outras geografias em literaturas de fronteira

11
Outras geografias em literaturas de fronteira Carlos Garcia Rizzon Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa, Campus Jaguarão. E-mail: [email protected] Recebido em 04/2012. Aceito para publicação em 12/2012. Versã o online publicada em 01/02/2013 (http://seer.ufrgs.br/paraonde) ISSN 1982-0003 Para Onde!?, Volume 6, Número 2, p. 114-124, jul./dez. 2012 Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Resumo: Em abordagem interdisciplinar, este artigo trabalha com dados históricos para focalizar temas desenvolvidos pela ficção realizada por escritores brasileiros e uruguaios, apresentando uma concepção de fronteira e seu reconhecimento através de textos literários. Dessa forma, evidencia que o processo histórico da conformação da fronteira entre Brasil e Uruguai configura um espaço heterogêneo, apresentando marcas imbricadas de identidade e alteridade. Palavras-chave: Espaço. Fronteira. Geografia. Histó ria. Literatura. -114- “Nós não somos nós, mas nosotros, nós outros, nós-nos-outros.” - Aldyr Garcia Schlee O limite entre a região sul do Brasil e o Uruguai tem um passado de movimento, tendo sido identificado em diferentes lugares no trans- curso dos tempos. Esse histórico configura uma fronteira permeável, onde um e outro desses paıś es possuem marcas imbricadas de identida- de e alteridade. Caracterizando um território aberto à interferência e aos influxos de variadas contribuições culturais, a fronteira constitui-se em um entrelugar, onde a porosidade e o trânsito que lhe são próprios operam constantes movi- mentos de expansão e retração. Assim, conforma um território hıb́ rido, onde um mesmo aspecto – a linguagem, por exemplo – pode proporcionar relações de aproximação e distanciamento com o Outro. Dessa forma, é possıv́ el compreender a noção de fronteira como um espaço múltiplo, mestiço e heterogêneo, marcado pelas presenças das diferenças que afirmam lugares de contato e inter-relação. A história da configuração do que é hoje a fronteira entre Brasil e Uruguai nasce com o Tra- tado de Tordesilhas, em 1494, um acordo entre Portugal e Espanha que deu inıć io a uma saga de disputas entre os reinos ibéricos da qual as nações independentes americanas serão herdei- ras. Isso porque o tratado, apesar de determinar uma imaginária linha divisória traçada na medi- da de 370 léguas a partir do arquipélago de Cabo Verde, era repleto de indefinições. A própria medida de légua era, na época, variada, pois mudava conforme cada piloto navegador. Isso provocou que nunca se tenha definido um traça- do único, reconhecido tanto por Espanha quanto por Portugal. Assim, em 1680, sentindo-se no seu direito, Portugal funda, às margens do rio da Plata, a guarnição de Colônia do Sacramento. Para Espanha, isso representou uma invasão, mas para Portugal era nada mais que tomar posse de um território que lhe pertencia. A partir de então, uma série de ocupações autodeclara- das legıt́ imas e acusaçõ es de usurpaçõ es de terri- tó rios foram constantes de uma parte e de outra. E evidente que, mais do que qualquer cálculo matemático e medição, o que prevaleceu nas disputas daquele momento foram o desejo e a soberania da navegação dos rios que davam aces- so à s minas de ouro e prata no Alto Peru e, poste- riormente, a exploração e comercialização do couro dos rebanhos de gado bravio que se alas- trou pelo pampa após a chegada dos colonizado- es. Além disso, era uma região estratégica, pois

Upload: others

Post on 28-Oct-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Outras geografias em literaturas de fronteira

Outrasgeografiasemliteraturasdefronteira

CarlosGarciaRizzon

ProfessorAdjuntodaUniversidadeFederaldoPampa,CampusJaguarao.E­mail:[email protected]

Recebidoem04/2012.Aceitoparapublicaçaoem12/2012.

Versaoonlinepublicadaem01/02/2013(http://seer.ufrgs.br/paraonde)

ISSN1982­0003ParaOnde!?,Volume6,Numero2,p.114­124,jul./dez.2012InstitutodeGeociencias,ProgramadePos­GraduaçaoemGeografia,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,PortoAlegre,RS,Brasil.

Resumo:Em abordagem interdisciplinar, este artigo trabalha com dados historicos para focalizartemasdesenvolvidospelaficçaorealizadaporescritoresbrasileiroseuruguaios,apresentandoumaconcepçaodefronteiraeseureconhecimentoatravesdetextosliterarios.Dessaforma,evidenciaqueoprocesso historico da conformaçao da fronteira entre Brasil e Uruguai configura um espaçoheterogeneo,apresentandomarcasimbricadasdeidentidadeealteridade.

Palavras-chave:Espaço.Fronteira.Geografia.Historia.Literatura.

-114-

“Nósnãosomosnós,masnosotros,nósoutros,nós-nos-outros.”

­AldyrGarciaSchlee

OlimiteentrearegiaosuldoBrasileoUruguaitemumpassadodemovimento,tendosidoidentificadoemdiferenteslugaresnotrans­cursodostempos.Essehistoricoconfiguraumafronteira permeavel, onde um e outro dessespaısespossuemmarcasimbricadasdeidentida­de e alteridade. Caracterizando um territorioabertoainterferenciaeaosinfluxosdevariadascontribuiçoes culturais, a fronteira constitui­seemumentrelugar,ondeaporosidadeeotransitoque lhe sao proprios operam constantes movi­mentosdeexpansaoeretraçao.Assim,conformaumterritoriohıbrido,ondeummesmoaspecto–alinguagem,porexemplo–podeproporcionarrelaçoesdeaproximaçaoedistanciamentocomoOutro. Dessa forma, e possıvel compreender anoçao de fronteira como um espaço multiplo,mestiçoeheterogeneo,marcadopelaspresençasdasdiferençasqueafirmamlugaresdecontatoeinter­relaçao.

