poesia paul valery

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"A ADORMECIDA Que segredo incandesces no peito, minha amiga, Alma por doce máscara aspirando a flor? De que alimentos vãos teu cândido calor Gera essa irradiação: mulher adormecida? Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto, Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto, Quando de um pleno sono a onda grave e estendida Conspira sobre o seio de tal inimiga Dorme, dourada soma: sombras e abandono. De tais dons cumulou-se esse temível sono, Corça languidamente longa além do laço, Que embora a alma ausente, em luta nos desertos, Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço, Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos. (tradução: Augusto de Campos)" SOB O SOL Sob o sol em meu leito após a água - Sob o sol e sob o reflexo enorme do sol sobre o mar, Sob a janela, Sob os reflexos e os reflexos dos reflexos Do sol e dos sóis sobre o mar Nos vidros, Após o banho, o café, as ideias, Nu sob o sol em meu leito todo iluminado Nu - só - louco - Eu! (tradução: Augusto de Campos)

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Page 1: Poesia Paul Valery

"A ADORMECIDA

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,Alma por doce máscara aspirando a flor?De que alimentos vãos teu cândido calor Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,Quando de um pleno sono a onda grave e estendidaConspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.De tais dons cumulou-se esse temível sono,Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

(tradução: Augusto de Campos)" SOB O SOL

Sob o sol em meu leito após a água -

Sob o sol e sob o reflexo enorme do sol sobre o mar,

Sob a janela,

Sob os reflexos e os reflexos dos reflexos

Do sol e dos sóis sobre o mar

Nos vidros,

Após o banho, o café, as ideias,

Nu sob o sol em meu leito todo iluminado

Nu - só - louco -

Eu!

(tradução: Augusto de Campos)

.

Page 2: Poesia Paul Valery

A ADORMECIDA

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,

Alma por doce máscara aspirando a flor?

De que alimentos vãos teu cândido calor

Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,

Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,

Quando de um pleno sono a onda grave e estendida

Conspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.

De tais dons cumulou-se esse temível sono,

Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,

Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,

Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

(tradução: Augusto de Campos)

.

MORTE FALSA

Page 3: Poesia Paul Valery

Humilde, terno, numa tumba encantadora,

No monumento insensível,

Tanto de sombras, de abandonos, e de amores desperdiçados,

Que já se fazem em sua graça cansada,

Eu morro, eu morro em você, me caio e eu caio,

Mas dificilmente fico abatido embaixo do sepulcro,

Do qual a extensão das cinzas me convidam fundir-me,

Este óbvio morto, desses que ainda voltam a vida,

Tremores, dos olhos ativos, iluminados que mordam,

E sempre puxando-me para uma nova morte

Mais preciosa que vida.

(tradução: Eric Ponty )

.

O VINHO PERDIDO

Eu tenho, algum dia, no oceano,

(Mas eu não sei mais se debaixo de que céus),

Lançado, como não me oferecendo ao nada,

Todo um pequeno precioso vinho...

Quem quis esta perda, oh licor?

Eu obedeço, talvez ao vidente?

Talvez para a preocupação de meu coração,

Pensando em sangue, vertendo-me vinho?

Page 4: Poesia Paul Valery

Em transparência habitual

Depois da fumaça rosa

Recupera-me como o mais puro mar...

Perdido o vinho, misturado entre as ondas!...

Eu cuidei de saltar meu ar amargo

Das faces mais profundas...

.(tradução: Eric Ponty)

.

AS ROMÃS

Duras romãs entreabertas

Pelo excesso dos grãos de ouro,

Eu vejo reis, todo um tesouro

Nascer de suas descobertas!

Se os sóis de onde ressurgis,

Ó romãs de entrevista tez,

Vos fazem, prenhes de altivez,

Romper os claustros de rubis,

E se o ouro sece cede enfim

Ante a demanda ainda mais dura

E explode em gemas de carmim,

Page 5: Poesia Paul Valery

Essa luminosa ruptura

Faz sonhar uma alma que há em mim

De sua secreta arquitetura.

(tradução: Augusto de Campos)

.

ESBOÇO DE UMA SERPENTE

Entre a árvore, a brisa acalenta

a víbora que hei de vestir;

um sorriso, que o dente espeta

e de apetites vem luzir,

sobre o jardim se arrisca e vaga,

e o meu triângulo de esmeralda

atrai a língua do reptil...

