prisoes metafisicas

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Revista Aproximação – 1º semestre de 2010 – Nº. 3 http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao 37 A NOÇÃO DE PRISÃO METAFÍSICA DE HUXLEY E O PRISIONEIRO COMO VISTO EM VIGIAR E PUNIR NA OBRA DE FRANZ KAFKA Thatiana Victoria dos Santos Machado Ferreira de Moraes Graduanda em Filosofia da UFRJ “I know I'm dead on the surface/ But I'm screaming underneath/ Stuck on the end of this ball and chain/ And I'm on my way back down again.” Guy Berryman, Amsterdam. Resumo: Abordarei nesse trabalho a noção de “prisões metafísicas”, como vista por Aldous Huxley em seu artigo Piranesi’s Prison, e a forma como este autor conecta tal noção a obra literária de Franz Kafka. Farei uma breve análise dos contos Um artista da fome e Um relatório para a Academia, entre outros, para iluminar de que forma a “prisão metafísica” e o sentimento do aprisionamento aparece em Kafka. Conectarei também tais obras a prisão e a gênese do aprisionamento como vistas em Vigiar e Punir, de Michel Focault. Palavras-chave: Aprisionamento. Foucault. Kafka. Introdução Durante a realização de um trabalho a respeito das gravuras do artista italiano Giovanni Baptista Piranesi 1 , entrei em contato com um dos artigos do conhecido escritor Aldous Huxley 2 , denominado Piranesi’s Prisons 3 , de 1949. Neste artigo, o escritor trata da série de gravuras Carceri, de Piranesi, e as relaciona a obras literárias, que nem sempre possuem uma ligação direta e aparente com o tema presídio. O autor escolhe esta abordagem para melhor explicitar aquilo que ele chama de prisão 1 Giovanni Baptista Piranesi (1720, Moiano de Mestre – 1778, Roma): arquiteto italiano, formou-se em Cenografia, e se dedicou a Arqueologia, design de interiores e mobiliário, mas o que o tornou notável foi a produção de gravuras. Veio a produzir cerca de mil pranchas durante 40 anos, entre elas a obra Carceri. 2 Huxley, nascido em 1894, era um novelista e crítico inglês, e veio a falecer no ano de 1963. Foi autor de romances, peças e poemas, além de ensaios em diversas áreas. Seu livro “Admirável Mundo Novo”, romance que aborda a sociedade do futuro através de um olhar crítico, é considerado sua obra-prima. 3 HUXLEY, A. Piranesi’s Carceri d’Invenzione. Londres: Trianon Press, 1949.

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Revista Aproximação – 1º semestre de 2010 – Nº. 3

http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao 37

A NOÇÃO DE PRISÃO METAFÍSICA DE HUXLEY E O PRISIONEIRO COMO VISTO EM VIGIAR E PUNIR NA OBRA DE

FRANZ KAFKA

Thatiana Victoria dos Santos Machado Ferreira de Moraes

Graduanda em Filosofia da UFRJ

“I know I'm dead on the surface/ But I'm screaming underneath/ Stuck on the end of this ball and chain/ And I'm on my way back down again.” Guy Berryman, Amsterdam.

Resumo: Abordarei nesse trabalho a noção de “prisões metafísicas”, como vista por Aldous Huxley em seu artigo Piranesi’s Prison, e a forma como este autor conecta tal noção a obra literária de Franz Kafka. Farei uma breve análise dos contos Um artista da fome e Um relatório para a Academia, entre outros, para iluminar de que forma a “prisão metafísica” e o sentimento do aprisionamento aparece em Kafka. Conectarei também tais obras a prisão e a gênese do aprisionamento como vistas em Vigiar e Punir, de Michel Focault.

Palavras-chave: Aprisionamento. Foucault. Kafka.

Introdução

Durante a realização de um trabalho a respeito das gravuras do artista italiano

Giovanni Baptista Piranesi1, entrei em contato com um dos artigos do conhecido

escritor Aldous Huxley2, denominado Piranesi’s Prisons3, de 1949. Neste artigo, o

escritor trata da série de gravuras Carceri, de Piranesi, e as relaciona a obras literárias,

que nem sempre possuem uma ligação direta e aparente com o tema presídio. O autor

escolhe esta abordagem para melhor explicitar aquilo que ele chama de prisão

1 Giovanni Baptista Piranesi (1720, Moiano de Mestre – 1778, Roma): arquiteto italiano, formou-se em Cenografia, e se dedicou a Arqueologia, design de interiores e mobiliário, mas o que o tornou notável foi a produção de gravuras. Veio a produzir cerca de mil pranchas durante 40 anos, entre elas a obra Carceri.2 Huxley, nascido em 1894, era um novelista e crítico inglês, e veio a falecer no ano de 1963. Foi autor de romances, peças e poemas, além de ensaios em diversas áreas. Seu livro “Admirável Mundo Novo”, romance que aborda a sociedade do futuro através de um olhar crítico, é considerado sua obra-prima.3 HUXLEY, A. Piranesi’s Carceri d’Invenzione. Londres: Trianon Press, 1949.

