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Ghiraldelli

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Scrates, Plato e o Filsofo de Hoje (ou Existe "Filosofia Clnica"

Scrates, Plato e o Filsofo de Hoje (ou Existe "Filosofia Clnica"?)1. O charlatanismo e a confuso"Filosofia Clnica" existe? algo vlido? Alguns sofistas chegaram a ter "clnicas" que lembram um pouco nossa atividade atual do psiclogo ou psiquiatra dedicados clnica e terapia ou terapias. Mas isso no legitima ningum a dizer que, com algum tipo de formao em filosofia, possa vir a "clinicar".

A atividade da clnica no sentido corriqueiro do termo especfica e, em geral, os psiclogos e psiquiatras tm certa razo ao privilegiarem uma longa formao e uma experincia prtica no menor para, enfim, dar aval para a atividade clnica. No com frases filosficas disparatadas ou com saberes de conta gotas filosficos como os que eu encontro em livros e cursinhos de "filosofia clnica" no Brasil que algum poderia clinicar. No Brasil h psiquiatras famosos com formao filosfica, como Jurandir Freire Costa ou Contardo Calligaris por exemplo, mas duvido que endossariam algo como o que est a, na praa, sendo denominado de filosofia clnica. Antes um psiquiatra culto que qualquer figura se dizendo filsofo clnico.

Abro parnteses.

Todavia, como a formao do psiclogo e do psiquiatra, no Brasil, deixa muito a desejar, ento ningum vai estranhar se algum com formao filosfica to ruim quanto a deles vier a abrir uma clnica. Da minha parte, espero apenas que os brasileiros tenham dinheiro suficiente para pagar clnicos autnticos com formao slida. O que encontro clinicando, mesmo sendo psiquiatras velhos, em geral, so fracos.

Volto filosofia e sua relao com a clnica.

Talvez nem mesmo um conhecimento mais extenso em filosofia permita a algum, hoje em dia, sem formao mdica acompanhada de outras formaes, a realmente clinicar. Seria um absoluto non sense imaginar que a atividade da clnica, atualmente, est dissociada da atividade farmacolgica e com os estudos de fisiologia aplicada feitos seriamente. Por isso, quando eu vejo esses cursinhos de "filosofia clnica" e, pior ainda, quando deparo com algum se intitulando "filsofo clnico", procuro desconversar at para evitar dissabor. Pois como em tudo em que h muita vontade corporativista e pouco saber, h s dor de cabea. No vale a pena "bater boca" com algum "filsofo clnico" em geral completa perda de tempo. Virou mais uma seita corporativa, se que j no nasceu com essa inteno. Mais um sindicato. Logo a Associao de Ps-graduao em Filosofia (ANPOF), que tambm virou uma seita, ir endossar isso. Tudo em nome da idia de "companheirada". S se d bem quem tem seu grupo, sua religio, seu sindicato o Brasil de Mussolini e Chico Cincia venceu. E daqui uns dias essas corporaes todas tero seu dinheiro vindo do Estado! Ou de contribuio obrigatria, regrada pelo Estado! Um imposto sindical obrigatrio para profissionais quaisquer, inclusive filsofos clnicos.

Mas, ento, se s isso, no h nenhuma razo para algo como a clnica-com-uso-de-filosofia fazer algum sentido efetivo? Ela foi uma inveno de puro charlatanismo? Seria apenas fruto de uma vontade de ganhar algum dinheiro com a "modinha da filosofia", que invade alguns grupos de classe mdia alta e acolhe senhoras com muito tempo disponvel? Seria um coadjuvante da modinha dos "cafs filosficos" e "casinhas do saber"? o vale tudo de professores frustrados para ainda continuarem a ser considerados como classe mdia?

