um rito de passagem para a idade madura...

55
1 UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINA - 1 A criatividade e a engenhosidade na produção dos mitos expressivos de uma realidade, situação ou condição humano- sócio-histórica pode ser exemplificada em dois xinguanos mitos indígenas das flautas, registrados por Villas Boas, e nos quais temos igualmente evidente o papel do herói civilizador: instituir novas realidades de interesse coletivo, modificar uma condição e situação política, social, religiosa, cultural, econômica, filosófica. (Villas Boas, Orlando; Villas Boas, Cláudio. Xingu: os índios, seus mitos. 4 a . ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1976) O primeiro mito indígena das flautas traduz processos de iniciação masculina na busca de integração do arquétipo animi na personalidade de um homem; o segundo mito traduz processos iniciáticos femininos num contexto civilizatório de mudança cultural promovida por mulheres. Ambos têm por teleologia a promoção de qualidade cultural de vida das pessoas pertencentes a uma comunidade étnica dada mediante cuidado do homem e da mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem. O homem e a mulher indígenas pertencem milenarmente a uma cultura autêntica e integrada. Ribeiro, em sua classificação das culturas, define autêntica aquela cultura cujas criações,

Upload: others

Post on 24-Jun-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

1

UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA

MASCULINA - 1

A criatividade e a engenhosidade na produção dos mitos

expressivos de uma realidade, situação ou condição humano-

sócio-histórica pode ser exemplificada em dois xinguanos mitos

indígenas das flautas, registrados por Villas Boas, e nos quais

temos igualmente evidente o papel do herói civilizador: instituir

novas realidades de interesse coletivo, modificar uma condição e

situação política, social, religiosa, cultural, econômica, filosófica.

(Villas Boas, Orlando; Villas Boas, Cláudio. Xingu: os índios, seus

mitos. 4a. ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1976)

O primeiro mito indígena das flautas traduz processos de

iniciação masculina na busca de integração do arquétipo animi na

personalidade de um homem; o segundo mito traduz processos

iniciáticos femininos num contexto civilizatório de mudança

cultural promovida por mulheres. Ambos têm por teleologia a

promoção de qualidade cultural de vida das pessoas pertencentes

a uma comunidade étnica dada mediante cuidado do homem e da

mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a

que pertencem.

O homem e a mulher indígenas pertencem milenarmente a uma

cultura autêntica e integrada. Ribeiro, em sua classificação das

culturas, define autêntica aquela cultura cujas criações,

Page 2: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

2

produções, heranças e tradições sociais correspondem

legitimamente aos interesses de desenvolvimento autônomo das

sociedades detentoras daquelas tradições e heranças; integrada

qualifica a cultura cujos conteúdos e componentes históricos

(políticos, sociais, pedagógicos, filosóficos, científicos,

econômicos, artísticos, jurídicos e legais) são internamente

congruentes. (Ribeiro, Darcy. Os Brasileiros. I Teoria do Brasil.

3a. ed. Vozes: Petrópolis. 1978.)

As culturas autêntica e integrada, quais a indígena, estão

contrapostas às culturas espúrias e às marginais. Na mesma

referência classificatória, Ribeiro qualifica de espúrias aquelas

culturas em que o repertório dos seus valores e sistemas

culturais, de organização interna e externa justificam domínios

exógenos a si mesmas; marginais são as culturas em que as

pessoas que as formam se dividem em grupos sociais

contrapostos uns aos outros de tal modo que a consciência social

desses grupos produz inter-discriminações, geradoras de

tensionalidades e frustrações sociais.

O Brasil tem se desenvolvido, desde a sua conquista, colonização

e neocolonização, como cultura espúria e marginal; nesse mesmo

Brasil, há o paradigma civilizatório indígena que representa uma

cultura autêntica e integrada. Isso significa que a sociedade

brasileira espúria e marginal produz gerações de homens com

Page 3: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

3

masculinidade não fálica (deformada, deficiente, desviante,

problemática), enquanto a sociedade indígena brasileira forma

gerações de homens com masculinidade fálica (autêntica,

integrada).

As sociedades não indígenas em geral produzem tormentos e

crises amarradas aos conceitos desintegrantes de consenso, de

adaptação e de equilíbrio; as sociedades indígenas produzem

coesão sócio política desenvolvendo convivência solidária,

integração comunalista e completude comunitária. Essa coesão

sociopolítica indígena não é dada, mas permanentemente mantida

à luz referencial das Tradições, resguardadas pelo Conselho dos

Anciãos.

O homem indígena vivencia ritos de passagem desde o nascimento

para formar e desenvolver nele mesmo a autenticidade e a

integração culturais da sociedade comunal indígena a que

pertence; portanto, ao chegar à idade adulta (entre 20, 25 a 40,

45 anos) ou madura ( a partir dos 40 ou 45 anos) dificilmente

terá sentimentos de fracasso, de vazio, de perda de significado

da existência, de deslocamento e de fragmentação sociocultural.

Ainda vivenciará outros ritos de passagem exatamente porque a

vida histórica é um permanente ciclo de passagens, mas tais ciclos

não estão num contexto de crises quais as vigentes em

sociedades não indígenas.

Page 4: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

4

O mito das flautas é um rito de passagem na idade madura de um

homem indígena, conquanto tenha fundamentos para os homens de

qualquer idade, principalmente para as sociedades não indígenas

nas quais os homens, às vezes, morrem jovens ou velhos

infantilizados e bestializados sem quaisquer expressões de

personalidade masculina autêntica e integrada.

Após relembrar o primeiro mito, registrado por Villas Boas, farei

detalhadamente os comentários que julgo pertinentes. Para tais

comentários utilizo de todos os meus conhecimentos para

explicitar as significações histórico-sócio-culturais das ações dos

personagens indígenas do mito: veremos que a civilização indígena

elabora, há milênios, uma pedagogia da cultura com a mesma

complexidade historicamente simbólica de várias outras

civilizações, quais a grega. E, por isso, utilizo-me do conhecimento

adquirido sobre mitologia grega para entender aquela

complexidade da mitologia indígena com cuidado pelas diferenças

culturais porque a primeira procede de uma cultura

fundamentalmente patriarcal, marcada por relações de não

cuidado, e a segunda de uma cultura dominantemente matriarcal,

marcada por relações de cuidado.

Page 5: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

5

FLAUTAS DOS JACUÍ E FLAUTAS DE IANAMÁ.

Jacuí é o nome indígena para a personificação de homens-peixes

moradores do fundo das águas e tocadores de uma flauta de

mesmo nome a eles pertencente.

O herói civilizador e morubixaba Ianamá em sua atividade

cotidiana de pesca no seu pesqueiro, o Kranhãnhã, ouvia os Jacuí

diariamente tocando flauta, até que um dia pediu ajuda ao seu avô

Mavutsinim, possivelmente um grande morubixaba, para capturar

os Jacuí e suas flautas.

O avô Mavutsinim instrui Ianamá para que prepare uma grande

rede, cinco charutos e uma pequena panela de pimenta: armando a

grande rede na boca do lago, Ianamá esperava a chegada dos

peixes para flechá-los.

Ianamá flechou inúmeros peixes durante o dia todo; apenas com

noite alta ouviu o som das flautas dos Jacuí que vinham do fundo

das águas e iam se aproximando da rede.

Bem próximos da rede e quase nela encostando os Jacuí, no

entanto, voltaram para o fundo das águas tocando suas flautas.

A diária visita de Ianamá ao seu kranhãnhã, a aproximação e

distanciamento diário dos Jacuí sempre tocando suas flautas,

permitiram a Ianamá aprender todas as músicas por eles tocadas.

Page 6: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

6

Certo dia, estando no seu kranhãnhã, Ianamá ouviu o som das

flautas dos Jacuí bem mais cedo do que habitualmente estava

acostumado a ouvir.

Cada vez mais próximos pela madrugada, ao clarear o dia os Jacuí

finalmente caíram na rede.

Os Jacuí começaram as tentativas de se livrarem da rede e,

então, Ianamá trouxe a rede para dentro da canoa.

Com o seu charuto espargiu fumaça sobre as flautas e esclareceu

aos Jacuí que sua intenção não era machucá-los e matá-los, mas

queria-os para si. Ao dar estes esclarecimento derramou pimenta

sobre as flautas e voltou para a sua aldeia Tacoatsiát.

Ao chegar, o seu avô Mavutsinim reconheceu as flautas dos Jacuí

como verdadeiras e pediu para que Ianamá as tomasse por modelo

e fizesse outras tantas flautas de madeira.

Ianamá foi para o mato e cortou taquara: fez três flautas de

taquara mas estas não produziram som.

Pelo resultado negativo das flautas de taquara, Ianamá pegou

vários outros tipos de paus e fez outras tantas flautas, mas

nenhuma produziu som.

Com os resultados novamente negativos, Ianamá pegou o pau

ivurapaputã, fez outras flautas, mas também não produziram

nenhum som.

Page 7: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

7

De todos os paus conhecidos, Ianamá fez flautas sem que as

mesmas produzissem qualquer som.

Certo dia e estando nas suas atividades de caçador, Ianamá

deparou-se com uma cutia, dela se aproximando.

A cutia disse a Ianamá que ele não era gente sábia; se soubesse

sobre muitas coisas não se aproximaria dela daquele jeito.

Ianamá apontou a flecha para o animal e este pediu-lhe que não o

matasse pois lhe contaria algo que sabia.

