagem. claro que esse problema no pode ser abordado corretamente se se recorre aos conceitos usuais de palavra e de lngua tais como foram definidos pela lingstica e pela filosofia da linguagem nosociolgicas. E preciso fazer uma anlise profunda e aguda da palavra como signo social para compreender seu funcionamento como instrumento da conscincia. devido a esse papel excepcional de instrumento da conscincia que a palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criao ideolgica, seja ela qual for. A palavra acompanha e comenta todo ato ideolgico. Os processos de compreenso de todos os fenmenos ideolgicos (um quadro, uma pea musical, um ritual ou um comportamento humano) no podem operar sem a participao do discurso interior. Todas as manifestaes da criao ideolgica todos os signos no-verbais - banham-se no discurso e no podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele. Isso no significa, obviamente, que a palavra possa suplantar qualquer outro signo ideolgico. Nenhum dos signos ideolgicos especficos, fundamentais, inteiramente substituvel por palavras. impossvel, em ltima anlise, exprimir em palavras, de modo adequado, uma composio musical ou uma representao pictrica. Um ritual religioso no pode ser inteiramente substitudo por palavras. Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano. Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiros. Todavia, embora nenhum desses signos ideolgicos seja substituvel por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apia nas palavras e acompanhado por elas, exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical. Nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de um sentido, permanece isolado: torna-se parte da unidade da conscincia verbalmente constituda. A conscincia tem o poder de abord-lo verbalmente. Assim, ondas crescentes de ecos e ressonncias verbais, como as ondulaes concntricas superfcie das guas, moldam, por assim dizer, cada um dos signos ideolgicos. Toda refrao ideolgica do ser em processo de formao, seja qual for a natureza de seu material significante, acompanhada de uma refrao ideolgica verbal, como fenmeno obrigatoriamente concomitante. A palavra est presente em todos os atos de compreenso e em todos os atos de interpretao. Todas as propriedades da palavra que acabamos de examinar - sua pureza semitica, sua neutralidade ideolgica, sua implicao na comunicao humana ordinria, sua possibilidade de interiorizao e, finalmente, sua presena obrigatria, como fenmeno acompanhante, em todo ato consciente - todas essas propriedades fazem dela o objeto fundamental do estudo das ideologias. As leis da refrao ideolgica da existncia em signos e em conscincia, suas formas e seus

mecanismos, devem ser estudados, antes de mais nada, a partir desse material que a palavra. A nica maneira de fazer com que o mtodo sociolgico marxista d conta de todas as profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideolgicas "imanentes" consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideolgico. E essa base de partida deve ser traada e elaborada pelo prprio marxismo.

