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conversa cadenciada /\ ou cochicham. Para eles, aquela grande agora

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  • A conversa é cadenciada por toques/\ de campainha, grandes silêncios/\ ou turbas de gritos e risos numa/ \ escola de Lisboa que muitos re-/ \ conheceriam em todo o país. Por/ \ Portugal, existem cerca de cem/ \ com esta tipologia, construídas/ \ durante o Estado Novo. Muitos/ \ reconheceriam aqui o ambiente/ \ e a geometria dos edifícios anti-gos, o soalho de madeira nas salas, os corre-dores longos perfurados por salas de ambosos lados, as escadas de mármore com degrausa resvalar nas extremidades por tantos anosde miúdos a correr por eles abaixo. Mas estanão é uma escola qualquer. Aqui, estuda-sedentro de um prémio.

    O arquitecto José Neves aponta-nos essasmarcas nas escadas no edifício principal daEscola Básica do 2.° e 3.° ciclo Francisco deArruda, em Alcântara, e afaga os corrimões demadeira que agora têm pequenas peças metá-licas para evitar o que durante anos acontecia- serem escorregas para os alunos. Mas este éapenas um espaço entre vários nesta escola-jardim, cheia de percursos, transbordante depossibilidades. Depois de parecer que voltá-mos à "nossa" escola, é tudo novo - caminhos,atalhos, equipamentos, rampas, um edifíciobranquinho e rectilíneo com brisesoleil (pára-sol) à Ia Corbusier, uma biblioteca que cheiraa livros e a madeiras novas, laboratórios commesas altas e mobiliário tipificado pela ParqueEscolar, grandes janelas cinematográficas.

    José Neves é um adulto que conhece os can-tos à casa e que caminha pelos corredores coma autoridade de quem ali passou muito, muito

    tempo - mas não é ali professor, como podiamsupor alguns olhares inquisitivos de alunosem princípio de ano lectivo. É professor, sim,mas agora como convidado no ISCTE, depoisde ter leccionado mais de duas décadas naFaculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa, entre outras universidades

    portuguesas. Abriu o seu atelier de arquitectu-ra em Lisboa em 1991, é casado com a pintoraMaria Capelo e tem duas filhas.

    Mas este espaço é um pouco seu porque foiele que projectou a requalificação e ampliaçãoda Francisco de Arruda entre 2008 e 2011. Estácurioso, quando chega com a Revista 2 em ple-no recreio grande da manhã, para "ver como é

    que eles ocupam esta parte", dirigindo-se paraum pátio superior, mais recatado. Meninos emeninas, dos mais jovens que a escola tem (asidades dos alunos vão dos dez aos 15 anos),brincam por ali em pequenos grupos. Lá embaixo, na Praça, como lhe chama José Neves,são largas dezenas de alunos que se puxam,empurram, namoriscam, esparramam, saltam

    ou cochicham. Para eles, aquela grande agorapontuada por bancos de jardim e árvores no-vas e mais antigas é só o recreio - o recreio daChica, a alcunha da escola no bairro.

    Mais perto do almoço, José Neves há con-fessar-nos como lhe agrada a apropriaçãotambém toponímica que alunos e professo-res fazem de algumas das partes novas do seuprojecto. Como o salão nobre que a escolamuito queria para poder fazer reuniões ouconcertos, "um pavilhão de jardim" aos seusolhos, mas que para quem vive a escola todosos dias é "o cubo mágico".

    Cumprimenta quem vai passando e se lem-bra dele dos anos em que chefiou a equipa queprojectou a requalificação que lhe deu o Pré-mio Secil 2012. Também se lembram dele devisitas como esta, exactamente porque ganhouo Secil e os jornalistas voltaram a olhar paraesta obra, resultado do programa Parque Es-colar, mais conhecido pelas suas derrapagensfinanceiras do que por êxitos arquitectónicose funcionais. Lá iremos.