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metafísica. Um dos autores que Huxley utiliza para iluminar esta noção é o escritor

Franz Kafka.

Fazendo um breve resumo do que é a série de gravuras Carceri, para melhor

trazer a tona o conteúdo do artigo, é possível dizer que Piranesi traça, através de uma

obra de escuridão e opressão, calabouços e prisões fantásticas, abordando como nunca

antes nas artes plásticas o tema presídio. Segundo a visão de Huxley, as dezesseis

pranchas do arquiteto representam o aprisionamento tal como visto pelos olhos do

aprisionado, a tortura do condenado.

Diz Huxley a respeito das pranchas de Piranesi:

Os ocupantes de Carceri de Piranesi são os espectadores sem esperança da pompa dos mundos, da dor do nascimento – essa magnitude sem significado, essa miséria sem fim e além do poder dos homens de entender ou suportar. (HUXLEY, 1949, tradução do autor)4.

4 “The occupants of Piranesi’s Prisons are the hopeless spectators of this pomp of worlds, this pain of birth—this magnificence without meaning, this incomprehensible misery without end and beyond the power of man to understand or to bear.”

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Figura 1: Carceri, de Piranesi – Prancha III – A Torre Circular, 1761

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Entretanto, ao se debruçar sobre o presídio e sobre o aprisionamento que está

representado pela criação artística de Piranesi, Huxley nos dá mais do que apenas a sua

análise a respeito da série do artista italiano: ele nos permite refletir sobre o

aprisionamento que está para além da corrente, da algema, e da cela – o aprisionamento

que existe no homem, que existe na alma acorrentada e que escapa à nossa

compreensão.

Através desta reflexão, podemos nos debruçar sobre a obra de Kafka, para

compreender como, através de seus contos, este escritor nos desenhou os contornos de

uma prisão que existe para além da physis, que não pode ser tocada, mas que também

não aceita fuga – a prisão metafísica.

O estudo aqui apresentado se aproximará também das investigações de Michel

Foucault5, cuja contribuição para a reflexão sobre o sistema penal continua a ser uma

ferramenta teórica imprescindível para este campo. Não somente por conta disso, mas

principalmente porque Foucault, filósofo contemporâneo francês, muitas vezes abordou

de que forma o aprisionamento se dá no interior do indivíduo, ou seja, de que forma se

constitui o prisioneiro, devemos trazê-lo para esta releitura de alguns dos contos de

Kafka. A compreensão que Foucault nos dá para o tema será abordada tal como vista

em seu Resumo dos cursos dados por Foucault no Collège de France (1970-1982) e em

sua obra Vigiar e Punir.

1. Kafka e o seu Século

As obras de Franz Kafka6 (1883 – 1924) são algumas das que são consideradas

por Huxley como descrições de experiências de prisões metafísicas, por utilizar um

imaginário envolvente para retratar a realidade psicológica do indivíduo oprimido.

Kafka foi um escritor europeu cujas obras ficcionais, até hoje largamente lidas e

estudadas, ricamente descreviam o sofrimento e os dilemas de seus personagens

centrais. Muitas vezes esses personagens eram massacrados pela cotidiana vida 5 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 20046 KAFKA, F. Trad. Torrieri Guimarães. A Metamorfose. Um Artista da Fome. Carta a Meu Pai. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007.

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moderna, por uma realidade que se erguia impiedosa perante suas poucas forças. Suas

histórias freqüentemente utilizavam absurdos ficcionais para melhor representar os

absurdos da vida diária, criticas irônicas e mordazes à sociedade estabelecida.

Pode-se ressaltar que o indivíduo de Kafka existe em uma composição sócio-

histórica que o oprime, e em muitos pontos o aprisiona. Os dilemas que os indivíduos

kafkanianos enfrentam são diretamente ligados ao estilo de sociedade que se desdobra

em sua época, angustiante a ponto de afogar o homem moderno, de fechar-se ao seu

redor, de parecer inescapável. Comumente, os personagens de Kafka vêm-se perdidos

diante da burocracia e da distância intransponível entre a fonte de seus problemas e eles

mesmos, reféns de situações que se desdobram além de seu poder, seja no ambiente de

trabalho, familiar ou mesmo em seu íntimo.