Sentaram-se e a cutia revelou-lhe o que até então desconhecia: a

flauta de Jacuí é feita dos paus irracuitáp ou imurã.

Instruído sobre os tipos de paus para confecção das flautas de

Jacuí, Ianamá saiu à procura dos mesmos e, encontrando-os,

produziu de três pedaços de irracuitáp inúmeras flautas.

As inúmeras flautas de Ianamá agora produziam som e todas

foram guardadas, lotando o espaço do tapãim.

Diariamente Ianamá tocava músicas junto com os Jacuí, mas

utilizando-se da flauta de Jacuí e não aquelas por ele produzidas

e guardadas no tapãim, a Casa das Flautas.

O Sol e a Lua diariamente ouviam de suas aldeias distantes os

sons daquelas músicas tocadas por Ianamá e Jacuí, até que um dia

resolveram ir à aldeia de Ianamá para descobrir com o quê este

produzia o som daquelas músicas.

Page 8: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

8

Ao ver o Sol e a Lua se aproximarem da aldeia, Ianamá pediu ao

seu povo que nada falassem sobre o assunto das flautas.

O Sol e a Lua esclareceram o motivo de sua presença na aldeia de

Ianamá: ouviam diariamente o som das músicas tocadas e queriam

saber o que eram aquelas músicas.

Tendo visto no tapãim (Casa das Flautas) as flautas de Ianamá,

pediram-lhe algumas: Ianamá retirou três daquelas flautas por

ele produzidas e presenteou o Sol e a Lua que, logo em seguida,

partiram para as suas aldeias.

À noite, Ianamá e os Jacuí tocavam com as flautas de Jacuí: o

Sol e a Lua ouviram, percebendo a diferença entre o som das

flautas de Ianamá presenteadas e o som das flautas de Jacuí que

ouviam de longe. Resolveram voltar à aldeia Tacoatsiát de Ianamá,

pedindo para que lhes fossem mostradas as flautas tocadas por

Ianamá e os Jacuí.

A grande questão era que as músicas tocadas diariamente pelos

Jacuí e por Ianamá com as flautas de Jacuí eram ouvidas por

todo o mundo; diversamente, as músicas tocadas pelo Sol e pela

Lua com as flautas de Ianamá presenteadas não eram ouvidas por

todo o mundo.

Ianamá mostrou as flautas, afirmando ao Sol e à Lua que as

flautas por ele tocadas eram as mesmas daquelas presenteadas.

Page 9: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

9

Partindo para a aldeia Morená do seu avô Mavutsinim, o velho, o

Sol foi por aquele esclarecido porquê as suas músicas não eram

ouvidas por todo mundo: as flautas tocadas por Ianamá são as

flautas de Jacuí; as presenteadas são as flautas de Ianamá por

ele mesmo produzidas com a madeira irracuitáp.

Diante da revelação, o Sol e a Lua resolveram promover uma

grande festa, convidando Ianamá com a intenção de envenená-lo.

O Sol e a Lua foram para o mato retirar cipó de matar peixe:

entregaram o cipó às suas mulheres para que preparassem um

veneno e enchessem duas grandes cuias com o mesmo para serem

servidas durante a festa.

Os pariát, mensageiros do Sol e da Lua, foram por estes

mandados à aldeia de Ianamá convidá-lo para a festa.

De longe, Ianamá ouviu os gritos dos pariát e avisou ao seu povo

que o Sol os convidaria para uma festa com a intenção de

envenená-los.

Tendo chegado à sua aldeia, os pariát foram convidados por

Ianamá a se sentarem e ficaram conversando. No fim da conversa

foi-lhes perguntado sobre o dia da festa, ficando combinado a

presença de todos naquela mesma noite.

Ianamá ficou o dia inteiro em sua aldeia e na manhã seguinte

preparou-se com o seu povo para viajar à Aldeia Morená –a aldeia

do Sol.

Page 10: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

10

O povo e Ianamá chegaram à noite e acamparam em lugar

previamente preparado pelos pariát, próximo à Aldeia Morená.

Algum tempo após a chegada, os pariát foram convidar para a

dança Ianamá e o seu povo.

Na ocaríp, o pátio da Aldeia, os convidados dançaram o uruá e,

dentro do tapãim (Casa das Flautas), dançaram o jacuí; em

seguida, o Sol pediu que Ianamá dançasse sozinho e, após fazê-lo,

foram servidos peixe e caium a todos os convidados.

Naquela mesma noite após a festa promovida pelo Sol, os

convidados dançaram o jacuí em seu acampamento

No dia seguinte e após a pintura corporal os convidados foram

conduzidos pelos pariát para o pátio da Aldeia Morená.

Na condição de morubixaba, Ianamá sentou-se num banco,

enquanto o seu povo dançava. Após uma breve dança foram

convocados para a competição de luta.

Ao terminarem a luta o povo de Ianamá recebeu mingau e, então,

o Sol convidou Ianamá para entrar na Casa das Flautas, o tapãim.

Dentro da Casa das Flautas, o Sol indagava em intervalos de

minutos se Ianamá estava ali, se sentia bem, se ainda permanecia

ali, se ainda continuava vivo. A todas às indagações e para

decepção do Sol, Ianamá sempre respondia que estava ali, estava

bem e estava vivo, sem parar de beber o cauim com veneno.

Page 11: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

11

Dois homens jovens se afastaram do povo de Ianamá e, vestindo

a roupa de calango e de rato levada por Ianamá, foram à casa do

Sol para transarem com a sua mulher.

Sol parece ter muitas mulheres porque, ao chegarem à sua casa,

os dois jovens homens foram recebidos por mais de uma mulher.

Ou, então, na casa do Sol estavam a sua mulher e a mulher da Lua.

De qualquer modo, os dois jovens homens foram recebidos e

aceitos pelas mulheres, entraram, transaram e retornaram à

Aldeia Morená.

Todos estavam bem: o veneno preparado pelo Sol não atingia

Ianamá e o seu povo.

Ao veneno preparado pelo Sol somente resistiam abelha e acari;

portanto, o povo de Ianamá era abelha enquanto o povo do Sol era

peixe.

Afastou-se o Sol e foi até sua casa para bater em suas mulheres;

retornou em seguida à companhia de Ianamá e por este foi

caçoado pela imprestabilidade e fraqueza do seu veneno, incapaz

de fazer mal a ele e ao seu povo.

Por dois motivos o Sol e a Lua estavam contrariados com as suas

mulheres: porque prepararam um veneno ineficaz e porque

transaram com os jovens homens convidados. E, assim

contrariados, despediram-se de Ianamá que ainda reafirmou a

impossibilidade do Sol e da Lua de matarem a ele e ao seu povo.

Page 12: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

12

No dia seguinte, Ianamá planejou a realização de uma festa e

iniciou a preparação de veneno para o Sol; tudo pronto, mandou

avisar ao Sol e à Lua que em cinco dias promoveria uma festa em

sua Aldeia, convidando-os para a mesma.

O mensageiro chegou à Aldeia Morená, e foi conduzido para o

meio da aldeia aonde, sentado num banquinho, aguardou o

morubixaba Sol.

No dia combinado, o Sol, a Lua e seu povo se dirigiram para a

aldeia de Ianamá; do mesmo modo, ao chegarem foram acampados

nas proximidades da Aldeia, tendo-lhes sido servido peixe e

beiju.

Naquela noite ficaram dançando e na manhã seguinte fizeram

suas pinturas corporais para a festa.

Mavutsinim foi ao acampamento do Sol pedir-lhe para que

fizessem uma festa bonita e sem brigas: com Mavutsinim à

frente, o Sol, a Lua e o seu povo foram para o centro da aldeia de

Ianamá.

Sol e Lua vestiram a roupa de piranha, não escondendo sua feiúra

e braveza; o pessoal dos dois também estavam vestidos de bicho

bravo.

O sábio Mavutsinim aconselha Ianamá a não sair para servir

mingau aos seus convidados, o que deveria ser feito por sua

mulher; mas o povo de Ianamá discordou do conselho de

Page 13: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

13

Mavutsinim porque é o homem e não a mulher o responsável por

levar a comida aos convidados.

O próprio povo de Ianamá distinguiu um homem para levar o

mingau aos convidados.

Durante a refeição, Mavutsinim repetiu o apelo para que não

houvessem brigas; percebendo a raiva de todos, soprou ar de si

na direção do povo e mandou-os de volta à Aldeia Morená.

O vento do sopro de Mavutsinim, ao bater no povo do Sol e da

Lua, fez com que todos rodopiassem em direção à Aldeia do Sol,

ainda quebrando panelas e derramando o mingau.

No momento em o Sol e o povo voltavam para a sua Aldeia sob o

impacto do sopro de Mavutsinim, Ianamá ainda dizia:

O Sol não pode me matar.

Se ele é maior do que eu deveria ter achado o Jacuí.

Eu achei o Jacuí.

Sol não achou o Jacuí e por isso está bravo comigo.

Após todos estes episódios, o Sol ainda tentou matar Ianamá na

tentativa de tomar-lhe o Jacuí; mas nem o Jacuí foi tomado de

Ianamá e nem este foi morto.

*

Jacuí tanto pode ser um homem ou vários homens quanto é o

nome de suas flautas, de suas músicas, de suas danças e de seus

Page 14: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

14

cantos. Num primeiro momento de leitura ou de narração são

tidos por espíritos-peixes ou espíritos das águas, moradores do

fundo das águas. De qualquer modo, Jacuí é símbolo arquetípitico

de masculinidade.

