tecendo geografias em viagens
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Trabalho de conclusão do curso de Geografia no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação da professora Dra. Virgínia de Lima Palhares, para obtenção do título de Bacharel em Geografia. Resumo: Ao viajar, nos relacionamos com o espaço. Sentimos e percebemos, pois essa é uma necessidade básica para se existir no mundo: ser no tempo e no espaço. Podemos, portanto, compreender quais sentimentos pelo espaço definem a experiência da viagem através dos significados essenciais anunciados pelo viajante ao relatar sua experiência; e a partir disso, identificar quais categorias geográficas (e como) compreendem e expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espaço, durante a viagem.TRANSCRIPT
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Universidade Federal de Minas Gerais
Instituto de Geocincias
Departamento de Geografia
TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS
Aline Lcia Nogueira Medeiros
Orientadora: Virgnia de Lima Palhares
Belo Horizonte, 2014
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Universidade Federal de Minas Gerias
Instituto de Geocincias
Departamento de Geografia
TECENDO GEOGRAFIAS EM VIAGENS
Trabalho de Concluso do Curso
Aline Lcia Nogueira Medeiros
Trabalho de concluso do curso de
Geografia no Departamento de
Geografia da Universidade Federal
de Minas Gerais, sob orientao da
professora Dra. Virgnia de Lima
Palhares, para obteno do ttulo de
Bacharel em Geografia.
Belo Horizonte, 2014
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FOLHA DE APROVAO
Tecendo geografias em viagens
por
Aline Lcia Nogueira Medeiros
Trabalho de concluso do curso de Geografia no Departamento de Geografia da Universidade
Federal de Minas Gerais, sob orientao da professora Dra. Virgnia de Lima Palhares, para
obteno do ttulo de Bacharel em Geografia.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Profa. Dra. Virgnia de Lima Palhares / Orientadora IGC/UFMG
_________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Luiza Grossi Arajo IGC/UFMG
__________________________________________________________
Profa. Dra. Mariana de Oliveira Lacerda IGC/UFMG
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AGRADECIMENTOS
Sou sinceramente grata s pessoas que estiveram comigo at aqui. to fcil se perder
na imensido e na incerteza do mundo. Vocs so minhas ncoras nessa realidade que
compartilhamos. Sem vocs, eu no sei onde eu estaria.
Agradeo a minha famlia pelo lar, doce lar. Nunca entendi o que era isso, com todos os
seus pesares, at estar longe. Entendo agora o conforto simples e delicioso de se estar
em casa.
Agradeo s minhas queridas amigas que estiveram sempre comigo, seja aqui ou na
Frana (Carol, voc nosso orgulho, menina!), e com as quais eu cresci; em tantas
formas. Esse trabalho tambm s foi possvel por eu ter me conhecido com vocs.
Vocs so minhas paixes constantes.
Agradeo a minha orientadora, maravilhosa, Virgnia: sua dedicao a nossa geografia
humanista sempre admirvel. Sua ateno e pacincia me fizeram chegar at aqui e
por isso eu sou realmente grata.
Agradeo aos meus colegas da geografia, pelos momentos inesquecveis e
conhecimentos e informaes menos memorveis. Em especial: Fernanda, por sempre
me dar corda e impulsionar para frente; Andr, por todos aqueles seriados e filmes;
Alusio, por me doar suas energias sempre que eu precisava; Faf, pela disposio em
me aguentar; e talo, pela companhia sempre agradvel. Ao meu grupo especial: Laila,
mesmo com todo o estresse de final de semestre, ter voc no nosso grupo era a garantia
de uma fora certa e sempre necessria. Juliana, sua linda, sempre vou te admirar. Sua
trajetria me orgulha e ilumina. E, finalmente, por cada uma e todas as incontveis
risadas compartilhadas nas fronteiras da nossa realidade imaginria, marujo, Marcelo,
eu sou muitssimo agradecida. Agora s tente entender isso.
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RESUMO
Ao viajar, nos relacionamos com o espao. Sentimos e percebemos, pois essa uma
necessidade bsica para se existir no mundo: ser no tempo e no espao. Podemos,
portanto, compreender quais sentimentos pelo espao definem a experincia da viagem
atravs dos significados essenciais anunciados pelo viajante ao relatar sua experincia; e
a partir disso, identificar quais categorias geogrficas (e como) compreendem e
expressam os significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espao, durante a
viagem. Objetivos que me proponho a perseguir aqui. Para tanto, busco primeiramente
apoio na filosofia, atravs de Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no
mundo em termos dos significados essenciais, como ele o percebe e capaz de apreend-
lo. Entender o ser no mundo permite contemplar os viajantes no que eles so e no que
eles esto significando a viagem. Dessa maneira, me volto para o prprio ato de viajar,
e para as peculiaridades de estar em contato com um espao que no aquele do cotidiano.
Apresento cinco relatos de viagens, que variaram de seis meses a um ano, incluindo o
meu, que tambm foram compostos por inmeras viagens menores, de alguns dias.
possvel interpretar as relaes dos viajantes com o espao em ambas as situaes. Cada
relato de viagem evidenciou aspectos singulares da experincia, e inclusive pode ser
definido a partir de uma categoria essencial, mas possvel notar aspectos essenciais,
associados viagem enquanto vida especializada e a uma reflexo forada, que
compreende: um olhar forado para o diferente; pequenas aventuras; a conscincia da
nossa vulnerabilidade e da importncia de momentos de proteo. A valorizao da
experincia pela cincia est na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho geogrfico, que se
constitui atravs do entrelaamento dos saberes da fenomenologia, da geografia
humanista e da experincia do viajante, se insere nesse contexto. Na primeira parte,
Agulha e linha, estabeleo as bases que sustentam e possibilitam esse trabalho. No
discuto, porm, a viagem, visto que busco me voltar coisa mesma, vivida; que est
presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li sobre as viagens,
os relatos pessoais com os quais estou em contato; e na terceira parte, Tecendo geografias
em viagens, escrevo e reflito sobre a relao entre os sentimentos e impresses os
significados do espao com seus recortes categoriais geogrficos, numa tentativa de
expressar e compreender essas relaes entre os viajantes e os recortes espaciais que
definem melhor suas vivncias na viagem.
Palavras-chave: viagem, fenomenologia, categorias geogrficas, experincia.
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ABSTRACT
When traveling, we relate to the space, feel and perceive, as this is a basic need to exist
in the world: being in time and space. We can therefore understand what feelings through
space define the experience of the journey through the essential meanings announced by
the traveler when recounting his experience; and from this, identify which geographic
(and how) categories comprise and express the essential meaning established between the
traveler and space while traveling. Goals that I propose to pursue here. To do so, first I
seek support in philosophy, through Husserl and Merleau-Ponty, to understand the subject
in the world in terms of essential significance, as he perceives it and is able to grasp it.
Understand being in the world can grasp travelers as they are (consciousness of the
world), and they are meaning - the journey. Thus, I turn to the act of traveling itself, and
the peculiarities of this act to be in contact with a space that is not that every day. Five
travel narratives, ranging from six months to one year, including mine, presented.
However, they also were composed of numerous smaller trips, days to weeks. It is
possible to interpret the relations of space travelers in both situations. Each travelogue
highlighted unique aspects of the experience, even can be defined as an essential category,
but it is also possible to see key aspects associated with the trip as a specialized life; a
forced reflection, comprising a forced look different; little adventures; awareness of our
vulnerability and the importance of moments of protection. The appreciation of the
experience of science is on the agenda. This work, geographic nature, which is through
the interweaving of knowledge of phenomenology, humanistic geography and traveler
experience, falls within that context. In the first part, Needle and thread, I establish the
foundations that support and enable this work. I do not dispute, however, the journey, as
I try to get me back to the same thing, lived; that is present in the second part, Traveling,
in which I present what I experienced, heard and read about travel, personal accounts with
whom I am in contact to; and in the third part, Weaving geographies in travel, write and
reflect on the relationship between feelings and impressions - the meanings - the space
with your clippings geographic categories, an attempt to express and understand these
relationships between travelers and spatial slices that define better their experiences on
the trip.
Key words: travel, phenomenology, geographic categories, experience.
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SUMRIO
SUMRIO ....................................................................................................................... 7
PRIMEIRA PARTE Agulha e linha ........................................................................ 11
Do contexto .................................................................................................................... 12
Do trabalho ..................................................................................................................... 13
Da cincia ou como fazer cincia atravs da compreenso de experincias individuais 19
Singular, universal: significados essenciais ........................................................... 21
Sujeitos, viajantes ................................................................................................... 22
Ser no tempo e no espao: recortes geogrficos ............................................................. 23
Pontes para a viagem ...................................................................................................... 25
SEGUNDA PARTE Viajar ....................................................................................... 28
Eu, viajante ..................................................................................................................... 29
Fabrcio, viajante ............................................................................................................ 44
Fernanda, viajante ........................................................................................................... 52
Andr, viajante................................................................................................................ 79
Juliana, viajante ............................................................................................................ 101
TERCEIRA PARTE Tecendo geografia em viagens ........................................... 115
Das categorias geogrficas ........................................................................................... 116
Dos relatos de viajantes ................................................................................................ 133
Tecidos: geografias e viagens ....................................................................................... 138
Do incio ou algumas concluses de no-finais ........................................................... 139
REFERNCIAS ......................................................................................................... 141
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INDICE DE FIGURAS
Figura 1- Manh ensolarada de inverno em Guyancourt, saindo da casa das amigas
brasileiras, Frana ........................................................................................................... 40
Figura 2 - Jardim de um castelo, em Rambouillet, prximo cidade onde eu morava,
Frana ............................................................................................................................. 41
Figura 3 - Caminhando por Londres, em uma tarde chuvosa, Inglaterra ....................... 41
Figura 4 - Brumas em Veneza, Itlia .............................................................................. 42
Figura 5 - Bancos voltados para gua, em Veneza, Itlia. nsia por esse lugar de espera.