O indivíduo de Kafka vive em uma dimensão de problemática na qual a época,

o contexto histórico é extremamente importante. O homem de Kafka vive na sociedade

moderna que se impõe no século XIX e se firma no século XX, em um ritmo não

natural, em dimensões impossíveis de serem alcançadas, com uma burocracia que o

impede de tomar decisões, que o amarra e o coloca como ser estático diante da vida que

lhe é destruída, da personalidade que lhe é negada. Seu acesso à resolução de seus

problemas desde o início lhe está negado, pois a própria configuração de seus problemas

se demonstra como algo que não poderá jamais ser plenamente compreendido pelas

poucas forças do personagem. A maioria das vezes, isso acontece porque para cada um

dos personagens é impossível dar um rosto para o que os violenta: está por todos os

lados, está dentro de sua individualidade, faz parte do que o forma e do que o envolve.

É o que ocorre, por exemplo, no conto “Diante da Lei”. Nele, um homem

simples busca entrar na Lei. Às portas da Lei, está o porteiro, um guarda que não

permitirá a entrada. Com a impressão de que poderá entrar mais tarde, o homem

aguarda a permissão, anos a fio. Sua espera será em vão: a permissão nunca será dada,

não importa quanto tempo espere, que respostas dê ao guarda, com que o suborne. Em

momento algum lhe serão dados os motivos pelos quais não pode entrar, e portanto não

há forma de “consertar” aquilo que ele não sabe como se tornou errado.

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O primeiro guarda lhe dirá que, além dele, estão outros guardas, cada qual mais

poderoso. O personagem jamais verá os outros guardas, não saberá a extensão de seus

poderes, porém eles estarão sempre presentes, invisíveis, terríveis, obstáculos que não

podem ser vencidos ou ultrapassados. O sujeito terá sempre a impressão de que suas

forças não são o bastante para vencer a proibição das portas da Lei.

Se tanto te atrai entrar procura fazê-lo não obstante a minha proibição. Mas guarda bem isto: eu sou poderoso e contudo não sou mais do que o guarda mais inferior; em cada uma das salas existem outros sentinelas, um mais poderoso do que o outro. Eu não posso suportar já sequer o olhar do terceiro. (KAFKA, 2008).

Cada vez mais sua vida será minada sem que avanço nenhum seja feito em

direção a uma resolução de seu problema, até que finalmente a morte venha. O caminho

para a Lei, o caminho que era destinado somente a ele, é trancado apenas com a força da

proibição e do medo de um poder impensável e invisível. Sua vida resume-se a tentar

ultrapassar algo que não entende.

A vida na urbe se apresentará como uma que torna inacessível aos homens a

compreensão de seus “inimigos”, daquilo que o cerca, o destrói, e que existe dentro dele

mesmo. Com isso, com essa falta de entendimento dos sistemas de burocracia ou

mesmo de proibição, os esforços dos homens são em vão, se esvaem, o que resta é a

angústia de não conseguir reagir.

O homem de Kafka, o homem moderno, não está por trás de nenhum dos

processos que dominam a sua vida e sua sociedade, não orquestra as instituições que o

subjuga, não define os caminhos que percorre: é definido por aquilo que se constrói ao

seu redor, do que se edifica muito além de seus poderes. É pequeno demais para

mensurar ou compreender o cárcere que o cerca, é de fato prisioneiro.

2. A Prisão Metafísica em Um Artista da Fome

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Em sua obra literária, muitos foram os cenários utilizados por Kafka: navios,

circos, a Torre de Babel, colônias penais, a Europa como um todo. Entretanto, não

importando onde espacialmente a ação se desenrola, a luta mais abordada é sempre a

que ocorre no interior dos sujeitos da ação. Kafka convida o leitor a viajar, não para

locais distantes através de descrições minuciosas, mas para um conhecimento profundo

da mente e do espírito humano diante de violências a sua natureza. Em sua diversidade,

porém, tais violências possuíam sempre a característica do inescapável, do terrivelmente

avassalador. O personagem, aprisionado e subjugado a sua situação, perderia algo

insubstituível: às vezes, sua identidade (parcial ou completamente), outras vezes, sua

própria vida.

Em um dos contos de Kafka – Um Artista da Fome – vemos o homem cujo

jejum estende-se até o momento de sua morte, até o fim. O jejum, a negação do

alimento até o fim da vida, a tortura de sentir fome sempre, e não ser saciado, de morrer

finalmente na fome completa, na fraqueza: esta é a arte do personagem central deste

conto. Arte, pois não há outra força que o obrigue a passar fome, não há ninguém para

negar-lhe pão, ninguém que não ele mesmo. A fome, a ausência de alimento, é o

homem que escolhe para si mesmo. É um jejum voluntário, ele escolhe a fome e, mais

do que isso, a hora da morte.

