adorno; t.w - museu valery-proust

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costumeiro entre musicos para quem a distin~ao entre produ~ao e reprodu~ao. Eles percebem que trabalham na musica e nao nas obras, mesmo que este trabalho ocorra atraves das obras. a Sch~enberg tardio, em vez disso, compoe paradigmas .de uma mUS1capossfvel. A ideia da musica fica tanto mais transparente, quanto menos as obras insistem nas suas aparencias. Elas se aproxi- mam do fragmentario, cuja sombra acompanhou Schoenberg durante toda a sua vida. Nao apenas por causa de sua brevidade b ' ' mas tam em por causa da sua versao abreviada, as ultimas obras de Schoenberg a~re.sentam-se como fragmentarias. No estilha~o reconhece-se a d1gmdade da grande obra. Oferendas e sacriffcios bfblico~ sao compensados pelos poucos minutos de narra~ao do S?b:evzve~te .de Varsovia, minutos nos quais Schoenberg, por ini- ClatiV~A pr.opna, suspende a esfera estetica pela rememora~ao de expenenClas que como tais estao fora do ambito da arte. a nucleo da expressao de Schoenberg - a angustia - identifica-se com a angustia da tortura e da morte de seres humanos que vivem sob 0 domf~i~ de reg~mes totalitarios. as sons da Erwartung, 0 choque da mUSlca de cmema sobre "0 perigo amea~ador, a angustia e a catastr~fe" acertam em cheio tudo aquilo que foi dito h:i tempo em profec1as. A expressao da fraquezae da impotencia da alma indivi- dual e testemunho da violencia contra a humanidade naquelas pes- soas que, como vftimas, representam 0 todo. Na musica, 0 horror nunca foi tao verdadeiro, e, na medida em que 0 horror se manifes- ~a, a musica encontra a sua for~a redentora na nega~ao. a cantico Judeu que encerra 0 Sobrevivente de Varsovia e uma musica de protesto da humanidade contra 0 mito. ATXJRf'/O t Th-eodAJltJ fAJ. /Ylv{,.(M.. V~ tJ~. In: p~: ~ui ~ ..t. f-qu ~dadL. ~ PotM-to : A~~, l)O,c;6/ f' ff1- 1g S- Museu Valery Prouse:- Em memoria de Hermann von Grab A expressao "museal" possui na lfngua al~ma uma colora~a~ desa- gradavel. Ela designa objetos com os <I,ua1s 0 obser:v ador nao te~ mais uma rela~ao viva, objetos que defmham por S1mes~os e sao conservados mais por motivos hist6ricos que por necess1dade ?o presente. Museu e mausoleu nao estao ligados apenas pela aSSOC1a- Ciaofonetica. as museus sao como sepu1cros de obras de arte, tes- temunham a neutralizac;ao da cultura. Neles sao acumulados. ~s tesouros culturais: 0 valor de mercado nao deL'{alugar para a fehc1- dade da contemplac;ao. Mas mesmo assim essa ~elicidade depende dos museus. Quem nao possui uma cole~ao particular - e os gran- des colecionadores privados tornam-se uma raridade - somente no museu pode conhecer em larga escala pinturas e es~ultu~as. Quando 0 mal-estar em re1a~ao aos museus ~revalece e sao fe1tas tentativas de expor os quadros em seu amb1ente natural ou em locais semelhantes, como por exemplo em castelos barrocos ou rococ6s, 0 resultado e ainda mais penoso do que quando as ob~as sao retiradas de seu contexto original e reunidas no museu; a sohs- ticac;ao provoca mais danos a arte que 0 colecionismo ..Algo ana- 10 0 vale para a musica. as programas das grandes soc1edades de g "d d A concerto, em sua maio ria orientados para a mUS1ca 0 passa 0, tern cada vez mais aspectos em comum com os museus. Mas 0 Mozart apresentado a luz de velas e rehaixado a pec;a de costume, e ~s esforc;os para retirar a musica da distancia da encenac;ao e recoloca- la em contato com a vida imediata possuem nao apenas urn ar de * Escrito em 1953, publicado em Die Neue Rundschau, 1953.

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Page 1: ADORNO; T.W - Museu Valery-Proust

costumeiro entre musicos para quem a distin~ao entre produ~ao ereprodu~ao. Eles percebem que trabalham na musica e nao nasobras, mesmo que este trabalho ocorra atraves das obras. aSch~enberg tardio, em vez disso, compoe paradigmas .de umamUS1capossfvel. A ideia da musica fica tanto mais transparente,quanto menos as obras insistem nas suas aparencias. Elas se aproxi-mam do fragmentario, cuja sombra acompanhou Schoenbergdurante toda a sua vida. Nao apenas por causa de sua brevidade

