producao textual de alunos surdos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR FACULDADE DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO BRASILEIRA
LIGIANE DE CASTRO LOPES
A PRODUO TEXTUAL DE ALUNOS SURDOS SOB A MEDIAO DE SOFTWARES EDUCATIVOS
Fortaleza - 2006
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LIGIANE DE CASTRO LOPES
A PRODUO TEXTUAL DE ALUNOS SURDOS SOB A MEDIAO DE SOFTWARES EDUCATIVOS
Dissertao apresentada Coordenao do Curso de Mestrado em Educao da Universidade Federal do Cear, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre.
ORIENTADORA: Prof. Dr. Vanda Magalhes Leito
Fortaleza - 2006
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LIGIANE DE CASTRO LOPES A PRODUO TEXTUAL DE ALUNOS SURDOS SOB A MEDIAO DE SOFTWARES EDUCATIVOS
Dissertao apresentada Coordenao do Curso de Mestrado em Educao da Universidade Federal do Cear, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre.
BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________ Prof. Dr. Rita de Cssia Barbosa Paiva Magalhes - Universidade Estadual do Cear _____________________________________________________________ Prof. Dr. Ana Clia Clementino Moura - Universidade Federal do Cear ______________________________________________________________ Prof. Dr. Vanda Magalhes Leito - Universidade Federal do Cear Presidente
Defendida em 19/09/2006
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A todos os professores que dedicam seu conhecimento educao de alunos surdos, em especial, queles que sabem valorizar o potencial de seus alunos e que no economizam esforos para promover seu aprendizado.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, que me deu o dom da vida, luz para realizar as escolhas certas e fora para
enfrentar os desafios.
abenoada famlia: Socorro, Adriansio, Suzany e Karol, em especial, minha me,
que com sua dedicao garantiu as condies necessrias para a realizao deste trabalho.
Faculdade de Educao da Universidade Federal do Cear e CAPES, pelo apoio
institucional e financeiro.
escola lcus desta pesquisa, que, graas solicitude de seu ncleo gestor, no
receou em abrir suas portas.
Ao Wagner e Charlene, por terem me acolhido e, depois, se tornado meus
parceiros nesta pesquisa.
professora Vanda, que com sua serenidade, compreenso e sabedoria soube os
momentos certos de regar e ver amadurecer os frutos deste trabalho.
Aos professores Ana Karina, Ana Clia, ngela Souza, Emlia e Tadeu, que com
saberes especficos me ajudaram a tratar de forma interdisciplinar o objeto de estudo.
Andreza, Margarida, ao trio inseparvel Kellynia, Irene e Josenira e a todos os
amigos que acreditaram e torceram por mim.
Tnia e ao Robson, pelo auxlio na interpretao da Lngua de Sinais.
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RESUMO
O processo de leitura e escrita vivenciado pelos alunos surdos envolve o
conhecimento de duas lnguas distintas: a Lngua de Sinais e a Lngua Portuguesa. As
diferenas entre essas lnguas e a ausncia de experincias significativas com a escrita na
escola so variveis que podem tornar o aprendizado da leitura e da escrita um processo
difcil para estes alunos. Ademais, muitos de seus textos so mal interpretados em funo
das especificidades que apresentam. Neste trabalho, objetivo analisar a escrita de dois
surdos adultos, o que me motivou a pensar em atividades que fossem direcionadas
produo textual e que, ao mesmo tempo, pudessem ser motivadoras para os sujeitos da
pesquisa. Com este intuito, utilizo o suporte do computador e da imagem. A anlise dos
textos foi realizada com base nos seguintes parmetros: a estrutura narrativa dos textos e o
uso de recursos coesivos como os conectivos e a referenciao. Como resultado, verifiquei
que os textos dos sujeitos se diferenciavam um do outro, o que relaciono ao fato de eles
terem vivenciado, ao longo de suas vidas, experincias diferentes com a Lngua de Sinais e
com a Lngua Portuguesa. Alm disso, percebi que, mesmo com as dificuldades que os
sujeitos apresentavam na Lngua Portuguesa, seus textos reuniam vrios elementos
caractersticos dessa lngua, tais como: a presena de conectores (preposies, conjunes)
e da referenciao, que contribuem para a coeso textual.
Palavras chave: surdez, Lngua de Sinais, Lngua Portuguesa, produo textual, computador, imagem.
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ABSTRACT
The reading and writing process experienced by deaf students involves knowledge
in two different languages: Sign Language and Portuguese. The differences between these
languages and the lack of significant experiences with writing at school are variables which
can make the reading and writing learning a hard process to those students. Besides most of
their texts are misinterpreted because of the specifications they present. In this work, I aim
to analyze the writing of two deaf adults, what motivated me to think about activities that
were directed to textual production and, at the same time, could be motivating to the
subjects of the research. With this intention, I used computer and image as supports. The
analysis of the texts was carried out based in the following parameters: the narrative
structure of the texts and the use of cohesive devices as connectives and reference. As
results, I verified that there were differences among the texts of the subjects what I related
to the fact that, throughout their lives, they went through different experiences with Sign
Language and with Portuguese. Moreover I realized that, even with the difficulties the
subjects presented in Portuguese, their texts brought together several characteristic
elements of that language such as: the presence of connectives (prepositions, conjunctions)
and reference which contribute to textual cohesion.
Key-words: deafness, Sign Language, Portuguese, textual production, computer, image.
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SUMRIO Pginas
1 INTRODUO..................................................................................................................9 2 PERCURSO INVESTIGATIVO ...................................................................................24 2.1 Campo de pesquisa e procedimentos metodolgicos.....................................................24 2.2 Charlene e Wagner, prazer em conhec-los...................................................................32 2.2.1 Charlene......................................................................................................................32 2.2.2 Wagner........................................................................................................................36 3 LNGUA DE SINAIS MAIS LNGUA PORTUGUESA IGUAL LNGUA ESCRITA. ISTO MESMO? ....................................................41 3.1 Lngua de Sinais: o ponto de partida ..............................................................................41 3.2 Surdez e letramento.........................................................................................................52 3.3 Construo de sentidos no texto escrito - relaes entre sinais e escrita........................60 3.4 Escrita do aluno surdo como aprendizagem de uma segunda lngua..............................67
4COMPUTADOR E IMAGEM COMO SUPORTE DO TEXTO ESCRITO.............................................................................................................................78 4.1 Visualidade, imagem e escrita para o aluno surdo .........................................................78 4.2 Mediao do computador na construo da escrita do aluno surdo................................84 5ANLISE DAS NARRATIVAS ESCRITAS DE WAGNER E CHARLENE........................................................................................................................98 5.1 Estrutura da Narrativa.....................................................................................................98 5.2 Recursos Coesivos .......................................................................................................100 5.3 Narrativas de Charlene..................................................................................................103 5.4 Narrativas de Wagner....................................................................................................126 6 CONSIDERAES FINAIS........................................................................................142 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...........................................................................146 ANEXOS ...........................................................................................................................150
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1 INTRODUO
O envolvimento e a escolha do tema deste trabalho devem-se ao convvio
estabelecido com a comunidade surda h seis anos, atravs da pastoral dos surdos, espao
em que atuo como intrprete da Lngua de Sinais1. Foi graas a essa experincia que pude
me aproximar e conhecer o universo da pessoa surda, no que se refere sua cultura e sua
linguagem.
No perodo em que ingressei nessa pastoral, j era estudante do curso de Pedagogia
da Universidade Federal do Cear, e logo cogitei na possibilidade de enveredar pelo
caminho da educao especial por esta contemplar os alunos surdos. Nesse perodo, era
tambm bolsista do Programa Especial de Treinamento (PET)2, um dos marcos mais
relevantes na minha vida acadmica, uma vez que foi nesse grupo, no convvio com colegas
estudantes e professores orientadores, que pude descobrir os desafios e possibilidades
envolvidos na prtica da pesquisa. Naquele tempo, o grupo tinha como linha de pesquisa a
rea da Informtica Educativa, em torno da qual a maioria das atividades se concentrava.
Por esta razo, no foi ainda naquele momento que pude me dedicar aos estudos na rea de
educao de surdos. O desejo de investigar o contexto educacional em que os alunos surdos
se encontravam, o acompanhamento pedaggico que lhes era destinado, e como eles
respondiam a tudo isso permanecia latente em mim e era s parcialmente satisfeito atravs
da minha participao em seminrios e outras experincias relacionadas surdez. Como,
porm, muitos fatos que acontecem na vida s futuramente nos revelam seu principal
1 Autores como Quadros (1997), Sacks (1998) e Bellugi e Klima (1979) apud Almeida (2000) definem a Lngua de Sinais como uma lngua natural adquirida de forma espontnea pelos surdos em contato com outras pessoas que usam essa lngua. Diferente das lnguas faladas que utilizam o canal auditivo e apresentam uma estrutura de organizao linear, a Lngua de Sinais visual e tem uma gramtica espacial. Essa diferena faz com que os surdos tenham padres visuais de pensamento, concebendo o mundo e os objetos fsicos, situando-os sempre espacialmente. Seu sistema de representao caracterizado por parmetros formacionais como a configurao das mos, o movimento das mos, dedos, pulsos, braos, o local de articulao que regidos por regras estabelecem o modo como esses elementos so combinados para expressar diferentes significados. A Lngua de Sinais no universal como muitos pensam. Cada pas apresenta uma Lngua de Sinais prpria. No Brasil, por exemplo, os surdos utilizam a lngua brasileira de sinais (LIBRAS), j nos Estados Unidos, se utiliza a Lngua de Sinais americana (ASL). 2 Atualmente denominado Programa de Educao Tutorial, gerenciado no mbito da Secretaria de Ensino Superior e Ministrio da Educao - SESu/MEC. Atua em diferentes universidades e faculdades do Pas, por meio de atividades de ensino, pesquisa e extenso nos mais variados campos do conhecimento. A equipe de trabalho composta por alunos da graduao e professores tutores.
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sentido, a informtica educativa ainda viria se tornar uma forte aliada na construo do meu
real objeto de investigao. Foi especificamente no ano de 2002, quando participei de um
congresso3 que teve como tema central o papel das novas tecnologias na educao especial,
que despertei para a idia de desenvolver uma pesquisa na qual a informtica educativa
pudesse ser aplicada educao de surdos.
