zoom nº22 - cecri

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ZOOM revista Rússia no Século XXI: Какие перспективы? (Que Perspetivas?) 2014

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ZOOMrevista

Rússia no Século XXI: Какие перспективы?

(Que Perspetivas?)2014

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ZOOM Rússia no Século XXI: Какие перспективы? (Que Perspetivas?)

Revista do Centro de Estudos do Curso de Relações Internacionais - Nº 22 // 2014

CoordenaçãoJosé Dinis Gomes

ArticulistasAna Paula Brandão

Isabel CamisãoJosé MilhazesJosé Palmeira

Luís Eduardo SaraivaMaria Raquel Freire

Miguel RochaSandra FernandesSandrina Antunes

Sérgio Ribeiro

GrafismoCátia Martins

Gabinete EditorialCECRI – Universidade do Minho

Escola de Economia e Gestão, Gab 0.22 – Campus de Gualtar – Braga

cecri.uminho @gmail.com

ZOOM INRússia no Século XXI: Какие перспективы?

(Que Perspetivas?)

José Milhazes Será a Rússia adversa à Democracia?

Luís Eduardo Saraiva Reforço da Segurança Energética na Europa?

Maria Raquel FreireTrilhos da política externa russa: focos de tensão na

vizinhança próxima. O caso da UcrâniaSandra Fernandes

A política externa da nova Rússia: velhos dilemas e novas asserções

ZOOM OUTHomenagem ao Professor Doutor Luís Filipe

Lobo-Fernandes

Texto de Homenagem

Testemunho da Professora Doutora Ana Paula Brandão

Testemunho da Professora Doutora Isabel Camisão Testemunho do Professor Doutor José Palmeira

Testemunho do Professor Doutor Miguel RochaTestemunho da Professora Doutora Sandra FernandesTestemunho da Professora Doutora Sandrina Antunes

Testemunho do Professor Doutor Sérgio Ribeiro

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ZOOMIN

Será a Rússia adversa à democracia?José Milhazes (Jornalista e Historiador)

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É impossível falar do movimento da sociedade russa para a democracia sem falar do nome e da herança deixada por Mikhail Gorbatchov, primeiro e último Presidente da União Soviética e secretário-geral do Partido Comunista da URSS entre 1985 e 1991.Porque este foi talvez um dos períodos mais férteis no que diz respeito à construção da democracia na Rússia, obra até hoje inacabada.Os soviéticos, naquela altura, diziam que a democracia tinha tanto a ver com a “democratização” iniciada por Gorbatchov como um canal tem a ver com uma canalização. Mas, lançado, a partir dos nossos dias, um olhar frio e isento, podemos dizer que esse período, principalmente os anos de 1989-1991, foi o mais democrático em toda a história da Rússia no século XX.Ao longe, poderia não parecer assim, mas, in loco, tive a oportunidade de ver a constituição de uma sociedade civil, de a ver a abrir caminho por entre as fissuras que se iam formando no Partido Comunista da União Soviética e nas instituições soviéticas burocratizadas que teimavam resistir aos ventos de mudança.Mikhail Gorbatchov tinha de fazer ginástica, ser um campeão de equilibrismo para controlar a situação e só não o conseguiu, porque recebeu uma economia desequilibrada e extremamente débil. A estagnação económica, a corrida aos armamentos e as aventuras militares dos seus antecessores (Angola, Afeganistão, Etiópia, etc.) impediram que ele conseguisse melhorar o nível de vida das pessoas. A queda drástica do preço do petróleo em 1985 e 1986 ($ 9 por barril) foi fatal para o futuro da URSS.Porém, as sementes da sociedade civil, lançadas a partir de 1985, foram fundamentais no dia 19 de Agosto de 1991, quando ortodoxos comunistas tentaram afastar Gorbatchov do poder. Os golpistas esperavam repetir o golpe palaciano, realizado em 1964 e que derrubou Nikita Krutchov, mas os cidadãos saíram para as ruas de Moscovo, Leninegrado, Tallinn, etc. para defender as suas conquistas. A formação da sociedade civil, sob a forma de renascimento nacional, revelou-se nos movimentos autonomistas em várias regiões da URSS. Vieram à tona numerosos problemas nacionais recalcados. À primeira oportunidade surgiram movimentos independentistas não só nas três repúblicas do Báltico: Letónia, Lituânia e Estónia, que tinham sido anexadas em 1939, ou seja, mais tarde do que as restantes 12 repúblicas da URSS,

bem como na Geórgia, Azerbaijão, Arménia, e até no interior da Federação da Rússia: na Tchetchénia.Na Rússia, é neste período que emerge a figura política de Boris Ieltsin. Trazido de Sverdlov para Moscovo por Egor Ligatchov, membro do Bureau Político do PCUS, para injectar forças novas e activas nesse partido, Ieltsin rapidamente enveredou pelo populismo a fim de vencer os seus adversários. À frente da organização de Moscovo do PCUS, medidas populistas como o de andar de autocarro em vez de utilizar o automóvel aumentavam a popularidade. E até as publicações na imprensa oficial de notícias sobre acções realizadas sob o efeito do álcool (que, mais tarde, vieram a ser confirmadas) lhe davam pontos na luta contra Gorbatchov. Em 26 de Março de 1989, Ieltsin foi eleito deputado por Moscovo com 92% dos votos, e três dias mais tarde, conquistou um lugar no Soviete Supremo (Parlamento) da Federação da Rússia. A 19 de Julho do mesmo ano, Iéltsin anunciou a formação de uma facção radical a favor de reformas.Este confronto atinge o seu ponto mais alto quando Ieltsin é eleito presidente do Soviete Supremo (29 de Maio de 1990) e Presidente da Rússia (12 de Junho de 1991). A partir daqui, só a desintegração da URSS permitia a vitória total sobre Gorbatchov, o que viria a acontecer em Dezembro do mesmo ano.Enquanto Presidente da Rússia, Boris Ieltsin empreendeu reformas económicas e políticas para adaptar o país às novas realidades geopolíticas. Enveredando por uma política de aproximação ao Ocidente, o dirigente copiou as receitas mais dolorosas no campo económico, mas, no político, manteve um regime que foi perdendo a sua democraticidade. É verdade que a liberdade de expressão e imprensa estavam fixados na Constituição da Rússia, mas os órgãos de informação estavam nas mãos dos oligarcas.Existia oposição parlamentar, mas Boris Ieltsin não teve pejo de recorrer aos tanques para dissolver o Soviete Supremo da Rússia em Outubro de 1993.A propósito, o chamado Ocidente aplaudiu esta acção não obstante os seus efeitos altamente nocivos para a jovem democracia russa.As eleições presidenciais de 1996 são o corolário da deformação do jovem corpo democrático.Partindo com uma intenção de voto de cerca de 3% para a primeira volta, conseguiu passar à segunda juntamente com Guennadi Ziuganov, secretário-geral do Partido Comunista da Rússia.Na recta final, bateu o líder comunista à custa de uma campanha

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eleitoral completamente monopolizada. Foi caso para dizer, em relação à televisão que os russos “acordavam e adormecia com Ieltsin”. O chamado Ocidente voltou a aplaudir.A vitória de Ieltsin nas eleições de 1996 mostrou à elite russa que estava na hora de encontrar um substituto para o dirigente do país. Além dos fracassos no campo económico, do saque a que foi sujeita a riqueza nacional nos anos de 1990, durante o processo de privatizações, a guerra da Tchetchénia foi mais uma nódoa sangrenta na actividade política de Boris Ieltsin.A chamada “Família” (círculo próximo do Presidente russo que, no fundo, governava por ele), e principalmente o oligarca Boris Berezovski, viram num coronel do KGB, chamado Vladimir Putin, um político que poderia dar uma imagem nova do poder, mas mantendo-se obediente.Porém, a pouco e pouco, Putin foi substituindo nos mais altos cargos políticos herdados do seu antecessor por homens de sua confiança, fundamentalmente saídos dos serviços secretos soviéticos: KGB.Além do mais, começou a neutralizar os oligarcas, utilizando para isso variados métodos: ou obrigando-os a vender as suas propriedades e bens na Rússia e a emigrarem, como foi o caso de Vladimir Gussinski, dono de um dos maiores impérios de mídias no país, ou expropriando-os e condenando-os a pesadas penas de prisão, como foi o caso de Mikhail Khodorkovski, dono da petrolífera YUKOS.O primeiro mandato de Putin (2000-2004) ficou tambémpor um claro melhoramento das condições de vida da população, devido fundamentalmente ao aumento significativo dos preços do petróleo e do gás nos mercados internacionais, e pelo esmagamento militar da guerrilha separatista na Tchetchénia. Foram muitos os cidadãos russos que acreditaram que a centralização do poder, processo conhecido por “criação de um poder vertical”(que se manifestou, nomeadamente, na nomeação dos governadores das regiões e repúblicas da Federação da Rússia pelo Kremlin, em vez da sua eleição em sufrágio directo), bem como a já citada guerra contra os oligarcas serviram para impor alguma ordem no país e poderiam reduzir a corrupção, uma das mais graves chagas sociais no país.Porém, nos seus dois primeiros mandatos, uns oligarcas foram substituídos por outros mais próximos dos serviços secretos russos e do poder. Empresas públicas gigantes como a gasífera Gazprom, a petrolífera Rozneft, a companhia de transportes ferroviários RZD, etc. passaram a

ser geridas por esses elementos em função dos interesses do Kremlin. Em geral, o segundo mandato presidencial de Putin ficou marcado por uma forte ofensiva contra a oposição, continuando a ser um mistério a morte de alguns jornalistas.Por isso, quando Vladimir Putin anunciou o nome do seu sucessor: Dmitri Medvedev, alguns sectores ocidentais admitiram que este poderia liberalizar o sistema político e económico do país com vista à sua modernização, mas o facto é que ele não passou de um joguete mandado por Putin, que saltou para a cadeira de primeiro-ministro.Foi durante a presidência do “liberal” Medvedev que o Kremlin experimentou no terreno a teoria da soberania limitada dos Estados vizinhos que, antes, faziam parte da URSS, à excepção das três repúblicas do Báltico: Estónia, Letónia e Lituânia, que já eram e são membros da NATO. Em Agosto de 2008, a pretexto da “defesa de cidadãos russos”, entra na Geórgia e priva esse país de parte do seu território: Ossétia do Sul e Abkhásia.É verdade que Medvedev anunciou algumas reformas de abertura dosistema político, bem como do sistema económico para modernizar o país e libertá-lo da dependência absoluta das exportações de hidrocarbonetos, mas praticamente nada foi feito.Com um Parlamento controlado e uma oposição extraparlamentar não organizada, Dmitri Medvedev preparou condições ainda mais cómodas para o seu “sucessor” ao fazer aumentar os mandatos presidenciais de quatro para seis anos e os parlamentares de quatro para cinco.Verdade seja dita, na presidência de Medvedev, a oposição extraparlamentar teve possibilidade de organizar melhor as suas actividades e de fazer uma surpresa a Vladimir Putin, após a sua reeleição em Março de 2012. Os contestatários da política de “mudança de cadeiras” conseguiram trazer para as ruas muitos milhares de pessoas, principalmente em Moscovo e São Petersburgo.Porém, o Kremlin “recuperou rapidamente os sentidos” e começou a aprovar uma série de leis que visavam limitar os movimentos da oposição. Basta recordar a lei que equipara as organizações de defesa de direitos humanos que recebem apoio do estrangeiro a “agentes” (palavra que, em russo, tem uma conotação clara com serviços secretos), ou as chamadas “leis anti-gay”, etc.No campo da política externa, a anexação da Crimeia é sintomática. Putin, alegando novamente a “protecção” dos russos e baseando-se no precedente

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do Kosovo, ocupou aquela península que pertencia à Ucrânia, criando precedentes muito perigosos para a própria russa. Basta dizer que Moscovo foi além do precedente do Kosovo, pois se este antigo território da Jugoslávia se tornou um Estado independente, a Crimeia foi simplesmente engolida.Como não existem democracias ideais ou puras, sendo, em maior ou menor grau, híbridas, o regime político existente na Rússia pode ser considerado ainda um regime democrático híbrido, mas com uma preponderância cada vez maior de sinais de autoritarismo.A ideologia em que se baseia o regime, cada vez mais agressiva e reinante, faz-nos lembrar a trilogia czarista: “Ortodoxia, Autocracia, Povo”.No entanto, é de salientar que se Vladimir Putin continuar poreste caminho, irá voltar a conduzir a Rússia para um beco perigoso. As ambições imperiais requerem meios económicos e financeiros, mas a economia do país entrou em recessão e os lucros obtidos com o petróleo e o gás são insuficientes para “fazer canhões e garantir manteiga”. Tanto mais se o Kremlin continuar a sua actual política externa em relação aos Estados vizinhos.A lição da queda da URSS parece ter ensinado muito pouco aos dirigentes russos. Só um país com fortes e sólidas bases económicas pode realizar uma política externa como aquela que está a realizar Vladimir Putin. Não basta aparecer em tronco nu, todo musculoso, ou tripular um avião militar, ou descobrir ânforas do séc. VI depois de Cristo no Mar Negro, para que o mundo acredite que a Rússia possa pretender ao estatuto de super-potência.Talvez fosse melhor se Vladimir Putin se recordassem da experiência do czar russo Alexandre II. Depois da pesada derrota da Rússia na Guerra da Crimeia (1853-1856), o autocrata russo lançou uma série de reformas que deram um grande impulso ao crescimento económico e social do país, bastando recordar a lei da abolição da servidão camponesa, em Fevereiro de 1861.Continuando assim, o dirigente russo conduz o seu país para o isolacionismo.Alguns analistas afirmam que tal não é possível devido ao grau de integração da Rússia na economia mundial e os actuais dirigentes russos também parecem estar convencidos disso e de

que a Europa não poderá passar, por exemplo, sem o gás russo, mas também é verdade que a Rússia não poderá aguentar muito tempo sem vender essa e outras matérias-primas ao Ocidente. O desvio das correntes de exportação russa para a China e outros países asiáticos é possível, mas não é imediato e exige grandes investimentos.Não posso terminar sem deixar de assinalar que a ausência de política externa, energética comuns da União Europeia, bem como a política externa dos Estados Unidos face à Rússia estão também na origem do desvio da “democracia híbrida russa” no sentido da degeneração. Depois da queda da URSS, foram muitos os que no Ocidente consideraram que a Rússia estava enfraquecida para sempre e não passaria de um fornecedor de matérias-primas. Alguns até declararam o “fim da História”. Os resultados dessa política estão à vista.

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Reforço da Segurança Energética na EuropaLuís Eduardo Saraiva (Universidade Lusíada de Lisboa) Resumo

Este artigo analisa os recursos necessários à garantia de continuação de fornecimento de energia para a União Europeia, argumentando-se que uma diplomacia económica eficaz, um conjunto de alianças, o apoio ao desenvolvimento de países fornecedores e uma PCSD forte e com visibilidade são os instrumentos mais úteis, para além de outros, para reforço da segurança energética.As inquietações que atualmente ocorrem no Leste da Europa podem ser uma ótima oportunidade para a UE adequar os seus mecanismos de segurança energética a novas dinâmicas que parecem estar a desenvolver-se após uma década de paz pós Guerra-fria.

Abstract

This paper presents the most viable paths identified to solve the growing problems of the fuel supply to Europe, with a special attention in the identification of the resources needed to guarantee the continuation of the power supply, being argued that an effective economic diplomacy, a set of alliances, the support to the development of supplier countries and a strong and visible CSDP are the most useful tools for greater energy security. The unrest currently taking place in Eastern Europe can be a great opportunity for the European Union to adjust its energy security mechanisms to the new dynamics that seem to be developing after a decade of post-Cold War peace.

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Introdução

Se a Europa não começar já a preocupar-se com a segurança energética, nomeadamente com a garantia de acesso às fontes, com o transporte fiável e com o controlo de regulação dos mercados, dentro de poucos anos estará irremediavelmente dependente das condições estabelecidas por outras potências e pelos mercados externos. A Rússia desempenha aqui um papel central, pois é o maior fornecedor de combustíveis fósseis para a Europa, que obtém 24% das suas necessidades de gás da Rússia (The Economist. 2014). Estará a desenhar-se uma simbiose apertada entre os interesses de alguns países da Europa, nomeadamente da Alemanha, e da Rússia? Em que é que esta simbiose valoriza ou prejudica o processo europeu?A UE estimava (em 2008) que até 2030 iria precisar de importar cerca de 75% das suas necessidades energéticas, pelo que tem a necessidade premente de identificar recursos para garantir uma grande diversificação de combustíveis, de fontes de abastecimento e de rotas de abastecimento. Adicionalmente, nos países fornecedores é necessário que esteja presente um conjunto de condições como a boa governação, o respeito pelo Estado de direito e a presença de fortes investimentos. Para fazer face aos desafios que se vislumbram e principalmente para jogar um papel global na área da segurança energética à medida que estes recursos se vão tornando mais escassos, a UE terá de garantir as fontes, o transporte e o armazenamento e comercialização da energia, que deverá continuar a ser adquirida a um custo razoável.Uma crise que colocasse a EU e a Rússia em campos opostos iria prejudicar seguramente os dois lados, pois a Rússia necessita tanto dos seus clientes europeus como estes necessitam do gás russo.Este artigo divide-se em três partes. A primeira parte debruça-se sobre a segurança energética, pretendendo responder à questão - “De que segurança falamos?”. Na segunda parte expõem-se os desafios à segurança energética, recorrendo principalmente à análise das necessidades de aprovisionamento. A terceira parte apresenta argumentos de que a segurança energética será alcançada por um conjunto de condições como a diplomacia económica eficaz, um conjunto de alianças e um aumento da capacidade de intervenção.