No cotidiano brasileiro, eu duvido que possamos realmente dar algum sustento para o que est a como "filosofia clnica". Todavia, a idia de filosofia como uma atividade em que os problemas centrais da metafsica no esto colocados, e que saberes da ordem da conduo da vida devem ser priorizados, no estranha tradio ocidental filosfica. Ela est na base da possvel distino entre Scrates e Plato. Ento, vale a pena pegar exatamente a questo do surgimento da filosofia clnica para abordar essa distino. Do que ruim, vamos tirar uma bola lio?

2. Dois tipos de filosofarSuponha voc que encontrou um Gnio, desses que aparecem a para o Aladim e Cia. Como esse gnio est no Brasil e aqui um lugar onde o hino diz que se est em bero esplndido, o Gnio acredita que seria muito conceder trs pedidos, ento ele oferece apenas um. O que voc pediria? Sade ou dinheiro ou poder (inclusive com relao ao sexo)? Ora, se isso ocorresse com um filsofo, ele pediria "para errar menos". Pois sade, dinheiro e poder so coisas que podemos perder quando no sabemos discernir prioridades em situaes, avaliar comportamentos, compreender problemas, julgar aes etc. O que o filsofo mais teme, desde Parmnides, pegar a "via da opinio" antes que a "vida da verdade". "Herrar e umano" eis a algo que o filsofo no gosta de ouvir a respeito dos humanos, uma vez que ele prprio humano.

Assim, a atividade filosfica sempre foi, desde seu incio, uma atividade ligada ao saber enquanto aquilo que deve evitar o erro e a iluso. Simples, no? Quase simples, mas nem tanto, pois aqui que a filosofia se divide e que todo um rol de problemas se colocam.

Descartes nos ensinou nas Meditaes a no confundir o erro psicolgico com a iluso metafsica. A iluso metafsica ele trata nas trs primeiras meditaes, o erro psicolgico ele trata na quarta meditao. Essa distino foi a que colocou Scrates e as "escolas socrticas" do helenismo tardio de um lado, e Plato e o platonismo de outro.

Plato descreveu de modo alegrico a iluso metafsica por meio da Alegoria da Caverna. Scrates buscou sanar o erro comum seguindo sua mxima "uma vida no examinada no vale a pena ser vivida". Vamos a ambas.

A Alegoria da Caverna no deve ser tomada como alguma coisa que descreve uma situao aplicada a qualquer um: um grupo viveria na iluso e, ento, teria de sair dela e encontrar a realidade. Nada disso. A caverna a nossa vida mesmo. No vamos sair dela no enquanto estivermos vivos. Quem saiu foi o filsofo s ele. Mas em parte. Saiu pelo intelecto, no "de corpo e alma". E ser filsofo no para qualquer um. Tanto que Plato faz do filsofo um candidato srio a rei e ao rei obriga a filosofia. Isso no deve ser visto como um elitismo. Pode at ser, mas no tem de ser lido exclusivamente por esse lado, poltico e social, digamos assim. Isso tudo tem de ser entendido da seguinte forma: no samos da Caverna por que ali no estamos cometendo um erro psicolgico, que poderia ser sanado pela instruo ou por um aviso ou informao, mas estamos envoltos em uma iluso que, ela prpria, faz parte da estrutura da vida em que estamos faz parte da existncia. No estamos em um erro na Caverna, estamos vivendo numa Caverna. Em outras palavras: a Matrix um exemplo de Caverna mais apropriado, em que se sabemos ou no da iluso, nada muda.

Agora, com Scrates a questo diferente. Ele foi nomeado pelo Orculo de Delfos como o ateniense mais sbio, e ento ele passou a investigar sua vida de modo a contestar o Orculo, para tentar, pela negativa, ver o que a pitonisa teria realmente dito com aquela conversa de que no havia ningum mais sbio que ele, Scrates. Ele foi exercer o "conhece-te a ti mesmo". E para tal, no entrou em nenhuma atividade de introspeco. Fez o que era o de bom senso para um grego antigo: investigou seus concidados a respeito do que diziam saber. Ao que se denominava corajoso perguntou o que a coragem e ao que se denominava devoto perguntou o que a devoo. E fez assim, lanou perguntas do tipo "o que F?" Queria conceitos ou, melhor dizendo, definies. Pois Scrates entendia que no se poderia de fato afirmar ser corajoso se no se sabia o que era a coragem. E mais: Scrates no acreditava que algum poderia errar por outra coisa que no a falta de conhecimento autntico. Evitar o erro era, antes de tudo, ter nas mos algum saber e, ento, poder responder sobre a natureza do que estava envolvido em questes do tipo "O que F?".

