sonhos de recife-egberto gismonti

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Todos os direitos reservados à autora. 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA Cândida Luiza Borges da Silva A INTERPRETAÇÃO E O PIANISMO DE EGBERTO GISMONTI EM SUA OBRA “SONHOS DE RECIFE” “Todos os direitos reservados à autora Permitida transcrição parcial, desde que citada a fonte.” Rio de Janeiro, 2005.

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Egberto Gismonti

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Todos os direitos reservados à autora.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

Cândida Luiza Borges da Silva

A INTERPRETAÇÃO E O PIANISMO DE EGBERTO GISMONTI EM SUA OBRA

“SONHOS DE RECIFE”

“Todos os direitos reservados à autora

Permitida transcrição parcial, desde que citada a fonte.”

Rio de Janeiro, 2005.

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Cândida Luiza Borges da Silva

A INTERPRETAÇÃO E O PIANISMO DE EGBERTO GISMONTI EM SUA OBRA

“SONHOS DE RECIFE” Dissertação de Mestrado apresentado à Pós-Graduação da Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos à obtenção ao Título de Mestre (Práticas Interpretativas).

Orientadora

Profª. Drª. Miriam Grosman

Rio de Janeiro, 2005.

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NOTA DA AUTORA:

Esta versão se destina a divulgação on line da parte técnica deste trabalho. Os anexos referentes `as entrevistas com o Sr. Egberto Gismonti foram retiradas

porque serão brevemente publicadas em obra comercial e desponibilizadas a todo o público. Da mesma forma, o vídeo e a partitura integral utilizados como análise neste trabalho ainda não podem ser divulgados porque estão sob proteção de direitos dos seus autores. O conteúdo do trabalho continua preservado, uma vez que todas as citações dos textos das entrevistas e da partitura encontram-se ao longo do texto

principal. Quanto `a obra sonora, há áudios com interpretações desta obra por Gismonti em seus discos. Esperamos em breve poder divulgar este trabalho na

íntegra.

À Música.

Aos meus pais, por terem me dado esse tesouro.

A Alexandre, por ter me feito enxergar o tesouro.

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Agradecimentos

A Deus, Deuses e Deusas, pela oportunidade de aprendizado e evolução. Aos meus pais, Talma e Waldemar, pela vida, educação e presença

compreensiva. Obrigada, especialmente, por há 21 anos atrás, terem me levado à minha primeira aula de piano.

A Egberto Gismonti, pela inspiração, apoio e valiosa contribuição. À minha orientadora, Miriam Grosman, sublime educadora. Pela dedicação,

confiança e carinho em todos esses anos, e sobretudo pelo incentivo à continuidade dessa busca.

A Alexandre, pelo amor, atenção, compreensão e todos os ensinamentos. A todos os professores que tive, especialmente Cely Periard (Tia Cely).

E a muitas outras pessoas importantes nessa caminhada: Bianca Gismonti, Harlei Elbert, Marcos Vinício, Vanda Freire, Fernando Ribeiro, Paulo Peloso, Lilian Borges, Lívia Borges, minha família, amigos e alunos.

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“A música é a guia. Eu sigo a música. Ponto.”

EGBERTO GISMONTI

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RESUMO

SILVA, Cândida Luiza Borges da. A Interpretação e o Pianismo de Egberto Gismonti em sua obra “Sonhos de Recife”. Rio de Janeiro, 2005. Dissertação (Mestrado em Música – Práticas Interpretativas) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

Neste trabalho, desenvolve-se uma investigação sobre a interpretação e o pianismo de Egberto Gismonti, na obra “Sonhos de Recife”, com o objetivo de elaborar subsídios para a compreensão de seus aspectos musicais e performáticos. Esta obra trata-se da única peça para piano com partitura integralmente escrita pelo compositor até o momento e apresenta elementos pianísticos pertinentes a esta pesquisa. A partir da análise da partitura, apontamos possibilidades interpretativas para a obra que serviram de parâmetro para a discussão das escolhas técnico-interpretativas de Gismonti, observadas na gravação do show realizado em 2003, no Teatro Colón, Argentina. Buscou-se criar relações entre as observações do seu pianismo e interpretação com depoimentos de Gismonti sobre a sua trajetória e prática, obtidos através de cinco entrevistas. Sua obra é praticamente desconhecida no meio acadêmico. Egberto Gismonti (1947-) é um multi-instrumentista e compositor brasileiro contemporâneo, cujo pianismo tem como principais características o grande virtuosismo, riqueza de sonoridades, independência rítmica e integração corporal. Sua interpretação é marcada pelo forte senso rítmico e criatividade, especialmente pela habilidade de improvisar e desenvolver polifonias. Seu trabalho apresenta composições e práticas singulares, que refletem seus conceitos filosóficos, sua experiência e personalidade.

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ABSTRACT

With the aim of finding subsidies for the understanding of the musical and performatic aspects on Egberto Gismonti’s interpretation and pianism, an investigation was developed in his music "Sonhos de Recife". This piece is the only one in his repertoire which has a score entirely written by him up to the present and which presents pianistic elements relevant to this research. From the analysis of the referred score, we presented interpretative possibilities which served as parameter for discussing about Gismonti’s technical-interpretative choices observed in the recording of the show carried out in 2003, in the theater Colón, Argentine. We made a parallel between the observation of his pianism and interpretation with some declarations given by him, during five interviews, about his career and practice. His work is practically unknown in the academic group. Egberto Gismonti (1947-) is a contemporary Brazilian multi-instrumentalist and composer, whose pianism has as main characteristics the great virtuosity, wealth of sounds, rhythmic independence and corporal integration. His interpretation is distinguished by the strong sense of rhythm and creativity, especially by the ability to improvise and develop polyphonies. His production shows unique compositions and practice, which reflect his philosophical concepts, his experience and personality.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

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1 METODOLOGIA

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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PARTITURA 20 2.1 O FREVO 20 2.2 BREVE ANÁLISE DA OBRA 21 2.3 A PARTITURA PARA GISMONTI 27 2.4 OUTRAS OBRAS

30

3 ANÁLISE INTERPRETATIVA E DISCUSSÂO DA GRAVAÇÃO

33

4 OBSERVAÇÕES SOBRE O PIANISMO E A INTERPRETAÇÃO DE GISMONTI

47

4.1 FORMAÇÃO 47 4.2 TÉCNICA 4.3 ESTUDO E PREPARAÇÃO

48 53

4.4 INTERPRETAÇÃO 62 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

71

ANEXOS A – PARTITURA DE “SONHOS DE RECIFE” B – ENTREVISTAS ENTREVISTA 1 – Formação ENTREVISTA 2 - Conversa sobre “Sonhos de Recife” ENTREVISTA 3 – Prática ENTREVISTA 4 – Performances ENTREVISTA 5 - O piano C - CD

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76 77 86 95

109 121

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INTRODUÇÃO

A música produzida no Brasil é bastante diversificada e eclética, tal como

a formação de seu povo. Como uma nação formada pela miscigenação de várias

etnias, nossa produção artística se vê banhada por uma riqueza de possibilidades,

que engloba a expressão de muitas culturas diferentes.

A música, como manifestação cultural em todas as comunidades, foi um

dos meios de expressão mais enriquecido com esta miscigenação, através de

contribuições dos indígenas, africanos, árabes, americanos, e europeus, entre

outros povos.

O desenvolvimento da música brasileira foi resultante de todas essas

influências. Os compositores brasileiros mesclaram essas diversidades culturais,

fazendo surgir uma arte musical com expressão própria e aplicação particular,

inclusive ao piano.

Ao lado do repertório erudito europeu, observa-se a presença do piano em

práticas musicais no Brasil, denominadas populares. Nestas práticas, o repertório

abrange diversos gêneros como valsas, maxixes, polcas, tangos, frevos, choros e

sambas.

O repertório pianístico expandiu-se ecleticamente. Além das obras

européias, surgiram as músicas para piano que consideramos brasileiras, em cuja

trajetória, iniciada no final do século XIX, incluímos compositores como Chiquinha

Gonzaga, Ernesto Nazareth e Carlos Gomes.

A música e os músicos dividiam-se quanto ao repertório praticado. Os que

se dedicavam ao repertório europeu e os que praticavam a música que brotava na

periferia das cidades e nos seus salões, geralmente sem formação acadêmica.

Com o surgimento das escolas de música no Brasil, muitos músicos

adquiriram formação musical sólida e começaram a dominar a escrita erudita. Estes

compositores, inseridos no contexto cultural brasileiro, interessavam-se pela música

local e valiam-se dela para enriquecer suas composições, inserindo na linguagem

erudita elementos do folclore e da música popular brasileira.

Grandes nomes de compositores já reconhecidos realizaram este

intercâmbio. Entre eles podemos citar Villa Lobos, Radamés Gnattalli, Francisco

Mignone, Oswaldo Lacerda, Guerra Peixe, Camargo Guarnieri e Vieira Brandão.

Esta tendência foi sentida em todo o mundo, como um enriquecimento dos recursos

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composicionais, valorizando um sentimento nacionalista. Um dos seus maiores

expoentes e precursores foi Bela Bartók que, através de suas pesquisas

etnomusicológicas, preencheu seu repertório com muitos elementos do folclore

húngaro.

Segundo o pesquisador Ricardo Tacuchian:

Uma das principais características da música deste final de século é a superação das antinomias em favor de um intenso sentido de síntese. A síntese da música de hoje é aquela que procura superar as polaridades tonal/ atonal, acústico/ eletrônico, som/ ruído, nacional/ universal, oriental/ ocidental, vanguarda/ tradição, mercado/ estética e assim por diante. (TACUCHIAN, 1994/5, p. 6)

No seu desenvolvimento, a música brasileira faz sentir cada vez mais esta

síntese, em que une a música de concerto com as manifestações folclóricas e

populares. Aos poucos, torna-se diluída a fronteira que as difere. Surge uma música

contemporânea que se apresenta numa prática tipicamente brasileira, associando a

música de concerto tradicional e vanguardista à música popular.

Ao longo desta trajetória musical, o piano foi um instrumento amplamente

utilizado por muitos destes compositores de diversos estilos e tendências.

Desenvolveu-se uma escrita idiomática diversificada e rica, que atende a estes

estilos. Novos compositores fazem sentir essas transformações, criando outras

linguagens e elementos na nossa música, cuja interpretação passa a ser valorizada

por pianistas de destaque no panorama nacional e internacional. Um deles é o

compositor e multi-instrumentista Egberto Gismonti, que apesar de possuir um

grande reconhecimento internacional, ainda não teve sua obra pesquisada pelos

meios acadêmicos no Brasil.1

Nascido em 1947, na cidade do Carmo, divisa entre RJ e MG,

descendente de libaneses e italianos, Egberto começou a estudar piano ainda

menino, aos cinco anos, dando continuidade à tradição artística da família que já

vinha de seu avô e tio, também músicos. Em Friburgo, deu continuidade aos seus

estudos com formação clássica, concluindo, no Conservatório Nacional de Nova

Friburgo, os nove anos de estudos fundamentais de piano. 1 Há conhecimento apenas de uma pesquisa sobre sua biografia intitulada “Dança das Cabeças – a trajetória

musical de Egberto Gismonti” de Sibila Godoy – vide bibliografia.

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Em seguida, mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro para estudar no

Conservatório Brasileiro de Música. Estudou com os professores Dulce Siqueira,

Jacques Klein e Aurélio Silveira, conciliando a dedicação aos estudos de piano com

a composição. Nesta época, além dos estudos tradicionais do curso de piano,

faziam parte da sua prática musical a música popular e as suas composições.

Em 1968, Egberto deu início à sua carreira de compositor e intérprete

obtendo prêmios em alguns festivais de música popular, gravando e produzindo LPs,

e realizando shows.

Em 1970, acompanhando a atriz e cantora francesa Marie Laforet, o artista

foi para a Europa como arranjador dos seus shows. Neste período, pôde tomar

conhecimento e aprofundar-se na música européia tradicional, incluindo a música

dodecafônica e eletroacústica. Teve, ainda, seus primeiros contatos com os

instrumentos eletrônicos. Morando em Paris, estudou composição com Jean

Barraqué (discípulo de Webern) e análise musical com Nádia Boulanger, que o

incentivou amplamente a buscar suas raízes musicais brasileiras e aplicá-las em sua

música.

Um dia, ela [Nadia Boulanger] disse: “Ok, Sr. Gismonti, este é o último dia de estudo para você, porque você tem que voltar pra casa e descobrir que tem uma grande fonte de inspiração no seu lugar”. Eu disse: “Do que a senhora está falando?” Ela respondeu: “Você é um compositor europeu mediano e um péssimo compositor brasileiro”. (Entrevista concedida a Josef Woodard, 1996)

De volta ao Brasil em 1971, Egberto decidiu dedicar-se à música

brasileira, num estilo que se pode considerar uma síntese de muitos estilos, entre

eles o popular e o erudito.

Tenho a impressão de que consigo hoje colocar no trabalho a formação, a técnica de composição que aprendi em conservatório e a emoção da música popular que para mim é uma necessidade física. (Apud VILELA, 1998.)

Definitivamente, o retorno ao seu país representou uma mudança de rumo

e de concepção musical para Egberto. Decidiu abandonar o conservatório e dedicar-

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se às formas livres de criação e interpretação. Surgiu um forte caráter improvisado

nos seus trabalhos, resultado do contato com seus amigos americanos que

praticavam o jazz, e da música indígena que conheceu na sua visita ao Xingu. A

partir de então, Egberto desenvolveu sua carreira como intérprete, compositor,

arranjador e orquestrador, exclusivamente de trabalhos autorais.2

Ao longo dessa trajetória, valeu-se de muitos recursos para dar vazão à

sua música. Foi um dos primeiros músicos no Brasil a utilizar instrumentos

eletrônicos em seus trabalhos. Explorou os sintetizadores, além da percussão, os

instrumentos indígenas (especialmente a flauta) e o violão, onde inseriu mais cordas

para aumentar sua extensão.

Compôs músicas para formações diversas, incluindo solos para piano e

violão, além de obras para orquestras, filmes, balés e especiais de TV. Não há

números oficiais de sua obra, nem publicações de suas partituras, mas há uma vasta

produção, registrada em seus mais de 54 cds lançados até o momento.

Em geral, suas composições não são destinadas a um ou mais

instrumentos em especial. Tratam-se de referências melódicas e harmônicas, às

quais ele emprega arranjos, de acordo com o trabalho que visa realizar. Na sua

discografia, podem ser encontradas gravações diferentes de muitas de suas

composições, em formações variadas: solo, trio, quarteto e orquestra, inclusive com

nomes diferentes para a mesma peça. Outras composições parecem possuir uma

indicação instrumental preferencial, como as que gravou exclusivamente ao piano.

Egberto Gismonti é um pianista dotado de características peculiares,

desenvolvidas em função da linguagem que ele criou para representar, ao piano,

elementos da cultura popular e do folclore do Brasil e de outros países. O fato de ter

recebido uma formação musical sólida possibilitou o desenvolvimento de um estilo

composicional bastante denso e sofisticado, ao mesmo tempo que espontâneo e

improvisado. Percebe-se em seu trabalho uma escrita e prática que se confundem

com seus conceitos filosóficos, sua experiência de vida, sua personalidade, e se

refletem nas suas composições e na sua interpretação.

Possui uma fama internacional que lhe rende muitas apresentações pelo

mundo, em solo e acompanhado de diversas orquestras nacionais e internacionais.

Trata-se de um músico que deu uma aplicação bastante diversificada à sua música. 2 Há algumas exceções, como o LP “Trem Caipira”, baseado em obras de Villa Lobos.

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A escolha de Egberto Gismonti para esta pesquisa partiu de um interesse

pessoal de me aproximar do universo da composição e interpretação de música

brasileira. Tendo conhecido o Gismonti em 2000, tive a oportunidade de

acompanhar de perto sua produção e trabalho nesses últimos anos, e considerei

bastante enriquecedor este contato. Julguei valioso organizar minhas observações

em um trabalho acadêmico, enriquecido com uma reflexão teórica e a experiência

prática das suas composições.

