problemas de Ética

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PROBLEMAS DE ÉTICA PROBLEMAS DE ÉTICA Apresentação O projecto que submeto a apreciação baseia-se num determinado conceito de filosofia e de prática filosófica. Pareceu-me ser mais importante basear – me no modo como geralmente os filósofos exercem o seu ofício do que no que dizem ser a filosofia. Consultando os documentos que a história do pensamento filosófico põe ao nosso dispor, vemos que, em geral, os filósofos procuraram resolver problemas que têm um carácter específico, responderam a esses problemas com teorias e defenderam essas respostas com argumentos. A filosofia centra-se em problemas, teorias e argumentos. Esta é uma caracterização da filosofia, que é sem dúvida minimalista, mas além de operacional reflecte o modo como a grande maioria dos filósofos têm filosofado. Acresce que pode evitar a dispersão por várias concepções de filosofia que desorientam os alunos. O livro trata de problemas de Etica. Procura esclarecer os problemas centrais da ética e da filosofia política de forma acessível partindo de exemplos concretos - de casos - esclarecendo que problema filosófico esse caso ilustra e que respostas e argumentos mais importantes lhes estão ligados. Espero que este trabalho seja útil e satisfatório para colegas e alunos

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Page 1: PROBLEMAS DE ÉTICA

PROBLEMAS DE ÉTICA

PROBLEMAS DE ÉTICA

Apresentação

O projecto que submeto a apreciação baseia-se num determinado conceito de filosofia e de prática filosófica. Pareceu-me ser mais importante basear – me no modo como geralmente os filósofos exercem o seu ofício do que no que dizem ser a filosofia. Consultando os documentos que a história do pensamento filosófico põe ao nosso dispor, vemos que, em geral, os filósofos procuraram resolver problemas que têm um carácter específico, responderam a esses problemas com teorias e defenderam essas respostas com argumentos. A filosofia centra-se em problemas, teorias e argumentos. Esta é uma caracterização da filosofia, que é sem dúvida minimalista, mas além de operacional reflecte o modo como a grande maioria dos filósofos têm filosofado. Acresce que pode evitar a dispersão por várias concepções de filosofia que desorientam os alunos.

O livro trata de problemas de Etica. Procura esclarecer os problemas centrais da ética e da filosofia política de forma acessível partindo de exemplos concretos - de casos - esclarecendo que problema filosófico esse caso ilustra e que respostas e argumentos mais importantes lhes estão ligados.

Espero que este trabalho seja útil e satisfatório para colegas e alunos

O Autor

Luís Rui de Sousa Rodrigues

Page 2: PROBLEMAS DE ÉTICA

ÍNDICE

Problema 1 – O que são teorias éticas?

Problema 2 – O que são argumentos morais?

Problema 3 – O que distingue uma ação boa de uma ação má?

Problema 4 – O que conta mais? As boas intenções ou as boas consequencias?

Problema 5 – O que distingue a teoria ética de Immanuel Kant da teoria ética de John Stuart – Mill?

Problema 6 – O que é moralmente correto? O que eu penso e sinto que é moralmente certo?

Problema 7 – O que é moralmente correto? O que a sociedade e a cultura a que pertenço consideram ser moralmente certo?

Problema 8 – Temos de ser relativistas para sermos tolerantes? Não há costumes e práticas moralmente inadmissíveis?

Problema 9 – Precisamos de Deus para distinguir o bem do mal? Sem a religião a moral é uma árvore sem raízes?

Problema 10 – O egoísmo é moralmente aceitável?

Problema 11 – O que são os direitos humanos?

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Problema 12 - Os animais têm direitos?

Problema 13 – A pobreza no mundo é inevitável?

Problema 14 – O aborto é moralmente legítimo?

Problema 15 – O que são os direitos da natureza?

O que é a ética?

A ética tem a ver com o que devemos fazer, com as consequências que devem resultar das nossas ações e com o tipo de pessoas em que nos devemos tornar. De uma forma menos geral diremos que a ética se ocupa de duas questões fundamentais:

1) O que é agir de uma forma moralmente correta? O que torna as nossas ações corretas ou incorretas?

2) Como devemos viver? Indiferentes ao sofrimento e infortúnio dos outros, unicamente preocupados com a promoção do nosso bem-estar?

3) Que tipo de pessoas devemos ser? Que traços de caráter devemos formar e desenvolver?

À área da ética que de uma forma geral discute o problema de saber o que devemos fazer e o que é moralmente valioso dá-se o nome de ética normativa.

As questões 4,5 e 6 são questões de ética normativa.

Uma outra área da ética enfrenta problemas morais concretos, muitos deles geradores de controvérsia. É a ética aplicada. Já ouviu falar de problemas como o aborto, a eutanásia, a guerra, a pobreza, a clonagem e o sofrimento dos animais. Em ética aplicada esses problemas são formulados do seguinte modo: «O aborto é moralmente errado?»; «A eutanásia é moralmente permissível? Há alguma diferença moralmente relevante entre matar e deixar morrer?»; «O que é uma guerra justa? Em que condições é moralmente permissível uma declaração de guerra? «Haverá algo de moralmente errado em permitir a morte e o sofrimento dos habitantes de países pobres? Temos a obrigação moral de os ajudar?»; «É moralmente admissível a clonagem de seres humanos?»; «Os animais têm direitos ou só nós, seres humanos, temos importância moral? E se tiverem direitos devemos atribuir aos animais a mesma importância do que aos seres humanos?». A ética aplicada consiste na aplicação de teorias éticas a situações práticas que envolvem opções morais e no estudo dos problemas postos por essa aplicação. A resposta aos problemas que essas situações colocam depende da maneira como a teoria ética que defendemos responde (ou não) aos desafios postos por aquelas situações.

As questões 11,12,13,14,15,e 16 são questões de ética aplicada.

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Outra área da ética é a metaética. Neste plano não se elaboram teorias acerca da correção moral das ações nem sobre como devemos viver para ter uma vida moralmente valiosa. A metaética coloca questões acerca da própria ética em vez de questões éticas (normativas). Se uma teoria ética me diz o que é moralmente correto, a metaética pergunta porque devemos agir corretamente. Por exemplo, se matar ou roubar é moralmente errado a questão que se coloca no plano metaético é esta: «Por que razão sabendo o que é moralmente correto devo agir corretamente? Por que razão não devo fazer o que me agrada, quer isso seja moral ou imoral?». Certas teorias éticas dizem-nos que os nossos atos só são corretos ou incorretos, bons ou maus por causa das suas consequências e outras teorias dizem haver atos intrinsecamente bons ou maus, isto é, cuja correção moral não tem nada a ver com as consequências ou resultados. Mas qual é o significado de conceitos como bem, mal, errado, correto, moral, imoral? Será que podemos ter um conhecimento do que é o bem ou o mal? São conceitos objetivos ou simples expressões de aprovação e reprovação que dependem de opiniões, sentimentos e emoções? A análise destes conceitos éticos fundamentais é também tarefa da metaética. Outra função importante da metaética é a reflexão sobre o valor dos juízos morais. Exemplos de juízos morais: «O aborto é um crime»; «Mentir é errado» e «Roubar é uma má ação»

Estes juízos têm valor de verdade? Podem ser considerados verdadeiros ou falsos? E se têm valor de verdade, a sua verdade ou falsidade depende de quê? Dos gostos, preferências e sentimentos dos indivíduos ou do que cada sociedade acredita ser verdadeiro ou falso? São verdadeiros ou falsos independentemente de opiniões individuais e de convenções sociais?

As questões 1,2,3,7,8,9 e 10 são questões de metaética.

Problema 1

O que são teorias éticas?

Por volta das 3h e 20 m da manhã de 13 de Março de 1964, Kitty Genovese, 28 anos, gerente de um bar e residente na área residencial de Queens, Nova Iorque, regressava a casa. Estacionou o automóvel a 30 metros do seu apartamento e começou a caminhar para lá. Tinha andado 10 metros quando, junto a um dos candeeiros que iluminavam a rua, um homem, mais tarde identificado como Winston Marly, a agarrou violentamente. Kitty gritou. Acenderam-se as luzes do bloco de apartamentos mais próximo do local. Novamente, ouviu-se a jovem gritar desesperada: «Meu Deus, ele apunhalou-me. Ajudem-me!» Abriu-se uma janela do referido bloco de apartamentos e ouviu-se a voz de um homem: «Deixe essa rapariga em paz!». Winston Marly olhou na direcção da janela, encolheu os ombros, resmungou e afastou-se deixando a rua. Enquanto Kitty tentava, com grande dificuldade, pôr-se de pé, todas as luzes dos apartamentos se apagaram. O assaltante regressou alguns minutos mais tarde e apunhalou de novo a indefesa italo-americana, já a esvair-se em sangue. De novo gritou: «Estou a morrer! Está a matar-me!» Mais uma vez as luzes acenderam-se na maioria dos

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apartamentos próximos. O assaltante afastou-se de novo, entrou no seu carro e pareceu ir-se embora definitivamente. Kitty conseguiu levantar-se, enquanto um autocarro passava, e cambaleando conseguiu chegar próximo das escadas de acesso ao prédio onde morava. Eram 3 horas e 35 minutos. Inesperadamente, Marly regressou ao local do crime, encontrou a sua vítima a arrastar-se escadas acima, violou-a e apunhalou-a desta vez fatalmente. Eram 3 horas e 50 minutos quando a polícia recebeu a primeira chamada. Respondeu rapidamente. Em dois minutos estava no local do assalto mas Kitty já tinha morrido.

A única pessoa que chamou a polícia, revelou que tinha telefonado somente após ter reflectido muito e contactado um amigo para se aconselhar. Disse: «Não queria envolver-me numa situação daquelas». Posteriormente veio a saber-se que 38 testemunhas viram o que estava a acontecer durante os minutos que durou o infortúnio de Kitty. Muitos dos vizinhos de Kitty ouviram os seus gritos e viram das suas janelas o que aconteceu mas ninguém a socorreu.

O caso verídico acima descrito suscita questões sobre a correcção moral das acções humanas (que tipo de princípios morais devem regular a nossa conduta?), sobre que tipo de pessoas devemos ser (que traços de carácter devemos formar e desenvolver) e sobre como devemos viver (indiferentes ao sofrimento e infortúnio dos outros, unicamente preocupados com a promoção do nosso bem-estar?).

A análise deste caso vai permitir esclarecer duas coisas:

1 – O que são as teorias éticas.

2 – O que distingue a moral do direito.

1 – O que são as teorias éticas.

Voltemos ao caso descrito no início deste capítulo. Todas as pessoas que dele tivessem ouvido falar realizariam uma avaliação moral dos actos e omissões dos vizinhos de Kitty assim como do seu carácter. Muito provavelmente todas diriam que a sua conduta foi moralmente incorrecta e cobarde. Uma avaliação deste tipo tem o nome de juízo moral. Nos juízos morais que efectuamos dizemos que há acções que devem ser feitas (são obrigatórias e não as fazer é moralmente errado), que não devem ser realizadas (são impermissíveis e fazê-las é moralmente incorrecto) e que são permissíveis (podemos ou não realizá-las sem que isso seja moralmente errado).

Pensemos no seguinte juízo: «Os vizinhos de Kitty comportaram-se de forma moralmente errada». Trata-se de um juízo moral porque avalia a correcção moral de um acto. Muito frequentemente, ajuizamos o valor moral de um acto confrontando-o com uma determinada regra ou norma moral. Se o acto cumpre essa regra é correcto, se não a cumpre é errado. Podemos supor que a regra violada neste caso foi esta: «Devemos ajudar pessoas indefesas». Parece simples. Moralmente errado é o que não está de acordo com uma certa norma moral e moralmente correcto é o que a cumpre. Mas se perguntássemos por que razão não cumprir a referida regra foi errado, alguém poderia responder-nos: «Foi errado não cumprir a regra

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porque as consequências foram más». O que fez quem nos respondeu assim? Utilizou um critério (outra pessoa utilizaria outro) mais geral do qualquer das normas morais que conhecemos e avaliou a acção referindo-se ao seguinte princípio básico: «São erradas as acções que têm más consequências e certas as que têm boas consequências».

O que caracteriza, em termos gerais, as teorias éticas é esclarecerem o critério (princípio fundamental) que torna possível determinar que espécies de acções são correctas (e também que tipo de pessoas ou agentes morais têm ou não valor).

2 – O que distingue a moral do direito.

Algumas acções que julgamos moralmente incorrectas são também consideradas legalmente erradas. É o caso de actos como roubar, matar e faltar ao cumprimento de promessas (contratos). Que certas acções sejam ao mesmo tempo imorais e ilegais não implica, contudo, que a moral e o direito sejam a mesma coisa.

Voltemos ao exemplo do início deste capítulo.

Os vizinhos que assistiram ao drama de Kitty Genovese não violarem nenhuma norma jurídica. Não há nenhuma lei que nos obrigue a ajudar os outros. Contudo, muitas pessoas consideraram moralmente vergonhoso o comportamento dos vizinhos da jovem. Este exemplo significa que há aspectos da vida moral que não são abrangidos pelo direito.

O reconhecimento de que há normas jurídicas injustas - caso de leis de segregação racial, de leis que discriminam conforme o sexo ou a orientação sexual – e aplicações injustas da lei mostra que uma acção não é moralmente correcta só porque é legalmente admitida nem moralmente incorrecta só porque é ilegal.

Finalmente, as normas jurídicas são coactivas, isto é, são acompanhadas pela imposição de penas e punições de tipo físico e financeiro. As normas morais são impostas pela vontade a si própria. Nenhuma força ou ameaça institucional as impõe.

As diferenças entre moral e direito não impedem que ambas possam em muitas circunstâncias funcionar conjuntamente. A prova disso é o facto de algumas leis serem promulgadas para defender valores morais básicos. Referimo-nos a leis contra o assassinato, a violação, a difamação, a fraude, etc. As normas do direito podem em parte ser a expressão pública do que uma sociedade julga moralmente obrigatório ou impermissível.

Atividade 1

Parte superior do formulário

a) É palermice acreditar em contos de fadas

Normativo

Descritivo

b) O aborto é um crime.

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Normativo

Descritivo

c) Não me sinto culpado por ter feito falsas declarações.

Normativo

Descritivo

d) A moral é a arte de viver.

Normativo

Descritivo

e) Há muito patife neste mundo.

Normativo

Descritivo

f) Se não consegues compreender este assunto então pede ajuda ao teu professor.

Normativo

Descritivo

g) Se a clonagem terapêutica for admitida então a muitas doenças poderão ser curadas.

Normativo

Descritivo

h) A nossa sociedade vive uma crise de valores

Normativo

Descritivo

Parte inferior do formulário

2.1 - Um princípio ético é:

a)Menos geral do que uma norma moral;

b)Algo que deriva do conjunto das normas morais;

c)Um padrão que nos guia somente em certos tipos de acções;

d)Um padrão que pretende julgar todas as situações morais.

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2.2 - «Age sempre de modo a satisfazer teu interesse próprio» e «Age de tal modo que nunca transformes os outros em simples meios ao serviço dos teus interesses». Estas frases correspondem a:

a) Normas morais;

b)Princípios éticos;

c)Conselhos de prudência;

d)Mandamentos de origem religiosa.

a)Os problemas morais concretos;

b) Os princípios gerais que devem guiar as nossas acções;

c)As regras que regulam certo tipo de condutas;

d)A distinção entre problemas morais e problemas não - morais

3 - Procure defender o seguinte argumento. Para isso dê especial atenção à segunda premissa. Utilize exemplos.

Se o direito e a moral forem equivalentes então o facto de um acto ser legal significa que também é moral.

O facto de um acto ser legal não significa que seja também moral.

Logo, direito e moral não são equivalentes.

4 – Há uma ligação de certo modo forte entre direito e moral. Isso significa que:

a) As sanções legais são indispensáveis para a nossa interacção com os outros;

b)As nossas obrigações morais são equivalentes às nossas obrigações legais;

c)Um acto é moralmente aceitável por ser legalmente permitido;

d)Há actos moralmente impermissíveis que também são legalmente proibidos.

Problema 2

O que são argumentos morais?

Comecemos com o seguinte diálogo:

Mariana – É sempre errado roubar.

Fátima – Que disparate! Toda a gente na minha rua rouba quando tem oportunidade de o fazer.

Mariana – Não percebeu bem o que eu disse!

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Fátima – Não? Então explique - se melhor.

Mariana tem razão. Mas Fátima merece uma explicação.

Mariana disse É sempre errado roubar. Fátima discordou e respondeu Toda a gente na minha rua rouba quando tem oportunidade de o fazer. Por que razão a resposta de Fátima revela que ela não percebeu o que Mariana queria dizer? Porque Fátima respondeu como se Mariana tivesse dito Ninguém rouba.

O que devia ter feito a Fátima? Devia ter visto que Mariana tinha emitido um juízo de valor, uma proposição normativa. Para contrariar a tese da sua colega Fátima devia ter apresentado uma outra proposição normativa dizendo Não, eu penso que é correcto roubar em certas situações e argumentar em sua defesa.

Este episódio mostra que a argumentação moral, a troca de argumentos sobre as questões morais, é um caso especial. Fátima tentou opor-se à tese de Mariana mas cometeu um erro. A uma proposição normativa – que diz como as coisas devem ser – no caso É sempre errado roubar, opôs uma proposição factual ou descritiva, Toda a gente na minha rua rouba quando tem oportunidade de o fazer, que descrevia o que algumas pessoas na sua rua faziam.

Considere o argumento seguinte:

Premissa: Matar um ser humano inocente é errado.

Premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Logo, matar um feto humano é errado.

A primeira premissa é constituída por uma norma moral ou princípio moral específico que é o critério normativo usado no argumento.

A segunda premissa é constituída por uma proposição factual que pode ser confirmada ou refutada pela observação empírica ou pelos conhecimentos que as ciências possuem. Tem um valor de verdade e por isso ou é verdadeira ou falsa.

A conclusão do argumento é um juízo moral que se infere a partir do encadeamento das premissas.

A discussão moral centra-se muitas vezes na questão de saber se as proposições factuais são plausíveis ou verdadeiras mas também pode haver desacordos quanto à norma moral expressa numa das premissas (é o caso de um princípio como «O suicídio é moralmente errado») e quanto ao significado dos conceitos utilizados. Neste argumento parece plausível que um feto humano, embora viva no organismo da mãe, se distingue desta por ter um código genético próprio e sendo distinto a sua inocência não depende da inocência da mãe. Contudo, o termo ser humano pode dar origem a uma divergência conceptual porque sendo ambíguo abre caminho a interpretações diferentes.

Os argumentos morais diferem dos argumentos não - morais porque incluem pelo menos (há argumentos com mais premissas do que o apresentado) uma norma ou princípio moral como premissa e uma proposição moral como conclusão. Por que razão tem de ser assim?

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Imagina que ao argumento acima exposto faltava uma premissa normativa ou de tipo moral e que ficaria assim:

Premissa: Muitos seres humanos inocentes são mortos

Premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Logo, matar um feto humano é errado.

Repara que as premissas deste argumento descrevem factos (são proposições descritivas) e a conclusão tem carácter normativo (diz-nos não que algo é ou acontece mas que é errado que algo – matar um feto – aconteça ou seja feito). As premissas não justificam a conclusão porque de premissas que descrevem acontecimentos não se pode derivar conclusões de carácter normativo. David Hume chamou a atenção para esta passagem logicamente ilegítima do que as pessoas fazemou são para o que elas devem ser ou devem fazer. Facilmente perceberás este erro lógico se eu disser o seguinte: «Não devo pagar os impostos porque muita gente não o faz». O argumento é mais fácil de perceber se for apresentado assim:

Premissa: Há muita gente que não paga impostos.

Conclusão: Logo, não devo pagar impostos.

A primeira objecção a este argumento é esta: que algo aconteça não implica que deva acontecer. É falacioso passar de uma afirmação do tipo «É assim que as coisas são» para uma outra que diz «É assim que as coisas devem ser». A segunda objecção é esta: a conclusão Não devo pagar os impostos só seria logicamente aceitável se houvesse uma premissa de tipo normativo (É errado pagar os impostos).

Esta advertência é importante porque quando nas aulas participar em discussões de assuntos morais deve ter bem presente que:

a) Uma coisa é o que fazemos; outra coisa é o que devemos fazer.

b) A uma proposição normativa deves contrapor – argumentando – uma outra proposição também normativa.

Atividade 2

1 – Descubra os princípios ou normas morais nos quais se basearam os seguintes juízos morais:

a) Foi errado teres prometido que ias ao cinema com a Luísa e não teres comparecido.

b) Foi errado teres copiado durante o teste

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c) Foi moralmente inaceitável lançar uma bomba atómica sobre alvos não – militares

2 – Dê atenção aos seguintes argumentos e verifique se a passagem da premissa à conclusão é logicamente aceitável. Justifiquae a sua resposta.

a) É natural comer carne. Logo não devemos tornar-nos vegetarianos.

b) As mulheres tratam melhor dos filhos do que os homens. Por isso, em caso de divórcio as crianças devem ficar a cargo das mães.

c) Os homens têm uma inteligência espacial superior à das mulheres. Por conseguinte, as mulheres não devem ter acesso à profissão de piloto.

3 – Descubra a premissa que evita que os argumentos seguintes cometam o erro referido por David Hume:

a) Subornar um juiz é uma tentativa de colocar o sistema judicial ao serviço dos nossos interesses. Logo, subornar um juiz é moralmente errado.

b) Roubar pessoas é prejudicá-las. Assim sendo, roubar é errado.

c) Castigar uma criança por algum erro que cometeu não é moralmente correcto porque qualquer castigo provoca problemas emocionais.

4 – Consideras bons os seguintes argumentos? Justifica a tua resposta.

a) «O sexo feminino não deve ter os mesmos direitos do sexo masculino. Na natureza as fêmeas dedicam-se à reprodução e são machos que devido a terem maior força física tem a seu cargo a defesa da família e o seu sustento. No género humano os machos têm as mesmas funções e por isso não devem ser eles a cuidar dos filhos mas as mulheres, que a natureza dotou para tal.»

b) «A doutrina da Igreja é contra as relações sexuais fora do matrimónio. Os meus pais dizem que é perigoso para a saúde esse tipo de relações. Penso pois que é moralmente errado ter relações sexuais com a moça com quem namoro.»

BIBLIOGRAFIA

1- Gensler, Harry J. Ethics, a contemporary introduction,Routledge,Londres,2000

2- Thomson, Anne, Critical Reasoning in Ethics- a practical introduction, Routledge, Londres,1999

Problema 3

O que distingue uma acção boa de uma acção má?

Page 12: PROBLEMAS DE ÉTICA

Imagine que um grupo de terroristas se apodera de um avião em Berlim. Os seus passageiros e tripulantes ficam reféns. Contudo, os terroristas propõem libertá-los se um cidadão local que eles consideram envolvido em actividades antiterroristas lhes for entregue para ser morto. Se as autoridades da cidade não colaborarem ameaçam fazer explodir o aparelho com todas as pessoas lá dentro.

As autoridades locais sabem que o cidadão em causa não cometeu o menor crime durante a sua vida e que os terroristas estão enganados pois não participou na morte de membros do grupo que agora dele se quer vingar. Não obstante, sabem que será vã a tentativa de convencer os terroristas de que estão enganados.

Imagine também que no grupo dos indivíduos que representam as autoridades locais autoridades locais, há divisão de opiniões.

Alguns, a que chamaremos grupo A, dizem: «Não nos parece que tenhamos meios suficientes para assaltar o avião e neutralizar os terroristas impedindo que assassinem os reféns. Seria uma carnificina. Não é agradável entregar um inocente a terroristas mas temos de levar em conta as consequências da nossa decisão. Devemos pensar que aqueles reféns também são pessoas inocentes. Dadas as circunstâncias devemos optar pelo melhor resultado: a morte de um inocente servirá, por mais que isso nos possa perturbar, para salvar a vida de centenas de inocentes.»

Outros a que chamaremos grupo B, dizem: «Mesmo que os meios nos pareçam insuficientes é nosso dever ajudar as pessoas que estão nas mãos dos terroristas e não ceder à sua chantagem. Vocês estão a infringir intencionalmente, embora de mau grado, um dever fundamental. Vão entregar a morte certa uma pessoa inocente. Serão, por mais que isso vos desagrade, cúmplices dos terroristas. Há certo tipo de actos que nunca devemos realizar ou permitir sejam quais forem as circunstâncias. É possível que a acção que defendemos possa provocar a morte de muitas pessoas, um resultado muito desagradável, mas não provocaremos a morte de ninguém intencionalmente.»

Após longa deliberação, triunfa por maioria a posição do grupo A e as autoridades decidem entregar o referido cidadão aos terroristas que libertam os reféns e matam quem queriam matar. Agiram bem?

O que é preferível? Respeitar absolutamente uma norma moral que proíbe a morte de uma pessoa inocente e condenar à morte dezenas de pessoas também inocentes ou sacrificar um inocente para que dezenas de outros se salvem?

Foi este o dilema que as autoridades locais enfrentaram. Sabemos já qual a sua decisão e o que fizeram. Algumas pessoas dirão: Agiram mal porque há acções que em si mesmas são más. Sacrificar uma pessoa inocente é uma acção má seja em que circunstância for e nada a justifica. Outras dirão: Agiram bem. Há que ter em conta as consequências das nossas decisões e acções. Apesar de normas morais que proíbem o roubo, a mentira e a morte de inocentes serem valiosas, não as devemos seguir cegamente. Há situações em que não seguir uma

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determinada norma moral terá melhores consequências globais do que respeitá-la. Neste caso, morreu uma pessoa mas salvaram – se dezenas.

Muitas pessoas ao avaliarem as suas acções e as acções dos outros baseiam – se em teorias filosóficas que muitas vezes desconhecem. Não quero dizer que são moralmente ignorantes. Unicamente não leram os filósofos que reflectiram e reflectem sobre a correcção ou incorrecção moral das nossas acções, que procuram estabelecer o critério que permite distinguir uma acção moralmente boa de uma acção moralmente má.

Em que teoria filosófica se baseou o grupo que se opôs à entrega da pessoa inocente aos terroristas? Numa teoria conhecida por deontologismo. O deontologismo é uma teoria ética segundo a qual há acções que são certas ou erradas independentemente das suas consequências. Há actos intrinsecamente errados que é nosso dever evitar e actos intrinsecamente correctos que é nosso dever realizar. Certos deveres são obrigação moral sejam quais forem as consequências. A moralidade de uma acção depende não propriamente das suas consequências mas sim do seu valor intrínseco.

Em que teoria filosófica se baseou o grupo que decidiu entregar a pessoa inocente aos terroristas?

Baseou – se numa teoria ética conhecida pelo nome de consequencialismo, mais exactamente numa versão do consequencialismo que se chama utilitarismo.

As teorias éticas consequencialistas afirmam, em termos gerais, que as nossas acções são certas ou erradas apenas em virtude das suas consequências. Respondem ao problema «O que torna as nossas acções certas ou erradas?» afirmando que as consequências são o que torna as nossas acções correctas ou incorrectas. Não podemos avaliar se uma acção é moralmente certa ou errada independentemente das suas consequências. Em termos populares, afirmam que a qualidade da árvore depende da qualidade dos seus frutos.

O utilitarismo é, em geral, a teoria que sobre a moralidade de uma acção diz: uma acção é moralmente correcta se dela resultar a maior felicidade ou bem-estar possível para as pessoas que por ela são afectadas. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa acção resulte a maior felicidade possível para as pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade. No caso concreto que apresentámos, a morte de uma pessoa e o sofrimento causado a familiares e amigos foi muito menor do que o sofrimento e infelicidade que aconteceriam se tivessem morrido dezenas de pessoas.

Voltaremos a falar destas teorias nas próximas páginas.

Atividade 3

1 – O que faria se fosse uma pessoa com autoridade par decidir se entregavas ou não o cidadão inocente aos terroristas? Justifique a sua resposta.

Algumas orientações ou dicas para responder:

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a) Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem várias vidas humanas valem mais do que uma. Se estiver de acordo com este princípio, poderá estar de acordo com o que as autoridades decidiram fazer?

b) Há quem pense que em situações dramáticas como a que foi descrita devemos aplicar o princípio do menor mal. Está de acordo? Se está de acordo aprova ou desaprova a decisão das autoridades?

Outros casos para pensar

1 - Jim dá consigo no centro de uma pequena aldeia sul-americana. Atados e alinhados contra uma parede estão uma série de índios, a maior parte aterrorizados, alguns com ar de desafio, e à frente deles estão vários homens armados e de uniforme. Um homem pesado, com uma camisa suada, é o capitão a cargo de quem está a operação e, depois de muitas perguntas de Jim, que permitem perceber que ele foi ali parar por acidente quando estava numa expedição botânica, explica que os índios são um grupo aleatório de habitantes que, depois de actos recentes de protesto contra o governo, estão prestes a ser mortos para mostrar aos outros contestatários as vantagens de não protestar. Contudo, dado que Jim é um honrado visitante de outra terra, o capitão tem todo o gosto de lhe dar o privilégio de matar ele mesmo um dos índios. Se Jim aceitar, então, para assinalar a ocasião, os outros índios serão libertados. Claro que, se Jim recusar, não há qualquer ocasião especial e aqui o Pedro [um subordinado do capitão] irá fazer o que estava prestes a fazer quando Jim chegou: matá-los todos. Jim, recordando-se desesperadamente das ficções de quando era criança, pondera se, caso apanhasse uma arma, poderia ameaçar o capitão, o Pedro e o resto dos soldados, mas é claro pela maneira como as coisas são que nada desse género poderia funcionar: qualquer tentativa desse género significaria que todos os índios seriam mortos, e ele também. Os homens alinhados contra a parede, e os outros aldeões, compreendem a situação e suplicam-lhe obviamente que aceite. Que deve ele fazer? Bernard Williams, «Uma Crítica ao Utilitarismo» (1973), pp. 96 – 97.

2 - No filme A escolha de Sofia, uma mulher polaca é presa pelos nazis e, com os seus dois filhos, enviada para o campo de concentração de Auschwitz. À chegada, para a “recompensarem”por não ser judia, os nazis colocam-na perante um terrível dilema: um dos seus filhos será poupado às câmaras de gás mas tem de ser ela a escolher qual. Agoniada não sabe que decisão tomar. Para a forçarem a escolher os Nazis começam a levar as crianças em direcção às câmaras de gás. Sofia acaba por ceder e escolhe. Salva o seu filho mais velho e sacrifica a sua filha mais nova e mais frágil. A sua expectativa é a de que o seu filho, mais forte, terá mais probabilidades de sobreviver às duras condições do campo de concentração. Fez o que era correcto?

Problema 4

O que conta mais? As boas intenções ou as boas consequências?

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Imagine que é arrastado pela forte corrente de um rio e que não sendo bom nadador corres sério risco de te afogar. Duas pessoas, o Fernando e o Guido apercebem-se do perigo e correm para o salvar. Guido tropeça e desloca um ombro. Fernando hesita, tem um encontro com a namorada e está atrasado. Mal disposto, mas pensando que mais tarde pode sentir remorsos e sentimentos de culpa, entra na água e, embora de má vontade, salva-o.

Podemos dizer que só a acção da pessoa bem sucedida teve valor? De boas intenções está o inferno cheio, diz o povo. Mas também diz que as boas intenções fazem as boas acções. Esta divergência revela que o problema acima apresentado não é de fácil resposta. Ambas as pessoas decidiram bem-intencionadas ajudar mas as consequências foram diferentes. Só uma foi bem sucedida. Como avaliar o que sucedeu? Vamos basear-nos nas consequências ou na intenção? Diremos que a acção da pessoa que tropeçou não tem valor moral? Só os resultados contam?

Consultemos dois filósofos que reflectiram sobre este problema: Devemos avaliar a moralidade de uma acção pela intenção com que realizamos uma acção ou pelas consequências que dela resultam? Esses filósofos são Kant e Stuart- Mill.

Comecemos com Kant.

Para Kant, o critério para averiguar se uma acção possui valor moral é a intenção com que o agente realiza uma determinada acção. A ética kantiana parte de uma crença básica exposta logo no início da sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes: a boa vontade é a única coisa absolutamente boa.

A bondade de uma boa vontade não deriva da bondade dos seus resultados. Com efeito, podemos querer fazer mal a uma pessoa e acabar involuntariamente por lhe fazer bem. E podemos querer fazer bem a uma pessoa e, involuntária ou inadvertidamente, acabar por lhe fazer mal. Ao defender que a bondade da vontade não depende dos seus resultados – afirmação que marca a diferença em relação às éticas consequencialistas –, Kant está a dizer isto: o que é decisivo na avaliação moral de um acto não é o que ele realiza ou o que com ele obtemos. O que é importante do ponto de vista moral é o motivo ou a intenção do acto. Ter uma intenção correcta é o que torna uma vontade boa. Mas que tipo de intenção caracteriza uma boa vontade? A boa vontade é do ponto de vista moral a única coisa absolutamente boa. O que torna a vontade boa? A acção que pratica? Não. Os resultados que consegue? Não. A aptidão para alcançar bons resultados? Não, embora ser bem sucedida não seja, de modo algum, de desprezar. O que torna boa a vontade é a intenção que subjaz à sua acção. Suponha que devolve uma carteira que encontrou no refeitório da sua escola. Fez o que de acordo com as normas morais estabelecidas devia fazer. Mas é este facto suficiente para, segundo Kant, dizer que agiu de boa vontade? Não. Pode ter realizado essa acção por receio de ser descoberto, para não ficar de consciência pesada, e não por ter pensado que era essa a acção correcta. A sua intenção não foi propriamente cumprir o dever mas evitar problemas. Podemos ver que o que caracteriza a boa vontade é cumprir o dever sem outro motivo ou razão a não ser fazer o que é correcto. Dirá Kant que a boa vontade é a vontade que age com uma única intenção: cumprir o dever pelo dever.

Acções por dever e acções em conformidade com o dever

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Para esclarecer esta definição, Kant introduz uma distinção famosa: uma coisa é agir em conformidade com o dever; outra coisa bem diferente é agir por dever. Regressando ao exemplo dado, se devolveu a carteira com receio de posteriormente ser descoberto ou para ser elogiado pela tua honestidade agiu em conformidade com o dever. Se devolveu a carteira simplesmente porque essa era a acção correcta agiu por dever, ou seja, só houve um motivo a influenciar a sua acção: fazer o que devia ser feito. Tudo depende do motivo ou da razão por que agiu honestamente.

Kant não admite que se cumpra o dever em virtude das desejáveis consequências que daí possam resultar. Seria deixar o cumprimento do dever ao sabor das circunstâncias, dos interesses do momento. Isso implicaria que quando não tivéssemos vantagem ou interesse em cumprir o dever não haveria razão alguma para o fazer.

As acções em conformidade com o dever não são acções contrárias ao dever. Contudo, nessas acções, para cumprir o dever precisamos de razões suplementares. Mais importante do que o cumprimento do dever é o nosso interesse pessoal.

As acções feitas por dever são acções em que o cumprimento do dever é um fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Dispensa razões suplementares, não age como diz o homem comum «com segundas intenções». Por outras palavras, perante uma regra ou norma moral como «Sê honesto», a vontade respeita-a sem qualquer outra intenção.

Imagine que a mãe da Rita lhe perguntou onde é que ela foi na sexta-feira à noite. A Rita disse a verdade à sua mãe, dizendo-lhe que foi jantar à pizzaria Matterelo com alguns colegas, mas fê-lo porque sabia que se mentisse e a sua mãe descobrisse, esta a colocava de castigo. Assim sendo, a Rita não mentiu à sua mãe, porque sabia que, se mentisse e a sua mãe descobrisse, esta a colocava de castigo. A Rita cumpriu o dever (não mentir), não por dever (não porque não deve mentir), mas por interesse (porque tem medo do castigo da sua mãe). A Rita agiu por interesse, mas, por acaso, não desrespeitou as ordens da sua razão, que lhe diz “Não deves mentir”. Significa isto que a Rita não obedeceu incondicionalmente às ordens da sua razão. Apenas se a Rita dissesse para consigo mesma: “Não menti à minha mãe, porque é meu dever não mentir” (em toda e qualquer circunstância), é que estaria, segundo Kant, a agir moralmente porque estaria a respeitar o dever pelo próprio dever.

Tudo isto pode parecer exagerado e demasiado rigoroso. Não é suficiente cumprir o dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso suficiente para agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há tanta gente neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos contentar – nos com o facto de que há pessoas que fazem o que devem fazer seja qual for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que importa saber se é por receio de ter problemas com o fisco? Kant discorda. O motivo da acção é decisivo porque caso contrário, daremos o mesmo valor moral a acções boas feitas por bons motivos e acções boas feitas por motivos errados.

Passemos a Stuart – Mill.

A ética de Stuart-Mill é uma forma de consequencialismo. Para as éticas consequencialistas as acções são correctas ou incorrectas, moralmente aceitáveis ou inaceitáveis, conforme as suas consequências. As acções devem ser julgadas de acordo com os resultados que alcançam ou que é esperado alcançarem.

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Ao contrário de Kant, Mill não admite que a correcção moral de uma acção dependa do motivo ou intenção do agente. Depende dos resultados objectivos da acção. Muitas pessoas pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um acto a boa intenção do agente deve contar na avaliação do que fez. Mill discorda completamente: evitar que uma pessoa se afogue é sempre bom independentemente da motivação de quem salva. A motivação ou a intenção nada tem a ver com a moralidade da acção. Se – gundo a sua perspectiva consequencialista um acto deve ser julgado pelas suas consequências. Se as consequências forem boas a acção é boa, se forem más a acção é má. Mas o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas consequências? Uma acção tem boas consequências se, dadas as alternativas disponíveis, dela resultar a maior felicidade, bem-estar ou prazer (ou pelo menos mais felicidade do que infelicidade) para o maior número possível de pessoas que por essa acção são afectadas.

No caso do Guido e do Fernando o que conta foi o que conseguiram fazer. O que resultaria das boas intenções de Guido se Fernando não estivesse também junto ao rio? Segundo Mill um estado de coisas em que haveria mais infelicidade ou mal-estar global do que antes de Guido tentar socorrer a pessoa aflita. Morreria quem estava quase a afogar-se e Guido prejudicaria a sua saúde, provavelmente teria de faltar ao trabalho, etc. Avaliando a acção pelas suas consequências, só a acção de Fernando foi moralmente boa porque só ela teve boas consequências.

Kant discordaria. Guido tentou cumprir o dever de ajudar o próximo e o seu fracasso objectivo não pode retirar valor moral à sua acção. É evidente que ser bem sucedido seria bom mas o que conta é a intenção de ajudar. Assim sendo, o comportamento de Guido foi moralmente valioso. E quanto a Fernando que de mau grado teve sucesso? Kant diria que a sua acção não foi ditada pelo sentido do dever mas pelo interesse em não ficar de consciência pesada. Não agiu por dever. Fez contudo o que devia mas com segundas intenções. Ter sido bem sucedido não o torna moralmente mais digno do que Guido.

Atividade 4

1 - Leia o seguinte texto:

«Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina (…) O valor moral da acção não reside, portanto, no efeito (resultado) que dela se espera. Não pode residir em mais parte alguma senão no princípio da vontade (no motivo), abstraindo dos fins que possam ser realizados por tal vontade».

Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pp 30-31

a) Por que razão este texto nos permite concluir que a ética kantiana não é consequencialista?

b) O que distingue uma acção realizada por dever de uma acção em conformidade com o dever?

2 - Tavares reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50 €. Apanhou-a e…que fez?

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Pense em três decisões possíveis de Tavares:

a) Fica com os 50 €.

b) Devolve os 50 € para ficar bem visto e ganhar reputação de honesto.

c) Devolve os 50 € pelo simples facto de que pertencem ao cliente.

Alguma das acções, segundo Kant, é moralmente correcta? Justifique a sua resposta.

3 - Alberto sabe que Vicente é infiel à mulher. Mulherengo aparentemente incorrigível, Vicente gaba-se junto dos amigos das suas várias incursões extra matrimoniais

Esta ausência de escrúpulos morais é para Alberto extremamente indecente. A mulher de Vicente é uma amiga de longa data que Alberto julga estar a ser humilhada sem disso se aperceber. Debate-se então com um problema: se conta a verdade à amiga poderá causar-lhe um enorme desgosto; se decide não intervir torna-se conivente com as mentiras de Vicente. Alberto acaba por revelar a verdade. Julga ser esse o seu dever, considerando que dizer a verdade é mais importante do que causar um desgosto.

Qual pensa que seria a avaliação moral do acto de Alberto por parte de Mill e de Kant? Justifique.

Problema 5

O que distingue a teoria ética de Immanuel Kant da teoria ética de John Stuart – Mill?

Supõe que trabalha num hospital e que um paciente gravemente doente lhe pergunta qual o seu estado de saúde. Sabe que o seu estado de saúde está a deteriorar-se rapidamente e que poucas esperanças de salvação existem. No entanto, com receio de que ao dizer a verdade possa agravar ainda mais a grave situação do paciente decide animá-lo transmitindo-lhe confiança numa recuperação que sabes muito pouco provável. Dizes: «Isso vai, isso vai, tudo vai correr bem! Força!»

Pensa que talvez seja melhor dizer-lhe a verdade numa outra altura. Trata-se de uma mentira piedosa e benevolente, até porque o doente julga sentir-se melhor.

Após esta conversa com o paciente, vai para o seu gabinete e começa a pensar: «E se ele morre de repente e iludido pelas minhas palavras de estímulo decidiu não fazer já o seu testamento. Não serei responsável por esta má consequência de não ter dito a verdade? Mas se tivesse dito a verdade era muito provável que ele ficasse deprimido ao ponto de perder totalmente a vontade de viver e assim apressaria a sua morte. Não seria responsável pelas más consequências de dizer a verdade?