b' 'mas tam em por causa da sua versao abreviada, as ultimas obrasde Schoenberg a~re.sentam-se como fragmentarias. No estilha~oreconhece-se a d1gmdade da grande obra. Oferendas e sacriffciosbfblico~ sao compensados pelos poucos minutos de narra~ao doS?b:evzve~te .de Varsovia, minutos nos quais Schoenberg, por ini-ClatiV~Apr.opna, suspende a esfera estetica pela rememora~ao deexpenenClas que como tais estao fora do ambito da arte. a nucleoda expressao de Schoenberg - a angustia - identifica-se com aangustia da tortura e da morte de seres humanos que vivem sob 0

domf~i~ de reg~mes totalitarios. as sons da Erwartung, 0 choqueda mUSlca de cmema sobre "0 perigo amea~ador, a angustia e acatastr~fe" acertam em cheio tudo aquilo que foi dito h:i tempo emprofec1as. A expressao da fraquezae da impotencia da alma indivi-dual e testemunho da violencia contra a humanidade naquelas pes-soas que, como vftimas, representam 0 todo. Na musica, 0 horrornunca foi tao verdadeiro, e, na medida em que 0 horror se manifes-~a, a musica encontra a sua for~a redentora na nega~ao. a canticoJudeu que encerra 0 Sobrevivente de Varsovia e uma musica deprotesto da humanidade contra 0 mito.

ATXJRf'/O t Th-eodAJltJ fAJ. /Ylv{,.(M.. V~ tJ~.In: p~: ~ui ~ ..t. f-qu·~dadL.

~ PotM-to : A~~, l)O,c;6/ f' ff1-1gS-

Museu Valery Prouse:-Em memoria de Hermann von Grab

A expressao "museal" possui na lfngua al~ma uma colora~a~ desa-gradavel. Ela designa objetos com os <I,ua1s0 obser:vador nao te~mais uma rela~ao viva, objetos que defmham por S1mes~os e saoconservados mais por motivos hist6ricos que por necess1dade ?opresente. Museu e mausoleu nao estao ligados apenas pela aSSOC1a-Ciaofonetica. as museus sao como sepu1cros de obras de arte, tes-temunham a neutralizac;ao da cultura. Neles sao acumulados. ~stesouros culturais: 0 valor de mercado nao deL'{alugar para a fehc1-dade da contemplac;ao. Mas mesmo assim essa ~elicidade dependedos museus. Quem nao possui uma cole~ao particular - e os gran-des colecionadores privados tornam-se uma raridade - somenteno museu pode conhecer em larga escala pinturas e es~ultu~as.Quando 0 mal-estar em re1a~ao aos museus ~revalece e sao fe1tastentativas de expor os quadros em seu amb1ente natural ou emlocais semelhantes, como por exemplo em castelos barrocos ourococ6s, 0 resultado e ainda mais penoso do que quando as ob~assao retiradas de seu contexto original e reunidas no museu; a sohs-ticac;ao provoca mais danos a arte que 0 colecionismo ..Algo ana-10 0 vale para a musica. as programas das grandes soc1edades de

g "d d Aconcerto, em sua maio ria orientados para a mUS1ca 0 passa 0, terncada vez mais aspectos em comum com os museus. Mas 0 Mozartapresentado a luz de velas e rehaixado a pec;a de costume, e ~sesforc;os para retirar a musica da distancia da encenac;ao e recoloca-la em contato com a vida imediata possuem nao apenas urn ar de

* Escrito em 1953, publicado em Die Neue Rundschau, 1953.

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desamparo como tambem um certo rancor diligentemente rea-cionario. A um bem-intencionado que the recomendou escurecer asatio durante a concerto, para que se obtivesse uma "atmosfera"adequada, Mahler respondeu com razao que uma apresenta~aodiante da qual nao se esquecesse a ambiente nao teria nenhum valor.Dificuldades desse tipo revelam alga da situa~ao fatal daquilo que echamado de "tradi~ao cultural". No momenta em que esta nao cor-responde mais a nenhuma for~a abrangente e substancial, mas e ape-nas citada, porque afinal sempre e bom ter tradi~ao, a que aindarestava dessa tradi~ao dissolve-se em mero meio. 0 aparato tecnicoindustrial zomba daquilo que nele deveria ser conservado. Quemacredita na possibilidade de 0 original ser restitufdo pela vontadefica preso a um romantismo sem esperari~a; a moderniza~ao do pas-sado violenta e danifica 0 passado. Mas renunciar radicalmente apossibilidade de experimentar a tradicional significaria capitular abarbarie por pura fidelidade a cultura. Que a mundo esta fora doseixos revela-se par toda parte no fato de que, nao importa qual sejaa solu~ao, ela e sempre falsa.