CAPTULO 2

A RELAO ENTRE A INFRA-ESTRUTURA E AS SUPERESTRUTURAS Um dos problemas fundamentais do marxismo, o das relaes entre a infra-estrutura e as superestruturas, acha-se intimamente ligado, em muitos de seus principais aspectos, aos problemas da filosofia da linguagem. O marxismo s tem pois a ganhar com a resoluo ou, pelo menos, com o tratamento, ainda que no muito aprofundado, destas questes. Sempre que se coloca a questo de saber como a infraestrutura determina a ideologia, encontramos a seguinte resposta que, embora justa, mostra-se por demais genrica e por isso ambgua: "a causalidade". Se for necessrio entender por causalidade a mecanicista, como tem sido entendida at hoje pela corrente positivista da escola naturalista, ento uma tal resposta se revela radicalmente mentirosa e contraditria com os prprios fundamentos do materialismo dialtico. A esfera de aplicao da categoria de causalidade mecanicista extremamente limitada; mesmo nas cincias naturais ela se reduz cada vez mais medida que o materialismo dialtico alarga seu campo de aplicao e aprofunda suas teses. Est fora de questo, a fortiori, aplicar esta categoria inerte aos problemas fundamentais do materialismo histrico ou a qualquer cincia das ideologias. A explicitao de uma relao entre a infra-estrutura e um fenmeno isolado qualquer, destacado de seu contexto ideolgico completo e nico, no apresenta nenhum valor cognitivo. Antes de mais nada, impossvel estabelecer o sentido de uma dada transformao ideolgica no contexto da ideologia correspondente, considerando que toda esfera ideolgica se apresenta como um conjunto nico e indivisvel cujos elementos, sem exceo, reagem a uma transformao da infra-estrutura. Eis porque toda explicao deve ter em conta a diferena quantitativa entre as esferas de influncia recproca e seguir passo a passo todas as etapas da transformao. Apenas sob esta condio a anlise desembocar, no na convergncia superficial de dois fenmenos fortuitos e situados em planos diferentes, mas num processo de evoluo social realmente dialtico, que procede da infraestrutura e vai tomar forma nas superestruturas. Ignorar a especificidade do material semitico-ideolgico, reduzir o fenmeno ideolgico, tomar em considerao e explicar apenas seu valor denotativo racional (por exemplo, o sentido diretamente representativo de uma dada obra literria: Rdin = o homem suprfluo*), componente este colocado ento em relao com a infra-estrutura (aqui, o empobrecimento da nobreza, donde o tema "homem suprfluo" na literatura), ou ento, ao contrrio, isolar apenas o componente superficial, "tcnico", do fenmeno ideolgico (exemplo: a tcnica arquitetnica, ou ainda a tcnica dos colorantes*

Ttulo de um clebre romance de Turguiniev que constitui a confisso de toda uma gerao, a dos anos 1830, conhecida na histria russa pelo nome de gerao idealista e marcada pela sua incapacidade de agir. Dela podemos aproximar os personagens "Oblmov" em Oblmov de I. A. Gontcharov, Deltov" em De quem a Culpa? de A. I. Herzen e "Bazrov em Pais e Filhos de Turguiniev. (N.d.T.f.).

qumicos) e, neste caso, este componente deduz-se diretamente do nvel tcnico da produo. Tanto um quanto outro mtodo de deduo da ideologia a partir da infra-estrutura passam margem da substncia do fenmeno ideolgico. Mesmo se a correspondncia estabelecida for justa, mesmo se "o homem suprfluo" tiver efetivamente aparecido na literatura em correlao com a decadncia econmica da nobreza, em primeiro lugar, disto no decorre em absoluto que os reveses econmicos correspondentes engendrem por um fenmeno de causalidade mecanicista "homens suprfluos" nas pginas dos romances (a futilidade de uma tal suposio absolutamente evidente); em segundo lugar, esta correspondncia no tem nenhum valor cognitivo enquanto no se explicitarem o papel especfico do "homem suprfluo na estrutura da obra romanesca e o papel especfico do romance no conjunto da vida social. No parece evidente que entre a transformao da estrutura econmica e o aparecimento do "homem suprfluo" no romance existe um longo percurso que passa por uma srie de esferas qualitativamente diferenciadas, estando cada uma delas dotada de um conjunto de regras especficas e de um carter prprio? No parece evidente que "o homem suprfluo" no surgiu no romance de forma independente e sem qualquer ligao com os outros elementos constitutivos do romance? Bem ao contrrio, o romance no seu conjunto reestruturou-se como um todo nico, orgnico, submetido a suas prprias leis especficas. Portanto, reestruturam-se tambm todos os outros elementos do romance; sua composio, seu estilo. Mas esta reestruturao do romance completouse tambm em estreita ligao com as demais transformaes no conjunto da literatura. O problema da relao recproca entre a infra-estrutura e as superestruturas, problema dos mais complexos e que exige, para sua resoluo fecunda, um volume enorme de materiais preliminares, pode justamente ser esclarecido, em larga escala, pelo estudo do material verbal. De fato, a essncia deste problema, naquilo que nos interessa, liga-se questo de saber como a realidade (a infra-estrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformao. As caractersticas da palavra enquanto signo ideolgico, tais como foram ressaltadas no primeiro captulo, fazem dela um dos mais adequados materiais para orientar o problema no plano dos princpios. No tanto a pureza semitica da palavra que nos interessa na relao em questo, mas sua ubiqidade social. Tanto verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relaes entre indivduos, nas relaes de colaborao, nas de base ideolgica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relaes de carter poltico, etc. As palavras so tecidas a partir de uma multido de fios ideolgicos e servem de trama a todas as relaes sociais em todos os domnios. portanto claro que a palavra ser sempre o indicador mais sensvel de todas as transformaes sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda no tomaram forma, que ainda no abriram caminho para sistemas ideolgicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulaes quantitativas de