No final deste ponto saberá o que Kant e Mill julgavam que o médico deveria ter feito.

Para compreender a possível resposta destes dois filósofos temos de expor as suas teorias.

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A teoria moral de Kant avalia a moralidade das nossas acções a partir da intenção com que as realizamos. Por sua vez, a teoria moral de Stuart Mill vai avaliar a moralidade das nossas acções avaliando as suas consequências. Denomina-se a teoria moral de Kant, de teoria deontológica, porque é uma doutrina moral que se baseia na noção de dever. Para Kant, na avaliação da moralidade de uma acção aquilo que mais importa é a intenção com que a pessoa age e não as consequências da acção, concretamente, para Kant, a moralidade de uma acção consiste em cumprir o dever por dever.

A teoria de Stuart Mill é denominada de teoria utilitarista, porque defende que o critério para avaliar a moralidade de uma acção é a sua utilidade para o maior número. Uma acção deve ser avaliada pelas suas consequências. É moralmente correcta se promover a felicidade para o maior número de pessoas.

1- A teoria deontológica de Kant.

Immanuel Kant (1724-1804)

Filósofo alemão nascido em Konigsberg, Kant é um dos filósofos mais influentes de sempre. Aos 16 anos ingressou na universidade da sua cidade natal e, concluídos os estudos, trabalhou como preceptor de várias famílias aristocráticas. Em 1755 tornou-se professor sem salário fixo da sua universidade até que em 1770 foi nomeado professor de lógica e de metafísica, cargo que manteve até à sua morte. A partir dos 54 anos começou a escrever as obras que contribuíram para a sua extraordinária reputação. Destacam-se a Crítica da Razão Pura (1781), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica da Razão Prática (1788), Crítica da Faculdade de Julgar (1790) e A Religião nos Limites da Simples Razão (1793). A sua ética revela alguns traços da educação pietista recebida. O pietismo era um movimento religioso que valorizava a interioridade - o sentimento religioso e não os rituais e práticas estabelecidos – negando a necessidade de submissão a organizações eclesiásticas. Outra influência significativa é o racionalismo iluminista, a valorização da razão e a rejeição de uma autoridade exterior a

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esta. Defendeu a liberdade de pensamento e de expressão contra as arbitrariedades do despotismo. A sua moral lança também as bases de uma ética da pessoa – nenhum homem é instrumento ou objecto – cujos princípios influenciaram as Declarações dos Direitos Humanos de 1789 e de 1948. Respeito e dignidade pela pessoa humana são expressões que se tornaram familiares e que Kant explicitou pela primeira vez. O projecto kantiano de uma paz perpétua, de uma Sociedade das Nações para gerir a competição entre nações influenciou a criação a seguir à primeira guerra mundial de uma organização com o mesmo nome, a antepassada da ONU, criada após o cataclismo da segunda guerra mundial.

Uma acção moralmente boa é, para Kant, aquela em que a intenção de quem age é desinteressada. Por intenção desinteressada entende Kant a intenção que não se baseia no interesse particular do agente[1].

Para Kant, uma acção possui valor moral, quando o indivíduo obedece, não aos seus interesses particulares, mas apenas e somente às ordens da sua razão.

É possível agir de acordo com este princípio kantiano?

Sim, é possível.

Pensemos no exemplo do juiz. O juiz na avaliação de uma determinada situação, procura avaliá-la de forma objectiva e imparcial, sem qualquer tipo de interesse particular nessa avaliação. A intenção com que o juiz age na avaliação de um determinado caso é puramente desinteressada. 1

Por que razão a acção cuja intenção é desinteressada é a única acção moralmente correcta para Kant? Porque é o único agir que obedece incondicionalmente às ordens da nossa razão, ordens essas que são universais, as mesmas para todos os seres racionais. Por sua vez, a acção motivada por interesses, é um agir particular, individualizado, que apenas serve os interesses particulares de um certo indivíduo. Quererei eu que o princípio de acção do indivíduo que age por interesse possa ser universalizado? Não. Imagina o caso de um indivíduo A que pede dinheiro emprestado a um outro com a intenção de não devolver o dinheiro. Este indivíduo agiu de acordo com a seguinte máxima: “Sempre que precisar de dinheiro, peço emprestado com a intenção de não o devolver”. Imagina agora que todas as pessoas agiam de acordo com este princípio. As pessoas iriam por deixar de acreditar umas nas outras, gerando-se um profundo clima de desconfiança nas relações entre as pessoas. As promessas deixariam de fazer qualquer sentido.

2 – Agir moralmente é agir por dever.

Temos na nossa sociedade um conjunto de normas morais que nos dizem aquilo que devemos fazer, tais como “Não mentir”, “Não roubar”, “Não matar”, “Não agredir física e psicologicamente o outro”,..., normas essas que a maioria das pessoas da sociedade cumpre. Mas porque é que as cumprem? Ou melhor, de que modo é que as cumprem? Normalmente cumprem-nas (cumprem o dever), não pela obediência a elas mesmas, mas por interesse, (o

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que para Kant não serve). Diz-se então “Não vou mentir”, não porque não devo mentir, mas porque temo as consequências desta minha falta, “Não vou roubar”, não porque não devo roubar, mas porque receio ser preso. Kant apercebeu-se deste problema na forma como a maioria das pessoas age (agir em conformidade com o dever) e enunciou-o da seguinte maneira: a sociedade apenas me diz o que devo fazer, mas não como o devo fazer, com que intenção devo cumprir o dever.

Imperativos hipotéticos e imperativo categórico

O que me diz como cumprir de forma correcta o dever? Uma lei puramente racional que, segundo Kant, está presente na consciência de todos os seres racionais. A essa lei dá Kant o nome de lei moral. Essa lei diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever». Pensa em normas morais como «Não deve mentir»; «Não deve matar»; «Não deve roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual a forma correcta de os cumprir.

A lei moral exige um respeito absoluto pelo dever e apresenta – se sob a forma de imperativo («Deve !»). Que espécie de imperativo é a lei moral?

Pense nos seguintes imperativos:

a) «Deve ser honesto porque a honestidade compensa»

b) «Deve ser honesto!»

Em a) apresenta-se uma regra (deve ser honesto) e a razão pela qual ela deve ser seguida. O cumprimento da regra está associado a uma condição. «Se quere ser compensado deve ser honesto». Trata-se de um imperativo hipotético. Diz que só no caso de querermos ser compensados devemos ser honestos.

O cumprimento do dever subordina-se a uma condição e por isso cumprindo o dever estamos, contudo, a fazê-lo por interesse. Em b) apresenta-se uma regra cujo cumprimento não depende de um interesse que assim queiramos satisfazer. Diz-nos que devemos ser honestos porque esse é o nosso dever e não porque é do nosso interesse. A esta regra incondicional que exige o cumprimento do dever sem qualquer outro motivo a não ser o respeito pelo dever dá Kant o nome de imperativo categórico. Este imperativo exige que ultrapassemos os nossos interesses e ajamos de forma desinteressada. Como é isso mesmo que a lei moral exige, então a lei moral é um imperativo categórico ou incondicional.

O imperativo categórico é o único imperativo moral

O imperativo hipotético é uma ordem condicionada, na medida em que se submete a condições para que cumpramos o dever, dizendo-me o seguinte: “Tu deves fazer isto, se queres obter aquilo”. Por exemplo, eu devo dizer a verdade, se quero ficar bem visto perante os vizinhos do meu bairro. Ora, a expressão que temos aqui tem a seguinte forma: Eu digo a verdade (cumpro o dever) para não ficar mal visto perante os outros (não pelo próprio dever, mas por interesse). Cumpro o dever, não pelo próprio dever, como um fim em si mesmo, mas como um meio para obter um fim. (O imperativo hipotético é o princípio que norteia a acção do indivíduo que age apenas em conformidade com o dever)

Pelo contrário, o imperativo categórico é uma ordem incondicionada, na medida em que não se submete a qualquer condição para que realizemos uma certa acção. Enuncia o seguinte: “Tu não deves mentir aos teus pais, porque esse é o teu dever”. Não devo mentir

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aos meus pais, porque é meu dever não mentir em todas as circunstâncias possíveis e, não por causa de qualquer outro interesse ou inclinação. Neste caso, estou a cumprir o dever pelo próprio dever, não minto porque é meu dever não mentir. Para Kant, mentir é sempre incorrecto, sejam quais forem as circunstâncias em que me encontro, porque para Kant as regras morais são absolutas, não existem excepções para um eventual incumprimento dessas mesmas regras. Cumpro o dever como um fim em si mesmo e não como um meio para obter um outro fim.

(O imperativo categórico é o princípio que orienta a acção do indivíduo que age por dever)

1.3 - Uma acção tem valor moral se a máxima que a orienta puder ser adoptada por todos.

Vimos que agir moralmente é agir por dever, agir por respeito absoluto por uma lei – a lei moral que se apresenta sob a forma de obrigação categórica ou incondicional. (Nota na margem- LEI MORAL - Lei da consciência do ser racional que lhe diz como se cumpre correctamente o dever.) Dissemos que agir de modo moralmente correcto é agir exclusivamente motivado pela vontade de cumprir o dever. Para avaliar moralmente uma acção – para saber se é moralmente correcta ou incorrecta – devemos dar especial atenção ao motivo do agente, ou seja, de quem age. Ora, segundo Kant, o motivo do agente é indicado pela máxima segundo a qual este age. Imagine que encontra uma pulseira de ouro. Se a devolve com a esperança de obter uma recompensa, a máxima segundo a qual age será esta: «Vou devolver algo que encontrei porque acredito que vou ser recompensado por o fazer.». Se a devolve porque tem receio de ser descoberto e eventualmente punido, a máxima será esta: «Vou devolver algo que encontrei porque acredito que posso ser descoberto e punido se não o fizer.» Como pode ver, uma mesma acção – devolver algo encontrado – pode seguir máximas diferentes, ou seja, haver diferentes motivos para a realizar. Por isso mesmo, conforme o motivo ou a razão que nos leva a proceder de um certo modo assim a máxima terá valor moral ou não.

Como posso eu saber que a máxima da minha acção é moralmente correcta ou incorrecta? Submetendo-a a uma prova que teste a possibilidade de a universalizar, isto é, de a fazer valer não só para mim como para todos os seres racionais.

A fórmula da lei universal: como uma máxima se pode tornar lei universal

Kant apresentou várias fórmulas do imperativo categórico – o critério ético fundamental para distinguir acções com valor moral de acções que não cumprem, em virtude das suas máximas, esses requisitos. (NOTAS - Máxima - Quando um agente moral faz algo por alguma razão está a seguir uma máxima. Uma máxima é pois uma regra de acção que nos indica o motivo porque fazemos algo. Para Kant, a avaliação moral de um acto depende da máxima do agente.

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MÁXIMA E IMPERATIVO CATEGÓRICO – O imperativo categórico é o teste que permite verificar se uma máxima pode ser uma norma moral universal, uma regra a que todos devem obedecer. É moralmente errado agir segundo máximas que não podem ser universalizadas, ou seja, é moralmente incorrecto abrir uma excepção para nós próprios quando sabemos que não podemos querer que todos ajam como nós.)

A primeira formulação é de especial importância. Diz:

“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”

Uma máxima é moralmente aceitável se puder ser universalizada. O que quer isto dizer? Que deve poder valer para todas as pessoas transformando-se em princípio universal de conduta: «Todos devem agir assim».

Para esclarecer como a supracitada fórmula do imperativo categórico -conhecida por fórmula da lei universal – serve para testar a correcção moral das nossas máximas, o próprio Kant apresenta um exemplo: imagine que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado mas prometê-lo - mentir – é a única forma de obter aquilo de que precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu dono.” Poderia essa pessoa querer que ela fosse universalmente aceite, querer que todos fizessem o mesmo? Kant está a perguntar se é possível sem contradição querer tal estado de coisas. Ora a obediência universal a tal regra criaria um estado de coisas em que mesmo os seus interesses acabariam por ser lesados. A referida pessoa não pode querer sem contradição universalizar a excepção que abriu para si própria porque se tornará excepção para todos. Se todos nós fizéssemos promessas com a intenção de não as cumprir todos desconfiaríamos delas e o empréstimo de dinheiro baseado em promessas acabaria. A prática de fazer e de aceitar promessas desapareceria.

A fórmula da humanidade: ao cumprir correctamente o dever respeitamo – nos e respeitamos os outros.

Continuando com o mesmo exemplo, pense no modo como quem pede dinheiro emprestado sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como alguém que merece respeito, consideração. Pensa unicamente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a ajudá-lo.

Sempre que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.

Explicitando o conteúdo da primeira fórmula do imperativo categórico (a fórmula da lei universal), Kant resumiu esta ideia numa outra fórmula conhecida por «fórmula da humanidade»:

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Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.

Para Kant, a pessoa tem de ser tratada sempre como um fim em si mesma e nunca como um meio, porque é o único ser de entre as várias espécies de seres vivos que pode agir moralmente. Se não existissem os seres humanos, não poderia haver bondade moral no mundo e, nesse sentido, o valor da pessoa é absoluto.

Segundo esta fórmula, cada ser humano é um fim em si e não um simples meio. Por isso, será moralmente errado instrumentalizar um ser humano, usá-lo como simples meio para alcançar um objectivo. Os seres humanos têm valor intrínseco, isto é, dignidade. Esta dignidade confere-lhes um valor absoluto, não devendo ser tratados como coisas ou objectos. O respeito pela sua dignidade é o respeito pela sua racionalidade. Devido à sua condição de ser racional o ser humano tem um valor incomparável (não comparável com o valor das coisas e dos animais que têm, para Kant, um valor meramente instrumental). Como ser racional nenhum ser humano vale mais do que outro. Uma vida humana não é mais valiosa do que outra nem várias vidas humanas valem mais do que uma. Devido a esta fórmula a ética kantiana é frequentemente denominada ética do respeito pelas pessoas.

A autonomia da vontade

Já sabemos que, para Kant, são dois os critérios sem os quais não podemos atribuir moralidade às nossas acções: 1 - agirmos de acordo com uma máxima universal e 2 – agirmos encarando os outros como fins em si e não simplesmente como meios. Ao agir segundo uma máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar o outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima universal.

É isto o que a lei moral exige. Esta lei é a voz da razão no ser humano que em muitos casos ouve a voz dos seus interesses. A lei moral exige que sejamos racionais. Supõe que pago os impostos simplesmente porque considero ser esse o meu dever. Neste caso, a minha vontade sem ser influenciada por outra coisa (o medo de ser penalizado, a opinião dos outros, etc.) decide fazer o que deve fazer. Kant diz que esta vontade é autónoma. Cumpre o dever pelo dever. É uma vontade boa. A vontade autónoma é a que age por dever.

A heteronomia da vontade é a característica de uma vontade para a qual o cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir. Tem de recorrer a outros motivos (o receio das consequências, o temor a Deus, etc.), a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a sua acção é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. A vontade heterónoma não age por dever. Quando cumpre o dever, cumpre-o por interesse. No melhor dos casos, age em conformidade com o dever. Todas as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas, reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.

Críticas à teoria ética de Kant

1 – As regras morais não são absolutas.

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Kant defende que para agirmos moralmente temos de respeitar de forma incondicional um conjunto de regras morais (deveres ditados pela nossa razão). Para Kant, essas regras morais são absolutas, são para serem respeitadas de forma incondicional, sem excepções, em todas as situações do nosso quotidiano.

Uma dessas regras é o nosso “dever de não mentir”. Para Kant, não devemos nunca mentir. Mas quererei eu que este princípio de acção se aplique universalmente a todos os casos possíveis de acção? Vamos ver um caso em que é preferível mentir do que dizer a verdade, ou seja, em que é moralmente mais correcto mentir do que dizer a verdade. O caso é este: termos de mentir com vista a salvarmos a vida de uma pessoa. (Para Kant tin não existiam excepções para a violação ou desobediência a estas regras morais).

Imagine que vai na rua e de repente vê um rapaz a correr na sua direcção, entrando, logo de seguida, para uma casa abandonada que se encontrava ao seu lado. Poucos segundos depois, quando retomava o seu percurso, avista um homem com uma pistola na mão que lhe pergunta de relance se viu algum rapaz a correr, percebendo você de imediato que o homem teria a intenção de disparar contra o rapaz e, provavelmente, a de matá-lo. O que é que diz ao homem? Tem duas possibilidades de acção.

Uma das possibilidades é dizer a verdade ao homem, dizendo-lhe que o rapaz se encontra mesmo ali ao lado no interior da casa abandonada, sabendo você que as consequências do que disse poderão eventualmente resultar na morte do rapaz.

A outra possibilidade é a de mentir, dizendo ao homem que o rapaz seguiu em frente. Mentir? Mas isso Kant não o permitiria, diria você. Exacto, não o permitiria. Mas o qu para si é moralmente mais correcto: dizer a verdade e pôr em causa a vida de uma pessoa ou mentir e provavelmente salvar a vida de uma pessoa? De acordo com uma das formulações do imperativo categórico de Kant, como iria você querer que todas as pessoas agissem quando confrontadas com essa situação:

1 – Que mentissem e não colocassem em causa a vida de um jovem

2 – Que dissessem a verdade e colocassem em causa a vida de um jovem.

Vamos colocar as duas alternativas na balança da decisão ética. A maioria de nós concordaria com a primeira das hipóteses.

É claro que Kant iria dizer que dizendo a verdade ou mentindo, as consequências são imprevisíveis. Portanto, o melhor é sempre dizermos a verdade, aquilo que a nossa razão nos ordena. Mas isto é pouco plausível, porque um caso como este coloca em causa a vida de uma pessoa e, neste sentido, podemos dizer, que aquilo que decidimos poderá resultar na morte de um jovem.

Ora, este exemplo revela que nem sempre é moralmente correcto termos de respeitar de forma incondicional as regras morais da nossa consciência racional, tal como Kant nos tinha dito. Logo, concluímos que as regras morais não são absolutas.

2 – A situação dos casos de conflito

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Uma certa pessoa tem de optar entre duas possibilidades de acção (fazer A ou fazer B). Verifica-se que, fazer A é moralmente incorrecto e fazer B é moralmente incorrecto. O que faria o defensor da teoria ética de Kant perante esta situação?

Considere a seguinte situação: “Durante a Segunda Guerra Mundial, os pescadores holandeses transportavam, secretamente nos seus barcos, refugiados judeus para Inglaterra, e os barcos de pesca com refugiados a bordo eram por vezes interceptados por barcos patrulha nazis. O capitão nazi perguntava então ao capitão holandês qual o seu destino, quem estava a bordo, e assim por diante. Os pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem. Ora, é claro que os pescadores tinham apenas duas alternativas, mentir ou permitir que os seus passageiros (e eles mesmos) fossem apanhados e executados. Não havia terceira alternativa.”[2]

Os pescadores holandeses encontravam-se então na seguinte situação: ou “mentimos” ou “permitimos o homicídio de pessoas inocentes”. Os pescadores teriam de escolher uma dessas opções. De acordo com Kant, qualquer uma delas é errada, na medida em que, as regras morais “Não devemos mentir” e “Não devemos matar” (ou permitir o assassínio de inocentes, no caso do exemplo dado) são absolutas. O que fazer então?

Verificamos que a teoria ética de Kant não saberia dizer – nos o que fazer nesta situação de conflito, porque proíbe ambas as possibilidades de acção por estas se revelarem moralmente incorrectas. Mas a verdade é que perante uma situação destas, a qual por acaso se passou na realidade, teríamos de optar por uma dessas duas possibilidades. Se a teoria ética de Kant nos proíbe de optar por uma delas, mas na realidade somos forçados a optar por uma, a teoria ética de Kant revela-se incoerente. Incoerente porque aquilo que concluímos (existem casos em que temos de mentir) contradiz aquilo que Kant defende (não devemos mentir nunca e isto porque para Kant as regras morais são absolutas).

3 – O papel que Kant confere aos sentimentos de compaixão e piedade na avaliação da moralidade das nossas acções parece inadequado.

Ex. Imaginemos que uma pessoa x desloca-se a um hospital para visitar um amigo e enquanto aguarda para entrar na sala, observa um doente que se encontra sozinho numa outra sala deitado numa cama. Essa pessoa pergunta ao doente se precisa de alguma coisa e inicia uma conversa com o doente. O doente mostra-se bastante agradecido à pessoa pela sua atenção para com ele, ao que a pessoa x responde de imediato: “Mas, você não tem nada que agradecer. Eu apenas perguntei se precisava de alguma coisa, porque esse é o meu dever, mas não por você se encontrar sozinho ou por reparar que estava a gostar da nossa conversa”.

A pessoa x ajudou o doente, não por um sentimento de compaixão para com o doente, mas porque essa é a sua obrigação moral, neste caso, a obrigação de ajudar os necessitados. De acordo com a teoria ética de Kant, a pessoa x agiu moralmente.

Mas será que devemos agir sempre desta maneira? Poderemos nós auxiliar uma pessoa doente sem nunca revelarmos qualquer sentimento de compaixão ou piedade para com o doente em sofrimento? O que é que diria o doente depois da justificação da pessoa x? Certamente que deixaria de se mostrar agradecido. Logo, concluímos que, por vezes, as nossas

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acções morais têm de ser produzidas por um sentimento de amizade, compaixão ou piedade.

Outro exemplo é o da pessoa que pergunta pela saúde de um nosso familiar ou amigo.

Imaginemos a seguinte situação: O Pedro dirige-se a um café próximo da sua casa e quando chega próximo do balcão, o dono do café, o Sr. Fernando, pergunta-lhe pela saúde do seu tio. O Pedro mostra-se agradecido pela atenção do Sr. Fernando, pela sua sensibilidade e compaixão para com as pessoas em dificuldades, e diz: “Obrigado pela sua atenção, Sr. Fernando, o senhor é uma pessoa com um elevado sentimento de compaixão pela dor dos outros”.

Depois de ouvir esta afirmação do Pedro, o Sr. Fernando responde-lhe: “Mas Pedro, não tens nada que agradecer, eu perguntei pela saúde do teu tio porque é meu dever perguntar pela saúde das pessoas que se encontram em dificuldades, não foi por ter sentido um qualquer sentimento de compaixão ou piedade pelo estado de dor e sofrimento do teu tio.”

De acordo com a teoria ética de Kant, o Sr. Fernando agiu de forma moral, porque ao perguntar pela saúde do tio do Pedro (agiu de acordo com o dever de ajudar pessoas em dificuldades), fê-lo porque simplesmente o deve fazer (porque simplesmente deve ajudar pessoas em dificuldades). Significa isto que, o Sr. Fernando cumpriu o dever (neste caso, ajudar pessoas em dificuldades), não porque essa acção tenha sido produzida por um certo interesse ou inclinação sensível (como a inclinação sensível da compaixão ou da piedade), mas porque simplesmente deve cumprir o dever (o dever de ajudar em toda e qualquer circunstância pessoas em dificuldades).

Mas será que é moralmente correcto agirmos da maneira como o Sr. Fernando agiu? Será que é possível não sentir compaixão ou piedade pelos outros? Aquilo que este exemplo nos transmite mais uma vez, é que, por vezes, as nossas acções morais têm de ser produzidas por um certo sentimento de compaixão, caso contrário, perdem o seu valor moral.

Verificamos a partir deste exemplo que a teoria ética de Kant apresenta falhas.

2. A teoria utilitarista de John Stuart-Mill

John Stuart Mill (1806-1873)

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Filósofo inglês foi uma criança extraordinariamente precoce que, educada nos primeiros anos de vida pelo pai, já estudava grego aos 3 anos, latim aos 6 e lógica, filosofia, economia, matemática e química por volta dos 8 anos. É o principal representante do empirismo inglês do século XIX. A sua principal obra de ética intitula-se Utilitarismo e foi publicada em 1861. Nela defende uma ética de tipo consequencialista e hedonista que considera que o critério último da moralidade de uma acção é a sua utilidade, isto é, a felicidade - o prazer ou a ausência de dor - que dela resulta para o maior número de pessoas envolvidas. Rejeitou o cálculo hedonista do seu mestre Bentham distinguindo entre a qualidade e a quantidade dos prazeres. Não reduz a felicidade ao prazer sensorial ou físico, considerando superiores os prazeres que resultam das actividades intelectuais. A perspectiva de Mill, conhecida pelo nome de utilitarismo clássico, continua a ser amplamente debatida no século XXI e desenvolvida e rectificada em alguns pontos deu origem a novas versões do utilitarismo. Os filósofos utilitaristas mais representativos actualmente são Richard Hare e Peter Singer.

Mill envolveu-se vigorosamente em causas políticas e sociais consideradas radicais para a época: era a favor da igualdade de direitos entre homens e mulheres defendendo especialmente o direito das mulheres ao voto. Argumentou a favor dessas causas em vários escritos e como membro do Parlamento.

Obras principais: Sistema de Lógica (1843); Utilitarismo (1861); Sobre a Liberdade (1859) considerada pelo próprio a sua mais importante obra.

Para Stuart Mill, o critério para verificar a moralidade das nossas acções encontra-se nas consequências das mesmas, naquilo que resulta destas. É porque apenas dá atenção às consequências das nossas acções, que se diz que a teoria de Mill é consequencialista. É uma forma de consequencialismo chamada utilitarismo, no sentido em que a acção é boa ou má, consoante seja útil ou não para o maior número possível de pessoas.

Mill enuncia o princípio utilitarista do seguinte modo: “A máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas é a medida do bem e do mal.”

Para Mill, a felicidade geral é a única coisa desejável por si mesma, enquanto todas as outras coisas são apenas encaradas como um meio para obter um fim, fim esse que é a felicidade.

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O argumento apresentado por Mill para justificar que a felicidade geral é algo de desejável por si mesmo (por todos nós) é o seguinte:

Cada pessoa deseja a sua própria felicidade

A felicidade de cada pessoa é um bem para essa pessoa

Logo, a felicidade geral é um bem para o conjunto de todas as pessoas.

A partir deste argumento, de que a felicidade geral é a única coisa desejável por si mesma, Mill vai defender que quando agimos devemos procurar visar essa mesma felicidade geral. Assim, a partir do argumento anterior construímos o seguinte argumento:

A felicidade geral é um bem para o conjunto de todas as pessoas

Logo, cada pessoa deve agir de modo a promover a felicidade geral

Verificamos assim que, para Mill, o fim – a felicidade geral – justifica, em certa medida, os meios. Significa isto que, para Mill, uma acção será boa desde que a quantidade de pessoas a que a nossa acção causa felicidade ou bem – estar seja superior ao número de pessoas a que causamos dor ou sofrimento. Ou seja, para Mill, é suficiente que a felicidade produzida com a acção seja superior ao sofrimento eventualmente provocado com a sua realização para que a acção seja boa e é neste sentido que há uma superioridade dos fins da acção (a maior felicidade possível para o maior número possível) sobre os meios (mesmo que a acção cause sofrimento a algumas pessoas).

Vemos que o critério da moralidade de um acto é o princípio de utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das acções. Uma acção deve ser realizada se e só se dela resultar a máxima felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são afectadas. (Nota - PRINCÍPIO DE UTILIDADE - Conhecido também como princípio da maior felicidade. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa acção resulte a maior felicidade possível para as pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade. Costuma-se resumir o princípio de utilidade mediante a fórmula «A maior felicidade para o maior número». Esta fórmula foi cunhada por Francis Hutchinson e não aparece tal e qual nos escritos de Mill.)

Analisando este princípio moral fundamental destacam-se duas ideias importantes:

a)Ao contrário de Kant não testamos a correcção moral de uma acção baseando-nos no motivo ou intenção do agente mas sim nos resultados objectivos da acção. Muitas pessoas pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um acto a boa intenção do agente deve contar na avaliação do que fez. Mill discorda completamente: evitar que uma pessoa se afogue é sempre bom independentemente da motivação de quem salva. A motivação ou a intenção nada tem a ver com a moralidade da acção.

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b)A acção correcta é a que, nas circunstâncias em que ocorre, tem mais probabilidade de produzir mais felicidade em termos globais do que outra acção. Se perguntasse a Mill «A felicidade de que fala é a felicidade de quem?» a resposta seria aproximadamente esta: «Quando se trata de decidir o que é moralmente correcto fazer, não deve ter em conta somente o seu bem-estar. Deve ponderar sobretudo que consequências a sua acção vai ter no bem-estar de todas as pessoas por ela afetadas. A sua felicidade não conta mais do que a felicidade dessas pessoas. E quando me refiro a outras pessoas não abro excepções para as de que mais gosta, para familiares e amigos seus. Deve ser imparcial quando deliberas o que vais fazer». (NOTA– Para o utilitarismo o que conta é a quantidade total de felicidade que resulta de um acto e não que tipo de pessoas são beneficiadas. É indiferente saber por quem se distribui a felicidade, para quem ela vai. Critica-se o utilitarismo por ser demasiado imparcial.)

2.1. A minha felicidade não conta?

Se o critério da moralidade de um acto é a sua capacidade de promover a felicidade geral, se a minha felicidade não é mais importante do que a felicidade dos outros será que devo abdicar sempre da minha felicidade em nome da felicidade geral? Que dizer dos meus projectos pessoais, dos meus gostos particulares e das minhas distracções, dos meus compromissos e obrigações familiares?

Suponha que gosta de ouvir música e dedica algum tempo por dia a esse prazer. Não poderia fazer outra coisa? É claro que sim. Poderia envolver-se em actividades que tendem a atenuar o sofrimento dos milhões de pessoas que neste mundo vivem miseravelmente. Haveria mais felicidade global. Ao ouvir música é a única pessoa que está beneficiar do seu acto ou pelo menos há actividades alternativas que beneficiam mais pessoas. Imagine que vai ao cinema com a sua namorada. Deve perguntar se nesse momento não poderia desenvolver uma actividade mais útil para um maior número de pessoas? E se gosta de história desejando ser investigador deve renunciar e seguir uma carreira científico-tecnológica porque o seu país precisa de profissionais qualificados nessa área? Seria mentalmente desgastante pensar sempre no bem – estar geral e em beneficiar o maior número possível em tudo o que fazemos. Estariam arruinadas as nossas relações pessoais e as nossas obrigações familiares. (NOTA – Uma das principais críticas dos adversários do utilitarismo é a de que exige demasiado do agente moral ameaçando e desvalorizando a sua integridade pessoal. Mas Mill, pelo menos, nunca disse que sendo a promoção do bem estar geral o nosso dever fundamental a devíamos promover a todo o custo.)

O utilitarismo de Mill não defende que tenhamos de renunciar à nossa felicidade, a uma vida pessoal em nome da felicidade do maior número. Um altruísmo que nos transformasse em indivíduos sem vida própria seria absurdo. A harmonia entre os interesses do indivíduo e os interesses do todo é um ideal e não um projecto totalitário. Trata-se através da educação segundo o princípio de utilidade de abrir um espaço amplo para que a inclinação para o bem geral se sobreponha com frequência cada vez maior ao egoísmo. O princípio da maior felicidade em Mill exige que cada indivíduo se habitue a não separar a sua felicidade da felicidade geral sem deixar de ter projectos, interesses e vida pessoal.

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2.2.O problema da previsão das consequências: não é o futuro incerto?

O utilitarismo de Mill apresenta um duplo aspecto: é uma teoria hedonista e consequencialista. O aspecto hedonista corresponde ao princípio de utilidade (a maior felicidade, prazer ou bem-estar para o maior número). O princípio consequencialista determina que uma acção é correcta se os seus efeitos ou resultados forem bons. Será incorrecta se os seus resultados forem maus ou não tão bons como poderiam ser. Sintetizando estes dois princípios obtemos a caracterização de acção moralmente correcta: uma acção é correcta se produz mais prazer do que dor e incorrecta se dela resulta mais sofrimento do que prazer para a maioria das pessoas envolvidas. (NOTA – As consequências são os efeitos benéficos ou prejudiciais que resultam de uma acção e afectam as pessoas envolvidas incluindo a pessoa que a realiza.)

Vimos como Mill teria respondido à objecção de que a procura imparcial da felicidade para o maior número destruiria ou pelo menos ameaçaria seriamente a nossa integridade pessoal, a dedicação a projectos e interesses pessoais.

E como responderia à objecção de que é impossível avaliar moralmente uma acção com base no critério consequencialista porque não podemos prever ou calcular quais serão no futuro as consequências do que decidimos fazer?

As acções têm consequências imediatas e consequências a longo prazo. Estas últimas são muito difíceis de prever porque uma acção causa um certo estado de coisas, que por sua vez produz outro e assim sucessivamente, escapando ao nosso controlo. Como decidir que uma acção é boa se ainda não sabemos quais as suas consequências? Quanto tempo temos de esperar para saber se as nossas acções são boas ou más, tiveram bons ou maus resultados?

A resposta de Mill seria aproximadamente esta:

1 – Não temos de calcular todos os efeitos das nossas acções porque podemos apoiar-nos na experiência de séculos da humanidade. Se ao longo de milénios os seres humanos tiveram de resolver problemas morais semelhantes aos nossos podemos aprender com os seus erros e sucessos para enfrentar os nossos problemas.

2 – Quanto a esperar para saber se as consequências das nossas acções são boas devemos somente esperar uma razoável quantidade de tempo, que será maior consoante a complexidade das situações. Seja como for devemos saber conviver com a incerteza quanto ao futuro e basearmo-nos em expectativas razoáveis. É verdade que não podemos prever com certeza o futuro. Contudo, se temos boas razões para acreditar que de uma acção vão resultar as melhores consequências entre as alternativas disponíveis, então devemos realizá-la. Dadas as nossas limitações o que cada agente moral deve fazer é utilizar a melhor informação disponível para obter os melhores resultados.

Imagine que a avó de Ted Bunty, um assassino em série que matou dezenas de jovens estudantes americanas nos anos sessenta e setenta, o transportava ao colo quando bebé a caminho do centro de saúde. Ao subir as escadas escorregou e ficou na seguinte situação: se deixasse cair o bebé este morreria em virtude de graves ferimentos; se o mantivesse ao colo

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salvava o neto mas fracturava o braço. A avó escolheu o seu mal-estar poupando o neto. Podemos dizer que teria sido melhor para as futuras vítimas do então bebé Ted Bunty que a avó o tivesse deixado cair. Não podemos é dizer que ela devia ter previsto as consequências a longo prazo da sua decisão. Fez o que qualquer pessoa razoável faria.

O utilitarismo de Mill não exige nem que renunciemos à nossa individualidade pensando unicamente na felicidade geral nem que estejamos sempre a calcular as consequências das nossas acções. No primeiro caso, a eventual obsessão com a felicidade geral seria contraproducente porque viver no limiar da pobreza ou prescindir de quase tudo o que gostamos de fazer não é, na maioria dos casos, a forma ideal de promover a felicidade geral. No segundo caso, há situações que exigem decisões rápidas e pensar demais nas consequências do que faremos pode paralisar-nos e mais prejuízo do que benefício resultará eventualmente da nossa indecisão. (NOTA - Critica-se o utilitarismo por se concentrar demasiado no futuro, isto é, nas consequências prováveis das acções esquecendo que acções passadas criam obrigações que não podem ser suplantadas pela consideração da felicidade geral.)

O Utilitarismo e a teoria kantiana.

Tal como em Kant, também em Mill há um princípio em que as nossas acções se devem basear para terem valor moral. Enquanto em Kant esse princípio era o do “cumprimento do dever pelo próprio dever”, em Mill esse princípio é o de “produzir a máxima felicidade possível para o maior número possível de pessoas”.

A teoria utilitarista, segundo alguns dos seus defensores, dá melhor resposta do que a ética kantiana a vários problemas: 1 - O problema das regras morais absolutas; 2 - O problema dos casos de conflito moral e 3 - O problema da ausência de compaixão ou afectividade na realização de algumas das nossas acções.

Em relação ao problema das regras morais absolutas, a que a teoria ética de Kant não deu uma resposta satisfatória quando confrontada com a situação de ter de mentir para salvar a vida de uma pessoa, a teoria utilitarista diria que é-nos permitido mentir desde que essa nossa decisão promova a felicidade do maior número de pessoas possível.

Se bem se recorda da situação da pessoa que foi colocada perante o dilema de ter de mentir e salvar a vida de uma pessoa, o utilitarista resolvia esta situação optando por mentir e provavelmente salvar essa vida. Mentir e provavelmente salvar a vida de uma pessoa, causa menor dor ou sofrimento (neste caso, à pessoa em fuga) do que dizer a verdade e colocar em causa a vida de uma pessoa.

Assim, confrontado com esta situação, o utilitarista mentiria, obedecendo desse modo ao princípio da sua teoria que diz: “Deve procurar agir de modo a promover a felicidade ou bem-estar do maior número de pessoas.”

A grande diferença na resolução desta situação entre a teoria ética de Kant e a de Mill, é que em Kant as regras morais são absolutas (são para ser cumpridas em todas as circunstâncias da nossa existência), enquanto em Mill não existem regras morais absolutas.

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Em relação ao problema dos casos de conflito, dos casos em que estamos perante uma situação em que temos duas possibilidades de acção e qualquer uma dessas alternativas é moralmente difícil, o utilitarista escolheria aquela que promovesse a máxima felicidade para o maior número possível de pessoas.

Se bem se lembra da situação que foi apresentada, os pescadores holandeses apenas tinham duas opções: ou mentiam ao chefe do barco patrulha nazi e salvavam a vida dos tripulantes judeus e a sua ou diziam a verdade e originavam a morte dos tripulantes judeus e até a sua morte. Perante esta situação, o defensor da teoria ética de Kant não sabia por qual das duas possibilidades de acção se decidir, porque qualquer uma das duas opções “mentir” ou “permitir a morte de alguém” (ainda que de forma indirecta) são moralmente incorrectas.

O utilitarista resolvia este problema optando por mentir ao chefe do barco patrulha nazi. Entre mentir e salvar a vida dos tripulantes judeus e dizer a verdade e causar a mais que certa morte de todos os tripulantes do barco, aquela opção que causa uma menor dor ou sofrimento ao maior número de pessoas é certamente a primeira, a de mentir e salvar a vida dos tripulantes.

Em relação à situação de ajudar os outros por um sentimento de piedade ou compaixão, acção que o defensor da ética kantiana considerava sem valor moral, o utilitarista diria que a acção teria valor moral desde que promovesse a felicidade das pessoas que nós ajudamos, independentemente de ter sido ou não provocada por um sentimento de compaixão.

Atividade 5

1 - Leia o texto seguinte:

«Todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível (o dever) como meio de alcançar qualquer coisa que se quer ou que é possível que se queira. O imperativo categórico é aquele que nos representa uma acção como objectivamente necessária (como devendo ser feita) por si, sem relação com qualquer outra finalidade. No caso de a acção ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo que a ordena é hipotético; se a acção é boa em si (…) então o imperativo é categórico.

(Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes)

a) Distinga imperativos categóricos de imperativos hipotéticos.

b) Para Kant só as acções ordenadas por um imperativo categórico são moralmente correctas. Porquê?

2 - Alguma das seguintes proposições é um imperativo categórico? Justifique a sua resposta:

a) «Não roubes para não defraudares as expectativas de quem em ti confiou».

b) «Não mintas por melhores que possam ser as consequências desse acto».

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c) «Paga os impostos porque podes ter dinheiro a receber».

d) «Não deves conduzir se tiveres bebido demasiado».

3 - Para Kant, certo tipo de acções tais como matar, roubar e mentir são absolutamente proibidas. São acções intrinsecamente incorrectas e os deveres que as proíbem devem ser respeitados independentemente das consequências e das circunstâncias. Esses deveres são imperativos categóricos ou hipotéticos? Justifique a sua resposta.

4 - A questão seguinte é de escolha múltipla. Seleccione a alternativa correcta justificando a sua opção.

Segundo Kant uma acção moralmente correcta é aquela em que fazemos o que está certo:

a) Pelos motivos errados;

b) Por motivos pessoais;

c) Por compaixão;

d) Imparcial e desinteressadamente

5 – Considere a seguinte máxima: «Sempre que não me sentir preparado para um exame irei colar ou copiar». Pode esta máxima ser universalizada sem contradição?

6 – Nas situações hipotéticas descritas a seguir identifique (justificando as suas respostas) as que violam e as que não violam a segunda fórmula do imperativo categórico:

a) Deseja um telemóvel de última geração para impressionar os seus colegas de escola. Não tem, contudo, dinheiro para o comprar nem é provável que nos tempos mais próximos o consiga. Numa festa de aniversário alguém esquece por momentos um magnífico telemóvel em cima da mesa. Apodera-se do telemóvel e no dia seguinte é um sucesso entre os seus colegas.

b) E se em vez de se apoderar do telemóvel sem intenção de o devolver unicamente o utilizasse durante alguns dias para depois o devolver ao seu dono?

c) A disciplina de física e química está a causar-lhe dificuldades. Decide recorrer a um explicador e acerta com ele o custo de cada sessão de explicações pagando cada mês o que é devido.

d) João decide casar com uma mulher que não ama.

e) É forçado a alistar-se nas forças armadas do seu país para o defender de uma invasão estrangeira.

f) Descontente com o resultado de um teste, Alberto chega a casa e destrói boa parte dos brinquedos do irmão mais novo.

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7 - Segundo o princípio ético fundamental do utilitarismo:

a) Estamos proibidos de procurar a nossa felicidade;

b)Mais do que pensar no bem-estar dos outros devemos preocupar-nos em não os prejudicar;

c)Uma acção é correcta se produzir bem-estar.

d)Uma acção é correcta se produzir mais bem-estar do que qualquer outra acção possível ao agente no momento.