Alm desse evento, outras experincias ajudaram-me na construo do objeto de
pesquisa, uma vez que me aproximaram da realidade educacional dos alunos surdos. Uma
delas se deu em 2003, quando tive a oportunidade de visitar uma escola especial para
surdos e da refletir sobre vrias questes relativas sua escolarizao e, em particular, ao
contexto daquela escola4. Ao relembrar, por exemplo, as conversas que tive na poca com
as professoras, vejo como as dificuldades percebidas na aprendizagem daqueles alunos
eram comumente atribudas a eles prprios, sua condio de surdez, falta de
acompanhamento das atividades escolares em casa e, jamais relacionadas ao modo, ao
mtodo e lngua utilizados no ensino dos contedos. As professoras lamentavam de
maneira conformada as dificuldades que muitos dos seus alunos tinham em relembrar e
relatar para elas pesquisas outrora realizadas. Outras dificuldades que, segundo as
professoras, os alunos apresentavam consistiam em: no interpretar os textos, mesmo
aqueles que eram escritos por eles, no conseguir elaborar frases seqencialmente coesas, e
no conseguir responder a questionrios. Ao relatar essas dificuldades dos seus alunos, as
professoras no cogitavam em nenhum fator que pudesse reverter tal situao, que, a meu
ver, poderia resultar da reflexo e da mudana sobre a prtica pedaggica. A nica
considerao que uma das professoras fez mais relacionada metodologia de ensino foi a
respeito da importncia do apoio visual e da manipulao de materiais concretos para tornar
mais significativa a compreenso do aluno surdo. Porm, naquele contexto, pareceu-me que
os recursos concretos eram tomados como um meio para os alunos compreenderem as
noes abstratas, desconsiderando que a Lngua de Sinais por si s j um instrumento
capaz de levar o surdo a alcanar as formas de pensamento mais abstratas. Alis, a
3 III Congresso Iberoamericano de Informtica na Educao Especial, realizado em Fortaleza, no perodo de 20 a 23 de agosto de 2002. 4 Esta experincia foi resultado do trabalho final da disciplina de Psicopedagogia que optei por desenvolver em uma escola para surdos. Nela observei uma turma de alunos na 4 srie do Ensino Fundamental, nas aulas de Portugus e Matemtica, alm de entrevistar as duas professoras que lecionavam essas disciplinas sobre o rendimento dos alunos.
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explicao para o fato de todos os comentrios terem enfatizado as limitaes dos alunos,
enquanto experincias positivas no terem chegado nem a ser mencionadas, pode estar
relacionada no centralidade da Lngua de Sinais no processo de ensino e aprendizagem,
bem como ao conhecimento pouco aprofundado acerca das especificidades lingsticas e
cognitivas dos alunos e suas implicaes para que estes aprendam.
A experincia acima relatada me deu subsdios para compreender e refletir melhor
sobre algumas questes inerentes ao contexto educacional de alunos surdos. Dentre elas,
me chamaram mais ateno as dificuldades, to enfatizadas pelas professoras, em lidar com
a Lngua Portuguesa. Certamente, esta realidade era vivenciada no somente por aqueles
alunos, mas tambm por outros surdos.
Depois que terminei a graduao, tive a oportunidade de trabalhar em uma escola da
rede pblica estadual5 que oferece ensino regular para alunos surdos. Enquanto na
experincia anterior pude conhecer um pouco da realidade de uma escola especial, desta
vez, estava imersa em um contexto diferente, que realizava experincias inclusivas. No
primeiro caso, embora todos os alunos fossem surdos e a escola apresentasse condies
para atender exclusivamente essa especificidade, ainda assim, o aprendizado e as
interaes com as professoras estavam aqum do esperado. Pude perceber ento que no
era o fato de a escola ser especial ou mista o que assegurava o aprendizado do aluno surdo,
mas o papel que a Lngua de Sinais ocupava na escolarizao desses sujeitos. Na segunda
escola, o convvio entre alunos surdos e ouvintes contribua para que as diferenas
lingsticas e culturais de ambos se confrontassem, no dia-a-dia da sala de aula regular. Na
primeira instituio, isso no acontecia, j que todos os alunos eram surdos e se
identificavam de alguma forma.
Os contedos didticos tambm eram transmitidos diferentemente nas duas escolas,
mas em ambas apresentavam limitaes aos alunos, tornando sua aprendizagem plena de
percalos. Na primeira escola, as professoras ensinavam as matrias escolares utilizando
simultaneamente os sinais e a fala. Esta situao, ao ferir a estrutura da Lngua de Sinais e
da Lngua Portuguesa, limitava tambm a compreenso do aluno. Mas um aspecto positivo
5 Trabalhei nesta escola durante trs meses, em um projeto de arte-educao que contemplava alunos surdos, alunos com deficincia mental e alunos que apresentavam dificuldades de aprendizagem. O projeto oferecia oficinas de dana, teatro, pintura, instrumentos musicais e coral, e como nelas havia a presena de surdos, eu e outros intrpretes fazamos a interpretao e os acompanhvamos nessas oficinas.
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nesta instituio era que as professoras podiam dedicar sua ateno a um grupo pequeno e
relativamente homogneo de alunos, ensinando e dialogando com eles de maneira direta,
sem intermedirios.
J na segunda escola, a dinmica era outra, e envolvia o professor, o intrprete da
Lngua de Sinais e os alunos (surdos e ouvintes). Os ouvintes estavam em uma situao
privilegiada, uma vez que falavam a mesma lngua do professor atravs da qual os
contedos lhes eram apresentados. Mas o que dizer dos surdos cuja apreenso dos
contedos escolares dependia ainda de um processo de interpretao/traduo6 entre a
lngua do professor (Lngua Portuguesa oral) e a sua prpria lngua (a Lngua de Sinais)?
Seria possvel preservar a essncia dos contedos, sem causar nenhum prejuzo sua
aprendizagem? E o professor conseguiria dedicar a mesma ateno a todos os seus alunos?
Prticas como essas, de adotar a Lngua de Sinais como via para a transmisso dos
conhecimentos e inserir o intrprete na sala de aula para fazer a mediao lingstica,
contribuem para aumentar o status dessa lngua e as interaes entre alunos e professor, no
entanto, no tocante ao processo de aprendizagem, nem sempre produzem mudanas
significativas. Uma explicao para este impasse pode decorrer de falhas na interpretao.
O domnio da Lngua de Sinais aliado a uma boa tcnica de interpretao e ao
conhecimento do assunto do qual se est falando so essenciais para uma apresentao fiel
dos contedos. Quando uma dessas trs condies falta, algumas dificuldades podem
sobrevir comprometendo o aprendizado dos alunos. O intrprete que faz a traduo de todas
as matrias, por exemplo, necessitaria conhec-las razoavelmente, independente da sua rea
de formao, a fim de empregar o vocabulrio adequado, tornar a interpretao fluida e
contextualizada, sem lacunas ou cortes na comunicao.
vlido enfatizar que experincias como as que relatei at o momento foram de
suma importncia, medida que me elucidaram algumas situaes vivenciadas por alunos
surdos no meio escolar. Em contrapartida, deixaram-me bastante preocupada e curiosa com
relao s experincias de ensino e aprendizagem que vm sendo ofertadas a esses alunos. 6 Interpretao e traduo so dois processos distintos, mas complementares. Enquanto o primeiro se refere a lnguas orais (incluindo a Lngua de Sinais cuja oralidade se expressa atravs dos sinais), a traduo acontece de uma lngua oral para uma lngua escrita ou entre duas lnguas escritas diferentes. Um exemplo para o primeiro caso seria a interpretao da Lngua Portuguesa oral para a Lngua de Sinais ou vice-versa. J no segundo, poderamos ter: a traduo da Lngua de Sinais para a Lngua Portuguesa escrita, da escrita da Lngua de Sinais para a escrita da Lngua Portuguesa etc. Todavia, o termo traduo mais amplo e mais comumente empregado.
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Alm disso, a realidade de uma grande maioria que encontra dificuldades tanto em
compreender a lngua escrita, quanto em utiliz-la efetivamente no desempenho de
atividades rotineiras que a exigem s refora o pensamento de que a escola, seja especial
ou inclusiva, no encontrou ainda uma maneira eficaz de ensin-la aos surdos.
de cincia geral que esses alunos apresentam defasagens escolares principalmente
no domnio da leitura e da escrita. Na literatura especializada, h a suposio de que estas
defasagens devem-se, em parte, ao modo como a educao dos surdos foi historicamente
delineada, marcada por prticas oralistas apoiadas na Lngua Portuguesa, sendo a lngua
prpria dos surdos desconsiderada e desqualificada. Por muito tempo, questes
relacionadas cultura e linguagem da pessoa surda foram colocadas em segundo plano,
ou ento descartadas, deixando de atender s necessidades educacionais e acarretando
atraso em sua escolaridade. Assim aconteceu com a proposta oralista e com o bimodalismo,
que logo em seguida sero caracterizados.
A proposta oralista foi uma das primeiras metodologias adotadas na educao de
surdos. De acordo com Soares (1999), seu objetivo principal consistia no desenvolvimento
da compreenso e da emisso da linguagem oral. Para tanto, o ensino centrava-se em
atividades que exploravam a percepo auditiva, aproveitando os resqucios auditivos dos
alunos, exerccios de respirao voltados para a emisso dos fonemas e o treinamento da
fala, e leitura labial. Esse trabalho era desenvolvido de forma individualizada e durante o
tempo que fosse necessrio para o aluno aprender a linguagem oral. Acreditava-se que
somente dessa maneira o surdo teria as mesmas condies das outras pessoas, o que lhe
permitiria se integrar sociedade. Tanto investimento e dedicao ao aprendizado da lngua
oral deixava em ltimo plano os contedos escolares e tantos outros necessrios formao
para a cidadania; todos estavam condicionados aquisio primeira da fala.
Atualmente, temos a convico de que o oralismo acarretou mais prejuzos do que
benefcios na educao dos surdos, haja vista que na obstinao de faz-los falar,
desperdiou-se muito do tempo em que esses alunos poderiam estar vivenciando a Lngua
de Sinais e o aprendizado de outros conhecimentos. Entretanto, na dcada de 50, como nos
relata Soares (1999), essa abordagem entusiasmava muitos profissionais e pesquisadores,
que encontravam nela um caminho promissor para a escolarizao e a integrao social das
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pessoas surdas. Agora, sabemos que estas necessitam justamente do inverso: adquirir
primeiramente a Lngua de Sinais para, a partir dela, ter acesso aos demais conhecimentos.