    É recebido efusivamente na biblioteca quedesenhou e onde às vezes a professora-biblio-tecária ultrapassa as janelas de peitoril muitobaixo para levar os alunos para ler na relva,com mantas e vista para as hortas da escolae para a Lisboa que se desenrola pela Tapadada Ajuda abaixo, rumo ao rio e à Ponte 25 deAbril. "Esta biblioteca podia ser fechada seeu acreditasse que a cultura, ou a literatura,é uma coisa fechada, mas agrada-me imensoa ideia de uma criança estar aqui a ler e le-vantar os olhos do livro e ver o mundo lá foraa acontecer."

    José Neves completa 50 anos nos últimosdias deste ano em que recebeu 50 mil eurosdo mais importante prémio de arquitecturaportuguês, depois de já ter sido nomeado parao Secil em 1998 e 2004, respectivamente pelasua Casa do Moinho e pelo Edifício C 6e Alame-da da Faculdade de Ciências da Universidadede Lisboa. A Francisco de Arruda não foi aprimeira escola que trabalhou ou projectou efoi a segunda para a qual foi convidado a traba-lhar no âmbito da Parque Escolar - a primeirafoi a Básica Marquesa de Alorna, também emLisboa. Também não foi o primeiro prémioque recebeu: a Casa do Moinho foi premiadapela Câmara de Torres Vedras e orgulha-se deter ganho vários projectos como o do C6, a Fa-culdade de Arquitectura da Universidade doMinho, a Reitoria da Universidade de Lisboaou o Centro de Artes do Carnaval, em TorresVedras, em concursos públicos. São marcos deuma carreira que começou porque José Neves"gostava de desenhar. É - ou pelo menos era,nesse tempo - o costume".

    Mas também porque "a maior parte dos

  • meus amigos foi para Arquitectura. Ao mes-mo tempo, tinha visto a exposição do AlvarAalto na Gulbenkian [no início de 1983] e ti-nha percebido que se podia brincar a fazerarquitectura. E também por a arquitecturanão ser um trabalho solitário, por ser um tra-balho colectivo e poder fazê-lo com colegas-amigos, como os Beatles". Ao segundo ano,estava algo desiludido, mas encontrou doisprofessores-chave, Daciano da Costa e DuarteCabral de Mello, que lhe mostraram que sim,a arquitectura podia mesmo ser tal como aimaginava.

    Esta é uma escola-jardim, mas também umaescola-aldeia. Foi assim que a pensou e depoisprojectou, e talvez seja assim que ela se tornanuma espécie de súmula do seu trabalho, ouda sua visão da arquitectura. Também é assim

    que o seu discurso passa do singular para oplural. Daquilo que o move e inspira para aqui-lo que, no que antes era a Escola Franciscode Arruda, ele e a sua equipa de dez pessoaspensaram sobre o projecto original de AntónioJosé Pedroso, de 1956.

    A Francisco de Arruda "representa já umacerta maturidade" no trabalho de José Ne-ves, que a atingiu "já há algum tempo", diz àRevista 2 o presidente do júri do Secil 2012,Manuel Graça Dias. Lembra que Neves "temum pensamento seguro e trabalhou com o ar-quitecto Vítor Figueiredo , o que o terá leva-do a encontrar-se neste registo de uma certasobriedade e de uma modernidade discreta,mas também no respeito pelo construído pe-los outros".

    "Há uma frase do [escritor e psicanalista]João dos Santos que tenho pendurada noatelier, é uma coisa que me serve muito: 'Senão tens uma aldeia, meu filho, tens de ir embusca dela! Um menino não pode viver semter a sua aldeia.' Primeiro como cidadão,depois como arquitecto, serviu-me imensopara pensar nesta escola porque esta frasecontém muitas coisas fundamentais sobrea possibilidade da nossa participação comoarquitectos no mundo. A escola é um espaçoque tem de ser protegido, mas não pode serum panóptico", entusiasma-se, referindo-seà ideia do jurista e filósofo Jeremy Benthamde um edifício circular de cujo centro a popu-lação prisional ou internada pode ser vigiadade todos os ângulos, a toda a hora. "As prisõestambém têm pátios, não é? Um preso tambémtem de se recrear", exemplifica, para explicarque sim, a noção de amplitude de espaço, mastambém da sua diversificação, ao criar novospercursos através de escadas nos sítios certos,acabar com cul-de-sacs ou criar recantos con-templativos junto a campos desportivos, foiessencial como ponto de partida. "Fizemos