8 - Leia o seguinte texto

«Não é um defeito de qualquer credo (teoria moral), pois isso resulta da natureza complicada dos assuntos humanos, que as regras de conduta não possam ser concebidas de modo a não requerer excepções e que dificilmente qualquer espécie de acção possa ser estabelecida seguramente como ou sempre obrigatória ou sempre condenável. (…) Se a utilidade é a fonte última das obrigações morais, então pode ser invocada para decidir entre elas quando as suas exigências são incompatíveis. Embora a aplicação do padrão possa ser difícil, é melhor tê-lo do que não ter nenhum (…)»

Mill, Utilitarismo, 1861,pp 69-72

a)Segundo Kant certos deveres são absolutos e por isso as acções que os violam não devem nunca ser realizadas. A partir deste texto pensa que Mill está de acordo? Justifique.

b)Neste texto Mill estabelece uma relação entre as regras de conduta (as normas morais comuns) e o princípio de utilidade. Por que razão pode concluir da leitura do texto que as normas morais comuns são regras subordinadas?

9 – Suponha que o Miguel quer comprar um televisor LCD mas não tem dinheiro suficiente. Durante um jantar de aniversário repara que um amigo tem várias centenas de euros na carteira. Mal a oportunidade surge apodera-se da carteira e rouba quase todo o dinheiro que esta contém.

Segundo o utilitarismo de Mill podemos dizer que Miguel agiu bem? Imagine que o amigo do Miguel é muitíssimo rico e que a sua irritação por perder o dinheiro será menos intensa e menos duradoura do que o prazer do Miguel por ter conseguido comprar o televisor. Além disso, sendo rico é muito provável que rapidamente esqueceria ter sido roubado. Ponderando estes factores, Mill consideraria correcto o acto do Miguel?

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10 – Suponha que duas pessoas caem de um barco e estão em risco de se afogar. Não tens tempo para salvar os dois. Leva tanto tempo a decidir-se, ponderando imparcialmente quem socorrer que a certa altura é tarde demais. Na perspectiva utilitarista agiu bem?

11 - Na obra de ficção Génese e Catástrofe um médico salva a vida de mãe e filho num parto muito difícil. Depois de tudo resolvido as palavras do médico são: «Agora está tudo bem, senhora Hitler». Pode esta história ser considerada uma crítica justificada do utilitarismo?

12 - De um milionário prestes a morrer recebo um cheque de 500 mil dólares. Comprometo-me a cumprir a sua última vontade: entregar essa quantia ao presidente do seu clube de futebol preferido. Contudo, a caminho do estádio, uma campanha contra a fome no mundo chama a minha atenção. Surge um conflito moral: devo ser fiel à minha promessa ao moribundo ou contribuir para salvar milhares de pessoas famintas?

a) Imagine que é adepto da ética kantiana. Que resposta daria a este problema? Justifique a sua resposta.

b) Imagine que é utilitarista. Daria a mesma resposta a este problema? Justifique a sua resposta.

13 - José, um cientista botânico de visita à América do Sul, chega a uma aldeia onde Pedro, um militar se prepara para ordenar a execução de vinte índios. A população da aldeia tem protestado frequentemente contra a política do governo. Para aterrorizar a população da aldeia Pedro recebeu ordens para escolher vinte pessoas e fuzilá-las. Trata-se de pessoas inocentes. José sente revolta perante a situação e dá sinais do seu descontentamento. Apercebendo-se disso, Pedro decide dar-lhe a possibilidade de intervir. Propõe-lhe que se matar um dos vinte índios, salvará a vida dos outros dezanove. Se recusar esta proposta as vinte pessoas inocentes morrerão.

Suponha que João, com muito desconforto, aceita a proposta.

a) Qual seria a avaliação que um kantiano faria desta acção? Pense na segunda fórmula do imperativo categórico para tentar responder.

b) Está de acordo com a avaliação kantiana deste acto? Justifique.

BIBLIOGRAFIA

Kant, Immanuel (1785) Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2000, Secções I e II.

. Kenny, Anthony (1998) «A Filosofia Moral de Kant», in História Concisa da Filosofia Ocidental. Lisboa: Temas e Debates, 1999, pp. 345 – 348.

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Rachels, James (2003) «Haverá Regras Morais Absolutas?», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004, Cap. 9.

Mill, John Stuart (1871) Utilitarismo. Lisboa: Gradiva, 2005.

Smart, J. J. C. e Williams, Bernard (1973) Utilitarianism: For and Against. Cambridge: Cambridge University Press.

Madeira, Pedro (2005) «Introdução», in Utilitarismo, de John Stuart Mill. Lisboa: Gradiva, 2005.

. Rachels, James (2003) «O Debate sobre o Utilitarismo», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004, Cap. 8.

Rachels, James (2003) «A Abordagem Utilitarista», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004, Cap. 7.

RECURSOS NA INTERNET

. Rawls, John (2000) «A Primeira Formulação do Imperativo Categórico de Kant», in Crítica, 2006, http://criticanarede.com/eti_kantrawls.html.

. Sober, Elliott (2000) «A Teoria Moral de Kant», in Crítica, 2006, http://criticanarede.com/eti_kant.html.

VIDEOGRAFIA

1 - Proposta Indecente (1995) de Adrian Lyne

Um casal em dificuldades financeiras recebe uma proposta tentadora de um milionário que oferece um milhão de dólares para passar uma noite com a esposa.

2 - Quiz Show de Robert Redford (1994)

Final dos anos 50. Charles Van Doren é um professor de literatura, filho de um conceituado vencedor do Prêmio Pulitzer, Mark Van Doren, que tentou a sorte no "Twenty-One", um programas de perguntas e respostas. Aí defronta Herbie Stempel, um judeu de memória enciclopédica. Charles descobre que se tratava de um jogo de cartas marcadas, pois os candidatos sabiam previamente que perguntas seriam feitas. Os produtores consideraram que Charles encarnava melhor a imagem de um vencedor, o que fez com que Stempel se sentisse preterido e ameaçasse denunciar a fraude, caso não lhe pagassem uma grande quantia. Como isto não surtiu efeito Stempel denunciou a farsa, que se tornou um grande escândalo nacional.

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3 - A idade da inocência de Martin Scorsese (1993)

Nova York, 1870. Um advogado está de casamento marcado com uma jovem da aristocracia local, quando uma condessa, prima de sua noiva, volta da Europa após separar-se do marido. As suas ideias dela chocam a tradicional sociedade americana. Ao tentar defendê-la, o advogado se apaixona-se por ela e é correspondido. Segue-se a luta entre o dever e o desejo.

4 - Jardins de Pedra, de Francis Ford Coppola (1987)

Uma unidade do Exército é encarregada das homenagens aos oficiais mortos em combate que são enterrados nos Jardins de Pedra, como é conhecido o cemitério de Arlington, em Washington. Um dedicado coronel não acredita na vitória americana no Vietnam. Mas considera seu dever treinar os soldados o melhor possível. Especialmente o idealista filho de um ex-combatente seu amigo.

5 - A escolha de Sofia, de Alan J. Pakula (1982)

Em 1947 Stingo, um jovem aspirante a escritor, vai morar em Brooklyn na casa de Yetta Zimmerman que alugava quartos. Lá conhece Sofia Zawistowska, sua vizinha do andar de cima, que é polaca e fora prisioneira num campo de concentração nazi e Nathan Landau, seu namorado, um carismático judeu dono de um temperamento muito instável. Em pouco tempo tornam-se amigos, mas Stingo não tem a menor ideia dos segredos que Sofia esconde (da sua terrível experiência nos campos de extermínio nazis) nem da insanidade de Nathan.

6 - Crimes e Escapadelas, de Woody Allen (1989)

O filme trata em separado de duas histórias de adultério.

O oftalmologista Judah Rosenthal tem, há vários anos um caso com Dolores e agora esta ameaça arruinar a sua vida se não casarem. Quando o seu irmão Jack sugere que que mate Dolores, Judah enfrenta um dilema: ou vê sua vida destruída ou mata Dolores.

Na outra história, um realizador de documentários, infeliz com o seu casamento, tenta resistir a uma tentação adúltera.

7 - A Bronx Tale, de Robert de Niro (1993)

Callogero Anello é um rapaz de 9 anos que vive num bairro violento onde abundam bares de gangsters, atitudes e comportamentos racistas. Um dia assiste a um tiroteio em que o gangster mais poderoso do bairro, Sonny, mata uma pessoa. Recusa denunciá-lo à polícia, o que o faz cair nas boas graças de Sonny. Este começa a educá-lo para a vida difícil nas ruas. O pai de Callogero, um condutor de autocarros, desaprova a relação com Sonny porque pretende um futuro honesto para o filho. Apesar da oposição do pai, Callogero continua durante a sua adolescência a receber os ensinamentos de Sonny que, contudo, o avisa de que a vida de gangster é arriscada e perigosa. Uma história do Bronx é a narrativa de um jovem que recebe duas educações: a tradicional (a da escola e da família) e a das ruas perigosas do bairro nova-iorquino.

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8 - O Enigma da Caixa de Música, de Costa- Gravas (1989)

Anne Talbot, uma prestigiada advogada criminal defende o seu pai, Mike Laszlo que é acusado de crimes de guerra, cometidos presumivelmente como membro da Secção Especial Nazi da Hungria há quase cinquenta anos. À medida que surgem novas provas e no momento em que o julgamento é transferido para Budapeste, Anne começa a duvidar da inocência do seu pai e a ficar dividida entre o dever da verdade e o desejo de que o pai esteja inocente.

9 - Fúria de viver,"Rebel Without a Cause" (1955) de Nicholas Ray

Problema 6

O que é moralmente correcto? O que eu penso e sinto que é moralmente certo?

Suponha que caíu nas mãos de um grupo de cientistas de outro país. Pretendem que seja a cobaia de experimentações científicas que consideram muito importantes e que ao mesmo tempo além de muito dolorosas provocarão a sua morte. Justificam a sua acção dizendo que esses experimentos farão avançar enormemente a ciência ao permitir descobrir medicamentos que beneficiarão milhões de pessoas em todo o mundo. Protesta dizendo que os meios para tal fim são absolutamente errados. Contudo, explicam-lhe pacientemente que a moral é relativa, uma simples questão de opinião pessoal. Pensam que usar o seu corpo para o fim em vista é moralmente correcto e como matar em nome da pesquisa médica não é ilegal no seu país, explicam – lhe que a sua revolta é simplesmente uma opinião sua e nada mais. Perguntam-lhe: «Quem é você para dizer o que é moralmente correcto ou incorrecto? Cada pessoa tem de julgar por si o que é certo e errado.»

Imagine que duas pessoas discutem se devemos cremar ou enterrar os mortos. Não parece haver uma razão suficientemente forte para dizer que um está certo e o outro errado. A teoria chamada subjectivismo moral dirá que cada indivíduo julga a situação a partir do seu próprio código moral (um conjunto de princípios e de normas) e que nenhum desses códigos é mais verdadeiro do que o outro. Este exemplo dá a impressão de que o subjectivismo moral é correcto. O problema é saber se todas as questões morais se podem resolver de uma forma tão fácil adoptando a perspectiva relativista do subjectivismo ético. (NOTA - Subjectivismo moral - Forma de relativismo segundo a qual cada indivíduo responde às questões morais baseado no seu código moral pessoal e não pode estar errado se os seus juízos corresponderem aos seus sentimentos. Para o subjectivista os nossos juízos morais baseiam-se nos nossos sentimentos e como os sentimentos são subjectivos nenhum juízo moral é objectivamente certo ou errado. É também denominado relativismo individual.)

O subjectivismo moral, como já dissemos, é uma forma de relativismo porque entende que a verdade ou a falsidade dos juízos morais depende (ou é relativa a) das crenças e opiniões de cada indivíduo, em suma, do seu código moral pessoal. Um acto é correcto ou errado se um

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determinado indivíduo o considerar correcto ou errado. Assim, suponhamos que o João diz que é correcto matar animais para comermos a sua carne e o Miguel diz que esse acto é moralmente reprovável além de desnecessário. Se adoptarmos o subjectivismo ético, como avaliaremos estas duas teses? Segundo o subjectivismo ambos os juízos morais são verdadeiros porque cada um está em conformidade com os princípios em que cada um dos indivíduos acredita. Uma vez que João aceita o princípio de que matar animais para os comer não é incorrecto, o seu juízo é verdadeiro para ele. Como Miguel tem como princípio moral pessoal que é errado matar animais para esse fim, o seu juízo também é verdadeiro. Para o subjectivismo moral não tem sentido perguntar quem está errado acerca da correcção ou incorrecção moral de matar animais para os comer. A cada qual a sua opinião de acordo com aquilo em que acredita e em nenhum caso o juízo moral de uma pessoa é mais correcto ou razoável do que o de outra.

O subjectivismo moral é a teoria segundo a qual o valor de verdade dos juízos morais depende das crenças, sentimentos e opiniões dos sujeitos que os emitem. Os juízos morais exprimem sentimentos de aprovação e de desaprovação e dependem desses sentimentos. Não há verdades morais objectivas e universais. (Nota – O subjectivismo moral nega que haja objectividade em ética e não admite que haja valores absolutos. Opõe-se ao absolutismo moral e ao objectivismo moral. Devemos distinguir estas duas últimas teorias. O absolutismo moral afirma que há princípios morais que não podem nunca ser violados, não admitem excepções sejam quais forem as consequências. Kant defende esta posição. O objectivismo moral defende que há princípios e juízos morais que apesar de universais não são absolutos. Mentir é algo sempre inaceitável para o absolutismo moral. Para o objectivismo, embora Não mintas! seja uma norma objectiva pode, em certas circunstâncias, ser suplantada por outra mais importante como salvar uma vida)

Assim, dizer Roubar é errado significa Desaprovo o roubo. Se a pessoa que faz este juízo realmente desaprova o roubo, então esse juízo é pelo menos para ela verdadeiro, ou seja, é realmente verdadeiro para essa pessoa que roubar é errado. O subjectivismo ético reduz os juízos morais a opiniões e sentimentos e pode resumir-se nesta simples fórmula: «A cada um a sua verdade».

Argumentos a favor do subjectivismo ético

Os defensores do subjectivismo ético apresentam vários argumentos a seu favor:

a) O subjectivismo ético parece respeitar a liberdade e a autonomia das pessoas.

Uma vez que reina discórdia entre os seres humanos acerca de questões morais, o subjectivista não admite que alguém tenha o direito de julgar no lugar dos outros o que é certo e errado. Cada um de nós, baseado nos seus sentimentos e gostos é capaz de distinguir o certo do errado. Ninguém é melhor do que os outros em assuntos morais sendo ilegítimo querer impor a sua perspectiva aos outros. Não devemos julgar os outros, não temos o direito a um tal exercício de autoridade. Cada um deve ter a liberdade e a autonomia para decidir o que é moralmente correcto ou incorrecto.

Ao rejeitar o absolutismo moral e também o relativismo moral cultural (a maioria dos membros da sociedade é que determina o certo e o errado), o subjectivismo moral acredita

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dar a importância devida à liberdade individual. É moralmente incorrecto que alguém tente impor aos outros as suas concepções morais porque nenhum de nós possui a verdade absoluta sobre estes assuntos. Não há princípios e normas morais a não ser os que cada indivíduo escolhe para si mesmo.

b) O subjectivismo ético parece tornar compreensível o progresso moral devido à intervenção de alguns reformadores morais.

Os reformadores morais foram pessoas que desafiaram as concepções morais vigentes num dado momento da história em nome de convicções pessoais. Como o subjectivismo ético rejeita a subordinação do indivíduo ao modo de pensar da maioria da sociedade e não acredita em verdades morais absolutas e objectivas, parece estar em boas condições para justificar a rejeição por parte de certos indivíduos daquilo que a maioria pensou e tentou impor. Cada um de nós decide de modo autónomo o seu estilo de vida e os valores que estão correctos. Quem desafia os valores estabelecidos está a agir correctamente desde que esteja a ser fiel aos seus sentimentos.

b) O subjectivismo moral parece promover a tolerância.

Aos que defendem a tolerância e o diálogo entre culturas, os subjectivistas morais defendem que também os indivíduos devem ser tratados com tolerância. O subjectivismo ético, a que podemos chamar relativismo individual, afirma que todas as opiniões acerca de assuntos morais e estilos de vida devem ser consideradas igualmente boas. A tolerância parece ser um elemento central do subjectivismo moral. Ninguém pode dar lições de moral a ninguém. A cada qual a sua verdade e assim deve ser.

Críticas ao subjectivismo moral.

O subjectivismo moral é também alvo de fortes objecções:

a)O subjectivismo ético é contraditório

O subjectivismo moral nega que haja verdades objectivas e absolutas em ética. Nenhum princípio ético é verdadeiro para todas as pessoas em todos os tempos e em todos os lugares. Contudo, os subjectivistas morais pensam que a sua teoria é a verdade que vale para todas as pessoas em todos os tempos e em todos os lugares. Transformam uma posição relativista em verdade absoluta, o que é contraditório.

Por outro lado, o subjectivismo moral afirma que nenhuma perspectiva moral é mais verdadeira ou melhor do que outra. Mas como o subjectivismo é também uma perspectiva moral então não é melhor do que qualquer outra. Contudo, os subjectivistas acreditam que o absolutismo moral e a crença na existência de verdades objectivas em ética são perspectivas erradas. Mais uma vez assistimos a uma contradição.

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c) O subjectivismo moral torna inviável a discussão de questões morais.

O subjectivismo moral parece sugerir que não podemos dizer que as opiniões e juízos morais dos outros estão errados. Se as verdades morais dependem dos sentimentos de aprovação ou de desaprovação de cada indivíduo basta que os nossos juízos morais estejam de acordo com os nossos sentimentos para serem verdadeiros. Um genuíno debate moral em que cada interlocutor tente convencer o outro das suas razões acerca de algo em que acredita perde qualquer sentido. Para o subjectivista será mesmo sinal de intolerância.

Imaginemos que João defende que o aborto é errado e que Maria defende que o aborto é moralmente aceitável. Segundo o subjectivista, eles não estão realmente em desacordo sobre se o aborto é ou não moralmente legítimo. Estão simplesmente a exprimir os seus sentimentos sobre a moralidade do aborto. Será perda de tempo que um tente convencer outro de que está enganado. Se João sente verdadeiramente que o aborto é errado, ou seja, se desaprova fortemente essa prática, então esse juízo é verdadeiro. Se o seu ponto de vista corresponde ao que sente então é subjectivamente certo. O mesmo se passa com Maria. Não faz sentido debater ou discutir porque será conversa de surdos. Cada qual exprime gostos diferentes e julga que gostos não se discutem. O que é verdade para si é verdadeiro e o que é verdade para mim é verdadeiro e ponto final.

Esta posição tem consequências bizarras. Não acredita o subjectivista que o subjectivismo moral é verdadeiro? Se assim é não significa isso dizer que outras perspectivais, como por exemplo o absolutismo moral, são erradas? Mas será esta afirmação aceitável? Parece que não porque não podemos dizer nem que as nossas nem que as opiniões dos outros estão erradas. A ética não parece ser para o subjectivista uma questão de argumentação racional. Qualquer posição ética é tão plausível como qualquer outra.

d)O facto de as pessoas terem crenças opostas acerca de questões morais não prova que essas crenças sejam ambas verdadeiras.

Se dois indivíduos não estão de acordo acerca de um dado assunto, então têm ambos razão, ou seja, as suas crenças são ambas verdadeiras. Mas e se as duas crenças se negam uma à outra, se contradizem? Duas crenças que se contradizem não podem ser ambas verdadeiras.

d)O subjectivismo ético acredita que não há juízos morais objectivos porque os assuntos morais são objecto de discórdia generalizada mas isso não prova que não haja uma resposta correcta ou verdades objectivas.

Será que o facto de as pessoas discordarem acerca da existência de Deus prova que não há uma resposta à questão Será que Deus existe? Durante muito tempo as pessoas pensaram que as doenças eram causadas por demónios. Sabemos hoje em dia que na maioria dos casos são causadas por microorganismos tais como bactérias e vírus.

Atividade 6

1 – Defina subjectivismo moral

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2 – Esclareça por que razão o subjectivismo moral é uma forma de relativismo.

3 – Para o subjectivismo moral, moralmente correcto é o que cada indivíduo de acordo com os seus sentimentos e o seu código moral aprova. Suponhamos que Hitler aprovou o extermínio dos judeus (parece não haver dúvidas). Então a sua acção foi correcta, de acordo com o seu código moral. Estaline aprovou também o assassinato de milhões de pessoas que considerava suas inimigas que de acordo com o seu código moral eram perniciosas. A sua acção segundo a teoria subjectivista também foi correcta. Estes exemplos constituem fortes objecções ao subjectivismo moral? Porquê?

4 – Uma das principais críticas feitas ao subjectivismo moral consiste em dizer que os sentimentos das pessoas não tornam uma acção boa ou má. Se experimento um sentimento de aprovação ao fazer algo unicamente transmito uma sensação de prazer ou mostro que gostei do que fiz. Uma acção é boa ou má consoante é aprovada ou não por um indivíduo? Que consequências decorrem desta posição? São aceitáveis? Justifique a sua posição.

5 – Imagine que caiu nas mãos de um grupo de cientistas de outro país. Pretendem que seja a cobaia de experimentações científicas que consideram muito importantes e que ao mesmo tempo além de muito dolorosas provocarão a tua morte. Justificam a sua acção dizendo que esses experimentos farão avançar enormemente a ciência ao permitir descobrir medicamentos que beneficiarão milhões de pessoas em todo o mundo. Protesta dizendo que os meios para tal fim são absolutamente errados. Contudo, explicam-lhe pacientemente que a moral é relativa, uma simples questão de opinião pessoal. Pensam que usar o seu corpo para o fim em vista é moralmente correcto e como matar em nome da pesquisa médica não é ilegal no seu país, dizem que a sua revolta é simplesmente uma opinião sua e nada mais. Perguntam-lhe: «Quem é você para dizer o que é moralmente correcto ou incorrecto? Cada pessoa tem de julgar por si o que é certo e errado».

Como argumentaria para os convencer de que o que pretendem fazer é moralmente errado? É aceitável dizer que uma vez que os cientistas acreditam genuinamente estarem a agir bem, a sua posição é inquestionável? Esta experiência mental prova que o subjectivismo moral não é uma boa teoria?

Problema 7

O que é moralmente correcto? O que a sociedade e a cultura a que pertenço consideram ser moralmente certo?

Segundo a antropóloga Ruth Benedict, sempre que morria um membro da tribo Kwakiutl, do noroeste americano, os familiares enlutados saíam em busca de membros de outras tribos para os matar. Para eles a morte era uma afronta que devia ser vingada pela morte de outra pessoa. Assim, quando a irmã do chefe da tribo morreu, este matou sete homens e duas crianças de outra tribo que nada tinham a ver com o acontecimento.

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Se eu ou você tivéssemos feito tais coisas seríamos considerados assassinos. Matar pessoas inocentes como o fez o chefe dos Kwakiutl é contrário às nossas leis e ao nosso código moral. Contudo, a sua acção não foi contrária às leis ou ao código moral da sua cultura. Segundo os padrões morais da sua sociedade, o que fez é aceitável, porventura obrigatório.Que código moral é correcto? O da cultura a que pertencemos ou o código moral da referida tribo? O chefe da tribo Kwakiutl agiu erradamente ao assassinar nove pessoas inocentes por a sua irmã ter morrido?

Os antigos egípcios, gregos e romanos praticavam a escravatura.O mesmo acontecia com os israelitas do Antigo Testamento. Até uma data tão recente como 1860, muitos brancos no sul dos Estados Unidos tinham escravos negros. No passado muitas culturas acreditavam que a escravatura era uma prática moralmente aceitável. Hoje quase ninguém aceita tal ideia. Estavam os nossos antepassados errados quando acreditavam na moralidade da escravatura?

Quando os britânicos começaram a ocupar e colonizar a Índia, descobriram horrorizados que os hindus praticavam a queima das viúvas. Quando o marido morria a mulher (ou as mulheres) era pressionada para que aceitasse ser cremada junto com o corpo do marido na pira funerária. Os britânicos acreditavam que essa prática era moralmente inaceitável, desumana. Muitos hindus discordavam completamente. Diferentes culturas, diferentes crenças morais. Será que um conjunto de normas e preceitos morais é errado e o outro correcto?

Os esquimós permitem que as pessoas idosas e incapacitadas morram de fome, ao passo que nós acreditamos que isso é errado. Os antigos habitantes de Esparta e os Dobu da Nova Guiné acreditam que roubar é moralmente correcto enquanto nós acreditamos que é moralmente errado na maioria dos casos. Muitas culturas praticaram e ainda praticam o infanticídio, algo que nos repugna. Uma tribo da África oriental costumava atirar os recém-nascidos com deficiências graves aos hipopótamos. As práticas sexuais variam com o tempo e o lugar. Algumas culturas permitem actos homossexuais enquanto outras os condenam. Algumas culturas permitem a poligamia, caso de alguns países islâmicos, ao passo que as culturas de raiz cristã a consideram imoral. Uma tribo da Melanésia entende que a cooperação e a gentileza são vícios. Outra tribo no Uganda desvaloriza os laços familiares não tendo os pais o dever de cuidar dos filhos ou dos parentes próximos. Há sociedades nas quais é dever dos filhos matarem os pais estrangulando-os quando estes já não conseguem ter uma vida digna por causa do envelhecimento e das doenças.

O desacordo moral parece ser uma característica inevitável da vida humana. Diferentes sociedades, diferentes culturas e diferentes indivíduos discordam frequentemente acerca do que é bom e mau, correcto ou incorrecto. É muito difícil pôr as pessoas de acordo sobre questões morais. As disputas muitas vezes parecem intermináveis e insolúveis. O relativismo moral cultural é uma teoria que pensa ter uma solução para este problema.

O relativismo moral cultural é a teoria segundo a qual o valor de verdade dos juízos morais é sempre relativo ao que cada sociedade acredita ser verdadeiro ou falso. Segundo o relativismo moral cultural o que é correcto para si como indivíduo depende do que a sociedade ou cultura a que pertence acredita ser correcto. As crenças culturais estabelecidas no interior de uma sociedade constituem a autoridade suprema e definem em que devem acreditar os indivíduos que nela vivem e segundo elas são educados. Deste ponto de vista, as crenças e opiniões dos indivíduos devem subordinar-se ao que a maioria considera ser moralmente certo.

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Moralmente verdadeiro é igual a socialmente aprovado. Moralmente verdadeiro é o que cada sociedade- ou a maioria dos seus membros - acredita ser verdadeiro. Se em determinado lugar do planeta se acredita que roubar não é incorrecto então o juízo moral «Roubar é moralmente correcto» é, para os membros dessa cultura, verdadeiro. Para o RMC devemos julgar as acções dos membros de uma sociedade pelas normas morais estabelecidas no interior dessa sociedade e não mediante as crenças morais de outras sociedades. Cumprir essas normas é agir bem, não as respeitar é agir mal. (NOTA – Relativismo moral cultural – Esta teoria defende que é moralmente bom ou correcto o que a maioria dos membros de uma sociedade considera moralmente bom ou correcto. Dizer que a acção A é moralmente boa é dizer que a maioria dos membros de uma sociedade a aprova. Para o RMC a aprovação de uma dada cultura é o que torna moralmente certa ou boa uma acção. Cada cultura define o certo e o errado e cada um de nós sabe se age bem ou mal verificando se acção está ou não de acordo com o código moral estabelecido pela sociedade.)

Por que razão é o relativismo moral cultural uma teoria tão popular e atraente?

A principal razão da popularidade do relativismo moral cultural é a ideia de que promove a tolerância e o respeito pela diversidade cultural. Segundo o RMC, cada cultura vê a realidade com óculos de diferentes cores e nenhuma tem o direito de dizer que a sua visão é a única apropriada. Quando se trata das crenças e práticas morais de outras sociedades devemos tentar usar os óculos que os membros dessas culturas usam. Dizer que algumas práticas morais de certas culturas são intrinsecamente erradas – erradas em si – é sinal de preconceito cultural: julgamos que algumas culturas (normalmente a nossa) são, moralmente falando, melhores e mais evoluídas do que outras. Os relativistas argumentam que tal atitude é etnocêntrica. O etnocentrismo é a atitude que consiste em julgar os padrões culturais de outras sociedades tendo como termo de comparação os nossos. Frequentemente esta atitude conduziu a concluir que a nossa cultura é superior às outras e a forçar os que eram considerados moralmente inferiores a mudarem as suas crenças e práticas.

Quem é quem para julgar o que é correcto e errado? O que nos dá o direito de dizer que as crenças e práticas de outras culturas são erradas simplesmente porque diferem das nossas? Não é presunção e arrogância pensar assim? Por que razão não adoptar o princípio Viver e deixar viver deixando cada cultura estabelecer o que considera moralmente correcto e adequado? Não mostrou a história da humanidade que quando uma dada cultura quis ser autoridade moral para outras daí resultaram abusos, guerras, extermínios, exploração e perseguições? O relativismo moral ao defender que o moralmente correcto é aquilo que cada sociedade define e aprova como moralmente correcto parece ser a teoria que mais adequadamente defende a virtude da tolerância e o diálogo entre culturas.

O argumento central do relativismo moral cultural

O argumento central do RMC pode ser formulado do seguinte modo:

Premissa – Diversas culturas dão diferentes respostas às mesmas questões morais

Conclusão – Logo, não há nenhuma resposta objectivamente verdadeira a essas questões (não há verdades morais universais)

Na perspectiva relativista, não se pode dizer sem mais A escravatura é moralmente errada. O que podemos dizer é Em uma dada sociedade a escravatura é moralmente errada e Em uma sociedade diferente – com crenças morais diferentes - a escravatura não é moralmente errada.

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Não há verdade ou falsidade sobre a escravatura independentemente do que cada sociedade pensa sobre a escravatura. As crenças morais de uma sociedade não são mais verdadeiras, mais razoáveis ou melhores do que as de outra. Não há uma só verdade em ética mas várias.

Será que do facto de não haver acordo se segue que não existe nenhuma verdade objectiva?

Recorramos ao método do contra-exemplo, ou seja, tentemos encontrar um argumento da mesma forma em que a premissa é verdadeira e a conclusão falsa. Ei-lo:

Premissa – Diversas culturas discordaram quanto à forma da Terra (umas pensaram que era esférica, outras plana, outras esférica mas um pouco achatada)

Conclusão – Não há nenhuma verdade objectiva acerca da forma da terra.

A premissa é verdadeira mas a conclusão é falsa (sabemos que a Terra é redonda). Logo, o argumento não é bom. A premissa não apoia logicamente a conclusão.

O que prova este contra-exemplo? Que o argumento mais frequentemente apresentado em defesa do RMC não é válido. Qualquer argumento com esta forma é inválido. Provámos que há verdades morais objectivas? Não. Mas provámos que a principal razão para acreditar no RMC não é uma boa razão.

A conclusão Não há nenhuma resposta objectivamente verdadeira às questões morais (não há verdades morais universais, aceites por todos os povos e culturas) é mal justificada. O relativismo moral cultural transforma a diversidade de opiniões e de crenças morais em ausência de verdades objectivas. (NOTA - Verdades objectivas – Verdades que valem independentemente do que tu e eu possamos pensar. São independentes das crenças e dos hábitos culturais. Adversários do RMC afirmam por exemplo que um juízo moral como este A discriminação racial é errada é objectivamente verdadeiro, ou seja, vale independentemente do que as pessoas pensam sobre a discriminação racial) Se duas sociedades têm diferentes crenças acerca de uma questão moral, o relativista conclui que então ambas as crenças são verdadeiras. Os adversários do RMC objectam que a conclusão não deriva necessariamente da premissa porque essa discórdia pode ser sinal de que uma sociedade está certa e a outra está errada.

Outras objecções ao relativismo moral cultural

1- O relativismo moral torna incompreensível o progresso moral.

É verdade ou pelo menos parece que não há acordo entre os seres humanos sobre muitas questões morais. Mas também é verdade que a humanidade tem realizado progressos no plano moral. A abolição da escravatura, o reconhecimento dos direitos das mulheres, a condenação e a luta contra a discriminação racial são exemplos. Falar de progresso moral parece implicar que haja um padrão objectivo com o qual confrontamos as nossas acções. Se esse padrão objectivo não existir não temos fundamento para dizer que em termos morais estamos melhor agora do que antes. No passado, muitas sociedades praticaram a escravatura mas actualmente quase nenhuma a considera moralmente admissível. Muitos de nós e com razão consideramos esta mudança de comportamento e de atitude um sinal de progresso moral. Mas se para o RMC nenhuma sociedade esteve ou está errada nas suas crenças e práticas morais torna-se difícil compreender a ideia de progresso moral. Tudo o que podemos dizer é que houve tempos em que a escravatura era moralmente aceitável e que agora ela é já não é aceite.

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2 – O relativismo moral parece implicar que a acção dos reformadores morais é sempre incorrecta.

O que é um reformador moral? Uma pessoa que tenta alterar significativamente o modo de pensar, de agir e de sentir de uma dada sociedade porque o considera moralmente errado nalguns aspectos importantes. Martin Luther King tentou por via pacífica chamar a atenção para as deficiências morais de um código moral e jurídico que no sul dos EUA considerava moralmente aceitável que os negros fossem tratados como cidadãos de segunda classe. O mesmo fez Nelson Mandela na África do Sul. Como, segundo o relativismo, as crenças da maioria dos membros de uma sociedade são a verdade em matéria moral, como aquilo que é socialmente aprovado (significa aprovado pela generalidade dos membros de uma sociedade) é verdadeiro e deve ser seguido, então King comportou-se de forma moralmente errada.

3 – Há uma diferença significativa entre o que uma sociedade acredita ser moralmente correcto e algo ser moralmente correcto.

Segundo o RMC é moralmente correcto o que uma sociedade acredita ser moralmente correcto. Mas para muitos de nós esta ideia é contra-intuitiva. Se uma sociedade rejeita o direito das mulheres ao voto e a igualdade de oportunidades no acesso a empregos diremos que isso é moralmente correcto só porque é socialmente aprovado. As sociedades são moralmente infalíveis? Então porque mudaram ao longo da história várias das suas convicções?

4 – O RMC reduz a verdade ao que a maioria julga ser verdadeiro.

Quase nenhuma sociedade é culturalmente homogénea. Actualmente, a maioria das sociedades são multiculturais. Além disso, no interior de uma mesma cultura existem subculturas, isto é, grupos relativamente numerosos que não partilham as convicções morais da maioria. Quais é a posição da nossa sociedade sobre o aborto? È difícil dizer porque nem todos estamos de acordo. O mesmo se diga acerca do suicídio, da eutanásia, dos direitos dos animais e dos próprios direitos humanos.

Assim sendo, temos de concluir que quando falamos do código moral ou das crenças morais de uma sociedade, estamos a falar das crenças da maioria dos seus membros. Logo, se de acordo com o RMC é moralmente correcto o que é aprovado pela sociedade então é moralmente correcto o que a maioria considera moralmente correcto. A própria ideia de tolerância tão prezada pelos relativistas e que, como veremos, tanto contribuiu para a popularidade do RMC parece esvair-se. Por um lado, é muito discutível que uma crença moral seja verdadeira porque a maioria a partilha. Vários exemplos históricos como o nazismo e o apartheid provam que muitas vezes as crenças da maioria são moralmente erradas e perniciosas. Por outro lado, muitas vezes uma sociedade está quase dividida ao meio no que respeita a questões morais (caso do aborto). Como decidir quem tem razão?

O RMC parece convidar-nos ao conformismo moral, a seguir, em nome da coesão social, as crenças dominantes. O conformismo não parece ser uma atitude moralmente desejável. Impede a reforma e melhoria moral de uma sociedade. Frequentemente transforma-se em obediência cega.

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5 – Partindo do facto de que há discórdia entre as várias sociedades acerca do que é moralmente certo ou errado, o RMC acaba por tornar impossível um real debate moral entre sociedades ou entre membros de sociedades diferentes.

Imagine que na sociedade X, é prática moralmente aceitável que as crianças brinquem com pássaros até os matarem. A cultura da sociedade a que pertences condena essa prática considerando-a cruel. Essa crença exprime-se através deste juízo: «O comportamento das crianças da sociedade X é moralmente errado». Segundo o RMC este juízo está mal formulado. Deve antes dizer-se: «Segundo as crenças morais da sociedade a que pertenço, o comportamento das crianças da sociedade X é errado». A este juízo, um membro da sociedade X responderia: «Segundo as nossas crenças morais, o comportamento das nossas crianças não é moralmente errado». Para o relativista não podemos dizer que os membros da sociedade X estão errados, ou seja, que a acção das crianças é errada em si mesma. É errada segundo os nossos padrões mas não é errada segundo os seus padrões. As duas proposições não se contradizem, não são incompatíveis. Não há, nesta perspectiva práticas morais em si mesmas erradas. Se considerarmos que o relativismo moral é correcto, ninguém pode provar que sociedade tem razão numa disputa moral. Não podemos dizer que uma delas está objectivamente errada e a outra certa.

Atividade 7

1 – O que se entende por relativismo moral cultural?

2- O que distingue o subjectivismo moral do relativismo moral cultural?

3 – Para o relativismo moral se uma acção for socialmente aprovada ela é correcta. Concorda? A sociedade tem sempre razão? Porquê?

4 – Se adoptarmos o relativismo moral cultural terei alguma razão para desobedecer a leis que o meu grupo cultural não aprova? Justifique a sua resposta.

5 – João é contra o sexo antes do casamento e Miguel é a favor. Estamos perante dois juízos opostos: O sexo antes do casamento é moralmente errado e O sexo antes do casamento é moralmente correcto.

Imagine agora duas situações:

Caso 1 – Miguel e João são membros de uma mesma sociedade e esta reprova o sexo antes do casamento.

Caso 2 – Miguel e João são membros de sociedades diferentes sendo que uma aprova o sexo antes do casamento e a outra considera erradas as relações sexuais pré-matrimoniais.

Como avaliaria um partidário do relativismo moral cultural cada um dos casos?

Está de acordo com alguma dessas avaliações? Justifique.

6 – Um argumento frequentemente utilizado pelos defensores do relativismo moral cultural diz o seguinte:

a) Em diferentes sociedades as pessoas fazem juízos morais diferentes sobre a mesma acção

b)Se as pessoas em diferentes sociedades fazem diferentes juízos morais sobre a mesma acção então elas regem-se por critérios ou padrões morais diferentes. (Não há critérios morais neutros, ou seja, objectivos e universais)

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c) Logo não há padrões morais universais ou objectivos.

O argumento é válido? E se for válido, é bom?

7 – Nas nossas sociedades os adolescentes aprendem Química na escola. Noutras culturas não tecnológicas são educados para serem bons caçadores. Devemos concluir deste facto que os princípios da química não têm «validade» independentemente da nossa cultura? Sabemos que existem 100 elementos químicos mas na Grécia antiga só se reconheciam 4:terra,água,ar e fogo. Devemos concluir que depende de cada cultura quantos elementos existem? Em termos análogos, a abolição da escravatura foi o resultado de um longo processo de reflexão sobre os ideais democráticos e as raízes bíblicas da cultura ocidental. Devemos por isso concluir que a escravatura só é errada para os membros da cultura a que pertencemos?

Que tese do relativismo moral cultural se pretende aqui criticar?

8 – Alguém disse que não se pode ver A lista de Schindler (que descreve entre outras coisas as atrocidades dos nazis contra os judeus) e permanecer relativista. De acordo com a sua teoria não teria o relativista de dizer que ninguém tinha o direito de criticar as acções racistas e genocidas dos nazis na medida em que estes estavam a ser consistentes com as suas crenças morais? Não será que o relativismo ético implica que nunca podemos criticar as práticas aceites noutras sociedades?

Considera que esta é uma forte objecção ao relativismo moral cultural? Justifique a sua resposta.

Bibliografia

1-Palmer,Michael, Moral Problems: A Coursebook for Schools and Colleges, ,2001, Lutterworth Press.

2 - P. Pojman ,Louis How Should We Live? An Introduction to Ethics,2005, Wadsworth.

3 - Emmett Barcalow, Moral Philosophy: Theories and Issues, 2002Wadsworth.

4 - M. Cahn, Steven e Haber, Joram , Twentieth Century Ethical Theory,2003, Prentice Hall

5 – Rachels,James,Elementos de filosofia moral,2004,Gradiva.

6 - Rachels,James, Ethical Theory 1: The Question of Objectivity,1998, Oxford University Press

7 – Sober,Elliot,Core questions in philosophy, 2000,Prentice Hall.

Videografia

1 – Passagem para a Índia (1984) de E.M. Forster

O filme descreve as relações entre as autoridades e colonos britãnicos e a população nativa durante o domínio colonial britãnico da Índia. Em 1920, o dr Aziz que veste como um europeu e fala fluentemente inglês conhece uma jovem inglesa, Adela, numa mesquita e causando excelente impressão é convidado para acompanhar a jovem numa pequena viagem turística.Mas a sua vida vai sofrer uma dramática mudança.Adela acusaõ de ter a ter molestado numa das cavernas que visitaram.Aziz é preso e levado a tribunal.Apercebe-se de que toda a administração britânica está contra si, desejando que seja considerado culpado e severamente punido para que todos os indianos aprendam o que custa molestar um cidadão britânico.Aziz experimenta a discriminação apercebendo-se de que a seu respeito o conceito

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de presunção de inocência é invertido: Julgam-no culpado enquanto não se provar a sua inocência.

2 - Do the right thing (Faz a coisa certa), (1989) de Spike Lee.