Vrios estudiosos na rea da surdez, entre eles Goldfeld (1997) e Sacks (1998),
enfatizam que a linguagem oral, por si s, no suficiente para garantir o desenvolvimento
das funes cognitivas da pessoa surda. Em primeiro lugar, sua principal forma de acesso
o canal auditivo, que na pessoa surda est comprometido. Por esta mesma razo,
necessrio submet-la a um longo e intensivo atendimento fonoaudiolgico, ou no caso da
modalidade escrita, esta dever ser ensinada de maneira formal e sistemtica, o que tambm
demanda tempo e dedicao. Nenhuma dessas situaes se compara aquisio espontnea
de uma lngua como acontece com a Lngua de Sinais, quando a criana surda tem
oportunidade de interagir com outras pessoas usurias da mesma lngua. As interaes
mediadas pela lngua oral so, assim, mais artificiais e pontuais, e no trazem ganhos to
significativos quanto aqueles oportunizados pela Lngua de Sinais.
Segundo Goldfeld (1997), a Lngua de Sinais possibilita criana surda o
estabelecimento de dilogos significativos com o mundo ao seu redor, e, dessa maneira, a
internalizao de valores e elementos de sua cultura, a construo de sua identidade e a
aquisio de conceitos cientficos. Alm disso, desempenha um papel essencial na
mediao das funes mentais superiores, entre elas a ateno, a memria, a anlise e
sntese, a abstrao, a deduo, e a auto-anlise, podendo sua privao acarretar atraso de
linguagem e srios danos cognitivos. Nenhuma dessas capacidades conquistada de
maneira sbita, mas elas resultam de interaes lingsticas contnuas que vo se
complexificando, a ampliar as formas de pensamento e de expresso da linguagem.
Outra prtica adotada na educao de surdos foi o bimodalismo, uma das vertentes
da abordagem da comunicao total. Esta prtica sustentada por concepes de que o
mais importante o aluno conseguir se comunicar, e de que diferentes recursos expressivos
podem ser utilizados para a consecuo deste objetivo. Portanto, no interessa o meio
utilizado pelo aluno e pelo professor, mas sim o contedo que eles tm a comunicar.
Botelho (2005) nos chama a ateno de que comum, ainda nos dias de hoje, se confundir
o bimodalismo com o bilingismo, porque ambos envolvem duas lnguas. A confuso
tamanha que escolas que se pretendem bilnges esto, na verdade, apoiadas na prtica
bimodal. No entanto, preciso salientar que essas prticas sustentam concepes diferentes
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sobre a pessoa surda e sua escolarizao. A educao bilnge, por exemplo, prope a
instruo e o uso em separado da Lngua de Sinais e do Portugus, que o idioma do pas,
de modo a evitar deformaes por uso simultneo (BOTELHO, 2005). Na prtica bimodal,
acontece exatamente o contrrio: os sinais e a fala so empregados, simultaneamente,
obedecendo-se a ordem sinttica da Lngua Portuguesa. Algumas crticas feitas a este
mtodo afirmam que ele traz incompreenso para o aluno surdo, pois o professor
sinalizando e vocalizando ao mesmo tempo no consegue, muitas vezes, coordenar estes
dois canais; conseqentemente, a comunicao no adquire fluidez, transparncia. Alm do
mais, no possvel transliterar uma lngua falada para a Lngua de Sinais palavra por
palavra ou frase por frase, pois as estruturas das lnguas so diferentes (SACKS, 1998).
Apesar de no conceder Lngua de Sinais o status que lhe devido e insistir em
reduzi-la estrutura da Lngua Portuguesa, ainda assim podemos considerar que o
bimodalismo representou um passo frente do oralismo, haja vista que a lngua oral deixou
de ser vista com exclusividade para dar espao aos sinais. bem verdade que eles se
apresentavam de maneira muito tmida, condicionados estrutura de uma lngua diferente,
mas, provavelmente, o simples fato de inclu-los tornava a comunicao e o ensino mais
vivel para os alunos surdos.
Duffy apud Quadros (1997, p.24)7 mais contundente ao afirmar que essas prticas
carregavam a inteno de negar criana surda a oportunidade de desenvolver e utilizar
espontaneamente sua prpria linguagem, uma vez que, quando no lhe imposta a lngua
oral, ela se depara com sistemas artificiais da Lngua de Sinais, como o bimodalismo, que
no expressam nem a Lngua de Sinais nem o Portugus em sua totalidade. No diria que as
prticas do oralismo e do bimodalismo carregam em si tal inteno. Tampouco podemos
ignorar os equvocos e o atraso que ambas desencadearam na escolarizao de tantos
surdos. Devemos, sim, ao invs de tom-las isoladamente, analis-las dentro do contexto de
suas estruturas sociais que, lamentavelmente, sustentavam crenas equivocadas a respeito
das necessidades lingsticas e educacionais dos surdos, sendo incapazes de reconhecer que
a maioria deles desejava para si um destino bem diferente.
Diante do exposto, a proposta bilnge vem sendo atualmente apontada como o
caminho mais vivel para a educao de surdos, por sustentar que ambas as lnguas
7 DUFFY, J. T. Ten reasons for allowing deaf children exposure to american sign language. 1987.
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desempenham papis diferentes e importantes na vida dessas pessoas. Em suma, a Lngua
de Sinais concebida como a primeira lngua que deve ser assegurada criana surda,
desde cedo, para que esta tenha condies de se desenvolver plenamente nos mbitos
lingstico, cognitivo, cultural e emocional. A Lngua Portuguesa compreendida como
segunda lngua, devido necessidade das pessoas surdas interagirem com as pessoas no
usurias da Lngua de Sinais, que correspondem maioria da populao, e com as quais
esto em contato permanente. O aprendizado dessa lngua importante para a integrao do
surdo na sociedade, nos diferentes espaos que lhe convm, tais como famlia, trabalho,
escola, universidade etc.
Dessa maneira, os surdos esto situados em um contexto bilnge, que, por sua vez,
permeado por alguns fatores de ordem lingstica, cultural e educacional. So eles a
modalidade viso-espacial da Lngua de Sinais, que se diferencia da modalidade oral-
auditiva; a idade em que a pessoa surda adquire a Lngua de Sinais; o nvel das interaes
estabelecidas nessa lngua e na Lngua Portuguesa; e o trabalho que a escola realiza com
base na proposta bilnge. Comecemos pelo primeiro fator.
De acordo com Mason apud Almeida (2000, p.10)8, o bilingismo vivenciado pelas
pessoas surdas traz uma peculiaridade que o diferencia daquele vivenciado pelas pessoas
ouvintes. Estas, na sua maioria, experimentam o bilingismo unimodal que envolve duas
lnguas de uma mesma modalidade lingstica. O Portugus e o Ingls, por exemplo, so
lnguas diferentes quanto sua pronncia, lxico, sintaxe entre outros elementos, mas
ambas organizam-se atravs do canal oral-auditivo. J o surdo vivencia o bilingismo
bimodal, ou seja, duas lnguas diferentes que tambm se apresentam atravs de
modalidades distintas, como o caso da Lngua Portuguesa (modalidade oral- auditiva) e
Lngua de Sinais (modalidade viso-espacial)9. Mesmo apresentando-se em modalidades
distintas, as lnguas de sinais possuem o mesmo nvel de complexidade de outras lnguas
naturais como o Portugus, o Ingls, o Francs, o Espanhol etc, que possuem uma
gramtica interna e um sistema de convenes que lhe permitem organizar-se nos diferentes
8 MASON, DG. Acquisition and use of visual/gestural and aural/oral bilingualism: A phenomenological study on bilingualism and deafness (visual gestural bilingualism, language acquisition). Cambridge University, 269 pgs., 1990. 9 Para uma descrio aprofundada da estrutura gramatical da lngua brasileira de sinais, ver QUADROS, R. M de; KARNOPP, L. B. Lngua de Sinais brasileira: estudos lingsticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.
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nveis lingsticos (fonolgico, semntico, sinttico, morfolgico, pragmtico). O que as
diferencia o fato de suas relaes gramaticais serem estabelecidas no campo espacial,
recorrendo a movimentos manuais, faciais e corporais, atravs dos quais os sinais10 so
combinados para veicular inmeros significados e mensagens. O surdo utiliza naturalmente
o canal viso-espacial ao se comunicar na Lngua de Sinais, mas quando seu interlocutor no
domina esta lngua, e sim a Lngua Portuguesa, provavelmente ser difcil estabelecer uma
comunicao clara e fluida, porque esta lngua utiliza o canal oral-auditivo para o qual o
surdo no est biologicamente equipado. Em alguns casos, a pessoa surda tem um bom
nvel de oralizao e leitura labial, graas a uma estimulao precoce e extensiva. Embora
isto facilite a comunicao, deixa muito a desejar, quando fazemos a comparao com os
dilogos estabelecidos na Lngua de Sinais.
Dessa forma, o surdo experimenta uma condio bilnge bem especfica, porque
mesmo no tendo o domnio da Lngua Portuguesa, motivado a compreend-la e a utiliz-
la na maioria dos ambientes e situaes, haja vista estar em uma comunidade que a utiliza
como lngua oficial. Enquanto pessoas surdas e ouvintes no dispuserem de uma linguagem
em comum, que no faa uso do canal oral-auditivo, continuaro susceptveis a
desencontros lingsticos, recorrendo a estratgias as mais variadas no intuito de ameniz-
los.
A idade em que o surdo tem acesso Lngua de Sinais outro fator de extrema
importncia para o desenvolvimento de sua competncia lingstica e de sua identidade.