1. A Segurança Energética

Uma verdade cada vez mais incontornável é que a Europa não dispõe da energia que necessita e que cada vez mais dependerá de fontes ex-ternas. O reforço de segurança energética, seja ao nível de cada país, seja coletivamente, como no caso da UE, deve ser acompanhado de instrumentos normativos e de estruturas que visem a prevenção e a preparação da resposta a eventuais situações de crise energética (Rod-rigues, Leal, e Ribeiro. 2011: 14-15). Quais os instrumentos norma-tivos e quais as estruturas são questões que necessitam de respostas.É importante apercebermo-nos das diversas conceções, ou visões, de segurança energética, desde uma conceptualização mais teórica até às definições mais pragmáticas da OTAN e principalmente a da UE. Também é necessário apresentar os diversos elementos da segurança energética, tais como o nível dos preços, a fiabilidade das fontes e, de uma forma geral, todas as variáveis a incluir na formulação geral da segurança energética.No que diz respeito ao tempo presente, há claramente uma preocu-pação com a segurança de se continuar a dispor de energia sempre que necessária e a preços razoáveis. Os esforços que têm sido feitos para diversificar as fontes, as novas descobertas de jazidas, a aplicação com sucesso de novas técnicas, fazem parte de um conjunto de es-forços para se aumentar a segurança energética e garantir o futuro. No cenário global estão bem presentes os problemas nas fontes, nas rotas de abastecimento e no consumo. A região de maior produção de hidrocarbonetos do mundo, o lado oriental do Crescente Fértil da Antiguidade, é desde há muito tempo, e especialmente nos últimos 20 anos, palco de violentos conflitos, onde se entrecruzam interesses da Arábia Saudita, do Irão, de Israel, da Rússia e dos EUA, além dos problemas religiosos que opõem essencialmente xiitas contra sunitas, mas onde o ódio árabe aos judeus impõe também um elevado nível de inquietação. Estas tensões têm reflexos na grande região da Bacia do Mar Cáspio, onde também se disputam interesses de exploração e encaminhamento de recursos energéticos. A Rússia mantém aí uma grande pressão, condicionando as opções políticas dos países saídos da órbita soviética e esforçando-se por manter controlo sobre os países ribeirinhos do Cáspio. Potências regionais como o Irão, a Turquia e mesmo a China – aliada dos

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países das costas orientais do Cáspio com os quais mantém acordos de exploração e transporte de gás para os seus territórios – vão aí reforçando a sua influência, a par da presença incontornável dos EUA Noutras regiões tem aumentado o nível de pressão e de instabilidade, como no Golfo da Guiné e no delta do Rio Níger, a região central africana, repartida entre a República Centro-Africana, o Chade e os Camarões, mas incluindo também a província oriental do Sudão, Darfur, e o Sudão do Sul, o Golfo de Adem e as costas da Somália, onde a ameaça de pirataria continua a afetar o transporte de petróleo e a provocar o aumento brutal dos seguros e resseguros de transporte marítimo, tornando cada vez mais atrativa a rota do Cabo. No mundo da energia outras tensões existem, como a provocada pela aliança entre a Alemanha e a Rússia para o fornecimento de gás natural à Europa, as tensões entre a Rússia e a Ucrânia sobre o fornecimento aos países da UE de gás natural russo através de território ucraniano, os esforços da Rússia para neutralizar a relevância da Turquia no fornecimento de gás e petróleo à Europa, a pressão do fundamentalismo islâmico sobre a Argélia e o seu fornecimento de gás natural à Europa, etc. Não é despiciendo lembrar que os governos dos países onde se localizam as mais ricas reservas energéticas têm a tentação de utilizarem para fins políticos o seu controlo sobre essas matérias-primas, seja no Médio Oriente, seja à volta do Cáspio, ou na Rússia, na Nigéria ou mesmo na Venezuela. Gerhard Mangott1 e Kirsten Westphal2 apresentam, num trabalho sobre a relevância da grande região do Mar Negro para as questões energéticas europeias e russas, um cenário em que se defrontavam nessa. região os interesses antagónicos da União Europeia, dos Estados Unidos e da Rússia. Sublinhando que o debate sobre segurança energética se tem intensificado nos últimos anos, e que os preços mundiais de petróleo dispararam devido principalmente ao efeito combinado do desinvestimento nas capacidades de produção nas últimas décadas e à inquietação no Médio Oriente, e ainda ao aumento da procura de energia nas economias emergentes, principalmente da China e da Índia (Mangott, Westphal. 2008: 147), chamam a atenção de que o nível de preço da energia se manterá elevado nos anos vindouros, pelo que é provável que se intensifique a luta pelo controlo do Cáspio e do Mar Negro, um reflexo da desconfiança, da rivalidade e da alienação entre aqueles três atores (Mangott, Westphal. 2008: 176). 1 Professor de Ciência Política na Universidade de Innsbruck e na Academia Diplomática de Viena 2 Professora assistente na Universidade de Giessen, Alemanha

Da mesma forma, conforme sublinham Rodrigues, Leal e Ribeiro, no futuro ver-se-ão aumentados os desafios, especialmente no que diz respeito à geopolítica do petróleo e do gás natural, pois a sua procura continuará a aumentar, devido essencialmente ao crescimento das economias emergentes, mas também impulsionado pelo aumento demográfico e pelo consequente aumento do consumo. Aqueles autores indicam também como provável “a descida continuada da produção da atual base de produção mundial, que a nível mundial poderá atingir os 4% a 6%”. O crescente desfasamento entre a oferta e a procura é também fator de tensão pois tornará necessário continuar a aumentar a produção de petróleo e gás natural, sob pena de se desacelerar o crescimento das economias emergentes. Assim, parece ser forçoso começar a ponderar--se a remodelação das infraestruturas de aprovisionamento energético, assim como a “funcionalidade das rotas de abastecimento”. Um dos problemas potenciais identificados pelos autores do estudo em apreço prende-se com o receio de uma nova crise de petróleo devido a um aumento súbito e brutal dos preços que possa provocar uma nova crise grave na economia mundial (Rodrigues, Leal, e Ribeiro. 2011: 13-14). Ainda no que diz respeito a um cenário global, Sovacool liga as principais ameaças à segurança energética a cada um dos elementos propostos por Elkind na sua obra3 (2010: 122). Esses elementos são a disponibilidade, a fiabilidade, os preços acessíveis e a sustentabilidade. No que diz respeito à disponibilidade, identifica como ameaças a exaustão das reservas que podem ser extraídas com eficácia de custos, as limitações nas oportunidades de desenvolvimento, tais como políticas nacionalistas de recursos e contratos Estado-a-Estado, os problemas de localização de infraestruturas, incluindo o síndrome NIMBY4, e os ambientes financeiros, legais, regulatórios ou políticos que inibam o investimento (Sovacool, 2011: 10).Relativamente à fiabilidade, Sovacool considera que os principais problemas são as falhas nos sistemas de energia devidas a desastres climatéricos e naturais severos, as falhas devidas a escassez de manutenção ou ao desinvestimento, um ataque ou ameaça de ataque por forças militares e organizações terroristas, e intervenções políticas tais como embargos e sanções. As ameaças à razoabilidade dos preços que Sovacool identifica são a exaustão das reservas que podem ser extraídas vantajosamente, os preços

3 Energy Security: Call for a broader agenda 4 Acrónimo de língua inglesa da frase Not in my backyard! Que significará “no meu quintal não!”

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da energia que requeiram que consumidores com menores rendimentos gastem uma grande parte dos seus rendimentos, os subsídios em excesso que possam distorcer os preços, a incapacidade de implementar medidas fortes sobre políticas de preços e a incapacidade de incorporar custos ambientais e sociais para a produção e utilização de energia.Finalmente, Sovacool identifica como ameaças à sustentabilidade a adoção e promoção de infraestruturas de energia pesadas em emissões de carbono, os impactos associados ao uso de energia que provoquem poluição tanto doméstica como exterior, e os impactos das alterações climáticas, tais como subida do nível dos mares, ocorrência de tempestades e extremas condições atmosféricas. Os desafios contemporâneos à segurança energética são vistos por aquele autor a três níveis - macro, micro e meso (Sovacool. 2011: 11). O autor divide as ameaças na escala macro em três áreas, que são a geopolítica e a guerra, as barreiras globais de investimento e a externalidades transfronteiriças (refere-se a danos ambientais e sociais que se estendem através de vários países, tais como as alterações climáticas).Na área da geopolítica e guerra, sublinhe-se que as economias modernas se apoiam fortemente no petróleo, gás natural, carvão e urânio, que são frequentemente importados. O padrão que resulta do comércio intensivo internacional em recursos energéticos – particularmente petróleo – engendra preocupações graves com segurança, sempre que os abastecimentos e concentram ou as capacidades de produção e contraem.Na IGM, tanto a Entente como os Poderes Centrais acreditavam que o controlo do carvão, petróleo e recursos de gás seriam a chave da vitória (Sovacool, 2011: 12, 13). Hitler declarou guerra à União Soviética em parte para assegurar petróleo para a sua máquina de guerra, e lançou a Operação Blau para proteger os campos de petróleo na Roménia, ao mesmo tempo que garantia a segurança de outros no Cáucaso Central. A União Soviética tentou invadir o Norte do Irão em 1945 e 1946 para controlar s seu recursos de petróleo exatamente para diminuir a sua própria dependência (Sovacool, 2011: 13), e o Iraque de Saddam Hussein invadiu militarmente o Koweit para numa tentativa de controlar os riquíssimos campos de petróleo deste país. Para os países da UE a segurança energética constitui, no século XXI, um grande desafio. Isso será devido principalmente, como notam Rodrigues, Leal, e Ribeiro, ao “desequilíbrio da repartição mundial das

reservas de petróleo e gás natural, das crescentes limitações da oferta de combustíveis fósseis a nível mundial e da turbulência que caracteriza várias das regiões produtoras” (2011: 13). A alteração dos padrões de movimentação de hidrocarbonetos entre produtores e consumidores, a que atualmente se assiste, vai obrigar a Europa a estabelecer objetivos que garantam a sua segurança energética. Assim, além de haver uma questão com as quantidades disponíveis de hidrocarbonetos, parece que estaremos perante aumentos de consumo em novos países emergentes, com grandes populações. A China e a Índia estão a posicionar-se como grandes consumidores de energia, colocando-se a par com os EUA e a Europa. Assim, o novo cenário geopolítico da energia irá obrigar à revisão de todos os sistemas de fornecimento de energia, assim como à viabilidade das rotas de abastecimento, pois os grandes desafios, atuais e futuros, referem-se não só às quantidades disponíveis, mas também à forma de as fazer chegar onde são mais precisas (Rodrigues, Leal, e Ribeiro. 2011: 13-14).Sijbren de Jong e Simon Schunz, num estudo comparativo entre as questões ambientais e a segurança energética, defendem, por seu lado, que no domínio da segurança energética, um domínio reservado tradicionalmente aos Estados-membros da UE, as relações bilaterais entre estes e países terceiros têm desde há muito dominado o panorama (como será o caso da relação entre a Alemanha e a Rússia), e a coerência era – e parece que assim permanecerá – particularmente baixa (Jong, Schunz. 2012: 167). Enquanto durou o Império Soviético, foi este o quase exclusivo fornecedor de gás natural à Europa. Foi quando o colapso da União Soviética propiciou a abertura de novos mercados vizinhos nas suas antigas repúblicas que apareceram as primeiras tentativas de formar uma abordagem externa coerente da UE sobre o gás natural. Em meados de 20005, a Comissão Europeia usou a crescente dependência da UE de importações de gás como justificação para desenvolver uma abordagem comum sobre energia, que acabou por ser refletida num documento de 2000. Nos anos seguintes, particularmente após a crise de 2006 entre a Rússia e a Ucrânia, a Comissão intensificou a sua pressão para a criação de uma política comum, levando à adoção de um Plano de Ação, numa Cimeira Informal realizada em Lahti a 20 de Outubro de 2006, o que pareceu unir a Europa contra a Rússia. Posteriormente a Comissão de Assuntos Externos do Parlamento Europeu haveria de publicar um 5 COM (2000) 769, 2-3.

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extenso relatório sobre uma Política Externa Comum de Energia da UE. Devido à crise entre a Rússia e a Ucrânia em 2006, Bruxelas colocou no topo das suas prioridades a diversificação do fornecimento de gás e de rotas de trânsito, tendo iniciado o planeamento para a construção de um “Corredor Sul do Gás”, que trouxesse o gás da Ásia Central para os mercados da UE nos finais de 2008 (Jong, Schunz. 2012: 171). O plano do Corredor Sul consistia num conjunto de gasodutos que passariam ao largo da Rússia e da Ucrânia, o mais conhecido dos quais é o projeto Nabucco apoiado pela UE, um gasoduto planeado para estender-se desde o Mar Cáspio, passando pela Turquia, Bulgária, Roménia e Hungria em direção à Áustria. Ao fim destes anos, pode deduzir-se que o projeto Nabucco já deixou de estar no horizonte europeu. Dois gasodutos mais pequenos, o Interconector Itália-Turquia-Grécia (ITGI) e o Gasoduto Trans-Adriático (TA), complementariam o conjunto. Mal tinham decorrido dois meses após o lançamento destes planos, uma segunda interrupção de gás, muito mais grave, ocorreu na Ucrânia em janeiro de 2009. Esta crise de duas semanas, que deixou extensas áreas da Europa sem gás, expôs mais uma vez o problema muito grave da necessidade de diversificação das fontes de energia (Jong, Schunz. 2012: 171).A Europa encontra-se assim ainda a procurar reforçar a sua segurança energética através da diversificação, pelo que terá de continuar a envidar esforços para garantir a segurança e a estabilidade política de regiões e países como o Golfo da Guiné, a Argélia e o Magrebe em geral, assim como não poderá deixar de olhar com atenção e alguma preocupação a região do Mar Negro e do Cáucaso. A recente crise na Ucrânia, desde a passagem da soberania da Crimeia para a Rússia e agora com a revolta das populações russófonas, constitui uma das mais perigosas crises na Europa, desde a crise dos Balcãs de 1991-1995. Esta crise está no centro geográfico das preocupações da UE com a segurança energética, pelo que a EU deverá dar sinais claros da sua vontade de dirimir este conflito.Em resumo, é certo que a segurança energética é um tema muito atual, a que estão associadas algumas preocupações, mas cuja definição é abordada de diversas perspetivas e a que se associam questões muito complexas. O cenário global atual está manchado de pontos críticos, que se poderão revelar como potenciais origens de grandes crises num futuro próximo. O Mar Negro desempenha um papel cada vez mais relevante na geopolítica

da energia, como noutros tempos foi importante como zona de encontro (e de colisão) de diversos poderes imperiais. Passando do Mar Negro, via Cáucaso, para o Mar Cáspio, vemos agora outra região de grande importância geostratégica, especialmente no que diz respeito aos recursos energéticos. Logo abaixo, a zona oriental do antigo “crescente fértil”, que acaba no Golfo Pérsico, é, dentre as zonas de importância estratégica, aquela que poderá continuar a despoletar maiores perigos para a segurança internacional e a que mais poderá prejudicar a segurança energética. O que convém reter é que os cenários atuais contêm não só elementos de esperança – fundados nas possibilidades abertas por novas descobertas de jazidas e na aplicação de técnicas inovadoras -, como são também fonte de preocupação – devido essencialmente à crispação crescente entre as fontes e o consumo, incluindo-se aqui também a crescente insegurança dos pontos de passagem.

2. Os desafios à segurança energética da Europa

Os cenários atrás apresentados parecem mostrar que a segurança energética moldará as questões de segurança global doravante, pois aliada à crescente escassez dos recursos, apesar das recentes descobertas, a intranquilidade que se vive nas regiões mais ricas do globo parece que não tenderá a diminuir. As potências emergentes também posicionam o seu aumento de poder à volta do controlo dos recursos energéticos, como se verifica na “corrida ao ouro” da Rússia, dos EUA e da China na Ásia Central, e dos mais variados atores6.No caso europeu, o problema do aceso aos recursos constitui uma das variáveis mais importantes da segurança energética. Conforme notam Jong e Schunz, o tratado de Lisboa preencheu o desejo de a Europa aumentar a coerência no que diz respeito à segurança energética. O artigo 194 do tratado coloca a política da União explicitamente no contexto do estabelecimento e funcionamento do mercado interno e no que diz respeito à necessidade de preservar e melhorar o ambiente (Jong, Schunz. 2012: 175).Afastada das mais ricas zonas de hidrocarbonetos do globo, após o fim do período colonial, com a maturidade do Mar do Norte atingida e prevendo-se o seu esgotamento no futuro próximo, e com o aumento da incerteza política 6 Mesmo Portugal explora o Mar Cáspio através da empresa Partex

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e mesmo da insegurança nas novas regiões de exploração, a UE tem que procurar a forma de aumentar a sua segurança energética na diversificação das fontes de aprovisionamento, na investigação e desenvolvimento de novas formas de produção e na lógica de regulação energética. A questão do fornecimento constitui uma preocupação central para a segurança energética da UE7. O relatório de 2009 da Comissão Europeia compara dois cenários8 para concluir que ambos9 apontam uma diminuição do consumo de energia (e portanto um aumento da segurança do aprovisionamento comparado com anteriores projeções), menores emissões, mas um aumento considerável dos custos da eletricidade (European Union. 2010: 49). Com as suas próprias fontes em declínio e prevendo-se dentro de algumas décadas o seu total esgotamento, a UE tem de recorrer às fontes externas, enquanto procura desenvolver tecnologia de produção alternativa de energia. Por outro lado é cada vez mais impopular a produção através de centrais nucleares, especialmente desde o desastre de Fukushima, no Japão.O aprovisionamento coloca desafios à segurança energética, seja devido à necessidade de reforço de segurança nas fontes, quando tal se justifica, seja a necessidade crescente de reforçar a segurança das rotas, seja ainda a existência de riscos ao fornecimento no país ou região de destino. Um dos aspetos mais preocupantes é a grande dependência de um único fornecedor. A Europa obtém a maior parte do gás de que necessita da companhia russa Gazprom controlada pelo Estado. Apesar de os preços do gás terem vindo a cair devido em parte ao fluxo de gás de xisto extraído nos EUA, a Europa permanece bloqueada nos dispendiosos contratos de aquisição que tem com o produtor russo (Per Concordia staff. 2013: 53). As conclusões do Conselho Europeu de 2013 sublinhavam que a política energética da UE deveria garantir a segurança do aprovisionamento das famílias e empresas a preços e custos acessíveis e competitivos de uma forma segura e sustentável (Conselho Europeu. 2013). Uma das conclusões desse Conselho foi um apelo para que fosse dada especial prioridade à formulação por parte da Comissão Europeia de “orientações sobre os mecanismos destinados a assegurar as capacidades e sobre a resposta a fluxos de energia imprevistos” (Conselho Europeu. 2013). O Conselho concluía também pela necessidade de investimentos significativos em 7 Como se pode observar no relatório da Direção Geral de Energia da Comissão Europeia de 2009, “Desafios da Energia da UE para 2030” (EU Energy Trends to 2030) 8 Reference scenario e Baseline 2009 scenario 9 Um foi produzido antes do início da crise financeira iniciada em outubro de 2008 e o outro foi concluído já em 2009.

novas estruturas energéticas inteligentes a fim de assegurar o aprovisionamento ininterrupto de energia a preços acessíveis (Conselho Europeu. 2013).