Scrates acreditava piamente que ele poderia encontrar respostas. Caso algum as tivesse, poderia ento escapar do erro. Teria sido informado. Com melhor capacidade intelectual a partir da informao, sua formao melhoraria. Conduziria sua vida de modo a errar menos. Teria uma vida sbia e, portanto, virtuosa saber e virtude se igualavam para Scrates. Virtude conhecimento endossou ele.

Mas esse no foi o caso de Plato. Este, por sua vez, se cansou de ver Scrates gastar uma vida toda e no encontrar nenhuma resposta. Ento, passou a imaginar que a questo no era a do erro psicolgico, do erro que fruto do no saber e do equvoco. Passou a achar que o erro era um tipo especial de iluso, e que, em princpio, no poderia ser sanado, pois era inerente prpria estrutura da vida, do mundo. Assim, o mundo no nos diria alguma coisa sobre o "caminho da verdade", mas j conteria o "caminho da verdade" e tambm, conjuntamente, o "caminho da opinio". O vivido existente comportaria a prpria iluso como real. a Caverna. ali que vivemos enfatizou Plato.

Caso voc se entenda na Caverna, no passar a achar que as sombras que v so apenas sombras por algum ter lhe contado ou, mesmo, por ter pensado sobre o assunto. Mesmo o filsofo, que quem sai da Caverna, uma vez dentro da Caverna pela segunda vez no conseguir desmascarar a situao. Pois a prpria estrutura da Caverna que funciona daquele modo ele teria de destruir a Caverna para tal. Mas isso significaria arruinar a existncia.

A atividade de Plato proliferou no mbito filosfico. Criou a filosofia como uma investigao metafsica e epistemolgica. Outros tentaram reestruturar a teoria da iluso metafsica, como Kant, que a tornou necessria a partir das "idias da razo" Deus, Mundo, etc. Ou como Marx, que a tornou estruturalmente ligada sociedade capitalista de mercado, pelo fetichismo e pela reificao a ideologia.

Em nossos dias a exemplo do que ocorreu com os medievais , desenvolvemos essa atividade como uma atividade de investigao da linguagem. Hoje em dia, pragmatistas e anti-representacionistas disputam terreno com realistas e representacionistas sobre temas que envolvem filosofia da linguagem, mas que so, no raro, investigaes da metafsica e da epistemologia. Muito da filosofia acadmica se faz no mbito do rol de questes que envolvem as teorias semnticas e disputas entre realismo e no realismo. A filosofia acadmica (talvez no caso da filosofia, o nome Academia tenha mais histria para contar do que em outras reas) se tornou uma rea tcnica, antes de professores especialistas do que de "grandes filsofos". Mesmo a rea moral, que era o campo de Scrates, ao se transformar no campo da tica passou a ser assim vista. Mas, isso no significa que a filosofia tenha se resumido a isso.

H ainda filsofos que seguem a atividade de se livrar de erros, e no do muito crdito para a conversa sobre a Caverna ou sobre questes que nos levariam a achar, parmenedianamente, que temos na estrutura do vivido o "caminho da verdade" e o "caminho da opinio" conjuntamente. Esses filsofos, no raro, so aqueles filsofos que at podem levar adiante a atividade tcnica, platnica, mas que esto preocupados tambm em entrar no debate sobre temas mundanos problemas das indstrias, de administrao, de sexo, bebida, drogas, amor, guerra, dinheiro, inflao, governabilidade, bondade, histrias em quadrinhos, internet, TV, glndulas mamrias, HIV, loterias, comunismo etc. Eles querem se informar e querem informar outros. Acham que a informao traz formao e conhecimento autntico, e conhecimento virtude. So socrticos.