Ninguem deveria, porem, se tranqiiilizar com 0 reconhecimen-to geral da situa~ao negativa. Uma disputa intelectual, como a refe-rente ao museu, deveria ser travada com argumentos espedficos.Sobre isso ha dais documentos extraordinarios. Na Fran~a, as daisescritores autenticos da ultima gera~ao, Paul Valery e MarcelProust, pronunciaram-se sabre a questao dos museus assumindoposi~oes diametralmente opostas, sem que esses pronunciamentostenham sido, entretanto, dirigidos polemicamente um contra 0

outro, ou mesmo que algum deles demonstrasse conhecimento daposi~ao contra.ria. Valery, em sua contribui~ao a uma coletanea deartigos dedicados a Proust, ressaltou que estava muito pouco fami-liarizado com as romances do autor. 0 artigo de Valery ao qual merefiro intitula-se "Le probleme des musees", e se encontra no volu-me de ensaios Pieces sur ['art. A passagem correspondente emProust encontra-se no terceiro volume de A l'ombre des jeunesfilles en fleurs.

o plaidoyer de Valery refere-se evidentemente ao desconcertan-te excesso de obras de arte no Louvre. Ele declara nao gostar muitode museus. Haveria muitas obras admiraveis, mas poucas deHcias. Apalavra utilizada por Valery, delices, pertence, diga-se de passagem,

aquelas absolutamente intraduzfveis: Kostlichkeiten soaria como umterm~ de Feuilleto~; Wonnepossui um ar pesadamente wagneriano;E~tzuckungen sena talvez a termo mais proximo do que se querdlzer, mas nenhuma dessas palavras e capaz de expressar a leve~emoria do .p~azer fe~dal que acompanha a postura da l'art pourI art desde Vilhers de 1 Isle-Adam, e que em alemao ressoa somenteno de~izios comico do Rosenkavalier. 0 seigneuriale Valery ja sesente m~o~odado pe~o gesto autoritar~o que the toma a bengala epelo anunclO que prOlbe fumar. Vma fna confusao reinaria entre asesculturas, um tumulto de criaturas congeladas, onde cada uma exi-giria a ~a~-e~istencia da outra, uma estranha desordem organizada.Em melO as lmagens expostas para contempla~ao, as pessoas seriamto~adas, zomba Va!ery, par um horror sagrado: fala-se um poucomalS alto do que na 19reja, mas mais baixo do que no cotidiano. Naose sabe bem a que se veio fazer no museu: instruir-se, bus car encan-tamentos, cumprir um dever ou satisfazer uma conven~ao? Fadigae barb~rie se e~contra~ ..Nenhuma cultura do prazer e tampoucoda razao podena ter edlflcado essa casa de incoerencias. Vma casaonde se sepultariam visoes mortas.

o sentido da audi\;ao, opina Valery - que nao estava familia-riza~o com a music~ e podia par isso cultivar ilusoes a respeito _,estana em melhor sltua\;ao: ninguem poderia sugerir-Ihe ouvir dezo.rquestras ao mes~o tempo. Nem a espfrito conseguiria conduzir,slm~ltaneamente, ?lV~rSas opera~oes distintas. Apenas a olho emmOVlmento necessltana apreender, no mesmo instante, urn retrato eu~a marin~a, um~ co.zinha e uma marcha triunfal; e a que e pior:estll?s de pmtura l~telramente inconciliaveis entre si. Quanta maishomtas fossem as pmturas, tanto mais seriam elas distintas umas dasoutras: ohjetos raros, exemplares unicos. Freqiientemente se co-menta que um determinado quadro mata as outros que estao ao seuredor. Se isso e esquecido, a heran~a morre. Assim como a homemperde suas for~as pelo excesso de meios tecnicos, ele empobrecepelo excesso de suas riquezas.

A argumenta~ao de Valery possui indiscutivelmente um tomconservado.r no que diz respeit~ a cultura. Ele sem duvida se preo-c~pava ~UltO pouco com a Crltlca da economia poHtica. Par isso eamda .mals surpreendente que os nervos esteticos que registram afalsa nqueza ahordem tao precisamente a dado da superacumulac;ao.

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Quando Valery fala da acumulac;ao de urn capital excessivo, que porisso mesmo e inutilizavel, utiliza metaforicamente urn termo quevale literalmente para a economia. Acontec;a 0 que acontecer - osartistas produzem, gente rica morre -, sempre sobra algo para osmuseus. Como urn cassino, eles jamais poderiam perder, e justa-mente isso seria sua maldic;ao. Pois os homens sentem-se desconso-ladamente perdidos nas galerias, sos em meio a tanta arte. Naohaveria outra reac;ao possivel senao aquela que Valery considera emgeral como a sombra do progresso da dominac;ao do material: umacrescente superficialidade. A arte torna-se assunto de educac;ao einformac;ao; Venus se transforma em documento. E a erudic;ao seria,em materia de arte, uma especie de derrota. Nietzsche argumenta deforma semelhante em sua Considerafao extemporanea sobre a van-tagem e a desvantagem da Historia. Valery, na vertigem do museu,chega a uma intuic;ao de carater hist6rico-filos6fico sobre a agoniadas obras de arte: e la que "infligimos 0 suplfcio a arte do passado".