Quanto mais cedo a criana surda for exposta Lngua de Sinais, mais esta ser adquirida
de forma espontnea e gradativa. o que acontece com as crianas ouvintes que comeam
a interagir desde os primeiros anos de vida com a me e, graas a essas interaes, vo
construindo significados acerca do mundo e os fundamentos da gramtica da sua lngua. O
mesmo acontece com as crianas surdas que so filhas de pais surdos e que, portanto,
podem compartilhar uma linguagem em comum. Para estas, as interaes tambm se
tornam ricas, colocando em funcionamento as capacidades lingstico-comunicativas e
transmitindo-lhes os valores relativos identidade e cultura surda. J para as crianas
surdas filhas de pais ouvintes (90% dos casos), infelizmente a realidade outra. O fato de
os prprios pais no saberem a Lngua de Sinais priva a criana de muitas experincias
10 Itens lexicais equivalentes s palavras na Lngua Portuguesa.
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lingsticas e sociais, impedindo que ela desenvolva sua lngua e sua identidade. Mesmo
que a interao com pares ou adultos surdos acontea em etapas mais tardias, como na
adolescncia, e em ambientes extra-familiares, como na escola ou em associaes, o
desenvolvimento lingstico e cognitivo no ser o mesmo. O processo de socializao ser
mais limitado, pois o surdo no estar mais imerso em um processo comunicativo natural,
como ocorre no incio da infncia e quando se tem disposio um instrumento lingstico
em comum com os pais (SKLIAR et al, 1995). Por esta razo, o modelo bilnge de
educao de surdos aquele que mais se adequa s suas necessidades, pois sustenta que o
acesso Lngua de Sinais se d no tempo e na intensidade necessrios ao pleno
desenvolvimento das capacidades lingsticas, cognitivas e afetivas da criana surda.
Alm disso, precisamos refletir que os surdos no constituem um grupo homogneo,
mas podem apresentar trajetrias de vida bem diversas uns dos outros. Perlin (2001)
categoriza diferentes identidades surdas, que esto intrinsecamente relacionadas ao espao
que a Lngua de Sinais e a Lngua Portuguesa ocupam na vida dos surdos, a configurar a
situao especfica de bilingismo que eles vivenciam. Podemos nos deparar com pessoas
surdas de uma forte identidade poltica e cultural, que tm domnio da Lngua de Sinais,
mas no conseguem empregar efetivamente a Lngua Portuguesa. Em um outro extremo,
temos aqueles surdos que perderam a audio depois de certa idade, no aprenderam a
Lngua de Sinais, ou tm pouco domnio dela, portanto, no se identificam como pessoas
surdas, preferem, ao contrrio, continuar dependentes da cultura e lngua oral. Existem
tambm aqueles casos em que ambas as lnguas so utilizadas, mas em nveis e situaes
diferentes, conseguindo o surdo transitar com tranqilidade entre as duas culturas. As
diferenas entre os surdos no param por aqui, mas as que foram at ento mencionadas so
suficientes para refletirmos que existem vrias formas de bilingismo e que os surdos no
utilizam as duas lnguas com o mesmo nvel de conhecimento e com a mesma intensidade.
A Lngua de Sinais utilizada principalmente nas relaes intragrupais, enquanto que a
Lngua Portuguesa mais explorada na escola vale lembrar que nem sempre atravs da
metodologia adequada. Mesmo que grande parte dos surdos no seja fluente nas duas
lnguas, ou ainda que haja resistncia para com alguma delas, ainda assim eles estaro
diante de duas culturas e duas lnguas: a sua prpria (no caso de alguns surdos, essa
identidade e essa lngua ainda est por revelar-se), e a cultura e lngua do pas em que
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vivem; estas, por sua vez, exercero grande influncia sobre a lngua e a cultura surda. Da
a necessidade de a escola desenvolver uma proposta que seja bilnge e bicultural, a fim de
promover o respeito s diferenas presentes em ambas as culturas, possibilitando ao surdo
identificar-se com a comunidade surda, ao mesmo tempo em que tem acesso comunidade
ouvinte.
Ao mencionar o papel da escola, chegamos ao terceiro e mais relevante fator: o
modelo de educao bilnge e suas implicaes para os alunos surdos. Segundo esse
modelo, a educao deve ser oferecida em escolas de surdos, a fim de que os alunos possam
efetivamente compartilhar uma lngua em comum, a Lngua de Sinais. Os contedos
escolares devem ser transmitidos atravs dessa lngua, que o instrumento pelo qual os
alunos vo buscar o suporte cognitivo e o sistema de referenciais necessrios para
compreend-los e assimil-los. A prpria Lngua de Sinais inserida no currculo como
disciplina em que o alunos estudam com mais profundidade a sua estrutura lingstica.
Ainda neste modelo, bastante valorizada a presena de adultos surdos que possam
transmitir aspectos relacionados cultura e lngua, contribuindo para a formao da
identidade dos alunos. Sua atuao, entretanto, no deve se limitar a esse aspecto; o ideal
que tambm possam ocupar postos de gesto, ensino e outros dentro da escola. A Lngua
Portuguesa dever ser aprendida na escola como segunda lngua atravs de metodologias
voltadas ao ensino de lngua estrangeira. Tambm nesta proposta, primordial que os
professores e demais funcionrios da escola saibam a Lngua de Sinais.
Skliar et al (1995) citam quatro objetivos bsicos que devem estar presentes nessa
proposta: a criao de um ambiente apropriado s formas particulares de processamento
cognitivo e comunicativo das crianas surdas; seu desenvolvimento scio-emocional,
baseado na identificao com adultos surdos; a possibilidade de estas crianas
desenvolverem sem presses uma teoria sobre o mundo que as rodeia; e o completo acesso
informao curricular e cultural. Concordo com as condies apontadas pelo autor, mas
reconheo a dificuldade de sua implementao, a comear pela garantia desse ambiente
propcio ao aprendizado do aluno. Ao meu ver, esta uma condio que s possvel com
todos os professores dominando a Lngua de Sinais e sendo capazes de viabilizar uma
comunicao efetiva com os alunos, bem como utiliz-la potencialmente no processo de
ensino-aprendizagem. Este ambiente para ser ainda mais propcio precisa contar com
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materiais pedaggicos como livros, vdeos, jogos e outras tecnologias voltadas para as
especificidades visuais, cognitivas e lingsticas dos alunos surdos. Os surdos devem ter
um papel bem definido e bem aproveitado na escola, no somente em momentos reservados
Lngua de Sinais e transmisso de valores scio-culturais, mas tambm podendo
contribuir no mbito de outras disciplinas. Importa referir que, para isto ser possvel,
necessrio que os prprios surdos e outras instncias como universidades e governo
invistam na sua formao em nvel de graduao. O acesso pleno informao curricular e
cultural talvez tenha sido a condio mais difcil de se atingir; o que deve levar ao
questionamento de se as escolas esto conseguindo oferecer aos seus alunos surdos uma
proposta, de fato, bilnge - bicultural e, o que mais importante, de qualidade. Pesquisas
como as de Chaves (2003)11 e Botelho (2005)12 nos oferecem algumas explicaes, pois
resgatam o que os alunos surdos pensam a respeito das experincias que lhes so oferecidas
nas escolas, entre elas especiais e mistas. Os alunos, de maneira geral, revelaram grande
insatisfao com as metodologias de ensino de ambas as escolas. No caso da escola
especial, a queixa era de que o contedo curricular era simplificado, reduzido, repetido; no
havia exigncia para progresso, o que causava uma permanncia longa na escola. Todo
esse quadro, na viso dos alunos, deixava a desejar, se comparado com a realidade dos
alunos ouvintes em outras escolas. O ponto forte neste tipo de escola era a interao
permitida entre alunos surdos e possibilidade de partilhar uma lngua comum. No que se
refere escola mista, os alunos consideravam os contedos escolares bastante complexos;
havia a exigncia de trabalhos de pesquisa, oferta variada de textos, atividades para casa.
Nem por esta razo os alunos surdos deixaram de confessar suas dificuldades em
acompanhar o ritmo em que os contedos eram ensinados pelos professores. Na viso
deles, o ideal era que tivessem acesso ao contedo curricular de forma plena, com todas as
exigncias necessrias e atravs de metodologias de ensino mais eficientes. O ensino
oferecido estava aqum das expectativas dos alunos, que tambm se consideravam em 11 Essa pesquisa foi resultado de uma dissertao de mestrado da qual participaram 16 alunos surdos que utilizavam a Lngua de Sinais; destes, metade tambm utilizava a lngua oral. As idades variavam entre 13 e 49 anos e o nvel de escolaridade abrangia alunos de 6 srie do Ensino Fundamental e aqueles egressos do Ensino Mdio em escola regular (mistas) ou escola especial. 12 Essa pesquisa tambm consistiu em uma dissertao de mestrado da qual participaram seis alunos surdos com diferentes graus de competncia na Lngua de Sinais, sendo que trs eram oralizados e trs no oralizados. As idades variavam entre 14 e 20 anos e o nvel de ensino compreendia da 7 srie do Ensino Fundamental ao 1 ano do Ensino Mdio. Todos eles tinham estudado tanto em escola especial quanto em escola mista.
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desvantagem com os estudantes ouvintes em termos acadmicos. Resultados como os
apresentados por esses estudos so fundamentais para a avaliao das metodologias de
ensino destinadas aos surdos, principalmente porque levam em considerao o que eles
pensam sobre tais mtodos e o seu grau de satisfao, o que j um indicador da validade
ou no dessas propostas.
Skliar et al (1995) tambm apontam algumas crticas nesta direo. Alertam para o
fato de que a opo pelo bilingismo no se pode resumir ao emprego da Lngua de Sinais
no currculo escolar e presena de surdos adultos nas aulas, pois estas condies, embora
necessrias, no so suficientes para garantir o sucesso da abordagem bilnge. O fracasso
dessa proposta pode ainda estar relacionado permanncia da concepo de surdez, prpria
da metodologia oralista, na atitude dos professores ouvintes, e falta de continuidade da
proposta, que se restringe educao bsica, e no considera sua progresso em contextos
escolares mais avanados como, por exemplo, a universidade. Para o autor supracitado,
uma profunda reflexo sobre o modelo pedaggico que se pretende bilnge, sobre a
ideologia da escola uma condio ainda mais necessria do que o investimento em
mudanas de ordem estrutural.
Devemos ento refletir que a proposta bilnge - bicultural representa,
indubitavelmente, uma grande conquista em relao s iniciativas anteriores do oralismo e
do bimodalismo. No podemos negar que a lngua e a cultura das pessoas surdas comeam
a ser vistas com um novo olhar: como diferena e no tanto como deficincia (embora
ainda hoje nos deparemos com resqucios dessa ltima), que era a viso predominante. No
devemos, entretanto, nos acomodar pelo fato de mudanas antes inconcebveis se tornarem
realidade; as recentes pesquisas sobre a escolarizao dos surdos e o prprio discurso destes
vm mostrar que ainda h um rduo caminho a ser trilhado na construo de uma educao
de qualidade para os surdos.