Besta sou, porém besta arguta,

cujo veneno, embora vil,

deixa longe a sábia cicuta!

Suave é este tempo de prazer!

Tremei, mortais, ao meu valor

quando, sem me satisfazer,

bocejo e quebro o meu torpor!

A esplendidez do azul aguça

Page 6: Poesia Paul Valery

esta cobra que me rebuça

de uma animal simplicidade:

vinde a mim, ó raça aturdida!

Que estou prestes e decidida,

semelhante à necessidade!

Ó Sol, ó Sol!... Falta estupenda!

Tu que mascaras o morrer,

sob o azul e o ouro de uma tenda

onde as flores vão se acolher;

em meio a mil delícias baças,

tu, o mais feroz dos meus comparsas,

dos meus ardis o mais perfeito,

aos corações não deixas ver

que este universo é só um defeito

na puridade do Não-Ser!

Ó Sol, que soas as matinas

do ser, e em fogos o acompanhas,

que num fatal sono o arrepanhas

todo pintado de campinas,

fautor de fantasmas risíveis

que prendes às coisas visíveis

a presença obscura da alma,

sempre me agradou a mentira

que tu sobre o absoluto espalhas,

rei das sombras tornado pira!

Page 7: Poesia Paul Valery

A mim o teu calor brutal,

onde a minha preguiça gelada

vem devanear sobre algum mal

próprio à minha índole enlaçada...

Este amável lugar me seduz

onde cai a carne e produz!

Aqui meu furor amadura;

e eu o aconselho, e eu o refaço,

e me escuto, e em meio aos meus laços

minha meditação murmura...

Ó Vaidade! Causa primeira,

que domina os Céus e os conduz,

de uma voz que já foi a luz

abrindo o cosmo sem fronteira!

Lasso de Seu puro espetáculo,

o próprio Deus rompeu o obstáculo

de tão perfeita eternidade;

ele se fez O que dispersa

emconseqüências Seu começo,

em estrelas Sua Unidade.

O Céu, Seu erro! E o Tempo, a ruína!

E o abismo animal alargado!

Queda naquilo que origina,

fagulha em vez do puro nada!

Page 8: Poesia Paul Valery

Mas o primeiro som do Seu Verbo,

EU!... dos astros o mais soberbo

que disse o louco criador –

eu sou!... Eu serei... E ilumino

esse diminuir divino

dos fogos do grão Sedutor!

Radioso objeto de minha ira,

Tu, que amei de um amor flamante,

e que da geena decidiste

conceder o império a este amante,

nos meus escuros Te remira!

Que ao veres Teu reflexo triste,

troféu do meu espelho negro,

tenhas tão funda comoção,

que sobre a argila o Teu ofego

seja um suspiro de aflição!

Em vão moldaste nessa lama

a prole dos fáceis infantes

que dos Teus atos triunfantes

a eterna louvação proclama!

Tão logo secos – e perfeitos,

são da Serpente já desfeitos,

filhos que o Teu criar produz.

Olá, lhes diz, recém-chegados!

Homens que sois, e andais tão nus,

Page 9: Poesia Paul Valery

animais brancos e abençoados!

Odeio-vos, que do execrado

à semelhança fostes feitos,

tal como ao Nome que tem criado

esses prodígios imperfeitos!

Eu sou o agente da mudança,

retoco o peito que se afiança,

de um dedo exato e misterioso!

Transformaremos essas obras

e as evasivas, moles cobras

em répteis negros, furiosos!

Meu intelecto inumerável

toca no humano coração

o instrumento de minha raiva,

que foi feito por Tua mão!

E Tua Paternidade alada,

todo aquele que, na estrelada

câmara ela acolha que a afague,

sempre o excesso dos meus assaltos

lhe traga uns longes sobressaltos

que seus propósitos estrague!

Vou e venho, deslizo, enfronho,

desapareço em peito puro!

Houve jamais seio tão duro

Page 10: Poesia Paul Valery

onde não possa entrar um sonho?

Quem quer que sejas, não sou esta

complacência que te requesta

a alma, desde que ela se ame ?

Ao fundo sou de seu favor

este inimitável sabor

que de ti em ti se derrame!