AhistoriadaconfiguraçaodoqueehojeafronteiraentreBrasileUruguainascecomoTra­tadodeTordesilhas,em1494,umacordoentre

PortugaleEspanhaquedeuinıcioaumasagadedisputas entre os reinos ibericos da qual asnaçoesindependentesamericanasseraoherdei­ras.Issoporqueotratado,apesardedeterminarumaimaginarialinhadivisoriatraçadanamedi­dade370leguasapartirdoarquipelagodeCaboVerde, era repleto de indefiniçoes. A propriamedida de legua era, na epoca, variada, poismudava conforme cada piloto navegador. Issoprovocouquenuncasetenhadefinidoumtraça­dounico,reconhecidotantoporEspanhaquantopor Portugal. Assim, em 1680, sentindo­se noseudireito,Portugalfunda,asmargensdoriodaPlata, a guarniçao de Colonia do Sacramento.Para Espanha, isso representou uma invasao,mas para Portugal era nada mais que tomarpossedeumterritorioquelhepertencia.Apartirdeentao,umaseriedeocupaçoesautodeclara­daslegıtimaseacusaçoesdeusurpaçoesdeterri­toriosforamconstantesdeumaparteedeoutra.E� evidente que, mais do que qualquer calculomatematico e mediçao, o que prevaleceu nasdisputas daquele momento foram o desejo e asoberaniadanavegaçaodosriosquedavamaces­soasminasdeouroepratanoAltoPerue,poste­riormente, a exploraçao e comercializaçao docourodosrebanhosdegadobravioquesealas­troupelopampaaposachegadadoscolonizado­es.Alemdisso,eraumaregiaoestrategica,pois

Page 2: Outras geografias em literaturas de fronteira

-115-

Para los portugueses la cuenca delPlata tenıa una doble significacion:comozonatempladapodıaconstituir­seenelgranerodelasopulentaszonastropicales; y, geograficamente, era nosolo el resguardo y apoyo necesarioparaelavancepaulistanohaciaeloes­te,sinoque,sinelPlata,elBrasilerauncolosoconpiesdebarro,puescarecıadevıasdeaccesofacileshaciaelinte­rior.ParaEspana,eraelflancovulnera­ble de su imperio, ruta atlantica delPeru; y, en particular, para BuenosAiresySantaFe,laBandaOrientalerayalagranbasedesubeneficioecono­mico.ElpleitodelaColoniafue,porlotanto, el conflicto esencial de los dosimperiosibericosenSudamerica.( R E Y E S A B A D I E ; B R U S C H E R A ;MELOGNO,1970,p.22)

DisputaspolıticasdosreinospeninsularesnaEuropatambemdeterminarampugnasnascolo­niasamericanas,eadelimitaçaodessesterritoriosfoi redefinida, a cada mu­dança conjuntural, porvarios outros tratados, como o de Utrecht, em1715;odeMadri,de1750;odeElPardo,de1761;ode Santo Ildefonso, de 1777, e o de Badajoz, de1801,todosnoperıodocolonial.EntreBrasileUru­guai,comonaçoesindependentes,foramfirmadososTratadosdeLimites,de1851,eodasA� guasdalagoaMirimedorioJaguarao,de1909.Comocon­sequenciadosdiferentesacordos,grandepartedoRioGrandedoSuljapertenceuacoroaespanhola,assimcomotodooterritoriouruguaiojafoibrasi­leiro.

TalvezomaispeculiardetodosostratadostenhasidoodeSantoIldefonso,poisporesseacor­dosurgiuumaregiaotornada“terradeninguem”equepassouparaahistoriacomonomede“CamposNeutrais”. A proposta dessa area era dificultar ocontrabando,noentantoseuefeitofoiaocontrario,redundandoemumincrementodocomercioclan­destino,pois,comoanalisaSusanaBleildeSouza,

A fronteira para seus homens naopodia ter o carater de um limite, damarca divisoria entre dois estranhos.Aocontrariodeoutrasfronteiras,adosuldocontinentefoiambitofrequenta­do,mundoderelaçaocontınuaepro­longada. A propria transumancia dogado,espontaneaouativadapelochan-gador,levouainter­relaçaodeterrito­riosepovos,aocontrariodoquedese­javamaschancelariasdasmetropolescoloniais.Foiomundodocontrabando,

dointercambioedonegocio,daverda­de geografica em contradiçao com anormalegal.(inCASTELLOetal.,1995,p.129)

Esseespaçodetransgressoestemservidoparaambientarmuitasdasobrasliterariasprodu­zidasporescritoresdosdoisladosdadivisaentreBrasileUruguai.Otemadecontrabando,trazendoangustias,medos,coragem,perigo,violencia,cor­rupçaoemuitosoutrosdramasquecercamperso­nagens que vivem na fronteira, ja foi explorado,entreoutros,porautorescomoosrio­grandensesJoaoSimoesLopesNeto,DarcyAzambuja,SergioFaraco e Tabajara Ruas; e por uruguaios, comoJulianMurguıa,SerafınJ.Garcıa,JulioC.daRosaeMarioArregui.TambemnaproduçaodouruguaioJoseMonegalsaorecorrentesosconflitosgeradospelatensaoentreolegaleacontravençao,etenuessaoasdiferençasentreoquesejacertoouerrado.Em “Renuncia del comisario Portela y del caboLapuente”, por exemplo, como o proprio tıtuloanuncia,atematicadocontogiraemtornodeofici­aisquedesistemdaperseguiçaodeumforadaleiqueviviadocontrabandopornecessidade,comoatestaseudepoimento:

Porque en la ultima estancia dondetrabaje,elpatron,queeselgringoPadu­la,nosibasacandolavidaajuerzadehacernoscimbrarellomoenelcampo,padispuesencontrarunpocodeaguasuciayunastajadasdecharqueen lamesa. Yo compro y vendo, capitan,pasando por arriba de unos hombrespatentaos, que algunas veces se hanarreglaoconmigo.Yotrabajo,capitan,yen ese trabajo dentran el sudor y elarriesgue; pero mis hijitos estan gor­dosymimujercontenta.Yyosoylibredediryvenir,ydenoaguantarcapri­chosymiseriasdeningunmandon,queesos sı deberıa n estar juera de la ley,pues por cada barril o fardo que yopaso ellos pasan rodeos enteros. ¡Yosoy un hombre, capitan, y tengo ver­guenza!(MONEGAL,1993,p.59­60)

No final, Portela e Lapuente, convencidosdequeaatividadeilıcitadocontraventor,naquelecontexto,eraaalternativaparaumavidademelhorsorte,abandonamseuscargosparasejuntaremaocontrabandista:“Unahoradespueslostrespasa­banlaPicadaSucia,rumboaBrasil.”(ıdem,p.60)

Situaçoes como essa conferem perceberqueapraticadocontrabandolevaaqueseconside­reunacoexistenciadoconflituosocomopermiti­

Page 3: Outras geografias em literaturas de fronteira

do,pois

representa, ao mesmo tempo, anormalegalvigenteeatransgressao,avontadepublicaeavontadepriva­da,osocialmenteinstituıd oeoqueesancionado pela pratica reiterada.Nao existem fronteiras sem contra­bando,essaespeciedetrocas,detran­saçao comercial onde opoem­se osvalores dos indivıduos contra os dasociedade,aomesmotempoemqueestabelecem novas regras de convi­venciasocial;estasadquiremforosdelei, invadem e transformam as rela­çoesnaesferadocotidiano.[…]Assim,aoinstitucionalopoe­seocotidiano,plasmando­senaliteraturaotiporegionalefronteiriçopresentenaficçaodeescritoresqueconcebemapersonagemnaoapenascomooquetransgrideasleis,mascomocidadaoqueexerceumofıcio,sofrepersegui­çoeseinjustiças,revelandoavisaodeumcotidianodesobrevivencia.(MASINAinCASTELLOetal.,1995,p.165;167­168)