........................................................................................................................................ 42
Figura 6 - Escada em processo de eroso nas runas de Roma, Itlia ............................ 43
Figura 7 - Chuva e sol; poas d'gua e reflexos no cho de pedras, em Roma, Itlia .... 43
Figura 8 - Caminho utilizado para viagem at a Blgica, para assistir a um festival de
msica eletrnica ............................................................................................................ 49
Figura 9 - Cratera de um vulco preenchida por gua, na Islndia ................................ 50
Figura 10 - Trofus em estdio do Liverpool, em Liverpool, Inglaterra. ....................... 50
Figura 11 - Abbey Road, rua que aparece na capa do disco de mesmo nome dos Beatles,
lanado em 1969. ............................................................................................................ 51
Figura 12 - Eu vestido com a mscara de cabea de cavalo em Springbreak, na Crocia
........................................................................................................................................ 51
Figura 13 - Tronco mgico no lago Maria Laach, prximo a Trier, Alemanha ............. 74
Figura 14 - Monumento em homenagem s vtimas do holocausto, congelado, em
Berlim, Alemanha ........................................................................................................... 75
Figura 15 - Paisagem tpica da Alemanha: encostas verdejantes, vila e centrais nucleares
ao fundo .......................................................................................................................... 76
Figura 16 - Piscina pblica que invadimos, a noite, em Trier, Alemanha...................... 76
Figura 17 - Monte Tartre, Eslovquia ............................................................................ 77
Figura 18 - Pessoa subindo o Monte Tartre com gales de gua e comida nas costas,
Eslovquia ...................................................................................................................... 77
Figura 19 - Eu, Andr e Aline em virada do ano 2012 para 2013, em Paris, Frana. .... 78
Figura 20 - Dois bonecos de neve na praia, em Brighton, Inglaterra ............................. 78
Figura 21 - Domingo tarde em Lisboa, Portugal ......................................................... 97
Figura 22 - Um pouco do que eu vi em Marrakech, Marrocos: um povo simples e
sereno, simptico e acolhedor ......................................................................................... 98
Figura 23 - O contraste entre duas culturas em um contexto de desenvolvimento, em
Marrakech, Marrocos...................................................................................................... 98
Figura 24 - Pub em runas em Budapeste, Hungria ........................................................ 99
Figura 25 - Tarde quente em Londres, ao som da voz de uma cantora portuguesa,
Inglaterra ......................................................................................................................... 99
Figura 26 - Placa indicativa da Rua da Atalaia, em Lisboa, Portugal .......................... 100
Figura 27 - Placas e outras lembranas de viagem no meu quarto, Brasil ................... 100
Figura 28 - Vista da minha casa com famlia portuguesa para o Rio Douro, na parte
superior, e o jardim japons do Palcio de Cristal, na parte inferior, em Porto, Portugal
...................................................................................................................................... 111
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Figura 29 - Eu vestida com mscara de unicrnio na casa de um amigo brasileiro em
Porto, Portugal .............................................................................................................. 111
Figura 30 - Caminhando pelo Muro de Berlim, Alemanha .......................................... 112
Figura 31 - Exposio sobre imigrantes italianos na Itlia ........................................... 112
Figura 32 - Aline e eu em jardim do Castelo de Versalhes, Frana ............................. 113
Figura 33 - Pr do sol na foz do Rio Douro no primeiro dia de sol depois um ms
horrvel de chuva constante, em Porto, Portugal .......................................................... 113
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Leitor, se tiveres ocasio, erra o caminho
Rui Pires Cabral
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PRIMEIRA PARTE Agulha e linha
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Do contexto
Para completar o caminho de minha formao como gegrafa cumpre realizar um
trabalho final. Esse caminho percorrido nos ltimos anos (comeou em 2009 e no possui
data de trmino, apenas de concluso de uma fase 2014), foi marcado por diversas
buscas. Buscas de conhecimento, afinidades e at mesmo de maneiras de expressar
(minhas) identidades. Comecei pensando em conflitos ambientais, passei para a
climatologia, recursos hdricos, geoprocessamento, depois geografia urbana, bem rpido.
E por todo esse percurso no me realizei completamente, seja no quesito afinidades ou no
quesito identidade. Sempre faltava algo, e o que eu aprendia nunca falava de verdade
sobre o que eu acreditava, sobre quem eu era no passava por mim todo esse
conhecimento; parecia passar fora de mim.
Os sinais do que eu buscava foram aparecendo. Eu sabia que tinha que levar em conta a
experincia, mas tinha que ser sobre o indivduo. No sobre classes, ou grupos sociais.
Indivduos, em suas individualidades. Mas como no incorrer em um relativismo
empirista? Como fazer cincia assim? Conheci a fenomenologia, que me veio como
soluo a esse impasse.
Durante o intercmbio, no qual passei um semestre estudando na Universit de Versailles
Saint-Quentin en Yvelines, na Frana, percebi outro sinal. Esse veio na forma de
incmodo, no de soluo. Que relao essa que tenho com o espao? Perguntava-me.
Visitei cidades, monumentos que s tinha visto no cinema e em livros. Senti, pensei e
conheci tantas coisas. Ainda me incomodava: que relao essa que comporta um
sentimento to forte, mas que em nada se parece com o que sinto quando estou em casa?
Nada tem do conforto e da segurana de conhecer tudo que envolve um espao ao ponto
de poder chamar de meu, meu lar. Ainda assim possvel estar l, porque existe um
sentimento de segurana e de conforto que vem de outra coisa, que no da certeza do meu
lar. Que espao esse? Como posso denomin-lo? Ser possvel ser um lugar? Ou no?
Ao retornar para casa, todas as relaes e sentimentos que desfrutei na viagem se
tornaram ainda menos entendidas. Pensei no que senti e vivi, e procurei as respostas na
geografia. Cheguei, por fim, geografia que eu buscava, desde o incio a geografia
humanista. Conheci o gegrafo Yi-Fu Tuan e sua produo sobre a relao do indivduo
com o espao, atravs da topofilia e da topofobia. Dizia muito sobre as minhas dvidas
ao colocar em palavras os sentimentos para com o lar, o lugar. Mas, ainda assim, no
comportava ou respondia minhas dvidas sobre os espaos da viagem.
-
Do trabalho
Da surgiu esse trabalho, que sinaliza a concluso de uma fase. Nada melhor do que fazer
um trabalho justamente em meio ao movimento geogrfico que te define, que fala a voc,
diretamente.
O que busco compreender nesse trabalho so aquelas questes que me ocuparam durante
a viagem que fiz Europa e, especialmente, Frana mas que hoje no se limitam a
esses locais ou a mim. Quais os significados essenciais que se estabelecem entre o viajante
e o espao, durante a viagem? Como definir esses significados e quais categorias
geogrficas os compreendem e explicitam?
Questes essas que se traduzem nos meus objetivos:
Compreender os significados essenciais que se estabelecem entre o viajante e o
espao, durante a viagem.
Identificar quais categorias geogrficas e como elas compreendem e expressam os
significados essenciais estabelecidos entre o viajante e o espao, durante a viagem.
Para alcanar os objetivos propostos, busco primeiramente apoio na filosofia, atravs de
Husserl e Merleau-Ponty, para compreender o sujeito no mundo em termos dos
significados essenciais, como ele o percebe e capaz de apreend-lo. Entender o ser no
mundo permite contemplar os viajantes no que eles so (conscincias de mundo), e no
que eles esto significando a viagem. Dessa maneira, me volto para o prprio ato de
viajar, e para as peculiaridades desse ato de estar em contato com um espao que no
aquele do cotidiano.
Edmund Husserl (1859-1938) nasceu na Morvia, atual Repblica Tcheca, em uma
famlia judia liberal caracterizada por sua indiferena religiosa. Estudou astronomia,
matemtica e, por fim, filosofia, buscando sempre um entendimento mais profundo e
fundamental do conhecimento.1 Elaborou os princpios da fenomenologia, perspectiva da
filosofia contempornea que se ocupa da descrio dos fenmenos maneira como eles
aparecem a ns na experincia do vivido. Para Husserl, sem esclarecer a maneira como
os fenmenos se do a ns, conscincias vividas, as cincias permanecem cegas s origens
de seus conhecimentos tcnicos.2
1
2
-
teorias fsicas e fisiolgicas das cores no proporcionam nenhuma claridade intuitiva do
3. Ou seja, nenhuma das explicaes cientficas sobre
o que a cor consegue descrev-la de maneira a permitir o entendimento do que ela da
A fenomenologia deveria
proporcionar um mtodo filosfico que fosse livre por completo de todas as
pressuposies que pudesse ter aquele que refletisse; descreveria os fenmenos
4. Para tanto, convm voltar-nos as coisas maneira
como elas se do a ns, conscincias, em busca de as compreender.
Em ordem de operar esse retorno, Husserl adverte para a necessidade de se colocar o
fenmeno entre parnteses, isto , em suspenso suspende-se qualquer afirmao de
-
se examinar todos os contedos de conscincia, no para determinar se tais contedos so
reais ou irreais, imaginrios, etc., mas sim para examin- 5.
representao da fantasia esto no mesmo p de igualdade; a partir de ambas se pode
6. A fenomenologia, enquanto
estudo da forma como os fenmenos se do a ns, conscincias, no diferencia os
fenmenos percebidos, fantasiados ou lembrados, no sentido de que igualmente possvel
encontrar os seus sentidos essenciais.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) nasceu na Frana e, a partir da leitura da
fenomenologia de Husserl, desenvolveu o que seria conhecido como uma ontologia da
carne (ou do corpo). Sua obra colocou o ser, conscincia, no espao e no tempo, se
baseando na percepo e no comportamento para entender como os fenmenos se do a
ns e como interagimos com eles. Para o filsofo, as coisas do mundo no existiam
separadas do sujeito, como simples objetos neutros. O sujeito s existia numa relao
7 e que suas qualidades,
3
4
5
6
7
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como aucarado ou viscoso, so apenas duas maneiras de dizer a mesma coisa, que a
relao do mel com o mundo ou com o sujeito carnal que por ele confrontado. Essas
de ser ou de se comport 8. Para ele, o sujeito est investido no mundo e o mundo
no sujeito.
A perspectiva da experincia conforme entendida por Husserl e Ponty est presente e
fundamenta toda a reflexo acerca da experincia de viajar, assim como do chamado para
retornar coisa mesma, que aqui a viagem.