As questões que direcionaram esta pesquisa foram: 1) Quais as

peculiaridades da performance de Gismonti, do ponto de vista rítmico, melódico,

textural, tímbrico, fraseológico, formal e interpretativo, que caracterizam o seu

pianismo? 2) Quais as contribuições que a performance de Gismonti pode oferecer

ao estudo do pianismo, sobretudo de músicas brasileiras?

Propõe-se neste trabalho desenvolver uma investigação sobre a

interpretação e o pianismo de Egberto Gismonti, observados e analisados na obra

“Sonhos de Recife”, com o objetivo de elaborar subsídios para a compreensão de

seus aspectos musicais e performáticos.

No primeiro capítulo, apresentamos a metodologia empregada nesta

pesquisa.

No segundo capítulo, realizamos uma discussão sobre a partitura de

“Sonhos de Recife”.

No terceiro capítulo, oferecemos uma proposta interpretativa para a obra e

analisamos a gravação da performance de Gismonti.

No quarto capítulo, apresentamos alguns aspectos do seu pianismo.

Por fim, no quinto capítulo, as considerações finais sobre o trabalho de

Gismonti.

Em anexo, encontra-se a partitura de “Sonhos de Recife” (anexo A), a

transcrição das entrevistas (anexo B) e um CD contendo a partitura digitalizada, a

gravação em áudio e em SVCD (anexo C).

A obra de Gismonti é praticamente desconhecida no meio acadêmico,

tanto do ponto de vista composicional quanto interpretativo. Espera-se que esse

trabalho possa servir como ponto de partida e motivar futuras pesquisas sobre

Egberto Gismonti e outros pianistas brasileiros de relevância.

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1 METODOLOGIA

A palavra “pianismo” tem sido amplamente empregada na literatura

específica sobre piano, embora não se tenha encontrado uma definição técnica para

este termo. O dicionário Webster, como uma referência de definições gerais,

descreve pianismo como “performance ou técnica de um pianista”; já o dicionário

Wordreference define o termo como “técnica, habilidade ou maestria em tocar

piano”. Na literatura pianística, sua definição apenas pôde ser concluída através de

exemplos e citações em que a palavra “pianismo” é empregada:

E, desde a repetição do tema de entrada pela solista, sim, este é o «pianismo», esta é a arte de Maria João Pires: graciosidade, fluência absoluta, delicadeza suprema do «toucher», um legato que aparenta não acabar nunca e, de repente, a robustez, a força - mas sem nunca perder a transparência, sem nunca pôr em xeque o «cantabile» -, mas só e apenas quando o compositor assim o exige, só e apenas como o compositor as quer. (http://www.instituto-camoes.pt/bases/mariajpires/noticia07.htm)

Do ponto de vista do pianismo, ressalte-se que Saloméa Gandelman, além das questões técnicas propriamente ditas, levou em conta, entre outros fatores, aqueles que se relacionam à leitura e que são constantes em boa parte das obras, como rítmica amiúde bastante complexa, estruturas harmônicas imprevistas, novas e variadas formas de mão e deslocamentos decorrentes do emprego das mais diversas bases escalares em mutação, com ampla e riquíssima palheta de intensidade e agógica bastante instável. (http://www.uniriotec.br/~equipeweb/exposicaovirtual/b7.html)

Desta forma, consideramos, neste trabalho, o conceito de pianismo como

o conjunto de características da performance de um pianista, a partir de parâmetros

pianísticos, tais como toques, pedalização, dedilhado, postura, acentuação,

fraseado, articulação, técnica, sonoridade, agógica, respirações e dinâmica.

O pianismo está intimamente relacionado à interpretação do pianista. As

escolhas dos procedimentos pianísticos estão subjacentes à interpretação da obra

realizada. Nesta abordagem, a interpretação não é vista como um modelo

dogmático, mas como um panorama das assimilações e relações que o intérprete

criou com o texto, manifestadas em uma performance. Assim, toda performance

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apresenta uma opção de interpretação, consciente ou inconsciente, derivada da

forma como o intérprete assimila o texto musical.

Como toda performance é uma interpretação, toda interpretação é, ou uma performance, ou, quando escrita como uma análise ou crítica, planejável [construable] como um conjunto de “instruções” para uma performance. Como Leonard Meyer (1973:29) escreveu: “A performance de uma peça musical é ... a atualização de um ato analítico – embora tal análise possa ter sido intuitiva e não-sistemática. O que o intérprete faz é tornar as relações e modelos potenciais na partitura do compositor claras à mente e ouvidos do ouvinte experiente.” (LEVY, 1998, p.150, tradução nossa) Performance é o equilíbrio da espontaneidade do momento e da concepção da obra, filtrado pelo seu estudo e entendimento. Como um executante, é sua responsabilidade refletir as intenções do compositor, mas é seu direito projetar sua própria personalidade. (STIER, 1992, p. 3, tradução nossa)

Por sua vez, a interpretação está relacionada à concepção musical que o

intérprete tem da obra. A boa compreensão da estrutura da obra é fator

imprescindível para uma performance de qualidade. Permite que o pianista tenha

mais clareza e convicção da escolha de seus procedimentos pianísticos, e,

conseqüentemente, comunique ao ouvinte com mais precisão suas intenções. Assim

sendo, a análise, como um recurso de decodificação e aproximação da estrutura da

obra, sai do campo puramente teórico e assume uma etapa da preparação da

performance.

Fazer escolhas entre várias possibilidades é uma parte importante de qualquer tipo de interpretação, tanto na análise quanto na performance. (LESTER, 1998, tradução nossa)

A função da análise na interpretação e performance é dar subsídios para o

intérprete criar suas opções interpretativas, baseado no conhecimento dos

elementos que compõem, organizam e dinamizam a obra. Não deve pretender uma

fórmula única de compreensão e interpretação, mas apontar aspectos essenciais e

imutáveis da obra, assim como variantes possíveis ao seu enriquecimento.

Se as peças são consideradas como composições de inumeráveis possibilidades aparentemente aceitáveis de interpretação, o foco da análise poderia mudar de, ao invés de

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encontrar “a” estrutura da peça, definir múltiplas estratégias de interpretação de peças. (LESTER, 1998, p. 214, tradução nossa)

A primeira questão que a análise nos coloca, no grau de complexidade

das observações pretendidas, foi a necessidade de existência da partitura (anexo A).

O registro gráfico da obra permite uma reflexão mais complexa sobre sua estrutura,

além de comunicar as intenções registradas do compositor.

A partir desta abordagem que relaciona pianismo-interpretação-

performance-concepção musical, concluímos que a descrição do pianismo de

Gismonti inclui a compreensão da sua interpretação, como direcionadores do seu

pianismo. Desta forma, era necessária a utilização de performances dele neste

trabalho, assim como parâmetros para a discussão dessas performances, tais como

partituras e análises.

De maneira a nos adequarmos ao tempo e formato da pesquisa deste

Mestrado, decidimos limitar o universo de observação do seu pianismo à obra

“Sonhos de Recife”. Esta obra foi escrita em 1995, quando Gismonti já tinha uma

carreira estabelecida e uma produção estruturada. Foi escolhida por se tratar da

única peça para piano de seu repertório com partitura integralmente escrita pelo

compositor até o momento. Sendo a partitura um recurso essencial a esta pesquisa,

a sua existência tornou-se um fator de seleção das obras do repertório do

compositor. Além disso, esta obra apresenta uma escrita complexa, composta de

diversos elementos musicais e pianísticos pertinentes às abordagens deste trabalho,

confirmando a sua escolha.

Essa música tem uma complexidade harmônica de um período em que eu fazia músicas de complexidades harmônicas e pianísticas. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

No intuito de criar parâmetros para a discussão da interpretação de

Gismonti, apontamos possibilidades interpretativas para a obra, a partir de uma

reflexão sobre o texto. Desta forma, duas análises foram necessárias: uma análise

estrutural da partitura, e outra análise, decorrente desta anterior, sobre as soluções

interpretativas.

O método de análise da partitura foi escolhido de maneira a proporcionar

informações não puramente teóricas, mas que de fato contribuam para a

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performance. Não encontramos nenhum método que se destine exclusivamente às

questões interpretativas. Desta forma, este trabalho criou seus próprios recursos de

análise, de maneira a sanar as questões que se colocaram no seu transcurso.

Acima de tudo, a análise necessita esclarecer nossa relação com a música, não congestioná-la com informações que não podemos relacionar com nossa escuta ou execução. (HOWAT, 1998, p. 4, tradução nossa)

Preliminarmente, foi feita uma análise da partitura, com o objetivo de

identificar os elementos estruturais, cuja compreensão se considerou fundamental à

interpretação dessa obra.

O conhecimento estrutural permitiu a realização de uma análise

interpretativa, que teve como parâmetros: fraseado, dinâmica, agógica, contraste

sonoro, tipos de toques pianísticos, pontos de tensão/ relaxamento, aplicação do

pedal, andamento, acentuação, caráter, procedimentos técnicos, registro,

respirações, analogia a instrumentos, entre outros. Desta forma, foi possível propor

opções interpretativas para o texto musical, que embasaram as discussões sobre a

interpretação observada na gravação.

Posteriormente, foi feita uma análise da performance desta obra pelo

próprio Gismonti, em uma gravação feita ao vivo, em vídeo e áudio, de um show

realizado em 21 de abril de 2003, no Teatro Colón, em Buenos Aires, Argentina

(anexo C). A escolha desta apresentação como referência foi indicada por Gismonti.

Ele a considera uma versão atualizada da sua interpretação e da sua maneira de

tocar, além de ter representado um momento afetivamente importante para ele.

Esse concerto do Colón é um bom parâmetro. Eu não me lembro nesses 30 anos, tocando profissionalmente, de eu ter tocado 90 e tal minutos com uma concentração e uma precisão muito raras. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada) O “Frevo” do Colón é uma das coisas mais complexas que eu já ouvi como resultado do piano que eu toco. É complexo no sentido da polifonia. Quando eu ouço esse troço, eu digo “mas caçamba, eu nunca tinha tocado esse troço assim!” [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

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Considerou-se esta gravação como uma fonte de observação do pianismo

de Gismonti, através dos seus procedimentos pianísticos e das suas opções

interpretativas. Também a utilizamos como uma complementação das indicações da

partitura sobre as intenções do compositor. Segundo Howat (1998), há dois tipos de

notação para uma obra: o manuscrito e a gravação do próprio compositor.

Gravações de performances do próprio compositor são um segundo tipo de notação, proporcionando insights tanto quanto perguntas. (...) A gravação dos compositores muitas vezes indicam detalhes não explícitos na partitura. (HOWAT, 1998, p.4, tradução nossa)

A gravação forneceu informações de como o compositor, agora na

posição de pianista, interpretou a sua própria criação. Através da observação desta

performance, pudemos:

1) identificar quais as suas opções interpretativas;

2) discutir suas opções, a partir do referencial criado nas análises;

3) identificar quais recursos pianísticos empregou, e de que forma;

4) distinguir as diferenças entre o texto da partitura e a sua realização,

como omissões de indicação e alterações.

A observação da imagem do SVCD foi um recurso extra para a

identificação do pianismo de Gismonti, uma vez que o aspecto visual proporciona

informações que as gravações apenas em áudio não transmitem, como por exemplo

suas expressões corporais. A observação do seu gestual permitiu conclusões sobre

sua maneira de tocar, aspectos da sua técnica e dedilhado.

A discussão das informações da análise da partitura e da gravação

pretendeu identificar os pontos convergentes e divergentes das duas análises. A

partitura representou um parâmetro estático, a partir do qual foram criadas idéias e

concepções interpretativas. A gravação foi uma performance de Gismonti, como

intérprete e compositor da obra, que expressou opções, tanto do ponto de vista

analítico como interpretativo.

(...) a partitura musical não é a obra propriamente dita, como um mapa ou uma receita para produzí-la. Não importa quão

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diferentes as metáforas, mapa e receita sejam, ambas sugerem que a obra musical existe além da partitura. Performances são um tipo de realização de uma peça (...) e são ao mesmo tempo mais ricas e mais limitadas que a partitura. Elas são mais ricas à medida que adicionam características nunca totalmente observadas em nenhuma partitura – nuances de articulação miríades, timbre, dinâmica, vibrato, afinação, duração e assim por diante. No entanto, cada nuance limita a peça por excluir outras opções para aquele elemento. Neste sentido, uma performance é necessariamente apenas uma única opção para aquela peça, delineando alguns aspectos enquanto excluindo outros – exatamente como uma única análise. (LESTER, 1998, tradução nossa) Considerar a performance como uma parte do processo analítico auxiliará a distinguir entre decisões analíticas, envolvendo aspectos indiscutíveis da estrutura que não devem ser contraditos por qualquer análise e/ou performance, e aquelas decisões analíticas que são interpretativas. (LESTER, 1998, p. 212, tradução nossa)

A entrevista foi um importante recurso para uma aproximação com o

universo do compositor. A partir de um roteiro pré-estabelecido, porém aberto,

buscou-se informações pessoais do compositor, desde a sua formação, o seu

estudo, até a sua forma atual de lidar com a performance. As entrevistas foram

realizadas em cinco encontros na residência de Gismonti, registrados em áudio e

transcritos posteriormente (anexo B). Seu conteúdo foi utilizado para apoiar as

observações do trabalho.

Buscou-se criar relações entre as observações do seu pianismo e

interpretação com aspectos pessoais da sua trajetória e forma de lidar com questões

sobre o piano, suscitando assuntos e questões sobre música em geral, que vão

além do aspecto puramente pianístico. Para enriquecimento, incluímos ainda

depoimentos de alguns importantes pianistas e professores de piano, cujas

vivências fornecem subsídios às discussões.

Buscamos uma reflexão teórica que tivesse a prática pianística como foco,

de maneira a atender às questões técnicas e interpretativas que surgiram na

pesquisa. Assim, procurou-se criar uma fundamentação teórica ao longo do texto,

com conceitos de pianistas e estudiosos do assunto, além dos depoimentos de

Gismonti. Limitamo-nos à definição de conceitos relacionados à interpretação e

omitimos definições de termos usuais em música.

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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PARTITURA

A obra “Sonhos do Recife” foi escrita em 1995 por Egberto Gismonti, no

Rio de Janeiro, com o comentário “Música inspirada no ritmo do frevo. Dança

popular da cidade do Recife no nordeste do Brasil” registrado na partitura. Não há

informações de quando a obra foi composta.

2.1 O frevo

O termo Frevo nasceu da linguagem simples do povo, e vem de "ferver",

que o povo pronunciava "frever". Mário de Andrade o define com “dança

instrumental, marcha em tempo binário e andamento rapidíssimo”.

Marca registrada do carnaval pernambucano, o frevo nasceu no Recife.

Musicalmente, originou-se do repertório das bandas militares na segunda metade do

século XIX, misturando-se aos ritmos do maxixe, da modinha, da polca, do tango, da

quadrilha e do pastoril. Deduz-se que a música apoiou-se, desde o início, nas

fanfarras constituídas por instrumentos de metal, pela velha tradição de bandas do

povo pernambucano.

No decorrer do tempo, a música adquiriu características próprias,

dividindo-se em frevo-de-rua, frevo-canção e frevo-de-bloco.

O frevo-de-rua é exclusivamente instrumental, sem letra, para se dançar.