Eva! que eu tenho surpreendido

em seus primeiros pensamentos,

o lábio aos hálitos rendido

que das rosas se evolam lentos.

Quão perfeita me apareceu,

de ouro coberto o flanco seu,

sem temor ao sol nem ao homem;

ofertada aos olhos da brisa,

a alma ainda estúpida, tal como

perplexa ante a carne, indecisa.

Oh, massa de beatitude,

és tão bela, prêmio veraz

para toda a solicitude

das almas boas e das más!

Para que aos lábios teus se prendam,

basta que a um sopro teu se rendam!

Tornam-se piores os mais puros,

logo se ferem os mais duros...

Page 11: Poesia Paul Valery

Também a mim teus dons encantam,

de quem vampiros se levantam!

Sim! De meu posto entre a folhagem –

réptil que de ave se fingia –,

enquanto a minha pabulagem

uma armadilha te tecia,

eu te bebi, surda beldade!

Prenhe de encanto e claridade,

eu dominava, sem tremer,

fixo o olho em tua lã dourada,

tua nuca obscura e carregada

dos segredos do teu mover!

Presente estive, qual odor

que a alguma idéia corresponda,

cujo fundo, insidioso negror

não se elucida nem se sonda!

Pois eu te inquietava, ó candura,

carne molemente segura,

sem ter de mim nenhum temor,

a tremer em teu esplendor!

Logo eu te tinha, eu te levava,

e tua nuança variava!

(A soberba simplicidade

demanda infinitos cuidares!

Page 12: Poesia Paul Valery

Sua transparência de olhares,

tolice, orgulho, felicidade

guardam bem a bela cidade!

Procuremos criar-lhe azares,

e traga o mais raro artifício

ao peito puro o seu motim.

Eis minha força, o meu ofício,

a mim os meios do meu fim!)

Ora, de uma baba ofuscante

fiemos os suaves assaltos

que façam com que Eva, hesitante,

se envolva em vagos sobressaltos.

Que sob a seda da surpresa

palpite a pele dessa presa,

acostumada ao azul puro!...

Mas de gaze nem uma trama,

nem fio invisível, seguro,

além da que meu estilo trama!

E ditos, língua, redourados,

dá-lhe os mais doces que conheças!

Alusões, fábulas, finezas,

e mil silêncios cinzelados,

emprega tudo o que a seduza:

nada que a não bajule e induza

a se perder nas minhas vias,

Page 13: Poesia Paul Valery

dócil aos declives que guiam

para o fundo das azuis bacias

os veios que nos céus se criam.

Oh, quanta prosa sem parelha,

quanto espírito não recoso

e lanço ao dédalo sedoso

dessa maravilhosa orelha!

Penso: lá nada é sem proveito,

tudo importa ao suspenso peito!

O triunfo é certo, se o propor,

da alma espreitando algum tesouro,

como uma abelha a alguma flor,

não deixa mais a orelha de ouro!

“Só o que o meu sopro lhe confere,

a ela, é a própria voz divina!

Uma ciência viva fere

o corpo do fruto maduro!

Não ouças o Ser velho e puro

que a breve mordida abomina!

Que, se a boca se põe a sonhar,

a sede que à seiva se atreva,

esta delícia por chegar,

é a eternidade fundente, Eva!”

Ela bebeu minha mensagem,

Page 14: Poesia Paul Valery

que tecia um estranho arranjo;

seu olho perdeu algum anjo

por penetrar minha ramagem.

O mais hábil dos animais

que se ri de seres tão dura,

ou pérfida e cheia de males,

é só uma voz entre a verdura!

– Mas Eva muito séria estava

e sob o galho ela a escutava!

“Alma, eu lhe disse, doce pouso

de tanto êxtase condenado,

não sentes este amor sinuoso

que foi por mim ao Pai roubado?

Tenho esta essência celestial

a fins mais doces do que o mel

reservado tão suavemente...

Apanha o fruto... Oh, que se estenda

a tua mão e, ardentemente,

te faça dele uma oferenda!”

Que silêncio – o bater de um cílio!

Que sopro no peito soçobra,

que a árvore mordeu de sua sombra!

O outro brilhava qual pistilo!

– Silva, silva! – ele me cantava!