Mesmo depois, na rua, Valery nao consegue libertar-se do magni-fico caos do museu - uma parabola, poder-se-ia dizer, da anarquiada produc;ao de mercadorias na sociedade burguesa desenvolvida -e procura a razao de seu mal-estar. Pintura e escultura, assim Ihe dizo demonio do conhecimento, seriam crianc;as abandonadas. "A suamae esta morta, sua mae, a arquitetura. Enquanto ela vivia, dava-Ihes lugar e utilidade. A liberdade de errar Ihes era negada. Elas ti-nham 0 seu espac;o, a sua luz bem definida, seus temas, suas alianc;as.Enquanto ela vivia, elas sabiam 0 que queriam ... Adeus, diz-me 0

pensamento, nao ouso ir adiante." A reflexao de Valery encerra-secom urn gesto romantico. Enquanto ele a deixa aberta, evita a entaoinevitavel conseqiiencia do conservadorismo cultural radical:renunciar a cultura para permanecer fiel a ela.

A visao de Proust sobre 0 museu esta engenhosamente inseridano contexto da Recherche du temps perdu. Somente ali' ela revelainteiramente 0 seu valor. Na obra de Proust, as reflexoes - e ao uti-liza-Ias ele retoma as antigas tecnicas do romance pre-flaubertiano- nao constituem em geral apenas observa~oes sobre 0 que estasendo narrado, mas se ligam por associac;oes subterraneas, mergu-Ihando, como a propria narrativa, em urn grande continuum este-tico, 0 do mon61ogo interior. Ele relata sua viagem ao balneario deBalbec, e com isso ressalta a cesura que as viagens colocam no

decurso da vida, ao nos conduzirem "de urn nome para outronome". Palcos desta cesura san antes de tudo as estac;oes de trem,"esses lugares especiais ... que quase nao fazem parte da cidade, mascontem a essencia de sua personalidade de maneira tao marcantequanto 0 seu nome escrito na placa". Como tudo que cai sob 0

olhar rememorativo de Proust, que suga, por assim dizer, a inten~aode seus objetos, as esta~oes transformam-se em arquetipos hist6ri-cos e tnigicos, porque associadas a despedida. A proposito do salaode vidro da Gare Saint-Lazare, diz que ele "estendeu sobre a cidadedividida urn desses imensos ceus repletos de dramas ameac;adores,parecido com certos ceus de Mantegna ou Veronese, de uma moder-nidade quase parisiense, sob 0 qual podem ocorrer somente atosterriveis e solenes, como a partida de urn trem ou a coloca~ao deumacruz".

A transic;ao associativa em direc;ao ao museu e deixada implfcitano romance: 0 quadro daquela esta~ao de trem pintada por ClaudeMonet, pintor que Proust admirou apaixonadamente, encontra-seagora na cole~ao do Jeu de Paume. Proust compara, sem muitaspalavras, a esta~ao ao museu. Ambos estao afastados do contextosuperficial dos objetos da atividade pratica, e a isso poderiamosacrescentar que ambos san portadores de urn simbolismo de morte:a esta~ao, do antigo simbolismo da viagem; 0 museu, daquele quese refere a obra, "l'univers nouveau et perissable", 0 universo novoe pereeivel criado pelo artista. Assim como as reflexoes de Valery,tambem as de Proust se referem a mortalidade dos artefatos. 0 queaparenta ser eterno, diz ele numa passagem, contem em si osmotivos de sua destrui~ao. As frases decisivas sobre 0 museu estaoinseridas na fisiognomonia da esta~ao de trem. "Mas em todos ossetores nosso tempo tern a mania de querer nos apresentar as coisasem seu ambiente natural, e com isso suprimir 0 essencial, 0 ato doespirito que as isolou desse ambiente. 'Apresenta-se' urn quadroem meio a m6veis, bibelos e cortinas da mesma epoca, em umadecora~ao sem gra~a que, nas novas hospedagens, senhoras aindaontem completamente ignorantes sobre 0 assunto se esfor~aramem compor, passando seus dias em arquivos e bibliotecas; mas aobra de arte que e vista durante 0 jantar nao nos presenteia com amesma alegria inebriante que somente se pode esperar no salao domuseu, que simboliza muito melhor, em sua nudez e abstinencia

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sob ria de todos os detalhes, os espac;os interiores onde 0 artista serecolhe para criar."