Ao final do conto, porém, no último momento antes de sua morte, o artista da

fome revela que, podendo escolher, teria escolhido o alimento, o manjar, aquilo que lhe

nutrisse. Não podia, não conseguia fazer esta escolha: nada nunca o alimentou. Estava

preso à sua própria tortura, à sua incapacidade de se alimentar de qualquer coisa deste

mundo.

Sou forçado a jejuar, não posso evitá-lo [...] porque não pude encontrar comida que me agradasse. Se a tivesse encontrado, podes acreditá-lo, não teria feito nenhuma promessa e me teria fartado como tu e como todos (KAFKA, 2007, p.77).

Assim nos traz Kafka a história de uma angústia que reina, silenciosa e fatal,

no interior de um homem. De uma falta, de uma ausência, que ao mesmo tempo em que

nos parece auto-imposta, se mostra também como uma impossibilidade para o

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personagem principal. O artista da fome não come, mas também não poderia comer, lhe

era impossível. Era, como dito antes, prisioneiro.

Sua prisão, porém, antes de ser formada por paredes de pedras, calabouços e

correntes, é a prisão que encarcera o espírito, a prisão metafísica. Esta é uma das leituras

possibilitada por Aldous Huxley.

Huxley põe-se a descrever essa prisão sem cadeados que aparece tanto nos

contos de Kafka como em representações gráficas, prisão incorpórea, que não necessita

de algemas ou de celas para criar, em seus condenados, desespero e perda completa de

sua individualidade.

Além das prisões reais e históricas, marcadas por muita ordem e disciplina, e aquelas em que a anarquia engendra o inferno do caos moral e físico, há ainda outras prisões não menos terríveis por serem fantásticas e, portanto, sem uma estrutura fixa - as prisões metafísicas, que residem dentro da mente, cujas paredes são feitas de pesadelo e incompreensão; cujas amarras são a ansiedade e seu instrumento de tortura um sentimento de culpa tanto pessoal quanto coletiva.(HUXLEY, 1949, tradução do autor)7.

Huxley estabelece, portanto, um conceito – o de prisão metafísica – aplicável,

segundo sua própria leitura, às situações descritas por Kafka. Dentro desta concepção, o

terror de estar aprisionado vai para além da ausência de liberdade de movimentos, mas

passa, sim, pela incapacidade de mover-se segundo sua própria vontade.

As prisões metafísicas são, portanto, os lugares – lugares na realidade ou na

mente do ser – que operam no indivíduo como forças maiores do que ele mesmo, forças

que não podem ser combatidas fisicamente, que o alcançam em um outro plano de

entendimento. Forças que o encarceram para além de sua existência corpórea, e que,

quando chegam a agir no corpo, levando até mesmo a morte, isso se apresenta como

fruto da tensão entre a vontade do indivíduo e as forças que o aprisionam. Forças

metafísicas.

7 “Beyond the real, historical prisons of too much tidiness and those where anarchy engenders the hell of physical and moral chaos there lie yet other prisons, no less terrible for being fantastic and unembodied –the metaphysical prisons, whose seat is within the mind, whose walls are made of nightmare and incomprehension, whose chains are anxiety and their racks a sense of personal and even generic guilt.”

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Logo, o uso da palavra “metafísica” por Huxley se presta a caracterizar esta

forma de aprisionamento por indicar que ele está além do que se apresenta na physis,

um aprisionamento que, existindo ou não no plano físico, constrói seus mecanismos

também na vontade do indivíduo.

Por isso a expressão “prisões metafísicas” não se resume a obras que abordam

necessariamente a instituição prisional como temática central. Huxley livremente

discursa sobre autores que, antes de se debruçarem sobre o que o cárcere representa,

souberam expressar os sentimentos da alma que se atormenta na prisão, auto-infligida

ou não, que se estabelece em seu espírito.

Assim, para ele, o que se desdobra em obras como O Artista da Fome é, acima

de tudo, o sentimento do homem que, ao encontrar-se constantemente em um íntimo

embate, mergulhado em sua angústia pessoal, vai aos poucos perdendo sua própria face.

É no indivíduo, portanto, que a prisão se ergue: o aprisionamento o afeta, o transforma

e, em última instância, o cria. Simultaneamente, existem os elementos cuja construção

tem como objetivo único esmagar a figura humana que se encarcera, mas a existência

desta figura também é o protótipo do ser que não existe além do próprio cárcere.