Ao contemplari e considerare a história narrada pelos homens

indígenas e registrada por Villas Boas percebemo-nos diante de

um mito de iniciação masculina: primeiro por causa do elemento

água, depois porque o mito fala do fundo das águas; além disso, há

moradores no fundo dessas águas e esses moradores são homens.

Porque as sociedades indígenas são dominantemente matriarcais

e comunais, a vida de um homem se forma e se desenvolve com a

vida de toda a comunidade étnica a que pertença e seguindo o

inalienável valor das Tradições; a formação e o desenvolvimento

do homem indígena, individualmente considerado, é a formação e

o desenvolvimento da sociedade indígena, sempre coletivamente

considerada.

O comunalismo e o comunitarismo milenar das comunidades

étnicas indígenas traduzem legitimamente o espírito repúblico em

seu fundamento - o interesse comum, oposto ao individualismo e

ao liberalismo.

Simbolicamente, a morada no fundo das águas pode significar o

mergulho no fundo das águas. Da mesma forma, pode ser uma

condição de vida antecipatória quando, no mundo contemporâneo,

Page 15: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

15

homens realmente moram por algum tempo dentro dos oceanos ou

no espaço. Pela destruição das condições de vida no solo da terra,

há quem veja no fundo dos oceanos ou no espaço a possibilidade

não longínqua de residências humanas.

Aprendemos na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e no

estudo da Mitologia a significação da água, quase um sinônimo de

inconsciente: nas sociedades indígenas não existem a reificação e

o circunzoneamento de algo conceitual como o inconsciente e, por

isso, mesmo usando a palavra inconsciente esta significa energias,

forças, vivências ou experiências corpopsíquicas simbolizáveis e

não simbolizáveis, desde que símbolo seja usado no sentido

estrito junguiano e não seja sinônimo de sinal.

E, ainda: energias, forças, vivências ou experiências

corpopsíquicas simbolizadas, simbolizáveis e não simbolizáveis é

um empréstimo da teoria da personalidade de Carl Ramson Rogers

e a sua experiencial (e não experimental) noção-chave de

simbolização, mais plausível que os conceitos de representação,

de conscientização.

Utilizando-me do pensamento rogeriano direi que a simbolização

das vivências e das experiências indígenas, expressas no corpo

dos homens e das mulheres, estão sempre acessíveis e disponíveis

à corpopsique indígena: não são interceptadas e aquela

simbolização é sempre completa, adequada, correta, ou seja, há

Page 16: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

16

congruência entre as vivências e as experiências e a simbolização

das mesmas na corpopsique. Tais vivências e experiências são

congruentes, ou seja, não estão em desacordo entre o eu indígena

que experiencia e a experiência propriamente dita. Por isso o

homem e mulher indígenas são integrados a sua personalidade

étnica sem as vulnerabilidades, as angústias, sem as ameaças e

sem os desajustamentos (desorganização) psíquicos e corporais

comuns às sociedades não indígenas aonde existem desacordos

(brutais e cruéis) entre o eu da experiência e a experiencialidade.

O homem e mulher indígenas não experienciam sentimentos de

ameaça que os fariam deformar a experiência, interceptar a

experiência ou desenvolver rigidez perceptual; ao contrário, os

homens e as mulheres não indígenas e num contexto de valores

desintegradores do patriarcado se sentem permanentemente

ameaçados e, por isso, deformam e interceptam experiências e

não raro sendo modelos lastimáveis de rigidez perceptual.

Todas essas afirmações não são gratuitas: a vida indígena, do

nascimento à morte, está instituída como promotora daquela

congruência, autenticidade e completude, mediante ritos de

passagem integrativos. Seguindo a sabedoria junguiana, não se

trata de perfeição, mas de completude: ou seja, não estou

defendendo a perfeição da civilização indígena, mas

(re)conhecendo a sua completude.

Page 17: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

17

Voltando ao mito das flautas, o fundo das águas expressa o

inconsciente coletivo, o território do fundo de si mesmo, o

território do Self ou do centro do Si Mesmo; significa que

estamos lidando com forças mágicas, ou seja, forças

inconscientes, simbólicas, arquetípicas.

Símbolo não é sinal, não é ícone, não é representação; é coisa,

objeto, situação, pessoa ou grupo de pessoas em torno do qual e

no qual se aglutinam e se expressam forças mágicas, arquetípicas.

Mágico é o nome para tudo aquilo em que estão em jogo forças

inconscientes; magia é, pois, a capacidade ou a habilidade para

lidar com aquelas forças inconscientes. Eis o poder e a função dos

Grandes Pajés.

Morar no fundo das águas significará, no contexto do mito das

flautas, morar dentro de si mesmo, estar integrado consigo

mesmo: os Jacuí, moradores do fundo das águas, personificam o

arquétipo animi –o arquétipo da integração masculina.

As suas flautas representam o deus Falo e, daí o caráter de mito

de integração masculina; as suas músicas, as suas danças e os

seus cantos expressam a potência fálica, a força fálica e a

energia fálica integradas ou a serem integradas na personalidade

masculina. Podemos dizer da cativação, do encantamento, do

enamoramento, da fascinação do herói Ianamá pelos Jacuí, suas

flautas, seus cantos, suas músicas.

Page 18: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

18

O som, o canto, a música das flautas enfeitiçaram, afetaram

Ianamá; as sociedades modernas e contemporâneas não formam

homens e homens integrados porque produzem deformações,

coerções e interceptações contra o enfeitiçamento, contra a

afetividade e exatamente por isso são todos esses homens

punidos com a deformação, a caricaturização, o infantilismo de

suas masculinidades. É o que fez o mundo romano com o másculo

deus grego Eros e a masculinidade não fálica e infantilizada do

deus Cupido; é o que fez o mundo grego com os másculos deuses

Hermaphrodictus e Dioniso, reduzindo-os à masculinidade

indefinida ou feminóide: as novelas, os filmes, os seriados, os

programas da mídia contemporânea são repositórios de exemplos

desses homens deformados, apesar de sua beleza física (não

fálica) e apesar do tamanho dos seus geniais e de seus músculos

ou dos esforços para representar uma sedução que não possuem.

A força de atração da masculinidade fálica integrada diante de

uma masculinidade em processo de integração é arquetipicamente

irresistível: Ianamá ouve e tacitamente quer os Jacuí e as flautas

para si.

O querer para si significa a vontade e o desejo de ter ou

descobrir em si integradas aquela energia, potência e força

fálicas.

Page 19: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

19

Se o homem não for nesse momento adequadamente orientado e

não estiver com os homens adequados haverá distorções, desvios

e canalizações indevidas capazes de interromper, complicar e até

destruir o processo de iniciação masculina. E é exatamente isso

que tem acontecido com os homens na sociedade brasileira, tanto

adolescentes quanto jovens, adultos e até idosos.

A mais clara possibilidade de distorções é interpretar aquela

cativação fálica como desejo sexual e desejo genital por um

homem de carne e osso ou mesmo desejo sexual e genital por

mulheres, aonde estas são qualificadas de "pratos" para comer ou

"cachorras" para apanhar e lamber o dono. Em ambos os casos, o

rapaz ou o homem de qualquer idade canaliza indevidamente a

energia fálica para a energia genital, muitas vezes afogando-se

nela e mantendo-se infantilizado, bestializado.

*

Ao longo dos dias em sua atividade de pescar Ianamá vem ouvindo

o som e a música de flautas, vindos no fundo das águas. Ele não vê

quem toca mas ouve a música e o canto vindo do fundo das águas.

"Vem ouvindo" é gerúndio; estamos num processo.

Ianamá está cativado pela expressão fálica dos outros homens,

simbolizados nos sons dos cantos e das músicas das flautas,

ouvidos no fundo das águas: está num processo de iniciação

masculina num ciclo de sua vida adulta e, por isso, está

Page 20: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

20

diariamente na sua atividade de pescar. Ele não está aprendendo

a pescar para integrar-se a si mesmo; está usando o seu

aprendizado de pesca já desenvolvido noutros ciclos de seu

desenvolvimento como instrumento de integração.

O morubixaba Ianamá tem o seu Kranhãnhã, o seu pesqueiro, e

têm ouvido músicas de flautas vindas do fundo das águas.

A pescaria no kranhãnhã de Ianamá é o momento do encontro de

homens e encontro de um homem consigo mesmo.

A cativação fálica pelos sons e músicas das flautas o fazem

aprendê-las. Ou seja, Ianamá incorpora o espírito masculino

daqueles que já o possuem integrados em si. Ele ainda não os têm

completamente integrados mas, pelo seu aprendizado em

contemplari e considerare, permite-se cativar e incorporar aquele

espírito fálico a ser formado e desenvolvido dentro dele mesmo.

Qualquer recusa à cativação fálica significa destruição do

homem, de sua masculinidade ou do processo de iniciação:

estamos lidando com o deus Falo cujas expressões tanto estão no

arquétipo do andrógino quanto no arquétipo animi.

Contrariar ou desrespeitar o deus Falo tanto pode gerar os

possíveis exageros deformantes do deus Príapo, simbolizando a

inflação masculina, quanto à autocastração simbolizada no deus

egípcio Átis, realizada em cima da árvore pinheiro.