mudanas que ainda no tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideolgica, que ainda no tiveram tempo de engendrar uma forma ideolgica nova e acabada. A palavra capaz de registrar as fases transitrias mais ntimas, mais efmeras das mudanas sociais. O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui, segundo a teoria de Plekhnov e da maioria dos marxistas, uma espcie de elo de ligao entre a estrutura scio-poltica e a ideologia no sentido estrito do termo (cincia, arte, etc.), realiza-se, materializa-se, sob a forma de interao verbal. Se considerada fora deste processo real de comunicao e de interao verbal (ou, mais genericamente, semitica), a psicologia do corpo social se transforma num conceito metafsico ou mtico (a "alma coletiva", "o inconsciente coletivo", "o esprito do povo", etc.). A psicologia do corpo social no se situa em nenhum lugar "interior" (na "alma" dos indivduos em situao de comunicao); ela , pelo contrrio, inteiramente exteriorizada: na palavra, no gesto, no ato. Nada h nela de inexprimvel, de interiorizado, tudo est na superfcie, tudo est na troca, tudo est no material, principalmente no material verbal. As relaes de produo e a estrutura scio-poltica que delas diretamente deriva determinam todos os contatos verbais possveis entre indivduos, todas as formas e os meios de comunicao verbal: no trabalho, na vida poltica, na criao ideolgica. Por sua vez, das condies, formas e tipos da comunicao verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala. A psicologia do corpo social justamente o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espcie, e neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectos da criao ideolgica ininterrupta: as conversas de corredor, as trocas de opinio no teatro e, no concerto, nas diferentes reunies sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo de reao verbal face s realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a conscincia autoreferente, a regulamentao social, etc. A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da "enunciao" sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores. Este campo no foi objeto de nenhum estudo at hoje. Todas estas manifestaes verbais esto, por certo, ligadas aos demais tipos de manifestao e de interao de natureza semitica, mmica, linguagem gestual, aos gestos condicionados, etc. Estas formas de interao verbal acham-se muito estreitamente vinculadas s condies de uma situao social dada e reagem de maneira muito sensvel a todas as flutuaes da atmosfera social. Assim que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanas e deslocamentos quase imperceptveis que, mais tarde, encontram sua expresso nas produes ideolgicas acabadas. Do que at agora foi dito podemos deduzir o seguinte: que a psicologia do corpo social deve ser estudada de dois pontos de vista diferentes: primeiramente, do ponto de vista do contedo, dos temas que a se encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em segundo lugar, do ponto de vista dos tipos e formas de discurso atravs dos quais estes temas tomam forma, so comentados, se