Em Um Artista da Fome, a própria fome é um desses elementos de

aprisionamento, assim como a indiferença e a humilhação sofridas pelo artista na

sociedade em que ele se encontra. São instrumentos do encarceramento do indivíduo,

são partes da estrutura que não permite que ele se alimente ou, em outras palavras, não

permite que ele preencha o vazio que o impede de viver. Mas, ao mesmo tempo em que

se erguem estes elementos, ergue-se também a existência do artista como ligada

diretamente a esta angústia, a essa necessidade não preenchida, à sua corrente: ele era o

artista de seu aprisionamento, ele não era ninguém mais além do prisioneiro, a

realização de sua vida passava pela sua fome. Seu cárcere, enquanto o torturava,

construía-o.

Kafka, neste e em muitos de seus outros contos, descreve este ser que caminha

solitário, tomado por completo pela angústia – o abatimento completo e inescapável do

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corpo e do espírito – e pela miséria de, mesmo estando na companhia de outros, não

encontrar significado em seus atos ou mesmo reconhecimento em sua humanidade. A

sociedade aparece como um grupo que não consegue interagir entre si enquanto

caminha, e mesmo este caminhar é sempre desprovido de propósito.

3. A Prisão e o Prisioneiro: o Homem Encarcerado

Mas o que são os dispositivos que, durante o século XIX, se firmam como

prisões? O que significa isso, não somente esta instituição presídio, mas também esse

sentimento, essa corrente, essa bola de ferro que se prende ao espírito do indivíduo?

Atualmente, quando pensamos em punição de crime, imediatamente ligamos a

imagem do presídio. Entretanto, a forma de punição usual não foi sempre assim na

sociedade européia. O filósofo Michel Foucault, em sua obra A História dos Sistemas de

Pensamento, considera que existem quatro tipos de sociedades punitivas que se

estabeleceram ao longo da História até os dias atuais: as sociedades de banimento, na

qual o criminoso deve ser retirado do espaço da cidade, notadamente a grega antiga; as

sociedades de resgate, na qual o Estado é indenizado pelo crime cometido, sendo estas

principalmente as germânicas; as sociedades de marcação, cujo suplício público é

ponto central da pena e que caracterizava a vida européia ocidental medieval; e as

sociedades de internamento, cujo aprisionamento é a forma usual de doutrinação, que é

o que caracteriza as sociedades ocidentais do final do século XVIII até os tempos atuais.

A forma como tais sociedades encaravam a punição não é aleatória: demarca

uma relação com o que consideram crime e os poderes do Estado sobre o indivíduo.

Atualmente, como sociedade de internamento, respondemos a uma lógica que se

estabeleceu não ao acaso, mas como resposta a nossa dinâmica social.

A partir do século XVIII, o homem europeu deixará de punir o condenado

através do suplício e passará a entender como instrumento de punição o internamento.

Mas é importante marcar que, em sua obra Vigiar e Punir, Foucault deixará claro que

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internar o indivíduo representa, nesse tipo de sociedade, muito mais do que apenas puni-

lo, e sim “alfabetizá-lo” no ordenamento da sociedade. Portanto, aprisionar, internar, é a

forma como a sociedade européia irá educar suas crianças, irá curar seus doentes, irá

controlar seus trabalhadores. Aos poucos, o internamento estará em toda parte, não para

condenados, mas para cidadãos.

E junto com esse internamento, com este presídio, virá o doutrinamento, o

controle sobre a ação. Pois dentro do espaço controlado, o espaço útil que é criado em

escolas, hospitais, presídios e fábricas da mesma forma, há o controle sobre o

movimento do indivíduo. Com isso, vem também o controle sobre as suas vontades.

Momento importante. O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem entra em cena, mascarado. Terminada uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea. (FOUCAULT,2004, p. 18-19).

E essa controle sobre realidade incorpórea, que age sobre os homens sem abrir

a ferida na carne, aos poucos estabelecerá suas vigilâncias na consciência do homem. A

vigilância do panóptico8 passará a existir dentro da mente dos próprios indivíduos,

sejam eles criminosos ou não. Essa alteração da forma de lidar com o indivíduo e sua

liberdade ocorre entre os séculos XVIII e XIX, principalmente.

Para Foucault, o poder assume aspectos visíveis e invisíveis. O visível no poder

são as formas como este se apresenta, interferindo na disposição dos corpos individuais

e “ordenando” suas relações no âmbito social. São os dispositivos que agem sobre as

vontades através dos corpos, docilizando-os. Em resumo, são as instituições tais como a

fábrica, a escola, o manicômio e o presídio.