O filme mostra as 24 horas de um bairro de Brooklyn durante o dia mais quente do ano. A história gira em torno de uma pizzaria de uma família ítalo-americana.Os frequentadores negros da pizzaria, sobretudo os mais politizados não suportam ver no estabelecimento apenas quadros com fotos de artistas brancos. O pedido de retirar os quadros é negado por Sal (Danny Ayello), o dono do estabelecimento e a recusa gera um boicote ao local e um final trágico.

3 – A luz é para todos (1947) de Elia Kazan.

O jornalista Philip Schuyler Green (Gregory Peck) é convidado pela revista para a qual trabalha para escrever uma matéria sobre o anti-semitismo. Inicialmente sem saber como abordar o tema, resolve mudar-se para Nova York e fazer-se passar por judeu, para descobrir quais os reais sentimentos das pessoas a respeito do assunto. A pouco e pouco sente o preconceito e aprende o significado de ser judeu.

4 - A Lista de Schindler (1994), de Steven Spielberg

Que motivos levaram uma nação que foi o berço de alguns dos maiores filósofos, cientistas, escritores e músicos da história a submeter-se a uma ideologia que pregava o ódio e a intolerância? Como podem as diferenças entre seres humanos tornar-se desculpa para a barbárie? O que leva uma pessoa aparentemente normal a matar a sangue-frio um semelhante como se fosse um insecto? Vencedor de 7 Óscares e baseado no livro de Thomas Keneally o filme mostra a vida real e a trajectória do industrial checo Oskar Schindler.Ao comprar em 1939 uma fábrica de esmaltados quase falida na Polónia dominada pela Alemanha de Hitler, Schindler- filiado no partido nazi - usa as suas boas relações com altos funcionários nazistas, para recrutar trabalhadores entre prisioneiros judeus do gueto de Cracóvia, passando a fornecer produtos para o exército alemão. Quando os nazistas iniciam a "solução final" (extermínio dos judeus), Schindler intercede junto do comandante Amon Goeth, subornando outros oficiais e garantindo tratamento privilegiado para seus operários, salva-os dos campos de extermínio.kar

Problema 8

Temos de ser relativistas para sermos tolerantes? Não há costumes e práticas moralmente inadmissíveis?

Por cada ano que passa, dois milhões de jovens mulheres, entre os 15 e os 25 anos, sofrem a mutilação de uma parte dos seus órgãos genitais. Esta prática tem igualmente o nome de excisão. Em que consiste? Na esmagadora maioria dos casos sem cuidados higiénicos especiais nem anestesia, uma excisora — é quase sempre uma mulher — utiliza uma lâmina de barbear ou uma faca e na presença de pais e amigos corta o clítoris e os pequenos lábios da jovem. É frequente que também os grandes lábios sejam retirados. É a “excisão total” ou infibulação.

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Nas últimas décadas, a excisão acontece cada vez mais cedo. Actualmente a maior parte das vítimas tem menos de um ano. A prática da mutilação genital feminina é uma tradição de vários países africanos (é também praticada na Índia, na Indonésia e no Paquistão), embora não da maioria. Pratica-se sobretudo em países que a declararam ilegal: Nigéria, Sudão, Egipto, Somália e Quénia. Noutros países, Mali e Guiné-Bissau, por exemplo, não há qualquer interdição legal.

Por que razão várias etnias e populações inteiras continuam a realizar a mutilação genital feminina? A resposta imediatamente dada é esta: “É o costume. Entre nós todas as mulheres são excisadas”.

Mas as “razões” variam conforme as etnias (grupos de pessoas que partilham uma mesma língua, hábitos, costumes e valores). Para certos grupos, retirar o clítoris é necessário para que esse pequeno órgão não envenene o bebé no momento do nascimento, não prenda o órgão sexual masculino ou não impeça e relação sexual. Para além destas superstições, há outras justificações a que poderemos chamar simbólicas. Certas etnias do Mali, do Senegal e da Mauritânia consideram que a excisão é um acto purificador que dá à jovem o “direito à oração”. Outras afirmam que a excisão é o ritual que assinala a última etapa da vida de uma rapariga antes do casamento. A mutilação genital significa a ruptura dolorosa com a família e com a infância. Através dela a rapariga passa a ser tratada como mulher. Sem a excisão, não alcança esse estatuto nem pode casar-se.

As organizações não governamentais (ONG) e as mulheres africanas que combatem esta prática denunciam-na como estratégia de domínio sexual masculino (e como responsável por atrozes sofrimentos e por acentuada mortalidade em bebés e crianças do sexo feminino). A ablação do clítoris retira grande parte da sensibilidade aos órgãos genitais (a mulher perde em prazer o que ganha em fidelidade?). Mas não é fácil lutar contra costumes enraizados há milénios.

Segundo o relativismo moral cultural o que é correcto para ti como indivíduo depende do que a sociedade ou cultura a que pertences acredita ser correcto. As crenças culturais estabelecidas no interior de uma sociedade constituem a autoridade suprema e definem em que devem acreditar os indivíduos que nela vivem e segundo elas são educados. Deste ponto de vista, as crenças e opiniões dos indivíduos devem subordinar-se ao que a maioria considera ser moralmente certo e nenhuma outra cultura ou sociedade pode legitimamente censurá – las.

O relativismo moral ao defender que o moralmente correcto é aquilo que cada sociedade define e aprova como moralmente correcto parece ser a teoria que mais adequadamente defende a virtude da tolerância e o diálogo entre culturas. Mas será mesmo assim? É isso verdade? Temos de ser relativistas para ser tolerantes?

A tese da tolerância que o relativismo diz promover é geralmente assim defendida:

Premissa – As diversas culturas têm concepções diferentes sobre o que é moralmente bom ou mau

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Premissa – Se diferentes sociedades têm crenças morais diversas, não há verdades morais objectivas e universais.

Conclusão – Logo, devemos adoptar uma atitude de tolerância face às crenças morais de outras culturas. (Devemos aceitar o que é aceite em outras sociedades).

Para o RMC cada cultura tem a sua própria perspectiva sobre o que é moralmente certo ou errado. Nenhuma cultura é autoridade incontestável em assuntos morais. Uma vez que não temos um critério objectivo para provar que algumas perspectivas são melhores do que outras, devemos tratá-las como sendo igualmente correctas. A tolerância significa, para o relativista, que temos de aceitar o que os membros de outras culturas pensam e fazem sem tentar corrigi-los. (NOTA – Para o RMC os juízos morais sobre a correcção moral das acções não são independentes do contexto cultural. Julgamos sempre a partir do que é socialmente aprovado na cultura a que pertencemos. O modo como olhamos para as crenças e práticas de outras culturas é habitualmente condicionado pelo nosso modo de ver. Ora, pensam, em geral, os defensores do RMC, devemos evitar a falsa e intolerante convicção de que o nosso modo de ver é a única forma de ver.)

O argumento acima exposto pretende estabelecer uma ligação lógica entre relativismo moral e tolerância intercultural mas enfrenta as seguintes objecções:

1 – Da proposição «Não há verdades morais objectivas e universais» não se segue que não haja práticas e crenças morais erradas

A tese da tolerância não é adequadamente justificada pelas premissas. A divergência de concepções morais entre as sociedades não implica que todas essas concepções são equivalentes. Pode acontecer que acerca de certas questões algumas sociedades estejam erradas. (NOTA - Para o RMC a aprovação de uma dada cultura é o que torna moralmente certa ou boa uma acção. Cada cultura define o certo e o errado e cada um de nós sabe se age bem ou mal verificando se acção está ou não de acordo com o código moral estabelecido pela sociedade. Ora isto implica que cada cultura é moralmente infalível. O que por sua vez implica que os indivíduos não podem discordar do que está estabelecido e ter razão. Esta tese parece muito fraca.)

Não se vê como da proposição «Não há verdades morais objectivas» se chega á conclusão de que devemos aceitar qualquer prática aprovada em sociedades diferentes da nossa. Porquê? Porque esta ideia baseia-se no pressuposto de que as culturas são moralmente infalíveis. Ora a história mostra que muitas em vários momentos aprovaram quase todo o tipo de práticas imorais. Não há qualquer ligação lógica entre «Não há verdades universais» ou «Nenhuma cultura é proprietária exclusiva da verdade» e «Nenhuma cultura está errada».

1 – O relativismo moral pode promover a intolerância.

O RMC afirma que aquilo que uma sociedade pensa ser moralmente correcto é moralmente correcto para ela. Imaginemos que, como já aconteceu, uma determinada cultura julga ser seu dever «civilizar» outros povos porque considera os seus costumes morais intoleráveis. Se moralmente correcto é igual a cultural e socialmente aprovado, então essa atitude intolerante é moralmente correcta. Assim apesar de pretender promover o diálogo entre culturas o RMC pode promover o conflito e a agressão. E como entender o diálogo entre culturas se o RMC nos parece convidar a uma aceitação passiva do que cada sociedade considera ser moralmente bom? Temos de tolerar tudo o que é aceite pelos outros? Esse diálogo não está associado a

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juízos de valor positivos e negativos? Não implica por exemplo afirmar que certas sociedades têm práticas culturais moralmente indesejáveis e inaceitáveis? Ou sermos tolerantes exige que sejamos hipócritas?

Voltemos ao caso da excisão. Não é um atentado aos direitos humanos? Será que podemos que é uma boa prática só porque há sociedades que assim pensam? E se dizemos que é má estamos simplesmente a tentar impor a pessoas de outras culturas o nosso ponto de vista? Não será que essa prática é realmente, objectivamente má?

Pensa no que James Rachels diz no texto seguinte:

A excisão é praticada em muitos países e os seus defensores apresentam em sua defesa uma série de argumentos. Eis alguns: As mulheres incapazes de prazer sexual são supostamente menos propensas à promiscuidade; assim, haverá menos gravidezes indesejadas em mulheres solteiras. Acresce que as esposas, para quem o sexo é apenas um dever, têm menor probabilidade de ser infiéis aos maridos; e uma vez que não irão pensar em sexo, estarão mais atentas às necessidades dos maridos e filhos. Pensa-se, por outro lado, que os maridos apreciam mais o sexo com mulheres que foram objecto de excisão. (A falta de prazer sexual das mulheres é considerada irrelevante.) Os homens não querem mulheres que não foram objecto de excisão por serem impuras e imaturas. E, acima de tudo, é uma prática realizada desde tempos imemoriais, e não podemos alterar os costumes antigos.

Seria fácil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar estes argumentos. Mas podemos fazer notar uma característica importante de toda esta linha de raciocínio: tenta justificar a excisão mostrando que é benéfica – homens mulheres e respectivas famílias são alegadamente beneficiados quando as mulheres são objecto de excisão. Poderíamos, pois, abordar este raciocínio, e a excisão em si, perguntando até que ponto isto é verdade: será a excisão, no todo, benéfica ou prejudicial?

Na verdade, este é um padrão que pode razoavelmente ser usado para pensar sobre qualquer tipo de prática social: Podemos perguntar se a prática promove ou é um obstáculo ao bem-estar das pessoas cujas vidas são por ela afectadas. E, por isso, podemos perguntar se há um conjunto alternativo de práticas sociais com melhores resultados na promoção do seu bem-estar. Se assim for, podemos concluir que a prática em vigor é deficiente.

Mas isto parece justamente o tipo de padrão moral independente que o relativismo cultural afirma não poder existir. É um padrão único que pode ser invocado para ajuizar as práticas de qualquer cultura, em qualquer época, nomeadamente a nossa. É claro que as pessoas não irão, em geral, encarar este princípio como algo «trazido do exterior» para os julgar, porque, como as regras contra a mentira e o homicídio, o bem-estar dos seus membros é um valor inerente a todas as culturas viáveis.

Por que razão, apesar de tudo isto, pessoas prudentes podem ter relutância, mesmo assim, em criticar outras culturas. Apesar de se sentirem pessoalmente horrorizadas com a excisão, muitas pessoas ponderadas têm relutância em afirmar que está errada, pelo menos por três razões.

Primeiro, há um nervosismo compreensível quanto a «interferir nos hábitos culturais das outras pessoas». Os europeus e os seus descendentes culturais da América têm uma história pouco honrosa de destruição de culturas nativas em nome do cristianismo e do iluminismo. Horrorizadas com estes factos, algumas pessoas recusam fazer quaisquer juízos negativos

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sobre outras culturas, especialmente culturas semelhantes àquelas que foram prejudicadas no passado. Devemos notar, no entanto, que há uma diferença entre a) considerar uma prática cultural deficiente; e b) pensar que deveríamos anunciar o facto, dirigir uma campanha, aplicar pressão diplomática ou enviar o exército. No primeiro caso, tentamos apenas ver o mundo com clareza, do ponto de vista moral. O segundo caso é completamente diferente. Por vezes poderá ser correcto «fazer qualquer coisa», mas outras não.

As pessoas sentem também, de forma bastante correcta, que devem ser tolerantes face a outras culturas. A tolerância é, sem dúvida, uma virtude - uma pessoa tolerante está disposta a viver em cooperação pacífica com quem encara as coisas de forma diferente. Mas nada na natureza da tolerância exige que consideremos todas as crenças, todas as religiões e todas as práticas sociais igualmente admiráveis. Pelo contrário, se não considerássemos algumas me-lhores do que outras, não haveria nada para tolerar.

Por último, as pessoas podem sentir-se relutantes em ajuizar por que não querem mostrar desprezo pela sociedade criticada. Mas, uma vez mais, trata-se de um erro: condenar uma prática em particular não é dizer que uma cultura é no seu todo desprezível ou inferior a qualquer outra cultura, incluindo a nossa. Pode mesmo ter aspectos admiráveis. Na verdade, podemos considerar que isto é verdade no que respeita à maioria das sociedades humanas - são misturas de boas e más práticas. Acontece apenas que a excisão é uma das más.

James Rachels, Elementos de Filosofia Moral (2003), Gradiva, Lisboa, pp. 47-51

Atividade 8

1 - No Japão medieval sempre que um samurai (guerreiro ao serviço do imperador) recebia uma nova espada era obrigado a testá-la para verificar se funcionava adequadamente. O teste consistia em desferir um violento golpe numa pessoa que a atravessasse desde o ombro até ao flanco oposto cortando-a em duas partes na diagonal. Qualquer pessoa, exceptuando o imperador ou outro samurai e familiares de ambas as partes podia ser cobaia desta experimentação. Assim, qualquer pessoa exceptuando as referidas, podia ser subitamente trespassada pela espada do samurai. Caso o golpe da espada não trespassasse a desafortunada vítima, o samurai podia cair em desgraça desonrando os seus antepassados e desagradando ao imperador.

Como reagiria um defensor do relativismo moral cultural se disséssemos que este costume era bárbaro e moralmente inadmissível?

2 - – Nas nossas sociedades os adolescentes aprendem Química na escola. Noutras culturas não tecnológicas são educados para serem bons caçadores. Devemos concluir deste facto que os princípios da química não têm «validade» independentemente da nossa cultura? Sabemos que existem 100 elementos químicos mas na Grécia antiga só se reconheciam 4:terra,água,ar e fogo. Devemos concluir que depende de cada cultura quantos elementos existem? Em termos análogos, a abolição da escravatura foi o resultado de um longo processo de reflexão sobre os ideais democráticos e as raízes bíblicas da cultura ocidental. Devemos por isso concluir que a escravatura só é errada para os membros da cultura a que pertencemos?

Que tese do relativismo moral cultural se pretende aqui criticar?

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Problema 9

Precisamos de Deus para distinguir o bem do mal? Sem a religião a moral é uma árvore sem raízes?

«Adão e Eva desobedecendo a Deus no Jardim de Éden e sendo castigados com o sofrimento e a morte que serão uma herança de todas as gerações humanas; Moisés recebendo os Dez Mandamentos da mão de Deus e entregando-os ao povo de Israel como leis – normas - que exigiam absoluto respeito; os profetas Amos, Isaías e Jeremias avisando o povo israelita de que desobedecer à lei de Deus implicavam condenação e destruição; o Sermão da Montanha, a Parábola do Bom Samaritano, o ensinamento de Jesus exortando-nos a amar Deus de todo o coração, o nosso próximo como nós mesmos e, inclusive, estendendo esse amor aos nossos inimigos; visões, no livro do Apocalipse do Juízo Final mediante o qual Deus julgaria homens e mulheres pelos seus actos neste mundo; a esperança da bem-aventurança no Céu e o temor do Inferno - tudo isto marcou profundamente a consciência e influenciou o comportamento do homem ocidental durante, aproximadamente, dois milénios. Para a cultura e civilização ocidentais, a moralidade foi identificada com a religiosidade, a imoralidade com o pecado, as normas fundamentais com mandamentos divinos e a vida moral, em geral, definida como a relação pessoal com um parente celeste. Agir imoralmente era, essencialmente, desobedecer a Deus. Por exemplo, David, depois de ter cometido adultério com Betsabé e de ter preparado a morte do marido desta (Urias), diz a Deus: "Contra ti e só contra ti eu pequei" (Salmo 51).

Quer pensemos no desgraçado pária (intocável) de Calcutá aceitando a sua condição miserável como destino (karma), no muçulmano shiita guerreando em nome de Alá, nas rígidas regras alimentares do Judeu ou no Cristão dedicado à caridade em nome do Senhor, a religião dominou de tal modo o horizonte moral do homem que as duas dimensões se tornaram indistinguíveis.

Houve e há, sem dúvida, excepções: o confucionismo na China é essencialmente uma moral secular; há versões não teístas do budismo e os filósofos gregos, em geral, consideraram os problemas morais independentemente da religião. Mas, para a grande maioria, durante a maior parte da história da humanidade, a moralidade identificou-se com a religião, com os mandamentos de Deus.»

Louis B. Pojman, Ethics, Discovering right and wrong, Wadsworth, 234-235

Todas as principais religiões apresentam um conjunto de ensinamentos e preceitos éticos, isto é, descrevem como devemos viver.

A profunda influência que a religião exerceu sobre as nossas avaliações morais é indiscutível mas suscita reacções diferentes. Para algumas pessoas a religião é fonte de inspiração moral, contribui para fortalecer a vontade de agir bem ou de evitar o mal e na luta entre o bem e o mal é fonte de esperança no triunfo daquele sobre este (e na consequente recompensa dos justos). Para outras, a dependência da moral em relação à religião atrofia o nosso desenvolvimento moral autónomo porque nos infantiliza.Com efeito, para a criança obedecer às normas é quase sempre sinónimo de obedecer a alguém, à pessoa que as impõe. Ora a maturidade moral exige que as normas sejam avaliadas independentemente da referência à autoridade que pretende impô-las. Ou valem por ser intrinsecamente boas ou por conduzirem a bons resultados. Nunca por serem ditadas ou prescritas por esta ou aquela entidade. Se

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continuarmos a defender que as normas morais só têm valor e fundamento se forem mandamentos de Deus (de origem divina) então quem aceita isto não atingirá o grau de desenvolvimento moral adequado.

Dois grandes escritores russos, Tolstoy e Dostoeivsky, afirmaram que sem a religião não havia fundamento para a moral. Esta seria uma árvore sem raízes, sem vigor para se impor. Na sua perspectiva, a moral não pode sobreviver sem a religião. Dostoeivsky disse que «Sem Deus tudo é permitido», ou seja, não haveria um critério para distinguir com firmeza e objectividade o correcto do moralmente errado. A teoria filosófica que de forma mais elaborada defende esta tese é conhecida por teoria dos mandamentos divinos. (NOTA - Para a teoria dos mandamentos divinos as verdades morais são estabelecidas por Deus. Assim um acto é errado porque Deus disse que era errado. É por Deus o proibir que é errado. É esta a resposta desta teoria à questão: uma acção é boa porque Deus a aprova ou Deus aprova-a porque ela é boa? Deus é quem diz o que é bom ou mau, correcto ou incorrecto)

Na sua versão mais conhecida a teoria dos mandamentos divinos diz-nos que as noções de bem e de mal são criações de Deus. Foi Deus quem distinguiu o certo do errado, estipulando que acções são moralmente correctas, permissíveis e inaceitáveis. Segundo esta perspectiva, uma acção é moralmente incorrecta porque Deus a definiu como errada. Consideremos o juízo moral Roubar é errado. O que torna este juízo moral verdadeiro? O facto de Deus ter determinado que roubar é errado. Moralmente correcto significa decidido e aprovado por Deus, o criador das leis morais. Moralmente errado significa que não foi querido nem é aprovado por Deus. São os mandamentos de Deus que tornam as acções e os juízos moralmente certos ou errados. Se as normas morais são pura e simplesmente expressões da vontade de Deus então não devemos dizer que Deus proíbe o roubo porque roubar é errado mas sim que roubar é errado porque Deus o proíbe.

Como é Deus quem determina o que é certo e errado, não há acções certas e erradas em si . O que torna uma acção errada é ser contrária à vontade de Deus. O que torna uma acção boa é que cumpre a vontade de Deus. Por isso, considera-se que a teoria dos mandamentos divinos é uma teoria convencionalista. O bem e o mal são estipulados por Deus, são convenções divinas. Não há acções boas ou más em si mas sim acções conformes à vontade de Deus e acções contrárias à sua vontade. (NOTA - Convencionalismo moral – Termo que designa teorias segundo as quais não há acções boas ou más em si mesmas. Certas acções são certas ou erradas porque alguém definiu ou determinou que são certas ou erradas, seja o indivíduo, a sociedade ou Deus.)

Para os defensores da teoria dos mandamentos divinos se Deus não existisse nada seria moralmente certo ou errado. (NOTA - Acções intrinsecamente boas ou más- Acções cuja maldade ou bondade é independente de qualquer perspectiva, seja ela humana ou divina) Como a vontade de Deus é absoluta as normas morais que ela institui são absolutas, isto é, valem para qualquer ser humano em qualquer época e em qualquer lugar, não admitem excepções. Por outras palavras, se Deus existe há um código moral absoluto- as leis ou mandamentos de Deus- que constitui o critério fundamental que nos permite avaliar as diversas crenças e práticas humanas.(NOTA – Na Bíblia, em Êxodo 20:2-17 procura quais são os Dez mandamentos de Deus) Assim, a prática da tribo Kwakiutl de matar pessoas inocentes quando morre um familiar é errada porque viola as leis de Deus. O mesmo se pode dizer do costume indiano de queimar a viúva do esposo falecido juntamente com este. Ambas as

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sociedades podem não o saber mas segundo a perspectiva que estamos a expor isso só mostra que desconhecem a lei de Deus.

Segundo a TMD há respostas correctas e incorrectas, verdadeiras e falsas às questões morais. Só há um código moral verdadeiro: a lei de Deus.

Objecções à teoria dos mandamentos divinos

Algumas pessoas pensam que a teoria exposta é muito discutível. Duvidam que o apelo á lei de Deus possa resolver o desacordo dos seres humanos acerca de questões morais. Vejamos algumas objecções:

1 – Nem todos acreditamos que Deus existe

Para os defensores da teoria dos mandamentos divinos as verdades morais resultam da vontade de Deus. As noções de bem e de mal têm origem divina. Esta crença depende de uma crença mais básica e fundamental: a existência de Deus. Mas podemos provar que Deus existe? Podemos justificar a tese de que Deus existe? Parece que se há desacordo quanto à resposta correcta a determinada questão moral também há desacordo quanto a saber se Deus existe. Quem não acredita que Deus existe não tem de aceitar a teoria de que a moral depende da religião. Os ateus (aqueles que acreditam que Deus não existe) e os agnósticos (Os que suspendem o juízo sobre a questão de saber se Deus existe ou não) não aceitam a teoria dos mandamentos divinos. (NOTA - Código moral- Um conjunto de regras e princípios que definem o que é exigido, proibido e permitido.)

2 – Mesmo os que acreditam na existência de Deus discordam quanto ao que Deus permite e proíbe.

Admitindo que é Deus que tem o poder de estipular o que é certo e errado fica contudo um problema por resolver: como saber o que Deus definiu como certo e errado, onde encontrar orientação moral? A resposta do crente será a de que Deus revelou a sua vontade nas escrituras sagradas. Assim, os cristãos podem consultar a Bíblia e os muçulmanos o Corão.

Contudo, nem todos os cristãos, por exemplo, concordam sobre o que é a vontade de Deus em questões morais. Há discórdia sobre assuntos como a guerra, o aborto, a pena de morte, o sexo pré-matrimonial, os direitos dos animais, etc. Quem tem razão acerca do que é a lei de Deus?

Acresce que os livros sagrados das várias religiões transmitem ideias muito diferentes sobre questões como o uso legítimo da violência, o tratamento adequado dos animais, etc.

O facto de as autoridades religiosas discordarem acerca de questões como o aborto, a guerra, a esterilização, a pena de morte, entre outras deixa-nos o problema de saber qual é a interpretação apropriada. Quem tem a autoridade para esclarecer o que realmente significam os mandamentos divinos? Quem detém a interpretação apropriada? Se nem mesmo as autoridades religiosas conseguem estar de acordo sobre o que Deus ordena que credibilidade atribuir-lhes como guias da nossa conduta moral?

Por outro lado, os livros sagrados não fornecem uma orientação explícita sobre muitas questões que os seres humanos hoje em dia enfrentam em vários pontos do planeta. Basta pensar em casos como a discriminação positiva e os problemas morais associados às questões ambientais.

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Apesar das objecções à teoria dos mandamentos divinos muitas pessoas pensam que a religião é a base da ética e que é a resposta mais satisfatória à questão Por que razão devemos agir moralmente?

Quem recusa a teoria não é necessariamente ateu. Pode simplesmente defender a autonomia da ética, entender que os seres humanos não precisam de Deus para distinguir o bem do mal.

Vimos que o subjectivismo moral, o relativismo moral cultural e a teoria dos mandamentos divinos, encontram objecções fortes. Não temos outras opções? Estamos condenados a avaliar as acções seguindo ou os nossos sentimentos e gostos, o que a sociedade diz que é correcto ou o que Deus diz que é bom? Não haverá uma possibilidade de entendimento dos seres humanos acerca de problemas morais? Por outras palavras não haverá princípios morais acerca dos quais todos estejamos de acordo, sejam quais forem os nossos gostos, independentemente da cultura em que fomos educados ou de Deus existir ou não?

O filósofo anteriormente citado, James Rachels, afirma que há pelo menos três princípios morais que são universais: (NOTA - Um princípio moral universal aplica-se a todos os indivíduos mas admite excepções conforme os casos. Um princípio moral absoluto aplica-se a todos os indivíduos seja qual for o caso, ou seja, não admite excepções. Todos os princípios ditos absolutos são universais mas nem todos os princípios ditos universais ou objectivos são absolutos)

1- Devemos proteger as crianças.

2- Mentir é errado e

3- O assassínio é errado.

O cumprimento destas normas é, segundo Rachels, essencial para assegurar a sobrevivência de uma sociedade ou a saúde do corpo social e só em circunstâncias extraordinárias é admissível violá-las.

Quanto ao primeiro princípio uma objecção surge imediatamente: os esquimós da tribo Inuit praticam o infanticídio. Temos de distinguir duas coisas para compreender o que Rachels defende: uma coisa é dizer que os princípios morais dependem do contexto cultural variando com ele e outra coisa é dizer que é a aplicação dos princípios (e não os próprios princípios) que varia conforme o enquadramento cultural e os problemas que cada sociedade em dado momento tem de resolver.

Voltemos ao caso do infanticídio entre os Inuit. Esta tribo de esquimós vive num meio escasso em recursos naturais. São os homens que caçam e procuram alimento. A dieta alimentar é exclusivamente constituída por carne e, apesar de as mulheres não serem improdutivas, são os homens que fornecem a alimentação. A taxa de mortalidade é muito mais elevada entre os homens do que entre as mulheres. O infanticídio atinge exclusivamente os bébés do sexo feminino porque um excesso de membros do sexo feminino seria prejudicial sendo os homens os únicos fornecedores de comida. Contudo, os bébés só são mortos em tempos de grande escassez e só se não puderem ser encontrados pais adoptivos. Em épocas muito difíceis, em que escasseiam os alimentos e em que manter vivos os bébés seria por em sério risco a sobrevivência dos filhos mais velhos, os mais desprotegidos e incapazes são mortos. Por outras palavras, os Inuit matam alguns recém - nascidos para proteger outras crianças, as crianças que já têm. No entender de Rachels, esta sociedade esquimó preza os mesmos valores que nós: cuidar das crianças para assegurar a sobrevivência do grupo.

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Por que razão todas as culturas têm segundo Rachels uma norma contra a mentira? Porque se houver a expectativa de que na maioria dos casos os outros vão mentir então a comunicação e a interacção social atingirão o ponto de ruptura e chegarão a um grave impasse.

A terceira norma diz-nos que nenhuma cultura aprova que se mate arbitrariamente alguém. Se vivessemos na expectativa permanente de que os outros nos podem matar, se esta expectativa for a regra e não a excepção não arriscaríamos dar um passo para fora de casa e a desconfiança generalizada conduziria ao colapso da vida social.

Outra forma de defender que há verdades morais objectivas consistiria em dizer que tal como há verdades lógicas evidentes por si também há verdades morais desse tipo. Uma verdade lógica auto- evidente é por exemplo esta: Cada coisa é idêntica a si. Esta verdade fornece a sua própria evidência sem necessidade de mais justificações. Há verdades morais que também parecem ter esse estatuto. Eis duas delas: Pessoas iguais devem ser tratadas igualmente e O sofrimento desnecessário é errado. A primeira norma, por exemplo, diz que quando pessoas iguais são desigualmente tratadas se comete um erro moral. Para quem sabe o que são a igualdade e a moralidade esta verdade é evidente por si, ou seja, dispensa que se adicionem justificações. Estes dois princípios morais – o princípio da justiça e o da misericórdia parecem ser auto-evidentes e qualquer comportamento e teoria ética deve ser compatível com eles.

Atividade 9

1 - Na obra de Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov, Ivan Karamazov afirma: «Se Deus não existir tudo é permissível». Podemos dizer que Ivan é um defensor da teoria dos mandamentos divinos? Porquê?

2 – Há quem afirme que apesar da sua omnipotência, Deus não pode fazer com que um quadrado tenha três lados nem que dois mais dois sejam igual a quatro. Porquê? Porque são verdades evidentes por si. Mas um princípio como este É errado matar pessoas inocentes para nos divertirmos não é evidente por si? Por que razão este argumento constitui uma objecção à teoria dos mandamentos divinos?

3 – Segundo a teoria dos mandamentos divinos a única razão porque matar é errado é porque Deus o proibiu. Se Deus não nos tivesse ordenado que não matássemos, matar não seria errado. O mesmo acontece com roubar e mentir.É a vontade de Deus que faz com que certos actos sejam bons ou maus. Tudo o que Deus ordena é bom e tudo o que Deus proíbe é mau. Mas se Tudo depende da vontade de Deus e esta é omnipotente podemos concluir que Deus podia ter ordenado que matar, roubar e mentir eram acções correctas. Na verdade, o que o impediria dado que é omnipotente de «mudar as regras do jogo».

Como reagiria o defensor da teoria dos mandamentos divinos a este argumento que sugere que as leis de Deus são arbitrárias?

4– Dê atenção ao seguinte argumento:

Há actos intrinsecamente maus (maus em si mesmos)

Matar pessoas inocentes é um acto intrinsecamente mau.

Logo, o assassínio de inocentes é errado porque Deus o proíbe.

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Considera válido este raciocínio? É um argumento com o qual o defensor da teoria dos mandamentos divinos estaria de acordo? Justifique as suas respostas.

5 - Leia atentamente o seguinte texto:

«Duas culturas podem partilhar os mesmos princípios morais mas a aplicação desses princípios pode depender das condições específicas de uma dada cultura. A moralidade é culturalmente condicionada mas isso não é suficiente para provar que os princípios morais são todos dependentes de tradições culturais. Cada cultura tem um conceito de assassínio, distinguindo-o de execução, matar na guerra e outros «homicídios justificáveis». A noção de incesto e outras regulações do comportamento sexual, os conceitos de restituição e reciprocidade, de obrigações mútuas entre pais e filhos, estes e outros conceitos são universais. Além disso, embora possa parecer que o conflito entre juízos morais se baseia no conflito entre princípios morais opostos, a diferença pode residir em diferentes crenças factuais. Por exemplo, em muitas culturas tribais é costume matar os próprios pais quando estes já não conseguem assegurar a sua própria subsistência e se encontram em estado de grande debilidade. Esta prática não só é radicalmente diferente da nossa como podemos julgá-la moralmente repugnante. Mas será que estas tribos diferem assim tanto de nós no plano moral? Surpreendentemente a resposta é não porque a diferença está não nos princípios morais mas sim nas crenças factuais. Estes povos matam os seus pais idosos porque acreditam que a condição física do corpo no momento da morte será a condição da pessoa numa vida depois da morte. Dada esta crença é importante apressar a morte a partir do momento em que o corpo começa a mostrar evidentes sinais de decadência de modo a que a vida depois da morte não seja degradante e dolorosa. Se os filhos não fazem isso aos pais não estão a comportar-se como é devido, estão a ser gravemente negligentes. Em outras culturas como as dos esquimós Inuit a dura luta pela sobrevivência num ambiente muito hostil determina prioridades que em abstracto julgaríamos moralmente repugnantes: cuidar e proteger as crianças mais velhas em detrimento dos recém-nascidos. A moral da história é que estas culturas tem basicamente os mesmos princípios morais que nós: 1) honra os teus pais, b)protege as crianças e c) promove o bem-estar global da sociedade. Contudo, a aplicação destes princípios é diferente da nossa porque têm diferentes crenças factuais acerca da morte e porque o ambiente físico em que vivem é radicalmente diferente»

a) Que tese defende o texto.

b) Que argumento utiliza para a defender?

6 – Em 1964, o antropólogo Collin Turnbull descobriu uma tribo que vivia isolada no norte do Uganda em condições ambientais extremamente duras. A fome era uma ameaça frequente. Turnbull verificou que nesses momentos em que a comida escasseava, os pais guardavam a comida para si e escondiam-nas dos filhos. Verificou também que nessa tribo (Ik) as crianças tinham de se desembaraçar sozinhas a partir dos 3 anos para obterem alimento. Aprendiam então a roubar comida muitas vezes extraindo-a da boca dos mais idosos e fracos. A honestidade era desprezada como tolice e a mentira inteligente e eficaz era louvada. Segundo Turnbull, a sociedade dos Ik parecia num estado de permanente colapso cultural em virtudes destes princípios morais.

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Considera que esta descrição constitui uma forte objecção ao que James Rachels defendeu, isto é, que há algumas normas morais universais como não mentir, não matar e proteger as crianças?

Problema 10

O egoísmo é moralmente aceitável?

Imagine que durante um passeio no parque encontra uma criança que fracturou um pulso. Repara que mais ninguém pode ajudá-la. Tem um telemóvel que pode servir para telefonar ao 112 para pedir ajuda. Não conhece a criança de lado nenhum e além disso está atrasado para um exame de Matemática muito importante. Agiria erradamente se nada fizesse para a ajudar e seguisse o seu caminho para a escola sem mesmo chamar o 112?

Há uma teoria ética que responde a esta questão dizendo Cada qual que trate de si. Ajudar os outros não é um dever moral básico porque só devemos realizar acções que tenham boas consequências para nós. Essa teoria tem o nome de egoísmo ético. O egoísmo ético é uma teoria normativa de tipo consequencialista segundo a qual todos nós em todas as nossas acções devemos fazer o que serve os nossos interesses. Cada um de nós tem a obrigação moral de pensar que os seus interesses têm prioridade sobre os interesses dos outros. Devemos agir sempre em função do nosso interesse pessoal.

Note-se que esta teoria afirma que todas as pessoas devem agir sempre em função dos seus próprios interesses. (NOTA – Egoísmo ético e egoísmo psicológico - O egoísmo ético distingue – se do egoísmo psicológico. O egoísmo psicológico afirma que todas as nossas acções são, em ultima análise, determinadas pela preocupação com o nosso bem-estar ou o nosso interesse pessoal. Afirma que todas as acções são fundamentalmente egoístas. O egoísmo ético Afirma que todas as nossas acções devem ser egoístas. Para esta teoria cada indivíduo unicamente deve procurar satisfazer os seus interesses. O egoísmo psicológico não implica o egoísmo ético, isto é, não há uma relação logicamente necessária entre dizer que todas as nossas acções são egoístas e afirmar que todas as nossas acções devem ser egoístas. O egoísmo psicológico unicamente descreve como julga que de facto agimos mas não prescreve como devemos agir. Assim não há qualquer inconsistência em defender o egoísmo psicológico e negar o egoísmo ético ou em advogar o egoísmo ético negando o egoísmo psicológico.)

Agimos moralmente bem quando as consequências dos nossos actos promovem o nosso interesse pessoal. É moralmente aceitável e obrigatória a acção que satisfaz os meus interesses e também o é a acção que serve os teus interesses. Para o egoísmo ético cada um de nós tem a obrigação moral de promover o seu próprio interesse. Esta teoria rejeita que sacrifiquemos o nosso próprio bem-estar para ajudar os outros e que os outros sacrifiquem o

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seu bem-estar para nos ajudar a nós. Embora possamos simpatizar com actos altruístas - especialmente com os que nos beneficiam – eles não constituem uma obrigação moral. Em termos figurativos, «cada qual que cultive o seu jardim sem se preocupar com os jardins dos outros». (NOTA – O egoísta ético não é um fora da – lei que vive para ostensivamente prejudicar os outros, roubando, violando ou agredindo. Tenta respeitar os interesses dos outros porque isso é do seu interesse. Não quer uma sociedade em que reine a insegurança ou a guerra de todos contra todos porque haveria sempre alguém mais forte e astuto do que ele. A sua ética é a ética da astúcia.)

O egoísmo ético é uma teoria moralmente credível?

Parece simples. Cada qual que trate de si. Ajudar os outros não é um dever moral básico. Mas será que não devemos nunca ajudar os outros? Será que não devemos nunca evitar prejudicá-los? O egoísta ético responderá que devemos ajudar os outros quando as circunstâncias o justificam. E o que justifica ajudar os outros, fazer algo por eles, ou evitar prejudicá-los? Que esses actos sirvam a curto ou médio prazo os meus interesses. O egoísmo cego e irracional pode ter consequências desagradáveis. Uma boa dose de prudência e de calculismo é normalmente aconselhável.

Imaginemos que sou um homem de negócios relativamente bem sucedido.Com a riqueza de que disponho é evidente que poderia usar o meu dinheiro para comprar carros de luxo, iates, casas de férias em vários pontos do globo, jóias, roupa, sem me preocupar com mais nada. Mas não seria mais razoável destinar uma parte considerável dessa riqueza para donativos a instituições com um certo prestígio e que atravessam dificuldades financeiras? Poderá ser uma boa estratégia publicitária e a admiração e reconhecimento do público serão muito provavelmente bons para os meus negócios futuros. (NOTA – O egoísmo ético é uma teoria pouco plausível em termos morais porque não justifica deveres ou obrigações positivas a respeito dos outros. O critério egoísta - sempre fazer o que me beneficia quer a curto quer a longo prazo - não justifica a obrigação moral de salvar quem se está a afogar mesmo que isso seja possível e simples, a não ser que algum interesse pessoal esteja em jogo)

Não será nossa obrigação moral ajudar quem sofre independentemente do que possamos ganhar com isso?

Contudo, se a astúcia pode conduzir à realização de actos cujo efeito secundário é a satisfação ou felicidade dos outros, ela também pode estar associada a actos criminosos. Supõe que ofereceram a Albert 1 milhão de euros para matar alguém e que Albert conhece uma forma de o fazer que lhe garante ser muito improvável vir a ser descoberto. Dado que lhe interessa ganhar essa quantia não lhe interessa que a referida pessoa viva. É moralmente aceitável matá-la? O egoísmo ético não considera ser nossa obrigação moral básica ajudar os outros nem evitar prejudicá-los – ou seja, como essas regras da moral comum são mais regras de prudência do que princípios morais. Dado que o fim o exige, o meio é moralmente aceitável. Se as pessoas devem agir sempre apenas motivadas pelo seu interesse pessoal então é moralmente aceitável qualquer acção que não acarretando prejuízos ao agente satisfaça essa finalidade. Os interesses dos outros (o seu bem-estar, a sua saúde, a preservação da sua vida)

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não têm importância a não ser que o meu próprio interesse seja afectado ao prejudicá-los ou ao beneficiá-los. A única coisa moralmente relevante quando se trata de decidir como devo agir é se o que farei vai ou não satisfazer o meu interesse pessoal.

Uma vez que pode justificar actos profundamente imorais ou o culto das falsas aparências, o egoísmo ético é para muitas pessoas uma teoria sem credibilidade

Pode o egoísmo ético resolver conflitos de interesses?

O egoísta adopta este princípio básico: «Deves pensar no que é benéfico para ti e não no que serve o interesse dos outros». E admite que esse princípio seja adoptado por todos. Isto significa que se só devo pensar no que é bom para mim também devo admitir que os outros pensem unicamente no que é bom para eles. É esta posição sustentável?

Imagine que estou interessado numa mulher que também interessa a outro homem. Defendo a teoria do egoísmo ético. O que implica isso? Que ao mesmo tempo defendo que o meu rival deve procurar conquistar essa mulher porque é do seu interesse e que não deve procurar conquistá-la porque isso não é do meu interesse. Imagina também que é do interesse do proprietário de um prédio incendiá-lo para receber o dinheiro do seguro. Mas é evidente que isso colide com os interesses dos inquilinos e da própria companhia de seguros. E no caso do casal que se separa reivindicando marido e mulher a custódia do filho? Parece difícil encontrar uma resposta recorrendo ao princípio do egoísmo ético porque este unicamente diz que cada pessoa deve encarar-se a si mesma como um caso especial. (NOTA – Ao não dispor de um critério de avaliação moral superior aos interesses individuais, de uma noção de bem interpessoal, o egoísmo ético torna difícil resolver conflitos de interesses.)