Este estilo engloba as modalidades de frevo-abafo, com predominância de

instrumentos de metal, frevo-coqueiro, com predominância de notas agudas e frevo-

ventania, com predominância de semicolcheias. É feito para ser executado a céu

aberto, na rua, como a sua denominação indica. Sua melodia e ritmo são

responsáveis pela coreografia do passo, e pela movimentação das multidões de

foliões e desfiles de clubes carnavalescos, não só do Recife como de outras cidades

da região pernambucana. Como exemplo, podemos citar: “Picadinho” (frevo-

coqueiro), “Tempestade” (frevo-ventania), de Joaquim Wanderley, “Fogão” (frevo-

abafo), de Sérgio Lisboa, além dos famosos “Vassourinhas”, de Matias da Rocha e

“Último dia” de Levino Ferreira. O frevo-canção ou marcha-canção possui uma introdução instrumental e

uma outra parte cantada, utilizando letras de temas variados. A introdução orquestral

possui cerca de dezesseis compassos e andamento moderado. A 2ª parte, cantada,

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é composta em geral por duas estrofes de andamento mais lento. Derivado da ária,

o que mostra a influência das companhias de óperas no carnaval de rua do Recife, o

frevo-canção foi, no passado, o frevo cantado nas ruas, que posteriormente entrou

nos salões, e novamente retornou às ruas em 1980, com o surgimento da Frevioca3.

O frevo-canção é a mola mestra de animação de salões e das multidões que

acompanham alguns clubes e freviocas nos dias de carnaval. Quando cantado em

tom lamentoso, pela madrugada, na volta dos dançarinos de blocos aos seus

bairros, o frevo-canção recebe o nome de marcha-regresso. Podemos citar como

exemplo “Borboleta não é ave” de Nelson Ferreira e “Na mulher não se bate nem

com uma flor” de Capiba.

O frevo-de-bloco é executado por orquestras de pau e corda com violões,

banjos e cavaquinhos. Atualmente, integram o conjunto instrumental: saxofones,

bombardinos, trompetes e tubas. Suas letras e melodias geralmente são

interpretadas por corais femininos e trazem um misto de saudade e evocação. Após

uma introdução orquestral, num andamento rápido, segue um coro de vozes, agora

misto, a entoar o cancioneiro carnavalesco. Pode ser ilustrado com “Valores do

Passado” de Edgar Moraes, “Marcha da Folia” de Raul Moraes, “Evocação n° 1” de

Nelson Ferreira.

2.2 Breve análise da obra Em “Sonhos de Recife”, a influência do frevo pode ser identificada: no seu

andamento ligeiro e dançante; no compasso binário; nos curtos motivos melódicos,

geralmente repetidos; na articulação rítmica sincopada e em semicolcheias

ininterruptas; nos comentários melódicos dos baixos; nos ostinatos do

acompanhamento e especialmente na forma de acentuação da melodia. A obra

possui um caráter predominantemente rítmico, com alguns trechos mais líricos.

De maneira geral, as melodias principais são apresentadas na parte

superior, muitas vezes em intervalos de terças e sextas, simultâneos ou arpejados. A

textura se apresenta, em geral, por uma melodia acompanhada. O

acompanhamento é desempenhado pela parte inferior, com diversos desenhos

3 Freviocas são orquestras volantes em carro alegórico.

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melódicos no baixo, numa possível referência à “baixaria”4 da música popular.

Trechos de intenso contraste de caráter são provocados por alterações do

andamento (compasso 77), novas divisões rítmicas (c. 67) e pelo aparecimento da

textura acordal (c. 77 e 148).

A métrica binária é alterada em alguns trechos para modelos ternários e

quaternários. A subdivisão rítmica é predominantemente baseada em quartos de

tempo e em alguns pequenos trechos é quialtérica, em nível de tempos e de

compassos, provocando polirritmias entre as partes.

O idioma harmônico utilizado é tonal. Alguns acordes empregados, ora

inteiros, ora arpejados, adotam muitas notas de passagem, cromatismos e

dissonâncias.

A peça possui três seções principais, cada qual com uma repetição. Como

é puramente instrumental, podemos dizer que a obra tem relação com o frevo-de-

rua. A primeira seção (c. 1 a 49) apresenta temas mais líricos e de movimentação

rítmica mais rarefeita. A segunda (c. 57 a 128) e a terceira seções (c. 125 a 147)

possuem um estilo explicitamente rítmico e movido, com motivos melódicos curtos e

intensamente repetidos. A 2ª seção pode ser comparada ao frevo-ventania, pela

presença constante das semicolcheias, e a 3ª seção relaciona-se com o frevo-

coqueiro, pela presença das notas agudas. Entretanto, no 3º elemento temático da

2ª seção e na finalização da obra (a partir dos c. 77 e 148), há uma ruptura com o

estilo do frevo, onde predomina uma atmosfera calma e suave.

Primeira seção Na primeira seção (c. 1 a 49), observamos uma idéia temática principal

desenvolvida em três frases. Possui início acéfalo no tom de Fá Maior e é articulado

predominantemente em colcheias. Sua textura apresenta-se principalmente em

melodia acompanhada, onde se observam, na parte inferior, desenhos melódicos

em contracanto com a melodia principal. Há diversos contrapontos, como nos

compassos 2 a 4, onde podem ser observadas quatro partes.

A primeira frase desta seção apresenta o tema principal nos compassos 1

até 14.1. Na segunda frase (c.14.2 a 32.1), o tema apresentado desenvolve-se pela

4 Termo comumente empregado no Brasil para designar os comentários melódicos realizados por um instrumento de registro grave, normalmente o violão de sete cordas, nas rodas de choro.

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interpolação de novos elementos. A terceira frase (c. 32.2 a 49) deriva do tema

principal e conduz ao fechamento da seção pela recorrência de um desenho rítmico

em marcha.

Observa-se, nesta seção, a presença de alguns ornamentos clássicos, tais

como apogiaturas (c. 23 e 36 a 39) e um grupeto (c.32), também amplamente

utilizados na música popular e no jazz.

Os compassos 50 e 51 (ex. 1) apresentam um novo elemento melódico

recorrente na obra, que antecede o início de algumas seções. Em sua primeira

apresentação, conduz ao ritornello da 1ª seção. Na segunda aparição, dá lugar ao

anúncio do material temático da segunda seção. Na terceira apresentação, inicia

propriamente a 2ª seção, e mais adiante (ex. 2) anuncia a recapitulação desta

seção. A recorrência deste elemento é um fator importante no discurso da obra,

porque pontua o final e o início das seções. Sua estrutura rítmica em tercinas e sua

dinâmica forte rapidamente o destacam e preparam uma surpresa na obra.

Ex. 1 – C. 50 e 51.

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Ex. 2 – C. 85 e 86.

Segunda seção A segunda seção (c. 57 a 128) é precedida em 53.2 de um anúncio

temático que prepara a sua entrada. Efetivamente, seu início só ocorre em 57. Isto

se confirma na sua recapitulação em 85, que ocorre a partir do desenho em tercinas.

Esta seção possui três elementos temáticos:

1) O primeiro (c. 57 a 66) privilegia a nota sol 3, com repetições em

semicolcheias ininterruptas, ocasionando uma intensificação do caráter rítmico da

obra. Sua melodia inicialmente é acompanhada por acordes no tempo e em seguida

por um ostinato melódico-rítmico, de movimento circular.

2) O segundo elemento temático (c. 67 a 72 – ex. 3) apresenta uma

alteração de compasso para 3/8, apesar da acentuação e da grafia indicarem o

compasso 6/16.

O desenho da parte superior apresenta movimentos ascendentes e

descendentes, que caminham em marcha ascendente de 4ª justa. O

acompanhamento é realizado em quartas aumentadas e sétimas maiores no tempo,

que caminham por semitom descendente. Essa seqüência de intervalos de trítono

confere uma tensão extra ao trecho, podendo ser considerado o clímax da seção.

Culmina em dois clusters, que primeiramente conduzem à retomada do primeiro

elemento temático da sessão e posteriormente ao próximo tema.

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Ex. 3 – c. 67 a 71

3) No terceiro elemento temático (c. 77 a 84 - ex. 4), há uma indicação de

redução do andamento para “semínima = 50” e da dinâmica a mp. Um grande

contraste é estabelecido através da redução do andamento, da dinâmica, da divisão

em semínimas e da textura acordal.

Ex. 4 – c. 77 a 81

O primeiro elemento temático é retomado no c. 85, no tempo primo, e

apresenta algumas modificações no acompanhamento, como por exemplo o

adensamento dos acordes. No compasso 95, novo desenho melódico é inserido e

desenvolve-se até 124, quando o 2º elemento (presente no c. 67 a 70) aparece em

compasso 3/8 (ex. 5), numa 4ª justa acima. Entretanto, a grafia da parte superior não

contém acentuação e não agrupa as notas de 3 em 3 semicolcheias como na

primeira aparição, mas de 2 em 2, representando de fato o compasso 3/8.

Ex. 5 - c.125 a 128

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Terceira seção

A 3ª seção (c. 125 a 147) pode ser considerada o clímax da obra devido à

exploração de grande extensão do piano e ao seu caráter forte e movido.

Apresenta um tema único que mescla aspectos do caráter melódico da 1ª

seção com o caráter rítmico da 2ª. A melodia possui um padrão rítmico fixo com

motivos de 2 em 2 compassos. Seu acompanhamento atinge o máximo de

movimentação rítmica, em fórmula fixa, através de arpejos sincopados e em

quiálteras de notas e acordes, cujos baixos em tempo forte caminham por quintas

descendentes.

Coda

No compasso 148, inicia-se a Coda. Ocorre a retomada da textura acordal,

articulada predominantemente em semínimas, reapresentando o tema ouvido em 77,

agora uma 4ª justa acima.

Pode-se considerar que a seção foi concluída no compasso 156, no

acorde de fá maior. O trecho que se segue, de 157 ao fim (ex. 6), trata-se de uma

extensão cromática, que dilui a tonalidade principal até encerrar-se definitivamente

no acorde de mi bemol maior com quinta aumentada.

Ex. 6 – c. 154 a 163

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2.3 A partitura para Gismonti

A partitura de “Sonhos de Recife” foi escrita, em 1995, com o intuito de

satisfazer o desejo de uma amiga pianista russa, Tatiana Pavlova, que se

interessava por tocar esta obra.

A Tatiana, além de concertista, fazia ensaios de ballet, etc., daquele tipo de pianista que bota um “não sei o quê” na frente e ela sai tocando. Ela tem muita competência, mas ela não ultrapassa o limite da competência nunca, apesar de tocar pra burro. Então, quanto mais coisas técnicas, melhor para ela se exprimir, porque ela se exprime através da linguagem técnica. [...] Isso está encrencado desse jeito por causa da Tatiana. Essa partitura não foi feita para edição, foi feita para Tatiana tocar. Então, o que tenha de notas que não sejam convenientes... Ela toca todas essas notas... Se a partitura fosse a medida, eu não tocaria nada, porque a minha partitura não tem nada. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

Esta partitura, então, não pode ser considerada como uma partitura da

prática erudita. Trata-se de uma referência ocasional para uma determinada pianista,

adaptada às suas condições. Desta forma, é necessário ter um olhar dinâmico e

flexível sobre esta referência, e considerá-la em função da escrita do compositor,

como bem exemplificou o pianista Alfred Brendel5:

O intérprete tem que descobrir não apenas como a notação do compositor deve ser entendida, mas também quão apropriada ela é para cada um dos seus trabalhos. [...] E sobre Liszt? Seu trabalho é dividido em dois grupos. O primeiro abrange todas as composições que são completamente trabalhadas, e onde o texto merece ser precisamente seguido. O segundo grupo torna a intervenção do executante possível ou desejável. [...] (BRENDEL, 1978, p. 98, tradução nossa) Isso tudo que está escrito é porque, apesar de eu gostar demais da Tatiana, eu não posso dar pra ela só umas

5 BRENDEL, Alfred. (1931 – Áustria) “Estudou piano, composição e regência, e completou os seus estudos de piano com Edwin Fischer, Paul Baumgartner e Edward Steuermann. Sua carreira internacional teve início depois de ganhar um prêmio na edição de 1949 do Concurso Busoni, apresentando-se na atualidade em todos os grandes centros e festivais musicais do mundo. Foi o primeiro pianista a realizar a gravação integral das obras para piano de Beethoven. Biografia completa disponível em http://www.alfredbrendel.com/

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anotaçõezinhas, que eu daria pro Nando [Carneiro], que não é pianista. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

Levando em conta que as partituras de Gismonti não são um registro

fechado de suas obras, esta partitura permite adaptações às condições técnicas de

cada pianista, bem como contribuições de ordem musical, interpretativa e

composicional.

Do mesmo jeito que eu chego nas orquestras, ouço e reparo que o fagotista, ou qualquer músico, não está se sentindo bem com o que está escrito lá, [...] digo “Desculpe, eu anotei isso errado”. Aí, eu escrevo sem aquilo que eu tinha pretendido, escrevo outra coisa, que resulta melhor. Porque o que interessa é a música, não é recorde de tocar complicado. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada) [...] o compositor tem que ter a liberdade de escrever para cada intérprete que ele conheça ou goste, procurando aproximar a escrita ou a adaptação musical àquilo que o cara fará de melhor. Segundo passo, que é também um ato de liberdade: estar preparado para que o intérprete mostre a ele o que existe de bom, de ruim, ou coisas que ele, compositor, não havia pensado, e que são muito melhores do que a própria idéia. Para admitir que o intérprete criou notas melhores do que aquelas que você pensou, você tem que ter uma capacidade de liberdade tão grande, que ela é fundamenta no seguinte: [...] não tira o crédito do compositor, porque o compositor é que estimulou a interpretação, que estimulou o compositor. Dar e receber é isso... (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

Neste caso, não se trata de infidelidade à partitura. Gismonti permite

interferências do intérprete em muitos níveis: quanto à formação instrumental, forma,

textura, tom, interpretação e improvisação.

Quando eu escrevo, tenho a consciência que o compositor número 1, ou o 1º estágio, é o anotador. É a consciência crítica de que o anotador não é o verdadeiro compositor. O compositor é quem executa. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 11)

Sobre o conceito de fidelidade, assim se posiciona o pianista e regente Daniel Barenboim:

Fidelidade a quê? Você está falando de um sistema muito aproximativo, precário. E, se na partitura está escrito piano e você toca forte, evidentemente você está sendo infiel ao texto.

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Não estamos falando disso. Mas acho muito importante lembrar que a experiência musical, o ato de produzir música, significa levar os sons a um estado de interdependência constante – em outras palavras, significa que não se pode separar nada, porque o andamento tem a ver com o conteúdo, com o volume, etc. E, portanto, tudo é relativo e está sempre ligado ao que veio antes, ao que vem depois e também ao que acontece simultaneamente. […] Portanto, você não pode falar de fidelidade. E tentar reproduzir objetivamente o que está impresso e nada mais não só é impossível – e, portanto, não existe fidelidade -, como também é um ato de covardia, porque significa que você não se deu ao trabalho de entender as inter-relações e a dosagem, para não falar de outras coisas – e agora estou me referindo apenas a volume e equilíbrio, não à questão da linha, do fraseado, e tudo o mais. […] Se você toca apenas como está escrito e não tenta entender o que aquilo realmente significa, você peca por omissão. Em outras palavras, se o texto diz crescendo para a orquestra inteira e, como regente, você deixa todos os instrumentos participarem, você está sendo fiel ao texto, mas peca por omissão: omite muitas coisas porque elas não são mais ouvidas. (BARENBOIM, 2003, p. 120 e 127)

Parece que a necessidade de manter o frescor e liberdade em suas obras

tem sido o motivo pelo qual Gismonti ainda não publicou suas obras, apesar do

grande interesse do público. Ele espera que os músicos sejam co-criadores, uma

vez que julga indispensável a interferência do intérprete, do instrumento, do local e

da platéia na composição. Talvez seja por esse motivo que há poucas indicações

interpretativas na partitura de “Sonhos de Recife”.