O invisível do poder de Foucault são as formas de saber que se constroem

paralelas às instituições as quais se relatam. São essas formas de saber que irão

legitimar as instituições e que encontrarão nelas legitimidade. Constroem-se Ciências,

8 Construção arquitetônica, que tem como objetivo ser um presídio, onde as celas estão dispostas em um prédio em forma de anel, todas voltadas para uma torre, da onde um único vigia é capaz de ver todos os prisioneiros, mas nenhum prisioneiro pode vê-lo. É discutida obra Vigiar e Punir.

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discursos que são em si mesmo o poder – não servem ou são manipulados por um poder

que lhes é exterior – e que acompanham as instituições, lhes garantindo significado e

serventia. Assim é a disciplina escolar, a criminologia penitenciária ou a psiquiatria

manicomial: são ciências que antes de simplesmente servirem a uma instituição,

permitem que ela exista; e que simultaneamente não seriam cabíveis sem a existência de

sua face “visível”.

Assim o foi com a reforma penal que se deu durante o século XIX: uma nova

instituição se ergueu, deixando para trás aquela que não poderia mais servir aos

propósitos da sociedade. Neste momento, torna-se importante ter uma instituição que

não aja como uma chaga corpórea, tal como o suplício fazia, mas pelo contrário, saiba

docilizar o corpo, torná-lo submisso a lógica social através de mecanismos de

adestramento. O inimigo, segundo a lógica do espetáculo doloroso, deveria ser

massacrado; o criminoso-traidor deve ser re-inserido de forma a se adaptar

completamente na sociedade, a aceitar o ordenamento e o contrato que a forma.

E o que são os instrumentos de burocracia senão ferramentas deste mesmo

ordenamento? Numa sociedade em que o presídio se ergue como parte de uma punição

incorpórea, outros mecanismos aparecem não para tratar/punir o criminoso, mas para

agir sobre o indivíduo “comum” segundo a mesma lógica punitiva, igualmente o

aprisionando.

Dentro desta lógica de vigilância e educação dos indivíduos, do que age sobre

nós sem que possamos ver, são muitos os mecanismos que afogam o homem moderno

representado pelos indivíduos kafkanianos. A sociedade européia ocidental que constrói

todas as instituições destruidoras e opressoras que se erguem ao redor de Gregor Samsa9

(e a burocracia que com elas caminham) e de tantos outros personagens, é a mesma que

um século antes construía prisões para garantir que indivíduos docilizados como Samsa

9 Gregor Samsa: personagem ficcional mais famoso de Franz Kafka, presente na obra A Metamorfose, de 1912. Nesta obra, Gregor se transforma em um grande inseto, e durante todo o tempo o absurdo de sua metamorfose é atravessado pelas questões de sua vida prática, da burocracia e dos transtornos financeiros que são causados pela sua transformação, a ponto desta muitas vezes ser renegada a segundo plano diante da força das outras questões.

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pudessem existir. O processo de docilização dos sujeitos que ocorre dentro das prisões é

o mesmo que ocorre nas ruas, nos trabalhos, e em, ao final, no interior dos homens.

Para o pensamento que começa a se estruturar no século XVIII, o espaço

controlado, afastado e vigiado começa a ser a forma mais eficaz de também controlar e

vigiar a ação humana. Assim se formam os ambientes escolares, os manicômios e

hospitais, todos possuidores de uma arquitetura e de um saber capazes de deixar exposto

o indivíduo que de alguma forma precisa aprender (ou re-aprender) os mecanismos

básicos de funcionamento da sociedade civil para poderem fazer parte dela. Nestes

ambientes, o indivíduo seria igualado a outros, ocupado, teria o tempo e o espaço

controlados pela lógica da utilidade. Sobre estes preceitos deveria se erguer à prisão.

Ao século XIX, entretanto, quando surge Kafka, o controle, a vigilância, já não

estabelecia-se sobre o espaço, já não tinha seu ápice de eficácia na construção do

“espaço-útil”, e sim no interior do indivíduo. Ali haveria, mais profunda do que em

qualquer prisão, opressões e doutrinamentos, vigilâncias e punições, ordenamentos,

regras, restrições – cidadanias e urbanidades, podemos dizer. Ali se construiria, as

custas de algemas incorpóreas, o homem moderno.