Page 21: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

21

Ianamá, em cativação fálica diante da música das flautas, sobe

numa árvore na tentativa de ouvir melhor aquele canto. E nessa

mesma árvore sobe várias vezes para ouvir aquela música.

Tanto na tradição mítica indígena quanto na tradição mítica de

outros povos, a árvore é símbolo do deus Falo: na expressão

simbólica judaica é Árvore da Vida e em nosso contexto de vida

masculina é árvore do conhecimento, da consciência e da

descoberta masculina; na alquimia é árvore filosofal.

A árvore é o símbolo do deus Mercúrio; Jung deu atenção

especial ao estudo desse deus: dentre os seus inúmeros símbolos

além de árvore está o de tronco de árvore e arbusto que nos

remetem às expressões míticas da potência e da força fálicas

imanentes ao deus Falo encarnado no homem.

A árvore também é símbolo do deus Príapo. E esta imagem de

Príapo é uma advertência para que o homem tenha cuidado ao ser

em si a expressão do deus Falo: o deus Príapo tanto pode

expressar potência e força fálicas integradoras quanto

destruidoras do próprio homem. Esse cuidado está expresso nos

atos de Ianamá subir algumas vezes na árvore para ouvir melhor o

som das flautas e dela descer para pescar outras tantas vezes,

voltando em seguida a subir na mesma.

Desastroso será ver no ato de subir e descer da árvore

referência ao coito, independente de qualquer orientação sexual:

Page 22: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

22

a advertência para esse desastre possível está no próprio símbolo

dos deuses Mercúrio e Príapo como árvore.

Do ponto simbólico, a destruição secular de matas e florestas

pelos homens representa a disputa inútil dos homens modernos

com o deus Falo: inútil porque os perdedores inevitavelmente

somos nós, ainda que todas as árvores do mundo sejam

derrubadas.

Ao invés de derrubar árvores, algumas vezes Ianamá coexistia

com elas, utilizando-lhes para ampliar sua capacidade de ouvir e

de ver. Será o caso de nos perguntarmos há quanto tempo não

subimos em árvores?

Algumas vezes, Ianamá descia da árvore para flechar alguns

peixes mas, quase imediatamente, subia novamente na árvore para

ouvir melhor a música das flautas. Vejamos que Ianamá traz em si

desenvolvida a sensibilidade, sobretudo a musical.

Em cativação fálica pelo som e música das flautas procura pelo

avô Mavutsinim, narrando-lhe sobre o que vem ouvindo, a sua

sensibilidade para o que está ouvindo, a cativação fálica em que

está por aquela música e o avô esclarece tratar-se dos Jacuí.

Agora sabendo que o som e a música das flautas vêm dos Jacuí,

Ianamá pergunta a Mavutsinim sobre os meios a serem por ele

usados para pegá-los.

Page 23: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

23

A importância do diálogo masculino pelo qual os homens entre si

expõem suas dúvidas e questões, suas experiências e

expectativas, suas vontades e desejos é uma fonte de

esclarecimentos, de atenção masculina de cuidado, de apoio mútuo

ao desenvolvimento da masculinidade.

Todos os dias, ao entardecer, Ianamá ouvia a música dos Jacuí.

O entardecer é o caminho do meio da jornada: Ianamá não é um

adolescente, é um homem maduro. É o líder da Aldeia

Tacoastsiát, ou seja, é um morubixaba, um cacique, um Maioral.

Na civilização indígena estamos falando de um homem maduro, a

partir dos 35 ou 40 anos, na "passagem do meio".

Apesar de ser um repositório de saberes fundamentais para

qualquer idade, o mito das flautas é para os homens no

entardecer da vida a que chamamos homens de meia idade, a

idade do lobo.

E é com o pensamento de um homem indígena no horizonte da

tarde que Ianamá pergunta ao avô Mavutsinim como pegar os

Jacuí tocadores de flauta com aquele som e aquela música

cativante?

Vejamos a importância do mediador masculino nesse processo

iniciático: vivendo a cativação fálica pelos Jacuí, Ianamá busca o

conselho de um homem mais velho e notadamente respeitável – o

seu avô Mavutsinim. Esse homem notadamente respeitável

Page 24: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

24

também pode ser um grupo de homens e daí a importância da

minha sugestão para um grupo de cuidado para homens.

Em qualquer idade, o homem precisa do apoio de outros homens

mais velhos e notadamente respeitáveis: aparecerão muitos

outros homens, inclusive os colegas de escola, vizinhos, parentes,

mas é fundamentalmente essencial que sejam homens mais velhos,

notadamente respeitáveis e que já tenho em si integrados o

arquétipo animi ou, pelo menos, em processo avançado de

individuação masculina.

Se isso não acontecer e eu sei que em nossa sociedade atual

raramente isso acontece, o homem se infantiliza, se bestializa,

não desenvolve masculinidade fálica: esta é a situação da maioria

dos homens contemporâneos e é lamentável que isso seja assim

porque as conseqüências estão evidentes à nossa volta e, talvez,

em nós mesmos a todo minuto.

Eugene Monick chama aquele apoio entre homens de colegialidade

masculina. E é colegialidade porque não adianta apressar a

consecução do processo iniciático: o trágico e dramático para o

homem é retardar, interromper ou destruir o movimento da

iniciação.

E é por isso que Ianamá segue a primeira orientação do avô

Mavutsinim com tranqüilidade: orientado para fazer uma grande

Page 25: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

25

rede, Ianamá se mantém três dias, de manhã à noite, concentrado

e dedicado ao labor para confeccionar a grande rede.

Concentração e dedicação extremas com o labor são duas

atitudes fundamentais para o desenvolvimento da criatividade e

da engenhosidade.

Fazer uma grande rede é o primeiro exercício masculino para o

desenvolvimento da criatividade e engenhosidade de Ianamá e

para as quais se entrega com concentração e dedicação extremas.

A rede, na língua tupi pyçá, além do seu caráter prático como

armadilha é uma mandala e, provavelmente, uma mandala

masculina; trabalhando três dias na confecção de uma grande

rede, Ianamá está construindo a sua mandala.

A rede indígena individual para pescar em rios e lagoas chama-se

tarrafa.

No trabalho de três dias, de manhã à noite construindo a sua

mandala, confeccionando a grande rede tarrafa, está o exercício

de tecidura da própria masculinidade: escrevo isso emocionado

porque realmente é um processo magnífico, ampla e

profundamente imanente à iniciação do homem indígena, contado

com tanta naturalidade. É uma sabedoria civilizatória magnífica,

um paradigma de formação da masculinidade quase totalmente

desconhecido no Brasil dos últimos quinhentos anos e todo esse

desconhecimento é profundamente lamentável.

Page 26: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

26

Vejo Ianamá tecendo cuidadosamente em três dias, de manhã à

noite, a sua mandala masculina em forma grande rede: ele não

está trabalhando. Está cuidando de si: isso é laborar, cultivare a

terra de si mesmo.

De manhã à noite é um ciclo de tempo (khrónos): na civilização

indígena khrónos não é cronologia, não é uma sucessão linear de

segundos, minutos, horas... É um ciclo. O ciclo experiencial de

tempo para que Ianamá tecesse a sua rede, construísse a sua

mandala foi de três dias, de manhã à noite.

O ciclo de Ianamá abrange três horizontes: o horizonte da

manhã, o horizonte da tarde e o horizonte da noite. Ou, talvez

quatro: o horizonte da aurora, o horizonte do meio dia, o

horizonte do entardecer, o horizonte da meia noite.

O homem indígena brasileiro aprendeu, há milênios, a tecer a sua

rede assim como a aranha.

A rede indígena individual tem a mesma essência mítica que o

Labirinto grego.

O rei grego Minos, filho de Zeus, determinou a construção de um

lugar no seu palácio de Cnossos e o célebre artista ateniense

Dédalo constrói o famoso Labirinto.

Vejam a escandalosa diferença entre o homem grego e o homem

indígena: ambos, em seus respectivos mitos estão em processo de

individuação. Mas o rei Minos é patriarcal e não forma a sua rede

Page 27: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

27

de individuação; pede a outro que o faça e esse artista, ele sim,

está em processo de integração do arquétipo animi, e por isso faz

o Labirinto e o faz magnífico. Entretanto, Minos não consegue a

sua individuação, apesar do Labirinto para colocar o Minotauro,

filho de sua esposa Pasífae que o traiu apaixonada por um touro.

Para transar com um touro, recorre à arte genial de Pasífae que

lhe fabrica uma novilha perfeita de bronze, dentro da qual entra

e transa com aquele touro de seu próprio marido. Nasce, então o

Minotauro, colocado dentro do Labirinto.

Ao contrário dessa história grega, também magnífica, o homem

indígena brasileiro que está sob nossa atenção é Ianamá: ele

pesca e a pesca é uma atividade fálica magnífica para o homem

em seu processo de individuação.

A vara de pescar simboliza o deus Falo a que o próprio homem

faz de si porque prepara a vara para pescar e com ela

(representando o deus Falo que o próprio homem encarna em si

pelo seu pênis) fisga, pesca o que lhe será fundamental no

processo individuante: durante a pesca, o homem aprende a

contemplari e a considerare e é por isso que fica em absoluto

silêncio, olhando para a água, lançando sua vara e mergulhando a

linha na água, mantendo-a cuidadosamente tesa com o fio do anzol

mergulhado e na ponta do qual está a isca que ele coletou ou

extraiu da terra, armazenou, cuidou e enfiou no anzol. E, assim

Page 28: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

28

mergulhado o anzol com a minhoca (outro símbolo do deus Falo)

até que acontece a Presença e o homem traz para si peixe, anzol,

minhoca e vara.