A tese de Proust e comparavel a de Valery, porque ambas com-partilham 0 pressuposto da felicidade nas obr.as. de a.rte. As~i~como Valery fala das delices, Proust fala da alegna mebnante, a Jozeenivrante. Nada poderia earacterizar mais precisamente do que estepressuposto a distaneia nao apenas entre a gerac;ao atual e a anterior~mas tambem entre a relac;ao alema e a relac;ao francesa com a arte. Jana epoea em que A l'ombre des jeunes filles en [leurs foi eserita, aexpressao Kunstgenuss [prazer artfstico] deveria soar em alemao taosentimental e filistina quanto uma rima de Wilhelm Busch. Alemdisso, esse prazer, no qual Valery e Proust ereem como se fosse apromessa de uma mae adorada, sempre foi algo questionav.el. Paraquem esta proximo as obras de arte, estas representam obJetos deencanto tanto quanta a propria respirac;ao. Ele convive com elascomo 0 habitante de uma cidade medieval que responde ao comen-tario de urn visitante sabre a beleza de certos ediflcios com 0 "sim,e bonito" meio aborrecido de quem conhece eada recanto e cadaareo. Mas somente onde reina aquela distancia solida entre as obrasde arte e 0 observador, distancia que permite a prazer, pode surgir apergunta sabre 0 que esta vivo e marta nas obras de arte. Quem ~esente em casa na obra de arte, em vez de visita-Ia, dificilmente fanaessa pergunta. Os do is franceses, que nao apenas produzem, masainda refletem incessantemente sabre a propria produc;ao, estaoporem completamente certos do prazer que as obras dearte p~o-poreionam aos que a veem de fora. Eles eoneordam de tal mane Ira,que ambos percebem que uma inimizade mortal entre as obras dearte acompanha aquela felicidade originada na competic;ao. MasProust em vez de ter horror a tal inimizade, aprova-a, como se fos-, .se tao alemao como Charlus afeta ser. 0 processo de competlc;aoentre as obras e para ele urn processo de verdade; as escolas artis-ticas, lemos num trecho de Sodome et Gomorrhe, devoram-semutuamente como microorganismos, assegurando com sua luta amanutenc;ao da vida. Essa concepc;ao dialetica acerca da supremaciado ser sobre cada ente particular faz com que Proust se oponha aoartiste Valery, e permite sua indulgencia perversa para com osmuseus, enquanto para 0 outro interessa sobretudo a preocupac;aocom a permaneneia das obras.

A n:edid~ dessa permanencia e 0 aqui-e-agora. Para Valery, aarte esta perdlda quando se destroi a seu lugar na vida imediata sualigac;ao com 0 contexto, ou seja, quando ela perde sua relac;ao ~omurn uso possivel. 0 artesao dentro de Valery, que produz coisas epoemas com aquela precisao de contornos que sempre inclui 0

olhar sabre seu entorno, tornou-se infinitamente clarividente quan-to ao lugar da obra de arte - tanto 0 espiritual quanto 0 literal -,como se nele 0 sentimento perspectivista do pintor tivesse ascendi-do a uma perspectiva da realidade na qual a propria obra recebe asua profundidade. 0 seu ponto de vista artistieo e 0 da imediati-dade, mas uma imediatidade levada as ultimas conseqiiencias. Eleobedece ao principio da l'art pour l'art ate 0 limiar de sua negac;ao.Interessa-se pela obra de arte pura como objeto de uma contempla-c;~oque nada pode perturbar, mas a observa por tanto tempo e taoflrmeme~te que acaba percebendo que a obra de arte, justamentecomo obJeto da contemplac;ao pura, esta prestes a morrer, degene-r~d~ em produto deeorativo e privada daquela dignidade que cons-tltUlpara a obra e para a proprio Valery a raison d'etre. A obra purae ameac;ada pela reificac;ao e pela indiferenc;a. 0 museu se impoeatraves dessa experiencia. Ele descobre que as obras puras que resis-tern seriamente a observac;ao sao apenas as obras nao-puras, que naose esgotam naquela observac;ao, mas apontam para urn eontextosocial. E ja que Valery, com sua integridade de grande racionalistasabe que essa situac;ao da arte esta irremediavelmente perdida, na~resta outra saida para 0 anti-racionalista e bergsoniano nele presentesenao 0 luto pelas obras petrificadas.

o romancista Proust comec;a quase no ponto onde 0 HricoValery silencia: na vida postuma das obras. Pais a relac;ao primariade Proust com a arte e a oposto da atitude do expert e do produtor.Ele e antes de tudo 0 consumidor deslumbrado, a amateur quetende aquele respeito exagerado visto com suspeic;ao pelos artistas,urn respeito que e proprio daqueles que estao separados das obras~e arte por.um .abismo. Poder-se-ia quase dizer que a sua genia-hdade eonslste Justamente em ter assumido com tanta tranqiiili-d~de esta at~tude do consumidor - e tambem daquele que se colocadlante da VIda como espectador -, que the foi possivel reverte-lae~ urn .novo tipo de produtividade, elevando a forc;a da contempla-c;aodo mterno e do externo a rememorac;ao, a memoria involuntaria.