Isso aí eu não posso jamais escrever e entregar porque se acabaram os dias em que as salas de concerto eram o local de se tocar música. Hoje se toca em botequim, em clube. Porque na época que a partitura era o limite, teoricamente falando. Todas as salas de concerto tinham condições acústicas de se tocar aquilo que estava escrito. Hoje não existe. Por isso que eu não sou partidário de partitura. Não adianta estar escrito [ele canta um trecho], porque isso depende da qualidade do instrumento. Você não vai conseguir piano e você vai tocar mal a música. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

Assim, Gismonti acredita em outras formas de registro e transmissão da

sua música, que não só pela escrita.

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De uns anos pra cá, como músico-compositor, não músico popular ou erudito, está acontecendo uma coisa, na prática, com a minha música, que raramente acontece com as pessoas. Todos os improvisos que eu faço viraram partitura. [...] Essa turma que toca os improvisos é, não só porque falta mais música para ser tocada, como eles memorizam com mais facilidade aquilo como uma coisa só. Significa que hoje a partitura pode ser escrita sem pentagrama, caneta ou lápis. Quando o Sérgio, do Duo Assad, me pediu uma partitura, eu disse “Pra quê? Vocês estão escrevendo a música que eu faço. Quando você pega a minha música, harmoniza, faz variações em cima dos improvisos e aquilo tudo vira minha partitura, vocês estão fazendo a minha música”. Isso é uma coisa tão contemporânea! É uma forma que não cabe dentro do tradicional! (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 24) Isso é um depoimento sobre música contemporânea, é a música que está viva. Não tem nada definitivo quando se está vivo. Se escrevia porque não tinha outro método de ensinar a música às pessoas e de mostrar. Partitura servia para isso. [...] E pra isso a música escrita foi anotada daquele jeito e desrespeitada por todos os compositores. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

Além disso, algumas realizações podem parecer infactíveis se escritas, já

que ele compõe e toca explorando as habilidades que possui.

Tem horas que, quando eu vejo concertos bons que foram gravados, eu tenho que parar e pensar que dedo, de que mão, tocou essa nota aí; aquilo escrito não é possível. Como não é uma coisa feita com finalidade técnica, eu tenho a liberdade... (GISMONTI, Egberto. Entrevista 5 anexada – resposta à pergunta nº 2)

2.4 Outras obras

Além da formação tradicional, Gismonti experimentou caminhos musicais

diversos, em gêneros e nacionalidades. Acumulou uma experiência cultural muito

atual e abrangente, que utilizou para enriquecer e diferenciar o seu trabalho. Desta

forma, criou uma linguagem e um pianismo singulares, que não se limitam à

definição de um estilo.

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Há muitos anos, gravei um disco com Nana Vasconcelos que se chamou “Dança das cabeças”. Na Inglaterra, ganhou prêmio como melhor disco folclórico. Na Alemanha, ganhou outro prêmio como melhor disco de música culta. Nos EUA, o premiaram como jazz. E no Brasil, nos premiaram pelos dois. Cada cultura qualifica e rotula em função da sua realidade e está bem que seja assim. Todos têm direito a fazê-lo. (Entrevista concedida a Fernando D”Addario, tradução nossa)

Gismonti valeu-se do folclore e da música popular de diversos países

como inspiração para muitas de suas obras.

Nós somos realmente abertos a qualquer tipo de cultura. Todas as culturas européias e outras são parte da nossa própria cultura. Nós somos capazes de dar atenção ou usar qualquer tipo de cultura. Eu sou realmente livre para escrever música. (Entrevista concedida a Josef Woodard, 1996, tradução nossa)

Em “Sonhos de Recife”, não se observa uma apropriação direta de temas

folclóricos. Seus elementos são derivados da prática folclórica do frevo, extraindo

dela características gerais da construção musical. Esta característica confirma o

depoimento de Gismonti, que atribui ao folclore o ponto de partida de suas idéias

composicionais.

[...] folclore deve ser considerado como a melhor idéia para se iniciar um ato criativo. Folclore não deve ser repetido. [...] Por isso que música popular é uma coisa e folclore é outra. Música popular é o exercício conseqüente do exercício da música folclórica. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 5 anexada – resposta à pergunta 12)

A apropriação indireta do folclore pode ser observada também em outras

obras de Gismonti. Algumas possuem indicação explícita, em seus títulos, do

elemento folclórico que as gerou. O próprio frevo foi inspiração para uma outra obra

denominada “Frevo”, marcada também por compasso binário, andamento movido e

caráter bastante percussivo. O maracatu foi ponto de partida para “Maracatu”; o

baião, para sua obra “Baião Malandro”; o forró, estopim para “Forró” e “Forrobodó”; o

samba, para “Salvador”. Em outras, as características da música folclórica e popular

estão mescladas, sem uma menção específica, como é o caso de “Sanfona” e

“Infância”. Essas obras constituem um segmento da produção de Gismonti, na quais

o ritmo é um elemento importantíssimo na interpretação.

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Uma outra vertente das obras de Gismonti é sua composição de caráter

lírico e expressivo, como “Água e Vinho”, “A fala da paixão”, “Memória e fado”, “Um

anjo”, “Meninas” e “Cigana”. Se buscarmos a expressão geradora dessas idéias,

podemos encontrar semelhanças com o estilo canção, que marcou a criação de

compositores tanto populares quanto eruditos em todo o século XX. Nessas obras

de Gismonti, há características estruturais comuns. A primeira é a textura, na forma

de melodia acompanhada. A parte inferior apresenta uma fórmula de arpejo, que se

repete por quase toda a obra. As mudanças harmônicas se dão por sutis

substituições de notas nesses arpejos, dando a impressão de que um acorde se

transforma suavemente em outro, e em outro. As melodias são muito expressivas,

simples e curtas, conduzidas em tempo livre.

A execução das músicas de caráter rítmico tem acompanhamento livre e

muito denso, devido ao contraponto, ritmo intensamente marcado e pulso constante,

o que difere das lentas, que apresentam um padrão mais regular de

acompanhamento em fórmula de arpejo e tempo livre.

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3 ANÁLISE INTERPRETATIVA E DISCUSSÃO DA GRAVAÇÃO

Neste capítulo, realiza-se um estudo das opções interpretativas de

“Sonhos de Recife”, a partir da análise de sua partitura. Em contraponto, se

estabelece uma relação comparativa com as opções feitas por Gismonti na

gravação, buscando pontos convergentes que confirmam as propostas, e pontos

divergentes que acrescentam outras possibilidades de realização do texto musical.

A maior dificuldade para a elaboração de uma interpretação para esta

obra, bem como para todas as obras de Gismonti, é a ausência de parâmetros

estilísticos. O fato de seu estilo ainda não ter sido pesquisado, e sua obra não se

enquadrar nas escolas composicionais e estilos descritos até hoje, abre um grande

universo de possibilidades de interpretação, ampliado pela ausência de indicações

na partitura, a exemplo das obras barrocas. Desta forma, tomou-se como parâmetro

as opções interpretativas praticadas nas obras dos compositores tradicionais,

levando em consideração o caráter popular subjacente à obra.

No foco desta pesquisa, o aspecto mais importante da interpretação desta

obra é a representação rítmica do frevo, proporcionando uma característica brasileira

autêntica. É preciso estar atento especialmente ao aspecto rítmico e percussivo, cuja

acentuação característica e marcada pelo compositor determina o balanço

(gingado), que caracteriza o frevo. Com relação ao ritmo, comenta Joseph Lhevine6:

[...] ritmo é espírito na música, a coisa mais humana na música. Acima de todas as coisas, não imagine que tocar no tempo e observar os acentos metodicamente é tudo que existe sobre ritmo. Um ritmo vivo pode ser observado com o tempo mudando a cada poucos compassos. O público logo sabe se é uma coisa viva que o executante está criando, alguma coisa com o pulso da corrente sanguínea da música correndo através dele. Torne seus ritmos vivos e sua execução vai viver e ser bonita. (LHEVINE, 1972, p. 7, tradução nossa)

Como a obra possui um caráter dançante, a inflexão rítmica da dança

precisa ser levada em consideração no planejamento da agógica. Por se tratar de

uma dança, não se recomendam rubatos e acelerandos, mas a manutenção da

fluência do tempo básico. A única indicação de ritardando que aparece na partitura é

6 LEVINE, Joseph. (1874 – 1944) Pianista e professor russo, que estudou no conservatório de Moscou com Safonov. Estabeleceu-se nos EUA, onde integrou o corpo da Juilliard School em Nova York, a partir de 1924.

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no c. 74, preparando a entrada do tema acordal, e no c. 148, no início da coda.

Entretanto, as transições de seções contrastantes necessitam de adaptações no

tempo.

Do ponto de vista técnico, o grande desafio do intérprete reside na

velocidade dos movimentos, especialmente nos saltos na parte inferior da 3ª seção,

independência entre as mãos (c. 15 a 17), habilidade de notas repetidas (c. 59; 115

a 118) e sentido rítmico para coordenar os desenhos de mão direita e esquerda (c.

63). Apresenta também elementos clássicos da técnica pianística, como arpejos (c.

40, 67, 125), terças (c. 95), sextas (c. 42 a 48), grupeto (c. 32), apogiaturas (c.

13,62), saltos (c. 125 a 146) e oitavas (c. 49 e 50, 77 a 83, 147 e 148, 157 a 162).

Entretanto, comenta Gismonti:

A dificuldade técnica não passa nem de longe da dificuldade mais importante, que não é a técnica. É a fraseologia, é a essência, é a compreensão rítmica… (GISMONTI, Egberto. Entrevista 5 anexada – conversa preliminar)

É muito importante a compreensão da interação das vozes, em função do

caráter polifônico dos acompanhamentos e das melodias. A dinâmica estrutural

precisa ser planejada no sentido de valorizar a melodia principal, que em toda a obra

está na parte superior. Há outras melodias em contracanto, geralmente realizadas

pela parte inferior, na forma de desmembramento das notas do acorde ou em

ostinatos. Essas melodias possuem uma importante função rítmica de

complementação das partes de tempo com a melodia principal e, por isso, precisam

ser realçadas. Entretanto, não devem sobrepor a melodia principal. Alguns baixos

exercem uma importante função de pedal harmônico, especialmente na 3ª seção, e

portanto devem ser valorizados.

Em função da diversidade de temas e do rico contraponto, é necessário

um planejamento fraseológico, de maneira a tornar os temas claros e naturais.

Assim, respirações entre as frases e seções (especialmente uma vírgula do

compositor no c. 6) e inflexões são fundamentais para tornar os temas bem

delineados e orgânicos, como explica Hofmann7:

7 HOFMANN, Josef. (1876-1957) Pianista, professor, compositor e inventor. Hofmann foi discípulo de Rubinstein. Foi um pianista de carreira internacional, um dos primeiros a gravar, e um importante professor de piano, como diretor Curtis Institute of Music. Biografia completa disponível em http://www.arbiterrecords.com/musicresourcecenter/hofmann.html

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Fraseologia é a divisão e subdivisão racional de frases musicais, e serve para torná-las compreensíveis. Isso corresponde exatamente à pontuação na literatura e sua récita. Descubra o início, o fim, e o ponto culminante da sua frase. Este último normalmente é encontrado na nota mais aguda da frase, enquanto os primeiros são indicados pela ligadura do fraseado. De maneira geral, a subida da melodia está combinada com um aumento de energia até o ponto culminante, onde, de acordo com o desenho da nota, ocorre a diminuição da energia. Para o fraseado artístico, é de máxima importância reconhecer o caráter principal da peça, porque isso, naturalmente, deve influenciar a interpretação de cada detalhe. Uma frase que ocorre num movimento agitado, por exemplo, terá que ser interpretada muito diferentemente de uma frase aparentemente similar em um movimento lento e romântico. (HOFMANN, 1976, p. 99, tradução nossa)

Com relação à estrutura musical, esta execução de Gismonti confirma a

delimitação formal proposta na análise. Apesar de alterar as repetições e suprimir

alguns elementos, os pontos de conclusão e início coincidiram com a delimitação

fraseológica e formal apresentada. Desta forma, utilizou-se a delimitação feita na

análise da partitura para apresentar um quadro comparativo entre a estrutura formal

da partitura e da gravação:

INTRODUÇÃO (0:00 a 0:34 do SVCD)

Partitura Gravação

1ª SEÇÃO

2ª SEÇÃO

3ª SEÇÃO

CODA

INTRODUÇÃO (presente apenas no SVCD – 0 a 0:34)

1ª SEÇÃO (0:00; retorno - 01:10*)

2ª SEÇÃO (02:06; acordal - 02:48; recapitulação - 03:11*)

3ª SEÇÃO (03:42*)

IMPROVISO (04:05*)

1ª SEÇÃO sem retorno; (07:41*- sem retorno)

2ª SEÇÃO (08:17 e 08:36*) 3ª SEÇÃO (09:36*)

CODA (09:29*)

* numeração do cronômetro do CD

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Por não constar na partitura, pode-se dizer que o início desta

apresentação de Gismonti é uma seção improvisada, na qual ele se valeu de temas

da obra para compor uma nova seção introdutória à peça.

Sem muita espera ao término dos aplausos da música anterior, Egberto

inicia tocando elementos dos temas da obra de maneira muito livre. Parece que o

pianista está experimentando a sonoridade do piano e sentindo a acústica do

ambiente. Os temas são permeados por várias respirações, pausas, fermatas, numa

sonoridade suave e expressiva. Observa-se no pianista uma atitude que podemos

chamar de “contemplativa” em relação ao som. Este trecho apenas pode ser

observado no SVCD, tendo sido eliminado da versão em áudio.

1ª SEÇÃO (0:00 do CD)

Logo no início, a partitura propõe “semínima = 142, ‘vivo e dançante’”, e

não há nenhuma indicação dinâmica.

A estrutura melódica é permeada por muitas síncopes e contrapontos,

impregnada pelo caráter rítmico do frevo. De maneira a imprimir um andamento vivo

e caráter dançante, o toque pianístico mais adequado deve ser quase non legato,

para manter uma articulação clara e valorizar os contracantos paralelos. Um toque

um pouco mais ligado pode ser utilizado em alguns momentos em que predominam

graus conjuntos, como por exemplo no c. 9 e na 3ª frase. Na repetição da seção,

pode-se criar uma diversificação, através da alteração do toque e da articulação em

alguns trechos, como por exemplo o emprego do toque non legato na 3ª frase.

O balanço do frevo pode ser mantido através de um pulso fluente e pela

valorização das notas prolongadas.

Os c. 15 a 17 (ex. 1) apresentam uma polirritmia entre as partes superior

e inferior. Este efeito exige independência de mãos ao pianista, e deve ser

alcançado através de um estudo separado de cada uma das partes, como sugere

Hofmann:

Há senão uma maneira de tocar ritmos desiguais simultaneamente em ambas as mãos; estude cada mão separadamente até que você possa confiar nisso, e depois as junte sem pensar no ritmo. Pense nos pontos onde as duas mãos se encontram, os “pontos finais” dos dois movimentos, e

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confie no seu automatismo até que, pela escuta freqüente, você tenha aprendido a escutar dois ritmos simultaneamente. (HOFMANN, 1976, p.97, tradução nossa)

Ex. 1: c. 14 a 17

Para criar uma diferença tímbrica neste trecho, sugere-se o emprego do

toque non legato na parte superior e legato na parte inferior.

Propõe-se uma dinâmica intermediária, proporcionada por um toque mf,

enriquecido com contornos vocais na melodia principal. A dinâmica estrutural deve

privilegiar a parte superior, na qual está a melodia principal, sem deixar de valorizar

os contracantos, especialmente no baixo (ex. c. 6). Na progressão dos compassos

42 a 48, pode-se sugerir uma dinâmica ascendente em três blocos para criar um

clímax no c. 46. Em seguida, pode ocorrer um diminuendo até a conclusão no c. 48,

em uma tríade de fá maior com 9ª adicionada. O acorde pp arpejado na região

aguda no c. 49 pode ser considerado uma complementação de harmônicos para o

acorde anterior.