David Seamon9 afirma que para realizar esse exerccio so necessrios dois momentos.
O primeiro consiste em deixar de lado as teorias convencionais acerca do assunto, o que
aqui se refere aos conhecidos trabalhos de tericos da viagem (ou travelwriters)10. O
11. Para fazer isso, existem algumas possibilidades.
Seamon escreve que possvel refletir cuidadosamente sobre o tema e como a experiencio
na minha prpria vida. Ou reunir relatos descritos por outros, por meio de entrevistas,
conversas ou at da literatura.
Atravs da experincia da viagem que poderei interpretar e expressar, luz dos prprios
conhecimentos tericos da geografia, isto , das categoriais geogrficas de lugar, de
paisagem, da regio, do territrio, do espao e do mundo, os significados que se
estabelecem entre o viajante e o espao, durante a viagem. Dessa forma, embora se
fundamente na fenomenologia, esse trabalho no se limita a ela. Ele consiste em uma
interpretao geogrfica da viagem a partir de um arcabouo terico-metodolgico ligado
fenomenologia. Essa interpretao geogrfica aparece atravs da busca por
compreender quais categorias geogrficas melhor expressam a relao do viajante com o
espao. O trabalho, portanto, apresenta trs eixos: o fenomenolgico, que o
embasamento terico filosfico; o geogrfico, atravs das categorias e significados da
experincia relacionados viagem, que o tema convergente dessa pesquisa.
8
9
10
11
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Busco apreender como se d a relao do viajante com o espao atravs da experincia
da viagem. Para tanto, analiso a minha experincia de viagem, com durao de um
semestre (setembro de 2012 a fevereiro de 2013), Europa e, especialmente, Frana.
Recorro ainda a conversas livres com outros quatro viajantes, quantidade e escolha
limitada queles que j conhecia e que encontrei durante a minha viagem. Essas conversas
so orientadas apenas pela inteno de ouvir uma descrio da experincia de viagem dos
sujeitos. De forma que os quatros sujeitos so deixados a levantar as questes que
envolveram suas viagens de forma livre, embora eu interfira em certos momentos para
tentar entender melhor como se deu alguma experincia relatada. Todos os relatos
comeam com o perodo de viagem e pas para onde ela ocorreu, em primeiro lugar. Elas
tm em comum a longa durao e finalidade: intercmbio universitrio. Mas so
recheadas de questes e outras viagens que se diferem amplamente, e que foram
anunciadas pelos sujeitos viajantes. Posteriormente, procuro significar o que os sujeitos
sentiram durante o processo de experienciar a viagem, sempre focando as relaes com
espao.
A pergunta que procuro responder nessa etapa : o que a experincia da viagem? Ela
envolve no apenas as conversas, como tambm a anlise das fotografias dessas viagens.
As fotografias foram selecionadas, em primeiro lugar, pelos sujeitos viajantes, inclusive
eu. Elas podem ou no ser mencionadas nos relatos de viagem, sendo que a prioridade
para integrar esse trabalho foi, alm do fato de ser mencionada, o peso emocional ao ser
mencionada. A quantidade e o contedo das fotografias foram deixados abertos, para
escolha dos sujeitos, de modo que alguns escolheram cinco e outros quinze. Geralmente,
lembrar no reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje,
imagem construda pelos materiais que esto, agora, nossa disposio (12. Nesse
sentido, a anlise das fotografias dos viajantes permite duas consideraes: a primeira,
acerca dos contedos e significados contidos na imagem. O que ela enquadra? O que ela
evoca? Quais sentimentos permeiam a imagem? A segunda considerao refere-se
escolha das fotografias para completar os relatos. Por que foram escolhidas?
A fotografia, assim como o vdeo documental, uma representao
interpretativa da realidade, no sentido de ser algo recortado pela
percepo do olhar. A imagem quando divulgada publicamente uma
12
-
janela aberta atravs da qual podemos ver lugares e pessoas que no
conheceramos de outra forma. Ela nos contextualiza, faz-nos imaginar
como seria estar em certo ambiente vivenciando experincias.13
A anlise dos relatos dos viajantes, inclusive o meu, ocorrem em dois momentos. O
primeiro consiste na elaborao das descries de viagem, permeada com as fotografias;
o segundo momento consiste na reflexo sobre os sentimentos e impresses, os
significados essenciais, descritos pelos viajantes, seja pelas conversas ou pelas imagens.
Realizo, ainda, uma interpretao geogrfica das viagens ao relacionar esses significados
com as categorias geogrficas. Para tanto, h uma conceituao e reflexo acerca de cada
categoria, baseada em obras de outros gegrafos e na experincia do viajante.
As descries ou relatos de viagens foram concebidas a partir de conversas norteadas
apenas pela inteno de ouvir uma descrio da experincia de viagem; e posteriormente
da textualizao e transcriao dos relatos colhidos. O meu relato, excludo desse
processo, foi diretamente escrito. Cada relato foi colhido em um local diferente e em datas
diferentes. Os sujeitos viajantes foram convidados a relatar sua experincia de viagem,
bem como a selecionar fotografias de seu prprio acervo que considerassem mais
significativas, seja por registrar um momento importante ou um local. As fotografias
foram incorporadas aos relatos posteriormente, cerca de cinco ou seis para cada relato.
Os casos em que a seleo dos viajantes envolveu mais fotografias, eu selecionei quelas
que foram mencionadas durante as conversas por entender que elas, contextualizadas e
anunciadas, carregavam um peso maior conferido e relatado pelo prprio viajante.
Os significados essenciais se relacionam diretamente com a experincia de cada viajante,
e sua vivncia do fenmeno. Ao descrevermos a viagem da forma como a vivenciamos,
ns, viajantes, permitimos a anlise dos seus significados e a compreenso do fenmeno
as unidades bsicas de entendimento comum de qualquer fenmeno, aquilo sem o que o
14 A apreenso das essncias primeiramente
intuitiva, pois nos permite agrupar fenmenos essencialmente semelhantes, como as
viagens. Entender quais so essas caractersticas que determinam o fenmeno possvel
atravs da reduo fenomenolgica. Ela compreende o retorno coisa mesma e a
13
14
-
suspenso de toda afirmao de existncia que no advenha do sujeito que vivencia e
nenhum momento de sua obra procurou esclarecer definitivamente o que se deveria
ente 15, defino
aqui o percurso trilhado, baseado na fenomenologia de Husserl, em trs etapas: descrio
mtodo da descrio so os dois traos que caracterizam, desde o incio, o mtodo
16.
A descrio densa consiste em dizer tudo aquilo que envolve a experincia singular a que
nos referimos, mesmo tendo que provar da pobreza da descrio. Consiste em no
completar, isto , no preencher de propsito as lacunas da descrio, e em ser o mais
completo possvel, sem negligenciar qualquer faceta da coisa descrita17. Merleau-Ponty
-se de descrever, no de explicar nem
18. A reduo consiste em variar a coisa descrita at se atingir a conscincia
da impossibilidade, ou seja, da caracterstica da coisa reduzida sem a qual impossvel
pensar. Tal o gesto da reduo: um retrocesso ao originrio sensvel, que implica
movimento de imerso no mundo concreto. Tais reunies do lugar a uma quase-
19
de fazer o mundo aparecer tal como ele antes de qualquer retorno sobre ns mesmos,
20. A
passo seria obrigatoriamente o ltimo, pois a interpretao encerra qua 21.
A valorizao da experincia pela cincia est na ordem do dia. Esse trabalho, de cunho
geogrfico, se constitui atravs do entrelaamento dos saberes da fenomenologia, da
geografia humanista e da experincia do viajante. Se insere nesse contexto, e se torna no
apenas uma expresso da possibilidade da cincia baseada no indivduo (superando a
querela empirismo versus logicismo) mas tambm uma abertura (para mim, para outros)
15
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18
19
20
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-
para a elaborao de novos trabalhos e de novas perspectivas para velhos trabalhos.
Essa pesquisa, ainda, contempla a elucidao de um fenmeno em voga, que a viagem.
Facilitada pelos avanos dos transportes areos, pela poltica internacional que protege o
viajante internacional e muitas vezes facilita a viagem atravs de acordos de trabalho e
estudos (como os intercmbios universitrios), e pela multiplicao de agncias e pacotes
promocionais de viagem atravs de compras coletivas, a viagem hoje uma realidade que
perpassa o conhecimento de novos espaos (cidades, monumentos, pessoas, costumes e
patrimnios culturais), e, portanto, tem bastante a dizer geografia do indivduo.
Esse trabalho foi dividido em trs partes. Cada parte constitui o todo desse trabalho, mas
como as viagens e a experincia, so infinitas em si mesmas e no esto, de maneira
alguma, acabadas. Embora estejam materializadas aqui dessa forma, e no de outra, ainda
so a evidncia de um assunto que inesgotvel. No pretendo aqui passar algumas
informaes ou contar histrias. Pretendo realizar uma atividade reflexiva, mas que no
seja apenas minha. Nos espaos brancos entre uma letra e outra dessa escrita deixo a
abertura para a reflexo.
Nessa primeira parte, Agulha e linha, estabeleo as bases que sustentam e possibilitam
esse trabalho. No discuto, porm, a viagem, visto que busco me voltar coisa mesma,
vivida; que est presente na segunda parte, Viajar, na qual apresento o que vivi, ouvi e li
sobre as viagens, os relatos pessoais com os quais estou em contato; na terceira parte,
Tecendo geografias em viagens, escrevo e reflito sobre a relao entre os sentimentos e
impresses os significados do espao com seus recortes categoriais geogrficos, numa
tentativa de expressar e compreender essas relaes entre os viajantes e os recortes
espaciais que definem melhor suas vivncias na viagem.