Essas afirmativas se confirmam porque,como apresenta Simoes Lopes Neto no conto“Contrabandista”,ocomercioilegalaparececomopraticahistorica:

NestaterradoRioGrandesempresecontrabandeou, desde em antes datomada das Missoes. Naqueles tem­posoquesefaziaerasemmalıcia,emais por divertir e acoquinhar asguardas do inimigo: uma partida deguascasmontavaacavalo,entravanaBanda Oriental e arrebanhava umapontagrandedeeguariços;abanavaoponchoevinhaameiaredea;aparta­va­seapotradaelargava­seoresto;osdelafaziamconoscoamesmacoi­sa;depoiseracomgados,quesetoca­vaatroteegalope,abandonandoosassoleados. (LOPES NETO, 2009, p.105)

Na atualidade, a inocencia do ato ilıcitopermanece,eeleeconhecidotantoporpopularescomo pelas autoridades, como mostraElbañodelPapa,filmede2007dirigidopelosuruguaiosCesarCharloneeEnriqueFernandez.Saocenasqueseobservamcotidianamente:

Figura 1: “Quileiros” em Acegua­BR/Acegua­UR. Foto:QuelenPereiraPinheiro.Outubrode2009.

Outraquestaorelativaaotratadode1777equeelepropriotraziaumaconcepçaoprelimi­nareprovisoriaequeosdesentendimentosdeve­riam ser solucionados posteriormente. Um dosatritossedeunainterpretaçaodoartigo4,quedizia:

[...] pela parte do Continente ira alinhadesdeasmargensdaditaLagoaMirim, tomando a direçao pelo pri­meiroarroiomeridionalqueentrenosangradourooudesaguadourodela,equecorrepelomaisimediatoaoFortePortugues de Sao Gonçalo; desde oqual, sem exceder o limite do ditoArroio,continuaraodomın iodePor­tugal pelas cabeceiras dos rios quecorremateomencionadoRioGrandeeJacuı.(inSOARES,1939,p.174)

Segundoosespanhois,oarroio“maisime­diatoaoFortePortuguesdeSaoGonçalo”eraorioPiratini, situado ao norte dessa guarniçao. Noentanto, os portugueses nao queriam ceder oforteeindicavamqueo“primeiroarroiomeridio­nal” estaria ao sul daquele ponto, devendo ser,portanto, o arroio Grande do Erval. Como bemversavaotratado,emcasodeduvidasdalocaliza­çaodoslimites,essesterrenosnaopoderiamserocupadospornenhumadascoroas.Apesardisso,

Afaixaterritorial, localizadaentreoPiratini e o Jaguarao fez­se objeto,entre1790e1801,deumaespeciedejogodexadrezentreespanhoisepor­tugueses.Desde1789,alias,asauto­ridades portuguesas começaram a

-116-

Page 4: Outras geografias em literaturas de fronteira

concedersesmariasaosuldorioPirati­ni. O poder expansionista dos lusita­nos,apartirdeRioGrande,seriabemmais forte que o dosespanhois, cujasbasesdeapoiosequedavambemmaisdistantesequeenfrentavamcontınuahostilidadedosındioscharruas.(FRANCO,2007,p.11)

Aproveitando­sedasituaçaonaqualocon­tingentedeluso­brasileiroseramaiorquedehis­panicosnaquelaregiao,foiestrategiadePortugalataticadoutipossidetisatravesdadoaçaodeterras,propiciando a instalaçao das primeiras estanciasnaquelaarea.Comopostosavançadosemterritoriofronteiriço, as estancias que se instalaram nesseespaçodedisputaconstantenecessitavamoferecerresistencia,fosseaosataquesdeexercitosinimigosemtemposdeguerra,ouaossaquesdebandidosemtemposdepaz.Descriçoesdessesambientesseencontramemobrasliterarias,comonoconto“Elsargento”,deJoseMonegal,ondesaoapresentadassituaçoesemqueoperigoeastensoessaorealida­desdeumaepoca:

ElAltodeAchiras,elBajodeToledo,laQuebrada del Perdido y la SalamancaGrandeconfigurabanunalargayanchacomarcafronteriza.Eraporeltiempoquecadacasacabeceradehaciendadaconstituıaunafortaleza;delaspulpe­rıas enrejadas; de los caminos queahondabanenormescarretasconejeschirriantes,gauchossolitarios,avecesescuadronesdeguerraocuadrillasdemalevaje;tropasdeganadoschucaros.(1993,p.27)

Tambem em Javier de Viana, outro autoruruguaio,haumretratodaarquiteturadasestanci­as, destinada a proteçao e, por isso, construçoesfechadasemsi,semaberturasapaisagemexterior,como descreve o conto “Los amores de BentosSagrera”:

LaestanciadeSagreraeraunodeesosviejosestablecimientosdeorigenbra­sileno, que abundan en la frontera yque semejan carceles o fortalezas. Unlargo edificio de paredes de piedra ytecho de azotea; unos galpones, tam­biendepiedra,enfrente,ya losladosun alto muro con solo una puertapequenadandoalcampo.Lacocina,ladespensa,elhorno, loscuartosde lospeones,todoestabaencerradodentrodelamuralla.(VIANA,1969,p.92­93)

Essas sao caracterısticas de muitas dasconstruçoesqueaindaseencontramnaarearuraldacidadedeJaguarao,noBrasil.Altosmurosfeitosdepedracercamascasasdaspropriedades,oquedificultavaasinvestidasdosantigosinimigos:

Figura 2: Estancia de propriedade de Joao “Nervoso”.Foto:CarlosGarciaRizzon.Janeirode2010.

Figura 3: Estancia do Juncal. Propriedade de AlmiroPiuma.Foto:AlanDutradeMelo.Fevereirode2009.