Tendo percorrido um pouco da trajetria educacional dos surdos, volto ao cerne do
problema que o que mais me inquieta: o processo de ensino da Lngua Portuguesa, salvo
raras excees, tem-se mostrado deficiente e ineficaz, haja vista que no conduz os alunos
surdos apropriao da leitura e da escrita e s possibilidades que estas lhes oferecem.
Mesmo assim, sem o devido conhecimento da Lngua Portuguesa, estes alunos buscam
interagir com o texto escrito, lanando mo das estratgias e dos conhecimentos de que
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dispem. No intuito de compreender como se d a relao entre o indivduo surdo e o texto
escrito e de delinear o objeto de investigao desse trabalho, fui motivada por algumas
indagaes: a primeira delas era saber como se caracteriza a escrita do aluno surdo, no
apenas seu produto final, mas o processo de elaborao dessa escrita. Em segundo lugar,
quais as principais dificuldades que estes alunos apresentam no momento de escrever e a
que variveis elas esto relacionadas. E, por ltimo, de que forma os professores poderiam
aproveitar o computador na elaborao de atividades voltadas ao ensino da Lngua
Portuguesa. Acredito que as respostas para essas questes no podem ser contempladas
atravs de uma nica perspectiva terica, porque assim compreenderei apenas uma das
facetas do meu objeto de pesquisa. Por esta razo, optei por construir um quadro terico no
qual teorias e os resultados de variadas pesquisas complementam-se e contribuem para uma
anlise mais sistmica e mais satisfatria do aluno surdo e de sua produo textual.
No segundo captulo, logo aps esta Introduo (que o primeiro), intitulado
Percurso investigativo, apresento toda a trajetria percorrida nesta dissertao desde a
aproximao com os sujeitos e o campo de pesquisa at a delimitao do objeto de
investigao. Em seguida, descrevo os procedimentos e instrumentos utilizados na coleta
dos dados. E, por ltimo, apresento ao leitor os sujeitos que fizeram parte desse estudo e
um pouco de suas histrias de vida.
O terceiro captulo, intitulado Lngua de Sinais mais Lngua Portuguesa igual
lngua escrita. isto mesmo? est dividido em quatro sees. Na primeira delas, recorro
anlise que Vygotsky (1993) faz da relao entre linguagem e pensamento, para refletir o
papel da Lngua de Sinais no desenvolvimento do pensamento da pessoa surda. Na segunda
seo, discuto o fenmeno do letramento: suas implicaes e peculiaridades para a pessoa
surda. Para tanto, me foram de grande valia os estudos de Matencio (1994) e de Soares
(2005), que abordam o assunto com muita propriedade, relacionando-o sempre ao contexto
scio-cultural e lingstico do indivduo. J as consideraes de Botelho (2005), Skliar
(2002), bem como as experincias vivenciadas pelos sujeitos de nossa pesquisa,
contriburam para situar a discusso na perspectiva da pessoa surda. Na terceira seo,
continuo a refletir sobre a interao entre o surdo e o texto escrito, entretanto, desta vez,
destaco a participao da Lngua de Sinais na construo de sentidos no texto escrito. Para
tanto, a definio que Koch (1997) traz sobre texto foi de grande valia, bem como os
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estudos de Almeida (2000), Lebedeff (2003), entre outros, do pistas de como tornar a
interao com o texto mais significativa para o aluno surdo. Na quarta seo, trato sobre o
aprendizado de segunda lngua, baseando-me na teoria de Brown (1994). Este um tema
pertinente ao contexto cultural e educacional dos surdos, alm do que se converte em uma
varivel que dificulta o processo de interao entre o surdo e o texto.
No quarto captulo, Computador e imagem como suporte do texto escrito, apresento
e discuto algumas pesquisas (KLIMICK e BETTOCCHI, 2003; GESUELI, 2004 e outras)
que vm comprovando as contribuies do computador para despertar a ateno e
motivao dos alunos surdos nas atividades escolares, em funo de todos os recursos
multimdia que apresenta. Todavia, muitos professores e aqui esto includos no
somente os professores de alunos surdos no esto habituados a adotar recursos
tecnolgicos como o computador no processo de ensino e de aprendizagem, porque isto
exige um conhecimento acerca do potencial pedaggico desta ferramenta. Outro aspecto
que analiso nesse captulo a imagem e sua relao com o texto escrito. Tento explorar
ainda como os sujeitos dessa pesquisa realizaram as atividades de produo textual atravs
do suporte desses dois elementos.
No quinto captulo denominado, Anlise das narrativas escritas de Wagner e
Charlene, analiso a produo textual de ambos os sujeitos desta pesquisa, enfocando sua
composio tipolgica, bem como sua coeso. Em seguida, apresento as Consideraes
Finais (captulo 6).
Espero que este trabalho contribua nas discusses acerca da escolarizao de surdos,
uma vez que analiso como a escrita de alunos surdos se apresenta na sua especificidade.
Deste modo, este trabalho pretende ser mais uma fonte de reflexo e prtica para aqueles
profissionais engajados na escolarizao de alunos surdos. minha expectativa.
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2 PERCURSO INVESTIGATIVO
No precisamos medir a irrefutabilidade de nossas explicaes contra um corpo de documentao no-interpretada, descries radicalmente superficiais, mas contra o poder da imaginao cientfica que nos leva ao contato com as vidas dos estranhos.
Clifford Geertz
2.1 Campo de Pesquisa e Procedimentos Metodolgicos
A escolha do campo de investigao e dos sujeitos foi motivada, a priori, pelo
interesse em conhecer experincias de atendimento a alunos surdos que utilizavam a
informtica educativa como suporte. Em particular, tencionava conhecer o trabalho
desenvolvido nos ncleos de atendimento especializado (NAEs) existentes na rede pblica
estadual de Fortaleza.13 Neste sentido, uma condio que nortearia a busca e a escolha do
campo de pesquisa seria a existncia de computadores conectados Internet no Ncleo.
Caso no fosse possvel realizar a pesquisa em um desses ncleos, ficaria como segunda
opo uma escola regular da rede de ensino pblica.
Inicialmente, precisei fazer um levantamento de telefones, endereos e nomes
relacionados a estas instituies. A partir de ento, pude verificar se estas atendiam s
condies desejadas.
O primeiro ncleo visitado tinha boa localizao, dispunha de uma sala
informatizada, mas no possua conexo com a Internet. Por esta razo, decidi procurar
outro local que atendesse necessidade da pesquisa. Cogitei, ento, em duas escolas
regulares que tinham em seu quadro de alunos sujeitos surdos, todavia, seus laboratrios de
Informtica tambm no estavam devidamente equipados.
13 Os ncleos de atendimento especializado foram implantados pela Secretaria de Educao Bsica com o objetivo de ampliar a poltica estadual de educao especial. Ao todo, foram criados sete ncleos em Fortaleza, que tm a funo de realizar a triagem e o diagnstico de alunos com necessidades educativas especiais, encaminhando-os para o ensino regular ou especial e assegurando-lhes o acompanhamento necessrio para sua melhor adaptao e aprendizagem no ambiente escolhido. Para tanto, cada ncleo dispe de uma equipe multidisciplinar de profissionais, bem como de recursos materiais suficientes (SEDUC, 1997).
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Por ltimo, escolhi para campo de pesquisa o Ncleo de Atendimento Especializado
situado no interior de uma escola-modelo da rede pblica estadual. Esta, alm de apresentar
tima estrutura fsica e boa localizao, dirigida por um grupo gestor acessvel e solcito
s demandas da pesquisa. Alguns obstculos se apresentaram quanto utilizao do
laboratrio de Informtica neste Ncleo: em primeiro lugar, tambm no havia conexo
com a Internet; em segundo, a professora desta sala revelou um certo mal-estar e
insegurana em participar da pesquisa; o terceiro complicador foi o fato de esta professora
quase no trabalhar com alunos surdos meu pretenso pblico-alvo. Mesmo com todos esses
impedimentos, a Direo da escola ps minha disposio outro laboratrio de
Informtica. Este era conectado Internet e utilizado pelos demais alunos da escola.
Todos esses fatores redirecionaram a escolha dos sujeitos. Primeiramente, almejava
como pblico-alvo alunos surdos que fossem atendidos no laboratrio de Informtica do
NAE. Em funo, porm, dos imprevistos j mencionados, minha ateno voltou-se para
outros sujeitos: dois deles cursavam, na poca, o primeiro ano do Ensino Mdio e outro j
havia concludo seus estudos nesta mesma escola. A partir da surgiu a possibilidade de
acompanh-los no laboratrio de Informtica da escola, no qual eu mesma seria a
responsvel pelas atividades desenvolvidas.
Decidi, no final, acompanhar apenas dois dos trs sujeitos, pois um deles no
demonstrou disponibilidade nem interesse em participar da pesquisa.
Para o desenvolvimento desta investigao, optei pela pesquisa qualitativa, por
considerar que esta abordagem a que mais d condies ao pesquisador de se relacionar
de forma espontnea e construtiva com seu objeto de anlise. Identifiquei-me ainda com o
estudo de caso pelo fato de ter como sujeitos dois alunos surdos que, embora representando
um nmero pequeno, interessa exatamente pelas suas singularidades. Alm do mais, no
tenho a pretenso de que os resultados deste trabalho sejam aplicados a todo o contingente
de surdos, pois reconheo que, apesar das semelhanas que possam ter entre si, cada
indivduo tem sua especificidade, sua histria; e o estudo de caso sustenta esta concepo.
Ldke e Andr (1986) enfocam algumas caractersticas inerentes pesquisa
qualitativa e ao estudo de caso, que so resumidamente as que frente delineio.