A pedalização, como não está indicada, deve proporcionar um pequeno

enriquecimento sonoro e o prolongamento do som em alguns momentos de acordes

(ex. c. 12 e 13) e nos saltos dos baixos (ex. c. 28). Em geral, este efeito pode ser

obtido com o uso de 1/4 a 1/2 do pedal direito. Pedais para ligação da harmonia não

são recomendáveis, uma vez que os acordes mudam rapidamente e há

predominância de movimentação melódica por pequenos intervalos na região média

e grave, o que pode provocar um acúmulo de dissonâncias e falta de transparência.

Quanto ao uso do pedal, Hofmann recomenda:

De maneira geral, é muito mais importante saber quando não usar o pedal do que quando usá-lo. Devemos evitar o seu uso em qualquer momento que haja o menor risco de mistura não intencional de sons […], onde haja tanto uma mudança de

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harmonia ou uma sucessão de “notas de passagem”. […] Deixe seu ouvido ser o guardião do seu pedal direito. Acostume seu ouvido à clareza melódica e harmônica, e – ouça precisamente. (HOFMANN, 1976, p. 40, tradução nossa)

Na gravação, à medida que a introdução se desenvolve, a obra vai

ganhando andamento e fluência. A partir da apresentação de um elemento temático

semelhante ao presente nos compassos 50 e 51, o tema da primeira seção é

apresentado por completo, dando a idéia de que a obra se iniciou propriamente, mas

sem que houvesse qualquer ruptura com a introdução.

Na primeira vez que tocou esta seção, Egberto não seguiu o texto que

havia escrito e optou por uma interpretação diferente, dando continuidade à

atmosfera ressonante e ligada criada na introdução. Egberto modifica o caráter

desta primeira seção, imprimindo-lhe um aspecto mais expressivo, lento e ligado.

Diversos aspectos da partitura foram alterados nesta performance. Nota-

se uma independência entre a execução e a partitura para Gismonti.

Eu tenho a minha partitura que é totalmente enlouquecida, porque ela admite qualquer coisa. Não deixa de ser um formato de partitura. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada – resposta à pergunta nº 2)

Predomina um andamento médio, em caráter lírico e ligeiramente rítmico,

pois ainda permanecem as variações agógicas da introdução, nas quais o pianista

faz respirações, rallentandos e acelerandos. A sonoridade é de p a mf e um pouco

ligada, proporcionada por um toque ligeiramente ligado e 1/2 pedal, que delineiam

com clareza a melodia da parte superior.

Deve-se observar que esta opção interpretativa de alteração do caráter foi

feita em função do contexto da apresentação. Trata-se de uma situação específica,

e, portanto, não se deve tomar esta primeira interpretação da seção como uma

referência para futuras interpretações da obra.

A melodia é apresentada predominantemente sem intervalos e

contrapontos, ao contrário do texto escrito. O acompanhamento é realizado através

de pontuações de acordes, enriquecidos por discreto emprego do pedal, e alguns

momentos de contraponto. A 3ª frase apresenta um contraste de caráter, através de

uma sonoridade mp e de um toque bem mais ligado e lírico que o anterior.

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O pianista realiza a repetição da seção dando um pouco mais de

andamento, dinâmica e caráter rítmico aos temas, aproximando-se da proposta da

partitura.

2ª SEÇÃO (02:06)

De acordo com a partitura, os dois primeiros temas da segunda seção (c.

53 a 76) são de aspecto mais rítmico e percussivo do que a primeira seção, devido

às notas intensamente repetidas, à seqüência de semicolcheias, aos acentos e à

indicação forte.

Estes dois elementos temáticos exigem um toque non legato, percutido

em alguns momentos, e nenhum pedal, para proporcionar a clareza e a precisão dos

desenhos em semicolcheias. O pedal direito deve ser empregado apenas em

poucos momentos de acordes em bloco, como nos compassos 71 a 76, de maneira

a manter a transparência do ostinato e da melodia principal.

A estruturação rítmica desses 2 temas e o andamento vivo induzem o

executante a pulsar em 1, ao invés de 2 em 2 tempos, como indica a fórmula de

compasso 2/4. Especialmente o padrão circular do ostinato (1 círculo por compasso

– c. 63 a 66) e a localização do acorde sempre no 1º tempo do 2º elemento (c. 67 a

70) levam o pianista a pulsar por compasso (ex. 2).

Ex. 2: c. 61 a 71.

Desta forma, é preciso avaliar quais acentuações marcadas são possíveis

de serem realizadas, em função da velocidade de execução. Essas acentuações

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pedem a valorização de algumas notas, como algumas em parte fraca de tempo,

para criar o efeito rítmico pretendido pelo compositor. Porém, não devem fazer com

que o intérprete perca a fluência rítmica. Em função da marcha ascendente empregada de 67 a 70, sugere-se um

crescendo em blocos de compasso a compasso até o seu clímax no c. 71, com um

acorde acentuado. O outro acorde presente na última colcheia do c. 71 também

pode ser acentuado, por explorar os extremos do teclado e marcar o final do tema.

Na interpretação de Gismonti, a partir da segunda seção, a obra ganha

cada vez mais fluência, e a atmosfera, até então expressiva, dá lugar a um intenso

movimento rítmico, excluindo pouco a pouco as oscilações agógicas.

A seção se inicia apresentando o tema de ligação ainda influenciado pela

sonoridade mp e expressiva com que terminou a seção anterior, contrariando a

indicação f da partitura. Apenas a partir do ritornello do c. 56, marcado com um

acento e staccato no 1º acorde do c. 53, o caráter rítmico e forte começa a surgir. O

tempo permanece constante, em andamento um pouco mais movido e com

liberdades agógicas apenas nas transições.

O pianista se aproxima do texto da partitura e executa a maioria das

referências escritas, bem como os ritornellos.

O toque empregado por Gismonti é non legato e bastante percutido.

Descreve claramente as melodias das partes superior e inferior, e demarca alguns

poucos acentos estratégicos na melodia, muito menos do que os demarcados na

partitura, provavelmente devido ao andamento acelerado. De maneira natural, o

pianista valoriza algumas notas e cria inflexões na melodia. Dois acentos

importantes realizados pelo pianista parecem estar faltando na partitura: o de 53.1 e

71.2.2.

A dinâmica predominante é mf, permeada por inflexões, como crescendo

a partir do c. 67 e diminuendo a partir do c. 74. O pedal é empregado apenas nas

transições (ex. 71 a 76), nas quais prolongamentos e ligações são necessários.

O pianista mantém o tempo da semicolcheia na transição para o

compasso 3/8 no c. 67, e posteriormente no c. 125. Desta forma, alterou a pulsação

do trecho, que passou de 4 para 3 semicolcheias. Como não há indicação de

mudança de unidade na partitura, esta solução seria a mais recomendável, e está

confirmada pela execução do compositor.

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Há momentos importantes de respiração na execução de Gismonti. São

as pausas descritas nos c. 50, 71 e 72. Essas pausas criam espaços de suspensão

no texto para que um novo elemento seja apresentado, e por isso exercem uma

função importante na pontuação do texto. Lhevine observa que “freqüentemente o

efeito da pausa é ainda maior que o das notas. Ela serve para atrair e preparar a

mente.” (1972, p. 3, tradução nossa).

Na partitura, o terceiro elemento temático (c. 77) possui uma indicação de

redução do andamento para “semínima = 50” e mudança para a textura acordal. A

nota superior dos acordes deve ser valorizada para salientar o desenho melódico

deste trecho. Sua indicação dinâmica é mp preparada por um diminuendo de 6

compassos (c. 74 a 76, com ritornello). O toque pode tornar-se pouco mais legato e

recomenda-se a aplicação de meio pedal, para tornar a sonoridade mais aveludada

e o timbre mais doce, intensificando o contraste do trecho. Destaca-se o uso do

pedal sincopado, para proporcionar a continuidade do som de um acorde para o

outro, sem que haja mistura das harmonias, como Lhevine recomenda:

Ambos o pedal regular (isto é, quando o pedal é acionado ao tocar a nota) e o pedal sincopado (acionado depois que a nota é tocada), têm suas aplicações. Quando se toca uma série de acordes, use o pedal sincopado, porque de nenhuma outra forma o som pode se tornar contínuo. Ele resguarda o piano de soar como um xilofone. (LHEVINE, 1972, p. 47, tradução nossa)

Na gravação, o tema acordal apresenta pequena redução do andamento.

O maior contraste é proporcionado pela sonoridade bem mais expressiva e suave

que a anterior. Observa-se um toque mais ligado, que destaca a melodia da voz

superior dos acordes. O pedal, mais empregado, facilita o legato, e a dinâmica em

mp é conduzida organicamente com inflexões e oscilações agógicas. O texto escrito

descreve razoavelmente bem a execução do pianista. Uma respiração antes do c.

84 e um ritardando preparam a finalização do tema.

Na recapitulação desta seção (a partir do c. 85), a partitura indica o

retorno do tempo primo. Mantêm-se as mesmas sugestões interpretativas propostas

anteriormente, uma vez que os novos elementos melódicos possuem as mesmas

características da 1ª apresentação da seção.

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Esta seção propõe desafios técnicos ao pianista: os c. 95 a 97, 119 e 120

apresentam uma seqüência de terças, e os c. 115 a 118 apresentam intervalos

repetidos em semicolcheia. Outros elementos, como intervalos de sextas, oitavas,

apojaturas (c. 111 a 113) e a voz intermediária não são confortáveis à execução

devido ao rápido andamento e às posições da mão no teclado, tornando este trecho

de difícil execução.

Na performance de Gismonti, o tempo torna-se ainda mais movido e

constante, e o caráter rítmico se estabelece definitivamente. A dinâmica permanece

mf, sem variações, até o crescendo a partir do c. 125.

A melodia executada por Gismonti exclui as notas acrescentadas

presentes na partitura. Apenas a melodia principal foi realizada sem as vozes

intermediárias, as terças e demais intervalos. O desenho rítmico de 115 a 118 (ex. 3)

não foi realizado com a última semicolcheia, bem como o acompanhamento de 125

a 128 (ex. 4), executado apenas com o primeiro acorde de cada compasso.

Ex. 3: c. 115 a 117

Ex. 4: c. 125 a 128

3ª SEÇÃO

A terceira seção é a mais virtuosística da peça. Apresenta maior utilização

da extensão do teclado, maior adensamento do acompanhamento, realizado por

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saltos, arpejos, oitavas e acordes. A melodia é enriquecida por uma voz

intermediária, em arpejos, oitavas e acordes.

Uma sugestão para o toque pianístico desta seção é non legato, tendo

sempre a preocupação de valorizar as notas mais agudas, os baixos, e reforçar as

notas acentuadas e prolongadas. Na parte inferior, vários saltos são encontrados,

exigindo um deslocamento rápido, que só é viável com um toque leve e ágil.

De maneira a manter a ressonância dos baixos, o “meio pedal” é

recomendado, com atenção às mudanças nos pequenos intervalos na região média

do teclado.

A dinâmica desta seção, apesar de não indicada, deve ser ff. A última

indicação dinâmica é ff no c. 119, sendo que nos compassos 125 a 128 há uma

chave de crescendo que leva ao início desta seção, concluindo-se que sua

sonoridade é intensa. Podemos considerar que o clímax da seção e da peça é nos c.

133 a 136 (ex. 5), nos quais se encontram as notas mais agudas da peça. Desta

forma, propomos um crescendo em blocos (de 2 em 2 compassos) até o clímax.

Ex. 5: C. 133 a 136.

Dos c. 137 a 146, há uma marcha descendente que desfaz a tensão

anterior o que sugere uma dinâmica decrescente em blocos, até a conclusão da

seção no c. 147, no acorde de fá maior com quinta aumentada e nona maior.

Na interpretação de Gismonti, a terceira seção é, de fato, o ponto

culminante da peça. O andamento é mantido bastante movido e a dinâmica chega

ao máximo, ff. Parece, então, que a indicação ff realmente foi omitida por engano. A

parte superior apresenta a melodia sem a voz intermediária, pela 1ª vez na oitava 6,

e pela 2ª vez na oitava 5, assim como no ritornello. O toque é enérgico, percutido e

non legato, e provoca um acento na nota mais aguda de cada célula da melodia. A

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parte inferior contrasta com a superior pela rítmica e pela sonoridade: a métrica da

parte inferior é ternária, contra binária na parte superior. O desenho melódico da

parte inferior apresenta baixos na região grave, seguidos de acordes e notas de

passagem na região média. O pedal sustenta os baixos e enriquece a sonoridade

dos acordes. É o momento mais intenso de paralelismo entre a parte superior e

inferior. No ritornello, um diminuendo ocorre dos c. 141 até 147, onde a seção é

encerrada.

O texto da partitura não corresponde ao executado, havendo apenas

semelhanças com a melodia principal e a harmonia.

Após esta seção, a partitura indica a finalização da obra através de uma

coda de 16 compassos, em textura acordal, lenta e mp.

A sonoridade da coda contrasta com as anteriores pela suavidade,

docilidade do timbre e prolongamento dos sons. Este resultado pode ser

proporcionado por um toque mais legato, pedal direito mais prolongado, cantabile da

nota superior dos acordes, diminuição do andamento (“rit. poco a poco” até o lento) e

uma dinâmica progressivamente decrescente (dim.), partindo de mp no c. 148 até pp

no fim. Do c. 157 em diante, pode-se utilizar o pedal una corda, ou “esquerdo”, para

criar uma diferenciação tímbrica neste último segmento.

O pedal esquerdo serve para mudar a qualidade do som, não a quantidade. […] Deveria ser empregado apenas quando a suavidade do som está associada a uma mudança de coloração, tal como se encontra no seu campo de ação. (HOFMANN, 1976, p. 43, tradução nossa)

Na gravação, Gismonti não se encaminha para o final da peça.

IMPROVISO (04:05)

Após a primeira exibição integral da obra sem a coda, uma outra seção se

inicia com a 1ª frase do tema da 1ª seção e dura 4 minutos. O improviso apresenta

novos temas, lentos e variados, numa atmosfera calma e expressiva. Inserem-se

trechos de uma outra obra de Gismonti, chamada “Bodas de Prata”. Esta seção não

se enquadra na forma de improviso comumente conhecido, que segue os padrões

jazzísticos norte-americanos. Não se trata de estruturas de variações da obra, mas

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sim de elementos completamente novos e estruturados, provavelmente pré-

planejados pelo compositor, aos moldes das cadências de concerto realizadas pelos

compositores dos séc. XVIII e XIX.

Eu gosto de boa música. Mas eu não sou capaz de tocar nem um tipo de jazz. Eu faço isso por diversão sim. Toco um pouco de jazz com meus filhos ou outros músicos, mas não para me representar. (Entrevista concedida a Josef Woodard, 1996, tradução nossa)

Em seguida, “Sonhos de Recife” é repetida em andamento mais

acelerado, com caráter mais rítmico e forte. Após a reapresentação integral da 1ª

seção sem ritornello, segue-se à apresentação da 2ª seção nas suas duas partes,

porém sem o ritornello e sem o 3º elemento temático. Ouve-se a terceira seção com

ritornello, e finalmente uma grande coda, diferente da partitura, também em estrutura

acordal, que apresenta novas linhas melódicas, inclusive um fragmento do tema da

1ª frase da 1ª seção, agora em estrutura acordal. O andamento é progressivamente

mais lento e a sonoridade é doce e piano, obtida através do toque legato, com

auxílio do pedal mais prolongado. A dinâmica chega a pianíssimo nos últimos

acordes.

A peça então é encerrada e o pianista mantém os braços suspensos no ar

por alguns segundos, antes de se levantar para agradecer os aplausos.