Esse e um patrimonio material edificadoquecompoeumcenarioque ilustraahistoriadofinaldoseculoXVIIIeinıciodoXIXedefineumafronteira que teve sua formaçao nas varias lutas,emdiferentestempos,entreduasmonarquias,umimperio,tresnaçoesenasmuitasguerrasrevoluci­onarias de cada uma das provıncias e dos paısesdessaregiao,poisasdisputasentreascoroasiberi­caseasnaçoesindependentestiveramcontinuida­denoseculoXIX.Em1801,umconflitopeninsular,quenaEuropadurousomentealgumassemanas,encrueceuosanimosnafronteiradascoloniasame­ricanas:“Aguerrade1801inicioueterminounaEuropa, e seus efeitos, como se fosse uma ondalentaeprogressiva,atingiramaAmericameridio­naltardiamente.Assim,asoperaçoesforamdefla­gradasquandoapazjaestavaassinadaemBada­joz”(GOLIM,2002,p.206)desdejunho.Anotıciade paz tendo chegado neste lado do Atlanticomesesdepois,janofinaldaqueleano,houvetempoparaquefossemtomadospelosluso­brasileirosos

-117-

Page 5: Outras geografias em literaturas de fronteira

SetePovosdasMissoes,osCamposNeutraiseasterrasateorioQuaraı,estabelecendoumadelimi­taçaoproximadoquesetemnaatualidade.Nessaocasiao, Cerro Largo, atual cidade uruguaia deMelo,chegouaserinvadida,egrandepartedogadoaliexistentefoiconfiscadoelevadoaterrasbrasile­iras.AldyrGarciaSchlee,noconto“DonSejanes”,serefereaoepisodio:

[...]erados“camposneutrais”,andavapela fronteira vendendo coisas aossoldados e passando mercadoriasquando houve a primeira guerra – aquenaoeraparatersido.OCerroLargofoi ocupado por tropas portuguesasque levaram mais de dez mil reses,depoisveioanotıciaatrasadadapaz,etodososlugaresvoltaramaodeantes.Foisoosustoetantosetantosmilesdehomensemarmas.(1988,p.27)

Osmovimentosdeindependenciaconvul­sionadosnacoloniahispano­americanaapartirdainvasaonapoleonicanapenınsulaIberica,napri­meiradecadadoseculoXIX,tambemmotivaramainvasaodetropasluso­brasileirasnaprovınciadaBandaOrientaldoRiodaPlata,em1811.Posterior­mente, em 1816, voltaram a ocupar MontevideuparacombateraosrebeldesblandengueslideradosporJoseGervasioArtigas.Visualizandoumtabulei­rodexadrezentreasforçasquebuscavamodomı­nio de Montevideu e de toda a Banda Oriental, ohistoriadorTauGolimconsidera:

Tres focos de poder olhavam para aBandaOriental:oluso­brasilerioeseuprojetodeexpansaodafronteira;odasProvınciasUnidas,nosmarcosdacria­çaodaprovınciaorientaldeMontevi­deu,eodeArtigas,comlimitesprovi­sorios no rio Quaraı, porem conside­rando territorios contestados os con­quistados pelos luso­brasileiros naguerrade1801.(2002,p.281)

O enfrentamento entre luso­brasileiros eartiguistasseprolongoudurantequatroanos,eosportuguesesconseguiramderrotarolıderorientalsomenteem1820.Noanoseguinte,oReinoUnidodePortugal,BrasileAlgarveincorporouaprovın­ciaoriental,que,sobocontroleportugues,passouadenominar­seCisplatina.

ComaindependenciadoBrasil,em1822,iniciou­seumperıododetransiçaoasoberaniadonovoImperio,havendoaretiradadastropasportu­guesas da Cisplatina. Com isso, motivaram­se as

ProvınciasUnidasdoRiodaPrataapostulararein­corporaçaodaBandaOriental,poisesseeraodese­jodemuitosorientaisexiladosemBuenosAires.Mobilizados, os caudilhos orientais empreende­ramalutadeexpulsaodosbrasileirosdaCisplatinaapos o desembarque, na praia La Agraciada, dogrupoconhecidocomo“Lostreintaytresorienta­les”.Olevanteseiniciouem1825,eogeneralJuanAntonio Lavalleja declarou a Banda Oriental “dehechoydederecho,libreeindependientedelreyde Portugal, del emperador de Brasil, y de cual­quierotrodelUniverso,yconampliopoderparadarselasformasque,enusoyejerciciodesusobe­ranıa, estime conveniente” (EL PAI�S, 2005, p. 4).DepoisdedoisanosdebatalhasentreoImperiodoBrasileaConfederaçaoArgentina,oepisodiode20defevereirode1827,queosplatinosdenominamBatalhadeItuzaingoeosbrasileirosdeBatalhadoPasso do Rosario, foi determinante para que seavançassemasnegociaçoesdepaz.Essecombate“demonstrou a inaniçao de ambos os lados paraaplicarem golpes definitivos” (GOLIM, 2002, p.128),pois“Tacticamenteeltriunfocorrespondioalejercitorepublicanoquequedoduenodelterrenoantelaretiradaimperial,aunquelaexplotaciondeltriunfofuedudosaalabandonarelejercito[brasi­leno]deBarbacenacasiintacto.”(ELPAI�S,2005,p.11)

Personagemliterariaretratadacomoteste­munhaemvariasdasescaramuçasnaCisplatinaeoCapitaoRodrigodeOcontinente,deEricoVerissi­mo:

– Se andei pela Banda Oriental? Maisdumavez.[...]Senteipraçacomdezoitoanos e em 1811 andei com as forçasque invadiram a Banda Oriental. [...]EntreiemMontevideuem1817comasforçasdogeneralLecor.[...]– Por falar nisso, vosmece tambembrigouem25?–Naturalmente.Estivenaquelecomba­tedeRincondelasGallinascomagentedoMennaBarreto.–Soltouumsuspiroe disse: – Apanhamos que nem boiladrao.[...]Em1827euestavacomastropas do marques de Barbacena.Nuncavitantamiseria.Soldadosdepeno chao, sem uniforme, alguns quasenus,socobertospeloponcho.(VERISSIMO,2004,p.214­220)

Atraves da intermediaçao da Inglaterra,

interessadanoacessoaosportosenocomerciodaregiao,foipropostaacriaçaodeumanaçaoinde­

-118-

Page 6: Outras geografias em literaturas de fronteira

pendentenaBandaOriental.Nodia25deagostode1828,umTratadoPreliminarconsagrouapazeosurgimentodeumnovopaıs,aRepublicaOrientaldoUruguai,quenasceusemaformalizaçaodeumtraçadodemarcado.Asquestoesfronteiriçasfica­rampostergadasesovoltaramasernegociadasem1851, apos finalizadas a Revoluçao Farroupilha(1835­1845)noRioGrandedoSuleaGuerraGran­de (1839­1851) no Uruguai, guerras essas entrerepublicanos e imperiais uma e entre blancos ecoloradosaoutra.OTratadodeLimitesde1851en­tre Brasil e Uruguai foi realizado com vantagensparaosbrasileiros,poisasdiscussoesocorreramjuntamentecomanegociaçaodeemprestimosqueo Imperio concedeu ao governo colorado para adefensadeMontevideueaexpulsaodastropasquesitiavamacapitaluruguaia,osblancosdogeneralManuelOribeeosargentinosdoditadorJuanManu­el de Rosas. Dependente do dinheiro brasileiro edebilitadodiplomaticamente,ogovernouruguaioficou condicionado a aceitar os termos impostospeloImperio,facilitandoparaoBrasiladetermina­çaodecondiçoesquelheeramfavoraveis,comoouso exclusivo das aguas da lagoa Mirim e do rioJaguarao. Outro item obrigava a devoluçao deescravosfugidosdoterritoriobrasileiro,contrari­ando a lei uruguaia em relaçao ao tema, pois naRepublicaOrientalaescravidaojatinhasidoaboli­da.