E eu sentia fremir as mil

Page 15: Poesia Paul Valery

dobras do meu dorso sutil,

saindo então do meu abrigo:

rolaram atrás do berilo

de minha crista, até o perigo!

Ó gênio! Ó comprida impaciência!

Eis chegado o instante em que um passo

em direção à nova Ciência

fluirá de um fino pé descalço.

Aspira o mármore, o ouro enjambra!

Tremem as bases de sombra e âmbar

na véspera do movimento!...

Ela vacila, a grande urna,

de onde emana o consentimento

dessa aparente taciturna!

Do vivo prazer que antegozes,

belo corpo, cede aos apelos!

Que a sede de metamorfoses

em torno da Árvore dos Zelos

engendre a cadeia de poses!

Vem, sem vires! Ensaia passos

vagos, como ao peso de rosas...

Não penses! Dança nos espaços...

Aqui há causas deliciosas

que bastam ao curso das coisas!...

Page 16: Poesia Paul Valery

Oh, quanto é infértil a fruição

que me ofereço, com demência:

de ver tão suave compleição,

fremir em desobediência!...

Breve, emanando seu sustento

de sabedoria e ilusões,

toda a Árvore do Conhecimento,

esguedelhada de visões,

no amplo corpo que investe rumo

ao sol, bebe do sonho o sumo.

Grande Árvore, Sombra das Alturas,

irresistível Árvore de árvores,

que os sucos amáveis procuras

na fragilidade dos mármores,

ó tu, que os labirintos cevas

por onde as constrangidas trevas

se percam no marinho lume

da sempiterna madrugada,

doce perda, brisa ou perfume,

ou pomba já predestinada,

Cantor, secreto bebedor

das mais profundas pedrarias,

berço do réptil sonhador

por quem já Eva tresvaria,

grande Ser, pleno de saber,

Page 17: Poesia Paul Valery

que sempre, como por mais ver,

ao alto apelo de teu cimo

cedes, e ao ouro puro os braços

estendes, teus esgalhos baços,

de outra parte, cavando o abismo,

Podes o infindo repelir,

feito só de teu crescimento,

e, da tumba ao ninho, sentir

que és inteiro Conhecimento!

Mas este velho amante do impasse,

de uns secos sóis no inútil ouro,

vem em tua copa enroscar-se –

seus olhos fremem teu tesouro!

Frutos de morte, de incerteza,

de desespero ali sopesa!

Bela serpe, suspensa aos céus,

sibilo, com delicadeza,

ofertando à glória de Deus

o triunfo da minha tristeza...

Basta-me, nos ares tranqüilos,

que a ânsia do amargo fruto os filhos

do barro ponha em desvario...

– A sede que te faz tamanha

até ao Ser exalta a estranha

Page 18: Poesia Paul Valery

Toda-Potência do Vazio!

.(tradução: Renato Suttana)

.

O Cemitério Marinho

Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,

Palpita entre pinheiros, entre túmulos.

O meio-dia justo nele incende

O mar, o mar recomeçando sempre.

Oh, recompensa, após um pensamento,

Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome

Tanto diamante de indistinta espuma

E quanta paz parece conceber-se!

Quando repousa sobre o abismo um sol,

Límpidas obras de uma eterna causa

Fulge oTempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,

Page 19: Poesia Paul Valery

Massa de calma e nítida reserva,

Água franzida, Olho que em ti escondes

Tanto de sono sob um véu de chama,

-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,

Cume dourado de mil, telhas, Teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,

Subo a este ponto puro e me acostumo,

Todo envolto por meu olhar marinho.

E como aos deuses dádiva suprema,

O resplendor solar sereno esparze

Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,

Como em delícia muda sua ausência

Na boca onde perece sua forma,

Aqui aspiro meu futuro fumo,

Quando o céu canta à alma consumida

A mudança das margens em rumor.

Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!

Depois de tanto orgulho e tanta estranha

Ociosidade - cheia de poder -

Eu me abandono a esse brilhante espaço,

Por sobre as tumbas minha sombra passa

E a seu frágil mover-se me habitua.

Page 20: Poesia Paul Valery

A alma expondo-se às tochas do solstício,

Eu te afronto, magnífica justiça

Da luz, da luz armada sem piedade!

E te devolvo pura à tua origem:

Contempla-te!... Mas devolver a luz

Supõe de sombra outra metade morna.