    tudo para evitar o lado repressivo que os es-paços das escolas muitas vezes representamou carregam. Até porque se aprende tantona rua como em casa, nos recreios como nasala de aula."

    do recreio damos um pulo ao edi-fício novo que plantou na únicalateral da praça que estava vazia,e olhamos pelas grandes janelas evemos um pinheiro, noutra a pra-ça, e voltamo-nos para o outro la-do e ali está Alcântara. "Este é umambiente protegido porque é umaescola, mas a relação com a cida-de está sempre presente. Sempre.

    Não é uma coisa ensimesmada, não é criaruma espécie de oásis, isolado. É uma parteda cidade."

    Passemos ao plural, porque quando tudocomeçou e foram feitas as primeiras de "inú-meras visitas", "imaginámos uma história, queestes edifícios tinham sido feitos um de cadavez, como se fosse uma cidade e tentámoscontinuar esse processo". Depois, "criámosum percurso pelo jardim", diz José Neves so-bre o trabalho da equipa. Porque "a primeiraimpressão que tivemos foi deste jardim quequeria abraçar a escola, que vem na conti-nuidade da Tapada e que é uma coisa muitorara numa escola pública. Achámos logo queiria ser um dos temas, dos estímulos e dascoisas mais importantes" neste projecto paraa Parque Escolar, que não só requalificou oedificado existente, mas aumentou uma escola

    que já era construída em plataformas, quaseem escadinha, a respeitar o relevo, mas comedifícios de volumetrias muito diferentes.

    Agora, além do novo edifício que albergabiblioteca, serviços administrativos e labo-ratórios, há também o "cubo mágico" ondeantigamente ficava o átrio principal da esco-la - virado para uma rua que estava previstanos anos 1950 mas que nunca chegou a sul-car aquela parte da freguesia de Alcântara - eforam criados novos balneários e um campodesportivo coberto.

    Manuel Graça Dias considera que "a obrainterpreta o existente de uma maneira mui-to positiva, discreta e sem qualquer tipo dealarme, não recusa o que lá estava. Agora,chegamos lá e parece que sempre foi, ou quedevia ser, assim". Complementado tambémpelo trabalho no paisagismo de Catarina AssisPacheco, "passa a ser um espaço de grandeintegridade". "Sentimo-nos bem" no conjuntodo antigo edificado e das novas adições, com-pleta Graça Dias.

    Numa manhã soalheira do final de Outubro,José Neves congratula-se pelo facto de a escolanão apresentar sinais de descontentamento

  • - os bancos do jardim têm rabiscos e graffitimínimos, há alguma bricolage improvisadanuma ou outra porta mas o arquitecto sen-te que os utentes têm por ela "um carinhogrande". Neves tem um apreço fundamentalpela memória. Recorda uma frase do seu an-tigo professor e depois colega, o arquitecto edesigner Daciano da Costa: "Quando falava

    êêEste é um ambienteprotegido porque éuma escola, mas arelação com a cidadeestá sempre presente.Sempre. Não é uma coisaensimesmada, não écriar uma espécie deoásis, isolado. É uma

    parte da cidade"

    Da biblioteca, avistam-se ashortas da escola, a Tapadada Ajuda e a cidade que sedesenrola até ao rio. Às vezes,como o peitoril das janelas ébaixo, a professora--bibliotecária convidaos alunos a "saltar" paraestenderem mantas na relva.Como diz José Neves, "estabiblioteca podia ser fechada seeu acreditasse que a cultura,ou a literatura, é uma coisafechada, mas agrada-me aideia de uma criança estaraqui a ler e levantar os olhosdo livro e ver o mundo lá fora aacontecer". Em baixo, o pátioa que o arquitecto se referecomo a praça e os miúdoscomo o recreio da Chica, aalcunha da escola no bairro