O egoísmo ético parece incapaz de resolver conflitos de interesses dado basear-se no princípio de que todas as pessoas devem procurar satisfazer única e exclusivamente os seus interesses pessoais. Se assim é, eu devo satisfazer o meu interesse e os outros devem satisfazer os seus. Ora se a defesa dos meus interesses implicar que prejudique os outros não tenho também de admitir que os outros me prejudiquem para defenderem os seus? Se procura satisfazer o seu interesse pessoal e advoga que os outros devem fazer o mesmo, irá aperceber-se rapidamente de que essa regra pode ser a negação dos seus interesses porque os outros estarão em competição consigo. Como sair desta situação? Pode fingir que se preocupa com os outros e louvar tal virtude enquanto «pela calada» continua a ser egoísta. O resultado pode ser satisfatório mas esta posição não pode ser uma teoria moral. Está a defender um princípio - ajudar os outros – e a agir segundo outro que o nega. A isto chama-se desonestidade. (NOTA – Há quem considere o egoísmo paradoxal porque para atingir os seus objectivos, o egoísta deve nalguns casos e até certo ponto tornar-se altruísta, a negação do egoísmo)

Um dos grandes problemas do egoísmo ético é ser uma teoria que além de inconsistente, se auto-derrota quando procuramos convencer os outros de que é um guia de acção. É, quando muito, uma moral para uso privado, incapaz de resolver conflitos públicos, que fomenta a hipocrisia e que torna difícil conceber como possíveis relações genuínas de amizade, de amor e de solidariedade.

Atividade 10

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1 – O que distingue o egoísmo ético do egoísmo psicológico?

2 – É correcto dizer que o egoísta ético se baseia no princípio seguinte: «Todas as pessoas devem agir em função dos meus interesses»? Justifique a sua resposta.

3 - Relembre o caso de Kitty Genovese. Que avaliação moral pensas que um egoísta ético faria do comportamento dos vizinhos que assistiram ao seu assassínio? Justifique.

4 – É correcto afirmar que o egoísta ético nunca pensa genuinamente em ajudar os outros ou em evitar prejudicá-los? Justifique a sua resposta.

5 – Durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados conseguiram descodificar o código nazi e o British War Office ficou a saber entre outras coisas que os nazis sabiam a verdadeira lealdade de duas espias que trabalhavam para os Aliados. O BWO sabia que se as espias regressassem em nova missão à Europa nazi seriam muito provavelmente capturadas, torturadas e mortas. Contudo, se não voltassem, os nazis deduziriam que o seu código teria sido descoberto e alterá-lo-iam. Os Aliados perderiam a maior fonte de informação acerca dos planos de guerra nazis pelo menos durante mais dois anos. O BWO e os Aliados decidiram enviar as espias de volta para nova missão na Europa nazi perfeitamente conscientes de que os nazis conheciam a sua identidade, ou seja, que elas faziam contra – espionagem. Nunca mais tiveram notícias das duas mulheres.

O interesse do British War Office era manter o código intacto. O interesse das espias era o de preservarem as suas vidas. Que interesses deviam prevalecer?

Será que o egoísta ético tem resposta para este conflito de interesses? Porquê?

Como responderia o utilitarista a este problema? E um partidário da ética kantiana? Qual seria a melhor resposta dadas as circunstâncias? Justifique.

6 – Como pensa que o egoísta ético avaliaria as seguintes acções?

a) Recuso copiar durante um exame mesmo que o possa fazer sem ser descoberto.

b) Um empresário aceita diminuir os seus lucros aumentando o ordenado dos seus empregados mais produtivos.

c) Alguém salva a vida da pessoa que ama arriscando a sua.

BIBLIOGRAFIA

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P. Pojman, Louis, Ethics, Discovering Right and Wrong, Wadsworth, Belmont, 1994

Harris, Jr, C. E.Applying Moral Theories, Wadsworth, Texas A. M. University, 2002

Singer, Peter, How Are We to Live? - Ethics in an age of self-interest, Prometheus Books, 1995

. Rachels, James (2003) «Egoísmo Psicológico», in Elementos de Filosofia Moral.

Lisboa: Gradiva, 2004, Cap. 5.

. Singer, Peter (1993) «Porquê Agir Moralmente?», in Ética Prática. Lisboa: Gradiva, 2000, Cap. 12.

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. Galvão, Pedro (s.d.) «Dois Egoísmos», in A Arte de Pensar: Site de Apoio.

http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_pensar/leit_2egoismos.html.

. Vaz, Faustino (s.d.) «Por que Razão Havemos de ser Morais?», in A Arte de Pensar:SitedeApoio.

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http://caae.phil.cmu.edu/Cavalier/80130/index.html

Varieties of egoism

http://webs.wofford.edu/kaycd/ethics/egoism.htm

Egoism [Internet Encyclopedia of Philosophy]

http://www.iep.utm.edu/e/egoism.htm

Egoism (Stanford Encyclopedia of Philosophy)

http://plato.stanford.edu/entries/egoism/

Ethical egoism (from ethics) -- Encyclopædia Britannica

http://www.britannica.com/eb/article-252577/ethics

Page 66: PROBLEMAS DE ÉTICA

We Are Not Always Selfish

http://philosophy.lander.edu/intro/rachels.html

Videografia

Wall Street, de Oliver Stone (1987)

Bud Fox é um jovem corrector da bolsa que tenta fazer fortuna em Wall Street. Consegue conhecer um dos grandes magnatas da Bolsa, Gordon Gekko. Este contrata-o como seu agente. Após um período inicial de fascínio e deslumbramento, Bud apercebe-se de que Gekko é um indivíduo sem o mínimo escrúpulo. Quando Gekko o encarrega de uma operação financeira que poderá render muito dinheiro mas que viola as mais elementares regras da ética, Bud terá de escolher entre o dinheiro e o dever.

dinheiro a Goeth, que tomaria as medidas necessá

Problema 11

O que são os direitos humanos?

Em 1996, no seu relatório anual sobre violações dos direitos humanos, a Amnistia Internacional descreve um estado de coisas preocupante: 146 países violam, com maior ou menor gravidade, direitos humanos essenciais. Alguns dados: dez mil presos em todo o mundo foram torturados; 4500 pessoas morreram devido a torturas enquanto estavam encarceradas sob custódia policial; países “defensores” dos direitos humanos ganharam milhões de contos na venda de armas a países que as usam para violar sistematicamente direitos do homem.

Quantos cumprem o direito igualitário à educação, à assistência sanitária, a um justo salário? Em quantos não há discriminação entre homens e mulheres no que respeita por exemplo ao acesso ao emprego, à ocupação de cargos políticos e directivos? Em países da economicamente poderosa União Europeia milhões de pessoas não têm emprego ou habitação, vivendo da caridade pública. Se alguns países “ricos e prósperos” são incapazes de cumprir de forma minimamente satisfatória estes direitos fundamentais, como exigi-lo aos países pobres e superpovoados?

O que são direitos?

Um direito é uma reivindicação legítima ou justificada que deve ser reconhecida e aceite pelos outros.Ter um direito é ter legitimidade para reivindicar alguma coisa de alguma pessoa ou instituição.Quem possui direitos espera legitimamente dos outros um determinado comportamento.Ter direito à liberdade de expressão significa que eu posso exigir dos outros que não me impeçam de falar ou de expressar as minhas ideias e crenças.

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Os direitos implicam deveres.Que direitos tem um aluno? Tem os seguintes direitos: Ser devidamente avaliado, ensinado, conviver com os seus pares, ser respeitado por colegas e professores.Os direitos de um aluno são os comportamentos que o aluno legitimamente espera do professor, colegas e outros agentes educativos.Mas quem tem direitos tem deveres. O aluno para que os seus direitos sejam legítimos deve submeter-se a avaliações, comparecer às aulas, respeitar colegas e professores, empenhar-se no processo de aprendizagem.Os deveres do aluno são os comportamentos que os professores, colegas e outros agentes educativos legitimamente esperam do aluno. Ter direito à vida implica que os outros têm o dever de não me matar e que eu tenho a obrigação (dever) de não matar.

Direitos morais e direitos legais

Distinguem – se direitos legais de direitos morais.Os direitos legais são os direitos instituídos pelo poder político – Congresso ou Parlamento.Esses direitos estão redigidos nos diversos códigos jurídicos de várias nações.Código penal, código civil, código da estrada, são exemplos.Consultando esses códigos pode saber alguns dos direitos que as autoridades que os elaboraram lhe reconhecem e também os deveres que tem de cumprir.Assim, no Brasil é permitido ultrapassar um automóvel pela esquerda e não pela direita.Na Comunidade europeia, os cidadãos europeus tem o direito de viajar de um país para outro sem necessidade de passaporte ou de autorização escrita.

Os direitos legais são os direitos que um certo código legal ou jurídico nos concede.Os direitos morais são os direitos que um determinado código moral reconhece.São exig~encias baseadas em boas razões morais.Considera – se que temos um direito moral quandohá boas razões que justificam o reconhecimento público e o reforço de uma determinada exigência.São reconhecidos geralmente como direitos morais o direito à integridade física, à vida, à liberdade de expressão, entre outros.

Algumas vezes temos direitos legais que não devíamos ter.Outras vezes não temos direitos legais que devíamos ter.Por exemplo, só em 1971 as mulheres suíças tiveram o direito de votar em eleições no seu país.Não tinham esse direito mas havia boas razões morais para que o tivessem.Por outro lado, em muitos estados do sul dos EUA havia o direito legal de possuir escravos negros mas agora pensamos que não havia boas razões morais para que tivessem esse direito legal. Pode ver que quando falamos dos direitos legais que as pessoas deviam e não deviam ter estamos a falar de direitos que de um ponto de vista moral foram ou desrespeitados ou abusivamente concedidos.Os direitos morais são direitos que as pessoas possuem só por serem pessoas e não por serem cidadãos deste ou daquele estado.Mas será que há direitos morais?

Há quem pense que a Declaração Universal dos Direitos Humanos apresenta um conjunto de direitos que podem ser considerados direitos morais.Vejamos porquê.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, por exemplo, é considerada como o reconhecimento lógico do ser humano como pessoa, ou seja, baseia - se na exigência de defender a dignidade da pessoa humana. Dizer que há “direitos humanos” ou direitos fundamentais do ser humano que derivam da sua

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condição de pessoa, equivale a afirmar que há direitos que todo ser humano possui pelo simples facto de ser humano.

Os direitos humanos são direitos de todos os seres humanos: ricos ou pobres, doentes ou saudáveis, crentes ou ateus, do sexo masculino ou do feminino, de toda e qualquer nacionalidade.

A este respeito devemos distinguir direitos humanos e direitos do cidadão.

Os direitos do cidadão são direitos políticos, isto é, atribuídos pelo poder legislativo de um determinado Estado: assim, como cidadão do Estado português, tenho o direito ao divórcio enquanto outros Estados não concedem tal direito aos seus cidadãos.

Os direitos humanos não são direitos atribuídos pelo poder político, isto é, não estão, por definição, sujeitos a variações de tempo e de espaço. São direitos universais, isto é, que, longe de nascerem de uma concessão desta ou daquela sociedade política, lhe são logicamente anteriores e devem constituir o “centro ético” em torno do qual os seres humanos, vivam onde viverem, organizem a vida política, económica e cultural.

Os direitos humanos pretendem ser válidos estejam ou não reconhecidos juridicamente por um determinado Estado. São exigências morais que os diversos Estados do planeta devem respeitar se quiserem ser considerados legítimos.

Características essenciais dos direitos humanos

1 — São inerentes à pessoa humana, têm o seu fundamento na dignidade de cada ser humano. Por isso, são universais, válidos para toda a pessoa, independentemente da sua condição socioeconómica, religião, etnia, nacionalidade, “raça” e sexo.

2 — São exigências éticas (“direitos morais”) porque representam valores que devem ser respeitados por todos os seres humanos e garantidos pelas leis e pelos governos de todos os países.

3 — São ideais que devem orientar e inspirar os códigos legais de qualquer Estado para que este seja considerado um Estado de direito. Quando a legislação concreta de um Estado os contempla passam a integrar o Direito positivo deste, o que dá mais garantias quanto ao seu respeito e protecção.

4 — Existem, mesmo quando não são reconhecidos e cumpridos. Com efeito, nenhum poder político pode retirar-nos (ou dar-nos) esses direitos porque a dignidade humana que é o seu fundamento é algo que temos por sermos pessoas e não algo que depende da vontade de quem faz as leis.

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Se um Estado não garante aos seus cidadãos ou a certos grupos que habitem no seu território (por exemplo, certas minorias étnicas como os Curdos na Turquia ou no Iraque) direitos como a inviolabilidade do domicílio, o direito de não poder ser detido arbitrariamente, os direitos à liberdade de expressão, de imprensa, de circulação, de ser tratado igualmente perante a lei, o direito à educação e à liberdade religosa, etc., então esse Estado será “julgado” como injusto.

Os direitos humanos, baseados no reconhecimento do ser humano como pessoa ou ser cuja dignidade é inviolável, não são direitos concedidos pelo poder legislativo deste ou daquele Estado. São direitos inerentes a qualquer ser humano. Contudo, devem inspirar e incorporar-se nas leis e constituições dos diversos Estados para que não sejam simples exigências morais ou abstracções do nosso espírito. Apresentam-se, portanto, como ideais programáticos, como ideais de justiça que a humanidade, onde quer que viva neste planeta, deve procurar realizar e instituir.

Os Direitos das Mulheres

O valor dos direitos humanos reside na sua universalidade. Sem o reconhecimento efectivo dos direitos das mulheres não pode dar-se um reconhecimento autêntico dos direitos humanos.

Apesar da melhoria verificada na condição feminina, sobretudo nos países mais desenvolvidos, não há actualmente qualquer sociedade em que as mulheres disponham realmente das mesmas oportunidades dos homens. Persiste um conjunto generalizado de desigualdades entre homens e mulheres no que respeita ao acesso à educação, à saúde e mais ainda no que se refere à participação na vida económica e política. Pensemos em vários dados:

— As mulheres cumprem 67% das horas de trabalho no mundo, mas só ganham 10% e são proprietárias de 1%.

— Um terço das famílias de todo o mundo está a cargo das mulheres.

— Os países que investiram na educação das mulheres beneficiaram de uma maior produtividade económica.

— Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dentro de 474 anos haverá igualdade laboral entre homens e mulheres.

— Cem milhões de meninas foram submetidas a mutilações genitais (excisão do clítoris).

— Um terço das mulheres dos EUA, Canadá, Holanda, Noruega e Nova Zelândia sofreram maus tratos sexuais na infância.

— Na Suécia, as vantagens da maternidade incluem 15 meses de licença para a mãe e 18 para o pai.

— A ONU relatou que uma em cada 6 mulheres sofreu uma violação na vida.

Nos dias de hoje a palavra feminismo ainda provoca medo. Há quem entenda — e não só os homens — que ser feminista é distanciar-se dos homens, ser agressiva e ameaçar a convivência entre os sexos. Há mulheres que ainda têm medo de ser elas mesmas, de

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expressar abertamente as suas opiniões talvez porque se sintam ameaçadas pelo meio envolvente e prefiram, resignadamente, adaptar-se a ele.

O medo do feminismo parte do desconhecimento das causas da opressão da mulher. Mas podemos definir o feminismo como luta para conseguir uma nova identidade humana que parte do facto biológico de ter nascido mulher para, conjuntamente com o homem, constituir uma categoria superior que é a de pessoa.

O feminismo não implica a ruptura com o homem, mas sim com a ideia de que este é um ser superior. A liberdade das mulheres não implica a submissão dos homens, mas estes não podem pensar que são livres se continuarem a oprimir as mulheres. O feminismo é também uma nova concepção do mundo, visto através das mulheres: um mundo sem opressão nem marginalização de tipo algum.

No dia em que o sexo não condicionar o desenvolvimento total das pessoas, no dia em que a supremacia do “macho” passar aos anais da história, no dia em que a comunicação entre os dois sexos nascer do respeito entre seres livres, nesse dia, o feminismo não terá razão de ser.

INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR

Declaração Universal dos Direitos do Homem (selecção de artigos)

Proclama a presente Declaração dos Direitos do Homem como um ideal comum, onde todos os povos e nações hão-de pôr os seus esforços, para que tanto os indivíduos como as instituições se inspirem constantemente nela e promovam, por meio do ensino e da educação, o respeito destes direitos e liberdades e lhes assegurem, mediante providências progressivas de carácter nacional e internacional, o seu reconhecimento e aplicação universais e efectivos, tanto entre os povos dos Estados membros como entre os dos territórios onde exercem jurisdição os referidos Estados.

Art. 1. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados como são de razão e consciência, têm de comportar-se uns com os outros com espírito fraternal.

Art. 2. Toda e qualquer pessoa têm todos os direitos e liberdades proclamados nesta Declaração sem diferença nenhuma de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, situação económica, nascimento ou qualquer outra condição.

Art. 3. Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança da sua pessoa.

Art. 4. Ninguém será submetido a escravidão ou a servidão; escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas.

Art. 5. Ninguém será submetido a torturas nem a penas ou tratos cruéis, inumanos ou degradantes.

Art. 11. Toda a pessoa acusada de delito tem direito a que a presumam inocente, enquanto a sua culpabilidade se não provar legalmente e em juízo público, e a que para se defender lhe tenham concedido todas as garantias necessárias.

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Art. 12. Ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de ataques à sua honra ou à sua reputação. Toda a pessoa tem direito à protecção da lei contra tais ingerências ou ataques.

Art. 13. Toda a pessoa tem direito a circular livremente e a escolher a sua residência no território de um Estado.. Toda a pessoa tem o direito de sair de qualquer país, mesmo do seu; e de voltar ao seu país.

Art. 17. Toda a pessoa tem direito à propriedade individual e colectiva.Ninguém pode, arbitrariamente, ser privado do que é seu.

Art. 18. Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou crença, individual e colectivamente, tanto publicamente como particularmente, pelo ensino, pela prática, pelo culto e observância dos ritos.

Art. 19. Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão. Este direito inclui o de não ser inquietado por causa das suas ideias; o de procurar receber e difundir, sem limitações de fronteiras, informações e ideias por qualquer modo de expressão.

Art. 23.

Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. Toda a pessoa tem direito, sem discriminação nenhuma, a salário igual por trabalho igual.Toda a pessoa que trabalha tem direito a remuneração equitativa e satisfatória, que lhe assegure, a ela e à família, uma existência conforme à dignidade humana, e que, se for necessário, se deverá completar por quaisquer outros meios de protecção social.Toda a pessoa tem direito de fundar sindicatos e de sindicalizar-se para defender os seus direitos.

Art. 25. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida capaz de lhe assegurar, a ela e à família, a saúde e o bem-estar, e especialmente a alimentação, o vestuário, a habitação, a assistência médica e os serviços sociais necessários. Tem igualmente direito à segurança em caso de desemprego, doença, viuvez, velhice e outros casos de perda dos meios de subsistência, por circunstâncias independentes da sua vontade.

Art. 26. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação há-de ser gratuita, ao menos no que pertence à instrução elementar e fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar patente a todos, com plena igualdade, em função das aptidões individuais.

As Três Gerações dos Direitos Humanos

Ao longo da história da civilização ocidental existiram várias fases no reconhecimento dos direitos humanos. São as chamadas três gerações dos direitos humanos.

1.a geração: os direitos da liberdade

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Nesta fase dá-se a conquista das liberdades individuais e dos direitos de participação política, reivindicações dos revolucionários liberais dos séculos xvii e xviii na sua luta contra as monarquias absolutas: direito à vida e à integridade física; liberdade de pensamento e de expressão; garantias processuais no caso de sermos acusados de delito; protecção do direito à intimidade e à boa reputação; direito a eleger os governantes mediante o voto, etc. Este conjunto de direitos está relacionado com o conceito de Estado de direito da tradição liberal. Um Estado de direito é todo e qualquer sistema político que respeita as liberdades fundamentais de modo que ninguém – nem governantes nem governados – se encontra acima da lei.

2.a geração: os direitos da igualdade

Nesta fase desenvolvem-se os direitos económicos, sociais e culturais, ou seja, o direito à educação, à assistência sanitária, à protecção contra o desemprego, a um salário digno, ao descanso e ao lazer, a uma reforma digna, ao acesso aos bens culturais. Foi o movimento operário durante os séculos xix e xx que desempenhou o papel de protagonista na luta pelo reconhecimento destes direitos. O reconhecimento conjunto dos direitos da 1.ª e da 2.ª geração deu origem a um novo modelo de Estado: o Estado social de direito. Esta designação significa que não se trata simplesmente de assegurar que os cidadãos sejam “iguais perante a lei”, mas que se procura aplicar as medidas necessárias para que todos acedam aos bens básicos necessários para tomar parte na vida política e cultural.

3.a geração: os direitos da solidariedade

São direitos básicos dos quais se começou a falar há poucos anos: direito a viver em paz e a desenvolver-se num meio ambiente são (não contaminado). É evidente que se não se cumprem estes direitos não parece possível que se possam exercer realmente os direitos da liberdade e da igualdade. Neste caso, não basta que se tomem medidas no interior de um Estado. É necessário um esforço de solidariedade entre todas as nações e povos do planeta. O cumprimento dos direitos de solidariedade exige um trabalho conjunto da comunidade internacional para lutar contra condições adversas: a falta de recursos, a deterioração do meio ambiente, a guerra e as injustiças. Protagonistas fundamentais na reivindicação efectuada destes direitos têm sido os movimentos pacifistas e ecologistas em geral.

Cada uma das três gerações dos direitos humanos exprime exigências ligadas ao respeito pela dignidade humana e, no seu conjunto, fundam-se em três valores básicos da tradição política da modernidade: liberdade, igualdade e solidariedade.

Fonte: Adela Cortina, Filosofia, Santillana, Madrid, 1996

Actividade 11

1 - Além da universalidade (são direitos de todos os homens e devem ser respeitados em todos e por todos os homens), os direitos humanos apresentam outras características essenciais:

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a)São imprescritíveis;

b)São inalienáveis;

c)São irrenunciáveis.

Tente explicar o que significam estas características.

2 - O que significa dizer que os homens nascem iguais em dignidade e direitos?

a)Que nascem iguais, mas se tornam desiguais ao longo da vida;

b)Que durante toda a vida são iguais em dignidade e direitos pelo mero facto de terem nascido;

c)Que durante toda a vida são iguais em dignidade e direitos por terem nascido como membros da espécie humana.

BIBLIOGRAFIA

1 — BOBBIO, N., A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus Editora.

2 — GOUVEIA, J. B., Legislação de Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra.

3 — HARSCHER, G., Phílosophie dês droits de l'homme, Éditions de Funiversité de Bruxelles.

4 — MIRANDA. J., Direitos Humanos, Principais Textos Internacionais, Livraria Petrony, Lisboa.

5 - TRUYOL Y SERRA, A., Los derechos humanos, Tecnos, Madrid.

6 - SOROMENHO MARQUES, Direitos Humanos e Revolução, Edições Colibri, Lisboa.

Problema 12

Os animais têm direitos?

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Para satisfazer o gosto humano por carne mais de 5 bilhões de animais são mortos por ano só nos Estados Unidos da América. Todos os anos 3,5 milhões de animais são sacrificados em França em experimentações laboratoriais. Algumas experimentações permitiram conceber vacinas que salvaram milhões de vidas humanas. Muitas outras consistiram em verificar o carácter inócuo de um báton vermelho ou de cremes de beleza. No mundo inteiro esses testes atingem o número de 200 milhões de sacrifícios. Uma grande parte dessas investigações causa aos animais dor e desconforto, sem proporcionar nenhum benefício aos seres humanos. Por outro lado, mais de 200 milhões de animais selvagens são feridos ou mortos todos os anos pelos caçadores norte - americanos. Mais de 650 espécies de animais estão ameaçadas de extinção até ao final deste século.

A questão dos direitos dos animais é um caso particular do problema dos direitos da natureza em geral e em muitos países é objecto de importantes debates. Ao longo da história da humanidade, os animais têm sido utilizados para os mais diversos fins: para servirem de fonte de alimentação; para testes de vacinas e de produtos cosméticos; para experimentação de hipóteses em diversos campos da investigação científica; para satisfazerem a curiosidade humana (os jardins zoológicos) e o seu gosto pelo espectáculo (circo, touradas). O balanço deste uso não pode ser motivo de orgulho. Submetendo os animais aos nossos interesses e supostas necessidades, infligimos-lhes enorme sofrimento e tratámo-los com o desprezo característico de quem pensa que não passam de coisas ao nosso dispor. Não diz a Bíblia, no Génesis, que a natureza foi criada para o homem, que Deus conferiu ao ser humano o domínio de todo o mundo natural? Não afirmaram os grandes pensadores como Kant que os animais não têm consciência de si e apenas existem como meio para as nossas finalidades? Que não são agentes racionais? Que não possuem o uso da linguagem? Considerando-nos uma espécie à parte, superior aos animais em quase todos os aspectos, desenvolvemos e consolidámos a ideia de que, únicos seres capazes de pensar e de falar, podemos utilizar os animais, sem qualquer preocupação moral, porque nada há de errado nisso (desde que evitemos crueldades desnecessárias).

Mas será que os animais não são dignos de consideração moral? Dependem unicamente dos nossos “bons sentimentos”, da nossa amabilidade? No fundo, se pensarmos bem, discriminámos e, consequentemente, explorámos e oprimimos os animais simplesmente por não pertencerem à nossa espécie (a que é dotada de razão, que pensa e fala). Por que razão negámos, até há bem pouco tempo, estatuto e importância moral aos animais? Provavelmente porque, como disse Jeremy Bentham, filósofo utilitarista do século XIX, colocámos mal a questão: “A questão não está em saber se eles podem falar ou pensar, mas sim se podem sofrer».

Já pensou por que motivo há uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, isto é, porque nos empenhamos em proteger e ver reconhecidos direitos fundamentais como, por exemplo, a integridade física. Por que prezamos tanto essa declaração? Porque, na medida do possível, visa proteger-nos de arbitrariedades, de injustiças, em suma, de sofrimento que outros seres humanos nos podem infligir. E se o nosso eventual sofrimento é digno de consideração moral, porque negar essa consideração aos animais, uma vez que também são capazes de sofrer?

A reacção contra a opressão e exploração dos animais pela espécie humana começou a desenvolver-se nos países anglo-saxónicos, na sequência da publicação em 1975 da obra

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Libertação Animal do filósofo australiano Peter Singer. Nessa obra, inspiradora dos movimentos de libertação animal, Singer apresenta uma teoria completa da igualdade animal e exige a sua aplicação. Segundo Singer, a hierarquia das espécies não se baseia em qualquer critério objectivo – apenas na vontade humana de submeter os animais aos seus interesses – e, por isso, não é verdadeira.

As duas vozes mais importantes que têm combatido vigorosamente este preconceito são as de Peter Singer e Tom Regan.

1. Peter Singer: A importância moral do sofrimento.

Peter Albert David Singer (Melbourne, 1946) é um filósofo e professor australiano. É professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Atua na área de ética prática, tratando questões de Ética de uma perspectiva utilitarista.

Singer não se limita a dizer que devemos ser benevolentes com os animais, a manifestar simpatia para com o seu sofrimento. Afirma que temos obrigações morais a seu respeito.

Na obra Libertação Animal, Singer defende que o domínio dos seres humanos sobre os animais é moralmente injustificável. A libertação animal implica dois procedimentos: 1) a ampliação do conceito de comunidade moral e 2) a revisão e alargamento do conceito de igualdade. O princípio que torna legítimo falar de igualdade de direitos dos seres humanos – o princípio da igual consideração dos interesses – deve ser aplicado a todos os seres com interesses. E por que devemos dar igual consideração aos interesses dos animais não humanos? Porque, tal como nós, são capazes de experimentar prazer e dor e essa capacidade é a condição necessária para ter interesses. A senciência – a capacidade de sofrer e de ter prazer – é o critério que permite integrar humanos e animais numa mesma comunidade moral, não atribuindo maior peso aos nossos interesses. Um ser é objecto de consideração moral se tiver interesses e tem interesses porque pode sofrer. Assim, temos de levar em linha de conta em termos igualitários sofrimentos semelhantes, quer seja de humanos quer de animais: as nossas dores não contam mais do que as dos outros animais, por maiores que sejam as nossas capacidades intelectuais e morais. Julgar que a nossa vida e os nossos interesses têm mais valor porque pertencemos à espécie humana é moralmente errado e traduz um preconceito: o especismo. (NOTA – Senciência - a capacidade de sofrer e de ter prazer) Os animais têm, tal

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como os seres humanos, o direito de não sofrer. Trata--se, portanto, na prática, de não fazer aos animais o que recusamos, por princípio, fazer aos seres humanos. Os animais dotados de sistema nervoso e de cérebro são, tal como o homem, capazes de experimentar sofrimento. Ora, o sofrimento é igualmente desagradável quer se seja humano ou animal. Assim sendo, Singer defende a igualdade de direito entre humanos e animais. Note-se bem que se trata de estabelecer a igualdade do direito a não sofrer entre animais humanos e não humanos. Por outras palavras, trata-se de uma igualdade de consideração e não de dar aos animais direitos que são exclusivamente humanos.

Singer denuncia o preconceito subjacente à indiferença moral de que os animais têm sido vítimas. Esse preconceito é o especismo. Discriminámos os animais por julgarmos que, não sendo humanos, são por isso mesmo inferiores. (Nota – Especismo – Atitude que consiste em, partindo do princípio de que somos animais superiores, julgarmos que os outros animais nada mais são do que objectos ou coisas que estão ao serviço dos nossos interesses, sofram o que sofrerem com isso.)

O conceito de especismo foi inventado, por analogia com os conceitos de racismo e de sexismo, para qualificar e denunciar o desprezo humano em relação às outras espécies animais. O especismo consiste em, partindo do princípio de que somos animais superiores, julgarmos que os outros animais são objectos ou coisas que estão ao serviço dos nossos interesses, sofram o que sofrerem com isso.

Deve notar-se que Singer não propõe um igualitarismo radical. A sua perspectiva é utilitarista. Lembra-te que, para um utilitarista, uma acção é moralmente errada se produzir mais sofrimento do que a acção alternativa. No que respeita ao sofrimento deve haver igualdade de tratamento entre humanos e animais. O sofrimento de um animal não é inferior ao de um ser humano só porque não é humano.

Partindo desta premissa e embora seja vegetariano, Singer não considera que dela se conclui necessariamente que devemos tornar – nos vegetarianos e pôr fim ás experiências médicas com animais.

Não é admissível de um ponto de vista utilitarista por fim às experiências médicas com animais se isso tiver como consequência um aumento do sofrimento humano.

Por outro lado, a tese utilitarista de Singer centra-se mais no problema do sofrimento do que no da morte dos animais. Assim, se matarmos sem dor um animal e abrirmos espaço para que outro passe a viver não reduziremos a quantidade global de bem – estar no mundo. Interessa sobretudo assegurar uma vida decente aos animais enquanto estão vivos e não os fazer sofrer na hora da morte.

2. Tom Regan: Além de interesses, os animais têm direitos.

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Nascido em 28 de Novembro de 1938 em Pittsburgh, Pensilvânia, Estados Unidos) é Professor Emérito de Filosofia da Universidade da Carolina do Norte. Ativista dos direitos dos animais, publicou, entre outros The Case for Animal Rights e Animal Rights and Human Obligations (organizado juntamente com Peter Singer). Jaula Vazias é seu primeiro livro publicado no Brasil. (Wikipedia)

Tom Regan tem consciência de que só uma teoria ética fundada em direitos pode correctamente dar conta da ideia de que os animais devem ser objecto de consideração moral, de que não podemos tratá-los conforme nos apetece.

Na teoria ética de Singer, o termo “direito” não desempenhava um papel fundamental: atribuir a um ser uma consideração moral igual não implica atribuir-lhe direitos. Não há ligação lógica necessária entre interesses e direitos. Como proteger os interesses sem reconhecer os direitos?

Segundo Regan, temos o dever moral fundamental de tratar com respeito todos os sujeitos-de-uma-vida (os titulares de um vida são seres dotados de percepção, capacidade de sofrer, de emocionar-se, de recordar, etc.). Se temos esse dever em relação aos animais sujeitos-de--uma-vida, então, correlativamente, eles têm direitos. E como tratar alguém com respeito consiste em não o tratar como meio para um fim, então reconhecemos no que respeitamos algo que tem um valor inerente, não instrumental. O valor inerente é o valor próprio de um indivíduo independentemente da sua utilidade ou da sua bondade, da sua cor, da sua nacionalidade e da sua espécie. Em suma, independentemente do valor que lhes possamos atribuir, de gostarmos de uns e não de outros, os animais não humanos têm direitos. E, tendo-os, devem ser respeitados. Que animais têm direito a ser respeitados em virtude de possuírem um valor inerente? Somente os seres conscientes de si, capazes de experimentar prazer e dor, de ter crenças e desejos, de realizar acções intencionais, de ter um sentido do futuro. Por outras palavras, segundo Regan, quase todos os mamíferos mentalmente normais de um ano ou mais. Contra uma “ética especista”, Regan defende a necessidade de uma ética interespecífica que reconheça a pertença de grande parte das espécies animais a uma mesma comunidade moral. Mas poderá objectar-se: os seres humanos são agentes, isto é, seres capazes de aplicar princípios morais, de entenderem que a posse de direitos implica muitas vezes restrições consagradas no termo dever. Mas nem só os agentes morais têm direitos morais. Há indivíduos, como as crianças de pouca idade e os deficientes mentais, a quem são reconhecidos direitos morais e que não cumprem os requisitos para serem agentes morais. A indivíduos nessas condições dá Regan o nome de pacientes morais e nesse grupo inclui

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também grande parte dos animais não humanos. Assim, a comunidade moral é constituída por agentes morais e pacientes morais. (Nota – Sujeitos de uma vida - seres dotados de percepção, capacidade de sofrer, de emocionar-se, de recordar, etc. Possuem por isso direitos.)

O reconhecimento dos direitos dos animais enquanto pacientes morais que devem ser tratados justamente implica, para Regan, o fim da criação de animais para consumo alimentar, da experimentação com animais, da caça e do uso de animais em diversas formas de entretenimento (circo, tourada ou rodeios).

Actividade 12

1 - Pense nos seguintes argumentos e tente verificar se têm algum ponto fraco:

a) “Podemos argumentar que, não sendo seres humanos, os animais não têm direitos. Só é apropriado falar de direitos de seres dotados de autoconsciência, que pertencem a uma comunidade moral, que podem exprimir os seus desejos e ser responsabilizados pelas suas acções.

Os direitos implicam responsabilidades. Por exemplo, os seres humanos têm o direito de não serem mortos. Mas para desfrutar dos benefícios que esse direito confere temos de aceitar a responsabilidade de não matar os outros. O direito à vida é, em certa medida, inseparável do dever de não matar. Os animais são incapazes de cumprir tal dever. Não tem qualquer sentido acusar um leão por matar a sua presa. Também não faz sentido criticar e punir um ser humano por infligir sofrimento a um animal”.

b) «Só os seres humanos têm direitos. O conceito de direito é essencialmente humano, é uma criação da nossa espécie e por isso só é aplicável às relações entre seres humanos».

c) “Nenhum animal está em condições de compreender ou de assimilar um sistema ético - jurídico (um sistema de direitos e deveres). Com efeito, os animais são incapazes de respeitar os direitos dos outros animais”.

d) “Devemos atribuir direitos aos chimpanzés porque aproximadamente 98% do nosso código genético, do nosso ADN, é idêntico ao dos chimpanzés. Eles são quase humanos.»

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e) “Quem adere ao vegetarianismo fá-lo porque é defensor dos direitos dos animais”.

2 – Leia atentamente o seguinte texto:

Os animais não têm consciência de si e existem apenas como meio para um fim. Esse fim é o homem. Podemos perguntar «Por que razão existem os animais?». Mas perguntar «Por que razão existe o homem?» é fazer uma pergunta sem sentido. Os nossos deveres em relação aos animais são apenas deveres indirectos em relação à humanidade […].

Se um homem abater o seu cão por este já não ser capaz de o servir, ele não infringe o seu dever em relação ao cão, pois o cão não pode julgar, mas o seu acto é desumano e fere em si essa humanidade que ele deve ter em relação aos seres humanos. Para não asfixiar os seus sentimentos humanos, tem de praticar a generosidade para com os animais, pois aquele que é cruel para os animais depressa se torna duro também na maneira como lida com os homens.

Immanuel Kant, Lições de Ética, pp. 239-240

1.Qual a tese do autor?

2.Em que se baseia Kant para negar que tenhamos obrigações directas a respeito dos animais?

3 – Leia atentamente o texto:

Julgo que racionalmente a perspectiva dos direitos é a teoria moral mais satisfatória. As tentativas de limitar o seu âmbito aos seres humanos só podem revelar-se racionalmente insatisfatórias. É verdade que os animais não têm muitas das capacidades que os seres humanos possuem. Não sabem ler, fazer matemática avançada, construir uma estante ou fazer baba ghanoush. Mas muitos seres humanos também não, e ainda assim não dizemos (nem devemos dizer) que eles (esses humanos) têm por isso menos valor intrínseco, menos direito a ser tratados com respeito que os outros. São as semelhanças entre os seres humanos (entre as pessoas que estão a ler isto, por exemplo), não as nossas diferenças, que têm esse valor mais clara e incontroversamente, que interessam mais. E a semelhança básica verdadeiramente crucial é apenas esta: cada um de nós é um sujeito de uma vida com experiências, uma criatura consciente com um bem-estar individual que tem importância para si mesmo, seja qual for a sua utilidade para os outros. Queremos e preferimos coisas, sentimos e acreditamos em coisas, recordamos e esperamos coisas. E todas estas dimensões da nossa vida – incluindo o nosso prazer e dor, o nosso deleite e sofrimento, a nossa satisfação e frustração, a nossa existência prolongada ou morte precoce – afectam a qualidade da nossa vida tal como a vivemos e experimentamos como indivíduos. E o mesmo se pode dizer daqueles animais que nos interessam (aqueles que são comidos e caem em armadilhas, por exemplo) – também eles têm de ser vistos como sujeitos de uma vida com experiências, como sujeitos com valor intrínseco.

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Há quem resista à ideia de que os animais têm valor intrínseco. «Só os seres humanos têm esse tipo de valor», professam. Como se poderá defender esta perspectiva restritiva? Poderemos dizer que só os seres humanos têm a razão, a inteligência ou a autonomia necessária? Mas há muitos, muitos seres humanos que não satisfazem estes padrões, e ainda assim entende-se razoavelmente que têm valor independentemente da sua utilidade para os outros. Poderemos defender que só os seres humanos pertencem à espécie apropriada, à espécie Homo sapiens? Isso é especismo crasso.

[…] Bem, talvez alguém diga que os animais têm algum valor intrínseco, só que menos do que nós. Uma vez mais, no entanto, pode mostrar-se que as tentativas de defender esta perspectiva carecem de justificação racional. Qual poderá ser o fundamento de termos mais valor intrínseco que os animais? A sua falta de razão, autonomia ou inteligência? Só se estivermos dispostos a fazer o mesmo juízo sobre os seres humanos que são similarmente deficientes. Mas não é verdade que tais seres humanos – as crianças com atrasos, por exemplo, ou os doentes mentais – têm menos valor intrínseco do que tu ou eu. Assim, também não podemos defender racionalmente a perspectiva de que os animais, que tal como eles são sujeitos de uma vida com experiências, têm menos valor intrínseco. Todos os que têm valor intrínseco têm-no de igual maneira, independentemente de serem ou não animais humanos.

[…] Tendo já apresentado a perspectiva dos direitos em traços largos, posso agora dizer por que razão as suas implicações para a pecuária e a ciência, entre outros campos, são claras e intransigentes. No caso do uso de animais na ciência, a perspectiva dos direitos é categoricamente abolicionista. Os animais de laboratório não são os nossos provadores, nós não somos os seus reis. Como os animais são tratados rotineira e sistematicamente como se o seu valor pudesse ser reduzido à sua utilidade para os outros, eles são tratados rotineira e sistematicamente com falta de respeito e assim os seus direitos são rotineira e sistematicamente violados. Isto sucede tanto quando são usados em investigações triviais, repetitivas, desnecessárias ou insensatas como em estudos que prometem realmente trazer benefícios para os seres humanos.

[…] Quanto à pecuária, a perspectiva dos direitos adopta uma posição abolicionista semelhante. Aqui o mal fundamental não é os animais estarem isolados ou presos em condições angustiantes, nem o facto de a sua dor e sofrimento, as suas necessidades e preferências, serem ignorados ou menosprezados. Todas estas coisas são más, obviamente, mas não são o mal fundamental. São sintomas e efeitos de um mal mais profundo e sistemático que permite que esses animais sejam vistos e tratados como se não tivessem valor independente, como se fossem um dos nossos recursos — na verdade, um recurso renovável. Dar a estes animais mais espaço, ambientes mais naturais ou mais companheiros não corrige o mal fundamental — tal como dar aos animais de laboratório mais anestesias ou jaulas maiores e mais limpas não corrigiria o mal fundamental no seu caso.

Só a dissolução total da pecuária industrial acabará com esse mal. E, por razões semelhantes que não vou desenvolver aqui, a ética exige nada menos que a eliminação total da caça para fins comerciais e desportivos. Assim, tal como disse, as implicações da perspectiva dos direitos são claras e intransigentes.