3. A Clnica que no hA atividade da clnica em filosofia, uma vez ligada s revistas que querem dar saberes para alguns viverem melhor, est articulada a um pouco de orientalismo que poderamos encontrar na atividade de Scrates, antes que da de Plato. Talvez essa modinha de "filosofia para a felicidade" seja um restinho de orientalismo dos anos sessenta, um cheiro de vovs que viveram no tempo dos hippies e que contam (mentirosamente) que participaram do "Maio de 68". Elas teriam feito melhor caso tivessem comprado um calendrio da Seicho No Ie. Mas, infelizmente, abriram "casas do saber". E h professores de filosofia nisso! Para professor, antes que para filsofo, emprego emprego. H muito essa gente confundiu work com job.

Todavia, todo cuidado aqui, nessa crtica, pouco. A filosofia como um saber eminentemente prtico algo do Oriente, certamente. Mas, no caso de Scrates, a atividade prtica , ainda, uma atividade investigativa. Nisso reside seu ocidentalismo. Scrates no colocou a razo prtica sobre a razo terica. Alis, ele no participou dessa diviso kantiana. Ele se manteve na idia de que virtude conhecimento, e que o saber leva a agir de modo mais correto. Assim, a "vida examinada" que "merece ser vivida" no uma vida que deveria passar no exame moral, uma vida que precisaria passar em um exame moral que , antes de tudo, um contnuo exame intelectual.

Aqui as coisas ficam facilitadas para a idia de filosofia clnica. Seria correto imaginar uma "filosofia clnica" no como resultado de uma "formao acadmica", um "cursinho" ou um "curso de especializao", e sim como uma possibilidade a partir de uma via socrtica. Nesse caso, ento, sairamos do puro charlatanismo que existe no Brasil com o nome de "filosofia clnica" e voltaramos para uma autntica filosofia. Ora, teramos, ento, a prpria filosofia em uma de suas vertentes, e no precisaramos adjetivar o nome filosofia. Mas, a essa altura do campeonato, besteira pensar nessa possibilidade, pois o equvoco j dominou o territrio nacional.

A adjetivao do nome filosofia com o termo clnica um sinal que diz muito: o "clnico" aparece na frente do nome "filsofo" exatamente como um tiro pela culatra. Ele termina por revelar a verdade que no deveria aparecer: eis algum que no filsofo, filsofo clnico. Como o termo "filsofo" j inclui as possibilidades da clnica, levada seriamente (socraticamente), quando o termo "clnico" aparece como predicado est a a revelao de que no estamos diante de um filsofo. O filsofo clnico no mais que o filsofo, ele menos. Assim era com "filsofo da educao" no passado. Assim aparece, de vez em quando, com "filsofo de crianas". Em todos esses casos o predicado mostra que no se est diante de um filsofo, e sim de algum que gostaria de ser filsofo, mas no conseguiu.

O filsofo filsofo. No mundo atual ele aquele que se d bem com os problemas tcnicos e, tambm, com as questes de informao. Ele uma unio entre Scrates e Plato. Ora, o prprio Plato literato era assim, e ao pegarmos sua obra completa podemos ver com tranqilidade um pensador que revela essa unio. Assim, foram filsofos Sartre, Pedro Abelardo, Dewey, Rorty, Santo Agostinho, Habermas e Derrida. Poderia citar outros, mas exemplos j mostram como age um filsofo autntico, aquele que capaz de ser platnico e socrtico quase ao mesmo tempo.

Paulo Ghiraldelli Jr. "O filsofo da cidade de So Paulo".Texto em favor dos programas 1 e 2 do Fil das 11 como "curso introdutrio de filosofia" na TV Filosofia: www.mogulus.com/filosofia

Ver sobre Chico Cincia http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1403