Vejam quantos processos masculinos de criatividade e de

engenhosidade, quantas forças inconscientes estão em jogo na

pescaria aonde as capacidades de concentração e de dedicação

são desenvolvidas: e é isso que Ianamá está fazendo, todos os

dias. E, ouvindo as flautas de Jacuí se aproximarem e se

afastarem, se aproximarem e se afastarem com o seu som e com

a sua mágica: vêm do fundo das águas, aproximam-se do barco e

se afastam, voltando para o fundo das água. E tanto vem e vão

diariamente que Ianamá aprende seus sons, suas músicas, passa a

conhecer os seus movimentos de aproximação e de afastamento.

Tudo isso mostra a atividade de pescar como uma atividade

fálica, propícia à iniciação masculina com seu caráter

fundamentalmente pedagógico e não para pegar peixes.

A questão não é pegar peixes, deixar "cair no anzol", mas é o

aprendizado do contempari, do considerare, do silêncio, da

concentração, da espera... Hábitos de cuidado.

E ainda mais um aprendizado: o mito indígena das flautas nesse

processo de individuação masculina de Ianamá: ele não usa vara,

anzol, iscas e palácio. O mato, o lago, o barco e a rede são os

cenários da individuação masculina.

Page 29: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

29

Barco e rede foram confeccionados por Ianamá porque o homem

indígena, com criatividade e engenhosidade, confecciona ele

próprio o seu barco e a sua rede: ele é o senhor do processo de

sua individuação. Não é um processo solitário porque a

colegialidade masculina forma a rede de companheiros apoiadores

e a individuação do homem indígena significa coesão sociopolítica

para toda a coletividade: esta é mais uma diferença fundamental

e um ensino indígena para a contemporaneidade.

O homem não é uma individualidade-estrela: é um companheiro de

viagem humana cuja jornada é comunitária.

A sabedoria expressa no significado mítico da rede pode ser

revelado e partilhado com os pescadores indígenas do Brasil.

O aprendizado indígena inicia-se na infância para a pesca de

subsistência, incluindo-se a produção dos instrumentos para a

atividade pesqueira e a técnica de pescar: meninos de três ou

quatro anos já são exímios pescadores para a idade.

Apesar da variável importância para todo homem indígena o

aprendizado e o trabalho de caçar, de coletar e cultivar vegetais,

o trabalho de pescar e o alimento da pesca são fundamentais.

Para o trabalho de pescar, o menino e todos os homens jovens,

adultos e velhos aprendem várias outras artes: a arte da procura,

da extração e da coleta de mineral ou animal para fazer os

instrumentos de pesca; a arte de nadar e de mergulhar porque

Page 30: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

30

também pescam com as próprias mãos; a arte de fabricar canoas,

jangadas ou barcos; a arte de fabricar arco e flecha; a arte de

fabricar rede; a arte de produzir atrativas armadilhas portáteis

e fixas; a arte de fabricar arpões ou farpões para fisgar; a arte

de pescar com vara de cipó e anzol; a arte do conhecimento dos

peixes.

Como se vê, na civilização indígena a arte de pescar é arte

pedagógica complexa para formação e desenvolvimento do homem

corporalmente integrado desde a infância.

Ianamá, portanto, era mestre de todas as artes aprendidas

desde a infância indígena de um homem.

A segunda instrução do avô Mavutsinim é para Ianamá preparar

cinco charutos: outro exercício masculino para o desenvolvimento

da criatividade e da engenhosidade, da concentração e do senso

de dedicação de Ianamá.

A criativa e engenhosa arte indígena de produzir e usar charutos

foi adotada no mundo inteiro.

Charuto é símbolo fálico, referente ao deus Falo: prepará-lo é

também preparar o próprio pênis, preparar-se para que a energia

psíquica de um homem se transforme em energia fálica cuja

potência e força está simbolizada no charuto.

Vale reafirmar: símbolo fálico não é símbolo sexual, não é símbolo

genital.

Page 31: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

31

Na civilização indígena, o charuto também é símbolo da paz e, por

isso, o charuto indígena é um artefeito: prepará-lo significa

cultivar o tabaco, coletá-lo, levar porções para secagem em casa,

coletar folhas de palmeira para enrolar o fumo, triturar com as

mãos as folhas secas de fumo, envolver o fumo nas folhas de

palmeira, realizar o acabamento.

E, por que cinco? Seria este o número de homens que formavam o

grupo de apoio ao processo de iniciação de Ianamá? Talvez sim,

além da simbologia do número cinco.

Cada mão e cada pé humanos têm cinco dedos.

O quinto dedo da mão é o mínimo e a tradição cabalística o liga ao

coração: na mitologia grega representa o deus Hermes (o deus

masculino e romano Mercúrio). Infelizmente, na mitologia

indígena ainda não sei se corresponderia a algum deus.

O quinto chakra, centro ou plexo vital é chamado Vishuda ou

plexo da laringe, controlador da fonação e da respiração: é

qualificado de "centro da Grande Pureza" e sua energização é

feita pelo índigo. Curiosamente, o índigo é planta corante azul

domesticada e usada pelos povos indígenas brasileiros há muitos

séculos, somente notado e explorado no Rio de Janeiro em 1749

por um cirurgião francês: somente a partir de 1779 existirão

centenas de manufaturas de índigo no Brasil para atender à

demanda de Portugal. (Dean, Warren. A Ferro e fogo: a história e

Page 32: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

32

a devastação da mata atlântica brasileira.São Paulo: Companhia

das Letras. 2002)

A cor energizante do plexo laríngeo, localizado na garganta, é o

verde-azulado.

Do ponto de vista indígena, é o plexo do som, da voz, da palavra; o

quinto tom indígena essencial mora na garganta e é exatamente a

vogal e, interpretada como a própria expressão da alma pela

palavra. O quinto tom indígena (e) é nêe-porã, a fala sagrada do

ser.

O número cinco é o número dos orixás Iemanjá, originalmente

deusa dos rios e posteriormente deusa das águas salgadas e

Oxum é a deusa das águas doces.

Estou fazendo todas essas ligações para testificar que,

quaisquer que sejam os conhecimentos e as inter-relações com

outros culturas, o avô indígena brasileiro Mavutsinim sabia o

significado do número cinco no processo de individuação masculina

quando orientou Ianamá para que preparasse cinco charutos.

A orientação foi para PREPARAR e não para pegar prontos cinco

charutos: o exercício masculino, repito, é para o desenvolvimento

da criatividade e da engenhosidade nas quais estão envolvidas as

capacidades de concentração e de dedicação.

A terceira orientação era para Ianamá preparar uma panelinha

de pimenta: até o momento não sei a significação simbólica dessa

Page 33: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

33

panelinha de pimenta no contexto da iniciação masculina de

Ianamá. Pode ser uma criação específica de Mavutsinim para os

ritos mágicos na iniciação de Ianamá; de qualquer modo, é um

desafio de pesquisa também para o leitor e a leitora.

Uma correlação que me vem à mente é entre a orientação de

Mavutsinim para que Ianamá prepare uma panelina de pimenta

para o encontro iniciático de um homem com outros homens e a

atitude de Zeus enviando Pandora (mulher feita de argila,

modelada e animada pelo deus Hefesto) para a perdição dos

homens com a jarra de larga boca que trouxera do Olimpo e

dentro da qual continha todas as desgraças, degradações,

flagelos e calamidades atormentadoras da humanidade e que

foram lançadas sobre essa mesma humanidade porque a

curiosidade da terrivelmente bela e irresistível Pandora fez com

que esta destampasse a jarra!

Na mitologia grega temos o símbolo patriarcal do presente de

Zeus aos homens na Jarra de Pandora ou o símbolo patriarcal do

presente da deusa Perséfone, a "esposa" raptada por Hades

(Plutão), o deus ctônico das trevas brumosas nas entranhas da

terra: Perséfone dá uma caixinha à Psiqué dentro da qual

supostamente existia a beleza imortal mas que, na verdade,

continha o sono da morte. Ambas as mulheres, Pandora e Psiqué,

portaram um presente de um deus e de uma deusa; sem cuidado

Page 34: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

34

para com as orientações dos deuses, abriram jarro e caixinha,

uma espalhando todas as desgraças no mundo e outra impondo a si

mesma o sono da morte.

Ao contrário dos ricos e terríveis presentes dos deuses gregos

aos homens e mulheres mortais, temos símbolo da panelinha de

pimenta no rito de iniciação de um homem indígena.

O barro em que Cuidado modelou a criatura humana é o mesmo

barro com que o homem e a mulher indígena modelam suas

panelas, inclusive aquela panelinha dentro da qual Ianamá colocará

pimenta.

Originárias das Américas, há inúmeros tipos de pimenta

conforme as características dos seus frutos e com as cores

verde, amarela ou vermelha: não há informações sobre qual ou

quais foram as utilizadas por Ianamá.

As propriedades das pimentas são várias: tempero picante,

estimulante secretório de saliva, produz vermelhidão, congestiona

ligeiramente a pele quando é aplicada sob a mesma, conserva

certos alimentos. Foi uma das especiarias cultivadas e coletadas

pelos povos indígenas brasileiros em toneladas, atendendo ao

mercado europeu durante a colonização portuguesa do Brasil e,

portanto, incorporada à culinária mundial.