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De antemao, 0 amador combina incomparavelmente melhor com 0

museu do que 0 especialista. Este, Valery, sente-se participante doatelier, aquele, Proust, £lana pela exposic;ao. A sua relac;ao com aarte possui algo de extraterritorialidade, e muitos de seus juizosequivocados, por exemplo em questoes musicais, mostram do ini-cio ao fim os trac;os de diletantismo - 0 que tern aver 0 Kitschconciliador de seu amigo Reynaldo Hahn com 0 romance deProust, que em cada uma de suas frases des carta, com enorme deli-cadeza, uma opiniao estabelecida? Mas ele transformou magnifica-mente essa fraqueza em urn instrumento de forc;a, como somenteKafka havia feito ate entao. Se 0 seu juizo entusiastico sobre deter-minadas obras de arte, principalmente as do Renascimento italiano,soa muito mais ingenue que os de Valery, sua atitude para com aarte como urn todo era menos ingenua. Parece uma provocac;aofalar de ingenuidade justamente em relac;ao a Valery, no qual 0 pro-cesso artistico de produc;ao e a reflexao sobre este processo esta-yam indissoluvelmente entrelac;ados. Mas ele era de fato ingenuo,na medida em que nao levantava nenhuma duvida sobre a categoriada obra de arte enquanto taL Ele a tomou, para usar uma expressaoinglesa, for granted, e a dinamica de seu pensamento e sua energiahistorico-filos6fica cresceram exatamente em razao do apego aquelacategoria. Ela se torna criterio para 0 modo como se modificam acomposic;ao interna e a experiencia das ohras de arte. Proust, entre-tanto, esta inteiramente livre do fetichismo inevitavel do artista queproduz, ele proprio, as coisas. Para ele as obras de arte sao, desdeo inicio, alem de algo especificamente estetico, algo de diferente,urn pedac;o da vida daquele que as observa e urn elemento de suapropria consciencia. Com isso ele conserva nelas uma camada hemdiferente daquela regida pda lei formal das obras. Mas essa camada,entretanto, nao e outra senao a que nas ohras de arte apenas e lihe-rada com 0 seu desdohramento historico, ou seja, aquela que japressupoe a morte da intenc;ao viva da ohra de arte. A ingenuidadede Proust e uma ingenuidade a segunda potencia; a cada grau deconsciencia se reproduz ampliadamente uma nova imediatidade. Sea fe conservadora de Valery em uma cultura pensada enquanto puro"ser em si" faz uma critica cortante a cultura, uma cultura quedestroi este "ser em si" em razao de sua propria tendencia historic a,a sensibilidade extraordinaria de Proust para as modificac;oes dos

modos de experiencia, sua forma particular de reac;ao perce he comsua capacidade paradoxal, 0 historico como paisage~. Ele ad~ra osmuseus como uma verdadeira criac;ao divina, que no entantose~ndo a metafisica de Proust, nao esta pronta, mas que sempre s~reahza novamente grac;as a cada momento concreto de experiencia ea cada intuic;ao artistica original. Em seu olhar maravilhado Proustsalvou para si urn pedac;o de infancia; Valery, ao contrario: fala daa~~ como urn adulto. Se este sabe algo acerca do poder que a his-tona tern sobre a produc;ao e a percepc;ao das ohras, Proust sabe quea historia, no interior das obras de arte, ocorre quase sempre comourn processo de decomposic;ao. "Ce qu'on appelle la posterite, c'estla posterite de l'~euvre", frase que poderiamos traduzir assim: 0 quese chama postendade [Nachwelt], e a vida postuma [Nachleben] dasobras. Proust descobre na capacidade de decomposiC;ao dos arte-fatos. sua sem:l~anc;a com a beleza natural, e entende a fisiogno-moma do dechmo como a descric;ao da segunda vida dessas coisas.Ja que para e1enada tern consistencia a nao ser 0 que foi transmitidopela ~emoria, 0 amor de Proust se apega mais a esta segunda vida,que Ja passou, do que a primeira. Para 0 esteticismo proustiano apergunta pe1a qualidade esteticae secundaria. Em uma passagemfamosa, e1e exaltou a musica menor em func;ao da memoria devida do ouvinte, que retem antigas canc;oes populares de modornuito mais fiel e intenso do que urn movimento de urna obra deBeethoven, uma musica que, por assim dizer, existe por si mesma.o olhar saturnino da memoria trespassa 0 veu da cultura: os niveisculturais e as distinc;oes, nao mais isolados como dominios doespfrito ohjetivo, mas incluidos no fluir da subjetividade, perdemaquela pretensao patetica que as heresias de Valery ainda lhes con-cedia. 0 aspecto caotico do museu, que escandaliza Valery porqueperturba a expressao das obras, ganha em Proust a sua expressaopropria: a expressao tragica. A morte das obras no museu, segundoProu.st, desperta-as para a vida. Somente atraves da perda da ordemdo Vlvente, na qual estavam inseridas, pode-se libertar a sua ver-dadeira espontaneidade: 0 que a cada momento e unico 0 seu nomeaquilo que nas grandes obras da cultura e mais do que :nera cultura~A forma da reac;ao de Proust conserva em raffinement extravagantea ma~ima ~e Goethe n~ diario de Otilia, segundo a qual tudo 0

que e perfelto em seu genero remeteria para alem desse genero _

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uma afirma~ao pouco c1assica que, entretanto, rende homenagens aarte, ao relativiza-Ia.