Tom Regan, «O Argumento a Favor dos Direitos dos Animais», 1984, pp. 111-114

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(Adaptado)

a)O que são para Regan os direitos dos animais?

b)Na perspectiva dos direitos (e não dos interesses), há animais mais iguais do que outros?

c)Tente reconstruir o raciocínio que conduz Regan a afirmar que os humanos e os animais têm igual estatuto moral.

d)Que conclusão deriva necessariamente do princípio da igualdade moral de tudo o que tem valor intrínseco?

e)Está de acordo com a doutrina de Regan. Porquê?

4 – Leia o texto seguinte com atenção e responda às questões:

“Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter esse sofrimento em consideração. […] Se um ser não é capaz de sofrer, ou de experimentar o prazer ou a felicidade, não há nada a ter em conta. É por isso que o limite da capacidade de sofrer ou experimentar prazer ou felicidade é o único limite defensável de preocupação pelos interesses dos outros. Demarcar este limite de acordo com uma característica como a inteligência ou a racionalidade seria demarcá-lo de um modo arbitrário […].

Para a grande maioria dos seres humanos, em particular nas sociedades urbanas industrializadas, a forma mais directa de contacto com membros de outras espécies é à hora das refeições: comemo-los. Ao fazer isso tratamo-los puramente como meios para os nossos fins.

Consideramos a sua vida e o seu bem-estar como estando subordinados ao nosso gosto por um determinado tipo de prato. Digo “gosto” deliberadamente — é puramente uma questão de agradar ao nosso paladar. Comer carne não se pode defender em temos de satisfação de necessidades nutricionais, uma vez que foi estabelecido sem margem para dúvidas que poderíamos satisfazer a nossa necessidade de proteínas e de outros nutrientes essenciais muito mais eficientemente com uma dieta que substituísse a carne animal por soja, ou produtos derivados da soja, e por outros produtos vegetais de alto valor proteico. […]

Não é apenas o acto de matar que indica o que estamos prontos a fazer a outras espécies de modo a satisfazer os nossos gostos. O sofrimento que infligimos aos animais enquanto estão vivos é talvez uma indicação ainda mais clara do nosso “especismo” (speciesism) do que o facto de estarmos preparados para os matar.

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De modo a ter carne à mesa a um preço que as pessoas possam pagar, a nossa sociedade tolera métodos de produção de carne que confinam animais em condições impróprias, durante a sua vida.

Os animais são tratados como máquinas que convertem forragem em carne e qualquer inovação que resulte numa “razão de conversão” mais elevada está sujeita a ser adoptada. Tal como uma autoridade no assunto disse: “A crueldade é percebida apenas quando o lucro cessa.” […]

Uma vez que, como disse, estas práticas não têm outra finalidade senão a satisfação dos nossos gostos, a nossa prática de criar e matar outros animais para os comer é um exemplo claro do sacrifício dos interesses mais importantes de outros seres para satisfazer interesses triviais nossos. Para evitar o “especismo” temos de acabar com esta prática e cada um de nós tem uma obrigação moral de parar de apoiar esta prática. O nosso hábito é todo o apoio de que a indústria de carnes precisa.

A decisão de deixar de lhe dar esse apoio pode ser difícil, mas não é mais difícil do que teria sido para um branco do Sul ir contra as tradições da sua sociedade e libertar os seus escravos: se não modificarmos os nossos hábitos dietéticos, como poderemos censurar aqueles donos de escravos que não queriam modificar o seu modo de vida? […]»

Peter Singer, All animals are equal, in Applied Ethics, pp. 215-225

(Adaptado)

– Qual o tema do texto?

– Que tese defende o autor?

– Que argumentos utiliza?

– Avalie criticamente as ideias expostas.

Bibliografia

1 - Regan, Tom, The case for animal rights, in Regan e Singer, Animal rights and human obligations, Prentice Hall, Nova Jérsia,1989.

2 – Singer, Peter, Ética prática, Gradiva, Lisboa, 2000

3 – Singer, Peter, Libertação animal, Via Óptima, Porto, 2000

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Problema 13

A pobreza no mundo é inevitável?

A situação nos países mais pobres do mundo está piorando mais do que se imaginava.

De acordo com um documento da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento – Unctad -, o número de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia nos 49 países mais pobres do mundo -principalmente em África - mais do que duplicou nos últimos 30 anos, chegando a 307 milhões, o que equivale a 65% da população. As estimativas são de que este número pode chegar a 420 milhões em 2015.

O relatório tem 285 páginas e é considerado o estudo mais completo sobre pobreza já realizado nos 49 países mais pobres do mundo.

Apesar do crescimento económico apontado pelos grandes dados macroeconómicos na Ásia, dois terços da população viveram com menos de 2 dólares por dia na segunda metade da década de 90, com uma média de consumo diário de 1,42 dólares.

Nos países mais pobres de África -que inclui 34 dos 49 países mais pobres do mundo - quase nove entre cada 10 pessoas vivem com menos de 2 dólares por dia, em comparação com o consumo per capita de 41 dólares por dia nos Estados Unidos e de 61 euros na Suiça.

O Congo é o país que regista os piores índices, com 90,5% da população vivendo com menos de um dólar por dia. Na Ásia, o país em pior situação é Mianmar, a antiga Birmânia, onde esta taxa equivale a 52,3%.

Apesar da pobreza mais severa se encontrar nos países subdesenvolvidos esta existe em todas as regiões. Nos países desenvolvidos manifesta-se na existência de sem-abrigo e de subúrbios pobres. O Banco Mundial define a pobreza extrema como viver com menos de 1 dólar por dia e pobreza moderada como viver com entre 1 e 2 dólares por dia.

Todos os anos cerca de 18 milhões de pessoas (50 mil por dia) morrem por razões relacionadas com a pobreza, sendo a maioria mulheres e crianças.

Todos os anos cerca de 11 milhões de crianças morrem antes de completarem 5 anos.

1100 milhões de pessoas, cerca de um sexto da humanidade, vive com menos de 1 dólar por dia.

Mais de 800 milhões de pessoas estão subnutridas.

A pobreza global é um problema enorme e dramático. Nos países ditos desenvolvidos quase não existe. Nos países pobres, a que com consciência pesada se chama países em vias de desenvolvimento, morre um ser humano em cada 30 segundos. Entre hoje e amanhã 40.000 crianças morrerão de fome.

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Uns pensam em férias no estrangeiro, em televisões de ecrã panorâmico, em comprar um carro novo e dar boa educação aos filhos ao passo que muitos, muitos mais, não conseguem satisfazer as suas necessidades mais básicas. Um quarto da população mundial luta pela sobrevivência. Em muitos países vivem lado a lado o luxo e a pobreza extrema. Robert MacNamara afirmou quando era presidente do Banco Mundial que os indivíduos dos países ricos (países da comunidade europeia, da América do Norte, Austrália, Japão, Singapura, etc.) podiam sem ameaçar o seu bem – estar transferir parte dos seus rendimentos para a ajuda aos que vivem permanentemente ameaçados pela fome.

Ao vermos o estado a que chegou a vida de muitos seres humanos no mundo, podemos perguntar: Não é esta situação moralmente errada? Não é imoral que uns morram de fome e outros de doenças relacionadas com a obesidade?

Se reconhecermos que há algo de moralmente errado nesta situação tão desequilibrada podemos também perguntar se não é nosso dever moral ajudar quem vive na pobreza extrema. Tenho a obrigação de ajudar a combater a fome e a pobreza no mundo mesmo que isso signifique dar à UNICEF ou à OXFAM (Nota - O Fundo das Nações Unidas para a Infância (em inglês United Nations Children's Fund - UNICEF) é uma agência das Nações Unidas. Tem como objetivo promover a defesa dos direitos das crianças, ajudar a dar resposta às suas necessidades básicas e contribuir para o seu pleno desenvolvimento. Fundou-se em Dezembro de 1946, e foi criada para ajudar as crianças que viviam na europa e que sofreram com a 2.ª Guerra Mundial. Sua sede é em Nova Iorque, nos Estados Unidos. A Oxfam é uma fundação de caridade internacional com sede em Oxford, Reino Unido, que luta contra a fome a exclusão social. Foi fundada em 1942 na Inglaterra sob o nome Oxford Committee for Famine Relief pelo cônego Theodore Richard Milford (1896-1987), com a missão de enviar alimentos através das linhas aliadas para as cidades ocupadas pelos nazistas na Grécia.)

O dinheiro que gastaria ou num carro novo, ou numas férias no México ou numa nova casa?

Peter Singer, de quem já falámos neste livro afirma que sim. Pensa que os países ricos não têm cumprido o dever moral de ajudar os países mais pobres.

Argumentando em defesa da sua tese, Singer começa por referir a seguinte situação hipotética:

Na minha universidade, o percurso que vai da biblioteca ao anfiteatro das Humanidades passa por um lago ornamental pouco profundo. Suponhamos que, ao ir dar uma aula, me apercebo de que uma criança caiu e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama e cancelar a aula ou atrasá – la até encontrar um meio de mudar de roupa; no entanto, em comparação coma morte evitável da criança isso é insignificante.

Peter Singer, Ética Prática, 1993, Gradiva, Lisboa, p. 250

Imagina que alguém passa pelo lago e vendo a criança aflita decide contudo seguir o seu caminho porque não quer molhar o fato ou perder a aula. A criança morre por falta de ajuda. É evidente que essa pessoa não matou a criança mas deixou – a morrer. É costume pensar – se que há uma diferença moralmente relevante entre matar alguém e deixar alguém morrer. No primeiro caso trata-se de um acto, no segundo de uma omissão. Singer não considera moralmente relevante ou importante a diferença entre matar e deixar morrer. Vendo bem as

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coisas, quer matemos a criança ou a deixemos morrer, o resultado é o mesmo: a criança morre. Sendo utilitarista, Singer julga actos e omissões pelas suas consequências: no exemplo dado, consideraria de certo modo homicida a pessoa que se recusasse a socorrer a criança.

Singer apoia – se no exemplo dado para defender que temos a obrigação moral de ajudar quem vive na pobreza extrema. Não ajudar quem sofre deste mal é semelhante a não ajudar a criança em risco de se afogar. Pode discordar e dizer: Mas eu não mato essas pessoas! Singer responderia que não há diferença moralmente significativa entre matar e deixar morrer. Por outras palavras, não há diferença relevante entre o comportamento de quem mata e de quem podendo ajudar a aliviar o sofrimento dos necessitados permanece indiferente ao facto de por dia morrerem milhares de pessoas famintas. Deixando morrer tanta gente e podendo ajudá – las se prescindirmos de alguns bens supérfluos estamos a ter um comportamento de certo modo homicida. O próprio Singer fala dando o exemplo: 25% do seu ordenado destina – se a ajudar os países pobres, a combater a fome no mundo. Defende que os habitantes dos países ricos deviam contribuir com 10% do seu ordenado para esse combate. Perderíamos qualidade de vida se em vez de gastarmos 10% do nosso ordenado em aprender a velejar, em produtos de beleza, em diversões de várias espécies, déssemos esse dinheiro a organizações de combate à pobreza? Singer pensa que não. Se o fizermos não perdemos ou sacrificamos nada de moralmente significativo. Porquê? Porque a morte de uma criança à fome gera muito mais infelicidade e mal – estar no mundo do que não praticar certos desportos ou comprar alguns cosméticos. Mas até que ponto devemos ajudar? Devemos ajudar até ao ponto em que não nos prejudiquemos mais do que beneficiamos os outros. Uma família nos EUA precisa de 30.000 dólares para ter um nível de vida confortável. Se tiver um rendimento anual de 100.000 dólares poderá e deverá dar 70.000 para ajudar no combate à pobreza extrema.

Podemos resumir o argumento de Singer do seguinte modo:

1 - Se pudermos impedir que alguma pobreza extrema aconteça sem sacrificarmos algo de importância moral comparável, devemos fazê – lo.

2 - Há alguma pobreza extrema que podemos impedir que aconteça sem sacrificar algo de importância moral comparável.

3 – Logo, temos a obrigação moral de impedir alguma pobreza extrema (devemos ajudar os que são ameaçados pela fome).

Tudo se pode resumir nesta comparação:

Se consideramos quase criminoso não salvar uma criança de se afogar só porque não queremos molhar ou estragar a roupa não é também profundamente imoral não ajudar os pobres só porque queremos ficar com dinheiro para gastar em bens que não são necessários?

Algumas objecções à teoria de Singer

A tese de Singer (temos a obrigação moral de ajudar quem sofre com a pobreza extrema) foi alvo de várias críticas. Lendo o texto seguinte encontrará algumas.

Texto

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Será que temos a obrigação moral de ajudar aqueles que se encontram em situação de pobreza absoluta?

Há quem defenda que sim, que temos a obrigação de ajudar aqueles que se encontram numa pobreza absoluta. A pobreza absoluta foi definida como “ausência de rendimento suficiente em dinheiro ou em espécie para satisfazer as necessidades biológicas mais básicas de alimentação, vestuário e habitação”. Peter Singer é um dos filósofos que defende que devemos ajudar os pobres. Afirma que se podermos impedir que um mal aconteça sem sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo, visto que a pobreza absoluta é um mal e que há alguma pobreza absoluta que podemos impedir que aconteça, sem sacrificar nada de importância moral comparável.

Singer defende também que a diferença entre actos e omissões não é moralmente relevante, ou seja, defende que quem não faz nada ou quase nada para salvar a vida dos pobres, encontra-se ao mesmo nível daquele que mata directamente. Mas há quem defenda que há uma diferença moralmente relevante entre actos e omissões. Quem defende isto são os deontologistas, ou seja, aqueles que rejeitam o utilitarismo. Os deontologistas defendem que há diferença entre não ajudar os pobres e enviar uma tarte envenenada a alguém, mesmo tendo o mesmo resultado. Porque quem envia uma tarte envenenada pretende matar alguém, ou seja, age de maneira intencional e quebra um direito, o direito à vida, e quem nada faz para diminuir a pobreza absoluta não quebra nenhum direito. Os deontologistas afirmam também que não somos responsáveis pela morte de pessoas devido à pobreza absoluta, porque não podemos ser responsáveis por algo que não causámos. Defendem ainda que é muito injusto que sejamos condenados por querer usufruir do rendimento que recebemos justamente pelo nosso árduo trabalho.

Estou de acordo com os deontologistas em todos os aspectos atrás mencionados e, mais, pretendo mostrar que os utilitaristas estão enganados quando defendem que devemos abdicar do nosso bem-estar pessoal para ajudar os mais pobres.

Analisemos então o argumento de Singer. Sabemos que a teoria de Singer tem uma base utilitarista, ou seja, defende que devemos maximizar o bem-estar geral. Então que

significará "sacrificar nada de importância moral comparável?" Singer, como bom utilitarista que é, defende que devemos abdicar de coisas desnecessárias à nossa sobrevivência básica (alimentação, vestuário e habitação), ou seja, devemos abdicar dos bens supérfluos para ajudarmos os pobres.

Ao maximizarmos imparcialmente o bem-estar, teremos que fazer sacrifícios pessoais muito consideráveis, pois isto implica que devemos abdicar de grande parte dos nossos projectos e compromissos que fazem a vida ter valor para nós próprios. E isto tudo nos levará a todos, ricos e pobres, a uma situação muito semelhante à pobreza absoluta.

Há muitas objecções factuais, mas falarei apenas da de Pedro Madeira.

Pedro Madeira critica Singer, afirmando que ao eliminarmos o consumo de bens supérfluos, com certeza que as empresas, fábricas, etc... que produzem bens supérfluos (por exemplo, uma fabrica de perfumes) deixarão de existir, criando-se assim um grande desemprego, em outras palavras, uma crise económica mundial. No entanto, um outro filósofo português, Murcho, responde dizendo um tal perigo não existe porque se realmente as pessoas prescindissem de bens supérfluos para poderem ajudar os pobres, as empresas saberiam

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adaptar-se à situação e criar-se-iam novos empregos. Se todos procurássemos ajudar os pobres, teria de haver muitas empresas encarregues de recolher fundos, de comprar, transportar e distribuir alimentos e outros bens de primeira necessidade; essas empresas precisariam de contabilistas, de empregados de escritórios, de condutores, etc.

Eu só irei reforçar o argumento de Pedro Madeira. Abdicar de bens supérfluos não só irá prejudicar a economia mundial, mas também irá reduzir a qualidade de vida da população mundial, porque a evolução humana estagnaria. O que quero dizer é que o que se considera supérfluo é muito relativo. O que em tempos passados era algo completamente supérfluo é hoje algo indispensável e provavelmente o que hoje é supérfluo poderá ser, num futuro próximo, algo que poderá aumentar a esperança de vida de muita gente, por exemplo. Então, pesando vantagens e desvantagens, não me parece que valha a pena renunciar a bens supérfluos para ajudar os pobres, se com isso prejudicamos a evolução humana em termos globais, em nada contribuindo para a maximização do bem-estar geral.

Atividade 13

Dê atenção às seguintes objecções à teoria de Singer e diga o que pensa:

1 – Há uma grande diferença entre ver uma criança afogar – se nada fazendo e deixar morrer pessoas de fome na Somália. Posso ver a criança que está afogar-se perto de mim. Não vejo quem está a morrer de fome na Somália.

2 – Devemos ajudar as pessoas de acordo com a importância que têm para nós. Primeiro a família (mulher e filhos), depois outros familiares, amigos e finalmente os outros.

3 – Os países ricos são como barcos salva – vidas flutuando num oceano repleto de náufragos. Os náufragos são muitos dos habitantes dos países pobres. Imaginemos que o barco tem espaço para 60 pessoas e que já lá estão 50.Há 200 pessoas aflitas na água. Se cedemos aos nossos impulsos humanitários e admitimos muito mais do que dez pessoas, o barco vai afundar – se.

4 – O combate à fome no mundo é responsabilidade dos governos dos países que podem ajudar. Não é dever dos indivíduos desses países. Já pagam impostos que os governos podem utilizar.

5 – Há pobres nos países ricos. Ajudemos primeiro esses.

6 – Se com o meu subsídio de férias compro uma viagem a Itália que mal há nisso? Não tenho direito ao que é meu? Não há direito à propriedade privada? Podem fazer apelo aos meus bons sentimentos mas não me digam que tenho a obrigação moral de ajudar quem sofre de pobreza extrema. Antes expliquem – me bem por que razão esses países são pobres. Será porque os países ricos têm ajudado pouco?

Bibliografia

1 - SINGER, P., A companion to ethics, Londres, Blackwell

2 - SINGER, P., Ética Prática, Lisboa, Gradiva

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Problema 14

O aborto é moralmente legítimo?

Uma adolescente irlandesa de 17 anos ganhou uma disputa na Alta Corte de Dublin para poder realizar um aborto na Grã-Bretanha.

A jovem, que está com quatro meses de gravidez, recebeu dos médicos a notícia de que, caso nascesse, seu bebê viveria poucos dias.

O feto da jovem tem anencefalia, ou seja, não possui parte do cérebro e do crânio. Bebês com esse tipo de problema morrem, em geral, três dias após o nascimento.

A adolescente estava sob a tutela do serviço de saúde da Irlanda, que emitiu uma ordem impedindo-a de viajar para a Grã-Bretanha.

O aborto é ilegal na Irlanda, exceto quando há ameaça à saúde da mãe ou risco de ela tentar cometer suicídio.

Por ano, cerca de sete mil irlandesas driblam a proibição viajando à Grã-Bretanha, onde o aborto é legalizado desde 1967.

A Constituição irlandesa proíbe o aborto, mas em 1992 o país reformou a legislação para permitir que mulheres viajem à Grã-Bretanha para receber informações ou realizar abortos.

A Alta Corte decidiu agora que não há base legal ou constitucional para impedir a jovem de viajar para a Grã-Bretanha.

A juíza Liam McKechnie ouviu os argumentos apresentados pelos três lados da disputa na última semana.

A garota e sua mãe – que não tem a guarda da filha – aprovam o aborto. Os guardiães legais da jovem, do serviço de saúde da Irlanda, eram contra a operação, mas mudaram de opinião recentemente. Advogados indicados pela promotoria pública argumentaram em favor da vida do feto, e contra o aborto.

BBC BRASIL.COM, 09 de Maio, 2007.

Quando perguntamos se é moralmente errado abortar estamos a falar de interrupção voluntária da gravidez. Há o aborto que acontece (aborto espontâneo) e o aborto que se faz ou que se quer que aconteça (aborto voluntariamente provocado). (Nota - Distinguem – se duas espécies de aborto provocado: o aborto terapêutico e o aborto não terapêutico. No primeiro caso a morte do feto é um meio para salvar ou proteger a vida da mãe. No segundo caso, procura – se intencional e directamente a morte do feto, não por razões médicas mas por outras razões que podem ser falta de recursos para sustentar e criar uma criança, ter sido vítima de violação, etc.) Não vamos discutir, apesar do caso que apresentámos, se o Estado deve permitir ou proibir o aborto. Por outras palavras, o problema que vamos debater não é o da legalidade do aborto, ou seja, se deve haver leis que o permitam ou o proíbam. Sabemos que em muitos países o aborto – a interrupção voluntária da gravidez – é legalmente

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permitido e que mesmo nos países que como a Irlanda e a Polónia o proíbem ele é permitido em circunstâncias especiais – quando a gravidez resulta de violação ou põe em risco a vida da mãe.

O debate sobre a moralidade do aborto é muito complexo. Nesta introdução ao tema estudaremos os argumentos mais importantes a favor ou contra. Antes é conveniente dizer que sobre a moralidade do aborto há duas posições gerais: a posição pró – vida e a posição pró – escolha. Os defensores da posição pró – vida afirmam que o aborto é um acto moralmente errado porque a vida de um feto tem um valor comparável à vida de um ser humano adulto. Nesta perspectiva, fazer um aborto é cometer um crime. Os defensores da posição pró – escolha negam que a vida de um feto seja equivalente à vida de um ser humano adulto e mesmo que não retirem todo o valor à vida do feto afirmam que o direito da mãe a abortar é mais forte. (NOTA– Os defensores da posição pró – vida são conhecidos por conservadores e os defensores da posição pró – escolha são conhecidos por liberais. A caracterização que fizemos de ambas as posições ou teses foi geral porque em cada um desses grupos há atitudes mais flexíveis e outras mais intransigentes. No grupo pró – escolha há quem não reconheça qualquer valor ao feto até um certo estádio do seu desenvolvimento. No outro grupo, há quem não admita aborto em circunstância alguma.)

1. O argumento da humanidade do feto: o feto é um ser humano inocente.

O argumento mais frequente a favor da posição pró – vida é o seguinte:

Matar um ser humano inocente é moralmente errado.

Um feto humano é um ser humano inocente.

Logo, matar um feto humano é moralmente errado.

O argumento é válido (a conclusão é justificada pelas premissas) mas temos de ver se é bom e para isso não é suficiente que seja logicamente correcto. As premissas têm de ser verdadeiras. Mas será que são verdadeiras?

A primeira premissa parece indiscutível. A esmagadora maioria das pessoas considera errado matar seres humanos inocentes. É uma premissa que podemos considerar plausível, ou seja, que pouca ou nenhuma controvérsia causa.

Da segunda premissa já não podemos dizer o mesmo. O termo «ser humano» é ambíguo, isto é, pode ser entendido em sentidos diferentes. Em que sentido está a ser utilizado o termo «ser humano»? Podemos pensar em dois sentidos: «ser humano» pode querer dizer pessoa ou «ser humano» pode querer dizer «membro da espécie humana».

Apresentemos o argumento interpretando ser humano como sinónimo de pessoa:

Matar uma pessoa inocente é moralmente errado.

Um feto humano é uma pessoa inocente.

Logo, matar um feto humano é moralmente errado.

Perguntemos se o feto é uma pessoa? Ser pessoa significa ser racional e possuir consciência de si. Por outras palavras, uma pessoa é um indivíduo capaz de pensar, de planejar acções, que tem memória do passado, noção do tempo presente, expectativas acerca do futuro e que se

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apercebe que mudando com o tempo continua a ser o mesmo. O João pode aumentar de peso, perder cabelo, envelhecer, ser pai, tornar – se diabético mas não deixa de ser e de ter consciência de que continua a ser o João.

Dada a definição de pessoa podemos afirmar que o feto é uma pessoa? Não. Ainda não atingiu o grau de desenvolvimento mental que lhe permita pensar racionalmente e ter consciência de si. Logo, o argumento não é bom.

Passemos ao outro possível sentido do termo «ser humano»: ser humano significa ser membro da espécie humana. Apresentemos o argumento:

Matar um membro inocente da espécie humana é moralmente errado.

Um feto humano é um membro inocente da espécie humana.

Logo, matar um feto humano é moralmente errado.

Esta versão do argumento da humanidade do feto foi criticada por Peter Singer. Ataca a primeira premissa dado que a segunda é verdadeira. A primeira premissa é inaceitável para Singer. Porquê? Porque nos diz que é errado matar um membro da espécie humana só porque ele pertence à espécie humana. Em termos biológicos, em virtude do seu código genético, um feto humano, um bebé, um jovem ou um adulto humanos pertencem à espécie humana. Mas será que essa pertença é moralmente relevante ou significativa? Não, diz Singer. A espécie, tal como a raça, é uma característica sem importância moral. Assim sendo, o facto de um ser vivo pertencer à espécie humana, não torna errado matá – lo. Ter dois braços, duas pernas, uma certa morfologia, caminhar erecto são características tão relevantes do ponto de vista moral como ter cabelo encaracolado. Não é suficiente ser membro da espécie humana para que seja errado matar um feto humano. Só seria errado matar o feto humano se este fosse uma pessoa, isto é, um ser dotado de consciência de si, de memórias, experiências, interesses, projectos. Ora, segundo Singer, os fetos humanos não são pessoas. Assim sendo, o argumento que apresentamos não é satisfatório.

2. O argumento do direito à vida: o feto humano tem direito à vida.

O argumento da humanidade do feto é habitualmente acompanhado por um outro conhecido pelo nome de argumento do direito à vida. Dado que o argumento anterior parece pouco satisfatório vejamos se este tem mais sucesso.

Comecemos por apresenta – lo:

(1) Se o feto tem direito à vida, então o aborto é errado.

(2) O feto tem direito à vida

(3) Logo, o aborto é errado.

O argumento é válido porque as premissas apoiam logicamente a conclusão. Mas será o argumento bom? Num famoso artigo de 1971, Judith Thomson afirma que não. E diz que não é bom porque a primeira premissa não é verdadeira. Por outras palavras, Thomson afirma que o aborto não é uma violação do direito moral do feto à vida. Para defender a sua tese Thomson argumenta recorrendo a uma experiência mental ou situação hipotética. Imaginemos, diz a filósofa americana, que um famoso violinista está inconsciente devido a uma doença renal

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gravíssima da qual morrerá. Para que não morra é necessário que no hospital seja ligado durante nove meses ao sistema circulatório de alguém que tenha um tipo de sangue compatível. Os admiradores do famoso violinista raptam alguém com esse tipo de sangue. Ao acordar após o rapto, descobre que está ligada ao sistema circulatório do violinista. Pode desligar – se mas se o fizer o violinista morrerá. É evidente, segundo Thomson, que essa pessoa não tem a obrigação moral de ficar ligada ao violinista nove meses para o manter vivo. O violinista é inocente? Certo. Tem direito à vida? Tem. Contudo, o direito do violinista à vida não implica o dever da pessoa a que está ligado em se manter ligada. Por outras palavras, o violinista não tem o direito de usar o corpo de outra pessoa para se manter vivo. O que pretende Thomson com este exemplo? Mostrar que a situação da mulher grávida é análoga ou semelhante à da pessoa ligada ao violinista. O feto é inocente e tem direito à vida mas isso não implica que tenha o direito de usar o corpo de outra pessoa para se manter vivo. Por isso, tal como a pessoa raptada pode de uma forma moralmente legítima desligar – se do violinista, também a mulher grávida pode desligar – se do feto (abortar) sem violar qualquer direito moral deste. Para Thomson, o aborto é, por conseguinte, um acto moralmente permissível.

Há quem pense que se pode defender a moralidade do aborto, negando a segunda premissa do argumento apresentado. Em outras palavras, há quem pense que o feto não tem direito moral à vida. Esta tese é defendida por Michael Tooley.

Segundo Tooley, só um indivíduo com consciência de si pode ter o direito à vida. Um indivíduo só é uma pessoa se tiver consciência de si. Em termos simples o argumento que Tooley pretende refutar é o seguinte:

P1. Um feto é uma pessoa

P2. Uma pessoa tem direito moral à vida.

C. Logo, o aborto (matar um feto) não é moralmente correcto (Excepto talvez para salvar a vida da mãe.)

Tooley vai negar que um feto seja uma pessoa e assim refuta o argumento.

Como já dissemos uma coisa tem de possuir consciência de si para ser uma pessoa. Ora ser uma pessoa implica que um indivíduo tem o conceito de sujeito de uma vida mental, ou seja, tem de se ver a si como um sujeito que vive experiências, tem interesses, projectos, recorda acontecimentos passados, planeja acções, tenta prever as suas consequências, etc. Supõe – se que a partir de uma certa fase do seu desenvolvimento, o feto se torna capaz de sentir dor, adquire alguma consciência mas isso não significa que tenha consciência de si, que se veja a si como sujeito de uma vida mental, saiba que é o indivíduo que vive certas experiências. Não tendo consciência de si, não é uma pessoa e por isso não tem direito moral à vida.

Podemos agora resumir o argumento de Tooley:

P1. Uma pessoa é um indivíduo que tem consciência de si.

P2. Só os indivíduos que têm consciência de si têm direito moral à vida.

P3. Os fetos humanos não são pessoas.

P4. Os fetos humanos não têm direito moral à vida.

C. Logo o aborto não é um acto moralmente errado.

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3. O argumento da potencialidade: o feto é um ser humano (uma pessoa) em potência.

Muitos adversários do aborto costumam dizer que os fetos humanos têm direito à vida porque são seres humanos em potência. O argumento é este:

O feto é um ser humano em potência.

Todos os seres humanos, sejam potenciais ou actuais, têm direito à vida.

Logo, o feto humano tem direito à vida (matá - lo é errado)

Não se discute que um ovo fertilizado é um ser humano em potência. Porquê? Porque se a gravidez decorrer normalmente nascerá um ser humano. O que se discute é isto: o facto de um feto humano ser um potencial ser humano dá – lhe algum direito? Será que seres potenciais tem os mesmos direitos que seres actuais ou efectivos? Ter potencialmente um direito – poder vir a ter esse direito – significa ter efectivamente esse direito?

Sabemos que as crianças são adultos em potência – podem vir a ser adultos – mas não lhes reconhecemos os mesmos direitos e obrigações dos adultos. Muitos dos direitos de uma pessoa em potência nada mais são do que direitos em potência – só se tornam direitos actuais ou efectivos quando essa pessoa se torna real ou efectiva. O herdeiro de um trono é um rei em potência mas não tem os direitos de um rei enquanto não for efectivamente um rei. Aos 10 anos eu era um potencial eleitor mas só aos 18 anos adquiri realmente o direito de votar.

Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente têm a seguinte estrutura: o feto é, em potência, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam apenas seres humanos em potência ou não, têm o direito à vida; logo, o feto tem o direito à vida. Este é um mau argumento porque foge à questão. Aquilo que está em disputa é a segunda premissa: não é, por isso, permissível incluí-la num argumento. E é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas. Poderá ser objectado que estou simplesmente a fugir à questão: a analogia não funciona — o feto tem o direito à vida desde a concepção, mas eu só adquirirei o estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas caso venha a ser eleito Presidente da República. O problema com esta objecção é que foge, ela própria, à questão! Se estivéssemos desde logo a partir do princípio de que o feto tem o direito à vida desde a concepção, então para que é que precisaríamos de invocar o estatuto de potencialidade do feto?

Pedro Madeira, Argumentos sobre o aborto in Critica na Rede – Revista de Filosofia e Ensino.http://criticanarede.com/aborto1.html

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4. O argumento futurista: é errado matar o que tem um futuro com valor.

Este argumento foi apresentado por Donald Marquis (n. 1935). Para mostrar por que razão é errado matar fetos humanos, Marquis começa por fazer duas perguntas: 1- «Quando é errado matar?» 2 – «Por que razão é errado matar pessoas como nós?».

Segundo Marquis é errado matar quando matamos seres humanos conscientes de si e dotados de racionalidade.

E porque é errado matar seres humanos, pessoas como nós? Porque vamos privá – las de um futuro com valor, da possibilidade de ter aqueles bens que dão valor à vida: prazer físico, amizades, conhecimentos, experiências e outros bens. A morte prematura é um infortúnio. É errado matarem – nos porque perdemos esses bens que dão valor ao nosso futuro.

Mas até agora não falamos dos fetos humanos. Porque será errado matá – los se não são indivíduos conscientes de si e dotados de racionalidade? A resposta de Marquis é a de que os fetos têm algo que os torna semelhantes a nós. O quê? Um futuro com valor (que conforme os indivíduos e as suas condições de vida será mais ou menos valioso) Mas será que um feto tem a capacidade de valorizar seja o que for? Não porque não tem consciência de si. Mas, segundo Marquis, apesar de o feto não ser uma pessoa, isso não significa que não seja um indivíduo que irá valorizar o que há de bom numa vida consciente futura. Tal como um jovem de 15 anos, o feto tem uma vida consciente à sua frente, bens e coisas valiosas para desfrutar. Matá – lo é, em certa medida, semelhante a matar uma pessoa de 15, 20 ou 65 anos. Impedimo – la de gozar os bens de uma vida consciente futura. Será privada da possibilidade de ter um futuro significativamente valioso. Perderá todos os bens futuros de uma vida consciente, será privada de um «futuro como o nosso». O aborto tal como o homicídio é o infortúnio de uma morte prematura.

Mas é sempre errado abortar? Não. Se o feto tiver deficiências muito graves que o iriam condenar a uma vida futura sem a mínima qualidade, não terá um futuro com valor e nesse caso abortar é admissível.

Podemos resumir o argumento de Marquis:

1 – Se um indivíduo tem um futuro com valor, então é errado matá – lo.

2 – Os fetos humanos, em geral, têm um futuro com valor.

3 – Logo, em geral, é errado matar fetos humanos (o aborto, em geral, não é moralmente admissível)

ACTIVIDADE 14

1 – Avalie o seguinte argumento contra o aborto:

O feto, mesmo que se admita que é simplesmente uma pessoa em potência, é uma pessoa em formação, em desenvolvimento. Matar a semente será muito diferente de matar o fruto, a flor ou a árvore? O aborto é uma violação dos direitos da pessoa humana, um crime.

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3 – O que pensa do seguinte argumento?

O aborto é moralmente condenável porque, em última análise, consiste to assassínio de um ser humano. O feto é um ser humano porque o ovo fecundado tem o padrão dos cromossomas humanos, é um ser numano em desenvolvimento. Além disso, embora unidas durante o processo de gestação, a vida do feto é distinta da vida da mãe, não e um mero apêndice. Desde o momento da fecundação do óvulo naugura-se uma vida que não é propriamente nem da mãe nem do pai nem dos eventuais legisladores.

4 – Considera bom este argumento?

Todos os seres humanos são iguais no que se refere ao direito à vida e a idade não confere prioridade alguma. Quando há um choque de direitos deveria escolher-se aquele que tem a maior probabilidade de sobreviver. Mas não pode resolver--se uma colisão de direitos dando a morte a uma pessoa inocente.

BIBLIOGRAFIA

5 - FEINBERG, J., The Problem ofAbortion, Califórnia, Wadsworth

6 - KESSLER, G., Voices of Wisdom, Califórnia, Wasworth

7 - SINGER, P., A companion to ethics, Londres, Blackwell

8 - SINGER, P., Ética Prática, Lisboa, Gradiva

9 - STEINBOCK, B., Life Before Birth: The moral and legal status of Embryos and Fetuses, Nova Iorque,Oxford University Press

6 – Galvão, Pedro,A ética do aborto – Perspectivas e argumentos,Dinalivro, Lisboa,2005

Problema 15

O que são os direitos da Natureza?

Há uma crise ambiental? A maioria das pessoas, tendo em conta o que vêem nos telejornais, as notícias sobre alterações climáticas, o aquecimento global do planeta e o efeito de estufa e a diminuição da camada do ozono, responderá que sim.

E, na verdade, os ambientalistas, os cientistas e os movimentos ecológicos – uns mais alarmistas do que outros – advertem-nos de que a acção humana sobre a natureza tem tido um impacto cujas consequências são negativas. Os equilíbrios naturais estão seriamente

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afectados e é ideia generalizada que devemos repensar e alterar a nossa atitude para com a natureza.

O movimento ecológico chama a atenção para esta urgente mudança de perspectiva: a cultura consumista deve ser substituída por novos hábitos de comportamento mais de acordo com a natureza, que poupem os preciosos recursos naturais, e encontrar formas de crescimento económico que respeitem os equilíbrios naturais.

Tal como superámos a errada concepção de que a Terra era o centro do universo, temos de ultrapassar a ideia de que o ser humano é dono e senhor do planeta que habita. É do nosso próprio interesse considerarmo-nos como seres naturais, que vivem na natureza, e tentar que a nossa existência se desenvolva em harmonia com as outras espécies. A Terra é a nossa casa, não um simples objecto de consumo.

Preservar a natureza; Cuidar da natureza. Há um consenso relativamente generalizado em torno destas palavras de ordem. As questões e problemas ambientais deram origem a diversas perspectivas éticas sobre a relação homem-natureza, daí nascendo a ética ambiental.

Sabemos que devemos preservar a natureza, protegê-la. Mas por que razão se deve protegê-la? Qual o fundamento da “responsabilidade ecológica”?

Em termos gerais, duas respostas são dadas:

1 – A natureza deve ser protegida porque devemos reconhecer que o direito a um planeta habitável é um direito das gerações futuras (dos que ainda não nasceram). Esta posição foi defendida originalmente, mas de forma ambígua, pelo filósofo alemão Hans Jonas na obra O Princípio da Responsabilidade, publicada em 1979.

2 – A natureza deve ser protegida – mais propriamente, respeitada – independentemente dos interesses humanos, porque a natureza tem direitos e valor por si. Esta posição é defendida por alguns ambientalistas radicais, partidários da chamada “Ecologia Profunda”.

1. A responsabilidade ecológica segundo Hans Jonas.

Hans Jonas (1903-1993)

Na obra O Princípio de Responsabilidade, Hans Jonas dá-nos a entender que a acção das gerações humanas actuais deve ter um sentido fundamental: assegurar a possibilidade de uma existência digna às gerações futuras mediante a salvaguarda da qualidade de vida. A

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responsabilidade a respeito das gerações futuras exige que lhes leguemos um planeta habitável e que não alteremos as condições biológicas da humanidade.

Qual é o nosso dever no momento actual para que essa finalidade se cumpra? Antecipar as consequências eventualmente nefastas do nosso poder científico-tecnológico e impor limites à sua dinâmica suicida.

Para Hans Jonas, a ciência e a técnica têm sido postas exclusivamente ao serviço de um aumento ilimitado do poder sobre a natureza para implementar o desenvolvimento industrial e a voracidade da sociedade de consumo. Ora, a ciência e a técnica são indispensáveis para, tornando-se sistemas produtivos respeitadores das exigências ecológicas, lutar pela preservação do planeta e da espécie humana.

A responsabilidade acerca das gerações futuras é indissociável de uma responsabilidade global a respeito da biosfera. Aquilo por que, em última análise, somos responsáveis é menos o homem do que a natureza, menos a humanidade futura do que a humanidade na natureza futura. A responsabilidade a propósito da humanidade futura não se inspira numa declaração dos direitos do homem, mas aparece como obrigação que deriva de “um direito ético autónomo da natureza”.

Para Jonas, não se trata, quando fala de “direitos da natureza”, de fazer valer esses direitos contra a humanidade. Do que se trata é de impor a ideia de deveres do homem para com a natureza. E se nós devemos à “totalidade das produções da natureza uma fidelidade” é “porque ela nos produziu a nós”. A fidelidade que devemos ao nosso ser é "o ponto culminante", a expressão máxima da fidelidade que devemos à própria natureza. Não há, portanto, negação do primado e da superioridade do homem.

Tal como a dependência e a fragilidade da vida de uma criança são fonte de obrigações para os seus pais e suscitam neles um sentimento de responsabilidade, a dependência e a fragilidade da natureza exigem que o ser humano adopte em relação a ela uma atitude de solicitude e de responsabilidade.

2. A “Ecologia Profunda” e os “Direitos da Natureza”.

Inspirando-se na obra de Hans Jonas, os partidários da “Ecologia Profunda” ultrapassam algumas das ambiguidades do pensamento do filósofo alemão e defendem que a natureza deve ser preservada porque tem um valor próprio, independente da sua utilidade, isto é, do nosso interesse. Criticam Jonas por, apesar de falar de “dignidade autónoma da natureza”, basear o respeito pela natureza na necessidade de as gerações humanas futuras herdarem um mundo habitável. Para eles a natureza tem um valor intrínseco e não instrumental (em Jonas estas duas perspectivas pareciam coexistir de forma problemática). Os direitos da natureza são absolutos: temos de respeitá-la unicamente por ela própria e não por nossa causa também.

Nalguns quadrantes da “Ecologia Profunda”, a valorização da natureza tem sido acompanhada pelo desprezo da espécie humana. Thomas Berry, escritor do Sierra Club Express, a mais importante associação ambientalista dos EUA, afirmou que “a humanidade é uma aflição para

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o mundo… a sua existência representa uma violação dos aspectos mais sagrados da Mãe Terra”.