Na ciência culinária indígena, a pimenta também é colocada

dentro de peixes e carnes para cozinhar, retirando depois do

Page 35: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

35

cozimento um caldo com o qual preparam uma papa a que se

nomeiam mingau.

Ainda caminharemos no mito para compreender melhor a

simbólica dessa pimenta no mito das flautas.

Com as três orientações de Mavutsinim, repito, Ianamá ficou

três dias envolvido na confecção da rede individual.

O símbolo do número três na mitologia indígena e em outras

mitologias não indígenas é fundamentalmente um símbolo

arquetípico masculino, relativo ao homem.

Civilizações se ergueram fundadas no simbolismo de tríades e

trindades: as tríades divinas babilônicas (Anu, o deus do céu –Bel,

o deus da terra –Ea, o deus das profundezas particularmente do

fundo das águas; Adad, o deus do céu e da terra – Sin, a lua –

Shamash, o sol; Sin, a lua –Shamash, o sol –Ishtar, a mãe dos

deuses); a unidade divina egípcia expressa em trindade (Ka, o

deus pai; Ka, o deus filho; Ka-mutef, a força procriadora do

deus); a trindade do mito egípcio de Osíris-Horus-Ísis; as três

pessoas da trindade católica (Pai, Filho, Espírito Santo); o deus

grego Zeus teve três filhos divinos –Hermes, Dioniso e Apolo;

Dioniso, o deus transformação, tem três ciclos iniciáticos

expressos em três epítetos (Iaco, Brômio e Zagreu); Três são os

grandes imortais gregos (Zeus, o céu; Posídon, o mar; Hades, o

mundo subterrâneo).

Page 36: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

36

A qualificação grega para o deus Hermes é Trimegisto, ou seja,

três vezes máximo.

Na tradição cristã, no monte Tabor três personagens se

encontram: Jesus, Moisés e Elias; três são as testemunhas do

encontro: Pedro, João e Tiago.

Três é o número do chakra Manipura, Hapiruraka, do umbigo ou

plexo solar, o centro vital da região umbilical que se representa

com o triângulo, com o lótus ou rosa de doze pétalas, com o fogo,

sua cor de energização é o vermelho e associa-se à visão, ao ânus

e à expansividade, às emoções, ao sistema nervoso simpático.

Na Tradição da Mitologia Indígena o três é o terceiro tom

essencial, a vogal o: é o tom do angá-mirim fogo cuja moradia é no

umbigo. Para os Grandes Pajés indígenas esse tom essencial, essa

rede plexiforme de energia chama-se Kuaracymirim, o centro

vital promotor da integração entre céu e terra, ou seja, do ser

consigo e com o mundo circundante.

O plexo ou centro umbilical, o Kuaracymirim tanto simboliza o

vínculo mãe e filho quanto é o local no corpo aonde se dá o

primeiro rito de separação dentro dos ritos de passagem na vida

do ser humano: a cicatriz umbilical resulta do corte, da cisão

entre a vida no ambiente interno do útero e a vida no ambiente

externo do mundo. O nascimento humano é um rito de passagem.

Page 37: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

37

O relato do mito indígena de Ianamá por homens indígenas no

século XX evidencia que estes homens milenarmente cultivam a

significação simbólica de Kuaracymirim em suas vidas: por isso, no

mito indígena das flautas aparecem referências fundamentais ao

número três –o número de Kuaracymirim.

*

Na madrugada de um dia Ianamá parte para o seu Kranhãnhã (o

seu lugar de pesca) levando os três artefeitos por preparados

sob orientação de Mavutsinim. Faço questão de falar em

artefeitos e não em coisas.

O primeiro ato de Ianamá ao chegar no seu Kranhãnhã com os

três artefeitos é armar a rede e armá-la na boca do lago.

A ancestralidade simbólica e mítica da boca é conhecida por

todos. Em nosso contexto indígena, colocar ou armar a rede na

boca do lago simboliza a ligação estabelecida por Ianamá entre o

território e espaço do ambiente de seu corpo íntimo-relacional ao

território e ao espaço do ambiente do seu corpo íntimo-ambiental.

Não é um interno e outro externo, mas o íntimo de si e o íntimo

das águas, aqui simbolizando o íntimo ainda não integrado em si

mesmo: uma ligação com o seu Self e no qual a rede comparece

como mediação.

Outra imagem explicitativa de armar a sua rede na boca do lago

será a ligação entre a consciência relacional e a consciência íntima

Page 38: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

38

de Ianamá; do ponto de vista do arquétipo animi ele está ligando

ou querendo promover a integração da sua masculinidade à sua

feminilidade.

Imageticamente, o lago, o rio ou o mar é masculino, compondo-se

das águas supostamente femininas: a imagem do uno na

diversidade e aqui está tanto a simbólica do arquétipo da

integração masculina, o animi, quanto a simbólica do arquétipo da

integração masculino e feminino, o andrógino.

Mas a água é símbolo do inconsciente e o inconsciente humano,

apesar do dogma heterossexista de Jung, não é feminino.

O inconsciente humano, ou seja, o território sélfico, é psicóide,

ou seja, andrógino.

Andrógino é o arquétipo aonde masculinidade feminilidade

masculino feminino são unidade: esse é o território do Uno

expresso pelos gregos na união do másculo deus Hermes com a

deusa Afrodite e de cuja união nasce o másculo deus

Hermaphróditus.

As deformações do másculo Hermaphróditus são expressões da

incapacidade dos homens gregos patriarcais para integrarem em

sua personalidade o arquétipo animi; daí, a relevância da mitologia

indígena diante da grega pois que aquela expressa a

concretização, a objetivação no corpo do homem indígena da sua

capacidade de integrar o arquétipo animi. E essa integração do

Page 39: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

39

arquétipo animi no homem indígena está milenarmente expressa

em seu corpo –uma numinosa manifestação do arquétipo animi

integrado à corpopsique de um homem.

A objetivação daquela numinosidade do corpo do homem indígena

só pode ser expressa com o seu caráter in-nocens, não nocivo:

uma expressão registrada pelos portugueses como inocência

significando equivocadamente ingenuidade, pureza.

Inocência do homem –e também da mulher- indígena significa não

nocividade.

Não podemos falar, pois, em águas que são femininas, mas em

águas andróginas, referindo-nos à simbologia do inconsciente.

Essa é a diferença corpopsíquica do homem indígena em sua

cultura dominantemente matriarcal com homens não indígenas de

culturas dominantemente patriarcais e seus sistemas culturais

mecânico-causalistas-dualistas aonde o inconsciente é símbolo do

feminino.

A rede armada na boca do lago que está no karanhãnhã

(pesqueiro) de Ianamá significa exatamente o ato inaugurante do

processo ligativo para integração do arquétipo animi em sua

corpopsique: armar a rede na boca do lago e esperar é o rito

antecipatório daquela integração porque, antes do animi, o

arquétipo do andrógino deverá ser integrado.

Page 40: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

40

Esse momento cíclico de integração do arquétipo do andrógino é

fundamental: raramente há descrição na mitologia grega de sua

consecução nos homens gregos. A maioria deles não o conseguiu a

integração do andrógino e avançar para a integração do animi.

Talvez a chamada civilização ocidental como um todo nunca tenha

conseguido a integração do arquétipo andrógino e do arquétipo

animi, justificando a quase inexistente bibliografia sobre este

último.

O fundamento do arquétipo do Andrógino é a Unidade das

Diversidades e está em inúmeros símbolos, entre os quais: o

Antropos Primordial, o Uróboro (serpente ou dragão engolindo a

própria cauda), o Ovo Cósmico, a Unidade Primordial, a Árvore

das Vidas, o Homem Zodiacal, a Prima Materia, a Pedra Filosofal,

o Mercúrio.

Na Mitologia Grega, todos os deuses andróginos simbolizam tanto

o arquétipo do andrógino (da integração masculino feminino na

corpopsique de homens e mulheres) quanto se interconectam ao

arquétipo animi (da integração masculina): não pode haver

integração do animi sem antes haver a integração do andrógino. E

isto porque aceito a tese demonstrada de Hopcke para o qual a

orientação sexual de uma pessoa ou de quaisquer grupos de

pessoas se determina pela interação complexa entre os

arquétipos do masculino, do feminino e do andrógino. Ora, para

Page 41: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

41

que um homem integre sua masculinidade (animi) precisa formá-la

e esta formação também se interconecta à formação de sua

identidade, função e orientação sexual; a formação da orientação

sexual depende da integração do andrógino, do feminino e do

masculino. (Hopcke, Robert H. Jung, junguianos e a

homossexualidade. 2a. ed..São Paulo: Siciliano. 1993). Na verdade,

são processos cíclicos e complexos, não mecânico-causalistas.

E o paradigma histórico de integração realizada do arquétipo

animi é a individuação do homem indígena: os homens gregos e

romanos, por exemplo, tentaram aquela integração mas foram

frustrados porque, durante o processo, deformaram,

ridicularizaram ou fizeram elipse dos deuses Andróginos, sendo

por isso mesmo punidos pelo deus Falo.

Na Antigüidade grega alguns dos modelos de encarnação do deus

Falo para integração do arquétipo do Andrógino são os deuses

Mercúrio, Dioniso, Hermaphróditus, Narciso, Adônis, Príapo.