Da cincia ou como fazer cincia atravs da compreenso de experincias
individuais
O conhecimento cientfico se valida atravs dos procedimentos que permitem chegar a
ele o tambm chamado mtodo cientfico. Baseado inicialmente em experimentos
inmeros que buscavam confirmar ou eliminar hipteses, o mtodo cientfico se
modificou. Tornou-se obsoleto. No contemplava o conjunto diverso de prticas dos
cientistas para se compreender a realidade. Ainda hoje, diversas escolas de pensamento
conversam umas com as outras buscando fundar um mtodo de conhecimento mais
pertinente. O que se verifica, no entanto, que os mtodos so aplicados em consonncia
-
com os objetivos pretendidos. A cincia existe enquanto saber fragmentado em diversas
abordagens e matrizes terico-metodolgicas22, que apresentam inclusive diferentes
concepes de cincia.
sistema de conhecimento conectado por razes de tal forma que cada passo era construdo
23. Entretanto, ele admitia que a
forma como a cincia era feita, marcada pelo abismo entre o positivismo e o
psicologismo, a impedia de tornar a vida
uma filosofia que a pusesse em contato com as preocupaes mais profundas do ser
24. Husserl afirmava a existncia de uma crise das cincias. Essa crise no se
definiria pela ausncia de uma cientificidade genuna (no abalava seus resultados
tericos
dizer sobre ns, homens, enquanto sujeitos desta liberdade? A mera cincia dos corpos
25. Ou seja, o estudo das
subjetividades essencial para a constituio de uma cincia significativa, que tenha algo
a dizer sobre a existncia humana. Husserl
exclusivamente a verificao daquilo que o mundo, de fato, , tanto o mundo fsico
26. O mtodo fenomenolgico desenvolvido por ele, em termos gerais,
busca retomar as investigaes acerca do que o mundo, de fato, , levando em
considerao tantos os aspectos fsicos quanto espirituais, de uma maneira rigorosa;
levando em considerao especificamente o que o mundo para a conscincia que o
anuncia. Merleau-Ponty afirma que o universo inteiro da cincia construdo sobre o
mundo vivido, e se queremos pensar a prpria cincia com rigor, apreciar exatamente seu
sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experincia do mundo da
27.
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25
26
27
-
Sendo assim, acredito que insensato tentar neutralizar qualquer trabalho, retirando das
palavras o sujeito que as escreve, conforme fica evidenciado aqui e que isso no se
confunde de maneira alguma com o ato de colocar o fenmeno investigado entre
parnteses para apreender o que ele sem a influncia do que j foi dito sobre o que ele
. E vou alm: entendo que a prpria negao dessa cincia da ordem e da lei permite a
abertura para outras abordagens, inclusive quelas que se baseiam na experincia do
indivduo como forma de compreender o sentido da existncia e do mundo, o que no
significa incorrer em um relativismo, conforme veremos. Marandola28 afirma que no
estudo das experincias imbricam-se os sentidos, as sensaes, as percepes, as
cognies e as relaes entre diversos polos que podem ser tanto complementares quanto
concorrentes: tempo-espao, subjetividade-objetividade, histria-memria, indivduo-
se compreender o mundo, recorro a fenomenologia.
Husserl afirma que no existe conscincia que no seja de algo. A existncia intencional.
S existimos nesses momentos de visar algo, nessa relao nossa com o mundo. A
conscincia uma atividade de estar consciente, constituda por atos. Podemos pensar,
sentir, fantasiar, lembrar, julgar, comparar, explicar, ou seja, realizar diversos atos de
conscincia. Mas em cada um desses atos de conscincia est tambm o fenmeno
pen
algo. Todos esses movimentos se traduzem no conceito de vivncias. Segundo Depraz29,
capaz de se apropriar dos objetos do mundo, recebendo-os a princpio em sua qualidade
designar esses movimentos de vivncia do mundo.
A experincia abrange as diferentes maneiras por intermdio das quais uma pessoa
conhece e constri a realidade. Essas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e
passivos como o olfato, paladar e tato, at a percepo visual ativa e a maneira indireta
30. Parte da experincia a percepo dos fenmenos sensveis, atravs
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29
30
-
dos sentidos. Mas os fenmenos no so percebidos em sua totalidade. Sempre falta uma
parte, seja porque nosso olhar no contempla o todo do objeto ou porque a luminosidade
do ambiente no nos permite. Estamos sempre completando os objetos visados, o que nos
permite pensar em uma primeira anlise que eles j se do em sua totalidade a ns. Os
fenmenos so infinitos. Essa mesma abertura, possvel porque no vemos a totalidade
dos fenmenos ou dos objetos, permite que haja a sua universalizao.
Alm de simplesmente perceber os fenmenos, ns percebemos intuitivamente a essncia
dos fenmenos. Porque ao visar uma casa (ou diversas casas diferentes), sabemos que
uma casa. Sabemos que casa corresponde a diversos tipos de casas e no a uma s porque
j apreendemos a essncia de casa mas tambm corresponde a cada uma. Existem
algumas definies j incorporadas a ns que permitem visualizar, em cada uma, seu trao
singular, e tambm seu trao universal.
As essncias so as maneiras caractersticas do aparecer dos fenmenos.
No so resultados de uma abstrao ou comparao de vrios fatos.
Para poder comparar vrios fatos singulares, j preciso ter captado
uma essncia, ou seja, um aspecto pelo qual eles so semelhantes. O
conhecimento das essncias intuio diferente daquela que nos
permite captar fatos singulares. As essncias so conceitos, isto ,
objetos ideais que nos permitem distinguir e classificar os fatos.31
A experincia no particular; no diz respeito a s uma situao. Ela singular, e
universal32. Apreender o universal das experincias permite uma compreenso do geral,
superando o relativismo que implica basear o saber apenas em particularidades infinitas.
A viagem tem seus traos singulares, que dizem respeito experincia contingente do
indivduo, mas tambm tem seus traos universais. Sendo assim, esse trabalho no se
baseia em um relativismo empirista, mas sim na fenomenologia, no estudo dos fenmenos
(essncias de fenmenos, significados e percepes) conforme proposto, especialmente,
por Husserl e Merleau-Ponty.
Husserl afirma que no existe conscincia que no seja de a ideia central
de Husserl foi sempre de que a conscincia era a condio de toda a experincia, e at
mesmo constitua o mundo, mas de uma forma tal que o prprio papel da conscincia era
31
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-
33. Sem algo ao que a conscincia
visa, o mundo, no existe conscincia. O que significa dizer que ns existimos no mundo,
e sempre no mundo, porque o fenmeno que nos permite estar aqui e dizer ou pensar
qualquer coisa (inclusive esse trabalho), o que nos permite perceber que ns estamos aqui,
a conscincia intencional. Husserl34 nos di
objetos da experincia possvel e do conhecimento possvel da experincia, dos objetos
passveis de serem conhecidos com base em experincias atuais do pensamento terico
ndivduos no devem ser considerados por
si mesmos, mas sempre em interao com o mundo. Suas experincias se do numa
relao entre o ser que experiencia, o experienciar e o que experienciado. De modo que
o mundo no deve ser considerado como exterior a
ser; ele possui um sentido para mim, ele me dado em seu sentido antes que em seu ser.
35. Se o que h uma conscincia de algo, esse
algo s existe para mim na medida em que percebido. Logo, seu ser antes o seu sentido.
O sujeito se confunde com o objeto, se completam, concorrem, coexistem. De forma que
falar da experincia da viagem no significa descrever a relao entre um ser e sua
exterioridade, os espaos da viagem; mais do que isso. Essa relao inclui uma
intencionalidade, uma necessidade de presentificao entre as partes. O sujeito que visa
e o objeto que visado so copresentes e se confundem na textura mesma do ser no
mundo. Expressar essa relao atravs da geografia como tecer. infundir na textura
do mundo grafias dos momentos de um contato entre ser e mundo que transpassa e perfura
a prpria espessura dessa existncia.
Ser no tempo e no espao: recortes geogrficos
O ser humano , portanto, conscincia de fenmenos do mundo. Estabeleci j a
necessidade do mundo para a existncia da conscincia. A conscincia, por sua vez, s se
realiza na corporeidade do ser humano.
Enquanto tenho um corpo e atravs dele ajo no mundo, para mim o
espao e o tempo no so uma soma de pontos justapostos, nem
tampouco uma infinidade de relaes das quais minha conscincia
33
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-
operaria a sntese e em que ela implicaria meu corpo; no estou no
espao e no tempo, no penso o espao e o tempo; eu sou no espao e
no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca. A amplitude dessa
apreenso mede a amplitude de minha existncia; mas, de qualquer
maneira, ela nunca pode ser total: o espao e o tempo que habito de
todos os lados tm horizontes indeterminados que encerram outros
pontos de vista36.
O ser no mundo, que a prpria sntese da existncia humana, s se d corporificado. O
campo de relaes o corpo representa a transio do 'eu' para o mundo, ele est do lado
do sujeito e, ao mesmo tempo, envolvido no mundo. O corpo constitui o ponto de vista
do ser-no-mundo. 37.
A forma como a conscincia-corpo se d no mundo imediatamente atravs da
percepo. O tecido do mundo um continuum do tempo e do espao. A experincia
perceptiva se d na medida em que o ser humano existe. De forma que, se eu quisesse
traduzir exatamente a experincia perceptiva, deveria dizer que se percebe em mim e no
que eu percebo38. Ela no uma vontade ativa, antes uma manifestao do mundo que
se d em mim; uma espcie de intencionalidade passiva e essencial existncia, que existe
na coexistncia, de forma que apenas a minha solicitao no o presentifica, da mesma
maneira que no existe na medida em que no se d a mim. Essa manifestao do mundo
que se d em mim atravs da experincia perceptiva uma sensao. Toda sensao
pertence a certo campo. A viso, por exemplo, refere-se presena de um campo visual,
ao qual o ser humano tem acesso. Da mesma forma, a audio. Esses campos definem a
noo de sentido. Sentidos so sensaes que pertencem a certo campo39. Cada qualidade
40. Entretanto, a unidade de um objeto permanece
desconhecida se considerarmos cada uma das suas qualidades como dados que pertencem
cada uma de suas qualidades: ela reafirmada por cada uma delas, cada uma delas a
41.
Na compreenso das experincias de viagens, busco entender como o tecido continuum
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espao-temporal manifesta-se nos viajantes e quais sentimentos produz nessa dialtica,
expressando-a maneira da geografia. Portanto, valorizo os sentidos e as sensaes
enquanto interaes do corpo no espao (ou do espao no corpo). A relao carnal entre
espao no so as de um sujeito desencarnado com um objeto longnquo, mas as de um
42.