realizam, so experimentados, so pensados, etc. At o presente, o estudo da psicologia do corpo social se limitava ao primeiro ponto de vista, ou seja, explicitao nica da temtica nela contida. E mais, a prpria questo de saber onde buscar documentos objetivos, isto , a expresso materializada da psicologia do corpo social, nem mesmo se colocava com toda sua clareza. A ento os conceitos de "conscincia", "psiquismo" e "mundo interior" desempenharam um papel deplorvel, suprimindo a necessidade de pesquisar as formas materiais precisas da expresso da psicologia do corpo social. No entanto, esta questo das formas concretas tem uma significao imediata. No se trata, claro, nem das fontes de nosso conhecimento da psicologia do corpo social numa ou noutra poca (por exemplo: memrias, cartas, obras literrias), nem das fontes de nossa compreenso do "esprito da poca". Trata-se, muito precisamente, das prprias formas de concretizao deste esprito, isto , das formas da comunicao no contexto da vida e atravs de signos. A tipologia destas formas um dos problemas vitais para o marxismo. Mais tarde, em conexo com o problema da enunciao e do dilogo, abordaremos tambm o problema dos gneros lingsticos. A este respeito faremos simplesmente a seguinte observao: cada poca e cada grupo social tm seu repertrio de formas de discurso na comunicao scio-ideolgica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gnero, isto , a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas. Entre as formas de comunicao (por exemplo, relaes entre colaboradores num contexto puramente tcnico), a forma de enunciao ("respostas curtas" na "linguagem de negcios") e enfim o tema, existe uma unidade orgnica que nada poderia destruir. Eis porque a classificao das formas de enunciao deve apoiar-se sobre uma classificao das formas da comunicao verbal. Estas ltimas so inteiramente determinadas pelas relaes de produo e pela estrutura scio-poltica. Uma anlise mais minuciosa revelaria a importncia incomensurvel do componente hierrquico no processo de interao verbal, a influncia poderosa que exerce a organizao hierarquizada das relaes sociais sobre as formas de enunciao. O respeito s regras da "etiqueta", do "bem-falar" e as demais formas de adaptao da enunciao organizao hierarquizada da sociedade tm uma importncia imensa no processo de explicitao dos principais modos de comportamento1. Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interao. Razo pela qual as formas do signo so condicionadas tanto pela organizao social de tais indivduos como pelas condies em que a interao acontece. Uma modificao destas formas ocasiona uma modificao do signo. justamente uma das tarefas da cincia das ideologias estudar esta evoluo social do signo lingstico. S esta abordagem pode dar uma expresso concreta ao problema da mtua influncia do signo e doO problema dos registros da lngua familiar s comeou a chamar a ateno dos lingistas e filsofos bem recentemente. Leo Spitzer, num artigo intitulado "Italienische Umgangsprache" (1922) foi um dos primeiros a abordar este problema de forma sria, embora destituda de critrios sociolgicos. Ele ser citado adiante, juntamente com seus precursores e imitadores.1

ser, apenas sob esta condio que o do signo pelo ser aparece como uma signo, como um processo de refrao signo. Para tanto, indispensvel metodolgicas:

processo de determinao causal verdadeira passagem do ser ao realmente dialtico do ser no observar as seguintes regras

1. No separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da "conscincia" ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinvel). 2. No dissociar o signo das formas concretas da comunicao social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicao social organizada e que no tem existncia fora deste sistema, a no ser como objeto fsico). 3. No dissociar a comunicao e suas formas de sua base material (infra-estrutura).

Realizando-se no processo da relao social, todo signo ideolgico, e portanto tambm o signo lingstico, v-se marcado pelo horizonte social de uma poca e de um grupo social determinados. At agora tratamos da forma do signo enquanto determinado pelas formas da interao social. Iremos agora abordar um outro aspecto, o do contedo do signo e do ndice de valor que afeta todo contedo. A cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto da ateno do corpo social e que, por causa disso, tomam um valor particular. S este grupo de objetos dar origem a signos, tornar-se- um elemento da comunicao por signos. Como se pode determinar este grupo de objetos "valorizados"? Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reao semiticoideolgica, indispensvel que ele esteja ligado s condies scioeconmicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira s bases de sua existncia material. Evidentemente, o arbtrio individual no poderia desempenhar aqui papel algum, j que o signo se cria entre indivduos, no meio social; portanto indispensvel que o objeto adquira uma significao interindividual; somente ento que ele poder ocasionar a formao de um signo. Em outras palavras, no pode entrar no domnio da ideologia, tomar forma e a deitar razes seno aquilo que adquiriu um valor social. por isso que todos os ndices de valor com caractersticas ideolgicas, ainda que realizados pela voz dos indivduos (por exemplo, na palavra) ou, de modo mais geral, por um organismo individual, constituem ndices sociais de valor, com pretenses ao consenso social, e apenas em nome deste consenso que eles se exteriorizam no material ideolgico. Admitamos chamar a realidade que d lugar formao de um signo de tema do signo. Cada signo constitudo possui seu tema. Assim, cada