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“Então, as características são ter encontrado uma maneira de tocar piano que faz com que uma grande parte dos pianistas no mundo voltados a uma música com mais liberdade e improvisação, ou mesmo hoje em dia os clássicos, parem pra olhar e comentem assim: ‘É impressionante porque nunca vi ninguém tocar assim’. A característica é a singularidade.”

EGBERTO GISMONTI - Entrevista 4

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4 OBSERVAÇÕES SOBRE O PIANISMO E A INTERPRETAÇÃO DE GISMONTI

4.1 Formação

Gismonti teve uma formação tradicional em música, iniciada ainda na

infância através do piano, e que durou até seus 18 anos. Estudou em conservatório,

onde recebeu orientação tradicional de piano, teoria, harmonia, etc.

Paralelamente, vivenciou uma ampla experiência musical informal através

da sua família e do seu próprio interesse por outros músicos, eruditos e populares.

Apesar de ter freqüentado uma instituição tradicional de ensino de música,

sua formação foi amplamente influenciada por uma característica pessoal: a de

procurar investigar, questionar e modificar o que lhe era proposto. O conservatório

foi uma das suas fontes de conhecimento, embora sua prática musical não se

limitasse ao que lhe era exigido em exames. Começou já nessa época a utilizar as

informações que absorvia na experimentação de elementos novos, entre eles o

aprendizado autodidata do violão.

Uma coisa que eu não tinha certeza, mas eu presumia, era que qualquer maneira de fazer música vale a pena, e conseqüentemente qualquer forma de estudar música vale à pena. Isso levava a acreditar que qualquer instrumento vale a pena, porque um conjunto de instrumentos vale a pena para saber ouvir melhor, saber escrever melhor e etc. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 1 anexada – resposta à pergunta nº 6)

Há muitos reflexos desta formação no atual trabalho de Gismonti. Suas

composições são nitidamente marcadas por uma estruturação sólida e sofisticada,

como ocorre na música erudita. Muitas de suas obras possuem inclusive referências

a compositores eruditos.

Se eu pegar metade da música escrita e gravada que eu tenho, metade é dedicada a “n” compositores do século XVI, e não tem a menor diferença... (GISMONTI, Egberto. Entrevista 1 anexada – resposta à pergunta nº 8)

Em “Sonhos de Recife”, a complexidade da sua composição pode ser

observada especialmente na elaborada textura contrapontística e na densa estrutura

harmônica.

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Seu pianismo também reflete a sólida formação musical que teve, desde a

sua postura física até o refinamento dos seus toques. Por ter recebido a orientação

de professores de piano tradicionais, observam-se em Gismonti características de

algumas escolas de técnica pianística.

Conhecer técnicas pianísticas de períodos musicais que foram importantes dá mais ferramentas que vão qualificar a sua expressão atual. Sabe aquela história: o conhecimento não é poder, mas o que fazer com o conhecimento. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada – resposta à pergunta nº 3)

4.2 Técnica

A postura de Gismonti ao piano é convencional. Ereta e estável, facilita

impulsos e movimentos de corpo em momentos de dinamismo da obra. Entretanto,

suas mãos possuem características muito diferentes dos demais pianistas, o que

influencia diretamente na produção dos toques: a mão direita, com unhas

compridas8, é bem mais espalmada e aberta do que a esquerda, que possui unhas

curtas.

Depois que eu passei a ter unhas grandes, tudo o que eu achava ótimo teve que mudar, porque a mão esquerda continua no conservatório, mas a direita teve que inventar. Porque eu continuo tocando com o acabamento do intérprete, mas essa mão tem que funcionar com um ângulo de 45o por causa da unha. A esquerda toca em ponta de dedo e a direita é espalmada. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 2) E é curioso que todos os pianistas que eu sempre gostei não têm, na sua totalidade, ou não representam, aquilo que me foi descrito como o pianista ideal. Vai lá atrás e pega o Richter, Horowitz, Alex Weisenberg, sem falar na Martha, no Nelson, nenhum deles cumpre o que o conservatório me disse que deveria ser. [...] Eu comecei a me dar conta de que qualquer maneira de tocar vale à pena, desde que a música represente algo. Eu tenho um bom exemplo que é Glenn Gould, que é muito esquisito. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – respostas às perguntas nº 3 e 4, respectivamente.)

8 As unhas compridas da mão direita se devem à sua prática de violonista.

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As escolas mais tradicionais de piano ensinavam que a mão ao piano

devia assumir uma posição de “concha”, para que o toque fosse realizado com a

ponta dos dedos. Nesta posição, a mão permanece estável, assim como o pulso, e

os dedos articulam como martelos. Entretanto, esse é um dogma já desfeito há

muito tempo através do exemplo de muitos pianistas que visivelmente têm mãos

espalmadas e móveis sobre o piano, como Horowitz. Quanto a isso, Hoffman e

Lhevine observam:

É sempre uma questão do resultado, se você toca desse ou daquele jeito. Se você quer tocar com dedos muito curvados e o resultado soa desequilibrado e partido, altere a curva pouco a pouco até que você descubra qual nível de curvatura se adequa melhor a sua mão. Experimente você mesmo. De maneira geral, recomendo uma posição livre e fácil de mãos e dedos, porque somente nessa posição de grande liberdade a elasticidade deles pode ser preservada, e elasticidade é o ponto chave. (HOFMANN, 1976, p. 7, tradução nossa) [...] a tecla é tocada com a porção mais flexível do dedo possível, se um som amável, rico, cantabile é desejado, ao invés de um som duro e metálico. Que parte da ponta do dedo é essa? Certamente não é a parte imediatamente anterior à unha. Ali, o som produzido é muito rígido e inexpressivo. Apenas um pouco mais atrás, na primeira falange do dedo, você vai notar que a polpa o dedo é aparentemente mais elástica, menos resistente, mais macia. Acione a tecla com essa porção do dedo, não nas pontas dos dedos, como alguns dos antigos métodos europeus sugeriram. [...] A tecla é tocada com a maior superfície da 1ª falange do dedo. É quase um axioma dizer que quanto menor a superfície da 1ª falange do dedo a tocar a tecla, mais duro e embotado é o som; quanto maior a superfície, mais rico e cantabile o som. (LHEVINE, 1972, p. 18, tradução nossa) Mas em passagens melódicas, é muito ofensivo ter uma pancada no final do som. Portanto, no final dos sons nas passagens melódicas, o aluno reverte o processo através do qual ele produz o som. O pulso deve ser gradualmente levantado até o dedo deixar a tecla, assim como um avião sai do chão; e, claro, a tecla por si só levanta-se gradativamente, e os abafadores tocam as cordas sem a pancada. Muitos e muitos alunos acionam as teclas de maneira correta, mas não parecem dominar o princípio muito simples, porém vital, de relaxá-las, para que não haja nenhum solavanco. (LHEVINE, 1972, p. 23, tradução nossa)

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50

Mesmo tendo recebido essa orientação para manter unhas curtas e a mão

arredondada, Gismonti conseguiu adaptar-se à condição de unhas compridas.

Uma das mãos se mantém como quem estudou piano tradicional. Por conveniência, como é a minha relação com música, a mão direita se adaptou para que eu possa tocar outros instrumentos, porque preciso de unha. Era um negócio contrário ao piano, pois ninguém pode ter unha e tocar piano. Mas pode ter sim. Fiz um esforço enorme, porque tive que mudar a posição das mãos, mas deu pra continuar tocando. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 1 anexada – resposta à pergunta nº 2)

Esta experiência de Gismonti confirma a orientação do professor de piano

Richard Gerig9 de que “a ‘naturalidade’ deveria ser o ‘primeiro princípio orientador’ e

que ‘correto’ é apenas o que é natural para um aluno em particular, porque apenas o

que é natural é confortável e eficiente.” (1990, p. 3, tradução nossa)

A execução de Gismonti é virtuosística. Suas mãos agem com grande

agilidade, flexibilidade e naturalidade, e não apresentam qualquer rigidez,

especialmente quando realizam notas repetidas sem troca de dedos. A flexibilidade

se reflete na movimentação do pulso, o que lhe dá liberdade para movimentos

rápidos e variados toques.

[…] é bem próximo do impossível produzir um som cantabile com um pulso rígido. O pulso tem que sempre estar flexível. Quanto mais flexível, menos impacto, e são os impactos que causam o som ruim no piano. (LHEVINE, 1972, p. 19, tradução nossa)

Não se observam inclinações sobre o piano e seus braços imprimem

movimentos de leveza a todo instante. Seus cotovelos e pulsos acompanham os

movimentos dos braços, e todo seu corpo parece estar disponível às suas criações.

Há um movimento circular intenso dos cotovelos, especialmente o direito. É provável

que este movimento se deva à influência de algum de seus professores em seu

período de formação.

Quando perguntado sobre o conceito de “peso”, proposto por algumas

escolas de técnica, Gismonti o desconhece, e afirma que não pensa em nenhum

9 Professor emérito de piano na Wheaton College, em Illinois, EUA.

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movimento específico quando toca. Deixa a música conduzir todo seu corpo, que

fica livre e disponível ao que se faz necessário à execução.

Não penso em braço, em toque, nada. Penso só na música, porque o corpo está preparado para tocar a música que eu ouço. E são 40 anos treinando para isso. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 12)

Há vários exemplos de pianistas consagrados que defendem a liberdade e

leveza do braço, como descrevem os pianistas Lhevine e Schnabel10:

O lado técnico do problema não é tão difícil de explicar. Em primeiro lugar, o braço e o antebraço devem ser sentidos tão leves que o executante tem a impressão que eles estão flutuando no ar. A atitude mental aqui é muito importante. [...] É algo pra ser conquistado mais através da correta atitude mental do que através de qualquer prática específica. (LHEVINE, 1972, p. 26 e 27, tradução nossa) Delicadeza é inconcebível com um braço pesado. A menor sugestão para contrair e enrijecer os músculos é literalmente fatal para a delicadeza. Alguém pode dizer “relaxe” o braço, mas se o braço está completamente relaxado, ele não vai fazer nada além de cair abandonadamente para o lado. Por outro lado, ele pode ser mantido na posição sobre as teclas com total ausência de tensão nervosa ou contração, com a sensação de “flutuar no ar”, que é o princípio da delicadeza. (LHEVINE, 1972, p. 26, tradução nossa) Eu não acredito em toque digital. [...] Eles [os dedos] não deveriam ser usados como martelos. Eles necessitam muito mais de treinamento e atenção desta maneira. A diferenciação torna-se muito difícil e duvidosa. A queda do peso fora de uma moldura estática é um quadro antimusical. Flexibilidade, relaxamento, comando espontâneo, o trabalho combinado de todas as ações necessárias a uma performance expressiva promete melhores resultados, com menor gasto, do que a rigidez pode alcançar. Expressão significa movimentos de saída e subida. Movimentos de entrada e descida, queda de peso, eu repito, são impedimentos auto-impostos, se expressividade é o objetivo do pianista. (SCHNABEL, 1988, p. 137, tradução nossa)

10 Schnabel, Artur (1882-1951) Pianista austríaco, compositor e professor. Estudou em Viena sob a orientação do famoso pianista Theodor Leschetizky. De 1919 a 1933, Schnabel lecionou na Hochschule für Musik, em Berlim. Era particularmente conhecido pelas suas interpretações das obras de Beethoven. Suas composições incluem três sinfonias e muitos trabalhos camerísticos.

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A maioria dos saltos é realizada sem olhar para o teclado, e com grande

precisão. Seu rosto permanece grande parte do tempo olhando para o centro do

teclado.

Tinha o concentrar-se e ter a capacidade de enxergar o teclado com muita clareza e velocidade. Pra mim, isso é uma grande mentira, porque quanto menos eu olho o teclado mais eu enxergo. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 4) Eu vi que sempre que eu olhava pro teclado, me confundia, porque o teclado é parametrizado. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 5 anexada – resposta à pergunta nº 5) Quando eu ouço uma gravação, como o Colón, eu ainda fico assustado e penso: “Só pode acontecer isso porque eu não olho para o teclado”. Eu não sei precisar data... Isso vai acontecendo devagar. De uns 10 anos pra cá, quando eu passei a não mais olhar para o teclado, porque se não eu me confundia, eu não me mexi mais. Eu me mexo pouquíssimo. E por quê? Porque para que eu toque e acerte qualquer distância, eu tenho que estar muito bem localizado. Se eu sentar no piano e disser estou pronto, é que o umbigo e a ponta do nariz estão no centro do teclado. Quando eu vou fazer algo muito grave, o corpo vai, mas a cabeça meio que fica. Raramente inclino o tronco, porque tira o centro e na volta eu não vou acertar nada. Isso eu percebi quando assisti aos meus shows em vídeo. [...] Enquanto o corpo ia pra lá e pra cá, subia, descia, a nota não representava aquela querência toda. No que o corpo assentou e as mãos sabem para onde ir, a música é muito mais rica em todos os níveis, inclusive ritmicamente, do que se estivesse pulando pra lá e pra cá. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – respostas às perguntas nº 5 e 6)

Suas mãos não se diferenciam apenas quanto à posição. Há diversos

momentos em que grande independência é percebida na realização de polimetrias e

polirritmias com grande precisão e domínio, além da coordenação de vários acentos

deslocados.

4.3 Estudo e preparação

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Gismonti relata que exercícios técnicos fizeram parte de sua rotina de

estudante. Entretanto, organização e disciplina no estudo não eram seu “ponto

forte”, e por isso não os praticava como recomendado, nem em estrutura, nem em

assiduidade.

Várias vezes eu fui repreendido pelos meus professores porque eu ficava brincando com esses exercícios, e fazendo tentativas de coisas que teoricamente eram impossíveis, mas hoje eu faço. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 1) Escalas eu adorava, e praticava de maneira que uma mão estava numa diferença de um semitom em relação à outra. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 2) Tem gente que precisa estudar muito, outras nem tanto. [...] Mais ou menos isso o que eu aprendi na prática, quando me dei conta que essa minha desordem era em função de uma ordem que me deram. E eu, a vida inteira, nunca segui nenhuma ordem. Essa desordem criou-se desde que eu era muito pequeno. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 1 anexada – resposta à pergunta nº 11) Porque eu nunca fui um aluno tradicional, então nada de tradicional se aplica ao meu estudo de música. A minha discussão era sempre musical. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 2)

Portanto, não se pode atribuir a agilidade que Gismonti possui à prática

desses exercícios. É possível que eles tenham contribuído para o desenvolvimento

de uma facilidade e coordenação natas. Certamente, o aspecto mais decisivo neste

desenvolvimento foram as descobertas intuitivas e os processos individuais que

Gismonti criou para si próprio. Outros pianistas se desenvolveram de forma

empírica, como demonstra Gerig:

Naturalidade é, sem dúvida, o determinante final de uma técnica de piano válida. Essa técnica atua em harmonia com as leis da natureza – com uma consideração especial a essas leis relacionadas ao movimento fisiológico e coordenação muscular. Os grandes pianistas, com seus talentos físicos e musicais quase sobrenaturais, freqüentemente os descobrem por instinto. [...] Muitos dos nossos melhores mestres são ou têm sido empiristas. Mozart, Beethoven, Chopin e Liszt

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encontraram a verdade técnica através da experiência prática e intuitiva. (GERIG, 1990, p. 3, tradução nossa)

Gismonti ilustra como desenvolveu sozinho o seu trabalho de

independência de mãos:

Nos estudos técnicos, Behringer, Czerny, há muitos e muitos anos, eu encontrava o que gostava, porque aquilo ali é só uma questão de você praticar o que você quer ouvir. Aquilo é muito chato, mas se você quiser, você harmoniza de uma maneira muito interessante, ou torna ritmicamente interessante. Eu não tinha consciência de que eu estava iniciando um processo de exercício para independência. Por várias vezes eu mostrei esses exercícios, já aqui no Rio, para pessoas como Dulce Vaz Siqueira, Aurélio Silveira, acentuando uma mão diferente da outra. Mas com o tempo eles começaram a aceitar. Era tradicional, mas não totalmente. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 1 anexada – resposta à pergunta nº 2)

Importante papel teve também a prática intensa de um variado repertório,

incluindo suas próprias composições, nas quais Gismonti testava seus limites

técnicos.