A existncia baseada numa relao em que se interpenetram ser e mundo permite a
definio de recortes geogrficos expressivos de manifestaes do mundo no corpo ou do
corpo no mundo. Essa noo melhor explorada na terceira parte, Tecendo geografias
em viagens.
Pontes para a viagem
O que podemos dizer, ento, sobre a viagem? Vimos que a relao do sujeito no mundo
conforme proposta na fenomenologia de Husserl permite o entendimento da experincia
da viagem no como descrio da relao entre um ser e sua exterioridade, os espaos da
viagem; mas atravs de uma relao que inclui uma intencionalidade, coexistncia que se
confunde na textura do ser no mundo.
Na compreenso das experincias de viagens, devo entender como o tecido continuum
espao-temporal manifesta-se nos viajantes e quais sentimentos produz nessa dialtica,
expressando-a maneira da geografia. Entendo a necessidade do corpo ser no mundo e
valorizo as formas de interao corpo-mundo, notadamente atravs das percepes,
sensaes, sentidos e impresses.
A relao entre singular-universal na concepo fenomenolgica permite concluir que a
viagem tem seus traos singulares, que dizem respeito experincia contingente do
indivduo, mas tambm tem seus traos universais. Para compreender ambos os aspectos
devo voltar coisa mesma. Voltando experincia da viagem, compreendo sua essncia.
No pr-julgo ou imagino quais sero os sentimentos e impresses que constituem a
viagem, mas antes busco voltar prpria experincia seja ela a minha ou de outros.
As concepes aqui expostas delimitam os fundamentos, a agulha e a linha que vo
permitir tecer na textura do mundo grafias dos momentos de contato entre ser e mundo,
que transpassa e perfura a prpria espessura dessa existncia.
42
-
Colocar as viagens entre parntese na busca dos seus significados essenciais perpassa um
primeiro movimento: o descritivo. A descrio envolve trazer mente a experincia e a
vivncia da viagem, e a articulao das impresses e sentimentos em palavras que
possibilitem sua criao. Esse processo no ocorre sem dificuldades. A incluso das
fotografias nos relatos de viagem procura presentificar seus contedos, compor a
memria e evidenciar o olhar e as impresses que os espaos da viagem proporcionaram
nos viajantes ou os viajantes nos espaos. Esses relatos permitem mesmo a criao de
uma experincia de viagem e respondem a uma autoria compartilhada: eles so tanto meus
quanto daqueles que os anunciaram.
O tecido que aqui ser composto marcado pelos relatos de cinco viajantes, incluindo o
meu, nossos encontros e outras linhas formando ns, expresso do cruzamento de fios.
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Sob a chuva abro um mapa-mndi.
Joan Brossa
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SEGUNDA PARTE Viajar
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Eu, viajante
Esse relato foi concebido em um quarto bagunado e cheio de livros, aos sons de uma
cidade ao crepsculo. Grande parte dele foi percorrido pelo sol que sempre de vero
nessa cidade. Outra parte foi regada a msica, e outra ainda a caf preto e forte. De
modo que as palavras so todas manifestaes singulares de um momento verdadeiro:
de sol, msica e caf. Percorrido por lembranas, recordaes e sensaes de uma
viagem inteira.
Fui para a Frana em setembro de 2012 e voltei em fevereiro de 2013. Fiz um semestre
do curso de Geografia na Universidade de Versailles, campus Saint-Quentin-en-Yvelines,
que fica no departamento de Yvelines. Morei numa cidade prxima a Saint-Quentin, que
se chama lancourt. Fica a menos de uma hora de viagem de trem de Paris.
O processo de seleo dos intercambistas pela UFMG composto de vrias fases. Aps
ser aprovado em cada uma, existe a necessidade de apresentar centenas de documentos e
preencher outros tantos na busca por visto, moradia, ajuda financeira, comprovao de
proficincia lingustica, seguro de sade estrangeiro, etc. Conseguir o visto em si inclui
uma jornada, com direito a viagens para o Rio de Janeiro. Tantos documentos e
burocracias suscitam um sentimento preguia. O incio da viagem, toda a preparao
para o momento em que eu sairia do avio em solo estrangeiro, em um continente no qual
eu conhecia uma, talvez duas pessoas apenas, uma mistura de nervosismo e muita
preguia. O momento em si em que eu pousaria era ainda uma incgnita. De certa forma,
continua sendo. Fiz uma pequena escala em Portugal. No duraria uma hora. A primeira
coisa que fiz ao andar em solo europeu foi, terrivelmente, procurar um banheiro e bem,
vomitar todo o jantar servido no avio. O aeroporto era uma quimera, meio shopping meio
aeroporto. Andei rpido pelos corredores at a fila que me levaria para o prximo voo. O
voo seguinte, para Paris, foi mais marcante, apesar de bem mais curto. A primeira
vivncia do idioma francs, sendo falado em toda a sua exuberncia, foi ainda antes da
decolagem. Houve um problema com algum passageiro, ele no pde (quis?) entrar no
avio. Ficou do lado de fora discutindo com os membros da companhia de avio. No
entendi o que foi e isso segue sendo um mistrio. Mas suscitou reaes extremas dos
outros passageiros, que compartilhavam suas opinies (se em defesa do passageiro que
no entrou ou contra o atraso de mais de uma hora na decolagem, eu sinceramente no
sei) em altas vozes, num francs incompreensvel. Minha primeira impresso dos
aeroportos que conheci foi que tinham muitas pessoas diferentes. Vestindo trajes tpicos
-
de diferentes culturas, religies. Com fisionomias diferentes e tantos idiomas e jeitos de
falar incompreensveis. Ver essas pessoas foi fantstico e impressionante.
Ao chegar Frana, a ansiedade por no saber como iria do aeroporto at a minha moradia
atingiu nveis intensos e s se dissipou quando vi um homem segurando um pedao de
papelo com meu sobrenome. Era um servio da universidade que transportava os
intercambistas at a moradia ao chegar, mas que em momento algum foi confirmado. O
homem tentou conversar durante toda a viagem at a minha nova cidade, lancourt, mas
eu no queria desviar minha ateno do trajeto que passava pela janela. Disse para ele
que no falava francs e no nos falamos mais. O trajeto, para minha decepo, no
passava por nenhuma cidade. A estrada era contornada por floresta dos dois lados. Ainda
que a floresta fosse de um tipo novo para mim. Eu queria ver tudo.
A moradia era um prdio no final de uma rua sem passagem para carros, vizinha de um
parque, de um teatro e de um outro conjunto de apartamentos idnticos para idosos. Meu
apartamento era no segundo andar. A primeira impresso dessa nova vida foi uma
sensao aguda de que eu estava sozinha. Foi suscitada pela necessidade de subir quatro
lances de uma escada estreita carregando uma mala gigante e pesada totalmente sozinha.
Seguida do conhecimento de que meu novo apartamento era menor do que o quarto que
eu tinha deixado para trs. Por fim, reforada pelo fato de que meu telefone celular no
funcionava, eu no sabia como usar o telefone pblico e no tinha acesso internet. Tive
que pedir socorro a uma amiga, Carol, que mora com o noivo em Paris. Ns conhecemos
desde o ensino fundamental, quando estudamos juntas. Ento encontrar ela nesses
primeiros dias incomunicveis foi como encontrar um pedao de casa. Ela me apresentou
Paris pela primeira vez. Com ela, visitei a Torre Eiffel, a avenida Champs-Elyse e a
Igreja de Notre Dame.
Os primeiros momentos daquela viagem ficaram marcantes, assim como os ltimos. No
sei muito bem como foi o desenvolvimento dessa viagem. Tenho, na verdade, lembranas
de momentos que ficaram, por algum motivo, bem acessveis a memria. Assim como
dos sentimentos relativos aos espaos em que vivi naqueles seis meses. A descrio a
seguir no vai obedecer a uma cronologia real, at porque no sei qual foi (se que ela
de fato existiu).
A moradia estudantil em que morei se chama Lamarck e fica na cidade de lancourt. A
universidade em que eu estudava fica em uma cidade prxima, Guyancourt. Nos meus
primeiros dias na Frana me dediquei a andar pelos arredores da moradia, e uma das
-
configurao da estrutura urbana aqui. As cidades so muito prximas das outras, e so
de trem, trajeto de 15 minutos andando, eu passava por lancourt, Maurepas e La
Verrire.
A cidade em si me trazia sentimentos contraditrios. Embora fosse organizada, limpa e
cheia de rvores e canteiros de flores que a deixavam esteticamente agradvel, sempre
me pareceu organizada demais, limpa demais e bonita demais. Arranjos de flores em
postes de luz em cada rotatria (existia uma a cada 500 metros) e bandeiras da Frana em
cada esquina tornava a cidade um pouco surreal para mim. Sentia falta da interveno
popular! Os diversos parques que existiam nos arredores da moradia estavam sempre
petanque ha em portugus, crianas correndo e
pessoas passeando com seus ces, mas talvez por estar sozinha, talvez por no ter vivido
essas situaes, sempre me pareceram que essas pessoas usavam os espaos sem se
apropriar deles. As rvores e a grama e os bancos poderiam muito bem no ter sido usados
no fim do dia. Quando achava intervenes nos muros ou nos transportes pblicos, ficava
sinceramente feliz. Fotografei alguns.
O apartamento 121, onde morei, foi ocupado por sentimentos mais intensos. Seu tamanho
e estrutura (afunilada, como um corredor) me davam sempre a impresso de estar
apertada, sufocando. Essa impresso era to forte que me fazia sair correndo s vezes.
em uma cabana sozinho no meio da floresta por tanto tempo. Sempre achei fascinante o
Thoreau ter feito isso, admirvel at. Mas fala srio. Como ele 43. Essa
sensao se somava com a solido e o silncio da casa que parecia ter um isolamento
mais eficiente que o normal daqui, porque quando estava muito frio e fechava a janela,
eu no ouvia nada do lado de fora e se tornava mil vezes mais intensa. Por outro lado,
no ficava muitos dias sem ir pra casa. Chegar, depois de uma viagem ou depois de alguns
dias em casas de amigos, era sempre um alvio. Ir para o apartamento 121 depois da aula,
das compras, do cinema ou das constantes idas Paris, era sempre agradvel.