manifestao verbal tem seu tema2. O tema ideolgico possui sempre um ndice de valor social. Por certo, todos estes ndices sociais de valor dos temas ideolgicos chegam igualmente conscincia individual que, como sabemos, toda ideologia. A eles se tornam, de certa forma, ndices individuais de valor, na medida em que a conscincia individual os absorve como sendo seus, mas sua fonte no se encontra na conscincia individual. O ndice de valor por natureza interindividual. O grito do animal, enquanto pura reao de um organismo individual dor, despido de ndice de valor. um fenmeno puramente natural. O grito no depende da atmosfera social, razo pela qual ele no recebe sequer o esboo de uma formalizao semitica. O tema e a forma do signo ideolgico esto indissoluvelmente ligados, e no podem, por certo, diferenciar-se a no ser abstratamente. Tanto verdade que, em ltima anlise, so as mesmas foras e as mesmas condies que do vida a ambos. Afinal, so as mesmas condies econmicas que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente, e so as mesmas foras que criam as formas da comunicao ideolgica (cognitiva, artstica, religiosa, etc.), as quais determinam, por sua vez, as formas da expresso semitica. Assim, os temas e as formas da criao ideolgica crescem juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma s e mesma coisa. Este processo de integrao da realidade na ideologia, o nascimento dos temas e das formas, se tornam mais facilmente observveis no plano da palavra. Este processo de transformao ideolgica refletiu-se na lngua, em grande escala, no mundo e na histria; ele objeto de estudo da paleontologia das significaes lingsticas, que pe em evidncia a integrao de planos da realidade ainda no diferenciados no horizonte social dos homens pr-histricos. Sucede o mesmo, em escala mais reduzida, na poca contempornea, j que a palavra, como sabemos, reflete sutilmente as mais imperceptveis alteraes da existncia social.

O ser, refletido no signo, no apenas nele se reflete, mas tambm se refrata. O que que determina esta refrao do ser no signo ideolgico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma s e mesma comunidade semitica, ou seja: a luta de classes. Classe social e comunidade semitica no se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um nico e mesmo cdigo ideolgico de comunicao. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma s e mesma lngua. Conseqentemente, em todo signo ideolgico confrontam-se ndices de valor contraditrios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalncia social do signo ideolgico um trao da maior importncia. Na verdade, este entrecruzamento dos ndices de valor que torna o signoA relao do tema com a semntica das palavras individuais que constituem a enunciao ser retomada adiante, em seus pormenores.2

vivo e mvel, capaz de evoluir. O signo, se subtrado s tenses da luta social, se posto margem da luta de classes, ir infalivelmente debilitar-se, degenerar em alegoria, tornar-se- objeto de estudo dos fillogos e no ser mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A memria da histria da humanidade est cheia destes signos ideolgicos defuntos, incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos. Somente na medida em que o fillogo e o historiador conservam a sua memria que subsistem ainda neles alguns lampejos de vida. Mas aquilo mesmo que torna o signo ideolgico vivo e dinmico faz dele um instrumento de refrao e de deformao do ser. A classe dominante tende a conferir ao signo ideolgico um carter intangvel e acima das diferenas de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos ndices sociais de valor que a se trava, a fim de tornar o signo monovalente. Na realidade, todo signo ideolgico vivo tem, como Jano, duas faces. Toda crtica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva no pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialtica interna do signo no se revela inteiramente a no ser nas pocas de crise social e de comoo revolucionria. Nas condies habituais da vida social, esta contradio oculta em todo signo ideolgico no se mostra descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideolgico sempre um pouco reacionrio e tenta, por assim dizer, estabilizar o estgio anterior da corrente dialtica da evoluo social e valorizar a verdade de ontem como sendo vlida hoje em dia. Donde o carter refratrio e deformador do signo ideolgico nos limites da ideologia dominante. assim que se apresenta o problema da relao entre a infraestrutura e as superestruturas. Ns apenas tomamos em considerao a concretizao de alguns dos aspectos deste problema e tentamos traar o caminho que uma pesquisa fecunda neste terreno deve seguir. Era essencial mostrar o lugar da filosofia da linguagem dentro desta problemtica. O estudo do signo lingstico permite observar mais facilmente e de forma mais profunda a continuidade do processo dialtico de evoluo que vai da infra-estrutura s superestruturas. no terreno da filosofia da linguagem que se torna mais fcil extirpar pela raiz a explicao pela causalidade mecanicista dos fenmenos ideolgicos.