Lembrando que deuses são símbolos significantes de forças e

potências arquetípicas com suas energias em movimento, todos os

processos de transformação e de integração dessas forças,

potências e energias foram frustrados tanto na antiguidade

grega quanto na modernidade e contemporaneidade.

Os homens não têm feito outra coisa a não ser cortarem árvores

(autocastração), destruindo matas, e se afundarem na boca do

Page 42: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

42

lago. A destruição da quase totalidade da Mata Atlântica e a

progressiva destruição da floresta Amazônica no Brasil

expressam exatamente o movimento dos homens destruindo

homens e, é óbvio, destruindo inúmeras outras vidas.

Da sexolatria e da sexolalia da contemporaneidade, vivenciadas

nas várias formas da psicopatologia do ficar e suas conseqüências

na irresponsabilidade reprodutiva, junto ao tráfico sexual de

pessoas e à mercantilização dos corpos como bem de consumo, a

imbecilização de adolescentes e jovens pelo cultivo da razão ébria

e da razão entorpecente, tudo isso são expressões histórico-

sociais de não integração e de desintegração dos arquétipos do

Andrógino e conseqüente não integração do arquétipo animi.

A destruição ou o processo destrutivo daqueles arquétipos está

evidenciada nos autocídios, nos homicídios e suas várias

expressões (infanticídio, parricídio, matricídio, feminicídio...), nos

acidentes de trânsito aleijantes ou fatais, nas várias formas e

alvos das violências.

No mito das flautas, desde o movimento de Ianamá ir para o

mato, no seu Karanhãnhã abrir a sua rede na boca do lago, subir e

descer da árvore, ouvir os Jacuí se aproximarem e se afastarem

e esperar, está revisando a integração do arquétipo Andrógino em

sua corpopsique: esta revisando porque na sua idade madura já o

tem integrado. E é por isso que os Jacuí, simbolizando o arquétipo

Page 43: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

43

animi, tocam e Ianamá ouve-lhes o canto das flautas e por eles se

cativa, se aproximam e se afastam: é como se fosse uma

aproximação e afastamento para conferir se realmente Ianamá

têm em si integrado o arquétipo do Andrógino e reconhecê-lo

verdadeiramente apto para o novo ciclo de integração.

A boca do lago (ou do rio, de um afluente do rio, do mar), a

armação da rede na boca do lago, a espera do homem pelos peixes

é o primeiro momento cíclico masculino de possibilidade de

integração do arquétipo do andrógino: provas e testes comporão

esse primeiro momento e, sem a presença do cuidado, o homem

sucumbe. No caso de Ianamá ele está revisando todo esse

processo porque já o fez no ciclo da adolescência.

Para não sucumbir Ianamá seguiu cuidadosamente as orientações

do avô Mavutsinim que é o símbolo do Velho Sábio, desenvolveu as

artes fundamentais para desenvolvimento da masculinidade fálica,

cuidou em si mesmo dos símbolos e dos ritos da transformação de

sua energia psíquica em energia fálica, não reduziu essa energia

fálica em energia sexual e nem canalizou essa energia sexual em

energia genital. Não é um homem bestializado; ao contrário, é um

homem em processo de individuação. E, até o momento, tem

caminhado com segurança e equilíbrio, atento às orientações

protetoras do avô Mavutsinim.

Esperar pelos peixes...

Page 44: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

44

Há vários tipos de peixes: há os que são símbolos de integração

do arquétipo do andrógino, há os que são símbolos de integração

do arquétipo animi. Do mesmo modo, há os que são símbolos dos

arquétipos anima e animus.

Entre vários outros, Ianamá mata para alimentar-se durante o

dia corvinas, tucanarés, peixes-cachorro, bicuda. Talvez estes

que foram mortos, preparados, assados e ingeridos expressem

aproximações cada vez mais integrativas do homem indígena com

os símbolos e processos do mundus archetypus, do mundo

arquetípico, até o desenvolvimento do Nous na corpopsique

masculina.

Nous, a Água Divina dos alquimistas, o Espírito Santo da igreja

católica ou os Jacuí da civilização indígena, é símbolo da razão, da

razão geradora da integralidade, da unidade intelecto sabedoria

amor.

Para comer os peixes por ele pescados importante é a referência

de que Ianamá os assou: a presença do fogo.

Fogo, tanto quanto serpente e peixe, é símbolo do Nous, de

Mercúrio, da razão, mas da razão iluminada, não dividida: a visão

patriarcal de mundo grego reduziu essa razão não aleijada à

inteligência ou capacidade de manipular o mundo com o

pensamento.

Page 45: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

45

Uma diferença absoluta entre paradigmas de formação da

masculinidade entre a civilização indígena e a grega está na

conquista do fogo: na indígena, o morubixaba e herói civilizador

Kanassa, cuidando do interesse público, sai à procura do fogo,

vivenciando vários ritos de passagem até integrá-lo em si e

partilhá-lo com os povos indígenas; na grega, o deus Prometeu

engana e rouba de Zeus uma fagulha de fogo dos seus raios e traz

para os homens sendo por isso mesmo punido. Estamos diante de

dois paradigmas civilizatórios e dois processos de iniciação

masculina tanto opostos quanto contrapostos.

Baste-nos saber, no momento, que no contexto da iniciação

masculina o fogo, o peixe, a árvore, o Nous são um só símbolo da

energia psíquica ativada em seus processos de transformação em

energia fálica em sua potência e força fálicas.

Os peixes caídos na rede, flechados e, depois, preparados,

assados e comidos são movimentos simbólicos desse processo

ativador, transformativo e assimilador a ser realizado com

cuidado porque o que está acontecendo, durante todo o dia (que

podem ser ciclos de dias) é a integração do arquétipo do

Andrógino na corpopsique masculina.

A integração do arquétipo animi está simbolizada nos Jacuí e

estes, apesar de se aproximarem muitas vezes da rede até tocá-

la, voltam para o fundo das águas, tocando suas flautas. Sempre

Page 46: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

46

tocando, aproximam-se de Inamá e de sua rede, mas se afastam e

voltam para a sua morada subterrânea.

Se o homem não tiver cuidado com as forças integradoras do

arquétipo do Andrógino, tais forças se voltam contra ele,

desintegrando-o, reduzindo-o, imbecilizando-o. Além disso, o não

cuidado com o arquétipo do Andrógino faz com que as forças

integradoras do arquétipo animi, apesar de se circunavegarem a

personalidade masculina, se afastem, podendo ir para o fundo das

águas e não voltar mais. Essa não volta não é desaparecimento: o

homem vai sendo inundado, vai sendo corroído por dentro num

processo simbolizado na castração e na autocastração.

Na evitação da castração e da autocastração, Ianamá continua

ouvindo por dias as flautas de Jacuí, contempla a aproximação e o

afastamento dos Jacuí, aprende suas músicas de tanto ouví-las,

até que em determinado dia ouve as flautas mais cedo do que

estava acostumado a ouví-las. Essa escuta mais cedo do que o

habitual vai sendo contínua ao longo do dia até a noite e somente

pela madrugada o canto está bem próximo da boca do lago.

É muito importante destacar esse movimento de aproximação

cada vez mais intensa e que se processa num ciclo de tempo: mais

cedo do que a hora habitual, a noite, a madrugada. O mito está

dizendo sobre a ampliação da escuta de Ianamá coincidente à

Page 47: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

47

aproximação cada vez mais intensa dos Jacuí: a integração não é

um processo técnico e tecnológico, pragmático e instantâneo.

Após um ciclo anterior de inúmeras aproximações e afastamentos

e um outro ciclo de aproximações cada vez mais intensas sem

afastamentos, somente no surgir da aurora os Jacuí entraram na

rede.

Aurora consurgens (o surgir da aurora) é aurora mística, mítica:

expressa o fechamento de um ciclo noturno e a abertura de outro

ciclo diurno numa gradação de encontro entre noite e dia; é um

despertar ou a acentuação e a amplificação do despertamento, da

iluminação.

Aurora consurgens é momento de nascimento do sol e, como tal, símbolo

da chegada e da presença da razão, daquela razão iluminada, não dividida.

Jung registra ser símbolo da revelação da luz.(Jung, Carl Gustav. Um

Mito moderno sobre coisas vistas no céu. Petrópolis: Vozes.

1988)

O registro indígena quase imperceptível da Aurora consurgens

nos remete às ligações com a mitologia grega e a deusa Aurora

com seus dedos cor-de-rosa e vestido de açafrão, cujo

despertamento leva luz aos Imortais e à humanidade num

magnífico espetáculo de luzes e cores no céu.

A deusa Aurora é a deusa que impede a ultrapassagem dos

limites da deusa Noite, aquela que abre as portas do céu, a que

Page 48: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

48

descerra as pálpebras do dia, a que inaugura a claridade a ser

continuada pelo Sol; junto aos deuses Sol, Noite e o próprio Sono,

a deusa Aurora altera a rotina, o hábito e as realidades de deuses

e de homens, impondo delimitações às faixas do tempo.

Aurora ou Eos é, na primeira geração das divindades gregas, filha

de Hiperion e Téia; portanto, irmã do deus Hélio (posteriormente

Apolo) e Selene (a Lua).

O deus e os heróis com quem Aurora se uniu foram: o deus Ares,

amante da deusa Afrodite. deus da guerra, das lágrimas, da

violência e do sangue derramado, assassino de Adônis; o gigante

herói e caçador Oríon; o herói Céfalo; o titã belo e vigoroso

Titono; e Astreu, filho de Crio e Euríbia.