Especialmente no inverno, quando o seu constante aquecimento me dava a impresso de
43
-
que o apartamento 121 era um pequeno e aconchegante lugar aquecido no frio impassvel
daquele continente. Existe mais a se dizer sobre a moradia. Alis, isso pode servir para
todos os seis meses que passei na Europa. Se por um lado eu estava l, por outro eu
poderia estar em qualquer outro local. Refiro-me a todo o tempo e espao que usei para
sair do espao e o do tempo em que estava. A literatura e o cinema sempre foram meus
companheiros constantes. No apartamento 121, nosso relacionamento se intensificou.
Grande parte das minhas lembranas e impresses dele foi produzida por personagens e
espaos que conheci apenas no meu esprito. E o que dizer sobre isso?
A Universit de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines foi mais um espao que eu visitei,
e de maneira constante nesses seis meses, e foi em grande parte um ambiente hostil. Em
primeiro lugar, por no estudar o que eu queria geografia. Os estudos obrigatrios de
francs demandavam mais tempo do que os outros. As disciplinas de geografia eram
incompatveis em horrio com eles. Sem falar que j tinha cursado a maioria, j que viajei
no final do meu curso aqui. No me envolvi com os estudos que fiz, sobre relaes
internacionais, a Unio Europeia e histria da arte. Os estudos sobre a Unio Europeia e
as relaes internacionais me provocam estranhamento. Era curioso ver a opinio dos
jovens sobre o resto do mundo e os posicionamentos sobre como a Frana deveria se
relacionar com o mundo, especialmente quando falavam sobre o Brasil. O Brasil de
repente tinha se tornado meu lar. Ver estudantes falando sobre ele, pesquisando sobre ele,
era simplesmente curioso. Por outro lado, as aulas no me envolviam muito. Os
professores entravam, abriam os computadores e liam seus materiais de aulas de maneira
compatvel com a apresentao que exibiam numa tela maior para o auditrio. Os alunos
entravam, assistiam a aula e no havia maiores interaes entre nenhuma das partes. Fazer
trabalhos em grupos foi uma das partes mais sofridas de se estudar l. As minhas relaes
com os nativos no foram em nenhum momento agradveis, pois mesmo tendo que
desenvolver trabalhos em grupos eles nunca estavam interessados em interagir. Era
sempre um processo sofrido, agravado pela dificuldade em comunicar com o idioma
francs em um nvel universitrio coisa para qual eles no demonstravam nenhuma
pacincia. Diferentes eram as aulas de francs, com os outros intercambistas, que exigiam
muito participao e envolvimento, inclusive com as professoras, tornando a aula muito
mais agradvel. Dessa forma, com exceo das aulas e algumas atividades
extracurriculares, como palestras com convidados e tempo aproveitado na biblioteca, no
tive uma vivncia muito grande da universidade.
-
Os momentos que compunham minha rotina nesses meses envolviam idas a faculdade,
praticamente todos os dias de manh ou/e a tarde, ao supermercado a noite e s vezes ao
cinema. Quando ficava em casa, dedicava meu tempo a leitura ou assistia a filmes e
seriados. Os finais de semana eram marcados por visitas aos amigos, principalmente
brasileiros, e Paris. Na moradia estudantil havia uma sala para encontros, onde os
intercambistas se reuniam e, de vez em quando, contavam com a presena de um ou dois
franceses. Tinha decidido j visitar Londres, Amsterd e Veneza e tentei fazer isso nas
pequenas frias que tnhamos a cada dois meses.
Foram duas casas de amigas que eu visitei constantemente. A primeira, em Paris, da
Carol, onde ela vive com seu noivo, e para onde eu corria sempre que precisava. A
segunda, em Guyancourt, de duas amigas brasileiras que conheci na universidade e cuja
companhia foi fundamental para meus seis meses naquele pas. As duas casas sempre me
pareceram agradavelmente habitadas, um lar e uma possibilidade de uma vida boa
naquele pas. Com minhas amigas universitrias brasileiras, vivi momentos deliciosos,
seja durante as festas que fomos juntas, os filmes na casa delas ou enquanto fazamos
salgados, brigadeiro ou crepes (para matar a saudade) ou semanalmente, quando
tomvamos vinho, tanto vinho, para nos aquecer nas noites frias.
As idas Paris semanalmente foram marcantes. Nelas, eu podia visitar museus, como o
Louvre e o Pompidou, ou ir a exibies de filmes comentados por diretores. Muitas vezes,
apenas percorria as ruas a p por horas e horas, visitando sebos, feiras, cafs e restaurantes
ou, durante a noite, ia com outros amigos a festas e bares. Percorri caminhos e cenrios
Conseguia o tempo todo apreciar a estranheza (que no era estranha, mas antes diferente)
daquela cidade. Os prdios, os monumentos, as ruas, os costumes e as vestimentas. Tudo
que parecia diferente inspirava um deliciamento. Apenas ver aquilo me trazia um
contentamento quase sensual que me preenche at hoje, quando penso nisso.
Eu perdi o flego de verdade quando vi a Torre Eiffel da janela do trem, ao longe e quase
perdida na escurido, no fim de tarde em que fui pela primeira vez Paris. Acho que foi
quando eu finalmente me dei conta de onde eu estava. Tudo o que eu senti depois disso
ainda teve uma pitada de descrena, mas era quase como uma coceira um pequeno
por Paris, subir na Torre Eiffel e percorrer a Champs-lyse ou ver a Monalisa no Museu
do Louvre, nada me provocou uma reao to forte novamente. Sobre isso, escrevi (em
-
setembro de 2012):
As impresses que tive at ento que as pessoas so sempre pessoas,
se parecem sempre com pessoas, sejam elas de onde for. Via um
vislumbre de brasilidade em tantas que at esquecia de falar francs.
estranho ver elas usando outro idioma, que impede uma comunicao
de verdade, quando somos todos to parecidos. A Carol me corrigiu
depois. Disse que no todo mundo que parece brasileiro, so os
brasileiros que parecem com todo mundo. E isso faz todo sentido! Paris
se mostrou como qualquer cidade. Achei uma definio perfeita em um
como aqui, s que d 44. No tem nada mgico, nenhum
conhecimento secreto e novo.
Se por um lado a vida cotidiana inspirava sentimentos comuns, daqueles que eu sentia
por aqui preguia de acordar cedo e ir pra aula, ter que arrumar a casa ou entusiasmo ao
ver os amigos a noite para a diverso por outro nunca estava muito longe o
contentamento por respirar num espao to diferente (Figura 2). O clima, as rvores e a
prpria maneira de ser da cidade ou dos habitantes, as relaes com outros estrangeiros,
tudo isso era empolgante. Assim como desafiador. A insegurana por no dominar um
idioma era paralisante, s vezes. A saudade de casa tambm.
Aqui no Brasil, sou antes uma universitria que domina o idioma portugus, tanto a escrita
quanto a fala. Na Frana, eu no dominava nada. A insegurana de falar ou escrever; de
conversar normalmente com as pessoas na rua paralisante. Em diversas situaes, no
fui capaz de responder a conversas espontneas no nibus ou a perguntas por localizao
simplesmente porque no me sentia segura o suficiente para falar. Esse foi, de longe, o
pior sentimento. Pior que a solido ou a tristeza ou a saudade.
Em Paris, tambm participei das grandes manifestaes por igualdade entre as relaes
hetero e homossexuais perante a justia. Foram as primeiras manifestaes que participei
que envolviam centenas de milhares de pessoas. Alm disso, pude encontrar franceses
dispostos a conversar ou simplesmente a sorrir, em ruas que j tinha percorrido
anteriormente mas que nesse novo contexto me fez sentir novas coisas. Era como ver uma
prova de que tantas outras manifestaes e revolues j tinham ocorrido naquelas
mesmas ruas. Contemplar monumentos, como memoriais de guerra ou cemitrios, no
deram uma ideia to forte de que a histria que eu estudei da Europa de fato aconteceu,
como ver aquelas centenas de milhares de pessoas nas ruas. Nesse sentido, podia ver
vestgios da histria. Alguns cemitrios tinham inscries em lpides de pessoas que
44
-
morreram em campos de concentrao durante a expanso do nazismo, que foi o mais
perto que j tinha chegado de uma certeza de que aquilo de fato aconteceu.
A primeira viagem que fiz, dentro da viagem, foi Londres (Figura 3), para passar o Dia
das Bruxas, 31 de outubro. A escolha do dia no foi aleatria. Londres era uma cidade
das mais importantes para mim por causa da minha histria com a srie de livros da
escritora de fantasia J. K. Rowling. Em 2001, eu tinha 10 anos quando assisti pela
primeira vez um filme do Harry Potter. Desde ento, acompanhei as estreias de filmes e
livros, lendo e vendo tudo o que podia e quantas vezes fossem at saber tudo que acontecia
em cada histria. Londres est eclipsada pelas minhas leituras de Londres. De maneira
que toda a visita foi uma busca por pisar nos lugares significativos para a histria. J tinha
percorrido Paris a procura dos espaos da Amlie Poulain45, mas visitar Londres foi como
acessar espaos que s existiam e me eram completamente familiares na minha prpria
mente. Foi como ver uma cidade literria posta em suspenso pelo mundo, sem qualquer
preocupao com a sua realidade. E, nesse sentido, foi esfuziante. Nos primeiros dias,
tirei fotografias de todos os nibus com letreiros para King's Cross. Visitei a estao de
trem apenas para sentir como seria pisar num lugar to importante. Ver a placa indicando
Harry Potter. No sei direito como explicar a familiaridade e a estranheza, o
deslumbramento que era andar por aqueles lugares. Foi perfeito em um nvel que eu s
posso compreender quando leio novamente os livros e sei que j fui ali.