Na pesquisa qualitativa, prima-se por um contato direto e prolongado com o campo
de pesquisa e, obviamente, com seus sujeitos, sendo este contato imprescindvel para a
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compreenso do objeto de anlise. Outra caracterstica refere-se ao carter descritivo do
material analisado, em que predomina a descrio das pessoas, situaes ou
acontecimentos. Alm do mais, este tipo de pesquisa preocupa-se muito mais com a
maneira como o problema se manifesta ao longo das atividades, interaes (o processo) do
que em levantar provas que confirmem suas hipteses (o produto). A perspectiva dos
sujeitos da pesquisa, ou seja, sua viso sobre temas relacionados ao estudo, outro aspecto
valorizado nesta abordagem. Quanto ao estudo de caso, as autoras o caracterizam como um
mtodo aberto a descobertas, a tudo aquilo que, embora antes no cogitado, possa emergir
no decorrer do estudo. A ateno, como acontece em geral na pesquisa qualitativa,
voltada para a interpretao do contexto, onde o pesquisador busca identificar as vrias
dimenses envolvidas numa determinada situao. Esta atitude permite que ele chegue a
uma apreenso mais completa do objeto de anlise. Para tanto, o pesquisador recorre a uma
variedade de dados coletados em diferentes momentos e situaes (LDKE e ANDR,
1986).
Em vista do exposto, a pesquisa qualitativa, assim como o estudo de caso, se
apresentaram como as abordagens que mais atendiam aos meus planos e anseios, uma vez
que minha inteno primeira era a aproximao com o campo de pesquisa, a fim de me
familiarizar com a realidade em que estavam inseridos os sujeitos de pesquisa. Vale
acrescentar que esta atitude tambm auxiliaria na delimitao do campo de estudo.
Neste estudo de caso, analiso as produes textuais de dois alunos surdos, Wagner e
Charlene14, no que se refere aos seguintes aspectos: uso de recursos coesivos, entre eles
elementos de referenciao e de conexo relacionados ao encadeamento das idias no texto,
e a estrutura da narrativa. So estes aspectos que recebem uma anlise mais cuidadosa e
aprofundada. Como esses textos, todavia, so no produtos estticos, preferi analis-los em
sua relao com seus autores, o que envolve outras variveis que no podem passar
desapercebidas, como o caso das experincias lingsticas e escolares dos sujeitos e a
forma como estes produziram seus textos, envolvendo o uso do computador e da imagem.
Nesse estudo, o computador a ferramenta utilizada por mim e pelos sujeitos na elaborao
e realizao das atividades de produo textual, e, portanto, est intrinsecamente
relacionado metodologia do trabalho. As implicaes que esta ferramenta pode produzir
14 Os nomes dos dois alunos so fictcios, a fim de preservar seu anonimato.
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nas produes do aluno so mencionadas apenas superficialmente, em funo do foco de
anlise se voltar para os textos.
Diante do exposto, o objetivo central desta pesquisa analisar a produo textual
de dois alunos surdos, enquanto que os objetivos especficos pretendem: elaborar, atravs
dos recursos do computador, atividades de produo textual para os alunos; investigar a
relao entre os textos e as experincias dos alunos com a Lngua Portuguesa e a Lngua de
Sinais.
No posso deixar de frisar que a delimitao do estudo e dos objetivos ocorreu
gradativamente, ao longo do estudo, no estando eles definidos previamente. O contato
com o campo de pesquisa permitiu clarear muitas questes e revelar tantas outras
relacionadas ao contexto dos sujeitos. Dessa forma, as interaes iniciais com os sujeitos
me permitiram um diagnstico parcial da sua escrita, do seu estilo de se comunicar,
mostrando ainda a necessidade de conhec-los em outros ambientes, como na sala de aula,
bem como a partir da perspectiva de outras pessoas, como os pais e professores. Todos
esses elementos me levariam a uma compreenso mais contextualizada e mais verdadeira
do objeto de estudo. Ao mesmo tempo, lidar com vrias informaes oriundas de
observaes, depoimentos, comportamentos e, depois, ter que selecion-los de acordo com
sua relevncia para o estudo, no uma tarefa simples, uma vez que, no final, todas do sua
parcela de contribuio para a anlise do objeto de estudo. Por outro lado, Ldke e Andr
me advertem:
A importncia de determinar os focos da investigao e estabelecer os contornos do estudo decorre do fato de que nunca ser possvel explorar todos os ngulos do fenmeno num tempo razoavelmente limitado. A seleo de aspectos mais relevantes e a determinao do recorte , pois, crucial para atingir os propsitos do estudo de caso. (1986, p. 22).
Neste estudo, diferentes variveis me chamaram a ateno, chegando inclusive a
fazer parte do ttulo e objetivos iniciais. Um exemplo disso est no primeiro ttulo por mim
elaborado: o aluno surdo incluso no sistema de ensino regular: dificuldades no
aprendizado do Portugus e a mediao do computador para super-las. Alm de muito
amplo, esse ttulo expressa diferentes focos de interesse. A insero no sistema de ensino
regular era um dado do contexto dos alunos que precisava ser investigado e que, por sua
vez, conduzia a outros elementos, como as interaes vivenciadas pelos alunos na sala de
aula. Era preciso, ainda, especificar que dificuldades no Portugus seriam analisadas, uma
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vez que esta disciplina rene contedos de naturezas diferentes. Alm do mais, o ttulo,
como estava, sugeria que os alunos includos experimentam dificuldades ainda mais
especficas, e neste caso, estas tambm precisariam ser definidas. Outro foco de
investigao era o papel do computador no aprendizado dos alunos. Alm de ser a
ferramenta utilizada na metodologia do trabalho, havia, no incio, o desejo de contribuir,
por intermdio do meu estudo, para a aprendizagem dos alunos. Uma interveno com esse
propsito requereria um tempo maior de trabalho e, portanto, no poderia ser aprofundada
neste estudo.
Mais frente, percebi que a incluso era mais interessante a ttulo de conhecimento
e no como foco de anlise; e que o computador, por sua vez, deveria ser abordado como
subsdio na sistemtica de trabalho com os alunos, em vez de um fim em si mesmo. No que
se refere relao do aluno surdo com o Portugus, preferi tomar como recorte os textos
produzidos pelos sujeitos da pesquisa, uma vez que estes foram com o tempo se tornando o
maior foco de interesse. A verso final do ttulo ficou ento da seguinte forma: a produo
textual de alunos surdos sob a mediao de softwares educativos.
Como pode ser percebido, inmeros so as possibilidades e os focos de investigao
que se manifestam durante a permanncia do investigador no campo de pesquisa. O
pesquisador precisa, dessa forma, decidir qual deles o que apresenta mais relevncia para
o estudo. Convm lembrar que todas essas questes contribuem tanto para se atingir a
compreenso do fenmeno como um todo, quanto no processo de delimitao do estudo,
uma vez que do ao pesquisador a possibilidade de cruzar diferentes informaes,
confirmar ou rejeitar suas hipteses.
Ao se compararmos a verso inicial e final do ttulo do meu trabalho, perceber-se-
uma sensvel diferena entre elas. Na verdade, ao mesmo tempo em que o enunciado do
ttulo se tornou mais preciso, o objeto de investigao e os objetivos de trabalho tambm
avanaram para um nvel maior de compreenso. Com efeito, ao iniciar o estudo, j tinha a
inteno de qual seria meu objeto de investigao, sendo que este, no decorrer do estudo,
foi se delineando e assumindo novos contornos. Realizando um retrospecto da trajetria do
estudo, me surpreendo e, ao mesmo tempo, me satisfao com as mudanas de percurso.
De acordo com as autoras anteriormente mencionadas,
O desenvolvimento do estudo aproxima-se a um funil: no incio, h questes ou focos de interesse muito amplos, que no final se tornam mais
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diretos e especficos. O pesquisador vai precisando esses focos medida que o estudo se desenvolve. (LDKE e ANDR, 1986, p. 13).
Acredito que a aproximao com o campo de pesquisa no deve acontecer em nico
momento, com vistas a coletar os elementos necessrios e posteriormente analis-los. No
lugar disso, compreendo que h diferentes fases na construo do objeto de estudo. No
incio, h uma fase exploratria, em que os planos do pesquisador ainda esto muito
incipientes, sendo necessria, portanto, uma familiarizao com o contexto investigado. Em
seguida, o pesquisador pode e deve realizar um processo analtico, no qual observa a
realidade, faz inferncias e as confronta com o referencial terico.
A respeito da importncia do referencial terico, Alves-Mazzotti e Gewandsznajder
acentuam que: (...) o quadro referencial clarifica a lgica de construo do objeto da pesquisa, orienta a definio de categorias e constructos relevantes e d suporte s relaes antecipadas nas hipteses, alm de constituir o principal instrumento para a interpretao dos resultados da pesquisa. (2002, p. 182).
graas base terica que se faz uma anlise aprofundada dos achados da pesquisa.
Mediante as relaes que se estabelecem com o pensamento dos autores estudados, h mais
segurana e uma viso mais crtica para refletir sobre a prtica. Ademais, o suporte do
referencial terico importante para que no se caia na armadilha das aparncias ou do
senso comum.
Neste sentido, Minayo (1994) adverte para a noo de que o pesquisador pode
pensar que suas concluses so transparentes, pois a familiaridade com o campo faz com
que acredite que os resultados encontrados so bvios. Cruz Neto (1994) discute outro
aspecto relevante relacionado atitude do pesquisador. Assinala que este, muitas vezes,
entra em campo esperando encontrar uma realidade que confirme suas hipteses e
expectativas. Esta conduta, porm, o impede de perceber a possibilidade de o campo trazer
novas revelaes. Em ambos os casos, o referencial terico que vai permitir ao
pesquisador o distanciamento necessrio, a fim de que , ao olhar para o objeto de estudo e
seu entorno, no seja influenciado pelas prprias convices.
Em vista do exposto, reconheo que imprescindvel a escolha do objeto de estudo
e do quadro terico, uma vez que sero o ponto de partida e o orientador na investigao.
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Uma vez que estaro, todavia, em formulao, de se esperar que passem por algumas
transformaes. Isto no quer dizer, no entanto, que o objeto de estudo seja modificado em
sua essncia. Na verdade, a idia central se mantm como indicador do norte de pesquisa;
j as intenes do pesquisador, seus objetivos, sua metodologia de trabalho podem, sim,
tomar outro rumo. E isto no ruim, visto que mostra o quanto o pesquisador est atento s
diferentes possibilidades que rodeiam seu objeto de estudo, bem como s possveis
contradies e empecilhos metodolgicos.
No que se refere aos procedimentos para a coleta de dados, efetivei observaes,
registros escritos dessas observaes em um dirio de campo, conversas, entrevistas. Alm
disso, os textos dos prprios sujeitos de pesquisa foram salvos tambm para anlise. Esta
coleta aconteceu em diferentes momentos, ambientes e situaes.