Oh, para mim, somente a mim, em mim,

Junto ao peito, nas fontes do poema,

Entre o vazio e o puro acontecer,

De minha interna grandeza o eco espero,

Sombria, amarga e sonora cisterna

- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.

Sabes tu, prisioneiro das folhagens,

Golfo roedor de tão finos gradis,

Claros segredos para os olhos cegos

Que corpo a um fim ocioso me compele,

Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas?

Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.

Sacro, encerrando um fogo sem matéria,

Pouca de terra oferecida à luz,

Prezo este sítio, que dominam tochas,

Composto de ouro, pedras e ciprestes,

Onde mármores tremem sobre sombras.

O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.

Page 21: Poesia Paul Valery

Cadela esplêndida, afugenta o idólatra!

Quando, sorriso de pastor, sozinho

Apascento carneiros misteriosos

- Branco rebanho de tranqüilos túmulos -

Afasta dele as pombas temerosas

Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.

Aqui vindo, o futuro é indolência.

Nítido inseto escarva a sequidão;

Tudo queimado está desfeito e no ar

Se perde em não sei que severa essência,

Faz-se a amargura doce e claro o espírito.

Os mortos estão bem, sob esta terra

Que os aquece e resseca seu mistério.

O meio-dia no alto, o meio-dia

Quedo se pensa em si e a si convém.

Fronte completa e límpido diadema,

Eu sou em ti recôndita mudança!

Eu, somente eu, contenho os teus temores!

Meus pesares, limitações e dúvidas

São a falha de teu grande diamante...

Em sua noite grávida de mármores,

Entanto, um povo errante entre as raízes

Tomou já teu partido, lentamente.

Page 22: Poesia Paul Valery

Dissolveu-se na mais espessa ausência;

Bebeu vermelho barro a branca espécie;

Passou às flores o dom de viver.

Dos mortos, onde as frases familiares,

A arte pessoal, as almas singulares?

Tece a larva onde lágrimas nasciam.

O riso agudo de afagadas jovens,

Olhos e dentes, pálpebras molhadas,

O seio ousado desafiando o fogo,

Sangue a brilhar nos lábios que se rendem,

Últímos dons e dedos que os defendem

- Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.

E tu, grande alma, acaso um sonho esperas,

Despido, então, das cores de mentira

Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram?

Cantarás, quando fores vaporosa?

Tudo flui! Porosa é minha presença;

A sagrada impaciência também morre.

Magra imortalidade negra e de ouro,

Consoladora com horror laureada,

Que seio maternal fazes da morte

- O belo engano, a astúcia mais piedosa!

Quem não conhece e quem não repudia

Page 23: Poesia Paul Valery

Esse crânio vazio, o riso eterno?

Pais profundos, cabeças desertadas,

Que sob o peso de tantas pàzadas

Terra sois, confundindo os nossos passos!

O verdadeiro verme, irrefutável,

Não para vós existe, sob a lousa

Ele de vida vive e não me deixa.

Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo?

Seu dente oculto está de mim tão próximo

Que qualquer nome, acaso, lhe convém.

Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca:

Minha carne lhe agrada, e até no leito

Vivo de pertencer a este vivente.

Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia!

Feriste-me com tua flecha alada,

Que vibra, voa e que não voa nunca.

O som engendra-me e a flecha me mata!

O sol... Ah, que sombra de tartaruga

Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!

Não, não!... De pé! No instante sucessivo!

Rompe meu corpo, a forma pensativa!

Bebe meu seio, o vento que renasce!

Esta frescura a exalar-se do mar

Page 24: Poesia Paul Valery

A alma devolve-me... Ó, poder salgado!

Corramos à onda para reviver!

Sim, grande mar dotado de delírios,

Pele mosqueada, clâmidefurada

Por incontáveis ídolos do sol,

Hidra absoluta, ébria de carne azul,

Que te mordes a fulgurante cauda

Num tumulto ao silêncio parecido,

Ergue-se o vento! Há que tentar viver!

O sopro imenso abre e fecha meu livro,

A vaga em pó saltar ousa das rochas!

Voai páginas claras, deslumbradas!

Rompei vagas, rompei contentes o

Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

Trad. de Darcy Damasceno e Roberto AIvim Confia.