Quem nao quer contentar-se com uma abordagem de historiaintelectual nao pode deixar de fazer a pergunta: quem esta com arazao, 0 critico ou 0 defensor dos museus? Para Valery 0 museu eurn lugar de barbarie. Essa atitude tern como fundamento a con-vic~ao do carater sagrado da cultura, que ele compartilha comMallarme. Diante de todas as obje~6es provocadas por essareligiao do spleen, sobretudo a da precipitada obje~ao social, deve-se insistir no momenta de sua verdade. Somente 0 que existe por simesmo, sem dar aten~ao aos homens aos quais deveria agradar,cumpre a sua voca~ao humana. Pouca coisa tern contribuido tantopara a desumaniza~ao quanto a cren~a geral, formada no pre-dominio da razao manipuladora, de que forma~6es espirituais sose justificam na medida em que existem para servir a outras coisas.Valery expos com autoridade incompanivel 0 carater objetivodessas forma~6es, a consistencia imanente da obra de arte e a con-tingencia do sujeito diante dela, pois ele mesmo chegou a compre-ender isso atraves de uma experiencia subjetiva, a coa~ao presenteno trabalho do artista. Nisso ele era sem duvida superior a Proust:incorruptivel, Valery possuia uma maior resistencia, enquanto 0

primado proustiano da experiencia, que nao tolera nada rigido,tern em comum com Bergson urn aspecto sombrio, 0 do confor-mismo e da facil adapta~ao a situa~ao em constante mudan~a. EmProust ha passagens sobre arte que se assemelham ao desenfreadosubjetivismo daquela visao vulgar que faz das obras de arte umabateria de testes projetivos, enquanto Valery, oportunamente e qua-se sempre com certa ironia, lamenta que a qualidade dos poemasnao possa ser testada. Conforme uma afirma~ao do segundo volu-me do Temps retrouve, a obra do escritor nada mais e do que umaespecie de instrumento otico que ele oferece ao leitor para que estedescubra, em si, algo que sem 0 livro talvez nao pudesse descobrir.Mesmo 0 que Proust apresenta a favor dos museus e pensado apartir do homem, e nao a partir da coisa. Nao e por acaso que eleidentifica aquilo que deveria diluir-se na posteridade museologicadas obras com algo subjetivo, com 0 ato repentino da produ~ao,atraves do qual a obra de arte se afasta da realidade. Proust encon-tra esse ato espe1hado nas formas que Valery considera estigmas.

Apenas a deslealdade da subjetividade livre em rela~ao ao espiritoobjetivo habilita Proust a romper a imanencia da cultura.

Nem Valery nem Proust tern razao nesse processo de certomodo latente entre os dois, e tampouco seria possive1 indicar umapostura intermediaria conciliadora. Mas esse conflito reve1a demaneira mais penetrante urn conflito inerente a propria coisa, eambos tomam 0 lugar de momentos dessa verdade, que reside nodesdobramento da contradi~ao. A fetichiza~ao do objeto e a pre-sun~ao do sujeito corrigem-se mutuamente. As posi~6es se inter-penetram uma na outra. Valery, em uma incessante auto-reflexao,torna-se consciente do ser em si das obras, enquanto, por outrolado, 0 subjetivismo de Proust espera 0 ideal, a salva~ao do vivopela arte. Ele defende, contra a cultura e atraves dela, 0 ponto devista da negatividade, da critica, do ato espontaneo que nao se con-tenta com 0 existente. Com isso faz justi~a as obras de arte, quesomente 0 saD na medida em que incorporam tal espontaneidade.Proust conserva, em razao da felicidade objetiva, a cultura; enquan-to a lealdade de Valery para com a pretensao objetiva das obrasprecisa dar a cultura por perdida. E como os dois representammomentos contraditorios da verdade, ambos, os mais sabios aescrever algo sobre arte nos ultimos tempos, possuem tambem osseus limites, sem os quais nao teria sido possive1 sua propriasabedoria. Valery nao deixa duvida de que concorda com seu mestreMallarme a respeito do fato de que - como foi formulado noensaio "Triomphe de Manet" - a existencia e as co isas estao ai uni-camente para serem consumidas pela arte, 0 mundo existe so paraproduzir urn belo livro, urn poema absoluto seria seu coroamento.Ele tambem notava c1aramente 0 ponto de fuga aspirado pela poesiepure. "Nada leva com tanta certeza a completa barbarie quanto aliga~ao exclusiva com 0 espirito puro", assim se inicia urn de seusensaios. E a sua propria ideia de elevar a arte a idolatria acabou defato contribuindo para 0 processo de reifica~ao e desgaste da arte,pelo qual Valery culpa 0 museu: somente ai, onde as imagens estaooferecidas a contempla~ao como fins em si mesmos, estas se tornamtao absolutas quanto Valery sonhava, e ele se espanta mortalmentediante da efetiva~ao de seu proprio sonho. Proust, ao contrario, sabequal eo remedio para esta situac;ao. Na medida em que as obras dearte, enquanto elementos do fluxo subjetivo de consciencia do seu