[...] Pra conseguir essa facilidade técnica, que é dirigida a uma coisa que a minha música está se tornando com o passar dos anos. Não é que fiz uma música tal e por isso estudei não sei o quê. Ao contrário, estudei não sei o quê, que foi me levando a fazer uma música, que cada vez fica mais espacial, até em nível de orquestração. Porque uma coisa puxa a outra. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 1) Não é porque hoje em dia eu tenho uma agilidade pra tocar a música que eu toco, que pode ser considerada uma técnica específica, porque ela não está na frente da idéia musical. É a idéia musical que faz com que ela exista. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 5 anexada – resposta à pergunta nº 5)

Pelos seus depoimentos, observa-se que a superação técnica não fazia

parte dos objetivos diretos de Gismonti. Ela era conseqüência de uma prática

musical intensa, guiada pela composição e reflexão sobre música.

Mas a complicação não está na técnica para se tocar algo, está na compreensão da coisa. Se você não compreende, a mão

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não toca. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 9)

O desenvolvimento pianístico de Gismonti é fortemente marcado pelo seu

desenvolvimento composicional. Sua concepção de música e busca de uma

linguagem própria o impulsionaram a procurar recursos técnicos e interpretativos

cada vez maiores.

Eu não toco como eu toco porque estudei 10h por dia, fiquei estudando a mão esquerda enquanto ouvia jogo de futebol. Não é nada disso! Essa admissão de que hoje quer uma coisa, amanhã admite que quis errado, isso é um aprendizado que é muito difícil e muito dolorido. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada – resposta à pergunta nº 3)

A experiência de Gismonti faz rever o conceito de técnica pianística,

comumente limitado aos aspectos físicos e mecânicos da interação pianista-piano.

Pode-se concluir que a técnica não existe isoladamente, mas sim associada a um

contexto musical, como pensava Busoni11.

Para Busoni, dificuldades técnicas são meramente coincidentes. Tudo o que importa é o sentido musical de uma passagem difícil. Até que se entenda o sentido, não se deve tocar as teclas. O pianista tem um implacável inimigo: o piano, que continuamente o tenta a esquecer o significado musical de uma passagem para superar uma dificuldade mecânica. A técnica nunca poderá atingir um ponto onde o problema cesse, precisamente porque os problemas reais não são técnicos, mas musicais. (BRENDEL, 1978, p. 110, tradução nossa) Não existe uma, porque existem técnicas que devem ser conjugadas com agilidade para um repertório específico. Técnica pura, do meu ponto de vista, não serve para nada. Técnica pura é você ser possuidor de um dicionário importantíssimo e uma enciclopédia genial e nunca ter lido nada, ou se leu, não sabe o que fazer com aquilo. “Ah, mas isso é importante para o fundamento da compreensão!” Claro que é, mas nós estamos falando aqui de música. Técnica aplicada à música. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 10)

11 BUSONI, Ferruccio Dante Benvenuto (1866 Itália – 1924) Pianista, compositor e crítico de música. Biografia completa disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Ferruccio_Busoni

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Assim, pode-se dizer que o desenvolvimento técnico está mais associado

à compreensão mental do movimento do que da prática inconsciente de dedos. Essa

visão é confirmada pela definição de técnica do importante professor de piano

Tobias Mattay:

Técnica significa o poder de expressar a si próprio musicalmente… Técnica é mais uma questão da mente do que de “dedos”… Para adquirir técnica, portanto, significa que você tem que induzir e reforçar uma associação e coordenação mental-muscular particular para cada efeito musical possível. (MATTAY, 1982, p.3)

Na maioria das vezes, as dificuldades técnicas do repertório estão

relacionadas a dois fatores: 1) a falta de entendimento do texto e 2) a impedimentos

físicos causados pelo próprio pianista. Esses impedimentos provêm em grande parte

de tensões musculares, má posição e falta de liberdade de movimentação da mão e

do corpo. Os estudantes gastam muito tempo tentando resolver essas dificuldades

através de repetições inconscientes, em posições padronizadas, quando uma

reflexão sobre o movimento poderia sanar a questão em pouco tempo. A diretriz

para esta busca pode ser sintetizada em uma experimentação individual, guiada

pela liberdade e integração do movimento de todo o corpo.

Freqüentemente, os alunos lutam com passagens difíceis e declaram ser impossíveis, quando uma simples mudança na posição da mão, tal como levantar ou abaixar o pulso, ou inclinar a mão lateralmente resolveria o problema. É impossível dar ao aluno algumas receitas universais para se adequar a passagens diferentes, mas uma boa regra é experimentar e encontrar o que é o mais fácil para cada mão individualmente. (LHEVINE, 1972, p. 35, tradução nossa) A música [...] necessita de milhares de sons e não de uma sonoridade padrão. Isso arruinaria a música. Técnica nunca é o fim, você sabe. Mera destreza não é suficiente. [...] A combinação dos sons, a articulação dos sons tem que ser direcionada pelo ouvido interno. Grandes esforços físicos não são condutores à performance musical. De qualquer forma, toda realização física deveria ser alcançada com um mínimo de esforço. (SCHNABEL, 1988, p. 126, tradução nossa) A percepção é que se o mecanismo total do corpo funciona numa coordenação combinada, os dedos não podem deixar de

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apenas funcionar adequadamente e não precisam de treino específico. Seu ensino sobre técnica [da Abby Whiteside] é bem sumarizado na seguinte citação: “Somente cooperação da mão, dedos e antebraço tem que ser praticada, não a independência de ação – não controles individuais – se a cooperação é acreditada e desejada, e deve ser o resultado do estudo”. (GERIG, 1990, p. 477, tradução nossa)

O estudo de piano que Gismonti descreve atualmente inclui alguns

exercícios técnicos, mas que não são praticados com objetivos mecânicos. Pode-se

dizer que não há um método, mas uma grande experimentação criativa, que utiliza

elementos da técnica pianística (como escalas e arpejos) de forma livre, e

especialmente não repetitiva, para uma prática essencialmente musical.

O que eu tenho absoluta certeza é que eu nunca gostei da repetição técnica para me libertar a ser um bom intérprete. Eu nunca acreditei que isso liberta o intérprete. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 9) O que eu nunca suportei no estudo de música e na minha vida é a repetição igual de qualquer coisa. Eu sempre parti do princípio, não era consciente, mas de uns 15 anos pra cá sim, que eu posso praticar o chamado exercício que mantém as minhas mãos ouvindo e executando muito bem sem precisar andar dentro daquela tonalidade, andamento e harmonia propostos pelos estudos tradicionais. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 3) É mecânica no sentido que o erro durante o estudo pode me levar a achar coisas que eu venho achando, ocasionalmente, com uma atenção comparada a uma antena parabólica. Na realidade, é ocasional enquanto improvisativo, mas é percebido com uma atenção danada, que é uma coisa que me acontece muito. No próprio concerto do Colón, têm momentos lá que vai indo, indo, indo, e por causa de uma certa nota que não tinha nada que ver com a história, numa fração velocíssima, que acontece com todo mundo que toca com essa liberdade, a música passa a ser outra coisa. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 18)

Além disso, essa prática não é diária, em função da agenda atribulada que

possui. Freqüentemente é realizada em piano mudo.

Em 80% do meu tempo, eu estudo em piano mudo. Não estudo mais para ouvir porque eu acho “um pé no saco”. Faço de tudo: escalas, arpejos, toco músicas inteiras, procuro umas

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variações... (GISMONTI, Egberto. ENTREVISTA 3 anexada – resposta à pergunta nº 14) Quando eu sento no meu piano mudo, tem o exercício do tocar e de ouvir o que está tocando. Esse exercício é genial! (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 18)

O estudo deve aproximar o intérprete ao texto, de maneira a criar uma

intimidade com o que se toca. Deve ser o momento em que o intérprete faz suas

escolhas e idealiza internamente a expressão da obra.

Você não precisa de partitura para ser músico, mas se você usa a partitura, trata de ter intimidade com ela. Eu sempre tive receio de que a facilidade que a tecnologia dá ao músico de hoje de ouvir de fora pra dentro as músicas vai fazer com que ninguém ouça mais nada, e que essa afirmação “Ele está imaginando” se torne uma realidade. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 21)

A prática diária do pianista não deve objetivar um desenvolvimento

atlético, vazio de sentido musical. O conceito de prática, então, deve ser revisto, e

não mais considerar a repetição mecânica como a solução para a elaboração de

interpretações. Deve-se considerar o desenvolvimento musical de um repertório,

onde as opções interpretativas direcionam os recursos físicos. A prática deve ser

realizada através de um trabalho consciente, no qual a criatividade exerce uma

importante ferramenta para se fazer escolhas interpretativas. Assim consideram

Lhevine e Stier:

Um belo toque, um bonito legato não surgirá apenas por desejá-lo. Não surgirá através de horas de execução sem atenção no teclado. Ele é seguramente um caso de desenvolvimento do seu senso de som, seus ideais estéticos, misturados às suas horas de prática. (LHEVINE, 1972, p. 39, tradução nossa) Estudar é desenvolver a consciência que lhe permite buscar, e então equilibrar as variáveis da música. Estudar é desenvolver a flexibilidade que lhe permite ampliar o alcance dessas variáveis. Estudar é desenvolver a consistência que lhe permite apresentar qualquer combinação flexível de variações na performance. (STIER, 1992, p. 11 tradução nossa)

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Quando a memorização é necessária ou desejável, ela deve fazer parte do

estudo, para que seja obtida através de um planejamento consciente. A

memorização eficiente é conseqüência de um profundo conhecimento do texto, e

não só de automatismos. Hoffman afirma que tocar de memória liberta o intérprete,

mesmo que esse utilize partituras na performance.

Tocar de memória é indispensável para a liberdade da interpretação. Você tem que manter na sua mente e memória toda a peça para prestar atenção adequadamente aos detalhes. Alguns renomados pianistas, que utilizam partituras no palco, tocam, entretanto, de memória. Eles levam a música consigo apenas para aumentar seu sentimento de segurança e para compensar uma falta de confiança em sua memória – uma espécie de nervosismo. (HOFMANN, 1976, p. 112, tradução nossa)

Com Gismonti, o fato de interpretar suas próprias obras propicia que as

toque todas de memória. Geralmente, a partitura apenas é utilizada como referência

para apresentações em conjunto.

Se colocar as partituras, não muda nada. Tendo partitura ou não tendo é

exatamente igual. Eu só uso a partitura quando eu preciso dela. Precisar não significa que eu tenha que ler. Estou te falando de orquestra. Eu ponho a partitura porque eu preciso da referência. [...] Agora, com a Olivinha, por exemplo, tocamos 10 músicas, das quais, pra umas 4, eu precisava da partitura lendo, pra ter certeza do que era. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 6)

A preparação para uma performance está intimamente relacionada ao

estudo do pianista. Uma boa preparação é aquela que torna o pianista seguro e

consciente da música, considerando inclusive as adaptações necessárias a cada

performance, tanto técnicas quanto emocionais.

Qualquer pianista tradicional que faz uma carreira como intérprete, que é o meu caso, se prepara igualmente para todas as performances. Seguramente, ele vai sofrer muito mais do que deveria. Porque se ele se prepara no nível técnico para a melhor performance do mundo, e não encontra, em 90% dos locais, o piano que ele precisa, ele vai se aborrecer e isso vai interferir. Aí, o que eu falei: é o emocional, não é o sensorial. Prepare a música, não o piano. [...] Eu estou falando de preparação, só não é a tradicional [...]. Então, a preparação é

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relativa, e é específica. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 1)

A preparação é sempre relacionada a onde é, à qualidade do local, quem é o parceiro ou não, o tamanho... Tudo isso influencia. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 2)

A preparação feita por Gismonti vai além da preparação pianística, uma

vez que, como compositor, se dá ao luxo de explorar os recursos de cada situação

na música que vai executar.

Então quando eu digo que me preparei, eu me preparei para tocar aquela sala. Não é tocar naquela sala, mas tocar aquela sala. Tanto que faz parte da preparação técnica, independente de quanto eu estudei... (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 1)

A preparação consciente e criativa contribui ainda para a segurança

emocional do pianista no momento da performance. A consciência da obra propicia

um domínio da execução, na medida que torna o pianista ativo no processo, e não

mero reprodutor mecânico, dependente exclusivamente de automatismos. O pianista

tem, então, condições de resolver rapidamente questões que surjam no transcurso

da performance.

Eu jamais fui para uma apresentação sem me sentir totalmente tranqüilo, mas muito, um negócio que dá pra dormir. Dez minutos antes, se eu encostar, eu durmo. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 1)

Gismonti transparece calma, concentração, domínio e segurança na

gravação do Teatro Colón.

Esse concerto do Colón é um bom parâmetro. Eu não me lembro nesses 30 anos tocando profissionalmente de eu ter tocado 90 e tal minutos com uma concentração e uma precisão muito raras. E eu tenho uma concentração boa quando toco. No entanto, raramente eu agüentaria uma pressão de 90 minutos. Porque é uma pressão! Não é uma pressão das pessoas, é uma pressão porque agüentar esse tranco polifônico por 90 minutos é uma barra pesada, mesmo pra mim que pratico isso. Só agüentei porque quando eu acabei a

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primeira música, eu realizei que tinham 4100 pessoas que ajudaram nos últimos 20 anos que eu me tornasse músico. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada – resposta à pergunta nº 1)

Há uma visível alteração no seu estado emocional após o improviso.

Alguns esbarrões ocorrem, e até mesmo falhas de memória. Entretanto, dificilmente

algum ouvinte percebeu esses lapsos porque o pianista contorna facilmente a

situação.

[...] tanto que tem erro de nota, mas que não muda nada o sensorial. E normalmente quem toca na emoção, se errar uma nota o cachimbo cai. Comigo não cai porque é o sensorial que está mandando. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada – resposta à pergunta nº 9) Para aqueles que têm uma leitura profunda, a compreensão é muito mais ampla, porque não é um compasso, é o contexto todo. Leva isso para um ator: você nunca vai ver a Fernanda Montenegro gaguejar uma peça, ou parar, porque se ela esquece 1, 2, 3, 4, 5 palavras, ela lembra as outras 15 mil. Porque o que interessa são as 15 mil, e não as 10. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada – resposta à pergunta nº 21)

Em geral, pianistas se desequilibram quando erros acontecem em suas

performances. Com Gismonti, isto não ocorre porque ele inclui na sua preparação a

expectativa do erro. Para ele, o “erro” não significa falha, mas uma contribuição

involuntária, que muitas vezes desperta caminhos não imaginados.

Mas eu, como compositor, passei a não considerar mais nenhum erro de nada, até porque eu já errei e qualifiquei muito o que eu estava fazendo. Muitas vezes eu toquei coisas erradas e pensei “Mas isso aí é muito melhor do que eu tinha pensado!”. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada - resposta à pergunta nº 1) Se eu conhecer as outras partes e a minha, e a coordenação delas, qualquer acontecimento que não seja aquele que esteja previsto não é um erro. É uma abertura. Pode ser chamada de improvisação, ou uma brecha que abriu. Quantas vezes você estava pretendendo tocar notas tais e por um descuido qualquer você tocou outra, que te pareceu muito melhor? A liberdade ou a preparação para um concerto é que você tem

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que ficar tão veloz, [que] qualquer ocasional que aconteça e que seja bom te faça esquecer o que estava combinado. Você vai seguindo a música que está se apresentando pra você. Esse é o processo de preparação que não dura uma temporada, nem duas; dura a vida. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada - resposta à pergunta nº 2)

4.4 Interpretação

Schnabel afirma que:

“Seu ideal é materializar tudo o que ele [o intérprete] deseja materializar. Obviamente, ele deseja apenas o quanto entende, num dado momento, sobre o que a música exige, como um todo e em um único exemplo. Quanto é isso, depende só do seu talento, em cada fase do seu desenvolvimento. O mesmo é verdade em relação à sua capacidade de julgar se ele está fazendo o que ele quer fazer. Quaisquer que sejam seus talentos, ele tem que fazer, em toda sua vida, o maior esforço para alcançar o máximo de suas capacidades – o que requer mais um talento.” (SCHNABEL, 1988, p. 132, tradução nossa)

A interpretação de Gismonti é muito rica, em função da sua profunda

concepção de música e do seu elaborado pianismo.