A crescente insegurança das rotas

A principal rota de escoamento dos recursos energéticos é ainda hoje aquela que sai do Golfo Pérsico, passa pelo Mar Vermelho e pelo Canal do Suez, percorrendo o Mediterrâneo e diversificando-se para diversos destinos quando chega ao Atlântico. Existem ainda outras rotas marítimas importantes, como a rota do Cabo da Boa Esperança, a do Canal do Panamá, a do Estreito de Malaca, a que tem origem no Mar Negro, etc. Estas rotas, com especial destaque para a que parte do Golfo e passa no Golfo de Adem a caminho do Mar Vermelho, são hoje em dia alvo de problemas muito graves, como é o caso da pirataria que, focando-se nas rotas da costa e ao largo da Somália, se tem vindo a propagar pela parte setentrional das costas orientais de África. Outros episódios de pirataria têm vindo a ocorrer, no Golfo da Guiné em especial. Também as rotas terrestres são alvo de ataques, sabotagens e diversos outros tipos de ameaças. É o caso dos gasodutos que fornecem gás russo à Europa Central e Ocidental e que passam pela Ucrânia. É também o caso dos gasodutos da Argélia, a necessitarem de medidas especiais de segurança, e mais recentemente a questão de se manter a segurança do oleoduto que vai da República Centro-Africana à costa Ocidental de África, no porto de Douala, na República dos Camarões. Também as rotas terrestres têm sido alvo de atenção especial no que concerne as questões de segurança, ou seja, garantir que o fornecimento não é interrompido. Isto para além das questões de ser necessário manter a pressão sobre os países de origem para que os preços sejam acessíveis. São especialmente relevantes as rotas que passam pelo Cáucaso, pela Ásia Central e pelo Magrebe, mas constituem também sensíveis questões de segurança as áreas onde fontes e pontos de passagem em África, como o sul e as províncias ocidentais do Sudão, a República Centro-Africana, o Chade, os Camarões, a Nigéria e especialmente o delta do Rio Níger. No Médio Oriente, para além das rotas que atravessam a Anatólia, é necessário que haja estabilidade em países como a Síria, o Líbano, o Iraque, etc.

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seja através de gasodutos e oleodutos terrestres ou submarinos.Assim, é essencial analisarem-se as estratégias europeias (ou falta delas) para a diversificação das fontes, fazendo frente às tendências monopolistas de alguns fornecedores, sejam Estados ou grandes companhias internacionais. Atualmente, a Europa abastece-se essencialmente na Rússia, na bacia energética do Norte de África e na África Ocidental e na região do Médio Oriente e Golfo Pérsico. Adicionalmente pretende também incrementar o seu abastecimento no Mar Cáspio (Rodrigues, Leal e Ribeiro: 2011: 79). Nafeez Ahmed, um jornalista do The Guardian, referia num artigo de outubro de 2013, a propósito das preocupações estratégicas com o acesso aos recursos energéticos, que tais preocupações, no caso com a Síria, foram motivadas por medo de expansão da influência iraniana e tiveram impacto inicial na Síria no que diz respeito à geopolítica dos gasodutos e oleodutos. Em 2009 o presidente da Síria Assad recusou-se a assinar uma proposta de acordo com o Qatar que faria instalar um gasoduto entre o campo norte do Qatar, contíguo com o campo South Pars do Irão, através da Arábia Saudita, Jordânia, Síria e até à Turquia, com vista a fornecer os mercados europeus – embora evitando decisivamente a Rússia. A lógica de Assad era ‘proteger os interesses do seu aliado russo’ que veria enfraquecida ainda um pouco mais a sua posição de fornecedor principal de gás à UE.Na mesma linha de coerência, no ano seguinte, Assad teria continuado negociações para um plano alternativo de um gasoduto com o Irão no valor de 10 mil milhões de dólares, que passasse pelo Iraque para a Síria, o que possibilitaria ao Irão fornecer gás à Europa com origem no seu campo South Pars partilhado com o Qatar, escreve Nafeez Ahmed. O memorando de entendimento para o projeto teria sido assinado em julho de 2012, quando a guerra civil da Síria se estendia já a Damasco e Aleppo, e um pouco antes o Iraque teria assinado um acordo-quadro para a construção de gasodutos para esse projeto.Este projeto do gasoduto Irão-Iraque-Síria constituiu um grave problema para os planos do Qatar. Nota Ahmed que, sem surpresa, o Príncipe Bandar bin Sultan, da Arábia Saudita, disse ao Presidente Vladimir Putin que qualquer que fosse o regime depois de Assad, esse regime estaria completamente nas mãos da Arábia Saudita e este país não assinaria qualquer acordo permitindo a um país do golfo transportar gás através da Síria para a Europa em competição com as exportações de gás da Rússia.

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A instabilidade dos fornecedores

Um outro fator que põe em risco o aprovisionamento relaciona-se com a falta de estabilidade nos locais onde se localizam as fontes de hidrocarbonetos, ou seja, é notório que as fontes energéticas estão cada vez mais instáveis. São reflexo deste problema as guerras dos gasodutos e oleodutos, sendo também consequência da localização dessas fontes energéticas em regiões tradicionalmente turbulentas. Opondo-se a um fornecimento tradicional, corrente e garantido, alguns movimentos procuram interromper os fornecimentos e mesmo levar a cabo revoluções violentas, como forma de provocarem danos em países desenvolvidos, que são simultaneamente os mais dependentes de fontes externas de energia. E, na verdade, as intervenções da comunidade internacional para estabilizarem alguns países fornecedores e retomarem a plena produção parece não terem tido um completo sucesso, como se poderá observar no Iraque. É por isso necessária uma intervenção atempada, uma colaboração atenta da comunidade internacional para fazer face às necessidades de desenvolvimento e de segurança dessas regiões.

O problema da diversificação das fontes

A diversificação das fontes constitui, cada vez mais, uma preocupação dos países e das comunidades que dependem das importações dos recursos energéticos. Os EUA, país que ainda é um dos dependentes de importação, especialmente do petróleo do Golfo Pérsico, tem uma solução à vista para a diminuição da sua dependência, com a exploração de gás de xisto nos seus territórios, pese embora a polémica com as técnicas de extração, consideradas muito danosas para o ambiente. De qualquer forma, prevê-se que este combustível venha a suprir grande parte das necessidades energéticas norte-americanas para as próximas décadas. A UE, no entanto, não dispõe ainda de acesso a tais recursos, pelo que o acesso a fontes externas continua a ser a opção mais viável. Para além do mais, os recursos do Mar do Norte estão a ser consumidos e a Europa não dispõe de outra fonte própria. A UE terá por isso de continuar a envidar esforços para adquirir os recursos de que necessita noutras fontes, para além da Rússia, seja por via marítima,

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O príncipe pretendia seduzir a Rússia para deixar de apoiar Assad, mas quando Putin recusou, o príncipe terá prometido ação militar (Ahmed. 2013). Outra forma de diversificar as fontes será pela procura de novas regiões a explorar. Há um grande potencial de exploração do fundo dos mares, como se tem visto com as descobertas no pré-sal brasileiro e em outras regiões. Uma das soluções para obviar a crescente dependência da Europa de fontes externas será assim, sem dúvida, a descoberta e exploração de novas fontes de abastecimento. Alguns indicadores poderão dar esperança de se poder vir a explorar os mares territoriais europeus do Atlântico Norte, considerando que a exploração do Mar do Norte já entrou em declínio. Apoiando-se nas evidências do pré-sal brasileiro e nas descobertas das costas canadianas do Atlântico, alguns autores e investigadores têm procurado demonstrar que existirão grandes reservas no Atlântico, com que a UE em geral, e os seus Estados-membros em particular, poderiam aliviar a pressão do abastecimento. No entanto, até à data, todas estas expressões desses autores e investigadores são mais impulsionadas pelo desejo de se encontrarem essas fontes do que pela descoberta de provas que confirmem as existências. A descoberta de grandes jazidas de gás natural em Moçambique, por outro lado, constitui também mais uma importante oportunidade de diversificação. Um crescente número de peritos insiste que o maior potencial da Europa para a sua segurança energética, ou seja, uma segurança que combina fiabilidade e custos baixos, poderá residir no gás natural retido em camadas de xisto debaixo da maior parte do continente (Per Concordiam staff. 2013: 52). Esta parece ser uma das mais promissoras alternativas aos fornecimentos tradicionais e que diminuiria muito a drenagem de capitais para fora do espaço europeu, usados principalmente para comprar energia.

Os desequilíbrios de ordem financeira e do tecido social interno

Há uma outra questão muito relevante para a segurança energética. Tanto nos países de origem como nos países de trânsito, como mesmo nos países importadores, há necessidade de estabilidade social e política para que o nível de segurança do aprovisionamento seja o adequado. Nos destinos do consumo, no que diz respeito ao aprovisionamento, os desequilíbrios de ordem financeira e do

tecido social interno constituem também relevantes desafios à segurança energética da Europa (Rodrigues, Leal, e Ribeiro. 2011: 13). No campo da ordem financeira, a crise atual é reveladora: a contração das economias na zona euro, a necessidade de intervenção em alguns países mais afetados pela crise, as falências de empresas e as fugas de capitais para refúgios mais seguros provocam inquietações no que respeita à segurança em geral, e à segurança energética em articular.O tecido social da União Europeia também está a sofrer danos com a crise mundial. O princípio da solidariedade e a noção de um destino comum europeu já não são faróis da política dos Estados-membros. Daqui advêm crises profundas nas sociedades que podem alterar a ordem pública, a segurança dos Estados e mesmo a segurança da Europa. Nos países fornecedores, a necessidade de boa governação e respeito pelo Estado de Direito levam à necessidade de fortes investimentos nesta área, especialmente na ajuda ao desenvolvimento. Também nos países de trânsito é essencial a estabilidade social e política que, a não existir, terá de ser fomentada através de planos de construção, de apoio ao desenvolvimento, de reforço da interdependência entre segurança e desenvolvimento. Em conclusão, vemos assim que a regulação energética é uma questão que se desenvolve nos corredores de Bruxelas, mas de certo modo titubeante, pois os interesses das grandes corporações são dificilmente prejudicados por iniciativas de pequenos Estados-membros. Já as potências mais fortes da União, dispondo das suas próprias empresas de energia, ou onde estão sedeadas algumas as maiores empresas internacionais, agem de acordo com os seus interesses, não tendo vontade de se submeter a interesses menores dos Estados menos relevantes no mercado da energia.A produção de políticas eficazes de regulação energética, tanto ao nível da UE como dos 28 Estados isoladamente, não é um processo simples e claro, carecendo muitas vezes da necessária transparência. Mas o que é claro é que a energia proveniente de hidrocarbonetos escasseia cada vez mais, pelo que e necessário desenvolver políticas de economia, de rentabilização da produção, do transporte e distribuição, do consumo e, além disso, de se proteger a apoiar o desenvolvimento de tecnologias de produção de energia alternativas, ao mesmo tempo que se aplicam técnicas e métodos de redução do consumo.

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3. Como garantir a Segurança Energética

Se por um lado existem problemas crescentes com a aquisição e distribuição de energia, por outro há que evitar o consumo excessivo e a drenagem de recursos financeiros levados pela crescente importação de energia. Uma das soluções que de imediato pode ocorrer quando se pensa em segurança energética é dispor de meios de segurança, próprios ou contratados que possam segurar as instalações de extração, acondicionamento, transporte, distribuição e consumo de energia. Conforme afirmado num relatório elaborado por Paul Gallis para o congresso norte-americano, o desenvolvimento de transporte e de instalações para recolha de gás de fornecedores distantes, como a Nigéria, para a Europa, poderia ser uma alternativa. Conjuntamente com o desenvolvimento de novos gasodutos e oleodutos, seria de considerar que países aliados da OTAN se disponibilizassem para providenciar segurança a infraestruturas de energia em períodos de inquietação ou de conflito em países produtores e de trânsito (Gallis. 2013: 4).No entanto, para países como a Ucrânia ou a Turquia, tal acordo seria como que um golpe político e económico de vastas proporções, afirmava Robert Bensch, conselheiro de energia do primeiro-ministro ucraniano, citado num artigo da versão em linha do jornal britânico Belfast Telegraph a 24 de Outubro de 2013 (oilprice.com analysts. 2013). Para a Ucrânia, o gás natural é a chave para a sua independência energética, afirmam os analistas da Oilprice. E para estes peritos, o gás é para a Turquia a forma de se tornar um dos mais importantes entrepostos de energia entre o Médio Oriente e a Europa.O que é um facto é que a Europa necessita de energia. Apesar de, a nível interno, ser necessário um grande esforço na regulação do consumo, para garantir o aprovisionamento é necessário uma diplomacia económica eficaz, um conjunto de alianças, o apoio ao desenvolvimento dos países fornecedores e o reforço da PCSD. Analisa-se cada um destes aspetos de seguida.

Uma diplomacia económica eficaz

Uma diplomacia económica que dedique especial atenção à questão de formulação adequada de acordos com países fornecedores é essencial

para que a União Europeia e cada um dos seus Estados-membros não fiquem reféns de uns poucos fornecedores que assim detêm a capacidade de imporem a defesa dos seus interesses, mesmo contra o interesse dos europeus. Esta é uma área das relações externas que deverá ser cuidada com especial atenção, para se evitarem danos que poderão ocorrer devido a questões menores que poderão até terminar de forma abrupta com relações estratégicas privilegiadas com Estados fornecedores.Num artigo de 2007, Catarina Leal chamava a atenção de que a diplomacia económica tinha passado a ser perspetivada de modo diferente, pois os “Estados passaram a concentrar-se no apoio às suas empresas ou na atração de empresas estrangeiras para o seu território”. O que parece ter vindo a acontecer, e os poucos anos decorridos sobre aquele texto parecem ter confirmado, é que os lugares onde se exercia a diplomacia de modo tradicional se têm vindo a alterar, ou como escrevia Leal, “transformaram-se gradualmente em áreas de apoio às atividades económicas no exterior, em particular nas empresas” (Leal. 2007: 217). Então para onde deve a UE dirigir os seus esforços de diplomacia económica, especialmente no que diz respeito à obtenção de vantagens extras para a segurança energética? Em primeiro lugar, deve ser dada prioridade ao estabelecimento de acordos fortes com os países recentemente chegados ao clube dos produtores de energia, como o Brasil, Angola, os países ribeirinhos do Cáspio saídos da União Soviética, o Sudão do Sul, Timor Leste, etc. Neste grupo podem incluir-se também países como Moçambique, onde foram descobertas enormes reservas de gás natural. Por último, a UE deverá reforçar as suas ligações com os seus fornecedores habituais, sejam países europeus não UE – Noruega, Rússia, Ucrânia –, ou países do Magrebe, do Médio Oriente, subsarianos e outros, como a Turquia, que se poderá tornar a maior plataforma giratória de entrada na UE de combustíveis fósseis – especialmente gás. E como poderá concretizar a utilização da diplomacia económica nesses países para reforçar a sua segurança energética? Se por um lado a componente armada (a PCSD) deve ser vista como mais uma ferramenta da política externa da UE, por outro lado, o real contributo da UE para esses países será o apoio ao desenvolvimento e todos os processos associados, como a reforma do Estado, a promoção dos processos eleitorais, a reforma do setor de segurança, etc.

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Um conjunto de alianças

Deverá ser também preocupação da UE e dos seus Estados-membros desenvolver, manter e reforçar as alianças necessárias à garantia de um fluxo energético para a Europa sem sobressaltos. A segurança dos fornecimentos tem de ser garantida através da afirmação pragmática de força e de capacidade de apoiar militarmente os países fornecedores. Também a existência de uma forte capacidade militar é dissuasora de tentativas de romper contratos de fornecimento de energia. Mas a manutenção e mesmo o reforço das alianças tradicionais dos Estados-membros da UE, e da UE como um todo, não se pode restringir à questão dos meios de segurança e defesa, apesar de estes serem vitais para se assegurar funções como a produção, o transporte e a distribuição de energia. A ligação da Europa à OTAN, por exemplo, poderá evoluir para que as questões de segurança energética passem a fazer parte das obrigações de defesa comum, embora alguns analistas considerem ser ainda prematura a OTAN evoluir para adotar tal tipo de missões.Não pode deixar de ser importante o vislumbrar-se de novas oportunidades para a Europa desenvolver laços de cooperação no âmbito da segurança e defesa com outras áreas e países, para além da OTAN, seguindo o exemplo de grande atores como os EUA, que mantêm ligações a alianças de segurança e defesa fora do espaço euro-atlântico, que operacionalizam acordos na área económica, que levam a cabo projetos para apoio ao desenvolvimento, especialmente junto de países ou regiões onde se localizam reservas importantes de recursos energéticos.