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observador, estao de certo modo sendo levadas para casa, renunciama prerrogativa do cuho, e desta forma liberam-se do tra\r0 usur-patorio que Ihes e atribuido na estetica heroica do impressionismo.Em compensa\rao, Proust superestima, como so os amadores sabemfazer, 0 ato da liberdade na arte. Freqiientemente entende as obrasde arte quase a maneira de um psiquiatra, pensando-as como reflexoda vida espiritual daquele que teve a sorte ou a infelicidade de pro-duzi-las ou de frui-las, e isso 0 impede de perceber que a obra dearte, scja para 0 seu autor, seja para 0 publico, ja no instante de suaconcep\rao se impoe como algo objetivo, algo de exigente, com log-ica e coerencia proprias. Assim como as vidas dos artistas, tambemas suas obras somente parecem "livres" se consideradas a partir deum ponto de vista externo. Elas nao saD nem reflexos da alma nemincorpora\roes de ideias platonicas ou do puro ser, mas "campos defor\ra" entre sujeito e objeto. 0 "objetivamente necessario", a favordo qual Valery se manifesta, efetiva-se apenas pelo ato da espon-taneidade subjetiva, na qual Proust coloca to do sentido e felicidade.

o combate aos museus possui algo de quixotesco, e nao apenasporque 0 protesto da cultura contra a barbarie passa sem ser ouvi-do: os protestos sem esperan\ra SaDnecessarios. Mas Valery e aindaum pouco inocente ao suspeitar que apenas os museus saD respon-saveis pelo que ocorre com os quadros. Mesmo se estivessem pen-durados em seus antigos lugares, nos castelos da nobreza, sobre osquais encontramos mais preocupa\rao em Proust do que em Valery,ainda assim seriam pe\ras de museu fora dos museus. 0 que con-some a vida da obra de arte e, ao mesmo tempo, a sua propria vida.Se a alegoria coquete de Valery compara a pintura e a escultura acrian\ras que perderam a sua mae, entao caberia lembrar que nosmitos os herois, nos quais 0 humano se libera do destino, SaDtodoshomens que perderam a mae. Somente a caminho da propria morte,e separadas do solo provedor, as obras se tornam plena promesse dubonheur. Proust percebeu isso claramente. 0 processo que hojedelega ao museu a responsabilidade sobre toda e qualquer obra dearte, mesmo a mais recente escultura de Picasso, e irreversivel. Esseprocesso nao apenas e reprovavel, como deixa preyer um estado noqual a arte, ao consumar a sua propria aliena\rao em rela\rao aosobjetivos humanos, "retorna de novo a vida", conforme um versode Novalis. Percebe-se algo deste fenomeno no romance de Proust,

~n~e fisionom~as de quadros e de pessoas se juntam quase semhmltes, em melO a recorda\roes de vivencias e passagens musicais.Num~ ~as partes mais explicitas do todo, na primeira pagina deDu cote de chez Swann, 0 narrador, na descri\rao do adormecerdiz: "Parece~-~e que era de mim que a obra falava: uma igreja, u~quarteto, a nvahdade entre Francisco I e Carlos V". E isto a recon-cilia\rao do que foi separado, a qual se dirige 0 lamento irreconci-liavel de Valery. 0 caos dos bens culturais se dilui na felicidade dacrian\ra, cujo corpo se sente unido com 0 nimbo da distancia.

Nao e possivel fechar os museus, e isso nem seria desejavel. Osgabinetes naturais do espirito transformaram as obras de arte emhier~glifos da his~oria, d~ndo-lhes um novo conteudo [Gehalt] amedlda que 0 sent~do antigo se encolhia. Contra isso nao e possivelof~recer um concelto de ~rte pura emprestado do passado, que seriaate mesmo pouco apropnado para esta epoca. Ninguem soube dissomelhor q~e Valery, que exat~mente por este motivo interrompeusua reflexao. E verda de, porem, que os museus exigem expressa-mente algo que ja e propriamente exigido por cada obra de arte:al~m esfor\ro por parte do observador. Pois tambem 0 flaneur, emcUJ,asom~ra Proust se movia, desapareceu ha muito tempo, e nin-guem maiS po~e vagar pelos museus para encontrar aqui e ali algumencanto. A umca rela\rao concebivel com a arte, em nossa realidadecatastrOfica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesmas.eriedade mortal que tern caracterizado 0 mundo de hoje. So estahvre do mal tao bem diagnosticado por Valery aquele que junto~om a ~engala eo guarda-chuva tambem entregou, na entrada, a suamgenutdade; aquele que sabe exatamente 0 que quer, escolhe doisou tres quadros e se detem diante deles com enorme concentra\rao,co~o se fossem realmente idolos. Alguns museus facilitam este pro-Ce~lIl;e?to. Juntamente com 0 ar e a luz, tambem adquiriram aquelepnnciplo de sele\rao que Valery declarou ser 0 de sua escola e queele nao encontrava nos museus. No Jeu de Paume, onde ag;ra estaexposto 0 quadro Gare St.-Lazare, convivem em paz 0 Elstir deProust e 0 Degas de Valery, ainda que discretamente separados.