O condenado – sem sabermos por qual crime foi condenado – a prisão

metafísica, é posto em um labirinto no qual se perde a individualidade, tornando-se

elemento sem-face de sua prisão. A figura destes muitos “Samsas” é algo difuso e

perdido entre os elementos de sua tortura. Nos contos de Kafka, ele é o mesmo homem

sem rosto que não consegue existir além da posição que lhe é imposta, que não

consegue compreender completamente aquilo que o oprime, já que isto que o oprime é

tão superior e tão grandioso que a ele falta à capacidade de perceber-lhe os limites. E

muitas vezes, o que lhe oprime o leva a busca da própria auto-destruição.

4. O Animal e o Humano: a Busca por Saída em Um Relatório para a Academia

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O conto Um Relatório para a Academia é um exemplo claro da terrível

angústia pela qual Kafka leva seus personagens, até o ponto em que a auto-destruição,

ou a negação de si mesmo, é a única saída. No conto de 1919, o personagem principal

tenta descrever a sua transformação, na qual ele deixa de ser um macaco para se

transformar em um homem plenamente inserido na sociedade.

Logo de início, entretanto, o “novo homem” adianta-se a dizer que nunca

conseguirá descrever plenamente como foi a modificação, pois o sucesso de obtenção

de sua condição humana – na qual ele se encontra – foi fruto de uma total renúncia de

sua condição animal.

Desta forma, temos uma indicação do que o personagem principal abdicou, e

que esta irrevogável decisão foi tomada por vontade própria. É marcada aí a existência

de uma perda irrecuperável de parte da existência do personagem: a perda se realiza de

forma tão completa que não é possível nem mesmo recuperar as memórias da antiga

consciência.

Mais tarde, o autor narra o motivo que levou o personagem central a se

transformar, através do encarceramento de sua vontade e de sua consciência, em algo

dolorosamente distante de sua realidade animal. Este motivo não poderia ser outro

senão o próprio aprisionamento.

A prisão que o macaco, antes livre na África, sofre é a prisão física: capturado

por caçadores na Costa do Marfim, vê-se enjaulado em um navio, cercado de humanos e

sem nenhum espaço para caminhar, limitado a pouquíssimos movimentos. Neste

momento, se inicia o desespero que perseguiria o espírito do animal.

Para o personagem, pior do que a falta de liberdade (algo grandioso e distante

demais de suas aspirações lideradas basicamente por instinto – liberdade sendo algo

humano), pior mesmo do que as provações físicas ao qual é submetido, o que o tortura e

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impede de aceitar a situação que se desdobra é a falta de uma saída, um caminho que

pudesse seguir.

Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída. Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados. (KAFKA, 2000, p.123)

Neste ponto, o personagem admite que a carência que o atormentava era muito

menos de natureza filosófica quanto o era de necessidade básica. Nota-se, portanto, que

não era um animal com características humanas, Um Relatório para a Academia não é

uma fábula10. Para o personagem principal, as necessidades humanas não significavam

nada, à sua mente nada falavam as questões do homem – era inteira e completamente

um animal.

Diante da perspectiva de seu aprisionamento físico, cabe ao personagem

sucumbir por não conseguir preencher a lacuna que o consome (a literal falta de saída)

ou engendrar meios para conseguir o que deseja. É neste momento que, a guisa de

solução, o macaco decide imitar os humanos ao seu redor.

Desenrola-se aí uma série de provações pelas quais o animal passa, tentando

alcançar sempre o ideal de homem. Para ele, a figura humana não representava nada de

mais digno ou de invejável; não há nos homens traços que lhe fossem mais agradáveis;

sua busca é guiada inteiramente pela necessidade de saída. A escolha que reside em sua

consciência era claramente entre a sobrevivência ou o desaparecimento.

Desaparecimento que de fato ocorre. A figura do símio, já mal representada por

um narrador que apenas pode imaginá-la e não mais reconhecer como próprio aquele

ser, vai se educando até finalmente se tornar uma sombra acuada diante da

personalidade construída.

Porém, essa personalidade somente se ergue após violências que o personagem

central impõe a si mesmo. A cada conquista que o aproxima mais da figura humana (e 10 Histórias ficcionais breves cujos personagens principais são animais, simbolicamente representando vícios e virtudes humanas.

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da sua saída), as paredes de sua prisão interna se erguem mais altas: a opressão que o

toma é desesperadora. As forças que ele mesmo constrói são capazes de suprimi-lo, de

violentá-lo continuamente, sem escapatória, em todos os momentos de sua nova

existência. Aos poucos, seu espírito repleto de angústia é esmagado, até que perca

completamente sua face animal. Mais do que transformado, o macaco torna-se,

finalmente, um indivíduo criado completamente pelo seu cárcere: torna-se homem.