CAPTULO 3

FILOSOFIA DA LINGUAGEM E PSICOLOGIA OBJETIVA Uma das tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo constituir uma psicologia verdadeiramente objetiva. No entanto, seus fundamentos no devem ser nem fisiolgicos nem biolgicos, mas SOCIOLGICOS. De fato, o marxismo encontra-se frente a uma rdua tarefa: a procura de uma abordagem objetiva, porm refinada e flexvel, do psiquismo subjetivo consciente do homem, que, em geral, analisado pelos mtodos de introspeco. Nem a biologia nem a fisiologia esto em condies de resolver esse problema. A conscincia constitui um fato scio-ideolgico, no acessvel a mtodos tomados de emprstimo fisiologia ou s cincias naturais. E impossvel reduzir o funcionamento da conscincia a alguns processos que se desenvolvem no interior do campo fechado de um organismo vivo. Os processos que, no essencial, determinam o contedo do psiquismo, desenvolvem-se no no organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual participe deles. O psiquismo subjetivo do homem no constitui um objeto de anlise para as cincias naturais, como se se tratasse de uma coisa ou de um processo natural. O psiquismo subjetivo o objeto de uma anlise ideolgica, de onde se depreende uma interpretao scio-ideolgica. O fenmeno psquico, uma vez compreendido e interpretado, explicvel exclusivamente por fatores sociais, que determinam a vida concreta de um dado indivduo, nas condies do meio social1. O primeiro e principal problema que se coloca, a partir dessa tica, o da apreenso objetiva da "vivncia interior". indispensvel integrar a "vivncia interior" na unidade da vivncia exterior objetiva. Que tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo? A realidade do psiquismo interior a do signo. Sem material semitico, no se pode falar em psiquismo. Pode-se falar de processos fisiolgicos, de processos do sistema nervoso, mas no de processo do psiquismo subjetivo, uma vez que ele um trao particular do ser, radicalmente diferente, tanto dos processos fisiolgicos que se desenrolam no organismo, quanto da realidade exterior ao organismo, realidade qual o psiquismo reage e que ele reflete, de uma maneira ou de outra. Por natureza, o psiquismo subjetivo localiza-se no limite do organismo e do mundo exterior, vamos dizer, na fronteira dessas duas esferas da realidade. nessa regio limtrofe que se d o encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas este encontro no fsico: o organismo e o mundo encontram-se no signo. A atividade psquica constitui a expresso semitica do contato entre o organismo e o meio exterior. Eis porque o psiquismo interior no deve ser analisado como uma coisa; ele no pode ser compreendido e analisado seno como um signo. A idia de uma psicologia de anlise e de interpretao muito antiga e sua histria muito instrutiva. E sintomtico que, nosUm esboo popular dos modernos problemas da psicologia encontra-se em nosso livro Freidizm (krittcheskoie tcherk) [Freudismo (Esboo crtico)], MoscouLeningrado 1927, ver cap. 2: Duas Orientaes da Psicologia Contempornea.1