Para ver melhor a cidade, eu preferia andar a p a de metr ou nibus. Quando ia muito
longe, preferia ir de nibus porque ainda podia ver a cidade. Visitei museus e
monumentos. Nesses, uma das coisas que mais me incomodou foi ver alas dedicadas a
povos dominados pelos ingleses, como os indgenas da Amrica do norte e central, ou
povos africanos. Roupas, utenslios de caa e outros artefatos desses povos estavam
expostos, assim como mapas informando onde eles viviam. Pareciam se vangloriar do
assassinato de povos inteiros e, nesse sentido, eu s conseguia me pensar como fruto de
um pas colonizado. A conscincia da explorao e da injustia do assassinato de milhes
de nativos (que ainda hoje continua) nunca foi mais cortante do que nessas viagens aos
pases colonizadores. Nesse sentido, esse aspecto da histria da Europa foi mais
incmodo do que qualquer um relativo s guerras mundiais ou ao nazismo.
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Minhas lembranas de Londres esto convenientemente relacionadas aos livros e filmes
que j tinham constitudo uma Londres em mim, e por isso talvez no tenha ficado muito
surpresa com o que vi por l. Visitar o Big Ben ouvindo a Abertura 1812 de Tchaikovsky
foi glorioso46, assim como conhecer os mgicos que faziam performances (roubadas) na
ponte que leva ao Parlamento ou conhecer um bairro com predominncia de moradores
indianos. Os aspectos no esperados da cidade no comprometeram a minha Londres,
apenas somaram. Como se todos os aspectos que eu finalmente conhecia, e me
maravilhava por isso, fizessem a Londres velha conhecida e esses aspectos novos e
inusitados fossem apenas caractersticas que eu s agora percebia, mas que faziam todo
o sentido.
Os transportes pblicos eram meus espaos favoritos na Frana. Eu era aficionada por
contemplar cada aspecto e cada detalhe dos cenrios que passavam por mim ou pelas
quais eu passava. Por vezes, eu andava de nibus apenas para variar e aumentar o tempo
do trajeto. Podia ir para a universidade em 15 minutos de trem, mas de nibus levava 40
minutos. Passava por diversas cidades at l. Eu adorava. Os momentos mais marcantes
e mais ordinrios que contemplei foram em transportes pblicos. Esses momentos
pareciam sussurrar pistas sobre que espao era aquele, como era morar ali a vida toda. Eu
ouvia esses sussurros e os guardava.
Era meio da tarde de domingo e o trem para Paris estava vazio. Um senhor entra e faz um
pedido de ajuda. Qualquer coisa, dinheiro, comida ou trabalho. Ele aceitava. Ele tinha
perdido tudo assim como tantos outros que encontrei na mesma situao e tinha uma
famlia. Dois filhos, uma esposa. No me lembro se mais algum se manifestou, mas
observei enquanto um jovem retirava um po caseiro enrolado em um pano xadrez branco
e vermelho de dentro da mochila. Ele partiu o po ao meio e entregou metade ao homem,
que aceitou. Em dezembro de 2012.
Dessa vez, era noite. Eu estava em um metr em Paris, lotado. Outro homem pedindo
ajuda. Dessa vez, a reao das pessoas foi da indiferena ao descontentamento explcito.
J vinha observando essa mulher, antes do homem entrar. No sei bem o motivo. Ela
parecia estar alm, acima, de uma forma meio elitista de ser. Observo ela tirar um cigarro
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da bolsa e o segurar. Imaginei que ela fosse fumar assim que sasse do metr. Ela estica
o brao direito que segurava o cigarro ao longo do encosto do banco vizinho ao seu.
Discretamente, ela entrega o cigarro ao homem. Em seguida, me v observando a cena.
Sua expresso quase surpresa. Foi uma cena absolutamente deliciosa de se presenciar.
Quando aconteceu comigo, no foi to delicioso. Estava espremida no final do vago de
um metr lotado em Paris, a noite. Alguns segundos em que um metr vindo da direo
contrria diminuiu para parar na estao, enquanto o que eu estava comeava a sair da
estao. Espremida, carregando um monte de sacolas e sem poder mexer muito bem,
observei um jovem no outro metr me olhando. Dois segundos e eu sorri. Ele sorriu de
volta e o metr j tinha ido.
Alguns outros momentos facilmente recordveis ocorreram fora dos transportes pblicos.
Um final de semana particularmente entediante, quando sai para dar uma das minhas
inmeras caminhadas pela redondeza, passei por duas garotas uma vestida segundo a
cultura ocidental e outra com vu e toda coberta que conversavam com uma
cumplicidade que s duas amigas poderiam ter. Outras pessoas, de diferentes culturas e
em diferentes situaes, foram igualmente marcantes. Algumas eu acompanhei de longe,
pois sempre as via nos mesmos lugares cotidianamente. Era reconfortante encontrar essas
pessoas no nibus, na estao de trem, na universidade ou no banco, como se reconhecer
estranhos fosse algum parmetro de familiaridade ou de que eu tinha um lar.
A segunda viagem que fiz, essa que durou apenas um final de semana, foi Amsterd.
Eu j tinha planejado aproveitar a liberao e aceitao do consumo de drogas para
experimentar um bolinho de maconha, chamado space cake. De forma que cheguei j a
noite e depois de uma parada no albergue, um coffee shop foi minha parada seguinte.
Vivenciar essa experincia de ir a um estabelecimento, um caf, comprar e consumir um
bolinho de chocolate com maconha dentro enquanto bebia um achocolatado foi inusitado.
A no estranheza da atividade fez com que tudo parecesse bizarro. Os momentos depois
em que eu e os amigos que me acompanhavam, inclusive um dos sujeitos viajantes que
posteriormente ser apresentado, o Fabrcio, foram gentilmente nublados da minha
memria. No dia seguinte visitei museus e andei pela cidade, apreciando o quo bela era.
Foi uma passagem rpida, mas que ficou marcada pela beleza extraordinria da cidade;
pela familiaridade de uma experincia absolutamente no familiar; e pela ausncia de
qualquer sentimento mais ntimo ou profundo por aquele espao.
Um dos acontecimentos mais inesperados nesses dias foi causado pelos sentimentos que
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tomaram conta de mim quando visitei um shopping em Paris. Sair da estao de metr
pela qual passava todos os dias, percorrer alguns metros dessa rea com arquitetura nova
e moderna de Paris, chamada La Dfense, e adentrar num shopping foi como percorrer
um caminho conhecido e de repente sem explicao ou sentido se ver num local
totalmente diferente. O shopping era idntico aos que encontramos aqui, em Belo
Horizonte. Foi como voltar, de repente. Quase me virei para o lado esperando encontrar
algum parente. Nos meses em que eu estive por l, quando as saudades de casa apertavam,
retornar ao shopping (por mais indigesto que isso seja) era a certeza de encontrar um lugar
familiar.
Em janeiro, tive as semanas finais de provas e trabalhos. Enquanto minha ansiedade por
voltar ao Brasil e meus sentimentos contraditrios pela Frana tomavam conta dos dias,
resolvi fazer a ltima das minhas viagens para visitar uma cidade que sempre quis
conhecer: Veneza. Como ainda faltava um ms para o meu retorno e j tinha vencido meu
perodo de permanncia na moradia estudantil, resolvi ir tambm a Roma e aproveitar um
pouco mais de dias em cada uma. Deixar a ltima das minhas viagens em viagem para o
ms final s me fez ter um gostinho mais de tudo aquilo que eu no conheceria.
Veneza foi a minha cidade de sonhos, antes mesmo de a conhecer. De todas as outras
cidades que conheci, e busquei por motivos diversos, Veneza era a nica que eu sentia
uma vontade quase mstica de visitar. Eu precisava ir a Veneza. Para satisfazer um desejo
interno e inexplicvel. O desejo interno e inexplicvel permaneceu por todo o tempo que
passei me perdendo nas ruelas e me encontrando nas paradas e bancos, contemplativa,
me sentindo mais terrena, mais carnal, do que nunca antes. Veneza me deixou sentimentos
de existncia, mais do que qualquer outro espao dessas viagens. Eu no vi uma Veneza
ensolarada. Todos os dias em que permaneci na cidade choveram e estiveram brumosos
(Figura 4). Alguns dias, no dava para ver um palmo frente enquanto andava nos barcos
do transporte pblico. Um dos espaos que mais senti, e que at hoje me provoca uma
nsia particular, eu retratei (Figura 5). Em Veneza, no visitei museu ou monumento
algum. Gastei meus dias me dedicando a andar e ver o que eu encontrava, a comer nos
deliciosos restaurantes e cafs italianos e a sentir tudo isso. Gostava de me deixar envolver
pelas discusses e encontros entre os nativos ou pelos aspectos cotidianos de se viver ali:
o lixo que no tinha sido recolhido, os pedreiros de barco trabalhando em uma fachada, a
ambulncia-barco que passava rapidamente por todos, a vendedora com olhar cansado de
uma loja de sapatos a noite, as fantasias nas lojas de mscaras e os turistas comprando,
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um senhor vendendo uma gravata amarela, um grupo de jovens reunidos numa pizzaria,
as intervenes nos becos, uma menina jogando uma bota velha no lixo. Eu me sentia
quase como uma outra manifestao da cidade, a verso morena baixa de olhos escuros
de uma cidade velha, mofada e cheia de gua. De modo que depois da profundidade de
sentimentos de Veneza, Roma foi quase frescor.
A viagem de trem para Roma foi tranquila e cheia de paisagens bonitas. Castelos no alto
das montanhas e vales verdes seguidos por rios compunham uma paisagem romntica
quase surreal. As impresses de Roma foram completamente diferentes das de Veneza.
Em Roma tentei sentir o ar histrico ou absorver a temporalidade das runas, mas tudo o
que eu consegui foram boas fotos de resqucios do Imprio Romano (Figura 6 e 7). Essa
histria no falava para mim. Uma das experincias mais interessantes foi visitar o
Vaticano, especialmente o Museu do Vaticano e a Baslica de So Pedro. Eu no sou
crist e nunca fui. Mas ser revistada para entrar em uma igreja com tanta ostentao e ver
janelas fechadas e guardas num museu impressionante. As representaes religiosas no
foram to interessantes quanto observar da janela os pequenos vislumbres de algo
proibido. Eu sentia um frenesi por saber o que eu sei sobre a histria, a religio e a cultura
por trs daqueles muros e, de certa forma, no compartilhar suas vises. Era como
contemplar um monstro. Um monstro absolutamente poderoso e monumental sendo
contemplado de um ponto minsculo do cho, em total anonimato e intrepidez. E ser feliz
por no ser uma das clulas que compem esse monstro (apesar de saber que seus
tentculos ululam sobre minha vida em tantas maneiras que eu nem me dou conta).