Nos meses de outubro a dezembro de 2003, iniciei a fase exploratria do estudo, na
inteno de me familiarizar com os sujeitos, com o ambiente onde eles estudavam e
identificar o nvel de conhecimento deles no que se refere escrita. Neste sentido, realizei
com os sujeitos da pesquisa oito sesses no laboratrio de Informtica da escola. Os alunos
tinham que realizar atividades simples de elaborao escrita, como, por exemplo, escrever
frases a partir de figuras, da forma como soubessem. Com essas atividades, seria possvel
conhecer a extenso do vocabulrio dos alunos e a estrutura de suas frases. As atividades
foram salvas para anlise e algumas delas sero apresentadas em captulo subseqente
deste trabalho. Neste perodo, conversei com a psicopedagoga da Sala de Recursos, que me
explicou em que consistia seu trabalho no ncleo de atendimento especializado onde
atendia alunos surdos.
Nos meses de maro a junho de 2004, voltei escola para dar continuidade fase
exploratria. Durante este perodo, suspendi as sesses no laboratrio de Informtica e
decidi realizar observaes dos alunos em outros ambientes nos quais eles tambm
fizessem uso do Portugus. No momento anterior, no laboratrio de Informtica, pude
realizar um diagnstico inicial do nvel de vocabulrio dos alunos e da forma como sua
escrita se organizava. Considerei tambm necessrio, entretanto, verificar como acontecia o
desempenho dos alunos em outras situaes, como, por exemplo, na sala de aula; de que
modo os alunos eram apresentados Lngua Portuguesa escrita, que tipo de atividades
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costumavam realizar. Era preciso conhecer esses aspectos para direcionar as atividades de
maneira adequada, bem como para evitar concluses precipitadas ou equivocadas.
Com este intuito, realizei um nmero de nove visitas sala de aula onde Wagner
estudava, somente nos dias em que a aula era de Lngua Portuguesa. A partir das visitas,
observava o comportamento do aluno na sala, sua interao com as outras pessoas, a
maneira como o contedo da disciplina era apresentado e que atividades eram propostas
pela professora. No caso de Charlene, em que no era possvel observar as aulas, visto que
ela j havia concludo os estudos, fiz visitas (ao todo, cinco) sala de recursos do Ncleo
de Atendimento Especializado. Neste espao, Charlene era acompanhada por uma
psicopedagoga, que desenvolvia juntamente com ela atividades de leitura e escrita. Eram a
natureza dessas atividades e o modo como Charlene as desempenhava que buscava
conhecer por meio das observaes.
As observaes das aulas de Portugus e do atendimento na Sala de Recursos foram
de grande valia para conhecer o contexto escolar mais geral onde os sujeitos estavam
inseridos, alm de evitar que a anlise ficasse restrita s impresses oriundas das sesses
conduzidas por mim no laboratrio de Informtica. O dirio de campo era um instrumento
utilizado no apenas para registrar minhas observaes, mas tambm as impresses, no
decorrer das sesses no laboratrio de Informtica.
No terceiro momento, entre os meses de agosto a dezembro de 2004, retomei as
sesses no laboratrio de Informtica, utilizando, desta vez, um software especfico para
trabalhar produo textual com os alunos, baseado nas histrias em quadrinhos de Mauricio
de Sousa: quadrinhos da Mnica. Desta forma, os alunos passaram a produzir textos, e no
mais frases, o que consistia em um material bem mais rico para a anlise. Estes textos
tambm foram salvos.
Neste perodo, entrevistei a me de Charlene e a me de Wagner, pois queria saber
mais a respeito da surdez desses alunos, bem como acerca da sua infncia e trajetria
escolar, por acreditar que tais informaes podem reaver aspectos importantes a considerar
na anlise dos textos.
Entre os meses de agosto e setembro de 2005, fiz o ltimo contato com os sujeitos
de pesquisa. Realizei entrevistas sobre os temas Lngua de Sinais, Lngua Portuguesa,
leitura, escrita e outros, os quais me interessava conhecer na perspectiva deles. Realizei
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tambm com cada um dos alunos mais uma atividade de produo textual, utilizando um
software diferente: o micro kids.
2.2 Charlene e Wagner, prazer em conhec-los...
Nesta seo, apresento os dois participantes desse estudo, Charlene e Wagner. As
informaes aqui trazidas so oriundas da convivncia que mantive com eles durante o
estudo, de minhas observaes e impresses, de conversas informais, de entrevistas com as
mes e de entrevistas com os prprios sujeitos. Com estes, realizei a entrevista do tipo
episdica15. Segundo Flick (2002, p. 118), a entrevista episdica se baseia em um guia de
entrevistas com o fim de orientar o entrevistador para os campos especficos a respeito dos
quais se buscam narrativas e respostas. Neste tipo de contato, os entrevistados so levados
a relembrar e contar sobre suas experincias, episdios ligados ao seu cotidiano. Para o
entrevistador, as narrativas que produzem so importantes para relacionar a histria pessoal
dos entrevistados com o tema investigado.
Escolhi a entrevista episdica porque ela parte do conhecimento de mundo que o
sujeito traz e dos eventos que fazem ou fizeram parte de sua rotina. Estes, por sua vez, so
mais espontaneamente narrados pelos sujeitos do que questes formais e fechadas. Com
efeito, as perguntas das entrevistas estavam relacionadas a temas sobre os quais seria
interessante conhecer a vivncia e o ponto de vista dos sujeitos. Como resultado, reuni
alguns depoimentos dos entrevistados que sero sintetizados tanto nesta seo quanto no
decorrer dos captulos posteriores.
2.2.1 Charlene
Esta jovem tem 23 anos e surda profunda16. Sua me no sabe o que acarretou a
surdez, mas acredita que tenha se manifestado durante a gestao ou quando Charlene tinha
15 Neste tipo de entrevista contei com o auxlio de intrprete da Lngua de Sinais. 16 A surdez considerada profunda, quando a perda auditiva se situa acima de 90 dB; neste caso o paciente incapaz de ouvir a voz falada, mesmo com amplificao mxima (SILVA, 1999).
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poucos meses de vida. De acordo com sua me, at os seis meses, Charlene no era uma
criana saudvel, pois apresentava problemas intestinais, olhos e ouvidos constantemente
gotejando, alm de outros sintomas que os mdicos no conseguiam relacionar surdez,
tampouco a alguma enfermidade. O diagnstico da surdez veio somente aos dois anos de
idade, embora, antes disso, a me de Charlene se lembre de um episdio que poderia ser um
indcio da surdez: na poca em que Charlene era beb, aconteceu um evento poltico, no
qual havia muito barulho de fogos de artifcio, sendo que ela no expressou nenhum
incmodo, como se o barulho no a afetasse.
O aprendizado da fala foi por muito tempo prioridade na vida de Charlene, que por
aproximadamente dez anos freqentou sesses com fonoaudiloga em diferentes
instituies. Esta escolha, por sua vez, situou em segundo plano a Lngua de Sinais que,
segundo Charlene, s a partir do ano de 2003 comeou a ser aprendida.
Atualmente, tanto esta jovem quanto sua me reconhecem a importncia da Lngua
de Sinais e de investirem no seu aprendizado. A me, de um lado, concede filha mais
autonomia e incentivo para que interaja com outras pessoas surdas. Charlene, por sua vez,
vivencia novas experincias com a Lngua de Sinais. Para ela, esta lngua importante para
a comunicao, para no viver no silncio, pois, segundo ela, preciso conversar. No
trabalho e na igreja, por exemplo, Charlene costuma encontrar e conversar com outras
pessoas surdas, exercitando o aprendizado da Lngua de Sinais, o que no acontece em
casa, j que a famlia no sabe a Lngua de Sinais. O engajamento nesses dois espaos
tambm foi conquista recente que, por sua vez, est repercutindo no desenvolvimento social
e afetivo da jovem.
Charlene, mesmo ainda no dominando a Lngua de Sinais, a considera mais fcil
do que a Lngua Portuguesa. Uma afirmao como esta, vinda de uma pessoa que foi
submetida a vrias sesses de fonoterapia para desenvolver a lngua oral, me convence de
que este processo ser sempre difcil para o surdo, independentemente do tempo que leve.
Por outro lado, a Lngua de Sinais, mesmo quando aprendida tardiamente, produz
resultados muito mais transformadores na pessoa surda, resultados esses sociais,
emocionais e cognitivos que anos de treinamento da fala no conseguem produzir (SACKS,
1998).
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Charlene estudou em diferentes escolas, na sua maioria estabelecimentos mistos nos
quais convivia com crianas ouvintes. Sua me achava que, estudando com crianas
ouvintes, aprenderia a se comunicar conforme elas, entretanto, o fato de Charlene ter
mudado bastante de escola me pareceu justamente o contrrio: em vez de aprender a se
comunicar como as crianas ouvintes, Charlene pode no ter vivenciado interaes
significativas, nem uma boa adaptao, visto que permanecia pouco tempo nas escolas.
Aos dois anos, comeou a freqentar a Educao Infantil (maternal). No ano
seguinte, foi para outra escola, onde s permaneceu por seis meses, porque no se adaptara.
Mudou ento para uma escola especial, na qual deu continuidade pr-escola, l
permanecendo dois anos e meio. De acordo com a me de Charlene, a filha no gostava
dessa escola, pois freqentemente chegava em casa chorando. A garota saiu ento dessa
escola e foi para outra, na qual cursou da alfabetizao segunda srie do Ensino
Fundamental; no chegando a concluir o perodo. Concluiu a segunda srie em outra
instituio. Da terceira stima srie do Ensino Fundamental, Charlene tambm estudou
em nova escola, onde repetiu a terceira e a quinta srie. Esta foi a primeira vez que
Charlene repetiu o ano. Em seguida, mudou novamente de escola para cursar a oitava srie
do Ensino Fundamental, permanecendo apenas seis meses nesta escola. Da por diante,
concluiu a 8 srie do Ensino Fundamental e o Ensino Mdio em nica escola (a escola na
qual eu viria a desenvolver esta pesquisa). O ingresso da aluna nesta instituio ocorreu no
ano de 1999 e a concluso dos estudos em 2002. Vale ressaltar que, neste ano, eu ainda no
conhecia Charlene, nem esta escola.