O processo que cria esse homem tem resultados físicos, o personagem principal

perde a aparência animalesca e assume a figura de um homem, alcançando por fim a

saída que tanto buscava – saída que mais uma vez se distancia completamente do

conceito de liberdade. Entretanto, esses resultados físicos são conseqüências de uma

transformação muito mais profunda: Um Relatório para a Academia é o relato de uma

modificação no que deveria ser imutável, de uma corrupção da individualidade, do

desaparecimento de um indivíduo.

É, portanto, o relato de fatos que se desdobram principalmente no ambiente

Metafísico; na physis só habitam os seus reflexos. Neste conto, como em muitos outros

de Franz Kafka, a prisão se ergue, oprime e reconstrói o indivíduo condenado.

Conclusão

Para Huxley, as prisões de Kafka são, portanto, criações que falam

inteiramente da experiência humana do encarceramento e do desespero. Não se faz

necessário uma prisão que seja uma construção capaz de reter o sujeito, mas sim uma

situação que se estenda muito mais profundamente para a psique do aprisionado para

que se construa a mesma perda do indivíduo.

Ao conectar as gravuras do artista Piranesi a obra de Kafka, Huxley apenas

ilumina o quanto este “inferno particular” que se desdobra no interior do indivíduo pode

ser representado de muitas formas diferentes. Assim, o que há de Piranesi em Kafka (ou

de Kafka em Piranesi) não diz respeito à forma ou a temática de seus trabalhos. Está

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claro que gravuras e obras literárias pertencem a linguagens diferentes. O artista plástico

e o escritor nem mesmo dividem a mesma época, para que se pudesse dar a eles um

sentimento de companheirismo temporal. Entretanto, é possível traçar nas duas obras a

mesma linha de representação do desespero humano, da perda do indivíduo em meio a

sua prisão. O mesmo ser encarcerado definha nas páginas de Kafka e nas gravuras de

Piranesi, diferentes pelo contexto histórico-social de cada um, mas semelhantes no

sentimento de desespero e perda.

Kafka trará para as suas páginas, ao longo de toda a sua obra, a tortura

espiritual do cárcere. São viagens ao espírito angustiado, encarcerado, e, portanto,

perdido, esmagado pela grandiosidade e complexidade de seu cárcere.

Ao homem que se perde em suas angústias, não é possível definir para onde ou

de onde estão vindo as forças que o direcionam, quais seu objetivos, por quanto tempo é

possível segui-las, ou mesmo se levarão a algum outro lugar que não o mesmo cárcere

inescapável onde elas se constroem.

Parece, portanto, para o leitor e para o indivíduo que vive a história, que o

sofrimento em que ele existe – a fome do artista, a transformação em animal de Samsa,

a jaula do macaco e até mesmo as repressões paternas que o próprio Kafka sofre11 – não

terminarão nunca. Essa impressão de dor que se estende ad infinitum ajuda a dar a toda

a tortura emocional uma profundidade ainda maior: a de que a prisão em que vivem

seus personagens não tem saída, não tem escapatória, não tem fim. Ter um fim é

essencial, pois somente desta forma é possível imaginar uma existência além do cárcere.

A dimensão dos problemas escapa à racionalidade humana, criando um

ambiente caótico – pois é impossível de ser compreendido – e inescapável, já que,

existindo além até mesmo do poder de compreensão; é o único mundo possível para o

indivíduo que observa a sua prisão particular sem conseguir ver suas fronteiras ou algo

que a externalize. 11 Referência ao conto Carta ao Pai, de Franz Kafka. Neste conto, Kafka escreve uma carta a seu pai, explicando longamente o sentimento de fraqueza e de frustração que sempre teve ao estar próximo ao pai, que lhe pareceu sempre mais forte, mais capaz, e que se ressentia do filho por isso.

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Os contos de Kafka podem ser lidos como o olhar da alma torturada, toda a

transformação que a mente pode criar na forma, uma viagem até às fronteiras daquilo

que podemos compreender e enfrentar, até o ponto em que as forças cedem, em que o

homem desiste, em que as pernas falham – o homem morre ou desaparece.

E a algema que falta nos pulsos, a corrente que não escraviza o corpo, a cela

que não se tranca da terrível prisão de Kafka somente contribuem para demonstrar que o

condenado está aprisionado em um nível inescapável. Toda algema é inútil, pois ao

prisioneiro não é negado o mundo: este lhe é dado na forma de prisão, uma prisão que

se estende infinitamente, que não permite um outro mundo além dela.

Portanto, para ser uma prisão, nenhum espaço precisa ser demarcado, não é

preciso algemas, celas ou correntes; os “condenados” caminham livremente: a prisão do

homem está na própria constituição das formas insustentáveis de sua realidade.

Referências bibliográficas

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