Devidoahistoricaexpansaoluso­brasileiraemdireçaoaoriodaPrata,apresençadebrasilei­rosnoterritoriouruguaio,nasegundametadedoseculoXIX,eraconsideravel. Dadosde1863mos­tram que, de um total de 180.000 habitantes noUruguai,40.000erambrasileiros.Tambem,segun­do o historiador Anıbal Barrios Pintos (1990, p.42),43,9%dogadoexistentenaRepublicaperten­cia a rio­grandenses. O senador brasileiro SilvaFerraz, em 1859, descreveu a regiao, transcritapelomesmohistoriadoruruguaio,semreconhecerdiferençasentreBrasileUruguai:“alpasaralotroladodelrıoYaguaron,el traje,el idioma, lascos­tumbres,lamoneda,lospesos,lasmedidas,todo,todo senores, hasta la otra banda del rıo Negro,todo senores, hasta la tierra: todo es brasileno”(idem,p.45),fazendodonorteuruguaioumpro­longamentodoImperio.Essaexpressivapredomi­nanciademograficabrasileiranoUruguaisetradu­zianopodereconomico,derivandoemprofundasinterferencias na polıtica interna da RepublicaOriental,pois“losbrasilenosemigradoscontinua­banconsiderandosesubditosdelImperioe igno­rando la legislacion uruguaya, trasladando unaesclavitud apenas disfrazada” (PALERMO inMAESTRI,2008,p.155).Emrelaçaoaescravidao,

osbrasileirosburlavamalegislaçaouruguaiaatra­vesdecontratosde locaçaodeserviços,osquaispodiamdurarmuitosanos,sendocomumqueexis­tissemporate30anos.Em1857,AndresLamas,embaixadoruruguaionacorte,emnota,reclamoudessasituaçaoaoImperio,delatando:

LasinfelicespersonasdecolorqueseintroducenenlaRepublica,alasombradefraudulentoscontratos[…]nosoloson tratados como esclavos […] sinoque sufren allı, en aquel territorio enquenadiepuedeseresclavo,laultimaypeordesgraciadelaesclavitud,[…]loshijosdelaspersonasdecolorintrodu­cidas son traıdos al Rıo Grande y allıbautizadas como nacidos de vientreesclavo.[…]Deestamaneraenalgunosestablecimientos del Estado Orientalno solo existe de hecho la esclavitudsinoquealladodelcriaderodevacasseestablece un pequeno criadero deesclavos(apudPALERMOinMAESTRI,2008,p.162­163)

Nas decadas de 1850 e 1860, segundoPalermo, houve inumeras denuncias de “secues­tros,homicidiosyataquesaestanciasysuburbiosdelasVillasdeTacuaremboyArredondo(hoyRioBranco)conlafinalidaddecapturarafroamerica­nosparareducirlosaesclavitud”(ıdem,p.165).NoromanceNorobaráslasbotasdelosmuertos,deMarioDelgadoAparaın,ostemasdesequestrosdenegroslibertosedenegrasgravidasestaopresen­tes.ApersonagemHermesNieveseumbrasileiroqueestapresonoUruguaiporser“unsecuestradordenegroslibertosalserviciodelImperiodelBrasil,[...]porladrondecaballosydenegrasprenadas”(2006, p. 18). A obra mostra tambem como seinvertem os juızos apenas por se cruzar a linhadivisoria entre um paıs e outro, como o caso dobandoleiroLaurindo,“ladrondecriaturasnegrasenlaRepublicadelUruguay,legalizadounayotravezporlajusticiadePiratiny”(idem,p.77).Sobreoassunto,outraquestaoabordadaporDelgadoApa­raınserefereadenunciaqueoembaixadorAndresLamas ja fazia: “en Santa Ana do Livramento, uncura epileptico llamado Joaquın Ferreira bautizocomoesclavasydeunasolavez,lafrioleradevein­ticinconinasnacidasenelestadooriental...”(ıdem,p.89)

Nesseperıodo,ashostilidadesentreorien­tais e brasileiros foram frequentes e, da mesmaformaqueosuruguaiossequeixavamdasviolenci­ascometidaspelosestrangeirosdentrodeseupaıs,tambemosestanceirosrio­grandensescomterrasnoUruguaireclamavamdesistematicoseimpunes

-119-

Page 7: Outras geografias em literaturas de fronteira

abusos de roubo de gado, invasoes de terras eassassinatosfeitoscomaconivenciadasautorida­des. Devido a isso, em maio de 1864, atraves doconselheiro Jose Antonio Saraiva, o Brasil listoucentenas de crimes sofridos por brasileiros resi­dentes no territorio oriental e reivindicou provi­denciasdasautoridadesuruguaias.Elgovernodopartidoblanco tomouaqueleprotestocomoumaafrontaeintromissao,naoacatandonenhumadasexigenciasrelacionadasnodocumentoconhecidocomo“MissaoSaraiva”.Emagostode1864,houveorompimento das relaçoes entre Brasil e Uruguai,seguindo­se uma intervençao armada brasileiraem apoio ao partido colorado, que iniciava umaguerracivil.Entao,

Aguirredecretou“rotos,nulosecance­ladosostratadosde12deoutubrode1851”.Atocontınuo,reivindicou“todosseus direitos [do Uruguai] sobre oslimites territoriais que sempre lhetocaram”,ouseja,ametadelestedoRioGrandedoSulatual,alemdalinhadeSantoIldefonsoeos“terrenosneutros”doChuıedoJaguarao.(GARCIA,2010,p.294)

Entre os episodios que se sucederam,encontra­seocercoacidadedePaisandu,ondeoscolorados do general Venancio Flores, apoiadosmilitarmenteporBrasileArgentina,enfrentaramaosblancos para derruba­los do poder. Esse quepareceserumdoscombatesdeumaguerracivilfoitambemoinıciodeumaguerracontinental,comodescreveoromancedeDelgadoAparaın:

[...]seraesteelpreambulodeundespo­joquecargaradeoprobioa losende­moniadosprotagonistas,asaber,sonelemperadorPedroIIdelBrasilyBarto­lomeMitre,presidentedelosargenti­nos,generalycronistadeunahistoriaantojadiza.Ambosdeseabanescarneary mutilar el Paraguay de FranciscoSolanoLopez[…].Esteparderapine­roshasabidoembozarestosplanesdedespojoacuatromanos,bajolamasca­ra de una cruzada por la libertad yotraspatranas.Yparaellohanusadoalgeneral Venancio Flores, un hombreentretenidoengolpearaloshombresaunoyotroladodelafrontera[…].MitreyelEmperadorlehanprometidoayu­da: derrocar al presidente AtanasioCruz Aguirre y hasta sentarlo en elsillonpresidencial,conlacondiciondeque, a cambio, agregue su parte desangre en la marcha de los tambores

sobreelParaguay.(2006,p.21­22)

Comavitoriadoscoloradosnadisputacon­traosblancos,restabeleceram­seasrelaçoesentreBrasileUruguaie,juntoaisso,oslimitesvigentesdesde1851.Somenteem1909houveaconcessaobrasileiraparaqueoUruguaifizesseusodasaguasda lagoaMirimedorio Jaguarao. Issoaconteceuporque o Brasil reordenou sua polıtica externa,poispercebeuqueadivisaodasaguaspossibilita­riaumcrescimentoeconomicorecıprococomseuvizinho, intensificando as relaçoes comerciais.Reconhecendo o “esforço” brasileiro, o UruguaimudouonomedacidadedeArtigasparachama­laRioBrancoemhomenagemaonegociadorbrasilei­roqueatendeuosdesejosdopovooriental.Apartirdo direito de livre navegaçao nas aguas do rioJaguarao,podeoUruguaiacordarcomoBrasil,em1918,opagamentodadıvidacontraıdaem1851.Esseacertosedeuatravesdaconstruçaodeumaponte, interligando as cidades de Rio Branco eJaguarao.Financiadaunicamenteporcapitaluru­guaio, foi inaugurada no dia 30 de dezembro de1930.

Figura4:PonteInternacionalMaua.DesenhodeLean­droBarrios(31cmx81cm).Foto:CarlosGarciaRizzon.Julhode2011.

Aocontrariodosmurosqueconcretizamaimagemdaseparaçaoedodistanciamentoentreospovos – presentes nas estancias fortins que, noinıciodoseculoXIX,ilustravamasrelaçoesinstitu­cionaisentreBrasileseuvizinhodosul–,aponteestabeleceumvınculodeaproximaçaoatravesdotransito de idas e vindas que ela permite. Dessemodo,comoobservaHommiBhabhaaocitarMar­tinHeidegger,

E� nessesentidoqueafronteirasetornaolugarapartirdoqualalgocomeçaasefazerpresenteemummovimentonaodissimularaodaarticulaçaoambulan­te,ambivalente[...].“Sempre,esempredemododiferente,aponteacompanhaos caminhos morosos ou apressados

-120-

Page 8: Outras geografias em literaturas de fronteira

doshomensparalaeparaca,demodoqueelespossamalcançaroutrasmar­gens...Apontereuneenquantopassa­gemqueatravessa.”(1998,p.24)

Noentanto,mesmopossibilitandootransi­to,pode­seentenderoestreitamentoproporciona­dopelaponteemseusdoissentidos,pois,juntoaaproximaçao,hatambemumestrangulamentodoscaminhos,umapassagemcontroladaefiscalizada.NaPonteInternacionalMaua,ondeemcadaumadas cabeceiras existem imponentes escritoriosalfandegarios,aprecisaodadivisajafoiexplıcita,poishouveumtempoemque,justonomeio,mar­cadonochao,partindodeumabalaustradaeche­gandonaoutra,umtraçovermelhorepartiaoqueeraterritoriobrasileiroeoqueerauruguaio.Masessaseparaçaonaodeixavadeserpurainvençao,pois,comodepoeoescritorAldyrGarciaSchlee,

[...] a Ponte Internacional Maua, [...]tinha,bemnomeiodorio,entreasduasAlfandegas, um risco vermelho. Era alinhadivisoria,riscadanocimentodaponte, permitindo o exercıcio infantildeseestaraomesmotemponoBrasilenoUruguai:umpela,outroca.Atequedescobriquesobaponte,norio,alinhaperdidanacorrentezaeescondidanofundao,eraoutra:eraalinhadotalve­gue, a linha de maior profundidade,quepassavalaadiante,sobosegundoarco da ponte, do lado uruguaio. Issoqueria dizer que, sobre a ponte, erapossıvelpassarparaoUruguai,andartrintaouquarentametros,debruçar­sesobre a balaustrada e, gloriosamente,alidecima,cuspirnoBrasil,laembaixo.(inSCHU� LER;BORDINI,2004,p.52)

Omesmoescritorutilizaessamesmarefe­renciaparamostrarcomoimagemodistanciamen­toqueelaproduz.Noconto“Braulina”,jovensena­morados, mas contidos pelos juızos familiares,expressamsuasangustiasdecoraçoespartidos:

[...] foi quando passaram o risco quesepara o Brasil do Uruguai, o traçovermelho no cimento da ponte. Esta­vam,eledoladodeca,eladoladodela,umpassonafrente.Elepediuqueelaparasseedisse,comsurpreendenteebrutalnaturalidade:–Queengraçado,nostaopertoumdooutroetaoseparados!(SCHLEE,1988,p.64)

As determinaçoes das leis, as imposiçoesdostratadoseasdemarcaçoesqueafirmamoquee

de um e de outro sao sempre definidas por umpodercentral,porgovernantesque,namaioriadasvezes,saopessoasquenaotemavivenciadoespa­ço que milimetricamente repartem. Nao sabem,provavelmente,quepara“ohabitantedafronteira,ofronteiriço,[que]eumhomemcommentalidadepropriaaintegraçao[...],asnoçoesdeespaçoenaci­onalidademuitasvezessaotaoabstratasquantoaideiadaexistenciadeumalinhademarcatoriaqueosepara'dooutropaıs'.”(PADRO� S,1994,p.76).Porisso,hoje,aquelalinhavermelhanomeiodaponte,apesardequeaindaexistamrastros,ninguemmaisapercebeporqueanosdeintensotrafegodepesso­as,dosoledachuva, fizeramdelanaomaisumaidentificaçao de espaço delimitado, mas sim umreconhecimentodedivisoesapagadas:

Figura 5: Divisa Jaguarao­BR/Rio Branco­UY na PonteInternacionalMaua.Foto:CarlosGarciaRizzon.Julhode2011.