Actividade 15

I

Leia o texto seguinte:

«A Natureza como responsabilidade do Homem é certamente uma novidade sobre a qual a teoria ética deve meditar. Que tipo de obrigação é decente ter para com ela? Trata-se simplesmente de prudência a aconselhar-nos que não matemos a galinha dos ovos de oiro ou que não serremos o ramo sobre a qual estamos sentados? Mas este “nós”, que lá está sentado e se arrisca a cair do abismo, quem é? E qual o meu interesse em que se mantenha lá ou caia?

Na medida em que é o destino do Homem na sua dependência relativamente ao estado da Natureza que constitui a última palavra de um interesse moral pela preservação da Natureza, a orientação antropocêntrica de toda a ética clássica continua a existir […]. Mas a nova forma de actuar do Homem não poderia significar que não é somente o ‘interesse’ do Homem que é preciso ter em conta, que o nosso dever se prolonga para lá disso e que o confinamento antropocêntrico de todas as éticas anteriores já não é válido? Pelo menos, não é absurdo perguntar se o estado da natureza não humana, a biosfera como totalidade e com as suas partes, doravante submetida ao nosso poder, está confiada à nossa guarda e nos faz um apelo ético, não somente por causa do nosso interesse futuro, mas por si e de direito próprio. Se assim fosse, isso exigiria uma remodelação profunda da nossa concepção dos fundamentos da ética.

Porque significaria que se tem de procurar, não somente o bem do homem, como o bem das coisas extra-humanas, e de se ampliar o reconhecimento de ‘fins em si’ para além da esfera humana, incluindo a preocupação com esta noção do bem do homem […]. A perspectiva científica dominante acerca da Natureza recusa-nos em absoluto o direito teórico de considerar a Natureza como uma coisa digna de respeito, tendo-a reduzido à indiferença do acaso e da necessidade e tendo-a desagregado de qualquer finalidade que seja valorizada. […]

Mesmo que a obrigação a respeito do homem continue ainda a ter um valor absoluto, ela não deixa agora de incluir a natureza como condição da sua própria sobrevivência e como um dos elementos da sua integralidade existencial. Agora vamos mais longe e dizemos que a solidariedade de destino entre o homem e a natureza, solidariedade redescoberta através do perigo, nos faz igualmente redescobrir a dignidade autónoma da natureza e nos exige o respeito pela sua integridade, ultrapassando a perspectiva meramente utilitária.

Um imperativo apropriado à nova maneira de agir humana e do sujeito desse agir poderia enunciar-se assim: ‘Age de tal forma que as consequências da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra’; se fosse dito na negativa, teríamos: ‘Age de tal maneira que as consequências da tua acção não sejam destruidoras para a possibilidade futura de uma tal vida’; ou ainda, simplesmente: ‘Não ponhas em perigo as condições de uma perpetuação indefinida da humanidade na Terra’; ou de novo expresso na

Page 98: PROBLEMAS DE ÉTICA

positiva; ‘Inclui nas tuas escolhas actuais a integridade futura da humanidade como objeto da tua vontade’.»

H. Jonas, citado por Gilbert Hottois, O Paradigma Bioético,

Edições Salamandra, Lisboa, pp. 123-126 (Adaptado)

1. O que há de inédito na ética proposta por Jonas?

2. Consideras indiscutível falar de direitos das gerações futuras?

II

A NATUREZA TEM DIREITOS?

Leia o texto seguinte:

«O valor de uma coisa pode residir nela (valor intrínseco) ou na utilidade que tem para algo exterior a si mesmo (valor instrumental). Alguns ambientalistas partidários da “Ecologia Profunda” afirmam que a Natureza tem um valor próprio, vale independentemente da sua utilidade para a humanidade. A Ecologia Profunda defende o respeito pelo ambiente, não porque os seres humanos dependam da natureza, mas porque a natureza e tudo o que a compõe têm valor intrínseco. Rejeita o antropocentrismo, a ideia de que o homem está no centro do Universo cumprindo o destino de dominar e controlar a Natureza. Tal domínio tem-se traduzido na exploração desenfreada da vida e dos recursos naturais causando desequilíbrios e alterações tão graves que se arrisca a ser autodestrutivo. Tão graves têm sido os danos infligidos aos ecossistemas e tão criminosa a extinção de espécies que, argumentam os ecologistas radicais, a sobrevivência da natureza exigirá a redução significante da população humana, a rejeição da sociedade e um consumo mínimo dos escassos recursos naturais.

Na sua perspectiva uma espécie natural deve ser protegida por ter valor em si e não por ser útil. Toda a vida na Terra tem um valor intrínseco, deve ser respeitada pelo que é e não por servir o interesse de alguém. Esta perspectiva levanta contudo um problema muito óbvio.

Se adoptarmos o ponto de vista da Ecologia Profunda, então temos de atribuir direitos absolutos ao ambiente e a todos os seus componentes. Mas tal como dizer que a natureza tem valor intrínseco levanta problemas, a atribuição de direitos absolutos à natureza é uma tese muito difícil de defender. Há pessoas que encaram seriamente a ideia de direito absoluto da natureza, mas inevitavelmente esse direito será infringido muitas vezes ao longo da nossa vida.

Para muitas pessoas a solução consistiria em considerar que os direitos da natureza são relativos e não absolutos. Isto significa que os direitos podem ser infringidos em certas circunstâncias. O melhor exemplo desta ideia de direitos relativos é a guerra. Todas as sociedades incluem nas suas leis a proibição de matar e muitas consideram-no o crime mais grave (punindo-a com a pena de morte). Contudo, durante uma guerra damos aos combatentes o direito de infringir esta regra de maneira a que possam “matar o inimigo” e

Page 99: PROBLEMAS DE ÉTICA

proteger-nos de eventuais ameaças. Neste contexto é claro que a vida humana não é pensada como um valor absoluto, mas sim relativo – um direito que pode ser suspenso se a situação o exigir. No que respeita ao ambiente, esta concepção não é, contudo, isenta de problemas. Quem decide que direitos devem ser suspensos? E com que fundamento? Há quem admita que uma bela floresta tem “direito à vida” — mas e se essa bela floresta for um obstáculo na via do “progresso”?»

Joe Walker Environmental Ethics, Hodder and Stoughton,

Londres, 2000, pp. 18-20 (Adaptado)

1 – Que problema óbvio coloca a afirmação do valor intrínseco da natureza?

2 – Afirmar que a natureza tem direitos absolutos é uma tese muito difícil de defender. Porquê?

3 – Falar da natureza como sujeito de direitos é racionalmente justificável?

Bibliografia

1 - SOROMENHO, MARQUES, V., Regressar à Terra. Consciência ecológica e política do ambiente, Lisboa, Fim do Século, 1994

Soluções das actividades

Problemas de Ética

ACTIVIDADE 1

Parte superior do formulário

Page 100: PROBLEMAS DE ÉTICA

a) É palermice acreditar em contos de fadas

Normativo

Descritivo

b) O aborto é um crime.

Normativo

Descritivo

c) Não me sinto culpado por ter feito falsas declarações.

Normativo

Descritivo

d) A moral é a arte de viver.

Normativo

Descritivo

e) Há muito patife neste mundo.

Normativo

Descritivo

f) Se não consegues compreender este assunto então pede ajuda ao teu professor.

Normativo

Descritivo

g) Se a clonagem terapêutica for admitida então muitas doenças poderão ser curadas.

Normativo

Descritivo

h) A nossa sociedade vive uma crise de valores

Normativo

Descritivo

Page 101: PROBLEMAS DE ÉTICA

Parte inferior do formulário

2.1 - Um princípio ético é:

a)Menos geral do que uma norma moral;

b)Algo que deriva do conjunto das normas morais;

c)Um padrão que nos guia somente em certos tipos de acções;

d)Um padrão que pretende julgar todas as situações morais.

2.2 - «Age sempre de modo a satisfazer teu interesse próprio» e «Age de tal modo que nunca transformes os outros em simples meios ao serviço dos teus interesses». Estas frases correspondem a:

a) Normas morais;

b)Princípios éticos;

c)Conselhos de prudência;

d)Mandamentos de origem religiosa.

a)Os problemas morais concretos;

b) Os princípios gerais que devem guiar as nossas acções;

c)As regras que regulam certo tipo de condutas;

d)A distinção entre problemas morais e problemas não - morais

3 - Procure defender o seguinte argumento. Para isso dê especial atenção à segunda premissa. Utilize exemplos.

Se o direito e a moral forem equivalentes então o facto de um acto ser legal significa que também é moral.

O facto de um acto ser legal não significa que seja também moral.

Logo, direito e moral não são equivalentes.

R: Trata-se de dar exemplos de actos legalmente admitidos mas que são moralmente inadmissíveis. Trair a namorada é um desses exemplos.

4 – Há uma ligação de certo modo forte entre direito e moral. Isso significa que:

a) As sanções legais são indispensáveis para a nossa interacção com os outros;

b)As nossas obrigações morais são equivalentes às nossas obrigações legais;

c)Um acto é moralmente aceitável por ser legalmente permitido;

d)Há actos moralmente impermissíveis que também são legalmente proibidos.

Page 102: PROBLEMAS DE ÉTICA

ACTIVIDADE 2

1 – Descubra os princípios ou normas morais nos quais se basearam os seguintes juízos morais:

a) Foi errado teres prometido que ias ao cinema com a Luísa e não teres comparecido.

R: Devemos cumprir as nossas promessas.

b) Foi errado teres copiado durante o teste.

R: É errado ser desonesto.

c) Foi moralmente inaceitável lançar uma bomba atómica sobre alvos não – militares.

R: É errado matar pessoas inocentes.

2 – Dê atenção aos seguintes argumentos e verifique se a passagem da premissa à conclusão é logicamente aceitável. Justifique a sua resposta.

a)É natural comer carne. Logo não devemos tornar-nos vegetarianos.

R: O facto de ser habitual e normal comer carne não justifica que devamos continuar a fazê-lo.

b)As mulheres tratam melhor dos filhos do que os homens. Por isso, em caso de divórcio as crianças devem ficar a cargo das mães.

R: Embora as estatísticas revelem que as mulheres cuidam melhor dos filhos do que os homens isso não implica que os homens devam abdicar dos seus filhos. Por serem estatisticamente melhores (haverá sempre homens cuidadosos com os filhos) não implica que só elas devam tratar dos filhos ou ficar com eles a seu cargo. Os homens também são estatisticamente melhores em compreensão espacial e daí não se justifica concluir que só eles devem pilotar aviões.

c)Os homens têm uma inteligência espacial superior à das mulheres. Por conseguinte, as mulheres não devem ter acesso à profissão de piloto.

R: Falácia naturalista tal como na alínea anterior. Não podemos passar dos factos ao que deve ser sem mais. Os juízos de valor não derivam pura e simplesmente dos factos. Se acreditamos que é um facto que os seres humanos gostam de ter filhos não podemos concluir que devem ter filhos ou que é sua obrigação moral tê-los. Só poderíamos fazê-lo se entre os factos e essa conclusão intercalássemos uma proposição moral tal como Ter filhos é uma coisa moralmente valiosa.

3 – Descubra a premissa que evita que os argumentos seguintes cometam o erro referido por David Hume:

a)Subornar um juiz é uma tentativa de colocar o sistema judicial ao serviço dos nossos interesses. Logo, subornar um juiz é moralmente errado.

Subornar alguém é moralmente errado

Subornar um juiz é uma tentativa de colocar o sistema judicial ao serviço dos nossos interesses.

Page 103: PROBLEMAS DE ÉTICA

Logo, subornar um juiz é moralmente errado.

b)Roubar pessoas é prejudicá-las. Assim sendo, roubar é errado.

Roubar pessoas é prejudicá-las.

Prejudicar pessoas é errado

Assim sendo, roubar é errado.

c)Castigar uma criança por algum erro que cometeu não é moralmente correcto porque qualquer castigo provoca problemas emocionais.

Todo o castigo provoca problemas emocionais.

O que provoca problemas emocionais é moralmente incorrecto.

Logo, castigar uma criança por algum erro que cometeu não é moralmente correcto

4 – Considera bons os seguintes argumentos? Justifique a sua resposta.

a)«O sexo feminino não deve ter os mesmos direitos do sexo masculino. Na natureza as fêmeas dedicam-se à reprodução e são machos que devido a terem maior força física tem a seu cargo a defesa da família e o seu sustento. No género humano os machos têm as mesmas funções e por isso não devem ser eles a cuidar dos filhos mas as mulheres, que a natureza dotou para tal.»

R: Argumento falacioso. Que homens e mulheres tenham de facto características diferentes não implica que devam ser tratados de modo diferente no plano jurídico e moral.

b)«A doutrina da Igreja é contra as relações sexuais antes do matrimónio. Os meus pais dizem que é perigoso para a saúde esse tipo de relações. Penso pois que é moralmente errado ter relações sexuais com a moça com quem namoro.»

R: Argumento falacioso. A doutrina da Igreja católica é contra as relações sexuais antes do casamento. Isso significa que considera moralmente errado o sexo pré – matrimonial. Contudo, para se concluir validamente que é moralmente errado o sexo com a namorada (?) a segunda premissa devia ser esta: Eu estou de acordo com a Igreja Católica.

Actividade 4

1 - Lê o seguinte texto:

«Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina (…) O valor moral da acção não reside, portanto, no efeito (resultado) que dela se espera. Não pode residir em mais parte alguma senão no princípio da vontade (no motivo), abstraindo dos fins que possam ser realizados por tal vontade».

Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pp 30-31

a) Por que razão este texto nos permite concluir que a ética kantiana não é consequencialista?

R: Ao defender que a bondade da vontade não depende dos seus resultados Kant marca a diferença em relação às éticas consequencialistas. Kant está a dizer isto: o que é decisivo na

Page 104: PROBLEMAS DE ÉTICA

avaliação moral de um acto não é o que ele realiza ou o que com ele obtemos. O que é importante do ponto de vista moral é o motivo ou a intenção subjacente ao acto. Ter uma intenção correcta é o que torna uma vontade boa.

b) O que distingue uma acção realizada por dever de uma acção em conformidade com o dever?

R: As acções feitas por dever são acções em que o cumprimento do dever é um fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Dispensa razões suplementares, não age como diz o homem comum «com segundas intenções». As acções em conformidade com o dever não são acções contrárias ao dever. Contudo, nessas acções, para cumprir o dever precisamos de razões suplementares. Mais importante do que o cumprimento do dever é o nosso interesse pessoal.

2 - Tavares reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50 €. Apanhou-a e…que fez?

Pense em três decisões possíveis de Tavares:

a) Fica com os 50 €.

b) Devolve os 50 € para ficar bem visto e ganhar reputação de honesto.

c) Devolve os 50 € pelo simples facto de que pertencem ao cliente.

Alguma das acções, segundo Kant, é moralmente correcta? Justifique.

R: Só a acção c) é para Kant moralmente correcta. A acção foi exclusivamente motivada pelo cumprimento do dever. É uma acção própria de uma boa vontade.

3 - Alberto sabe que Vicente é infiel à mulher. Mulherengo aparentemente incorrigível, Vicente gaba-se junto dos amigos das suas várias incursões extra matrimoniais

Esta ausência de escrúpulos morais é para Alberto extremamente indecente. A mulher de Vicente é uma amiga de longa data que Alberto julga estar a ser humilhada sem disso se aperceber. Debate-se então com um problema: se conta a verdade à amiga poderá causar-lhe um enorme desgosto; se decide não intervir torna-se conivente com as mentiras de Vicente. Alberto acaba por revelar a verdade. Julga ser esse o seu dever, considerando que dizer a verdade é mais importante do que causar um desgosto.

Qual pensa que seria a avaliação moral do acto de Alberto por parte de Mill e de Kant? Justifique.

R: Para Kant não se deve nunca mentir. Para Mill é necessário ponderar as consequências das acções em nome do bem-estar de quem é afectado por elas.

Todos conhecemos normas morais como «Não deves matar pessoas inocentes», «Não deves roubar» ou «Não deves mentir». Para o utilitarista as acções são moralmente correctas ou incorrectas conforme as consequências: se promovem imparcialmente o bem-estar são boas. Isto quer dizer que não há acções intrinsecamente boas. Só as consequências as tornam boas

Page 105: PROBLEMAS DE ÉTICA

ou más. Assim sendo, não há, para o utilitarista, deveres que devam ser respeitados em todas as circunstâncias. Se para a ética kantiana, alguns actos como matar, roubar ou mentir são absolutamente proibidos mesmo que as consequências sejam boas, para Mill justifica-se, por vezes, matar, roubar ou mentir. Nenhum desses actos é intrinsecamente errado e, por isso, os deveres que proíbem a sua realização não devem ser considerados absolutos.

Actividade 5

1 - Leia o texto seguinte:

«Todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível (o dever) como meio de alcançar qualquer coisa que se quer ou que é possível que se queira. O imperativo categórico é aquele que nos representa uma acção como objectivamente necessária (como devendo ser feita) por si, sem relação com qualquer outra finalidade. No caso de a acção ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo que a ordena é hipotético; se a acção é boa em si (…) então o imperativo é categórico.

(Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes)

a) Distinga imperativos categóricos de imperativos hipotéticos.

R. O imperativo categórico é uma obrigação absoluta e incondicional. Exige que a vontade seja exclusivamente motivada pela razão, que seja independente em relação a desejos, interesses e inclinações particulares. Ordena que uma acção seja realizada pelo seu valor intrínseco, que seja querida por ser boa em si e não por causa dos seus efeitos.

«Diz a verdade!» é um exemplo de imperativo categórico.

O imperativo hipotético é uma obrigação condicional porque a realização da acção depende de desejarmos o que com ela podemos obter. Para Kant, as acções em conformidade com o dever são acções que encaram o cumprimento do dever como útil e não como um fim em si. Na sua perspectiva, todas as teorias éticas que encaram os deveres morais como obrigações dependentes das consequências transformam-nos em imperativos hipotéticos. Ora, a moralidade não pode para Kant depender de condições e circunstâncias que variam conforme as inclinações, desejos e interesses das pessoas.

«Se queres ser respeitado, diz a verdade» é um exemplo de imperativo hipotético.

b) Para Kant só as acções ordenadas por um imperativo categórico são moralmente correctas. Porquê?

R: O imperativo categórico diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever».

Exige um respeito absoluto pelo dever. As acções que cumprem o imperativo categórico são por isso acções realizadas por dever.

Page 106: PROBLEMAS DE ÉTICA

2 - Alguma das seguintes proposições é um imperativo categórico? Justifique a sua resposta:

a) «Não roubes para não defraudares as expectativas de quem em ti confiou». IH

b) «Não mintas por melhores que possam ser as consequências desse acto».

c) «Paga os impostos porque podes ter dinheiro a receber». IH

d) «Não deves conduzir se tiveres bebido demasiado».

R: As alíneas b) e d) correspondem a imperativos categóricos. Ordenam uma boa acção pelo seu valor intrínseco.

3 - Para Kant, certo tipo de acções tais como matar, roubar e mentir são absolutamente proibidas. São acções intrinsecamente incorrectas e os deveres que as proíbem devem ser respeitados independentemente das consequências e das circunstâncias. Esses deveres são imperativos categóricos ou hipotéticos? Justifique a sua resposta.

R: Se são absolutamente proibidas apoiam-se em ordens ou normas que não se submetem a condições. Por isso são imperativos categóricos.

4 - A questão seguinte é de escolha múltipla. Seleccione a alternativa correcta justificando a sua opção.

Segundo Kant uma acção moralmente correcta é aquela em que fazemos o que está certo:

a) Pelos motivos errados;

b) Por motivos pessoais;

c) Por compaixão;

d) Imparcial e desinteressadamente

5 – Considere a seguinte máxima: «Sempre que não me sentir preparado para um exame irei usar cábulas ou copiar». Pode esta máxima ser universalizada sem contradição?

R: Não porque se essa máxima fosse universalizada nenhum teste realizado mereceria confiança por parte dos avaliadores. Os próprios testes deixariam de ser objecto de confiança e para nada serviriam as avaliações dado que se tornaria generalizada a suspeita.

6 – Nas situações hipotéticas descritas a seguir identifique (justificando as suas respostas) as que violam e as que não violam a segunda fórmula do imperativo categórico:

a) Deseja um telemóvel de última geração para impressionares os teus colegas de escola. Não tem, contudo, dinheiro para o comprar nem é provável que nos tempos mais próximos o consigas. Numa festa de aniversário alguém esquece por momentos um magnífico telemóvel em cima da mesa. Apodera - se do telemóvel e no dia seguinte é um sucesso junto dos seus colegas.

Page 107: PROBLEMAS DE ÉTICA

R: Acção contrária ao dever.

b) E se em vez de se apoderar do telemóvel sem intenção de o devolver unicamente o utilizasse durante alguns dias para depois o devolver ao seu dono?

R: Acção contrária ao dever embora menos grave do que a anterior. Utilização indevida de propriedade alheia. O que é dos outros foi um meio para teres sucesso. Através desse objecto transformaste o outro em meio ao serviço dos teus interesses.

c) A disciplina de física e química está a causar-lhe dificuldades. Decide recorrer a um explicador e acerta com ele o custo de cada sessão de explicações pagando cada mês o que é devido.

R: Acção moralmente correcta. Não houve instrumentalização de outrem.

d) João decide casar com uma mulher que não ama.

R: Não é dever casar por amor mas pode-se suspeitar e só isso de alguma motivação que não é moralmente louvável.

e) É forçado a alistar-se nas forças armadas do seu país para o defender de uma invasão estrangeira.

R: Se for reconhecido o direito à objecção de consciência podemos dizer que houve instrumentalização da pessoa.

f) Descontente com o resultado de um teste, Alberto chega a casa e destrói boa parte dos brinquedos do irmão mais novo.

R: Indirectamente foi violada a segunda fórmula do imperativo categórico.

Não porque se essa máxima fosse universalizada nenhum teste realizado mereceria confiança por parte dos avaliadores. Os próprios testes deixariam de ser objecto de confiança e para nada serviriam as avaliações generalizada a suspeita.

7 - Segundo o princípio ético fundamental do utilitarismo:

a) Estamos proibidos de procurar a nossa felicidade;

b)Mais do que pensar no bem-estar dos outros devemos preocupar-nos em não os prejudicar;

c)Uma acção é correcta se produzir bem-estar.

d)Uma acção é correcta se produzir mais bem-estar do que qualquer outra acção possível ao agente no momento.

8 - Leia o seguinte texto

«Não é um defeito de qualquer credo (teoria moral), pois isso resulta da natureza complicada dos assuntos humanos, que as regras de conduta não possam ser concebidas de modo a não

Page 108: PROBLEMAS DE ÉTICA

requerer excepções e que dificilmente qualquer espécie de acção possa ser estabelecida seguramente como ou sempre obrigatória ou sempre condenável. (…) Se a utilidade é a fonte última das obrigações morais, então pode ser invocada para decidir entre elas quando as suas exigências são incompatíveis. Embora a aplicação do padrão possa ser difícil, é melhor tê-lo do que não ter nenhum (…)»

Mill, Utilitarismo, 1861,pp 69-72

a)Segundo Kant certos deveres são absolutos e por isso as acções que os violam não devem nunca ser realizadas. A partir deste texto pensa que Mill está de acordo? Justifique.

R: Não. O utilitarismo de Mill defende que há princípios e regras morais objectivas (caso do princípio de utilidade, válido independentemente das opiniões dos indivíduos e das culturas) mas ao contrário do absolutista moral admite que em certas situações um dever pode ser suplantado por outro mais importante. Assim salvar uma vida pode exigir que se minta ou se roube.

b)Neste texto Mill estabelece uma relação entre as regras de conduta (as normas morais comuns) e o princípio de utilidade. Por que razão pode concluir da leitura do texto que as normas morais comuns são regras subordinadas?

R: A frase decisiva é: Se a utilidade é a fonte última das obrigações morais, então pode ser invocada para decidir entre elas quando as suas exigências são incompatíveis.

O princípio de utilidade é um princípio moral objectivo, universal, que todos devem seguir. A obediência a tal princípio implica que se realizem diferentes acções em diferentes circunstâncias. Nem todas as acções são iguais porque nem todas têm as mesmas consequências. Mentir em tribunal pode ter consequências prejudiciais para todos os envolvidos ao passo que mentir à avó dizendo que a tarte de maçã está deliciosa é uma mentira piedosa que pode impedir que se estrague um jantar de família. Admitimos que, em geral, roubar é incorrecto mas consideramos correcto roubar a pistola de um potencial homicida.

As normas morais comuns estão em vigor em muitas sociedades por alguma razão. Resistiram à prova do tempo e em muitas situações fazemos bem em segui-las nas nossas decisões. Contudo, não devem ser seguidas cegamente. Nas nossas decisões morais devemos ser guiados pelo princípio de utilidade e não pelas normas ou convenções socialmente estabelecidas. Vendo bem as coisas, as regras da moral convencional que gozam de maior prestígio devem tal reputação ao facto de terem contribuído para a promoção do bem-estar da humanidade e da convivência harmoniosa, isto é, têm cumprido o critério utilitarista. Dizer a verdade é um acto normalmente mais útil do que prejudicial e por isso a norma «Não deve mentir» sobreviveu ao teste do tempo. Segui-la é respeitar a experiência de séculos da humanidade.

Page 109: PROBLEMAS DE ÉTICA

9 – Suponha que o Miguel quer comprar um televisor LCD mas não tem dinheiro suficiente. Durante um jantar de aniversário repara que um amigo tem várias centenas de euros na carteira. Mal a oportunidade surge apodera-se da carteira e rouba quase todo o dinheiro que esta contém.

Segundo o utilitarismo de Mill podemos dizer que Miguel agiu bem? Imagina que o amigo do Miguel é muitíssimo rico e que a sua irritação por perder o dinheiro será menos intensa e menos duradoura do que o prazer do Miguel por ter conseguido comprar o televisor. Além disso, sendo rico é muito provável que rapidamente esqueceria ter sido roubado. Ponderando estes factores, Mill consideraria correcto o acto do Miguel?

R: O princípio da «maior felicidade», apesar de exigir imparcialidade na avaliação das melhores consequências, não implica cegueira moral nem a defesa de actos moralmente deficientes ou repugnantes. A avaliação do prazer não é, em Mill, puramente quantitativa.

Neste caso, Miguel agiu por razões meramente egoístas. Só teve em conta o seu bem-estar.

10 – Suponha que duas pessoas caem de um barco e estão em risco de se afogar. Não tem tempo para salvar os dois. Leva tanto tempo a decidir-se, ponderando imparcialmente quem socorrer que a certa altura é tarde demais. Na perspectiva utilitarista agiu bem?

R: Não. Há situações que exigem decisões rápidas e pensar demais nas consequências do que faremos pode paralisar-nos e mais prejuízo do que benefício resultará eventualmente da nossa indecisão.

11 - Na obra de ficção Génese e Catástrofe um médico salva a vida de mãe e filho num parto muito difícil. Depois de tudo resolvido as palavras do médico são: «Agora está tudo bem, senhora Hitler». Pode esta história ser considerada uma crítica justificada do utilitarismo?

R: Não. Não podemos prever com certeza o futuro. Isso não é um defeito da teoria utilitarista ou de qualquer outra mas uma limitação inevitável dos actos humanos.

12 - De um milionário prestes a morrer recebo um cheque de 500 mil dólares. Comprometo-me a cumprir a sua última vontade: entregar essa quantia ao presidente do seu clube de futebol preferido. Contudo, a caminho do estádio, uma campanha contra a fome no mundo chama a minha atenção. Surge um conflito moral: devo ser fiel à minha promessa ao moribundo ou contribuir para salvar milhares de pessoas famintas?

c) Imagine que és adepto da ética kantiana. Que resposta daria a este problema? Justifique a sua resposta.

d) Imagina que és utilitarista. Darias a mesma resposta a este problema? Justifique a sua resposta.

13 - José, um cientista botânico de visita à América do Sul, chega a uma aldeia onde Pedro, um militar se prepara para ordenar a execução de vinte índios. A população da aldeia tem protestado frequentemente contra a política do governo. Para aterrorizar a população da aldeia Pedro recebeu ordens para escolher vinte pessoas e fuzilá-las. Trata-se de pessoas

Page 110: PROBLEMAS DE ÉTICA

inocentes. José sente revolta perante a situação e dá sinais do seu descontentamento. Apercebendo-se disso, Pedro decide dar-lhe a possibilidade de intervir. Propõe-lhe que se matar um dos vinte índios, salvará a vida dos outros dezanove. Se recusar esta proposta as vinte pessoas inocentes morrerão.

Supõe que João, com muito desconforto, aceita a proposta.

c) Qual seria a avaliação que um kantiano faria desta acção? Pense na segunda fórmula do imperativo categórico para tentar responder.

d) Está de acordo com a avaliação kantiana deste acto? Justifique.

Actividade 6

1 – Defina subjectivismo moral.

R: O subjectivismo moral é a teoria segundo a qual o valor de verdade dos juízos morais depende das crenças, sentimentos e opiniões dos sujeitos que os emitem. Os juízos morais exprimem sentimentos de aprovação e de desaprovação e dependem desses sentimentos. Não há verdades morais objectivas e universais.

2 – Esclareça por que razão o subjectivismo moral é uma forma de relativismo.

R: O subjectivismo moral é uma forma de relativismo porque entende que a verdade ou a falsidade dos juízos morais depende (ou é relativa a) das crenças e opiniões de cada indivíduo, em suma, do seu código moral pessoal. Um acto é correcto ou errado se um determinado indivíduo o considerar correcto ou errado.

3 – Para o subjectivismo moral, moralmente correcto é o que cada indivíduo de acordo com os seus sentimentos e o seu código moral aprova. Suponhamos que Hitler aprovou o extermínio dos judeus (parece não haver dúvidas). Então a sua acção foi correcta, de acordo com o seu código moral. Estaline aprovou também o assassinato de milhões de pessoas que considerava suas inimigas que de acordo com o seu código moral eram perniciosas. A sua acção segundo a teoria subjectivista também foi correcta. Estes exemplos constituem fortes objecções ao subjectivismo moral? Porquê?

R: Para o subjectivismo moral não tem sentido perguntar quem está errado acerca da correcção ou incorrecção moral de certos actos. A cada qual a sua opinião de acordo com aquilo em que acredita e em nenhum caso o juízo moral de uma pessoa é mais correcto ou razoável do que o de outra. Ficamos entregues ao puro arbítrio e não se percebe como uma acção como a de Hitler é censurável ou eticamente condenável.

4 – Uma das principais críticas feitas ao subjectivismo moral consiste em dizer que os sentimentos das pessoas não tornam uma acção boa ou má.Se experimento um sentimento de aprovação ao fazer algo unicamente transmito uma sensação de prazer ou exprimo que gostei do que fiz. Uma acção é boa ou má consoante é aprovada ou não por um indivíduo. Que consequências decorrem desta posição? São aceitáveis? Justifique a sua resposta..

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R: O subjectivismo moral parece sugerir que não podemos dizer que as opiniões e juízos morais dos outros estão errados. Se as verdades morais dependem dos sentimentos de aprovação ou de desaprovação de cada indivíduo basta que os nossos juízos morais estejam de acordo com os nossos sentimentos para serem verdadeiros. Um genuíno debate moral em que cada interlocutor tente convencer o outro das suas razões acerca de algo em que acredita perde qualquer sentido. Para o subjectivista será mesmo sinal de intolerância. O subjectivismo ético acredita que não há juízos morais objectivos porque os assuntos morais são objecto de discórdia generalizada mas isso não prova que não haja uma resposta correcta ou verdades objectivas.

Será que o facto de as pessoas discordarem acerca da existência de Deus prova que não há uma resposta à questão Será que Deus existe? Durante muito tempo as pessoas pensaram que as doenças eram causadas por demónios. Sabemos hoje em dia que na maioria dos casos são causadas por microorganismos tais como bactérias e virus

5 – Imagine que caiu nas mãos de um grupo de cientistas de outro país. Pretendem que seja a cobaia de experimentações científicas que consideram muito importantes e que ao mesmo tempo além de muito dolorosas provocarão a sua morte. Justificam a acção dizendo que esses experimentos farão avançar enormemente a ciência ao permitir descobrir medicamentos que beneficiarão milhões de pessoas em todo o mundo. Protesta dizendo que os meios para tal fim são absolutamente errados. Contudo, explicam-lhe pacientemente que a moral é relativa, uma simples questão de opinião pessoal. Pensam que usar o seu corpo para o fim em vista é moralmente correcto e como matar em nome da pesquisa médica não é ilegal no seu país, explicam – lhe que a sua revolta é simplesmente uma opinião tua e nada mais. Perguntam-lhe: «Quem és tu para dizer o que é moralmente correcto ou incorrecto? Cada pessoa tem de julgar por si o que é certo e errado».

Como argumentaria para os convencer de que o que pretendem fazer é moralmente errado? É aceitável dizer que uma vez que os cientistas acreditam genuinamente estarem a agir bem, a sua posição é inquestionável? Esta experiência mental prova que o subjectivismo moral não é uma teoria plausível?

Actividade 7

1 – O que se entende por relativismo moral cultural?

O relativismo moral cultural é a teoria segundo a qual o valor de verdade dos juízos morais é sempre relativo ao que cada sociedade acredita ser verdadeiro ou falso. Moralmente verdadeiro é igual a socialmente aprovado e as convicções da maioria dos membros de uma sociedade são a autoridade suprema em questões morais.

2- O que distingue o subjectivismo moral do relativismo moral cultural?

Contrariamente ao relativismo individual ou subjectivismo moral, o relativismo cultural acerca de assuntos morais afirma que o código moral de cada indivíduo se deve subordinar ao código moral da sociedade em que vive e foi educado. Os juízos morais de cada indivíduo são verdadeiros se estiverem em conformidade com o que a sociedade a que pertence considera verdadeiro.

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3 – Para o relativismo moral se uma acção for socialmente aprovada ela é correcta. Concorda? A sociedade tem sempre razão? Porquê?

Segundo o relativismo moral cultural em assuntos morais cada sociedade tem a sua verdade. Assim, na perspectiva relativista, não se pode dizer sem mais A escravatura é moralmente errada. O que podemos dizer é Numa dada sociedade a escravatura é moralmente errada e Numa sociedade diferente- com crenças morais diferentes - a escravatura não é moralmente errada. Não há verdade ou falsidade sobre a escravatura independentemente do que cada sociedade pensa sobre a escravatura. As crenças morais de uma sociedade não são mais verdadeiras, mais razoáveis ou melhores do que as de outra. Não há uma só verdade em ética mas várias.

Se duas sociedades têm diferentes crenças acerca de uma questão moral, o relativista conclui que então ambas as crenças são verdadeiras. Os adversários do RMC objectam que a conclusão não deriva necessariamente da premissa porque essa discórdia pode ser sinal de que uma sociedade está certa e a outra está errada.

4 – Se adoptarmos o relativismo moral cultural terei alguma razão para desobedecer a leis que o meu grupo cultural não aprova? Justifique a sua resposta.

Segundo o RMC é moralmente correcto o que uma sociedade acredita ser moralmente correcto. Mas para muitos de nós esta ideia é contra-intuitiva. Se uma sociedade rejeita o direito das mulheres ao voto e a igualdade de oportunidades no acesso a empregos diremos que isso é moralmente correcto só porque é socialmente aprovado. As sociedades são moralmente infalíveis? Então porque mudaram ao longo da história várias das suas convicções? Martin Luther King tentou por via pacífica chamar a atenção para as deficiências morais de um código moral e jurídico que no sul dos EUA considerava moralmente aceitável que os negros fossem tratados como cidadãos de segunda classe. O mesmo fez Nelson Mandela na África do Sul. Como, segundo o relativismo, as crenças da maioria dos membros de uma sociedade são a verdade em matéria moral, como aquilo que é socialmente aprovado (significa aprovado pela generalidade dos membros de uma sociedade) é verdadeiro e deve ser seguido, então King comportou-se de forma moralmente errada. Isto nega as nossas intuições morais mais elementares.

5 – João é contra o sexo antes do casamento e Miguel é a favor. Estamos perante dois juízos opostos: O sexo antes do casamento é moralmente errado e O sexo antes do casamento é moralmente correcto.

Imagine agora duas situações.

Caso 1 – Miguel e João são membros de uma mesma sociedade e esta reprova o sexo antes do casamento.

Caso 2 – Miguel e João são membros de sociedades diferentes sendo que uma aprova o sexo antes do casamento e a outra considera erradas as relações sexuais pré-matrimoniais.

Como avaliaria um partidário do relativismo moral cultural cada um dos casos?

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Está de acordo com alguma dessas avaliações? Justifique a sua resposta.

6 – Um argumento frequentemente utilizado pelos defensores do relativismo moral cultural diz o seguinte:

a) Em diferentes sociedades as pessoas fazem juízos morais diferentes sobre a mesma acção

b)Se as pessoas em diferentes sociedades fazem diferentes juízos morais sobre a mesma acção então elas regem-se por critérios ou padrões morais diferentes. (Não há critérios morais neutros, ou seja, objectivos e universais)

c) Logo não há padrões morais universais ou objectivos.

O argumento é válido? E se for válido, é bom?

O argumento não é válido e não é bom porque o simples facto de as sociedades não estarem de acordo acerca de questões morais não implica que não haja verdades objectivas sobre o assunto.

7 – Nas nossas sociedades os adolescentes aprendem Química na escola. Noutras culturas não tecnológicas são educados para serem bons caçadores. Devemos concluir deste facto que os princípios da química não têm «validade» independentemente da nossa cultura? Sabemos que existem 100 elementos químicos mas na Grécia antiga só se reconheciam 4:terra,água,ar e fogo. Devemos concluir que depende de cada cultura quantos elementos existem? Em termos análogos, a abolição da escravatura foi o resultado de um longo processo de reflexão sobre os ideais democráticos e as raízes bíblicas da cultura ocidental. Devemos por isso concluir que a escravatura só é errada para os membros da cultura a que pertencemos?

Que tese do relativismo moral cultural se pretende aqui criticar?

Pretende criticar-se a ideia de que é a aprovação social e cultural que determina que juízos morais são correctos ou não, ou seja, que uma sociedade acredita ser correcto ou incorrecto constitui o critério último do que é moralmente certo ou errado (cada sociedade tem as suas verdades morais e que nenhuma está errada). O relativismo moral cultural transforma a diversidade de opiniões e de crenças morais em ausência de verdades objectivas. Mas isso pode ser sinal de que há pessoas e sociedades que estão erradas e não de que ninguém está errado. Se duas sociedades têm diferentes crenças acerca de uma questão moral, o relativista conclui que então ambas as crenças são verdadeiras. Os adversários do RMC objectam que a conclusão não deriva necessariamente da premissa porque essa discórdia pode ser sinal de que uma sociedade está certa e a outra está errada.

8 – Alguém disse que não se pode ver A lista de Schindler (que descreve entre outras coisas as atrocidades dos nazis contra os judeus) e permanecer relativista. De acordo com a sua teoria não teria o relativista de dizer que ninguém tinha o direito de criticar as acções racistas e genocidas dos nazis na medida em que estes estavam a ser consistentes com as suas crenças morais? Não será que o relativismo ético implica que nunca podemos criticar as práticas aceites noutras sociedades?

Considera que esta é uma forte objecção ao relativismo moral cultural?Porquê?

Para o RMC cada cultura tem a sua própria perspectiva sobre o que é moralmente certo ou errado. Nenhuma cultura é autoridade incontestável em assuntos morais. Uma vez que não temos um critério objectivo para provar que algumas perspectivas são melhores do que

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outras, devemos tratá-las como sendo igualmente correctas. Para o RMC a aprovação de uma dada cultura é o que torna moralmente certa ou boa uma acção. Cada cultura define o certo e o errado e cada um de nós sabe se age bem ou mal verificando se acção está ou não de acordo com o código moral estabelecido pela sociedade. Ora isto implica que cada cultura é moralmente infalível. O que por sua vez implica que os indivíduos não podem discordar do que está estabelecido e ter razão. Esta tese parece profundamente oposta às nossas crenças e experiências. A tolerância que os relativistas julgam promover com a sua teoria parece homologar as piores imoralidades.

Actividade 9

1 – Na obra de Dostoievsky, Os Irmãos Karamazov, Ivan Karamazov afirma: «Se Deus não existir tudo é permissível». Podemos dizer que Ivan é um defensor da teoria dos mandamentos divinos? Porquê?

Para os defensores da teoria dos mandamentos divinos se Deus não existisse nada seria moralmente certo ou errado. Como a vontade de Deus é absoluta as normas morais que ela institui são absolutas, isto é, valem para qualquer ser humano em qualquer época e em qualquer lugar, não admitem excepções. Por outras palavras, se Deus existe há um código moral absoluto- as leis ou mandamentos de Deus- que constitui o critério fundamental que nos permite avaliar as diversas crenças e práticas humanas. Segundo a TMD há respostas correctas e incorrectas, verdadeiras e falsas às questões morais. Só há um código moral verdadeiro: a lei divina.

2 – Há quem afirme que apesar da sua omnipotência, Deus não pode fazer com que um quadrado tenha três lados nem que dois mais dois sejam igual a quatro. Porquê? Porque são verdades evidentes por si. Mas um princípio como este É errado matar pessoas inocentes para nos divertirmos não é evidente por si mesmo? Por que razão este argumento constitui uma objecção à teoria dos mandamentos divinos?

Acções intrinsecamente boas ou más são acções cuja maldade ou bondade é independente de qualquer perspectiva, seja ela humana ou divina. Para o defensor da TMD como é Deus quem determina o que é certo e errado, não há acções certas e erradas em si. O que torna uma acção errada é ser contrária à vontade de Deus. O que torna uma acção boa é que cumpre a vontade de Deus.