De maneira geral, sei que no ms final de intercmbio no queria mais ficar nem um
segundo na Europa, e especialmente em Paris. O ponto culminante foi no meu dia de
volta, quando perdi o avio que me levaria a Lisboa, e por conseguinte perdi o avio de
Lisboa a Belo Horizonte. Entre os trmites para saber o que fazer em seguida, me lembro
o prximo voo para
o Brasil, no final do dia seguinte, mas em Portugal, Lisboa. Para onde fui imediatamente
e sem olhar para trs.
a seguir. Saudade. Intensa e real, saudade que parece preencher meu corpo inteiro e me
fazer imaginar, antes de me levantar da cama, que estou caminhando pelas ruas da Europa.
Quando me lembro de Paris, est sempre ensolarado. Apesar de ter vivido a maior parte
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do tempo no inverno, o sol fraco banhando as ruas largas e os prdios tpicos de Paris, o
sol batendo no asfalto, est nas minhas mais saudosistas lembranas (Figura 1). estranho
que essa a imagem que fica! Na tentativa de recuperar aqueles tempos de andana e
reflexo prazerosas, hoje recorro aos livros. Assim minha memria vai se transformando
em outra coisa, outra realidade.
Eu guardei, alm de entradas de museus e outras lembranas fsicas, bilhetes de transporte
pblico de todas as cidades que visitei. Guardei tambm no olhar o deslumbramento pelo
espao que eu via, e vi diferente os espaos do meu lar.
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Fabrcio, viajante
Esse relato foi concebido no anoitecer de uma sala de aula vazia. Nos ecos das palavras,
saudades e alegrias. Assim como um testemunho de todo um tempo aproveitado, ao
mximo, em outros anoiteceres.
O intercmbio foi a melhor e a pior coisa da minha vida. Porque foi o melhor ano da
minha vida, to bom que transformou todos os outros anos por comparao. Eu sinto
como se estivesse num limbo agora; coisas que eu achava divertidas no me parecem
mais, coisas que eu nunca pensei que eu gostaria agora me parecem fantsticas: tudo por
culpa do intercmbio.
F 47 em
setembro de 2012 e voltei em agosto de 2013. Fui fazer um ano de graduao em
Geografia. Os semestres eram divididos em dois perodos. Minha rotina contemplava
basicamente ir pra faculdade de manh ou a tarde e aproveitar a diverso da noite.
O que mais me marcou nesse ano foi o fato de experimentar coisas novas. Passei todos
os anos anteriores me divertindo de um jeito, pensando de um jeito, aprendendo de um
jeito. Mas essa mudana repentina de ares, para algo completamente diferente, foi
marcante. Um dia eu estava no Brasil e, algumas horas depois, estava inserido em um
novo contexto cultural, poltico, econmico. Fiquei assustado quando cheguei Holanda,
especialmente por causa do idioma. Apesar de ter estudado ingls por muito tempo, eu
no tinha essa desenvoltura para a informalidade do cotidiano com o idioma. Na
faculdade eu no tinha problemas, mas no dia a dia, nas ruas, era mais complicado. A
primeira sensao que eu tive foi essa. Eu sa de um xtase, de um estupor total e comecei
ver as pessoas conversando em ingls, holands e eu sozinho. Foi um choque.
Como eu ficava na faculdade ou estudando durante o dia, me restava a noite para me
divertir. Eu j tinha decidido que aproveitaria essa oportunidade para fazer tudo o que eu
pudesse, em termos de diverso. Eu aproveitei ao mximo. No s na Holanda, mas em
todos os pases por onde eu passei. A diverso consistia basicamente em sair para beber
com os amigos, os que eu fiz l ou outros intercambistas, ir ao cinema (em ingls com
legenda em holands ou sem legenda, ou se o filme era em holands com legenda em
47
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ingls), em festas, shows, pequenas viagens para cidades no entorno, como Amsterd ou
Haarlem, boates, partidas de pquer, ou ento s uma caminhada, porque a cidade era
muito bonita. Meu melhor amigo era um armnio e ele lidava com as coisas de uma
maneira muito tranquila, sem se importar com nada. Exceto se a conversa fosse sobre
turcos. Ele tinha uma rixa poltica com turcos. A nica vez em que ele ficou exaltado foi
quando a gente encontrou um turco e ele queria brigar conosco porque ele pensava que
eu era americano e porque meu colega era armnio. Mas deu tudo certo. Fizemos uma
viagem de caminho muito divertida para assistir a um festival de msica eletrnica na
Blgica (Figura 7). O pai de um dos meus colegas trabalhava em uma central de
abastecimento e usava esse caminho. O meu colega disse que podia pegar emprestado o
caminho. Como seria mais barato do que ir de trem, resolvemos ir e foi muito divertido.
Fiz diversas viagens. Fui Espanha, Inglaterra, Chipre, Malta, Crocia, Rssia, Repblica
Tcheca, Hungria, Islndia, Sucia, Itlia, Irlanda... Eu preferia viajar sozinho. Primeiro
porque assim eu me obrigava a falar ingls; segundo que eu me obrigava a conhecer novas
pessoas. Quando se viaja com a famlia ou um grupo de amigos voc fica fechado quele
grupo. Mas quando se viaja sozinho voc se v obrigado a conversar com outras pessoas,
que voc conhece durante a viagem. Claro que tem seus momentos ruins, quando no d
pra fazer amizades, mas eu acho mais interessante. No Chipre, por exemplo, uma noite
eu resolvi ir jantar sozinho. No final da noite, eu me vi jogando gamo com um sujeito
que disse que vai concorrer a presidncia do Chipre na prxima eleio, com o dono do
restaurante e dois sujeitos aleatrios. Uma situao que nunca aconteceria se eu estivesse
em um grupo. Tambm no viajei para pases como Frana ou Portugal. Aproveitei a
oportunidade para conhecer pases menos convencionais, que eu no poderia conhecer
atravs de um pacote de viagem.
Eu no consigo definir minha viagem preferida. Mas, por exemplo, minha viagem
preferida em termos de beleza natural foi Islndia. As paisagens eram pitorescas, com
neve e vulces (Figura 8). Uma coisa que eu sempre quis ver foi uma aurora boreal e eu
vi l. Ento em termos de paisagens naturais foi Islndia. Em termos de diverso, festas,
boates, baladas, Barcelona foi fantstica. Mas Ibiza foi tudo o que eu imaginava.
Recomendo pra qualquer um.
A viagem pra Rssia foi fantstica. Eu fiquei 15 dias em So Petersburgo com uma amiga
russa que morava comigo na Holanda, cujo intercmbio foi s de seis meses. Eu tive que
sair da Unio Europeia, porque meu visto vencia em julho (minhas passagens de volta
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estavam marcadas para agosto) e eu ia ficar ilegal. Eu fui ao consulado e um funcionrio
me disse que a soluo era sair do espao Shengen, ento, como eu tinha amigas na
Rssia, eu resolvi ir pra l. Quando eu cheguei na imigrao, pela Estnia, de nibus, os
funcionrios ficaram olhando meu passaporte e conversando entre eles. Eu no falo russo
e eles no falavam muito bem o idioma ingls. Meu passaporte estava em um estado
deplorvel, porque me jogaram em uma piscina com ele no bolso. Mas me passou pela
cabea que eles devem ter achado estranho. Um latino, brasileiro, com o passaporte
detonado, indo pra Rssia, entrando de nibus pela Estnia, para visitar uma amiga que
se chamava Natasha. Mas eu nunca vou saber o que aconteceu. No fim das contas, um
russo que estava no nibus e falava ingls ajudou na comunicao e eu entrei. L eu
conheci muitos russos, pessoas sensacionais. A arquitetura bizantina da cidade foi
surpreendente. Porque estamos acostumados com uma arquitetura crist romana, mas l
era crist ortodoxa. As igrejas e as cpulas eram lindas. Fui a festas timas. Conheci uma
bebida sensacional, que era uma mistura de xarope, com tabasco e vodca. A principal
parte foi a diverso com a minha amiga. Como ela estudava sociologia, eu aprendi muito.
Aprendi que russos e brasileiros tem mais em comum do que eu pensava. Eles tm uma
descrena com a poltica muito parecida com a gente. Outro detalhe sensacional foi o ar
histrico, um ar diferente que eu sentia l. Eu passei anos estudando revoluo russa e de
repente eu estava l. Na antiga URSS. Foi semelhante ao que eu senti em Berlim. Um ar
diferente, uma emoo diferente. Faz sentido porque eu conhecia a histria; se eu no
conhecesse talvez eu no sentisse isso.
Outro pas que eu gostei bastante foi Itlia. Na Itlia eu passei por Napoli, Roma,
Veneza, Rimini, San Marino. Eu s tive oportunidade de conhecer Roma pela noite. Eu
s consegui ver as fontes, mas foi interessante. Eu no tive o mesmo tipo de experincia
que eu tive Berlim ou em So Petersburgo. Mas em Pompeia foi fantstico.
O Reino Unido em geral foi muito legal. Inglaterra foi uma das melhores experincias
que eu tive. Uma das cidades mais legais que eu conheci foi Liverpool. Tanto porque eu
sou torcedor do Liverpool (Figura 9) quanto porque uma das minhas bandas preferidas
de l, os Beatles. Eu coloco Liverpool na frente de Berlim, de qualquer outra viagem. Eu
tive a oportunidade de passar em frente a casa do John, ou do lugar onde ele e o Paul se
conheceram. Eu fui ao bar onde eles fizeram o primeiro show e subi e cantei no palco. Eu
pisei no mesmo lugar que eles. Essa rua, Abbey Road, (Figura 10) a capa de um dos
discos dos Beatles, no qual tem eles a atravessando.
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Londres foi incrvel. uma cidade cosmopolita, onde voc escuta todos os idiomas. Em
alguns momentos, eu tinha a impresso de que no estava na Inglaterra, mas de que eu
e