Apoio ao desenvolvimento dos países fornecedores

Embora possa parecer que em países fragilizados seja mais fácil obter recursos energéticos baratos, na verdade as situações de insegurança e de subdesenvolvimento aumentam os riscos e obrigam a um maior investimento em estruturas de segurança para apoio a extração e encaminhamento dos recursos energéticos. Os países fornecedores, especialmente os que mais recentemente entraram nesse clube, necessitam de grande apoio ao desenvolvimento, como em África. Esse apoio, baseado numa abordagem da relação entre segurança e desenvolvimento,

é uma garantia de continuidade de fornecimento e de preservação dos contratos de fornecimento. A Europa terá de competir com outros grandes atores da cena internacional, no que diz respeito à execução de projetos de apoio ao desenvolvimento de países que tradicionalmente se encontram sob influência de grandes potências, como os países do Cáspio.Conforme referem Rodrigues, Leal e Ribeiro, é pretensão da Rússia continuar por todos os meios a forçar os países ribeirinhos do Mar Cáspio a ficarem cada vez mais sob o seu controlo, no que diz respeito à gestão dos recursos energéticos da bacia desse mar, como forma de equilibrar, no futuro próximo, “a entrada na fase de maturidade das suas regiões energéticas tradicionais” (Rodrigues, Leal, Ribeiro. 2011: 82).A UE já desenvolve projetos de apoio no âmbito da sua política de vizinhança. Para além disso, muito Estados-membros têm vindo a desenvolver políticas bilaterais de apoio ao desenvolvimento junto de países terceiros amigos e ex-colónias. Falta fazer, ao nível de Bruxelas, a integração desses esforços sob a capa de uma grande estratégia europeia que, ao mesmo tempo que defende os interesses locais de cada Estado-membro, aproveite as sinergias criadas com essa integração no sentido de melhor tirar partido dos recursos energéticos disponibilizados. Reforço da PCSD

O reforço da PCSD poderá aumentar a capacidade de a UE garantir a sua segurança energética? Esta ideia já foi aflorada acima, mas é agora a altura de lhe dedicar mais algumas linhas. É um facto que os grande atores internacionais que se movem na arena dos combustíveis fósseis dispõem de capacidade militar de relevo, tal como a Arábia Saudita e a Rússia, já para não se referir o potencial militar dos EUA. Portanto, parece que no mundo real o que conta é a capacidade de defender os seus recursos, conjugando esta atitude com a capacidade de dissuasão. Os países em desenvolvimento onde existem recursos energéticos avultados, já conhecidos de há muito ou recentemente postos a descoberto, poderão necessitar de apoio para garantirem a estabilidade política e de segurança e tal necessidade poderá vir a ser colmatada com a presença de forças militares, como ficou demonstrado, pela recente intervenção francesa (e depois da UE), no Mali, e como parece estar

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a acontecer na República Centro-Africana. Por outro lado, a falta de capacidade de intervenção da UE em zonas ou países onde se joga o jogo da energia poderá fazer com que fique muito vulnerável e dependente de outros atores internacionais, como se viu na Líbia e como se está a assistir na Síria, e como a atual crise na Ucrânia revela tão nitidamente. Em jeito de conclusão, vimos assim que se pode identificar um conjunto de medidas que garantam e reforcem a segurança energética na União Europeia. Para além da utilização imediata de meios mais “musculados” para garantir a segurança das fontes, do transporte, do armazenamento e da distribuição, ou simplesmente para a dissuasão, existem outros mecanismos muito eficazes para reforçar a segurança energética. A Europa deve continuar a empenhar-se numa diplomacia económica eficaz e apostar especialmente, neste âmbito, em desenvolver e reforçar os seus laços com os países produtores de recursos energéticos. Mas não deve ser negligenciada a promoção de alianças e acordos da UE com outros parceiros internacionais, pois a UE deve estar sempre atenta e disposta a promover estes tipos de ligação com quaisquer atores relevantes para o reforço da sua segurança económica. Assim, a ligação à OTAN é fundamental, especialmente se esta vier a desenvolver mecanismos de segurança energética, como alguns aliados já requerem. Um outro aspeto a considerar é a promoção de projetos de apoio ao desenvolvimento juntos dos países que recentemente chegaram ao grupo dos produtores de hidrocarbonetos. Uma aposta forte nesses países, concomitantemente com a assinatura de acordos de exploração e aquisição de combustível, trará muitas vantagens à UE se esta souber delinear e executar uma estratégia que utilize as sinergias resultantes da união de esforços dos seus membros. O reforço da PCSD é também considerado um fator de garantia da aquisição de recursos energéticos necessários à UE.

Notas finais

A União Europeia tem um problema de energia, especialmente no que diz respeito ao seu aprovisionamento e à regulação do seu consumo. O que é um facto é que a Europa necessita de energia, as fontes energéticas estão cada vez mais instáveis, as rotas estão cada vez mais inseguras e a PCSD não tem atualmente capacidade para que a UE seja de facto um fornecedor

de segurança aos Estados produtores. A Europa poderá, num futuro mais ou menos longínquo, ficar em risco de perder o acesso aos recursos quando estes se tornarem escassos se não puder garantir a segurança das fontes. Apesar de a nível interno ser também necessário um grande esforço na regulação do consumo, pra garantir o aprovisionamento será necessário uma diplomacia económica eficaz, um conjunto de alianças, apoio ao desenvolvimento dos países fornecedores e reforço da PCSD.Para fazer face a todos estes desafios, existem várias abordagens para reforçar a garantia de segurança energética da UE. Por um lado, a União tem de continuar a desenvolver uma diplomacia económica eficaz que sublinhe as vantagens da relação com os países produtores de energia. Também tem de valorizar e reforçar o conjunto de alianças a que pertence, com especial relevo para a OTAN, mas não negligenciando as oportunidades de estabelecer laços com os atores mais relevantes da cena internacional no que concerne à energia. Em terceiro lugar, deve continuar os esforços de apoio ao desenvolvimento, especialmente nos países mais frágeis, mas dispondo de reservas energéticas no subsolo e que a UE possa adquirir. Por último, o reforço da PCSD tornará a UE um ator fornecedor de segurança e capaz de exportar essa capacidade para as zonas e países onde seja necessária, evitando tornar-se irrelevante nos processos de pós-crise onde muitas vezes são estabelecidos os grandes contratos de exploração de recursos energéticos.

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Trilhos da Política Externa russa: focos de tensão na vizinhança próxima. O caso da Ucrânia.

Maria Raquel Freire (Universidade de Coimbra)

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IntroduçãoA política externa russa tem consolidado as suas matrizes de base desde o final da União Soviética, como expresso nos vários Conceitos de Política Externa adotados, 10documentos de referência geralmente apresentados no primeiro ano em exercício de um ciclo presidencial. Desde o primeiro Conceito de Política Externa publicado em 1993 por Boris Ieltsin, até ao mais recente, que data de 2013, são visíveis tendências que merecem destaque, para além da consolidação de alinhamentos. Estes últimos prendem-se essencialmente com o cariz pragmático e multivetorial da política externa russa, num quadro de afirmação da Federação Russa no sistema internacional como uma grande potência. Quanto a tendências, estas demonstram um processo gradual de internalização do estatuto da Rússia como grande potência e de leitura do sistema internacional de forma diferenciada após a guerra na Geórgia em 2008: a multipolaridade já não interpretada numa lógica de contrapeso aos Estados Unidos da América, mas como marca sistémica de ordenamento internacional. No documento mais recente de política externa, este conceito passa a ser denominado de policentrismo, reforçando o posicionamento da Rússia num ordenamento plural, em torno de vários polos diferenciados. Este é o quadro de base que informa esta análise relativa aos trilhos de política externa russa, a como esta tem evoluído e ao modo como a crise na Ucrânia se insere nas políticas e práticas que sustentam a política externa russa. Deste modo, o texto faz o mapeamento da evolução da política externa russa em termos concetuais, ilustrando como esta vai ganhando substância em diferentes contextos, e localizando-a num quadro de interligação das dimensões interna e externa de análise, bem como de adição de elementos intersubjetivos, como a questão identitária, essenciais à compreensão das dinâmicas associadas à política externa russa na sua concetualização e implementação. O texto analisa a questão ucraniana sob uma perspetiva de política externa russa, procurando desempacotar linhas de ação e reação que têm estado presentes no discurso russo, argumentos e justificações, bem como críticas. O artigo termina com algumas breves considerações sobre trilhos a percorrer.10 Foreign Policy Concept (1993) Russian Federation. Janeiro. Foreign Policy Concept (2000) Russian Federation. Approved by the President of the Russian Federation V. Putin, 28 junho, disponível em http://www.fas.org/nuke/guide/russia/doctrine/econcept.htm, consultado em 2 março 2011. Foreign Policy Concept (2008) Russian Federation. Approved by Dmitry A. Medvedev, President of the Russian Federation, 12 julho, disponível em http://www.mid.ru/ns-osndoc.nsf/1e5f0de28fe77fdcc32575d900298676/869c9d2b87ad8014c32575d9002b1c38?OpenDocument, consultado em 30 março 2011. Foreign Policy Concept (2013) Russian Federation. Approved by V. Putin, President of the Russian Federation, 12 fevereiro, disponível em http://www.mid.ru/brp_4.nsf/0/76389FEC168189ED44257B2E0039B16D, consultado em 10 de março de 2014.

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Política externa russa: que trilhos?

A política externa russa é entendida aqui como parte integrante da relação bidirecional interno/externo e do modo como esta influencia a definição e implementação de políticas. Isto significa que não existe um desencontro entre o contexto doméstico e o contexto externo onde se formulam e projetam políticas. Significa ainda que a relação entre estes contextos não é necessariamente simétrica, podendo haver prevalência das condições domésticas ou um entendimento de que é o sistema internacional que mais afeta o conteúdo da política externa. No caso da Rússia, se na primeira década pós-Guerra Fria o peso do contexto doméstico era evidente refletindo um entendimento de que só um país consolidado, estável e com registo de crescimento interno pode aspirar a ter um papel mais ativo e interventivo no sistema internacional; já depois de Vladimir Putin ter assumido a presidência (o que acontece em 2000) e face a um contexto diferenciado após os anos conturbados iniciais do período de transição pós-União Soviética, gradualmente acentua-se o entendimento na Rússia de que o país regista índices de crescimento estáveis e a situação política interna é favorável a um reposicionamento externo diferenciado. A inversão no peso relativo destas duas dimensões merece ser sublinhada, na medida em que após 2008, e em particular na adenda que é feita em 2012 ao conceito de política externa, e na sua versão mais atual de 2013, a Rússia se afirma já como consolidada internamente, pelo que o sistema internacional é entendido como marcando o pano de fundo na agenda russa. Esta leitura permite uma atuação mais ativa da Rússia nos assuntos internos, de acordo com os objetivos fundamentais de política externa, que analisaremos em seguida.A política externa multivetorial russa traduz-se em vetores geográficos de importância estratégica para a Rússia, com o espaço pós-soviético como central nesta configuração. Definido inicialmente como ‘estrangeiro próximo’, expressão que perdeu peso, nos vários documentos são comuns as referências a ‘interesses vitais’ russos na área, ‘prioridade máxima’ na política externa russa e ‘importância fundamental’ deste espaço para Moscovo. Este é um elemento na política externa que se mantém presente desde o Conceito de 1993 até aos dias de hoje. As relações a ‘ocidente’ incluindo a União Europeia (UE), a Organização do

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Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e os Estados Unidos da América (EUA), surgem a par das relações com o ‘oriente’, onde a China, Índia e organizações como a Organização de Cooperação de Xangai têm um lugar fundamental. Este segundo vetor de política externa consolidou-se de forma bastante equilibrada em termos da sua importância relativa para Moscovo, mas não deve ser descurada a oscilação de que foi alvo, com uma aproximação muito clara a ocidente nos anos imediatos ao final da Guerra Fria que acaba por dar lugar a um maior equilíbrio com a dimensão asiática, que tem recentemente adquirido um peso relevante na agenda de política externa. O conceito de 2013 refere explicitamente as novas dinâmicas na região Ásia-Pacífico onde a Rússia se pretende mais ativa e um parceiro fundamental nesta região alargada, e se está a posicionar como ator de ligação entre ‘ocidente’ e ‘oriente’. Segue-se o Médio Oriente, que tem ganho importância na agenda de política externa russa, com a Síria e a Líbia a constituírem os casos mais paradigmáticos em termos do envolvimento russo, no contexto mais lato da denominada ‘Primavera Árabe’. De facto, esta área sempre foi alvo do interesse russo, por questões essencialmente energéticas, de comércio de armas e de posicionamento geoestratégico. O conflito israelo-palestiniano tem também sido acompanhado pela Rússia, membro do Quarteto que procura mediar o conflito e apoiar o processo de desenho de uma solução pacífica para o diferendo. A alteração no status quo com as alterações que se começaram a verificar no contexto da ‘Primavera Árabe’ foi inicialmente interpretada com cautela e uma manifestação mínima da parte da Rússia, muito centrada num discurso de retorno à normalidade e de proteção de diásporas. No entanto, o efeito contágio que se fez sentir e as mudanças na alteração de posicionamentos e relações de poder e influência levaram a um papel mais interventivo da Rússia, especialmente junto dos países onde tinha claramente mais interesses. Pelo que se esta área já era tradicionalmente do interesse russo, tem ganho significado no quadro da sua política externa face aos desenvolvimentos mais recentes. Por fim, e num círculo mais alargado desta política multivetorial encontramos áreas geográficas como África e América do Sul. A penetração russa nestas áreas é ainda pouco significativa apesar de se notar um crescendo nas relações, em particular, a nível político-económico. Este alinhamento multivetorial tem-se mantido ao longo dos anos e, de

algum modo, consolidado no quadro da política russa. No último Conceito de Política Externa (2013), estas linhas estão presentes, com duas alterações fundamentais: a região Ásia-Pacífico ganha novo dinamismo na política externa russa (já presente na adenda feita em 2012), e a Rússia posiciona-se como elemento de ligação entre ‘ocidente’ e ‘oriente’, afirmando-se um parceiro fundamental nesta região alargada. Esta inclusão mais clara desta região na política externa russa prende-se com vários fatores, dos quais a proximidade geográfica e as relações com a China, a presença ativa dos EUA na área, e o historial de relações e as dificuldades em efetivar a parceria estratégica com a UE, incluindo a vertente da diversificação de relações, sobretudo a nível energético, se destacam. Ainda de realçar o facto de a presidência de Dmitri Medvedev (2008-2012) ter contribuído para o reforço da política multivetorial não só nestes termos geopolíticos, mas também introduzindo o que foi denominado um novo ‘vetor’ na política externa russa. Contudo, este assume contornos diferentes ao ser claramente transversal a toda a política russa: um vetor de modernização, com enfoque na investigação, inovação e desenvolvimento tecnológico. Esta ‘política de modernização’ visa responder a problemas estruturais que a Rússia enfrenta, nomeadamente a sua monodependência económica de recursos energéticos, como o petróleo, carvão e gás natural. Esta excessiva dependência de flutuações de preços e qualidade de produção e trânsito de recursos limita a capacidade russa de atuação, limitada por flutuações de preços e quantidades de recursos disponíveis no mercado, a nível internacional. O pragmatismo associado à sua política externa reflete-se também neste entendimento de que a necessidade de diversificação é prioritária, para que a sustentação das suas políticas seja sólida. Na relação interno/externo acima referida, este é um fator que merece necessariamente atenção, e que pode reverter o processo de inversão do peso relativo entre estas dimensões, se o status quo em matéria energética for alterado. Aliados a estes pressupostos surgem as linhas fundamentais que subjazem à decisão e atuação em política externa e que se prendem com o objetivo fundamental de afirmação como uma grande potência. Também já consolidados no tempo, estes princípios têm-se revelado simultaneamente um desafio e uma fonte de justificação para várias ações e reações. Medvedev sintetiza-os de forma muito clara numa

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entrevista que concede em 2008, ficando estes conhecidos como ‘os cinco princípios de Medvedev’. 11Primeiro, o primado do direito internacional traduzido no papel central das Nações Unidas nas questões de segurança internacional. A referência à Carta das Nações Unidas e ao peso do Conselho de Segurança em matéria de manutenção da segurança e estabilidade internacionais têm acompanhado o discurso russo, muito evidente por exemplo na altura da Guerra da Geórgia e novamente com grande preponderância face aos acontecimentos na Ucrânia, e em particular à justificação da situação na Crimeia, analisada mais adiante. O que importa, no entanto, aqui analisar é a ideia que tem estado subjacente a este pressuposto e que passa pela negação à OTAN de um papel principal na manutenção da segurança internacional. Através deste princípio a Rússia tenta diminuir a centralidade da Aliança Atlântica nas questões europeias, no entanto, de forma muito limitada. Neste mesmo alinhamento a proposta de Medvedev de criação de um Tratado de Segurança Europeia que surge em 2008 e vai incluir várias iterações e alterações ao seu desenho, marca claramente um posicionamento de que a Rússia se sente excluída das principais decisões em matéria de segurança europeia. O quadro de relacionamento informado pelo Conselho OTAN-Rússia é claramente entendido como limitado e que a Rússia é mais um entre os vários parceiros aliados OTAN. A proposta do Tratado de segurança Europeia que ficou também conhecido como ‘Helsínquia II’, visava ultrapassar esta questão da exclusão e avançar com um quadro securitário mais inclusivo na Europa, incluindo atores externos, nomeadamente os EUA (não na sua versão inicial, mas já numa primeira versão revista). Tendo ficado em suspenso, e estando sob a alçada da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) qualquer seguimento que possa vir a ser dado a este tema, importa sublinhar o cariz simbólico que esta proposta assumiu no tempo, surgindo em 2008 num quadro de bastante tensão entre a Rússia e o ‘ocidente’, de que a Guerra na Geórgia acabou por constituir o ponto culminante, e demonstrando a vontade russa de uma política inclusiva em matéria de segurança, onde tivesse voz e fosse escutada. Um segundo princípio define a ordem internacional como multipolar, 11 Medvedev, Dmitry (2008) ‘Interview given by Dmitry Medvedev to Television Channels Channel One, Rossia, NTV’, President of Russia Official Web Portal, 31 agosto. Disponível em http://archive.kremlin.ru/eng/text/speeches/2008/08/31/1850_type82912type82916_206003.shtml, consultado em 2 de Março de 2011.

estando esta até cerca de 2008 muito centrada numa política de contrapeso aos EUA enquanto potência hegemónica dominante no sistema internacional e promovendo mesmo uma ordem unipolar. Com esta linha, a Federação Russa promove um ordenamento internacional diferenciado, centrado numa ordem multipolar. Este discurso altera-se, no entanto, após os acontecimentos na Geórgia em 2008 assumindo-se a multipolaridade nos documentos fundamentais como o status quo e sendo a Rússia um dos atores de relevo num quadro diverso. De realçar ainda que no conceito mais recente de política externa a multipolaridade é renomeada de ‘policentrismo’, conferindo-lhe uma leitura mais clara do posicionamento de Moscovo enquanto parte relevante num sistema composto por estes diversos polos, onde os EUA, a UE, a China, e naturalmente a Rússia, entre outros, são parte integrante. O reconhecimento do estatuto de grande potência no sistema internacional tem sido também uma preocupação da política russa, 12uma vez que para além de aspetos materiais, como o assento permanente no Conselho de Segurança ou o facto de deter capacidade nuclear, fazem parte destes elementos intersubjetivos, donde o reconhecimento da Rússia como tal pelos seus pares no sistema internacional é um aspeto fundamental. Esta perceção e entendimento têm sido registados na forma como a Rússia tem participado em algumas questões fundamentais que têm surgido em matéria de política internacional, como por exemplo os acontecimentos na Síria, e o modo como outros atores se têm relacionado com a Rússia reconhecendo o seu papel de relevo e a necessidade de encontrar entendimentos para que as respostas possam ser partilhadas e, desse modo, mais coesas. Nestes processos, o reconhecimento mais ou menos explícito do lugar e presença da Rússia no sistema internacional é entendido em Moscovo como central na sua afirmação como grande potência. Terceiro, a definição de política externa com base em princípios não-confrontacionais e de não-isolamento. O entendimento de que a interdependência é uma realidade, em termos energéticos e comerciais, mas também ao nível da mobilidade de pessoas, cultural e outros, serve de base a este princípio. A ideia subjacente é a de promoção de relações

12 Ver sobre a questão do reconhecimento internacional, Freire, Maria Raquel (2011) ‘USSR/Russian Federation Major Power Status Inconsistencies’, in Volgy, Thomas; Corbetta, Renato; Grant, Keith e Baird, Ryan (org.), Major Powers and the Quest for Status in International Politics: Global andRegional Perspectives. Basingstoke: Palgrave Macmillan.