As situaçoes conflituosas, motivadoras deinumeros enfrentamentos belicos, fizeram comque os habitantes dessas terras indecisas – porindefinidasoudedefiniçoesfugazes–determinas­semfronteirasmarcadasporumapopulaçaocultu­ralmentemultiplaehıbrida,construıdaportradi­çoes de vertentes de um lado e outro, pois, emdeterminadoperıodo,oraestavasobaregenciadogoverno espanhol, ora sob as ordens do governoportugues;posteriormente,estevesubmetidaoraaArgentina,oraaoUruguaieoraaoBrasilimperialouaoRioGranderepublicano.Estudodaprofesso­raHelenOsorioesclareceque

oatualestadodoRioGrandedoSuleo

-121-

Page 9: Outras geografias em literaturas de fronteira

Uruguai,noseculoXVIII,faziampartede um mesmo espaço em construçao,umazonadefronteira,comamplacir­culaçaohumanaematerial,noqualossuditosdeumaeoutraCoroainstala­vam­se conforme fosse mais facil suasobrevivencia, independentementedefidelidades estatais. (in CASTELLO etal.,1995,p.114)

Essamesmaconsideraçaopodeseresten­didaaepocasposteriores,poisasguerrasnaregiaoforam uma constante ate o inıcio do seculo XX,impondo a fronteiraumpermanentedeslocardolimite,oqueafazmuitomaisumaaproximaçaodaspopulaçoes que propriamente a separaçao delas.Em passagem por Jaguarao, o suıço­alemao CarlSeidler, que lutou junto ao exercito brasileiro nacampanha da Cisplatina entre 1826 e 1828, fez,comdesconfiança,aseguinteobservaçao:

Os moradores eram amaveis e gentis,se bem que usassem o capote para olado do vento e mantivessem secretoentendimento polıtico com seus vizi­nhos, os moradores da provıncia Cis­platina.AsituaçaoarriscadadeSerrito[hojeJaguarao]podeexplicaracondu­ta dubia de seus moradores, pois oraestavaempoderdosespanhois,oradosportugueses.Orio,queseparaacida­dezinhadoterritorioinimigofronteiro,efacilmenteatravessadopelasrapidascanoas,ecomoacidadenaotemfortifi­caçoes, as tropas da republica sul­americana costumam ocupa­la assimqueosportugueseslhesvoltamascos­tas.(inSOARES;FRANCO,2010,p.21­22)

O entendimento entre fronteiriços deambososladosdadivisapossuilaçosestreitospor­queaexogamiafoipersistente“desdesusprimeroscontactos”, aponta o investigador John CharlesChasteen,e“losfronterizosdehablahispanaypor­tuguesa parecen haberse mezclado facilmente, apesardelosfrecuentesconflictosentresusgobier­nos. Los matrimonios entre ellos eran comunes.”(2001,p.40).Constata­seque“rarassaoasfamıli­as,hojecomoontem,queseconservamrigorosa­mentebrasileirasouorientais”(FRANCO,2001,p.25).NostemposdaCisplatina,inclusive,erapolıti­cadogovernoofavorecimentodosenlacesbinacio­nais,nointuitodesedimentarapresençabrasileiranosolooriental.OutrofatorcomentadoporChas­teenserefereaqueos“riograndensesmaspobressecodeabantambienconmuchoscriollosorienta­les [...][porque] no podıan permitirse el lujo de

teneruntutor,ysisushijosibanaestudiar,debıanaprenderespanol”(2001,p.43).

Nasescolasfronteiriças,tantoantescomoagora,os falaresmescladosdeportugueseespa­nholevidenciamainteraçaoexistentenafronteira,comodestacaSergiodaCostaFrancoaomencionarumdiscursodeuminspetordeescolauruguaioem1907,quandoadvertiaasautoridadesdoseupaıssobredificuldadesnoensinocausadaspelocontatocombrasileiros.Dramaticamente,comofunciona­riopublicoquezelaporidentidadesnacionais,esseinspetor nao percebia a riqueza da diversidadeculturalsobseunarizefaziaacrıtica:

Nuestrasescuelasfronterizas,disemi­nadasenlaextensaregiondondedomi­nalalenguaportuguesayloshabitosycostumbresbrasilenos,ydondenues­troscompatriotasnosabenqueloson–oparecennosaberlo–,requieren,exi­gen, imponenunaespecialensenanzaparalosninosquelasfrecuentan.Esosninossonorientalessı,casiensutotali­dad,peroabrasilerados!...Procedendeunhogarquesoloesuruguayoporelterritorioqueocupa;suspadresnosonorientales, aunque lo sean – por lasrazonesyaexpuestas; lasmadresquelesdieronsertampocoloson,porqueaunque hayan sido bautizadas o ins­criptas en la Republica, nacieron, secriaron y se hicieron mujeres entreextranjeros.(inFRANCO,2001,p.28)

EmsentidoinversodesseposicionamentoestaaproduçaodopoetaFabianSevero,naturaldafronteiriçacidadedeArtigas,Uruguai,quecompoeversoscarregadosdeoriginalidadelinguıs ticaquedao uma tonicidade propria e libertaria, fora dequalquerpadraorestritivo,comoopoemaintitula­do“Trinticuatro”:

Mimadrefalavamuibien,yointendıa.Fabiandáfaserlosdeber,yofasıa.

Fabitrasememeiolitrodeleite,yotrasıaDesípradoñaCoraqueamañálepago,yodisıa

Deyaisoguríiyodeiyava.

Masmimaestranointendıa.Mandavacartasenmicaderno

todoconrojo(igualitosucara)iasinavaimbaiyo.