3 – Segundo a teoria dos mandamentos divinos a única razão porque matar é errado é porque Deus o proibiu. Se Deus não nos tivesse ordenado que não matássemos, matar não seria errado. O mesmo acontece com roubar e mentir. É a vontade de Deus que faz com que certos actos sejam bons ou maus. Tudo o que Deus ordena é bom e tudo o que Deus proíbe é mau. Mas se tudo depende da vontade de Deus e esta é omnipotente podemos concluir que Deus podia ter ordenado que matar, roubar e mentir eram acções correctas. Na verdade, o que o impediria dado que é omnipotente de «mudar as regras do jogo». Como reagiria o defensor da teoria dos mandamentos divinos a este argumento que sugere que as leis de Deus são arbitrárias?

A teoria dos mandamentos divinos vai ao encontro da intuição generalizada de que não faz sentido haver leis morais sem um legislador. O defensor da teoria dos mandamentos divinos responderia à objecção dizendo que um ser omnipotente não pode fazer coisas que são

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logicamente impossíveis. Tal como não pode transformar um número par num número ímpar, Deus não pode legislar acerca do assassinato dizendo ora que é bom ora que é mau. Mas porque não pode Deus fazer isso? Não será porque essa acção é intrinsecamente má? Mas então essa acção é má independentemente da vontade divina o que contraria a teoria dos mandamentos divinos (o que torna uma acção boa é que Deus a ordena, o que torna uma acção má é que Deus a proíbe).

4 – Dá atenção ao seguinte argumento:

Há actos intrinsecamente maus (maus em si mesmos)

Matar pessoas inocentes é um acto intrinsecamente mau.

Logo, o assassínio de inocentes é errado porque Deus o proíbe.

Considera válido este raciocínio? É um argumento com o qual o defensor da teoria dos mandamentos divinos estaria de acordo? Justifique a sua resposta.

Acções intrinsecamente boas ou más são acções cuja maldade ou bondade é independente de qualquer perspectiva, seja ela humana ou divina. Para o defensor da TMD como é Deus quem determina o que é certo e errado, não há acções certas e erradas em si. O que torna uma acção errada é ser contrária à vontade de Deus. O que torna uma acção boa é que cumpre a vontade de Deus.

O raciocínio é inválido porque a conclusão não é justificada pelas premissas. Um acto intrinsecamente mau é aquele que é mau independentemente de Deus o proibir ou não. Daí não podermos concluir que é intrinsecamente mau porque Deus o proíbe. Seria contraditório. O defensor da TMD estaria de acordo com o que diz a conclusão mas não com o modo como a ela se chegou. Consideraria mau este argumento porque está mal construído e se baseia em premissas que julgo falsas.

5 – Leia atentamente o seguinte texto:

«Duas culturas podem partilhar os mesmos princípios morais mas a aplicação desses princípios pode depender das condições específicas de uma dada cultura. A moralidade é culturalmente condicionada mas isso não é suficiente para provar que os princípios morais são todos dependentes de tradições culturais. Cada cultura tem um conceito de assassínio, distinguindo-o de execução, matar na guerra e outros «homicídios justificáveis». A noção de incesto e outras regulações do comportamento sexual, os conceitos de restituição e reciprocidade, de obrigações mútuas entre pais e filhos, estes e outros conceitos são universais. Além disso, embora possa parecer que o conflito entre juízos morais se baseia no conflito entre princípios morais opostos, a diferença pode residir em diferentes crenças factuais. Por exemplo, em muitas culturas tribais é costume matar os próprios pais quando estes já não conseguem assegurar a sua própria subsistência e se encontram em estado de grande debilidade. Esta prática não só é radicalmente diferente da nossa como podemos julgá-la moralmente repugnante. Mas será que estas tribos diferem assim tanto de nós no plano moral? Surpreendentemente a resposta é não porque a diferença está não nos princípios morais mas sim nas crenças factuais. Estes povos matam os seus pais idosos porque acreditam que a condição física do corpo no momento da morte será a condição da pessoa numa vida depois da morte. Dada esta crença é importante apressar a morte a partir do momento em que o corpo começa a mostrar evidentes sinais de decadência de modo a que a vida depois da morte não seja degradante e dolorosa. Se os filhos não fazem isso aos pais não estão a comportar-se

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como é devido, estão a ser gravemente negligentes. Em outras culturas como as dos esquimós Inuit a dura luta pela sobrevivência num ambiente muito hostil determina prioridades que em abstracto julgaríamos moralmente repugnantes: cuidar e proteger as crianças mais velhas em detrimento dos recém-nascidos. A moral da história é que estas culturas tem basicamente os mesmos princípios morais que nós: 1) honra os teus pais, b)protege as crianças e c) promove o bem-estar global da sociedade. Contudo, a aplicação destes princípios é diferente da nossa porque têm diferentes crenças factuais acerca da morte e porque o ambiente físico em que vivem é radicalmente diferente»

c) Que tese defende o texto.

Defende a tese de que as diferenças morais entre as diversas culturas humanas tem a ver não com os princípios morais básicos mas com as crenças factuais dessas culturas. O que varia de uma cultura para outra é a aplicação dos princípios, não necessariamente os próprios princípios.

d) Que argumento utiliza para defendê-la?

Argumenta que não podemos julgar as práticas morais de modo abstracto e através de uma série de exemplos mostra que devemos articular os princípios morais com as crenças factuais e as necessidades de adaptação ao meio.

6 – Em 1964, o antropólogo Collin Turnbull descobriu uma tribo que vivia isolada no norte do Uganda em condições ambientais extremamente duras. A fome era uma ameaça frequente. Turnbull verificou que nesses momentos em que a comida escasseava, os pais guardavam a comida para si e escondiam-nas dos filhos. Verificou também que nessa tribo (Ik) as crianças tinham de desembaraçar-se sozinhas a partir dos 3 anos para obterem alimento. Aprendiam então a roubar comida muitas vezes extraindo-a da boca dos mais idosos e fracos. A honestidade era desprezada como tolice e a mentira inteligente e eficaz era louvada. Segundo Turnbull, a sociedade dos Ik parecia num estado de permanente colapso cultural em virtudes destes princípios morais.

Considera que esta descrição constitui uma forte objecção ao que James Rachels defendeu, isto é, que há algumas normas morais universais como não mentir, não matar e proteger as crianças?

Actividade 10

1 – O que distingue o egoísmo ético do egoísmo psicológico?

O egoísmo ético é uma teoria normativa. O egoísmo psicológico é uma teoria descritiva. O egoísmo ético é uma teoria normativa de tipo consequencialista segundo a qual todos nós em todas as nossas acções devemos fazer o que serve os nossos interesses. Cada um de nós tem a obrigação moral de pensar que os seus interesses têm prioridade sobre os interesses dos outros. A teoria que afirma sermos todos egoístas tem o nome de egoísmo psicológico ou

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descritivo. A teoria que defende que devemos agir só tendo em conta os nossos próprios interesses tem o nome de egoísmo ético.

2 – É correcto dizer que o egoísta ético se baseia no princípio seguinte: «Todas as pessoas devem agir em função dos meus interesses». Justifique a sua resposta.

Não. O egoísta ético baseia-se no princípio seguinte: «Todas as pessoas devem agir em função dos seus interesses».

3 - Relembre o caso de Kitty Genovese. Que avaliação moral pensa que um egoísta ético faria do comportamento dos vizinhos que assistiram ao seu assassínio? Justifique.

4 – É correcto afirmar que o egoísta ético nunca pensa genuinamente em ajudar os outros ou em evitar prejudicá-los? Justifique a sua resposta.

Para o egoísmo ético cada um de nós tem a obrigação moral de promover o seu próprio interesse. Esta teoria rejeita que sacrifiquemos o nosso próprio bem-estar para ajudar os outros e que os outros sacrifiquem o seu bem-estar para nos ajudar a nós. Embora possamos simpatizar com actos altruístas - especialmente com os que nos beneficiam – eles não constituem uma obrigação moral. Os interesses dos outros (o seu bem-estar, a sua saúde, a preservação da sua vida) não têm importância a não ser que o meu próprio interesse seja afectado ao prejudicá-los ou ao beneficiá-los. A única coisa moralmente relevante quando se trata de decidir como devo agir é se o que farei vai ou não satisfazer o meu interesse pessoal.

5 – Durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados conseguiram descodificar o código nazi e o British War Office ficou a saber entre outras coisas que os nazis sabiam a verdadeira lealdade de duas espias que trabalhavam para os Aliados. O BWO sabia que se as espias regressassem em nova missão à Europa nazi seriam muito provavelmente capturadas, torturadas e mortas. Contudo, se não voltassem, os nazis deduziriam que o seu código teria sido descoberto e alterá-lo-iam. Os Aliados perderiam a maior fonte de informação acerca dos planos de guerra nazis pelo menos durante mais dois anos. O BWO e os Aliados decidiram enviar as espias de volta para nova missão na Europa nazi perfeitamente conscientes de que os nazis conheciam a sua identidade, ou seja, que elas faziam contra – espionagem. Nunca mais tiveram notícias das duas mulheres.

O interesse do British War Office era manter o código intacto. O interesse das espias era o de preservarem as suas vidas. Que interesses deviam prevalecer?

Será que o egoísta ético tem resposta para este conflito de interesses? Porquê?

Como responderia o utilitarista a este problema? E um partidário da ética kantiana? Qual seria a melhor resposta dadas as circunstâncias? Justifique

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6 – Como pensa que o egoísta ético avaliaria as seguintes acções?

a) Recuso copiar durante um exame mesmo que o possa fazer sem ser descoberto.

b) Um empresário aceita diminuir os seus lucros aumentando o ordenado dos seus empregados mais produtivos.

c) Alguém salva a vida da pessoa que ama arriscando a sua.

Actividade 11

1 - Além da universalidade (são direitos de todos os homens e devem ser respeitados em todos e por todos os homens), os direitos humanos apresentam outras características essenciais:

a)São imprescritíveis;

b)São inalienáveis;

c)São irrenunciáveis.

Tente explicar o que significam estas características.

R:

a) São inalienáveis: não podem ser transferidos para um outro titular (autoridade, poder político, indivíduo) porque isso significaria que o homem se anularia como pessoa, alguém seria a pessoa que ele é.

b) São irrenunciáveis: o sujeito desses direitos não pode renunciar a ser o seu titular devendo assumir essa condição mesmo que, porventura, não o deseje. Não se admite, por exemplo, a renúncia à integridade física, ao direito à educação, a condições dignas de trabalho. Se alguém consente que outrem o lesione, ou mutile quem mutila e lesiona comete um delito contra os direitos humanos. A sociedade, em nome de um direito irrenunciável como o direito à vida — direito básico —, pode exigir que cada indivíduo não arrisque gratuitamente a sua vida. Daí o dever legal e moral de o condutor usar cinto de segurança.

Imprescritíveis - não se adquirem nem se perdem com o decorrer do tempo. Todos sabemos que, quando, por exemplo, alguém provoca danos no nosso automóvel, temos um determinado prazo para reclamar o nosso direito à indemnização ou à compensação. O mesmo não acontece no caso dos "crimes contra a humanidade" (genocídios, massacres). Passe o tempo que passar esse crime não prescreve. Foi o caso dos criminosos de guerra nazis acusados de extermínio de milhões de seres humanos mesmo dezenas de anos depois de cometidas essas enormes e irreparáveis atrocidades. Dizem-se "crimes contra a humanidade" porque não são motivados pelo ódio a este ou àquele indivíduo (crimes particulares) mas atingem a humanidade e violam a dignidade humana de forma abertamente consciente ao visarem exterminar este ou aquele grupo étnico, este ou aquele povo.

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2 - O que significa dizer que os homens nascem iguais em dignidade e direitos?

a)Que nascem iguais, mas se tornam desiguais ao longo da vida;

b)Que durante toda a vida são iguais em dignidade e direitos pelo mero facto de terem nascido;

c)Que durante toda a vida são iguais em dignidade e direitos por terem nascido como membros da espécie humana.

R: c)

Actividade 12

1 – Pense nos seguintes argumentos e tente verificar se têm algum ponto fraco:

a) “Podemos argumentar que, não sendo seres humanos, os animais não têm direitos. Só é apropriado falar de direitos de seres dotados de auto-consciência, que pertencem a uma comunidade moral, que podem exprimir os seus desejos e ser responsabilizados pelas suas acções. Os direitos implicam responsabilidades. Por exemplo, os seres humanos têm o direito de não serem mortos. Mas para desfrutar dos benefícios que esse direito confere temos de aceitar a responsabilidade de não matar os outros. O direito à vida é, em certa medida, inseparável do dever de não matar. Os animais são incapazes de cumprir tal dever. Não tem qualquer sentido acusar um leão por matar a sua presa. Também não faz sentido criticar e punir um ser humano por infligir sofrimento a um animal”.

A primeira frase nada mais é do que a expressão de um preconceito - o especismo (discriminação moral e jurídica fundada na espécie). Dizer que os animais, em virtude da espécie a que pertencem, não têm valor jurídico e moral é errado e nem merece o nome de argumento. Não há qualquer ligação lógica entre dizer que o ser humano tem certos direitos porque é humano e dizer que os animais não têm direitos porque são animais. O argumento de que não há direitos sem a compreensão do que são os deveres e o seu cumprimento torna difícil aceitar que seres humanos com deficiência mental profunda tenham mais direitos do que os animais. E as crianças de tenra idade compreendem o "contrato" em que consistem as regras sociais (um sistema de estatutos - direitos e papéis - deveres). A frase final não deriva logicamente de nada do que foi dito. Mesmo que não reconheçamos direitos aos animais podemos legitimamente censurar a crueldade contra os animais quando esta é desnecessária e praticada por diversão.

b) «Só os seres humanos têm direitos. O conceito de direito é essencialmente humano, é uma criação da nossa espécie e por isso só é aplicável às relações entre seres humanos».

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As ideias e conceitos que os seres humanos criam (como moral, direitos, deveres, responsabilidades) só têm aplicação legítima dentro da comunidade humana? Basta pensar em conceitos como átomo, gene, ADN, espécie e muitos outros para vermos que as condições da sua formação só poderiam encontrar-se no interior da comunidade humana mas não é por isso que não se aplicam a outras espécies e a outros seres.

c) “Nenhum animal está em condições de compreender ou de assimilar um sistema ético - jurídico (um sistema de direitos e deveres). Com efeito, os animais são incapazes de respeitar os direitos dos outros animais”.

O facto de os animais não poderem respeitar os direitos dos seus congéneres não é razão para nós não o devermos fazer.Com efeito, são as crianças de tenra idade capazes de cumprir certos deveres? É claro que não. Ora não é por essa razão que lhes retiramos todo e qualquer direito.

d) “Devemos atribuir direitos aos chimpanzés porque aproximadamente 98% do nosso código genético, do nosso ADN, é idêntico ao dos chimpanzés. Eles são quase humanos.»

Os direitos humanos não têm um fundamento biológico porque derivam de uma existência moral. Se invertermos a analogia, poderemos ter como resultado a admissão de que o homem, sendo animal, se pode comportar como outros animais, isto é, matar e consumir outros animais.

e) “Quem adere ao vegetarianismo fá-lo porque é defensor dos direitos dos animais”.

Se é defensor dos direitos dos animais, então é vegetariano.

É vegetariano.

Logo, é defensor dos direitos dos animais.

A conclusão não deriva necessariamente das premissas. Pode ser-se vegetariano por questões de saúde e nada mais.

2 – Lê atentamente o seguinte texto:

Os animais não têm consciência de si e existem apenas como meio para um fim. Esse fim é o homem. Podemos perguntar «Por que razão existem os animais?». Mas perguntar «Por que razão existe o homem?» é fazer uma pergunta sem sentido. Os nossos deveres em relação aos animais são apenas deveres indirectos em relação à humanidade […].

Se um homem abater o seu cão por este já não ser capaz de o servir, ele não infringe o seu dever em relação ao cão, pois o cão não pode julgar, mas o seu acto é desumano e fere em si essa humanidade que ele deve ter em relação aos seres humanos. Para não asfixiar os seus sentimentos humanos, tem de praticar a generosidade para com os animais, pois aquele que é cruel para os animais depressa se torna duro também na maneira como lida com os homens.

Immanuel Kant, Lições de Ética, pp. 239-240

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1.Qual a tese do autor?

O autor afirma que os animais não têm direitos morais.

2.Em que se baseia Kant para negar que tenhamos obrigações directas a respeito dos animais?

Porque o ser humano é um fim em si mesmo, não existe como meio para o que quer que seja. Somente acerca dos seres que têm unicamente valor instrumental e não possuem valor inerente – caso dos animais, segundo Kant - perguntamos "Por que razões existem?". Podemos traduzir esta pergunta dos seguintes modos: "Para que existem?" ou "Para que servem?".

Segundo Kant, os animais não têm consciência de si nem são capazes de pensar ("o cão não pode julgar"). Esta inferioridade justifica que não tenhamos deveres directos a seu respeito.

Não são agentes morais e o eventual sofrimento que lhes inflijamos pode ser desumano e cruel, mas nunca imoral.

No tratamento dos animais não estão em jogo os interesses destes, mas a imagem que os seres humanos dão de si próprios. Se os tratarmos com generosidade e bons sentimentos, exibimos a nossa humanidade aos outros - no fundo, manifestamos a nossa superioridade moral. Mas pode perguntar-se se a generosidade a respeito dos animais não é, referindo-nos ao cão, um comportamento determinado pela consideração dos direitos do dono do animal.

3 – Leia atentamente o texto:

Julgo que racionalmente a perspectiva dos direitos é a teoria moral mais satisfatória. As tentativas de limitar o seu âmbito aos seres humanos só podem revelar-se racionalmente insatisfatórias. É verdade que os animais não têm muitas das capacidades que os seres humanos possuem. Não sabem ler, fazer matemática avançada, construir uma estante ou fazer baba ghanoush. Mas muitos seres humanos também não, e ainda assim não dizemos (nem devemos dizer) que eles (esses humanos) têm por isso menos valor intrínseco, menos direito a ser tratados com respeito que os outros. São as semelhanças entre os seres humanos (entre as pessoas que estão a ler isto, por exemplo), não as nossas diferenças, que têm esse valor mais clara e incontroversamente, que interessam mais. E a semelhança básica verdadeiramente crucial é apenas esta: cada um de nós é um sujeito de uma vida com experiências, uma criatura consciente com um bem-estar individual que tem importância para si mesmo, seja qual for a sua utilidade para os outros. Queremos e preferimos coisas, sentimos e acreditamos em coisas, recordamos e esperamos coisas. E todas estas dimensões da nossa vida – incluindo o nosso prazer e dor, o nosso deleite e sofrimento, a nossa satisfação e frustração, a nossa existência prolongada ou morte precoce – afectam a qualidade da nossa vida tal como a vivemos e experimentamos como indivíduos. E o mesmo se pode dizer daqueles animais que nos interessam (aqueles que são comidos e caem em armadilhas, por exemplo) – também eles têm de ser vistos como sujeitos de uma vida com experiências, como sujeitos com valor intrínseco.

Há quem resista à ideia de que os animais têm valor intrínseco. «Só os seres humanos têm esse tipo de valor», professam. Como se poderá defender esta perspectiva restritiva?

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Poderemos dizer que só os seres humanos têm a razão, a inteligência ou a autonomia necessária? Mas há muitos, muitos seres humanos que não satisfazem estes padrões, e ainda assim entende-se razoavelmente que têm valor independentemente da sua utilidade para os outros. Poderemos defender que só os seres humanos pertencem à espécie apropriada, à espécie Homo sapiens? Isso é especismo crasso.

[…] Bem, talvez alguém diga que os animais têm algum valor intrínseco, só que menos do que nós. Uma vez mais, no entanto, pode mostrar-se que as tentativas de defender esta perspectiva carecem de justificação racional. Qual poderá ser o fundamento de termos mais valor intrínseco que os animais? A sua falta de razão, autonomia ou inteligência? Só se estivermos dispostos a fazer o mesmo juízo sobre os seres humanos que são similarmente deficientes. Mas não é verdade que tais seres humanos – as crianças com atrasos, por exemplo, ou os doentes mentais – têm menos valor intrínseco do que tu ou eu. Assim, também não podemos defender racionalmente a perspectiva de que os animais, que tal como eles são sujeitos de uma vida com experiências, têm menos valor intrínseco. Todos os que têm valor intrínseco têm-no de igual maneira, independentemente de serem ou não animais humanos.

[…] Tendo já apresentado a perspectiva dos direitos em traços largos, posso agora dizer por que razão as suas implicações para a pecuária e a ciência, entre outros campos, são claras e intransigentes. No caso do uso de animais na ciência, a perspectiva dos direitos é categoricamente abolicionista. Os animais de laboratório não são os nossos provadores, nós não somos os seus reis. Como os animais são tratados rotineira e sistematicamente como se o seu valor pudesse ser reduzido à sua utilidade para os outros, eles são tratados rotineira e sistematicamente com falta de respeito e assim os seus direitos são rotineira e sistematicamente violados. Isto sucede tanto quando são usados em investigações triviais, repetitivas, desnecessárias ou insensatas como em estudos que prometem realmente trazer benefícios para os seres humanos.

[…] Quanto à pecuária, a perspectiva dos direitos adopta uma posição abolicionista semelhante. Aqui o mal fundamental não é os animais estarem isolados ou presos em condições angustiantes, nem o facto de a sua dor e sofrimento, as suas necessidades e preferências, serem ignorados ou menosprezados. Todas estas coisas são más, obviamente, mas não são o mal fundamental. São sintomas e efeitos de um mal mais profundo e sistemático que permite que esses animais sejam vistos e tratados como se não tivessem valor independente, como se fossem um dos nossos recursos — na verdade, um recurso renovável. Dar a estes animais mais espaço, ambientes mais naturais ou mais companheiros não corrige o mal fundamental — tal como dar aos animais de laboratório mais anestesias ou jaulas maiores e mais limpas não corrigiria o mal fundamental no seu caso.

Só a dissolução total da pecuária industrial acabará com esse mal. E, por razões semelhantes que não vou desenvolver aqui, a ética exige nada menos que a eliminação total da caça para fins comerciais e desportivos. Assim, tal como disse, as implicações da perspectiva dos direitos são claras e intransigentes.

Tom Regan, «O Argumento a Favor dos Direitos dos Animais», 1984, pp. 111-114

(Adaptado)

Page 123: PROBLEMAS DE ÉTICA

a) O que são para Regan os direitos dos animais?

Por direitos dos animais entende Regan o direito de um animal a ser tratado com o respeito devido a algo que tem valor inerente ou intrínseco.

b) Na perspectiva dos direitos (e não dos interesses), há animais mais iguais do que outros?

Se um animal tem valor inerente – não vale somente pela sua utilidade -, isso significa que esse valor é incomparável, não diminui nem aumenta em comparação com outros seres dotados de valor intrínseco. Logo, não é legítimo que animais (humanos e não humanos) portadores de igual valor inerentes sejam moralmente desiguais. A vida de um ser dotado de valor inerente merece tanto respeito como a vida de qualquer outro ser em virtude disso, possuidor de direitos.

c) Tente reconstruir o raciocínio que conduz Regan a afirmar que os humanos e os animais têm igual estatuto moral.

Só os indivíduos titulares de uma vida (sujeitos de uma vida e não menos objectos) têm valor inerente.

Só os seres dotados de valor inerente (próprio e não atribuído por outros) têm direitos.

Não há nenhum ser dotado de valor inerente que tenha mais valor do que outro ser com esse estatuto.

Logo, todos os seres dotados de valor inerente têm iguais direitos (igualitarismo radical).

d) Que conclusão deriva necessariamente do princípio da igualdade moral de tudo o que tem valor intrínseco?

Deriva a abolição da caça, do lugar dos animais na nossa cadeia alimentar, da tourada, do circo. Pertencendo a uma mesma comunidade moral, os animais não humanos têm o mesmo estatuto moral do que os outros e, por isso, não podem legitimamente ser discriminados.

a) Está de acordo com a doutrina de Regan. Porquê?

A tese de que seres humanos e animais dotados de valor intrínseco têm O iguais direitos, isto é, igual estatuto moral, é problemática porque não nos dá um critério para decidir em caso de conflito de direitos e de interesses. Quem devo salvar? O meu bebé ou o meu gato?

Se disser que é o meu bebé, a decisão parece óbvia e indiscutível. Mas só no plano sentimental. No plano moral, ambos têm igual direito à vida. Então, o que concluir? Que provavelmente somos iguais (nós e os animais), mas nalguns casos alguns animais são mais iguais do que outros. Se os animais têm direito à vida e esse direito é absoluto, o que dizer a povos como os Esquimós, que vivem da caça às focas?

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4 – Leia o texto seguinte com atenção e responda às questões:

“Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter esse sofrimento em consideração. […] Se um ser não é capaz de sofrer, ou de experimentar o prazer ou a felicidade, não há nada a ter em conta. É por isso que o limite da capacidade de sofrer ou experimentar prazer ou felicidade é o único limite defensável de preocupação pelos interesses dos outros. Demarcar este limite de acordo com uma característica como a inteligência ou a racionalidade seria demarcá-lo de um modo arbitrário […].

Para a grande maioria dos seres humanos, em particular nas sociedades urbanas industrializadas, a forma mais directa de contacto com membros de outras espécies é à hora das refeições: comemo-los. Ao fazer isso tratamo-los puramente como meios para os nossos fins.

Consideramos a sua vida e o seu bem-estar como estando subordinados ao nosso gosto por um determinado tipo de prato. Digo “gosto” deliberadamente — é puramente uma questão de agradar ao nosso paladar. Comer carne não se pode defender em temos de satisfação de necessidades nutricionais, uma vez que foi estabelecido sem margem para dúvidas que poderíamos satisfazer a nossa necessidade de proteínas e de outros nutrientes essenciais muito mais eficientemente com uma dieta que substituísse a carne animal por soja, ou produtos derivados da soja, e por outros produtos vegetais de alto valor proteico. […]

Não é apenas o acto de matar que indica o que estamos prontos a fazer a outras espécies de modo a satisfazer os nossos gostos. O sofrimento que infligimos aos animais enquanto estão vivos é talvez uma indicação ainda mais clara do nosso “especismo” (speciesism) do que o facto de estarmos preparados para os matar.

De modo a ter carne à mesa a um preço que as pessoas possam pagar, a nossa sociedade tolera métodos de produção de carne que confinam animais em condições impróprias, durante a sua vida.

Os animais são tratados como máquinas que convertem forragem em carne e qualquer inovação que resulte numa “razão de conversão” mais elevada está sujeita a ser adoptada. Tal como uma autoridade no assunto disse: “A crueldade é percebida apenas quando o lucro cessa.” […]

Uma vez que, como disse, estas práticas não têm outra finalidade senão a satisfação dos nossos gostos, a nossa prática de criar e matar outros animais para os comer é um exemplo claro do sacrifício dos interesses mais importantes de outros seres para satisfazer interesses triviais nossos. Para evitar o “especismo” temos de acabar com esta prática e cada um de nós tem uma obrigação moral de parar de apoiar esta prática. O nosso hábito é todo o apoio de que a indústria de carnes precisa.

A decisão de deixar de lhe dar esse apoio pode ser difícil, mas não é mais difícil do que teria sido para um branco do Sul ir contra as tradições da sua sociedade e libertar os seus escravos:

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se não modificarmos os nossos hábitos dietéticos, como poderemos censurar aqueles donos de escravos que não queriam modificar o seu modo de vida? […]»

Peter Singer, All animals are equal, in Applied Ethics, pp. 215-225

(Adaptado)

– Qual o tema do texto?

O tema do texto é o de saber se temos obrigações morais a respeito dos animais.

– Que tese defende o autor?

O autor defende que temos a obrigação moral de não causar sofrimento aos animais.

– Que argumentos utiliza?

O critério fundamental para decidir se os animais têm direitos é terem ou não capacidade de sofrer. Como é inegável que os animais são capazes de experimentar prazer e dor, não podemos ser indiferentes ao sell' bem-estar e tratá-los sem qualquer consideração moral. Os animais têm o direito de não sofrer. O que há de comum entre os animais e nós é a capacidade de sofrer. Tal como nós, eles têm direito a não sofrer. Um direito que negamos às outras espécies e aos mais fracos não é um direito, é um simples privilégio, uma instituição arbitrária.

– Avalia criticamente as ideias expostas.

ACTIVIDADE 14

1 – Avalie o seguinte argumento contra o aborto:

O feto, mesmo que se admita que é simplesmente uma pessoa em potência, é uma pessoa em formação, em desenvolvimento. Matar a semente será muito diferente de matar o fruto, a flor ou a árvore? O aborto é uma violação dos direitos da pessoa humana, um crime.

Eventual objecção: Não faz sentido falar de crime contra potencialidades. A masturbação e a contracepção que eliminam potencialidades seriam também crimes. Se além disso o feto tem um património genético (um potencial genético) temos de reconhecer que a pessoa humana não se reduz ao seu património genético.

10– O que pensa do seguinte argumento?

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O aborto é moralmente condenável porque, em última análise, consiste to assassínio de um ser humano. O feto é um ser humano porque o ovo fecundado tem o padrão dos cromossomas humanos, é um ser humano em desenvolvimento. Além disso, embora unidas durante o processo de gestação, a vida do feto é distinta da vida da mãe, não e um mero apêndice. Desde o momento da fecundação do óvulo inaugura-se uma vida que não é propriamente nem da mãe nem do pai nem dos eventuais legisladores.

Eventual objecção: Considerar o aborto um assassínio é um absurdo porque o feto não é um ser humano (ou pelo menos a questão de o feto ser ou não um ser humano não pode ser decidida por ninguém). O feto é parte do corpo da mãe ou quando muito um ser vivo separado que, dentro do ventre materno, ainda não atingiu a condição humana. Só a partir dos 3 meses começa a vida humana.

11– Considera bom este argumento?

Todos os seres humanos são iguais no que se refere ao direito à vida e a idade não confere prioridade alguma. Quando há um choque de direitos deveria escolher-se aquele que tem a maior probabilidade de sobreviver. Mas não pode resolver--se uma colisão de direitos dando a morte a uma pessoa inocente.

Eventual objecção: Mesmo que ao feto se reconheça o direito à vida em caso de choque de direitos, os direitos da mãe têm prioridade sobre os do feto. Com efeito, aquela é uma pessoa que exerce a sua inteligência e liberdade tendo responsabilidades para com a sua família e outras pessoas. O feto é uma vida exígua, inconsciente e totalmente dependente. A mãe pode viver sem ele, mas ele não pode viver sem a mãe.

ACTIVIDADE 15

I

«A Natureza como responsabilidade do Homem é certamente uma novidade sobre a qual a teoria ética deve meditar. Que tipo de obrigação é decente ter para com ela? Trata-se simplesmente de prudência a aconselhar-nos que não matemos a galinha dos ovos de oiro ou que não serremos o ramo sobre a qual estamos sentados? Mas este “nós”, que lá está sentado e se arrisca a cair do abismo, quem é? E qual o meu interesse em que se mantenha lá ou caia?

Na medida em que é o destino do Homem na sua dependência relativamente ao estado da Natureza que constitui a última palavra de um interesse moral pela preservação da Natureza, a orientação antropocêntrica de toda a ética clássica continua a existir […]. Mas a nova forma de actuar do Homem não poderia significar que não é somente o ‘interesse’ do Homem que é preciso ter em conta, que o nosso dever se prolonga para lá disso e que o confinamento

Page 127: PROBLEMAS DE ÉTICA

antropocêntrico de todas as éticas anteriores já não é válido? Pelo menos, não é absurdo perguntar se o estado da natureza não humana, a biosfera como totalidade e com as suas partes, doravante submetida ao nosso poder, está confiada à nossa guarda e nos faz um apelo ético, não somente por causa do nosso interesse futuro, mas por si mesma e de direito próprio. Se assim fosse, isso exigiria uma remodelação profunda da nossa concepção dos fundamentos da ética.

Porque significaria que se tem de procurar, não somente o bem do homem, como o bem das coisas extra-humanas, e de se ampliar o reconhecimento de ‘fins em si’ para além da esfera humana, incluindo a preocupação com esta noção do bem do homem […]. A perspectiva científica dominante acerca da Natureza recusa-nos em absoluto o direito teórico de considerar a Natureza como uma coisa digna de respeito, tendo-a reduzido à indiferença do acaso e da necessidade e tendo-a desagregado de qualquer finalidade que seja valorizada. […]

Mesmo que a obrigação a respeito do homem continue ainda a ter um valor absoluto, ela não deixa agora de incluir a natureza como condição da sua própria sobrevivência e como um dos elementos da sua integralidade existencial. Agora vamos mais longe e dizemos que a solidariedade de destino entre o homem e a natureza, solidariedade redescoberta através do perigo, nos faz igualmente redescobrir a dignidade autónoma da natureza e nos exige o respeito pela sua integridade, ultrapassando a perspectiva meramente utilitária.

Um imperativo apropriado à nova maneira de agir humana e do sujeito desse agir poderia enunciar-se assim: ‘Age de tal forma que as consequências da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra’; se fosse dito na negativa, teríamos: ‘Age de tal maneira que as consequências da tua acção não sejam destruidoras para a possibilidade futura de uma tal vida’; ou ainda, simplesmente: ‘Não ponhas em perigo as condições de uma perpetuação indefinida da humanidade na Terra’; ou de novo expresso na positiva; ‘Inclui nas tuas escolhas actuais a integridade futura da humanidade como objeto da tua vontade’.»

H. Jonas, citado por Gilbert Hottois, O Paradigma Bioético,

Edições Salamandra, Lisboa, pp. 123-126 (Adaptado)

1. O que há de inédito na ética proposta por Jonas?

A novidade consiste na ideia de responsabilidade a respeito das gerações futuras. Mas a inovação não fica por aqui. A responsabilidade a respeito das gerações futuras inclui (ou é parte de) uma responsabilidade a respeito da Natureza. Somos responsáveis pela garantia no futuro de presença humana na Natureza e esta é, por isso parte indissociável dessa responsabilidade.

Trata-se de uma "ética em tempos perigosos" porque, dada a ameaça da tecnociência, a presença humana no planeta deixou de ser um dado inquestionável. Aparentemente é o ser humano que está no centro das preocupações

2. Considera indiscutível falar de direitos das gerações futuras?

Page 128: PROBLEMAS DE ÉTICA

É de certo modo estranho falar de direitos de pessoas que ainda não existem. Não seremos simplesmente responsáveis pelas gerações nascentes? Não será a necessidade de assegurar a vida destas gerações suficiente para nos dissuadir de continuar a explorar e maltratar a natureza?

Somos responsáveis pelo que fazemos perante quem? Perante os nossos contemporâneos. A responsabilidade supõe que existam outras pessoas, possuidoras de direi tos (que são dignas de protecção - as crianças e as deficientes - ou que podem defender os seus direitos). Assumimos compromissos, fazemos promessas, mas perante quem respondemos pelos nossos actos e omissões? Perante os nossos contemporâneos, as gerações de pessoas actuais. As gerações futuras são virtuais. Terão representantes contemporâneos dos seus "direitos"?

Há dois tipos de responsabilidade: a responsabilidade "natural" e a responsabilidade contratual. A primeira é, por assim dizer, uma instituição natural e não um contrate sendo exemplificada pelo dever de os pais protegerem a vida dos filhos que geraram A segunda é instituída por um contrato, por um acordo que define e estabelece par, cada parte os respectivos direitos e deveres. Será que se pode aplicar às gerações futuras qualquer destes tipos de responsabilidade? Estamos obrigados a protegê-las Está fora de causa a responsabilidade contratual porque é impossível fixar os deveres das gerações futuras (a eventual responsabilidade pelas gerações futuras seria uma responsabilidade não recíproca). E a responsabilidade natural? Perante recém-nascidos frágeis e dependentes sentimos a obrigação de os proteger e deles cuidar: essa obrigação é-nos igualmente imposta sem contrapartida porque há direitos das crianças. Podemos sentir o dever de ter em conta as gerações futuras mas poderá legitimamente ser-me imposta alguma obrigação em seu nome? Não dependerão as gerações futuras simplesmente dos nossos bons sentimentos, da nossa boa vontade? A afirmação de um "direito ético autónomo da natureza" por Jonas parece ser uma saída para estes problemas. Se respeitarmos a natureza, respeitamos indirectamente o direito à vida das gerações vindouras. Tratar-se-ia de "responsabilidade ecológica' no sentido próprio da palavra: há um dever prioritário (proteger e salvaguardar a biosfera) e uma consequência que do seu cumprimento pode decorrer (a salvaguarda das gerações humanas futuras entendidas mais como representantes de uma espécie natural do que da espécie humana).

II

A NATUREZA TEM DIREITOS?

«O valor de uma coisa pode residir nela (valor intrínseco) ou na utilidade que tem para algo exterior a si mesmo (valor instrumental). Alguns ambientalistas partidários da “Ecologia Profunda” afirmam que a Natureza tem um valor próprio, vale independentemente da sua utilidade para a humanidade. A Ecologia Profunda defende o respeito pelo ambiente, não porque os seres humanos dependam da natureza, mas porque a natureza e tudo o que a

Page 129: PROBLEMAS DE ÉTICA

compõe têm valor intrínseco. Rejeita o antropocentrismo, a ideia de que o homem está no centro do Universo cumprindo o destino de dominar e controlar a Natureza. Tal domínio tem-se traduzido na exploração desenfreada da vida e dos recursos naturais causando desequilíbrios e alterações tão graves que se arrisca a ser autodestrutivo. Tão graves têm sido os danos infligidos aos ecossistemas e tão criminosa a extinção de espécies que, argumentam os ecologistas radicais, a sobrevivência da natureza exigirá a redução significante da população humana, a rejeição da sociedade e um consumo mínimo dos escassos recursos naturais.

Na sua perspectiva uma espécie natural deve ser protegida por ter valor em si e não por ser útil. Toda a vida na Terra tem um valor intrínseco, deve ser respeitada pelo que é e não por servir o interesse de alguém. Esta perspectiva levanta contudo um problema muito óbvio.

Se adoptarmos o ponto de vista da Ecologia Profunda, então temos de atribuir direitos absolutos ao ambiente e a todos os seus componentes. Mas tal como dizer que a natureza tem valor intrínseco levanta problemas, a atribuição de direitos absolutos à natureza é uma tese muito difícil de defender. Há pessoas que encaram seriamente a ideia de direito absoluto da natureza, mas inevitavelmente esse direito será infringido muitas vezes ao longo da nossa vida.

Para muitas pessoas a solução consistiria em considerar que os direitos da natureza são relativos e não absolutos. Isto significa que os direitos podem ser infringidos em certas circunstâncias. O melhor exemplo desta ideia de direitos relativos é a guerra. Todas as sociedades incluem nas suas leis a proibição de matar e muitas consideram-no o crime mais grave (punindo-a com a pena de morte). Contudo, durante uma guerra damos aos combatentes o direito de infringir esta regra de maneira a que possam “matar o inimigo” e proteger-nos de eventuais ameaças. Neste contexto é claro que a vida humana não é pensada como um valor absoluto, mas sim relativo – um direito que pode ser suspenso se a situação o exigir. No que respeita ao ambiente, esta concepção não é, contudo, isenta de problemas. Quem decide que direitos devem ser suspensos? E com que fundamento? Há quem admita que uma bela floresta tem “direito à vida” — mas e se essa bela floresta for um obstáculo na via do “progresso”?»

Joe Walker Environmental Ethics, Hodder and Stoughton,

Londres, 2000, pp. 18-20 (Adaptado)

1 – Que problema óbvio coloca a afirmação do valor intrínseco da natureza?

É suficiente um simples exemplo: para assegurar a nossa sobrevivência temos de comer outros seres vivos. Assim sendo, violamos constantemente o valor intrínseco da Natureza. Tudo o que é natural tem um valor intrínseco? Os vírus, as bactérias também o têm?

2 – Afirmar que a natureza tem direitos absolutos é uma tese muito difícil de defender. Porquê?

Se admitirmos que todas as espécies naturais têm direitos absolutos, então qual seria a nossa fonte de alimentação? Teríamos de procurar, se possível, novos alimentos.

Page 130: PROBLEMAS DE ÉTICA

Mas, em geral, os seres vivos não se alimentam de outros seres vivos? Por que razãoteremos de ser excepção?

3 – Falar da natureza como sujeito de direitos é racionalmente justificável?

Parece difícil de admitir uma tal concepção. Com efeito, todo o sujeito de direitos* está obrigado a cumprir deveres. Entender a natureza como parceiro jurídico do ser humano é uma forma antropomórfica de a ela nos referirmos e corresponde a uma extensão indevida do conceito de sujeito jurídico. A natureza pode, quando muito, ser objecto de direitos (ser protegida por uma legislação que ordena aos seres humanos não degradarem, no seu próprio interesse, o mundo em que habitam), ou seja, os nossos deveres em relação à natureza são simplesmente deveres indirectos em relação à nossa espécie.

* Excepção feita, por nós, às crianças e aos deficientes profundos.

[1] Ao perguntarmos pela intenção com que um indivíduo age (o qual é o critério fundamental em Kant para averiguar a moralidade de uma acção), estamos a perguntar ao indivíduo por que razão ele agiu daquela maneira, quais os motivos que o conduziram a agir desse modo, no fundo, qual a máxima da sua acção (princípio que orienta as nossas acções).

[2] RACHELS, James, Elementos de Filosofia Moral, trad. F. J. Azevedo Gonçalves, Lisboa, Gradiva, Filosofia aberta, nº 13, 2004, pp. 183-184.

Publicada por LUIS RODRIGUES à(s) 04:07

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