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de boa vizinhança e para além desta, sendo de sublinhar dois aspetos principais. Por um lado o reconhecimento de que, particularmente em termos energéticos, prevalece uma dependência mútua das relações da Rússia em particular com a UE. A dependência clara do mercado europeu da energia russa é igualada pela necessidade de mercados de abastecimento seguros para a Rússia, de que a UE tem sido um parceiro de confiança. Por outro lado, e este ponto vai-se relacionar muito claramente com os próximos dois princípios, prende-se com a leitura de que apesar da política russa não visar confrontação, sempre que os seus interesses vitais estejam ameaçados ou haja perceção de ameaça nesta área geográfica que é o espaço pós-soviético, Moscovo reagirá. Esta leitura tornou-se já evidente na retórica mais assertiva face ao alargamento a leste de organizações como a UE e a OTAN, mas muito em particular esta última, e mais ainda no caso da Geórgia em 2008 e da Ucrânia em 2013/2014. Parece claro que na sua esfera de influência primária a Rússia se posicionará sempre no sentido de defesa dos seus interesses, fazendo uso da força ou de outros instrumentos de política externa mais interventivos e invasivos caso se justifique. De algum modo, esta pode ser lida como uma política pragmática agressiva, mas num contexto de defesa e manutenção da sua área de influência como central aos próprios interesses fundamentais de política externa. Quarto, o princípio de proteção das diásporas russas, assumindo que as minorias russas são uma parte importante da população que deve ser acautelada e protegida. Este princípio é antigo e mantém-se desde o primeiro Conceito aprovado como sendo um elemento fundamental. A proteção dos direitos destas populações tem sido entendida como uma fórmula justificativa de intervencionismo. O que se está a passar na Síria, ou os comentários russos à situação no Egito, e mais a leste o que se passou na Geórgia e a situação que atualmente se vive na Ucrânia, marcam claramente este alinhamento. O posicionamento russo nesta matéria tem sido claro e, especialmente no seu espaço vital, este argumento tem assumido contornos explícitos ao nível da retórica e da atuação russa. Por fim, o quinto princípio centra-se no que é denominado de ‘regiões prioritárias’ e no reconhecimento muito claro de áreas de influência. Este princípio remete para a multivetorialidade da política externa russa e do espaço pós-soviético como área de intervenção preferencial. Remete

ainda para o facto do entendimento em Moscovo ser o de que qualquer ingerência externa neste espaço que contrarie ou ameace os interesses russos será sempre objeto de resposta, mais ou menos agressiva. De novo, os exemplos da Geórgia e da Ucrânia ganham aqui visibilidade.Em suma, estes princípios norteadores da política externa russa têm-se conjugado numa leitura simultaneamente pragmática e assertiva do posicionamento da Rússia num sistema descrito como policêntrico, e onde o espaço pós-soviético se assume como área prioritária de influência russa. A acentuação no Conceito de Política Externa de 2013 da dimensão de atuação externa deve aqui ser sublinhada, contribuindo para melhor se perceber o posicionamento de Moscovo face à Ucrânia e a forma como a Rússia procura justificar a sua atuação neste caso em particular. De facto, o processo de desenho, decisão e implementação de política externa está assente nestes pressupostos de base e no objetivo estratégico de afirmação da Rússia no sistema internacional, policêntrico na sua configuração, e onde a Rússia pretende o seu reconhecimento explícito como um ator fundamental relativamente às questões mais prementes em matéria de segurança internacional, lidas de forma abrangente (i.e. segurança militar e estratégica, mas também segurança económica, segurança energética e mesmo segurança humana).A adicionar a esta análise parece ainda fundamental sublinhar a dimensão intersubjetiva e mais ideacional já referida no quadro da política externa em matéria de reconhecimento internacional, 13mas que passa ainda, entre outros, por uma questão fundamental: a questão identitária. Desde o final da União Soviética esta tem sido uma questão que permanece na agenda russa e que continua em definição. Genericamente a leitura de uma Rússia europeia prevalece, mas as linhas identitárias euroasiáticas têm ganho relevância, e os entendimentos de base nacionalista de que a Rússia é única e tem uma identidade muito própria, que se autodefine na própria ligação que faz entre leste e oeste, estão também presentes no discurso e imaginário russos. A perceção identitária é fundamental nas leituras e interpretações do que a Rússia é de como se posiciona, bem como do que aspira a ser e como se deve posicionar para tal. A construção identitária com base num passado imperial, da Rússia dos

13 Ver Freire, Maria Raquel (2012), ‘Russian Foreign Policy in the Making: The Linkage between Internal Dynamics and the External Context’, International Politics, vol.49, n.4, pp.466-481; Freire, Maria Raquel (2013), ‘O fim da URSS e a nova Rússia: alinhamento de política externa e a sua vizinhança próxima’, in Pedro Aires de Oliveira (org.), O Fim da URSS, a Nova Rússia e a Crise das Esquerdas. Lisboa: Edições Colibri.

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czares, e da superpotência que a União Soviética representava, traduz--se nas aspirações à consolidação do estatuto de grande potência, que a Rússia reclama já para si. Esta grandiosidade é uma marca identitária que permanece no tempo, independentemente das circunstâncias e contextos. Quanto ao processo de definição contínuo da sua identidade, parece claro da leitura de documentos fundamentais que a conjugação de elementos europeus e asiáticos permanecem presentes no entendimento identitário da ‘nova Rússia’, talvez com prevalência da dimensão europeia na sua concetualização. Abrindo um pequeno parêntesis, deve ainda ser referido que a Rússia tem socializado políticas e práticas no quadro ocidental de atuação, nomeadamente através da sua integração no Conselho da Europa, da sua participação na Parceria para a Paz no quadro da Aliança Atlântica, e mesmo do Conselho OTAN-Rússia, e do seu envolvimento no âmbito dos acordos com a UE, incluindo a sua participação em missões de paz europeias, entre outros. Apesar da internalização de normas ser limitada, deve ser sublinhada esta componente como um fator importante que acompanhou o desenvolvimento das próprias políticas russas desde o final da Guerra Fria, e que naturalmente tem impacto na sua identidade. Após o mapeamento das principais linhas de ação e reação da política externa russa, em que princípios assentam e quais os trilhos percorridos em particular após a desagregação da União Soviética, a secção que se segue analisa a área definida como preferencial em termos de atuação e influência, de acordo com a política multivetorial russa, destacando o caso ucraniano como foco de tensão e dissensão neste espaço. A denominada ‘vizinhança partilhada’ entre a UE e a Federação Russa, termo aliás contestado por Moscovo, inclui a Bielorrússia, Ucrânia e Moldova, as três repúblicas geoestrategicamente localizadas entre estes dois gigantes – UE e Rússia. Este posicionamento confere a estes estados dificuldades adicionais na gestão das suas relações quer com a UE quer com a Rússia. De facto, desde a sua independência em 1991 a Ucrânia tem prosseguido uma política externa multivetorial onde procura equilíbrios, por vezes precários, entre relações próximas com a Rússia e com a UE. Ora mais próxima de uma ora da outra a escolha nunca foi ou/ou e a política seguiu sempre o pressuposto de e/e, ou seja, mesmo que mais próxima de um dos lados, nunca excluindo o outro e entendendo este equilíbrio como constante e muito necessário ao desenvolvimento do seu projeto nacional

e da sua política externa no quadro geográfico em que está inserida. No entanto, o desenvolvimento de projetos irreconciliáveis no quadro da UE e da Federação Russa numa lógica multilateral, acabou por forçar a Ucrânia a uma tomada de posição difícil nesta lógica de manutenção de opções. As tensões que permaneciam em registo de gestão cuidada acabaram por assumir-se como dissensão profunda e conduziram à situação de grande gravidade política, económica e social que se seguiu à 3ª Cimeira da Parceria Oriental que teve lugar em Vilnius, nos dias 28 e 29 de novembro de 2013, e que se arrasta até aos dias de hoje.

Focos de tensão na vizinhança: o caso ucranianoA escalada de tensão na Ucrânia que se seguiu aos resultados da Cimeira de Vilnius, onde o Acordo de Associação com a UE não foi assinado pelas autoridades ucranianas, demonstrou as profundas divisões internas relativamente ao curso do país na gestão das suas relações com a União Europeia e com a Federação Russa. Face a propostas incompatíveis em termos dos compromissos implicados – união aduaneira com a Rússia e processo de integração económica no âmbito da proposta de Associação com a UE, incluindo uma área de comércio livre profunda e alargada (deep and comprehensive free trade area), a opção ucraniana foi pela não assinatura do acordo com a UE e a aceitação de ajuda económica imediata da Rússia face a uma situação económica de grande fragilidade interna no quadro da crise económica e financeira a nível global. Um movimento de protesto contra a decisão de não assinatura que inicialmente se revelou espontâneo e que saiu às ruas de Kiev numa demonstração de descontentamento com a escolha feita, acabou por ser apropriado e instrumentalizado por diferentes grupos e movimentos, com apoios também diferenciados, e que resultou num alastrar de tensão e mesmo em violência direta. Nesta secção será analisado o posicionamento da Rússia ao longo da crise, procurando perceber os alinhamentos políticos subjacentes e o discurso informador de uma questão que se tem revelado de grande complexidade. Os desafios que a crise ucraniana colocou à política externa russa foram vários. Traduziram-se essencialmente numa alteração de poder em Kiev, na sequência dos acontecimentos que se inflamaram e levaram inclusive à ocupação de edifícios governamentais, bem como à nomeação de um

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presidente interino, não reconhecida por Moscovo. Moscovo afirmou que estes desenvolvimentos não permitiam um reconhecimento de legitimidade às autoridades no poder, incluindo acusações de que os novos representantes políticos ucranianos são ‘extremistas radicais’, ‘nazis indisfarçados’, ‘anti-semitas e neofascistas’ que ‘usurparam poder em resultado de um golpe de estado’. Fica claro que a Rússia não se revê nestas novas autoridades apoiadas pelo ocidente e apoia o Parlamento da Crimeia na sua iniciativa de eleição de um primeiro-ministro pró-russo e no voto de secessão como forma de proteção das populações dos ‘extremistas’ em Kiev que não são representativos da sua vontade. Na sequência destes eventos é convocado um referendo na Crimeia que inclui duas questões principais: a primeira pergunta se está a favor da reintegração da República Autónoma da Crimeia na Rússia como parte constituinte da Federação Russa; e a segunda, se está a favor de restaurar a Constituição da República da Crimeia de 1922 e o estatuto da Crimeia como parte da Ucrânia. O referendo tem lugar no dia 16 de março de 2014, e os resultados são anunciados com 95.5% dos votos favoráveis à união com a Rússia.14 O referendo é duramente criticado no ocidente como ilegal à luz do direito internacional e da Constituição Ucraniana, que no seu artigo 73º refere que ‘qualquer referendo de secessão de parte do território deve contar com autorização de todo o povo ucraniano’. Além do mais, as críticas estendem-se à violação de outros dois acordos fundamentais: a Declaração de Almaty de dezembro de 1991 15onde ficam reconhecidas as fronteiras da Bielorrússia e da Ucrânia, e mais tarde dos restantes estados que vêm a fazer parte da Comunidade de Estados Independentes; e o Memorando de Budapeste de 1994, 16onde se faz novamente o reconhecimento territorial da Ucrânia e fica estabelecida a não-capacitação armada nuclear ucraniana. A Rússia responde de forma dura às críticas afirmando que cumpre o princípio da autodeterminação dos povos e que o referendo constituiu a expressão legal do mesmo. ‘Na Crimeia a questão surgiu de forma poderosa e sem outra forma de compromisso. O referendo foi conduzido

14 ‘Crimea Referendum: Voters “back Russia union”’, BBC News, 16 março 2014.15 Almaty Declaration, 21 dezembro 1991, disponível em http://cis-legislation.com/document.fwx?rgn=4744, consultado em 10 março 2013.16 O ‘Budapest Memorandum on Security Assurances’ é um memorando diplomático assinado em dezembro de 1994 pela Ucrânia, EUA, Rússia e Reino Unido. Ver ‘Budapest memorandums on security assurances, 1994’, 5 dezembro, disponível em http://www.cfr.org/arms-control-disarmament-and-nonproliferation/budapest-memorandums-security-assurances-1994/p32484, consultado em 10 março 2014.

de forma aberta e honesta e o povo da Crimeia expressou de forma clara e convincente a sua vontade: pretendem estar com a Rússia’. E refere ainda que ‘apesar de preferir não citar ninguém, não consigo resistir a ler um excerto de um dos documentos oficiais, neste caso um memorando norte-americano datado de 17 de abril de 2009, onde se pode ler: “As declarações de independência podem, e muitas vezes o fazem, violar a lei doméstica/interna, contudo, isto não significa que haja violação do direito internacional”’. Adiciona ainda ‘eles falam que violamos o direito internacional. Pelo menos lembram-se do direito internacional. Melhor tarde do que nunca’. O tom do discurso e a narrativa de enquadramento legal do referendo torna-se simultaneamente crítico de palavras e ações que seguem padrões duplos, ora em tom crítico ora em tom justificativo, de acordo com os contextos. A falta de coerência é claramente enunciada por Putin na forma como se refere a intervenções anteriores noutros contextos. Este mesmo posicionamento torna-se claro no discurso que Vladimir Putin faz após o anúncio dos resultados do referendo, identificando essencialmente o que entende como vários erros que a Rússia teve de encarar após o final da União Soviética. Devemos aqui relembrar o famoso comentário de Putin de que ‘o final da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século XX’. 17Putin não faz qualquer alusão a intenções de prosseguir um curso no sentido da partição da Ucrânia, referindo mesmo, pelo contrário, que ‘não acreditem nos que dizem que a Rússia vai tomar outras regiões depois da Crimeia. Não precisamos disso’. Apesar do não reconhecimento da anexação da Crimeia, o primeiro-ministro interino ucraniano Yatseniuk procurava assegurar Moscovo de que Kiev não pretende aderir à OTAN e que iria desenvolver todos os esforços no sentido de desarmar as milícias nacionalistas, contribuindo desse modo para uma redução no nível de tensão.Apesar das negociações em Genebra e da Declaração de 17 de abril de 2014 que permitiu acordo quanto ao não recurso à violência, intimidação ou ações provocatórias; condenou expressões de racismo, extremismo e intolerância; propôs-se desarmar grupos de milícias ilegais, retomar controlo sobre edifícios ocupados ilicitamente, bem como locais públicos; e avançou com amnistias a todos os indivíduos envolvidos nos protestos 17 Vladimir Putin citado em Bigg, Claire (2005) ‘World: Was Soviet Collapse Last Century’s Worst Geopolitical Catastrophe?’, RFE/RL, 29 de abril, disponível em http://www.rferl.org/content/article/1058688.html, consultado em 10 março 2014.