Masmimadrenointendıa.[…](2011,p.58)

Percebe­se, nesse exemplo, que o espaçofronteiriçoconformaumoutroespaço“quecontemterritoriosdospaısesemcontatoequesofre,alemdosinfluxos[...]nacionais,umadinamicapropria

-122-

Page 10: Outras geografias em literaturas de fronteira

resultantedainteraçaosocialdosagentesfrontei­riços”(PADRO� S,1994,p.69).Expoequeafronteiraemultipla,poiseoespaçodoreverso,doigualqueeoposto,comoexplicamaspalavrasdeAldyrGarciaSchlee

Vivia perplexo diante do Uruguai, naopropriamente diante do mundo; mas,antes,diantedaqueleoutromundo:taopertoetaolonge,logoalidooutroladodariscavermelhanocimentodaponte,muy cerca, cerquita, cercado (a riscavermelha no meio da ponte!)... Aqueleoutromundo,separadoeunidopelorio:taodiferenteetaoigual;taodistintoetandistinto;taodistinguidoetandistin-guido;taoesquisitoetanexquisito...(inSCHU� LER;BORDINI,2004,p.53)

Nessesentido–diferentedemuitasideiasque,mesmoapresentando­secomointegracionis­tas, propoem espaços “sem fronteiras” – que eimportante valorizar e afirmar a fronteira, reco­nhecendonelaariquezadasdiferençasedamulti­plicidade,poiselaeumazonaprivilegiadaparaoencontrocomoOutro.Assim,comoespaçodecon­fluenciaedehibridaçao,ondesedesvelamques­toes de alteridade, a fronteira gera movimentosque dispersam centralismos, homogeneidades eunicas verdades, revelando imagens especularesque sao as mesmas, mas de maneira diferente.Entendidaporsuareferenciasimbolicaeporseucaratercultural,afronteiratranscendeaoimagina­rio,pondoemevidenciaoutraspercepçoesgeogra­ficas. Impoe, entao, revisoes polıticas, historicas,linguısticas, literarias e identitarias para mostraroutras dimensoes de seu significado, indicandorepresentaçoesconcomitantesdoserenaoser.

Referências

BARRIOSPINTOS,Anıbal.HistoriadelaganaderíaenelUruguay.Montevideo:MEC,1990.

BHABHA,HomiK.Olocaldacultura.BeloHorizonte:UFMG,1998.

CHASTEEN,JohnCharles.Héroesacaballo.Trad.AıdaAltieri. Montevideo: Santillana/Fundacion Banco deBoston,2001.

DELGADOAPARAI�N,Mario.Norobaráslasbotasdelosmuertos.Montevideo:Santillana,2006.

EL PAI�S. Batallas que hicieron historia: Ituzaingo, labatalladelasdesobediencias.NºVII.Montevideo,juniode2005.

FRANCO,SergiodaCosta.GenteecoisasdaFronteiraSul.PortoAlegre:Sulina,2001.

_____.Origensde Jaguarão: 1790­1833. Porto Alegre:Evangraf,2007.

GARCIA, Fernando C. de.Fronteira iluminada. PortoAlegre:Sulina,2010.

GOLIM, Tau.A fronteira. Vol. 1. Porto Alegre: L&PM,2002.

LOPESNETO.JoaoSimoes.Contosgauchescos&Len-dasdosul.PortoAlegre:L&PM,2009.

MASINA,Lea.Ocontrabandonaconfluenciadeculturas.In:CATELLO,IaraReginaetal.(Orgs.).Práticasdeinte-graçãonasfronteiras:temasparaoMERCOSUL.PortoAlegre:UFRGS/InstitutoGoethe/ICBA,1995.165­175.

MONEGAL,Jose.Cuentosdemilicosymatreros.Mon­tevideo:BandaOriental,1993.

OSO� RIO,Helen.Oespaçoplatino:fronteiracolonialnoseculoXVIII.In:CATELLO,IaraReginaetal.(Orgs.).Prá-ticas de integração nas fronteiras: temas para oMERCOSUL. Porto Alegre: UFRGS/Instituto Goet­he/ICBA,1995.110­114.

PADRO� S,EnriqueSerra.Fronteiraseintegraçaofrontei­riça.In:RevistaHumanas.PortoAlegre,Vol.17,nº1/2,ene/dic,1994.63­85.

PALERMO,EduardoR.EsclavitudyhaciendapastorilenelUruguay.In:MAESTRI,Mario(Org.).Onegroeogaú-cho:estanciasefazendasnoRioGrandedoSul,UruguaieBrasil.PassoFundo:UPF,2008.138­168.

REYES ABADIE, Washington; BRUSCHERA, Oscar H.;MELOGNO,Tabare.LaBandaOriental:pradera,fronte­ra,puerto.Montevideo:BandaOriental,1970.

SCHLEE,AldyrGarcia.Contosdesempre.PortoAlegre,MercadoAberto,1988.2ªed.61­66.

_____.Testemunhosdeidentidade.In:SCHU� LER,Fernan­do Luıs; BORDINI, Maria da Gloria (Orgs.).Cultura eidentidaderegional.PortoAlegre:Edipucrs,2004.49­56.

SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil (fragmentos). In:SOARES,EduardoA� lvaresdeSouza;FRANCO,SergiodaCosta.OlharessobreJaguarão.PortoAlegre:Evangraf,2010.19­26.

SEVERO,Fabian.Noitenunorte.Montevideo:Rumbo,2011.

SOARES,JoseCarlosdeMacedo.FronteirasdoBrasilnoregimecolonial.RiodeJaneiro:JoseOlympio,1939.

-123-

Page 11: Outras geografias em literaturas de fronteira

SOUZA, Susana Bleil de. Os caminhos e os homens docontrabando. In: CATELLO, Iara Regina et al. (Orgs.).Práticasdeintegraçãonasfronteiras: temasparaoMERCOSUL. Porto Alegre: UFRGS/Instituto Goet­he/ICBA,1995.126­139.

VERISSIMO,Erico.OcontinenteI.SaoPaulo:Compa­nhiadasLetras,2004.

VIANA,Javierde.LosamoresdeBentoSegrara.In:Susmejorescuentos.BuenosAires:EditorialLosada,1969.

ZIENTARA, Benedikt. Fronteira. In: EnciclopediaEINAUDI,Vol.14.Lisboa:ImprensaNacional,1989.306­317.

Othergeographiesinborderliterature

Abstract:Inaninterdisciplinaryapproach,thisarticleworkswithhistoricaldatatofocusonthemesdevelopedbyBrazilianandUruguayanfictionwrites,featuringadesignoftheborderanditsrecogni­tionbyliterarytexts.It,showsthattheconformationoftheborderbetweenBrazilandUruguaysetsupanheterogeneousspace,withoverlappingmarksofidentityandotherness.Keywords:Space.Border.Geography.History.Literature.

Otrasgeografíasenliteraturasdefrontera

Resumen:Enabordajeinterdisciplinar,esteartículotrabajacondatoshistóricosparafocalizartemasdesarrollados por la ficción realizada por escritores brasileños y uruguayos, presentando unaconcepcióndefronteraysureconocimientoatravésdetextosliterarios.Deesaforma,evidenciaqueelproceso histórico de la conformación de la frontera entre Brasil y Uruguay configura un espacioheterogéneo,presentandomarcasimbricadasdeidentidadyalteridad.Palabras-clave:Espacio.Frontera.Geografía.Historia.Literatura.

-124-