No contexto mítico e simbólico da Aurora consurgens abrindo as

portas do dia, os Jacuí da mitologia indígena são o símbolo do

arquétipo animi e entram na rede de Ianamá: entram somente a

partir da Aurora porque simbolizam a luz do animi como revelação

da claridade na masculinidade de Ianamá. Realmente, o ciclo de

integração do arquétipo Andrógino estava completado na

corpopsique de Ianamá e a Aurora anuncia o novo ciclo –o de

integração do arquétipo animi.

No mesmo momento em que os Jacuí se mexem e repuxam a rede,

Ianamá puxa a rede para dentro do barco: Ianamá recolhe os

Jacuí e com eles as flautas.

Page 49: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

49

Enquanto sopra fumaça do charuto sobre as flautas comunica aos

Jacuí a sua intenção de levá-los consigo e tê-los para si.

A fumaça do charuto espargindo as flautas talvez pudesse ser

um ato indígena de narcotização dos peixes; mas a armadilha de

pesca indígena mediante tonteamento dos peixes é feita com o

suco de certos vegetais venenosos, coletados, macerados,

socados e batidos na água.

O esparzimento das flautas com fumaça do charuto não era um

ato indígena de narcotização de peixes; mesmo com a propriedade

estimulante do tabaco. a tradição indígena de fumar charuto e, ao

invés de tragar a fumaça, expelí-la, é um ato de pacificação, de

neutralização de quaisquer estímulos para brigas e rusgas. Por

isso, o charuto indígena é símbolo de paz que, quando

compartilhado entre os homens significa apreço e hospitalidade: o

uso universal da fumaça produzida por defumadores e incensos

vem da tradição indígena.

A fumaça espargida por Ianamá sobre as flautas era, pois, um

ato mítico de criação e de manutenção de ambiente de

pacificação: por isso junto e imediatamente ao ato de puxar a

rede para dentro do barco com os Jacuí expele fumaça do

charuto sobre as flautas, ao mesmo tempo esclarecendo a sua

intenção de não matá-los.

Após esse ato de pacificação, derrama pimenta sobre as flautas.

Page 50: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

50

Há na tradição indígena o hábito de preparar pimenta com sal e

ao queimar o preparado produzir fumaça para afugentar animais,

gente e males. Talvez o ato de jogar pimenta e produzir fumaça

com o charuto tenham os objetivos gerais de pacificação e de

afugentação de quaisquer males possíveis.

Recolhimento da rede no barco com os Jacuí e as flautas, sinal de

pacificação com fumaça sobre as flautas, verbalização de

intenção não maléfica, afugentação de males possíveis com

pimenta previamente preparada com sal e jogada sobre as

flautas: eis os atos indígenas de segurança, de proteção e de

cuidado que Ianamá faz a um só tempo em seu primeiro encontro

corpo a corpo com os Jacuí e suas flautas.

Um dos atos de segurança, de proteção e de cuidado é a

verbalização explícita de que a intenção não era para provocar a

morte dos Jacuí: verbalizar intenções é ato de cuidado

fundamental junto aos demais atos de segurança e de proteção.

Talvez pela não verbalização seja que várias pessoas cometem

erros, apesar das suas boas intenções: voltamos à importância de

harmonia do plexo laríngeo, o centro vital da fonação, da palavra

falada, o tom nêe-porã.

Após os atos de segurança, de proteção e de cuidado, Ianamá

parte para a sua Aldeia Tacoatsiát; seu avô Mavutsinim

reconhece os Jacuí e dá duas novas orientações: guardar as

Page 51: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

51

flautas de Jacuí e, tendo-as por modelo, fazer outras tantas

flautas de madeira.

Todas as flautas de madeira feitas de todos os paus conhecidos

por Ianamá não produziram som.

Num certo dia e a caminho da pescaria no seu Kranhãnhã, Ianamá

encontra a cutia que dá o nome dos paus que deve procurar e

fazer flautas de madeira.

Cutia, da língua tupi aku'ti, é um roedor que mede até seis

centímetros e, no Brasil, são de cinco espécies: animal silvestre

da caça indígena, sua carne é muito saborosa.

Apesar de apontar-lhe sua flecha, Ianamá não mata a cutia pois

esta lhe revela o nome das madeiras a serem buscadas para

confecção das flautas: após a revelação, presenteia o animal com

pimenta e vai à procura da madeira indicada.

Com três pedaços de madeira de irracuitáp faz flautas

produtoras de som e faz em tal quantidade que enche o tapãim, a

Casa das Flautas.

Novamente a simbólica ligada ao número três, do plexo

Kuaracymirim, também conhecido como plexo solar ou celíaco:

isso nos faz ver na busca, no encontro e no corte de três pedaços

da madeira movimentos iniciáticos de ampliação da emotividade,

da capacidade de ver e isso associado à ação estimulante ou

inibitória do sistema nervoso simpático com maior ou menor

Page 52: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

52

liberação do seu neurotransmissor, a noradrenalina, sobre a pupila

do olho, sistema circulatório, respiratório, digestivo,

genitourinário, tegumentar e medula da supra-renal. Em todos

esses movimentos está um processo de consciência e de manejo

das próprias energias corporais nas situações da vida, de

assenhoramento de si mesmo.

Após guardar na Casa das Flautas as flautas por ele mesmo

fabricadas, Ianamá pega as flautas de Jacuí e toca: todos os dias

ele toca as flautas de Jacuí.

Na mitologia indígena Ianamá é o fabricador de flautas e

flautista; na mitologia grega Hermes é o inventor da flauta de pã

que imediatamente após a sua invenção a negocia com o deus

Apolo em troca do seu caduceu, o cajado de ouro do deus Sol e

que, com Hermes, está envolto com duas serpentes em sentidos

inversos.

Ianamá não negocia com as flautas; fabricou as suas e torna-se

flautista com as flautas dos Jacuí: enquanto o homem indígena

não negocia sua masculinidade, não vende suas habilidades, não

comercia suas virtudes e artefeitos, os deus gregos trapaceiam

com tudo isso e comerciam, perdendo sua harmonia e

masculinidade.

Após o maracá, a flauta é um dos principais e milenares

artefeitos musicais fabricados e tocados pela civilização

Page 53: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

53

indígena: as mais comuns são as flautas transversas, flautas de

osso, flautas globulares nasais, flautas de pan, detalhadamente

estudadas por Travassos. (Travassos, Elizabeth. Glossários dos

instrumentos musicais. In: Ribeiro, Berta G., coordenação. Suma

etnológica brasileira: volume 3 – Arte Índia. Petrópolis:

Vozes/Finep. 1986; p.180-188)

Pode-se dizer que a civilização indígena se funda na pedagogia do

canto, da dança e da música: uma civilização celebrativa,

responsável pela socialização pedagógica daquelas artes na vida

cotidiana do homem e da mulher brasileira,

Na civilização indígena as artes do canto, da dança e da música

associam-se fundamentalmente à pedagogia celebrativa do

cotidiano, utilizadas como instituição terapêutica promotora e

mantenedora de qualidade de vida étnica.

Tão fundamental é o canto, a dança e a música na civilização

indígena que os homens e as mulheres fazem de seu próprio corpo

um instrumento musical: sobretudo para as macroetnias Tupi e

Guarani, o corpo é flauta e a harmonia ecofísica e ecocósmica

desse corpo mantém-se pelo cuidado diário com a ritmicidade

mediante a dança, a música e o canto.

O cultivo permanente do canto, da dança e da música como

instituição pedagógica, cultivada desde a infância, convenceu

milenarmente os povos indígenas de que o exercício dessas artes

Page 54: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

54

tem poder curativo: não apenas nos cerimoniais de cura espiritual

dirigidos pelos Grandes Pajés mas no cotidiano de todos os

homens e mulheres indígenas existe a consciência rítmica de que

o canto, a dança e a música são forças pedagógicas e

terapêuticas.

A fundamentalidade do canto, da dança e da música na civilização

indígena tornam o seu povo um povo celebrativo: conforme já

destaquei no capítulo dois desta obra, celebram os nascimentos

de seus filhos, os casamentos, os noivados das moças, a entrada

dos rapazes no mundo dos homens, as estações do ano, a época

das colheitas, o sucesso das pescas, as vitórias sobre etnias

hostis, festejam as lutas guerreiras, as manifestações religiosas,

a morte das pessoas. Portanto, as atividades de Ianamá de fazer

flautas e ser flautista estão dentro da instituição milenar do

canto, da dança e da música no cotidiano da civilização indígena

que introduz comunitariamente tais aprendizados pedagógicos e

terapêuticos desde a mais tenra idade de suas crianças.

A vida celebrativa dos povos indígenas integrou-se ao culto

africano dos orixás no Brasil, ampliando-lhe e dando consistência

histórica nacional aos ritos e rituais afro-brasileiros: portanto,

no campo do sincretismo, primeiro há que se (re)conhecer uma

cultura musical indígena, luso-indígena, afro-indígena e, apenas

posteriormente, uma cultura musical afrobrasileira.

Page 55: UM RITO DE PASSAGEM PARA A IDADE MADURA MASCULINAstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/365776.pdf · mulher consigo mesmos interconexo ao cuidado com a cultura a que pertencem

55

O corpo masculino de Ianamá expressa todo o resultado de

crescimento e de desenvolvimento da milenar cultura indígena do

corpo, particularmente no que se refere à característica de um

corpo culturalmente musical.