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e ocupações, desde que não tenham cometido crimes graves, a sua implementação foi muito limitada. Previa-se a presença de uma missão de monitorização especial da OSCE para apoiar as autoridades ucranianas e as comunidades locais no processo de implementação das medidas acordadas. Todas as terceiras partes, incluindo os EUA, a UE e a Rússia contribuiriam com monitores para este efeito. A declaração visava ainda o estabelecimento de diálogo inclusivo como parte do processo de revisão constitucional, e sublinhava a importância de estabilidade económica e financeira no país para que estas medidas pudessem ser avançadas.18

Os princípios previstos na declaração não foram implementados, tendo inclusive havido problemas sérios com os monitores da OSCE, impedidos de realizarem o seu trabalho (incluindo a detenção ilícita de membros da organização). Quanto à anexação da Crimeia, entendida na Rússia como ‘integração/união’ da Crimeia à Rússia, a situação parece irreversível. A Rússia reconheceu o território como parte integrante da Federação e as leis russas entraram imediatamente em vigor no território. A UE e os EUA condenaram este ato, mas a sua resposta foi moderada, incluindo a adoção faseada de sanções essencialmente dirigidas a indivíduos no poder, próximos do círculo de Putin, em termos de vistos de entrada e do congelamento de bens. O impacto real das medidas sancionatórias adotadas é limitado, constituindo mais uma sinalização e desagrado político do que uma medida efetiva de pressão no sentido de reverter o curso de ação.Neste quadro, a situação no leste do país adensou-se e foram agendados e tiveram lugar novos referendos de secessão. A resposta russa foi moderada e apesar de reconhecer a vontade destas populações, não há menção a qualquer projeto de união e/ou integração destes territórios na Rússia. Merece aqui ser sublinhado o facto de que a gestão por parte de Moscovo destes territórios não-reconhecidos, a que se podem adicionar os casos da Abcázia e Ossétia do Sul, por exemplo, no contexto da guerra da Geórgia de 2008, que não foram integrados na Rússia mas cuja declaração de independência foi reconhecida por Moscovo e têm beneficiado do apoio russo, torna-se insustentável em termos do esforço económico-financeiro implicado. Além do mais, a manutenção da integridade territorial da Ucrânia (não contando aqui com a Crimeia) é do interesse russo na 18 Joint Statement, Geneva Statement on Ukraine, 140417/01, Genebra, 17 abril 2014, disponível em eeas.europa.eu/statements/docs/2014/140417_01_en.pdf, consultado em 10 maio 2014.

medida em que permite a permanência de um estado ‘tampão’ numa zona de intersecção de influências e de fronteiras com a UE e a Aliança Atlântica. A moderação no discurso da Rússia pode apontar para um cenário de acalmia gradual no terreno. A proposta de federalização da Ucrânia pode encontrar, num quadro em que Moscovo mantenha a sua postura de moderação, espaço para funcionar como solução política para esta questão complexa. A autonomia alargada de regiões dentro da Ucrânia significaria a manutenção da integridade territorial do país, mas significaria também a sua real divisão em termos de esferas de influência, coincidentes com as divisões em termos de afinidades históricas e culturais com o mundo eslavo e com o mundo ocidental. Num quadro em que a Ucrânia é de importância reconhecida quer para a UE quer para a Rússia, este parece ser um caminho possível, onde ambas as partes vejam os seus interesses minimamente acautelados, e onde a Ucrânia e o povo ucraniano possam projetar a ideia de estado e a sua consolidação numa perspetiva de futuro. As eleições presidenciais marcadas para 25 de maio, podem constituir aqui um elemento central em termos de reequilíbrios políticos. O desenrolar do processo eleitoral, com alguns limites especialmente na parte leste do país, perante uma postura de ‘diálogo nacional’ de Kiev e de menor intervenção russa, poderá criar aí espaços de entendimento fundamentais à diminuição na violência e ao encontro de trilhos políticos aceitáveis para o desenho da Ucrânia pós-crise. Desenho este que deve passar pela manutenção da integridade territorial do país (excecionando aqui a Crimeia) num quadro de autonomias alargadas, como referido. Mas um quadro que permita efetivamente o restabelecimento da ordem política e da legitimidade da autoridade soberana, bem como a renegociação de relações quer a ocidente quer com a Rússia.

A política externa russa e a crise na Ucrânia: linhas de reflexão

Do exposto parece claro que a questão ucraniana e da Crimeia se assumiu como reflexo direto dos interesses russos na sua área de influência preferencial, contrapondo tentativas de influência externa entendidas como contrárias aos objetivos russos. De facto, três ideias podem aqui ser sublinhadas. Primeiro, o entendimento claro de que a lógica

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intervencionista russa visa a manutenção da sua zona de influência, no que pode ser entendido como uma postura revisionista, num alinhamento defensivo/agressivo. Mais do que uma lógica expansionista territorializada, a Rússia reagiu perante o que entendeu como sendo uma ameaça no seu espaço vital. O facto de a Rússia ser um estado soberanista e as suas ações contrariarem o princípio do respeito pela integridade territorial dos estados e de não ingerência nos assuntos internos de outros estados, não deve de todo ser desconsiderado. De facto, parece claro que a Rússia mantém esta postura como dominante, à exceção de ameaças (reais ou percecionadas) no que define como o seu espaço vital. Assim, esta trata-se de uma ação por reação. Segundo, a situação extremada a que se chegou no caso ucraniano demonstra como os mecanismos de integração informal da Rússia no ocidente e o processo de socialização em curso, incluindo também a maior interdependência entre as partes, não foi efetivamente consolidado nem consubstanciado. O diálogo, o discurso, as cimeiras realizadas, não se traduziram em ação concreta para além de enquadramentos latos de políticas. A implementação destas foi limitada, não correspondendo ao objetivo de consolidação da denominada ‘parceria estratégica’ entre a UE e a Rússia. Como afirma Richard Sakwa, tratou-se em essência de uma ‘paz fria’. 19A necessidade de refundar a relação é premente, e o próprio arrastar das negociações relativas à renovação do acordo fundador da relação é demonstrativo dos limites subjacentes à relação e ao seu conteúdo. Esta leitura parece apontar para a necessidade de avançar para além de palavras e transformar retórica em ação. Por fim, perceber o alcance da crise ucraniana na segurança europeia é fundamental. Como afirma Dmitri Trenin, a Ucrânia afirmou-se como o verdadeiro game-changer nas relações de segurança, com implicações nas reconfigurações do sistema de segurança europeu. 20A Ucrânia é um elemento fundamental na agenda de segurança europeia, tal como o é na agenda russa. Esta reflexão aponta também para o próprio entendimento difuso de Europa e como este pode ser excludente de uma Rússia que se diz europeia. Retomando a proposta do tratado de segurança europeia colocada em cima da mesa por Medvedev, a questão fica em aberto: como

19 Sakwa, Richard (2012) ‘The Cold Peace: Making Sense of Russia’s Relationship with the West’, in R. E. Kanet e M. R. Freire, Russia and European Security. Dordrecht: Republic of Letters Publishing.20 Dmitri Trenin citado em Taylor, Paul (2014) ‘Cold War reflexes return to Europe over Ukraine’, Reuters, 17 março.

redesenhar o sistema de segurança europeia assegurando uma política de inclusão? Talvez só a partir daí possamos repensar efetivamente o modelo de relacionamento com a Rússia numa lógica distanciada de dicotomias reducionistas que retomam quadros de Guerra Fria, ou seja, perspetivando o futuro de forma mais inclusiva e onde o diálogo e a cooperação concertados possam sustentar políticas e ações.

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A política externa da nova Rússia: velhos dilemas e novas asserções21

Sandra Dias Fernandes (Universidade de Minho)

21 Artigo primeiramente publicado em “O fim da URSS, a nova Rússia e a Crise das Esquerdas”, das Edições Colibri, 2013.

“A queda do comunismo eclipsou, talvez, um evento ainda mais definidor de época: a desintegração de uma unidade geopolítica que perdurou por aproximados 500 anos, em comparação com a qual o

reinado do comunismo foi um mero interregno. O balanço geopolítico e estratégico não só da era pós-II Guerra Mundial, mas também de todo o período desde o Congresso de Viena, em 1815, chegou ao fim. A longa

escalada russa de poder do local para o regional, continental e então para o global foi repentina e dramaticamente revertida. A dissolução do

comunismo findou um grupo de problemas associados à confrontação mundial na Guerra Fria, mas a desintegração da União Soviética

levantou questões não menos históricas”22

A perspectiva histórica permite uma compreensão dos elementos de mudança e de continuidade nas relações internacionais, em particular no rescaldo dos períodos de ruptura. É o caso da desintegração do império soviético em 1991. No entanto, o analista depara-se com a necessidade de escolher o período mais adequado a partir do qual poderá melhor decifrar as transformações. Na sua análise história do século XX, Raymond Aron sublinha que “[o] valor dado às perturbações de ontem é obviamente diferente consoante o centro de observação escolhido”.23 No caso russo, deparamo-nos com o seguinte dilema: em que medida precisamos de olhar para a época (herança) soviética para compreender a Rússia de hoje? Em que medida esse período histórico elucida a nova Rússia?A Federação Russa é o principal Estado sucessor à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e posicionou-se de forma atribulada na balança de poder global e regional. Se, por um lado, a política externa russa evoluiu drasticamente desde os anos 1990, apresentando características complexas, por outro lado, o Kremlin delineou uma acção externa cuja intelecção radica também na herança histórica da dissolução do império soviético. Compreender a influência da Rússia em assuntos globais e europeus ganhou novo ímpeto com as presidências de Putin (2000-2008 e 2012-…). Após o governo de Yeltsin (1991-1999), a liderança de Putin marcou uma nova era para a Rússia que introduziu mudanças notáveis na relação com terceiros. A aceitação das consequências do fim da Guerra 22 Richard Sakwa, Russian Politics and Society (New York: Routledge, 2008), 4th edition, 365. 23 Raymond Aron, Une histoire du XXe siècle. Anthologie (Paris: Plon, 1996), 15.

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Fria, durante os anos 1990 e o começo dos anos 2000, foi desafiada. Até então, a Federação Russa aceitava um status quo determinado pela sua posição mais fraca na balança de poder. Com Putin, o Kremlin desafiou a ordem pós-Guerra Fria no sentido de operar um regresso da Rússia ao palco principal das relações internacionais. O nosso contributo tem por objectivo salientar as orientações da política externa da nova Rússia, tendo em consideração a influência de vários ciclos históricos na formação da mesma. A ruptura criada em 1991 é, porventura, o marco fundador com maior impacto. Na primeira parte exploramos as <características da política externa russa numa perspectiva evolutiva desde a primeira presidência de Ieltsin. Na segunda parte debruçamo-nos sobre um elemento definidor do posicionamento internacional russo cuja profundidade histórica remonta ao século XIX. Trata-se da definição de uma identidade russa eurasiática.

A “nova Rússia” na cena global: entre heranças e transições

A política externa russa encontra-se em transição, de forma contínua, desde 1991. É também assinalável o facto da vizinhança russa ser uma preocupação central de Moscovo, tendo no entanto sofrido evoluções. O facto da Comunidade de Estados Independentes (CEI) ter sido criada antes do colapso da URSS é ilustrativo dessa tendência duradoura24. Argumentamos, aqui, que o curso russo se inscreve numa lógica assertiva, consolidado em particular desde que Putin ascendeu ao Kremlin. O “estrangeiro próximo” corresponde aos 14 novos Estados independentes que, com a Federação Russa, formavam a União Soviética. Essa região de interesse vital, ou pelo menos uma esfera de influência, é fundamental na percepção russa de ameaças. Salmon sublinha que o ano de 1991 representou um triplo golpe para Moscovo, por ter perdido a Guerra Fria, o império exterior e o império interior. A perda de territórios e a herança da política externa de uma superpotência (hegemonia regional) influenciaram a reformulação do interesse nacional russo, focando-o no “estrangeiro próximo”25.No entanto, de Ieltsin a Putin, a vizinhança russa tornou-se uma fonte de

24 Raquel Freire, A Rússia de Putin – Vetores Estruturantes de Política Externa (Coimbra: Almedina, 2012).25 Trevor Salmon, ed., Issues in International Relations (New York: Routledge, 2000), 222-242.

dificuldades crescentes para a Federação Russa. Por um lado, o espaço pós-soviético tornou-se mais heterogéneo e Moscovo não só não conseguiu evitar independências indesejadas, como a escalada de conflitos. Freire sublinha que a CEI se tornou “um mecanismo disfuncional, significando que o objectivo russo de controlo e influência se revelou limitado. (…) [A] leitura da Comunidade como objecto dos interesses e da agenda de liderança russa acabaram por ditar o seu marasmo”. 26Por outro lado, a autora caracteriza o espaço pós-soviético como um “mosaico” onde todos os estados vislumbram o mesmo objectivo: um estatuto realçado. Nesse “mosaico”, três perfis emergem: países cooperantes com Moscovo, outros buscando independência, e outros afastando-se da Rússia. 27A evolução da vizinhança russa de forma heterogénea, e pouco controlada pelo Kremlin, conduz Freire a salientar a falta de definição política russa em relação a esse espaço. Apesar das declarações retóricas acerca da importância do mesmo, não existe uma estratégia clara e criadora de estabilidade.No rescaldo da desintegração da ex-URSS em 1991, os constrangimentos internos tiveram um peso assinalável na definição da posição internacional da Rússia. Essa variável explicativa esclarece a ligação entre o legado de Gorbatchev e os mandatos de Ieltsin. Após a dissolução da União Soviética, a preocupação com as reformas e as questões internas, nomeadamente com a viabilidade do novo estado, centrou a atenção de Moscovo para assuntos domésticos. Nesse contexto, a preocupação com a vizinhança, acima mencionada, tornou-se fundamental por razões de segurança. Tratava-se, pois, de garantir a unidade e viabilidade do recém-nascido Estado “Rússia”. As boas relações com o Ocidente também foram priorizadas. Uma vez que a actual Federação Russa nasceu no contexto do fim da URSS, a construção de um Estado nacional unido era muito improvável28. Para criar uma unidade nacional e assegurar a própria existência da Federação, procurava-se o controlo da acção dos movimentos nacionalistas. A sua presidência foi, portanto, marcada pela necessidade constante de compromissos internos.O balanço do período Ieltsin é mitigado, entre uma democracia inacabada, um Estado federal desequilibrado e uma economia abalada

26 Ver capítulo de Raquel Freire neste volume. 27 Idem. 28 Michael Thumann, La puissance russe. Un puzzle à reconstituer? (Paris: Alvik Éditions, 2002), 102.

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(três crises económico-financeiras assolaram o país). A tarefa de Ieltsin era, de facto, colossal: implementar uma democracia e uma economia de mercado, redefinir a identidade nacional e reencontrar um lugar de grande potência na cena internacional29. As dificuldades internas são uma das causas que permitem interpretar certas lacunas e desorientações da sua política externa. O modelo ocidental, político e económico, abraçado por Ieltsin foi desacreditado, deixando os russos na expectativa de um homem forte para repor a “grandeza russa”30. Putin herdou, portanto, do período Ieltsin e procurou alterar este legado. Durante os seus mandatos, o país tornou-se um parceiro mais estável por ter alcançado maior estabilidade interna nos níveis político e económico31, apesar da exacerbação de tensões provocadas pela reafirmação internacional russa (principalmente durante o segundo mandato de Putin) e o problema da sua consolidação democrática32. Bachkatov explica como Putin associou o poder político e o económico a fim de atingir a meta de uma Rússia poderosa e respeitada33. Neste contexto, as relações energéticas têm vindo, de facto, a assumir uma importância estratégica crescente nas relações de Moscovo com a Europa, assumindo vertentes económicas e de segurança. Na óptica de Hadfield, “a energia representa uma fonte de controlo para aqueles que lhe concedem aceder e vender, é uma questão de segurança tanto para fornecedores como para compradores e um instrumento de política externa nas mãos de actores estatais.”34 . O exemplo mais visível é, desde 2006, o caso das “guerras” do gás durante as quais o Kremlin e a empresa com monopólio do gás russo, Gazprom, conjugaram acções económicas (cortes de fornecimento) com objectivos políticos, em países como a Ucrânia e a Bielorússia. Sendo países de trânsito para a União Europeia (UE), certos Estados membros também sofreram consequências com o corte no abastecimento deste recurso natural. Esta situação é explicada pelas principais rotas de gasodutos (e oleodutos), as quais foram projectadas para alimentar os mercados da Europa Ocidental. 29 Annie Zwang e Philippe Zwang, De la Russie de Catherine II à la Russie d’aujourd’hui. 1762-début du XXIe siècle (Paris: Ellipses, 2004), 165. 30 Thumann, La puissance russe, 170 e 208; Zwang e Zwang, De la Russie de Catherine II…), 167. 31 Eugene Huskey, “A Liderança Política e a Luta entre o Centro e a Periferia: As Reformas Administrativas de Putin” in Gorbachev, Yeltsin & Putin. A Liderança Política na Transição Russa, ed. Archie Brown e Lilia Shevtsova, (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004), 206-234. 32 Sakwa, Russian Politics and Society, 472-477. 33 Nina Bachkatov, «Les interactions entre pouvoir économique et politique en Russie», in Où va la Russie ?, ed. Aude Merlin, 137-152 (Bruxelles: Editions de l’Université Libre, 2007), 137-150. 34 Amelia Hadfield, “Energy and foreign policy: EU-Russia energy Dynamics” in Foreign Policy. Theories. Actors. Cases, ed. Steve Smith, Amelia Hadfield and Tim Dunne (New York: Oxford University Press, 2008), 321.

Nestas rotas, destaca-se a centralidade da Rússia tanto como país de trânsito como proprietária dos principais campos de exploração.35 A Rússia é o maior exportador mundial de gás e o segundo maior exportador de petróleo, com reservas consideráveis de ambos os hidrocarbonetos, mas também de carvão. O país tem as maiores reservas de gás natural do mundo e é o terceiro maior consumidor de energia36. Além disso, 80 por cento do gás russo é transportado através da Ucrânia (gasoduto Druzhba) e 20 por cento através da Bielorússia (gasoduto Yamal). Mongrenier destaca as motivações geopolíticas russas que subjazem aos dois projectos de gasodutos submarinos: o Nordstream (sob o Mar Báltico) e o Southstream (no Mar Negro). O objectivo é criar ligações directas com os consumidores finais na Europa Ocidental, evitando os países de trânsito na Europa Central37. As actividades de gás russo são conduzidas principalmente pela Gazprom, empresa estatal acima mencionada. Os oleodutos são propriedade de uma empresa do mesmo tipo, a Transneft, sendo a empresa petrolífera a Rosneft. Esta configuração monopolista não está em consonância com a liberalização promovida pela UE. Hadfield destaca três aspetos que a Rússia considera como elementos de poder no setor da energia: “posse e acesso aos seus vastos recursos (…); posse do pipeline (…) contractos de longa duração que ancoram as exportações russas a um conjunto de importadores europeus garantidos.”38

O uso de alavancagem energética como um instrumento central da política externa revela uma orientação estratégica russa, ao contrário do que tem sido percebido como uma falta de coerência e consistência nas escolhas de política externa do Kremlin. O método utilizado para avançar posições em relação aos países de trânsito, como a Ucrânia ou a Bielorrússia é criticado pela UE (cortes de gás). Durante a segunda crise do gás entre a Ucrânia e a Rússia em 2008, a primeira-ministra ucraniana entendeu que era uma questão política que precisava de ser resolvida com uma maior transparência e liberalização através de contractos directos com a Gazprom e outras empresas39.