ltimos tempos, em ligao com as exigncias metodolgicas das cincias humanas, isto , das cincias que se ocupam das ideologias, ele tenha sido objeto de argumentaes mais profundas. Um dos seus defensores mais ardentes e bem fundamentados foi Wilhelm Dilthey. Para ele a atividade psquica no se define em termos de existncia, como se diria para uma coisa, mas em termos de significao. Se perdermos de vista esta significao, se tentarmos alcanar a realidade pura da atividade mental, na realidade, encontramo-nos segundo Dilthey, diante de um processo fisiolgico do organismo, perdemos de vista a atividade mental. Da mesma maneira que, se ns perdemos de vista a significao da palavra, perdemos a prpria palavra, que fica, assim, reduzida sua realidade fsica, acompanhada do processo fisiolgico de sua produo. O que faz da palavra uma palavra sua significao. O que faz da atividade psquica uma atividade psquica , da mesma forma, sua significao. Se abstrairmos a significao, perdemos, ao mesmo tempo, a prpria substancia da vida psquica interior. E por isso que o objetivo da psicologia no poderia ser explicar os fenmenos psquicos pela causalidade, como se fossem anlogos aos processos fsicos ou fisiolgicos. Assim, a tarefa da psicologia consiste em descrever com discernimento, dissecar e explicar a vida psquica como se se tratasse de um documento submetido anlise do fillogo. Segundo Dilthey, somente uma psicologia descritiva e explicativa deste tipo pode servir de base s cincias humanas ou s "cincias do esprito", como ele as chama2. As idias de Dilthey revelaram-se muito fecundas e continuam a ter, em nossos dias, numerosos adeptos entre os pesquisadores em cincias humanas. Pode-se dizer que a quase totalidade dos eruditos alemes contemporneos que se ocupam da filosofia esto, alguns mais, outros menos, sob a influncia das idias de W. Dilthey3. A teoria de Wilhelm Dilthey formou-se sobre um terreno idealista e seus seguidores permaneceram neste terreno. A idia de uma psicologia de anlise e de interpretao est estreitamente ligada s premissas idealistas do pensamento, e a muitos aparece como uma idia especificamente idealista. Realmente, a partir da forma pela qual a psicologia interpretativa foi criada e se desenvolveu at o presente, ela idealista, e, portanto, inaceitvel para o materialismo dialtico. Mas, o mais inaceitvel a primazia metodolgica da psicologia sobre a ideologia. Segundo a viso de Dilthey e dos outros representantes da psicologia interpretativa, ela deve ser a base de todas as cincias humanas. A ideologia explicada em termos da psicologia como a sua expresso e materializao e no o inverso. verdade que se diz haver entre o psiquismo e a ideologia uma proximidade, um denominador comum, a significao, que os distingue do resto da realidade, masVer, a este propsito, o artigo em lngua russa de Frischeizen-Keller em Logos, 1912-1913, vol. 1 e 2. 3 Sobre a influncia de Dilthey, enquanto iniciador dessa corrente, ver Oskar Wahlzehl, Wilhelm Hundolf, Emil Ehrmattinger e outros. Citaremos apenas os representantes mais significativos das cincias humanas, na Alemanha contempornea.2