Em nenhuma dessas escolas Charlene contou com intrprete da Lngua de Sinais, o
que no era possvel, j que no sabia esta lngua. Em contrapartida, sua me sempre
acompanhava seus estudos em casa. Mesmo depois de concluir o Ensino Mdio, a jovem
continuou freqentando a escola, pois era atendida no Ncleo de Atendimento
Especializado, que ficava no interior do estabelecimento. Neste Ncleo, Charlene tinha
sesses com uma fonoaudiloga e com uma psicopedagoga. Alm disso, Charlene ia
esporadicamente escola para utilizar o computador no laboratrio de Informtica.
O histrico escolar de Charlene bem diferente do de grande parte dos surdos, que
marcado por poucos anos de escolaridade, sucessivas repetncias, grande discrepncia
entre a idade e a srie cursada, ou, num extremo, evases. Apesar desta jovem ter trocado
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bastante de escola e permanecido pouco tempo em algumas delas, importante ressaltar
que seus pais no pouparam esforos para mant-la estudando e oferecer a ela o suporte que
fosse necessrio. Todo esse investimento foi fundamental para o aprendizado da Lngua
Portuguesa, mas, se tivesse ainda contemplado a Lngua de Sinais, certamente, teria
produzido vivncias e aprendizados muito mais significativos.
Charlene, assim como a maioria das pessoas surdas, esteve exposta a prticas de
leitura mecnicas, em que o significado das palavras no explorado de forma
contextualizada. Estas prticas levam o aluno a se deter no significado que cada palavra
ocupa isoladamente no texto. A ateno, pois, se volta para a decodificao de cada palavra
no seu sentido literal. Dessa forma, o fato de uma s palavra no ser entendida algo que
pode comprometer a compreenso do texto como um todo. Sabemos, ainda, que muitas
palavras tm carter polissmico, e nesse contexto que esses diferentes significados
podem ser reconhecidos.
As prticas de escrita tambm no foram melhores do que as de leitura. Para
Charlene, a dificuldade de escrever est em dispor adequadamente as palavras no texto,
pois elas precisam concordar umas com as outras; os verbos devem concordar com as
palavras, as preposies, por sua vez, devem estar no seu devido local dentro da frase. Em
outras palavras, a escrita tem sido concebida como um conjunto de regras que devem ser
corretamente aplicadas.
De acordo com Charlene, ler e escrever dependem do conhecimento que se tem das
palavras. A prpria concepo de leitura e escrita parece ser restrita s prticas pedaggicas
a que a aluna esteve submetida. Quando questionada a esse respeito, ela sempre recupera
tais experincias, entre elas as atividades de leitura e escrita que realizava na sala de
recursos do NAE. Informou-me que aprendia as frases, lia os textos, escrevia conforme o
que tinha lido. Alm disso, em casa realizava alguns exerccios. No dia seguinte, mostrava
o que tinha feito para a professora e esta s vezes reclamava. No aprendizado da leitura e
escrita, infelizmente foram essas experincias que ficaram na lembrana de Charlene.
Charlene acha importante a leitura para o aprendizado das palavras, para reconhecer
o nome do nibus, para ler a Bblia, algo de que gosta. Existem ainda, porm, muitos outros
gneros que precisam ser conhecidos e vivenciados por ela.
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2.2.2 Wagner
Wagner tem 37 anos de idade e surdo profundo. Tem nove irmos na famlia,
sendo que ele o nico surdo. Sua me no sabe o que originou a surdez, acreditando que o
filho j nasceu surdo. Lembra-se de que, quando ele era criana, apresentava um
comportamento nervoso e agitado e, por esta razo, seu pai se irritava com ele17.
Quando tinha quinze anos de idade, Wagner aprendeu seu primeiro ofcio, o de
cabeleireiro, observando um homem que trabalhava perto de sua casa. Aos dezesseis anos,
comprou os equipamentos necessrios e comeou a trabalhar por conta prpria, e at hoje
vive desse ofcio. Sempre teve vontade de trabalhar.
Quando morava em Itapaj, Wagner no sabia a Lngua de Sinais e se comunicava
com os outros basicamente por gestos. Neste perodo, sofria pelo fato de no ter uma lngua
rica o suficiente que lhe permitisse uma comunicao efetiva com as pessoas e um
conhecimento amplo do mundo. Quando viu pela primeira vez duas pessoas se
comunicando por meio da Lngua de Sinais, ficou admirado e desejou tambm se expressar
daquela maneira. Wagner relacionou dois eventos fundamentais para o aprendizado dessa
lngua: a participao em movimentos religiosos, que reuniam surdos e ouvintes intrpretes
da Lngua de Sinais, e a participao na Associao dos Surdos, local onde ele pde estar
em contato com surdos usurios fluentes da Lngua de Sinais. Wagner comeou a
freqentar estes espaos no intuito de aprender a Lngua de Sinais. Ia observando e
perguntando o significado dos sinais aos surdos e intrpretes que encontrava. No incio, foi
um aprendizado difcil para Wagner, porque eram muitos os sinais com os quais ele se
deparava e os significados que traziam. Com o tempo, a utilizao dessa lngua se tornou
fcil. Wagner grato a todos aqueles que contriburam para esse aprendizado. Recorda-se,
hoje em dia, penalizado, daqueles surdos que tambm moravam no interior e viviam na
ignorncia por desconhecerem a Lngua de Sinais. 17 Essa mesma atitude manifestada pelo pai de Wagner se repete em outros lares onde h uma criana surda, cujo comportamento interpretado de forma equivocada. Sacks (1998) relata casos em que surdos, sem poderem falar nem entender o que se passava ao seu redor, por no terem ainda desenvolvido uma lngua, eram diagnosticados como retardados mentais ou idiotas. Tambm j conversei com mes de surdos que acreditavam que a surdez era responsvel pelo comportamento agressivo ou agitado apresentado pelos filhos. Na verdade, isto est relacionado no surdez, mas ao fato de no poderem se expressar por meio de uma lngua plena, como o caso da Lngua de Sinais.
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Atualmente, Wagner sente prazer em divulgar a Lngua de Sinais para as pessoas,
principalmente para aqueles surdos que a desconhecem e para os ouvintes que tm interesse
em aprend-la. Em casa, tambm j tentou ensin-la aos membros familiares, mas estes no
se interessam por aprend-la, e Wagner respeita a deciso deles.
A primeira experincia de Wagner na escola foi aos dez anos de idade, quando ele
cursou a primeira srie do Ensino Fundamental. Permaneceu apenas um ano nesta
instituio e o que o levou a abandon-la, segundo ele, foi o fato de no conseguir aprender
nada. importante acrescentar que os demais alunos eram ouvintes, e a professora tambm.
A me de Wagner, por sua vez, no tinha condies de acompanhar os estudos do filho em
casa, pois no sabia ler. Depois dessa experincia, Wagner passou quase vinte anos sem
estudar.
No ano de 1999, retomou seus estudos. Ingressou em uma escola que fica perto de
sua casa e l cursou todo o Ensino Fundamental e o Ensino Mdio. O Ensino Fundamental
foi feito em regime de supletivo: em 1999, a primeira e a segunda sries; em 2000, a
terceira e a quarta sries, em 2001, a quinta e a sexta sries, em 2002 a stima e a oitava
sries. Em 2003, o aluno fez o primeiro ano do Ensino Mdio. Foi neste ano, mais
precisamente no ms de setembro, que adentrei esta mesma escola para realizar o estudo e
conheci Wagner. Em 2004, ele fez o segundo ano do Ensino Mdio e em 2005 fez o
terceiro ano e concluiu o este perodo.
S no Ensino Mdio, Wagner teve a presena de uma intrprete da Lngua de Sinais
na sua sala de aula, e, mesmo sendo esta uma condio essencial para o aluno surdo que
est inserido em sala de aula regular, no foi uma tarefa simples. Foi preciso que Wagner e
a diretora da escola fossem pessoalmente Secretaria de Educao Bsica para fazer esta
solicitao. Felizmente, no mesmo perodo em que cheguei escola, a intrprete foi
contratada. Para Wagner, as coisas melhoraram com a sua chegada. Na verdade, esta
profissional o auxiliou bastante, no apenas como intrprete na hora das aulas, mas tambm
em outros momentos, ajudando o aluno na realizao de exerccios e trabalhos solicitados
pelos professores, muitas vezes tentando preencher as lacunas que ficavam no ensino e
aprendizagem. Assim como acontece com ela, outros amigos ouvintes fizeram esse mesmo
papel.
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A me de Wagner reconhece que foi quando ele ingressou nesta escola que tudo
mudou na vida de seu filho, e que novas oportunidades comearam a surgir para ele. Para
Wagner, esta escola representa um espao em que se exercita, estuda, onde os professores
ajudam os alunos. Gosta de l porque tem oportunidade de se comunicar com outras
pessoas, pois ensina alguns sinais aos professores e aos colegas, e isto vai viabilizando a
interao deles. J em casa, como no h o interesse dos familiares, isto no acontece. O
valor da escola parece aumentar, quando ele se reporta ao seu passado, em Itapaj, quando
tinha acesso a pouca informao. A escola no foi a nica responsvel pelas mudanas que
se sucederam na sua vida, como pensa sua me. No mesmo perodo em que ele retomava
sua vida escolar, tambm buscava em outros espaos a aproximao com outros surdos e
com a Lngua de Sinais. Esta, sim, foi a mola mestra.
Na escola, Wagner participou de vrias atividades, como oficinas voltadas para
professores e alunos que visavam divulgao da Lngua de Sinais. No dia-a-dia da escola,
Wagner tambm costumava ensinar sinais a professores, colegas de sala, sempre com muita
satisfao. Para ele, importante que os professores utilizem a Lngua de Sinais para
ensinar os alunos surdos. Wagner acrescenta que os alunos surdos so inteligentes, mas os
professores no sabem a Lngua de Sinais. Esta afirmao de grande valia, pois nos alerta
sobre o real problema na escolarizao dos surdos: esses alunos so capazes de aprender,
mas, enquanto a Lngua de Sinais no estiver verdadeiramente no centro do processo de
ensino e aprendizagem, e os professores no aprenderem esta lngua, a concepo que se
tem dos alunos continuar sendo a de que o problema est neles. A afirmao de Wagner
ainda uma mistura de sonho de uma escola melhor e, ao mesmo tempo, conformismo. Ele
reconhece que esta no ainda a escola ideal para os surdos, mas, como no pode sozinho
reverter esta realidade, espera que dias melhores possam vir e vai