35 Os mapas energéticos podem ser consultados no local seguinte: US Energy Information Administration – Independent Statistics and Analysis (EIA)http://www.eia.doe.gov/emeu/cabs/Russia/Maps.html (consultado em dezembro de 2009). 36 EIA, “Russia. Background”, Country Analysis Briefs, May 2008, http://www.eia.doe.gov/cabs/Russia/Background.html (consultado a 3 de junho de 2008). 37 Jean-Sylvestre Mongrenier, La Russie menace-t-elle l’Occident? (Paris: Choiseul, 2009),142-143. 38 Hadfield, “Energy and foreign policy”, 327. 39 Yulia Timoshenko, Speech at the Conference of Yulia Timoshenko, Prime Minister of Ukraine, Brussels, Palais d’Egmont, 10 de Março 2008.

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Moscovo tem usado os seus recursos energéticos como um meio mas a situação de dependência da Europa corresponde, de facto, a interdependência porque a Rússia precisa dos mercados europeus.A dependência da UE em relação ao gás russo é também posta em causa por análises alternativas. Por exemplo, Noël sublinha as dificuldades de abastecimento da Gazprom devido à incapacidade de produção indígena para alimentar os gasodutos e garantir os volumes finais aos consumidores40. Ele não prevê o cenário em que o mercado europeu do gás será cada vez mais dominado pela Rússia41. Considera que “[o] problema para a Europa não é a dependência excessiva do gás russo mas a divisão política decorrente de um mercado fragmentado. Isso dificulta o desenvolvimento de uma política externa comum europeia face a Moscovo”42. A solução que ele identifica para superar esta situação reside na criação de um mercado único do gás que iria criar solidariedade entre os consumidores da UE e criar uma posição unificada perante a Rússia.Para além dos cortes de gás, a energia também tem tido destaque desde 2006 porque a Rússia procura recuperar a renda da produção e distribuição de energia, a qual foi parcialmente gerida por empresas estrangeiras. Por exemplo, no campo de petróleo e gás de Sakhalin-2 (costa do Pacífico) e no campo de gás de Stockman (região do Árctico), Moscovo procurou impedir que as empresas estrangeiras controlassem a extracção e os lucros através da renegociação dos contractos de exploração em condições mais favoráveis para a Rússia. Este passo recente consiste em prevenir que essas empresas se tornem os principais investidores nos campos e expressam também uma vontade nacionalista contra a imposição anterior de políticas económicas frustrantes. Embora o procedimento seja criticado por configurar uma instrumentalização do Estado pelos oligarcas, o mesmo não deixa de ser uma aspiração comum a todos os atores domésticos.A política energética russa advém da adaptação política, económica e social da Rússia, a qual não é facilmente definível. Para caracterizar esse fenómeno, ainda é útil o prefixo “pós”, no sentido em que o passado ainda pesa sobre o modelo híbrido do país nos anos 2000. A Rússia é um actor pós-imperial e pós-soviético, com uma economia pós-liberal e neo-oligárquica. 40 Pierre Noël, “Beyond dependence: how to deal with Russian gas”, ECFR Policy Brief 9 November 2008. 41 Noel, “Beyond dependence”, 3-7. 42 Noel, “Beyond dependence”, 8.

A observação do retorno do Estado russo no sector de energia pode ajudar a ilustrar esses termos. Isso ocorreu principalmente a partir de 2004 e criou um capitalismo de Estado. Em primeiro lugar, o objectivo consistia em recuperar a renda e a sua distribuição, nomeadamente nas corporações Gazprom e Rosneft (ver acima). Essa recuperação aconteceu rapidamente e revela a intenção nacionalista e a rejeição da dependência económica do país, ao contrário da anterior imposição de políticas económicas frustrantes nos anos 1990. Este processo foi realizado através do uso instrumental do Estado pelos oligarcas43. Para Sapir, as elites russas regressaram ao passado, ao período de 1890-1914, quando a sobrevivência do país dependia da sua recuperação industrial e económica44.Primakov analisou a política energética russa e seu impacto externo45. Ele considera que 2006 é um ponto de viragem porque foi o ano culminante do conflito com a Ucrânia e por causa da relação com o operador estrangeiro do campo de Sakhalin-2, acima mencionado. Ele também considera que foi uma disputa entre corporações, a qual acabou por se tornar prejudicial para o Estado russo. A sua interpretação minimiza, assim, o significado político da questão energética a favor das lógicas económicas. Ele argumenta que as limitações impostas por Moscovo são equivalentes às restrições que a UE implementa a fim de garantir a segurança energética. Delcour e Verluise enfatizam que Bruxelas e Moscovo têm tido abordagens divergentes desde 200646. A União persegue a meta de um sector energético transparente e governado pelo mercado, tendo a Comissão Europeia, dirigida por Durão Barroso, procurado desenvolver uma parceria energética com a Rússia. Se, por um lado, essa parceria é considerada como um pilar fundamental para uma política energética comum da UE47, por outro lado, a Rússia procura proteger aquilo que considera ser um sector estratégico para o desenvolvimento da Federação.Salientamos, por fim, uma ambivalência na posição externa que Moscovo tem vindo a aprofundar na última década. Já na era Ieltsin, a Rússia procurou um certo equilíbrio nas suas opções, nomeadamente entre as

43 Cédric Durand, “Entre développementalisme et instrumentalisation de la puissance publique, le retour de l’État producteur en Russie”. CEMI-EHESS, 2007, http://cemi.ehess.fr/docannexe.php?id=1069 (consultado a 10 de março de 2007). 44 Jacques Sapir, “Le « Capitalisme d’Etat » est-il l’horizon historique de la Russie?” CEMI-EHESS, 2007 http://www.cepremap.cnrs.fr/gatti/ARC2/ARC2Sapir.pdf (consultado a 19 de março de 2007). 45 Evgueni Primakov, Le monde sans la Russie? A quoi conduit la myopie politique (Paris: Economica, 2009), 115-133. 46 Laure Delcour e Pierre Verluise, “Regards croisés sur les relations Union européenne-Russie: la dépendance énergétique”, Actualités de la Russie et de la CEI 12 Janeiro 2009. 47 European Commission, Green Paper A European Strategy for Sustainable, Competitive and Secure Energy, COM(2006) 105 final. Brussels, March 8 2006.

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parcerias orientais e ocidentais48. No entanto, com Putin, instaurou-se uma política mais pragmática com vista à defesa dos interesses russos que resultou na afirmação simultânea de duas tendências, porventura incompatíveis: a afirmação de prerrogativas soberanas e a cooperação com o Ocidente. Por um lado, ele reafirmou a soberania no seu “estrangeiro próximo” (ver acima), ao rejeitar interferências nessa região. Por outro lado, o país abriu-se à cooperação. A percepção acerca da vizinhança foi reforçada pelo presidente Medvedev, em Agosto de 2008, quando advogou que a Rússia tem “regiões de interesse especial”, referindo-se implicitamente à Geórgia como país vizinho49. Deste modo, quis sublinhar a legitimidade russa em intervir na Geórgia durante, e após, a guerra russo-georgiana desse ano.A análise da Rússia enquanto potência de status quo no espaço pós-soviético tem sido conduzida de forma abundante nos estudos pós-soviéticos. No entanto, autores como Chaudet, Parmentier e Pelopidas50

destacam-se por expor em detalhe a diferenciação entre os interesses russos no espaço pós-soviético e no espaço global, numa perspectiva nova que explica o comportamento do Kremlin, o qual conheceu transformações significativas desde o segundo mandato do presidente Putin. Os dois casos mais notórios da crescente assertividade de Moscovo encontram-se em dois momentos, acima referidos: nas crises energéticas desde 2006 e na guerra russo-georgiana do Verão de 2008. Os russos desenvolveram “um desejo hegemónico de defender o seu quintal” e “(…) liderar uma política de alianças para mudar o status quo que actualmente é favorável aos atlantistas.”51 A compreensão dos desafios colocados pela competição de vários poderes pelo espaço eurasiático é, ainda hoje, uma das questões fundamentais para a estabilidade global. Do conflito afegão até à extracção de recursos naturais, russos, americanos e outros projectam os seus interesses com lógicas próprias num ambiente complexo.No que concerne a abertura ocidental, são notórios os quadros institucionais de cooperação desenvolvidos com a UE e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) desde 1997. 48 Dale R. Herspring, ed., Putin´s Russia (Lanham: Rowman & LittlefieldPublishers, Inc., 2003).49 Dmitry Medvedev, “Medvedev Sets Out Five Foreign Policy Principles in TV Interview”. Vesti TV, 31 August; BBC Monitoring, translated in Johnson’s Russia List, JRL 2008-163, 2 September 2008.50 Chaudet, F. Parmentier e B. Pelopidas, When Empire Meets Nationalism. Power Politics in the US and Russia. (Surrey and Burlington: Ashgate, 2009).51 Chaudet, Parmentier e Pelopidas, When Empire Meets Nationalism, 155. Retomamos, na segunda parte do nosso contributo, a análise de Chaudet, Parmentier e Pelopidas acerca do impacto da questão ideológica na formação da política externa russa.

A relação bilateral com Washington também perdurou e se aprofundou, nomeadamente no dossier particularmente difícil da redução de armamentos52. No entanto, o Kremlin tem conseguido opor-se a certos desenvolvimentos internacionais, pondo em causa os regimes e a cooperação existentes. As novas doutrinas adoptadas oficialmente desde 2008 assumem a vontade de desafiar a ordem existente e de defender “activamente” os interesses russos. Na mesma linha, Medvedev lançou um repto para um novo tratado de segurança europeu53. No rescaldo da sua divulgação para concorrer a um terceiro mandato presidencial, Putin anunciou, em Outubro de 2011, um ambicioso projecto externo intitulado “União eurasiática”. Esta União visa integrar todos os estados pós-soviéticos, da Bielorrússia ao Tajiquistão, nos campos político e económico54. Embora a sua concretização ainda careça de medidas concretas, a ideia de uma integração regional liderada por Moscovo já levantou preocupações acerca das novas orientações da política externa russa. O posicionamento externo de Moscovo coloca de novo o observador perante uma perplexidade duradoura i.e., o carácter transitório no qual a Rússia ainda se encontra na actualidade.

O debate identitário russo: o “novo eurasianismo”

Sublinhamos, aqui, a importância da formação de uma identidade “eurasiática”, iniciada no século XIX, e retomada no pós-Guerra Fria. Desde os anos 1990, as diferentes opções para Moscovo estavam fortemente relacionadas com a questão da identidade russa. A abordagem russa à sua soberania através do controlo territorial tem, aliás, características únicas na política externa russa, as quais estão ligadas a essa questão identitária. Chaudet Parmentier e Pelopidas explicam este fenómeno através da característica eurasiática e imperial da Rússia55. O neo-eurasianismo mistura a ideia de império com a necessidade de afirmar a nacionalidade e uma civilização peculiar para além das fronteiras russas. No entanto,

52 Sandra Dias Fernandes, Europa (In)Segura – União Europeia, Rússia, Aliança Atlântica: a Institucionalização de uma relação estratégica (Lisboa: Principia Editora, 2006) e Sandra Dias Fernandes, “Time to reassess the European security architecture? The NATO–EU–Russia Security Triangle”. EPIN Working Document 22 March 2009. 53 President of Russia, Speech by Dmitry Medvedev at Meeting with German Political, Parliamentary and Civic Leaders. Berlin, June 5 2008, Press Release, Permanent Mission of the Russian Federation to the EU. http://www.natomission.ru/en/print/46/5/ (consultado em 25 Fevereiro, 2011). 54 Gleb Bryanski, Russia’s Putin says wants to build ‘Eurasian Union’. Reuters (October 3, 2011). http://www.reuters.com/article/2011/10/03/us-russia-putin-eurasian-idUSTRE7926ZD20111003 (consultado em 2 Novembro, 2011). 55 Chaudet, Parmentier e Pelopidas, When Empire Meets Nationalism, 39-66, 99-120.

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em vez da promoção de uma visão e de uma cultura política comuns, o desejo de restauração imperial russo corresponde à nostalgia do passado imperial (em oposição ao predomínio dos Estados Unidos da América). No país, existe uma dicotomia clássica, presente desde o século XIX, que opõe Ocidentalistas a Eslavófilos. O debate entre os defensores das duas vertentes é substanciado, nomeadamente, numa carta de Petr Chaadev que se opunha às orientações europeias da Rússia naquela época56. Esse novo posicionamento para a definição de identidade nacional era defendido por uma minoria. A identidade oficial estava alinhada com as monarquias absolutistas da Europa, as ideias de iluminismo e progresso universal. Esse debate evoluiu e nasceu a vertente do Neo-eslavismo, a qual trouxe o seguinte questionamento: é a Rússia uma vítima permanente dos outros?57. A grande literatura russa também expressou essas divergências. De Pushkin a Dostoievski e Tolstoi, temas como a existência da servidão e o destino (e a independência) política e cultural da Rússia eram abordados. Turgenev é considerado o escritor mais ocidental e europeizado da Rússia no século XIX. No começo dos anos 1840, a jovem elite esclarecida, que havia sido educada de acordo com os valores ocidentais durante o reinado de Nicolau I, regressou à Rússia e discutiu maneiras de modernizar o país.58 Há dois séculos, a complexa definição da identidade russa alimentou a construção e a definição da nação russa. Interessantemente, no pós-Guerra Fria, a Federação Russa ainda se confronta com a mesma questão. A Rússia pós-soviética e pós-imperial oscilou “entre tendências divergentes de ‘normalização’ pós-imperial, de restauração neo-imperialista e de isolacionismo, numa sucessão de fases de abertura, de retracção ou de paralisia”59. Esse debate é útil, portanto, para abordar as várias formulações do interesse nacional russo e as atitudes de Moscovo, nomeadamente em relação à Europa. Mais recentemente, os três antecessores do ex-presidente Medvedev também incorporaram essa complexa oscilação entre as duas orientações. A mistura de influências ocidentalistas e neo-eslavófilas têm-se expressado nas noções de “casa europeia comum” (Gorbatchev), de fervores sucessivos de Ieltsin pró

56 Iver B. Neumann, Russia and the Idea of Europe (Oxford and New York: Routledge, 1996), 28-39. 57 Pascal Lorot, e François Thual, La géopolitique (Paris: Montchrestien, 2002), 130. 58 Para uma análise pormenorizada da formação do “eurasianismo” russo, ver o trabalho de Lorraine de Meaux, La Russie et la tentation de l’Orient (Paris: Fayard, 2010). A autora explica, nomeadamente, como a ideia se formou entre os reinados de Nicolau I e Alexandre II. É de particular interesse a clarificação da evolução da ideia que partiu de uma definição cristã para um significado russo e asiático. 59 Carlos Gaspar, “A Rússia e o alargamento da NATO”, Análise Social, 30, 133 (1995), 709.

e contra o Ocidente, e de pragmatismo e reafirmação da singularidade russa por Putin. O debate acerca da identidade russa é parte das escolhas actuais. Saber se a Rússia pertence à Europa ou se é uma entidade distinta foi um questionamento presente na génese da política externa russa dos anos 1990 e permanece. Nesse contexto fundacional, Putin afirmou a identidade europeia da Rússia na sua declaração sobre os 50 anos da UE. Num discurso proferido em 2007, o presidente afirmou:

“No seu famoso discurso Pushkin, Fyodor Dostoievski ofereceu aquilo a que eu chamaria uma definição política e filosófica da missão europeia

da Rússia: «Ser um verdadeiro russo significa, em última análise, trazer a reconciliação às contradições europeias.» O grande escritor tinha a

perfeita noção de que a Europa jamais encontraria a sua identidade no mundo sem a Rússia, e, ao mesmo tempo, que a Rússia nunca deixaria

de «suspirar pela Europa». Acredito firmemente que a unidade do nosso continente jamais poderá ser alcançada até que a Rússia, na condição de maior estado europeu, se torne parte integrante do processo europeu.”60

Baranovsky propõe uma tipologia dos três paradigmas que sustentam a posição da Rússia em relação à Europa. O “paradigma europeu” enfatiza que a Rússia pertence à Europa, o “paradigma asiático” preconiza uma federação mais próxima da Ásia, e o “paradigma eurasiático” advoga que a Rússia faz parte de um mundo separado que segue as suas próprias regras.61 Carrère d’Encausse também destaca a revitalização do eurasianismo russo após o colapso da ex-URSS, o qual obrigou Moscovo a olhar para o imenso continente asiático para reconstruir o seu poder e a sua esfera de influência62. Na mesma tentativa de decifrar a identidade russa, Prozorov analisa os discursos russos sobre exclusão e auto-exclusão a respeito de suas relações com a UE. Ele sugere que “a Rússia está sujeita a uma alteridade ao mesmo tempo temporal e territorial” e que “a problematização desta alteridade no interior da Rússia leva a uma reafirmação da soberania e, por conseguinte, a uma viragem no sentido da auto-exclusão”63. A vertente europeia da identidade russa é, portanto, 60 Vladimir Putin, 50 years of the European integration and Russia, 2007 http://president.kremlin.ru/eng/speeches/2007/03/25/1133_type104017_120756.shtml (consultado em 25 Março, 2007). 61 Baranovsky, Vladimir, Russia’s Attitudes Towards the EU: Political Aspects. Programme on the Northern Dimension of the CFSP, 2002, 18-21. 62 Hélène Carrère d’Enacusse, La Russie entre deux mondes (Paris: Fayard, 2010), 152. 63 Prozorov é citado por Berg, Heiki and Piret Ehin ed. Identity and Foreign Policy.Baltic-Russian Relations and European Integration. Surrey and Burlington: Ashgate, 2009