afirma-se que a psicologia, no a ideologia, que d o tom dessa aproximao. Por sua vez, nas idias de Dilthey e outros, no se leva em conta o carter social do signo. E finalmente, e isto constitui o proton pseudos, a primeira mentira de toda sua concepo, no se compreende o vnculo indispensvel entre o signo e a significao. No se percebe a natureza especfica do signo. Na verdade, a relao entre atividade mental e palavra, em Dilthey, no passa de uma analogia, destinada a esclarecer uma idia e, alm disso, s muito raramente a encontramos em sua obra. Ele est muito distante de extrair desta comparao as concluses que se impem. Por outro lado, no o psiquismo que ele explica com a ajuda do signo, mas ao contrrio, como bom idealista, o signo que ele explica atravs do psiquismo. O signo s se torna signo, em Dilthey, na medida em que serve para expressar a vida interior. Esta ltima confere ao signo uma significao que lhe inerente. Aqui, a construo de Dilthey encarna uma tendncia comum ao conjunto da corrente idealista, que consiste em privar de todo sentido, de toda significao, o mundo material em benefcio de um "esprito" fora do tempo e do espao. Se a atividade mental tem uma significao, se ela no apenas uma realidade isolada em relao a esse aspecto Dilthey tem razo ento, obrigatoriamente, a atividade mental deve manifestar-se no terreno semitico. Tanto isso verdade que a significao s pode pertencer ao signo sem o que, ela se torna uma fico. A significao constitui a expresso da relao do signo, como realidade isolada, com uma outra realidade, por ela substituvel, representvel, simbolizvel. A significao a funo do signo; eis porque impossvel representar a significao (enquanto propriedade puramente relacional, funcional) parte do signo, como algo independente, particular. Isso to inexeqvel como considerar a significao da palavra cavalo como sendo o cavalo particular que tenho diante dos meus olhos. Se assim fosse, seria possvel, tendo comido uma ma, dizer que se comeu no uma ma, mas a significao da palavra ma. O signo uma unidade material discreta, mas a significao no uma coisa e no pode ser isolada do signo como se fosse uma realidade independente, tendo uma existncia parte do signo. por isso que, se a atividade mental tem um sentido, se ela pode ser compreendida e explicada, ela deve ser analisada por intermdio do signo real e tangvel. preciso insistir sobre o fato de que no somente a atividade mental expressa exteriormente com a ajuda do signo (assim como nos expressamos para os outros por palavras, mmica ou qualquer outro meio) mas, ainda, que para o prprio indivduo, ela s existe sob a forma de signos. Fora deste material semitico, a atividade interior, enquanto tal, no existe. Nesse sentido, toda atividade mental exprimvel, isto , constitui uma expresso potencial. Todo pensamento, toda emoo, todo movimento voluntrio so exprimveis. A funo expressiva no pode ser separada da atividade mental sem que se altere a prpria natureza desta4.4

A idia de valor expressivo de todas as manifestaes da conscincia no

Assim, no existe um abismo entre a atividade psquica interior e sua expresso, no h ruptura qualitativa de uma esfera da realidade outra. A passagem da atividade mental interior sua expresso exterior ocorre no quadro de um mesmo domnio qualitativo, e se apresenta como uma mudana quantitativa. verdade que, correntemente, no curso do processo de expresso exterior, opera-se a passagem de um cdigo a um outro (por exemplo: cdigo mmico/cdigo lingstico), mas o conjunto do processo no escapa do quadro da expresso semitica. O que constitui o material semitico do psiquismo? Todo gesto ou processo do organismo: a respirao, a circulao do sangue, os movimentos do corpo, a articulao, o discurso interior, a mmica, a reao aos estmulos exteriores (por exemplo, a luz), resumindo, tudo que ocorre no organismo pode tornar-se material para a expresso da atividade psquica, posto que tudo pode adquirir um valor semitico, tudo pode tornar-se expressivo. verdade que nem todos estes elementos tm igual valor. Para um psiquismo relativamente desenvolvido, diferenciado, um material semitico refinado e flexvel indispensvel e, por sua vez, preciso que esse material se preste a uma formalizao e a uma diferenciao no meio social, no processo de expresso exterior. por isso que a palavra (o discurso interior) se revela como o material semitico privilegiado do psiquismo. verdade que o discurso interior se entrecruza com uma massa de outras reaes gestuais com valor semitico. Mas a palavra se apresenta como o fundamento, a base da vida interior. A excluso da palavra reduziria o psiquismo a quase nada, enquanto que a excluso de todos os outros movimentos expressivos a diminuiriam muito pouco. Se no nos voltssemos para a funo semitica do discurso interior e para todos os outros movimentos expressivos que formam o psiquismo, ns estaramos diante de um processo fisiolgico puro, desenvolvendo-se nos limites do organismo individual. Para o fisilogo, tal abstrao legtima e mesmo indispensvel; s interessa a ele o processo fisiolgico e seu mecanismo. Contudo, mesmo para o fisilogo, como para o bilogo, importante levar em conta a funo semitica expressiva (e, portanto, a funo social) dos processos fisiolgicos correspondentes. Sem isso, ele no compreender seu papel biolgico no conjunto do funcionamento do organismo.