Além de possuir recursos pianísticos bem desenvolvidos, Gismonti sabe

muito bem o que quer ouvir, especialmente quando se trata de suas obras. Esse é o

diferencial entre os intérpretes: a “imagem” que têm da obra, o som que buscam.

Gismonti comenta esse processo da seguinte forma:

A coisa da música significa: eu tenho que saber o andamento, o tempo, porque se não a mão não toca. É porque eu só toco seguindo a música. Tem uma partitura todinha, mas eu só toco seguindo a música. Mesmo que eu não troque nota nenhuma. Não dá pra tocar pra escutar. Comigo não dá. E não é por causa da polirritmia, nada disso não, a música tem que conduzir. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 4 anexada - resposta à pergunta nº 9)

Entende-se que é necessário, primeiramente, que o intérprete tenha claro

em sua mente o que vai realizar: o andamento, o caráter, a dinâmica, o texto, entre

outros elementos. Mais do que compreender intelectualmente, é preciso sentir

internamente a expressão que vai ser comunicada, para que haja uma interpretação

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verdadeira, com envolvimento emocional. Trata-se de um processo interno, uma

espécie de afinação do intérprete com a música, que acontece antes e durante a

performance.

Várias vezes, acontece de eu subir no palco e esperar, enquanto eu não ouço o tempo exato. E não é música, é o tempo. Enquanto não está claro pra mim, não define na minha cabeça, eu não toco. Se eu tocar, eu vou ouvir o que eu estou tocando, e eu não quero. Eu quero tocar simplesmente, e não tocar para ouvir. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada - resposta à pergunta nº 13)

Gismonti descreve o seu processo de interpretação como uma trilha

interior. Interpretar para ele é seguir o fluxo da expressão que ocorre em seu interior,

e está conjugado com o compor. Para isso, ele se coloca como instrumento dessa

corrente, que descreve até mesmo como se fosse externa à sua consciência.

Isso é um exercício que um dia eu até vou colocar de uma forma pedagógica, que é o ato de esperar a música. Eu falo muito assim: “Fica atrás da música!”. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada - resposta à pergunta nº 2)

Schnabel confirma esse processo:

Primeiro ouça, depois toque. (SCHNABEL, 1988, p. XIII, tradução nossa)

O que esses dois pianistas destacam é a necessidade do desenvolvimento

da escuta interior do intérprete, que é proporcional à sua concepção musical. Toda

interpretação é dirigida por este processo interno, anterior à materialização sonora

de sua execução.

Se você tem que tocar para ouvir, é porque você está na frente da música. Se você considerar que música é o elemento orientador, norteador, você está na frente do seu norte. Algo está errado. E isso não é aplicado (só) para quem tem liberdade para tocar, é para tudo. Se você vê o Glenn tocando, ele está atrás da música, nunca na frente. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 3 anexada - resposta à pergunta nº 9)

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O ritmo é um dos aspectos mais relevantes nesta interpretação de

Gismonti. A importância que esse pianista dá às questões rítmicas e ao pulso marca

a sua interpretação. Pode-se destacar o efeito que a manutenção da pulsação

proporciona, especialmente nos momentos mais rítmicos. Da mesma forma, pode-se

comentar as acentuações, ora no tempo forte, ora deslocada. Essas duas

características colaboram para a criação da fluência e caráter rítmico, responsáveis

pela transmissão da sensação do frevo ao ouvinte. Gismonti comunica a expressão

popular da sua música com convicção e naturalidade.

Segundo Gerig, Abby Whiteside12 afirma que é exatamente essa íntima

relação com o ritmo que proporciona a facilidade técnica e de expressão pianística.

Podemos associar também esta característica à virtuosidade de Gismonti.

Ela firmemente acreditava e ensinava que um ritmo vital e “all-encompassing” é o fator básico de coordenação envolvido na construção de uma técnica efetiva. Esse ritmo tem que ser a base para a continuidade e beleza musical da interpretação. Tal ritmo também vai se expressar na continuidade física do movimento e da fluência. [...] [comentando sobre Abby Whiteside] (GERIG, 1990, p. 470, tradução nossa)

A performance de Gismonti é fortemente guiada pelo ritmo, e todo seu

corpo participa ativamente dessa expressão. Observa-se que seu tronco, todo seu

braço, mãos e dedos movimentam-se livre e integradamente, fazendo parte da

comunicação do ritmo. Essa é uma característica comum principalmente aos

pianistas de músicas populares.

O torso respondia ao clima emocional do “ritmo básico”, ou “ritmo básico fundamental”, ou “ritmo fundamental”, descrevia a resposta física através da qual a parte superior do braço, em reação à atividade do torso, projetava no som o ritmo da forma da música. (PROSTAKOFF apud GERIG, 1990, p. 472, tradução nossa)

Bons pianistas de jazz têm naturalmente seguido este plano e exibem “um tom em seus ouvidos e um ritmo em seus corpos,

12 WHITESIDE, Abby. (1881 EUA -1956) Graduou-se em música na University of South Dakota. Após muitos anos lecionando na University of Oregon, foi para a Alemanha estudar com Rudolf Ganz. Então, voltou aos EUA e tornou-se uma professora de sucesso, primeiro em Oregon, depois em Nova York, onde ela desenvolveu um instituto de pedagogia do piano. Biografia completa disponível em http://www.abbywhiteside.org/home.htm.

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e eles permitem que esses dois elementos se fundam sem usar mais nada, como eles aprendem seus instrumentos.” Nenhum aluno sério pode esperar realizar uma bonita execução e uma técnica apropriada sem seguir adequadamente: tem que sentir o ritmo e ouvir o som que está produzindo – e ele precisa deixar que estes guiem cada um de seus movimentos. (GERIG, 1990, p. 473, tradução nossa)

Podemos, então, destacar três pontos importantes sobre interpretação:

concepção musical, escuta interior e domínio de pianismo.

A concepção musical, como já foi abordada anteriormente, está

relacionada ao conhecimento que o intérprete tem sobre música e sobre a obra

específica. O conhecimento da obra pode ser adquirido através de processos de

análise e reflexão sobre o texto, o compositor, o estilo, etc.

A escuta interior é a elaboração de uma expectativa sonora sobre a peça,

a partir da compreensão da análise e das escolhas interpretativas. Esta expectativa

sonora é a referência que deve guiar a aplicação dos recursos técnicos ao piano.

Neste processo, a audição atenta e o senso crítico são os grandes professores do

pianista, e sua prática deve consistir na busca dessa “imagem mental”.

É importante perceber que o processo de preparação de uma

interpretação depende mais do desenvolvimento da consciência musical, que inclui a

busca de sonoridades e climas, do que da destreza técnica. A habilidade técnica é

parte conseqüente desse processo, e não deve ter sua função invertida para objetivo

principal. De acordo com Schnabel, “para projetar a música, a técnica empregada

tem que ser uma técnica que por princípio é usada exclusivamente a serviço dessa

projeção”. (1988, p. 129, tradução nossa). Ele ilustra esse conceito com o exemplo

de seu professor Letchetizky:

Ele [Letchetizky] produzia o som, qualquer um dentre a variedade infinita de sonoridade que ele quisesse, com seus ouvidos, e não com seus dedos. Tentar atender à música bem sucedidamente com dedos é quase inalcançável. Música não se importa com dedos. Ele nunca discutiu esse problema. (SCHNABEL, 1988, p. 126, tradução nossa)

A interpretação de Gismonti é diretamente influenciada pela acústica do

ambiente e pelo instrumento. Ele chega a alterar a estrutura musical para valorizar

recursos da situação.

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Quando eu chego no Colón, faço “plin” e o teatro faz “roooom”, ele está conversando comigo. [...] “Eu não vim aqui pra tocar piano, eu vim tocar piano nesse teatro. Se não, eu ficava em casa”. Se o teatro passou a ser o segundo estágio da composição, que é o intérprete, aí o “Frevo” passou a ser [canta um trecho da música liricamente]. Essa liberdade é evidente que eu admito. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada - resposta à pergunta nº 2)

Pode-se dizer, então, que o teatro contribuiu para a composição de

Gismonti, na medida que ele tem a liberdade de alterar a sua música para absorver

as qualidades da condição em que está tocando. Então, ele explora elementos que

são valorizados pela acústica do teatro e pelo instrumento, como fez, por exemplo,

na introdução de “Sonhos de Recife”. Isto demonstra que o pianista é sensível aos

recursos do instrumento e da acústica em que vai tocar. Não apenas no nível da

composição, ele também altera seu pianismo para se adaptar às condições da

apresentação. Sua audição guia alterações em toques, pedalizações, fermatas,

respirações, em função do retorno sonoro que obtém.

E sempre tocando em função do piano e da acústica. Como a alegria de estar é um impulso de dentro pra fora, o intérprete, que ocasionalmente é o compositor, muda a música porque o impulso é pra qualificá-la. [...] Aqui o intérprete foi compositor mesmo. Porque se você chega num piano genial, numa acústica genial, com tudo super propício, isso é um estímulo tanto quanto uma música que você vai escrever como compositor. Como o intérprete é compositor, então me dou o direito de transformar a música em função das condições a tocar. [...] (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada)

A audição da acústica do teatro deve guiar ajustes no pianismo do

intérprete, como por exemplo na pedalização, de maneira a obter o resultado sonoro

pretendido. O pianista Alfred Brendel observa sobre este assunto:

Pianos e salas são geralmente interdependentes. [...] As características de uma sala de concerto - mais ou menos ressonantes, brilhantes, claras, propagadoras do som – são refletidas na habilidade técnica do executante e têm uma influência na sua sensação de bem-estar. (BRENDEL, 1978, p. 130, tradução nossa)

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Uma boa interpretação é permeada por uma variedade de sonoridades,

proporcionada, entre outras coisas, por diferentes toques.

A gama de sonoridade realizada por Gismonti é vasta. Suas dinâmicas

variam do pianíssimo ao fortíssimo, em gradativa e equilibrada progressão. Em

piano, todas as notas são suaves, porém claramente ouvidas; os fortes são intensos,

mas não batidos. Essa característica, segundo Lhevine, deve-se à flexibilidade do

seu pulso:

Por que nenhum barulho [nos toques fortes de Rubinstein]? Porque os pulsos de Rubinstein estavam sempre livres de rigidez em tais passagens, e ele tirava vantagem da absorção de impacto natural do pulso, que todos nós possuímos. (LHEVINE, 1972, p. 31, tradução nossa)

A diversidade de toques empregada por Gismonti gera um colorido

timbrístico, tornando claros os contrastes dos caráteres expressivos e rítmicos das

sessões. Na primeira seção, o cantabile delineia com clareza o tema principal, em

meio à textura. No tema acordal, uma melodia se destaca na valorização da nota da

ponta dos acordes. Nos trechos rítmicos, há a exploração de características de

percussão do piano através de toques rápidos, precisos, fortes e acentuados.

A fraseologia realizada por Gismonti emprega a inflexão vocal em vários

momentos, criando nuances e coloridos nas melodias mais líricas, assim como

demarcando respirações orgânicas. A inflexão vocal é um recurso do pianismo que

deve ser aplicado em grande parte do repertório pianístico, como ressalta Brendel:

Cantar significa expirar. Mas os momentos de inspiração podem também ser musicalmente significativos, como será percebido por qualquer executante de canções ou transcrições de ópera que esteja respirando com a linha vocal. A literatura pianística é permeada pela atitude musical vocal. [...] (BRENDEL, 1978, p. 97, tradução nossa)

O pedal foi utilizado de maneira a garantir a ressonância dos baixos e

valorizar a expressividade das melodias do tema principal, proporcionando o

prolongamento das fermatas e a ligação dos desenhos, sem obscurecer a linha

melódica.

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O repertório interpretado por Gismonti é em sua grande maioria autoral.

Assim, pode-se dizer que sua interpretação, bem como sua técnica, são

direcionadas às suas composições.

Eu como intérprete não posso falar muito porque eu tenho tocado 100% do que eu escrevo nos últimos muitos anos. (GISMONTI, Egberto. Entrevista 2 anexada – resposta à pergunta nº 3)

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Egberto Gismonti é um músico de grande atuação: é pianista, compositor,

improvisador, violonista, regente, multi-instrumentista, como eram os grandes

músicos do passado. Possui uma ampla experiência de performances e gravações,

além de um conhecimento musical muito vasto.

Essas características conferem um aspecto único ao seu pianismo, porque

ultrapassa a abordagem de questões pianísticas. Torna-se difícil comentar partes

isoladas do seu trabalho, uma vez que todas as habilidades permeiam a mesma

pessoa. Assim como Gismonti associou muitas vertentes à sua produção musical,

impossível comentar a sua performance dissociando-a do amplo contexto musical,

filosófico, cultural e pessoal ao qual está relacionada. O resultado disso é uma

carreira singular: um pianismo marcado pela composição, e uma composição

influenciada pelo pianismo.

Do ponto de vista técnico, o pianismo de Gismonti apresenta um grande

virtuosismo, marcado por agilidade e facilidade digital. Do ponto de vista

interpretativo, possui uma rica palheta sonora, graças à diversidade de toques e

dinâmicas que consegue extrair do instrumento. Podemos dizer que essa riqueza de

sonoridades está diretamente relacionada à adaptação física que ele encontrou com

o instrumento. Seus recursos pianísticos são fruto da liberdade e flexibilidade dos

seus braços, pulsos e mãos.

Sua principal qualidade é a energia e precisão com que transmite o caráter

rítmico e popular de suas obras. Sua execução parece transferir ao piano a função

de outros instrumentos, especialmente os de percussão. Seu pianismo foi

desenvolvido juntamente com sua linguagem, para representar ao piano elementos

da cultura popular e folclore do Brasil e outros países.

A criatividade é uma qualidade que diferencia o pianismo de Gismonti. A

possibilidade de criação e recriação do texto executado, quanto à interpretação e

improvisação, é grandiosa e constante. Isso se dá graças ao fato do intérprete

também ser compositor. Suas habilidades composicionais dão recursos extras à sua

performance, lhe permitindo alterações do texto e da interpretação, como verificado

na gravação consultada de “Sonhos de Recife”.

Uma importante característica da execução de Gismonti é a riqueza de variações texturais, mais especificamente, a sua capacidade de desenvolver

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contrapontos, em linhas melódicas independentes, que funcionam como acompanhamento e contracanto de suas melodias. Desenvolveu um raciocínio musical que realiza várias idéias diferentes ao piano com grande independência, que mudam a todo instante. E o seu pianismo é adaptado a essa prática. Assim, emprega sua agilidade, coordenação, independência de mãos a serviço das suas idéias musicais.

Gismonti proporciona grandes contribuições ao estudo do pianismo. Seu

exemplo é a confirmação de conceitos técnicos que indicam a naturalidade,

flexibilidade, consciência, leveza e empirismo. O estudo da sua trajetória oferece

reflexões acerca das opções de desenvolvimento do pianista. Os recursos

interpretativos identificados podem ser empregados na performance de outras obras,

especialmente as músicas brasileiras. Seus depoimentos suscitam reflexões de

conceitos relacionados à prática musical.

Para concluir, podemos dizer que Gismonti possui um estilo singular de

tocar e compor, marcado por liberdade, ousadia e talento.

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