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um factor definidor para o país, mas não é o único e materializa-se de forma problemática. A dificuldade em destrinçar as diferentes orientações russas complica a formulação de abordagens cooperativas em matéria de política externa. Lukyanov sintetiza essa complexidade, afirmando que “ninguém consegue articular claramente o que a Rússia quer ser”64. Consideramos que esta observação só tem sentido na medida em que é difícil identificar o interesse nacional de um regime que é democraticamente inacabado. A existência de um sistema de corrupção e de centralização do poder65 tem impacto na formulação do interesse nacional, priorizando os interesses pessoais e corporativistas que estão numa posição de poder. O Kremlin está, portanto, dividido entre uma identidade europeia comum que fundamenta as suas políticas e um curso de acção específico que se baseia na sua posição eurasiática peculiar e na sua história.Mendras esclarece como o debate identitário foi intensificado no final do segundo mandato de Putin66. Ela sublinha que, em 2007 (eleições legislativa e presidencial), o debate político focou dois temas interligados: a sucessão de Putin e a identidade russa. A autora enfatiza que mesmo o tema popular do gás e do poder petrolífero ficou subordinado a uma preocupação pós-Putin, ligada ao fortalecimento do poderio russo e à identidade nacional.Os discursos eslavófilos tendem a exaltar um modus vivendi e um modus operandi próprios aos russos e a desafiar os regimes internacionais existentes. As últimas eleições presidenciais, em 2012, tenderam para a mesma exaltação de singularidade russa, a qual poderá ter impacto numa postura menos cooperativa do Kremlin. Com Shevtsova, sublinhamos que a política externa de Putin tem sido o espelho da sua doutrina para a Federação Russa:

“a Rússia parece alternar entre uma vontade de alinhar com o Ocidente e de antagonizá-lo. Procura montar dois cavalos ao mesmo tempo. A elite política aprendeu a cooperar com o Ocidente mas, em nome da consolidação da nação, tem necessidade de nomear inimigos. (…) A elite abre-se ao mundo, mas quer privar a sociedade do acesso a esse mundo. 64 Fyodor Lukyanov, “The Deficit of Values Behind a Crisis in Goals”, Russia in Global Affairs, 2006 http://eng.globalaffairs.ru//engsmi/1077.html (consultado em 9 Novembro, 2006). 65 Marie Mendras, ed., « Le Dossier. Russie 2007. Des enjeux majeurs dans un climat tendu et incertain », Les Cahiers Russie – CERI, 2007 http://www.ceri-sciences-po.org/cerifr/kiosque.htm (consultado em 31 Janeiro, 2007). 66 Mendras, “Le Dossier. Russie 2007”.

(…) Aquilo que faz falta à Rússia é uma revolução no topo. Isso foi possível na Ucrânia. Porque não aqui? É a eterna diferença do tamanho. A Rússia continua a ver-se a si mesma como uma superpotência. Mesmo os liberais russos partilham dessa visão. É o único obstáculo que nos separa da normalidade.”67

ConclusãoA análise da política externa russa desde o colapso da URSS revela linhas contrastadas de mudança e de continuidade. Por um lado, a importância do “estrangeiro próximo” na definição da segurança russa e a percepção do país como uma grande potência são herdados da experiência imperial soviética (e czarista). Por outro lado, Moscovo teve de enfrentar o desafio duplo das transformações internas e sistémicas. A maior estabilidade interna vivida na última década permitiu a Putin trazer a Rússia para uma rota muito mais assertiva, contrastando com a década de 90 associada à humiliação do pós-Guerra Fria.No entanto, como sublinhou Pedro Aires Oliveira na abertura do XI Curso Livre de História Contemporânea, “seria imprudente falar-se de um “fim da História”. Os últimos desenvolvimentos da crise mundial não auguram nada de positivo para o cimento agregador desses arranjos”. Ele referia-se aos arranjos institucionais oferecidos pela UE e pela NATO e, de modo geral, ao acervo que a história do pós-Guerra Fria trouxe para as relações internacionais em termos de modelos de regulação. No caso russo, o carácter transitório da sua adaptação é um traço duradouro que pode dificultar a sua compreensão. Se para alguns analistas a Rússia “perdeu-se na transição” porque falhou em tornar-se um parceiro estável e cooperativo dentro dos modelos ocidentais68, salientamos que qualquer ideia pré-concebida acerca daquilo que a Rússia deveria ser é, por natureza, portadora de desencanto. As reflexões conduzidas aqui realçam a necessidade de cruzar, de forma equilibrada, uma intelecção do peso das heranças históricas com os novos cenários produzidos não só pela evolução da política mundial mas também pela evolução da capacidade russa em projectar um poder renovado.

67 Lilia Shevtsova, « Les faux-semblants du pouvoir russe », Le Monde, 3 de Março de 2008. 68 Lilia Shevtsova, Russia: Lost in Transition. The Yeltsin and Putin legacy (Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2007).

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Homenagem ao Professor DoutorLuís Filipe Lobo-Fernandes

No contexto da trigésima quinta edição dos Colóquios de Relações Internacionais, os alunos de Relações Internacionais e o CECRI vêm por este meio reconhecer o contributo de um insigne Professor desta Academia. Esta homenagem pública visa reconhecer, pois, um percurso académico de excelência com mais de mais de trinta de anos de existência, onde se destaca o seu contributo pioneiro na introdução da área científica das Relações Internacionais em Portugal e, mais especificamente, o seu percurso académico na Universidade do Minho. “Now listen, this is very important”, é uma frase utilizada frequentemente nas suas aulas. Prestamos hoje homenagem, claro está, ao legado do Professor Doutor Luís Filipe Lobo-Fernandes. Legado que passa, não por acaso, pela fundação da entidade que organiza este mesmo evento: o Centro de Estudos do Curso de Relações Internacionais. E que passa igualmente pela dinamização da primeira licenciatura em Relações Internacionais em território português. Legado que passa e que a Memória não apaga, como a Professora Sandrina Antunes muito bem disse no seu testemunho para esta mesma Homenagem.Não obstante, tenho que fazer uma pequena advertência a esta plateia. Utilizando as palavras do Professor Sérgio Ribeiro proferidas, esta Homenagem “sofre da feliz impossibilidade de conseguir ser imparcial”. E é verdade: ela não é, de todo, imparcial. Mas é também verdade que apesar de todos os envolvidos nesta mesma Homenagem deverem um profundo agradecimento ao Professor Lobo, é de conhecimento geral o importante impacto que a comunidade internacionalista portuguesa reconhece ao Professor Luís Lobo Fernandes.Aproveitando mais uma vez o contributo da Senhora Professora Sandrina Antunes, podemos descrever o legado do Professor em 3 palavras: Cumplicidade, Sabedoria e Sonho. Cumplicidade, pela forma como acarinhou todas esta casa que são as Relações Internacionais minhotas nos bons e maus momentos. Sabedoria, pela sabedoria das suas palavras que nos inspiraram a todos. E Sonho, pelo seu sonho de um país melhor onde a cidadania activa é uma realidade diária.Como Professor, e utilizando as palavras da Professora Isabel Camisão, homenageamos o “método de ensino aberto que envolvia realmente o aluno na análise crítica das temáticas da disciplina (muito antes do chamado Processo de Bolonha enfatizar

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a necessidade de colocar o estudante no centro do ensino”. Como investigador, homenageamos o que o Senhor Professor Sérgio Ribeiro definiu como o “saber de um Mestre com um inestimável sentido de amparo pedagógico aliado a um entusiasmo intelectual insofismável quando se tratava de assumir, com o rigor que sempre o caracteriza, novos caminhos de pesquisa”.Como colega, homenageamos o seu “exemplo de postura académica”, tal como realçado pela Senhora Professora Sandra Dias Fernandes. Ou, nas palavras da Senhora Professora Isabel Camisão, “a enorme generosidade e grandeza do Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes que, mesmo estando num patamar da carreira académica muito superior ao meu, me tratou sempre com o maior respeito, me tratou sempre verdadeiramente como igual. Ora, penso que a maior confirmação da grandeza de alguém é quando esta grandeza se afirma por si mesma, sem que seja preciso sublinhar cargos ou estatutos”.Como cidadão, e nas palavras do Senhor Professor Miguel Rocha, é de destacar “a sua preocupação para com as actuais condições dos jovens académicos no início da sua carreira, apoiando-os nos seus momentos mais marcantes.”. Em bom rigor, esta Homenagem é insuficiente. Não se refere aqui a sua brilhante carreira de académico nos Estados Unidos da América, os seus anos na Comissão Europeia ou na Presidência da República. Não obstante, queremos que o Professor saiba que esta Homenagem é fruto da nossa mais profunda admiração e orgulho em tê-lo como nosso Professor ou Colega de Profissão.Termino esta Homenagem conferindo ao Senhor Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes o grau de Sócio Honorário do Centro de Estudos do Curso de Relações Internacionais. Em jeito de conclusão, cito a Professora Isabel Estrada Carvalhais quando diz que, “do Professor Luís Lobo-Fernandes retenho a imagem de um homem generoso na partilha do seu saber, vertical nas suas convicções, íntegro nas suas ações, nobre na sua quase inesgotável paciência ante a menoridade intelectual e de espírito. Retenho a imagem de um verdadeiro mestre e de um verdadeiro amigo”. Ou ainda, nas palavras da Professora Ana Paula Brandão, “Ao Professor Luís Lobo-Fernandes expresso a minha profunda admiração e sentido reconhecimento por tornar tangíveis as palavras

de Emerson: “So far as a man thinks, he is free”. Senhor Professor, o seu estímulo contínuo ao saber não será esquecido! Muito Obrigado!Queira dirigir-se ao Púlpito para aceitar o título de Sócio Honorário do CECRI e endereçar algumas palavras se assim o desejar. Peço uma enorme salva de palmas.

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Testemunho da Professora Doutora Ana PaulaBrandão (Universidade do Minho)

Ser Professor é uma vocação. O Professor Luís Lobo-Fernandes tem vivido plenamente esta vocação. Com ele aprende-se a olhar, a estar intelectualmente inquieto, a questionar, a procurar a intelecção dos fenómenos. E na sua generosa partilha de saber, deixa sempre uma indelével marca humanista e transformativa que estimula à mudança.Ao Professor Luís Lobo-Fernandes, estimado Colega, expresso a minha profunda admiração e sentido reconhecimento por tornar tangíveis as palavras de R. W. Emerson: “So far as a man thinks, he is free”.

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Testemunho da Professora Doutora Isabel Camisão (Universidade do Minho)

Tive o privilégio de ter o Professor Luís Lobo-Fernandes como meu professor em vários momentos do meu percurso académico. O meu primeiro contacto com a sua forma aberta e cativante de ensinar foi no meu último ano de licenciatura em RI. Penso que posso falar pelos meus colegas quando digo que foi um Professor que se tornou uma referência incontornável para todos, pelo método de ensino aberto que envolvia realmente o aluno na análise crítica das temáticas da disciplina (muito antes do chamado Processo de Bolonha enfatizar a necessidade de colocar o estudante no centro do ensino). Lembro-me bem das suas aulas, da sua acuidade intelectual, e das leituras, sempre atualizadíssimas, que nos recomendava e que muito nos ajudaram a rasgar horizontes. Reencontrei-o alguns anos mais tarde, primeiro como professor no Mestrado em Estudos Europeus e, depois, na qualidade de meu orientador no Doutoramento em CPRI. Nesta última etapa da minha jornada enquanto aluna, ajudou-me a escolher caminhos e orientou-me durante o muitas vezes difícil percurso de investigador. Agradeço-lhe a disponibilidade, a palavra amiga e os sábios conselhos. Tive também o prazer de privar de perto com o Professor Luís Lobo-Fernandes, como sua colega, nos quase cinco anos em que fui docente da UM. Neste papel, para além da incontestável agudeza intelectual, pude confirmar as suas imensas qualidades pessoais. Destaco aqui a enorme generosidade e grandeza do Professor Luís Lobo-Fernandes que, mesmo estando num patamar da carreira académica muito superior ao meu (na altura eu era ainda Assistente convidada e o Professor Luís Lobo-Fernandes era já Professor Associado e depois mesmo Professor Catedrático), me tratou sempre com o maior respeito, me tratou sempre verdadeiramente como igual. Ora, penso que a maior confirmação da grandeza de alguém é quando esta grandeza se afirma por si mesma, sem que seja preciso sublinhar cargos ou estatutos. É assim o Professor Luís Lobo-Fernandes e é por isso que enquanto aluna, colega e amiga eu lhe digo: Muito, muito obrigada!

Um grande abraço com amizade, Isabel Camisão

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Testemunho do Professor Doutor MiguelRocha (Universidade do Minho)

É com júbilo que me associo a esta justa homenagem prestada pelo CECRI ao Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes, ao ilustre professor catedrático e colega, mas também ao amigo sempre presente. O seu contributo indesmentível para a área das Relações Internacionais, o seu percurso científico e saber académico, torna-o numa referência incontornável para todos os que, como eu, procuram com o seu labor honrar o assinalável legado do Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes nesta área científica.Enquanto antigo estudante de Relações Internacionais, e seu aluno, desde logo me impressionou a sua enorme capacidade pedagógica, de transmissão de conhecimentos, aliada a um incentivo permanente ao conhecimento, porque a excelência não é um acto, mas um hábito (Aristóteles), uma disponibilidade ilimitada para com os alunos, gozando de uma singular empatia por parte dos estudantes deste Curso. Como colega, não posso deixar de realçar a sua preocupação para com as actuais condições dos jovens académicos no início da sua carreira, apoiando-os nos seus momentos mais marcantes. Destaco ainda a sua presença amiga nas etapas mais significativas da minha vida académica e uma profunda gratidão pelo estímulo contínuo ao saber.

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Testemunho da Professora Doutora Sandra Dias Fernandes (Universidade do Minho)

O Senhor Professor Luís Lobo-Fernandes marcou o meu percurso pelas Relações Internacionais em contextos memoráveis que se tornaram um marco na identificação desta área do saber. Como Professor das teorias das RI da minha licenciatura, abriu uma janela para um mundo fascinante de inteleções mas sobretudo foi um inspirador único. Como Professor de estudos europeus no meu mestrado, revelou o respeito irredutível que tem pelos seus alunos e o entusiasmo constante pela elucidação das dinâmicas políticas internacionais. Como Colega, mostrou um exemplo de postura académica. Os seus vastos conhecimentos na área e sentido de universidade não fazem por si só jus aquilo que o Professor Luís Lobo é nesta academia e para além dela. Homenagear o Senhor Professor é também reconhecer uma elegância extremamente culta que lhe é própria, aliada a um sentido de humor subtil que eu tenho o privilégio de conhecer.

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Testemunho da Professora Doutora Sandrina Antunes (Universidade do Minho)

Se tivesse de descrever a presença do Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes na minha vida, utilizar apenas 3 palavras: Cumplicidade, Sabedoria e Sonho. Cumplicidade, pela forma como me acarinhou nos bons e nos (muito) maus momentos da minha vida pessoal e profissional; Sabedoria, pela sabedoria das suas palavras que me inspiraram e me levaram sempre mais além. Sonho, pelo sonho de um mundo melhor, de um país melhor onde cada um de nós tem “O” papel principal.

A chegada do Professor Luís Lobo-Fernandes às nossas aulas gerou uma revolução de emoções: lufada de ar fresco, euforia, imaginação, inspiração intelectual. Hoje, queremos ser capazes de continuar a inspirar os nossos alunos, tal como o Professor nos inspirou, de forma tão avassaladora, sincera e genuína. Professor, a memória NÃO se apaga. Bem pelo contrário, ela renasce com mais força a cada desafio que encontramos pela frente.

Professor, não se engane, o seu legado não ficou perdido lá atrás, naquele passado que gostamos de relembrar para que as novas gerações saibam como tudo aconteceu. O seu legado continua vivo e acontece TODOS OS DIAS, com os olhos postos no futuro.

Obrigada por tudo.A sua amiga e colega,Um abraço sincero.Sandrina

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Testemunho da Professor DoutorSérgio Ribeiro (Universidade do Minho)

O meu testemunho em relação ao Professor Doutor Luís Filipe Lobo-Fernandes sofre da feliz impossibilidade de conseguir ser imparcial. Além disso, é um testemunho muito limitado porque silencia aquela que seria uma perspetiva mais pessoal, impossível para mim de traduzir em algumas palavras apenas.Tive a grande honra e grata oportunidade de conhecer o Professor Lobo-Fernandes enquanto Orientador da minha tese de Doutoramento. Hoje somos o que formalmente se denomina de Pares de uma Profissão que, por definição, é, e será sempre, das mais nobres. Ao encontrar o Senhor Professor, pude beneficiar do saber de um Mestre com um inestimável sentido do amparo pedagógico aliado a um entusiasmo intelectual insofismável quando se tratava de assumir, com o rigor que sempre o caracteriza, novos caminhos de pesquisa. Enquanto Docente, com o privilégio de tentar contribuir para o desenvolvimento desta comunidade académica da Ciência Política e das Relações Internacionais na Universidade do Minho, só posso deixar um parcimonioso testemunho em relação ao meu colega, mas ainda meu Mestre, o Professor Lobo-Fernandes. O Senhor Professor representa um modelo que, confesso, tento imitar, não só no meu dia-a-dia com os alunos, mas também na minha relação com as ideias. Muito obrigado por tudo Senhor Professor!

Braga, 26-05-2014.Sérgio Ribeiro

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