  • do mundo construído, falava 'da vassoura àcatedral'. Não fazemos só catedrais, tambémnão fazemos só vassouras." Os edifícios pre-existentes, os tais em que várias gerações de

    portugueses se reconhecerão a cada passo,"estão um bocadinho entre isso, têm uma ar-quitectura muito trivial, muito pragmática".Ao requalificar, não quis amputar, muito me-nos aculturar.

    "São edifícios que nos apeteceu imedia-tamente salvar. E isso tem que ver com umprincípio que transporto comigo e que é fun-damental: só se deve destruir ou substituiraquilo que somos capazes de fazer melhor. Eneste caso não havia circunstâncias que noslevassem a querer destruir o que encontrá-mos - e uma delas é sempre, claro, o dinheirodisponível - até porque havia uma memóriaque tinha de se salvar", diz.

    Manuel Graça Dias contextualiza: "Estamos

    perante uma obra que corresponde a um gé-nero, a um tipo que vai começar a ser cadavez mais frequente: são obras de recupera-ção e conversão de estruturas já existentes,são as obras do século XXI nas cidades eu-ropeias, que já têm a maior parte dos seusequipamentos resolvida, que têm o problemada habitação quase resolvido. É interessante

    que o prémio Secil expresse essa nova atitude

    perante o património construído."E, acrescenta Graça Dias, "também coincide

    com um tipo de obra feita nos últimos quatro,cinco anos em Portugal devido ao impulsodado pela Parque Escolar", sendo que esta edi-

    ção do Secil, prémio atribuído anualmente deforma alternada à arquitectura e à engenharia,tinha este ano mais alguns projectos no âmbitoda Parque Escolar a concurso. Uma das polé-micas que envolvem o programa de moder-nização de escolas Parque Escolar prende-secom as suas derrapagens financeiras - até aofinal de 2012, o programa já tinha ultrapassadoem mais de 400% as verbas previstas quandodo seu lançamento, em 2007. 0 valor de adju-dicação da obra na Escola Básica Francisco deArruda foi de 8,3 milhões de euros e, no final,as contas saldaram-se em 8,8 milhões.

    José Neves frisa que é importante ter con-texto, saber em que foi gasto o dinheiro - "Éuma parte muito importante do trabalho deum arquitecto tomar essas circunstâncias,não como obstáculos, mas como dados paratrabalhar que se transformam em estímulospara o projecto. Não faz sentido qualquerqueixume sobre isso." Foram 8,8 milhões para"8000m2 de construção reabilitada, 5000m2de construção nova, cerca de 1000m2 deespaços e recreios cobertos e 18.000m2 deespaços exteriores", enumera, acreditandoque os custos das obras públicas devem ser

    abordados com "ponderação e conhecimen-to de facto". "Por exemplo, no que toca àschamadas 'derrapagens' financeiras, é muito

    importante compreender-se claramente a di-ferença entre estimativa, orçamento, valor deadjudicação, valor final da obra, adicionais,erros, omissões, trabalhos a mais, trabalhos

    imprevistos, etc. É que diferenças entre os va-lores adjudicados e os valores finais das obrasexistem sempre, na realidade, em qualquersituação e em qualquer parte do mundo, so-bretudo tratando-se de obras de reabilitaçãode edifícios existentes. E é precisamente porisso que existem limites legais estabelecidos

    pelo CCP para essas diferenças justificáveis.A obra da Escola Francisco de Arruda ficou,felizmente, muito abaixo desses limites."

    A Parque Escolar bateu-lhe à porta duas ve-zes, convidando o arquitecto directamentepara um projecto. Esse modo de funciona-mento foi uma das principais críticas à ParqueEscolar e José Neves reitera-se como defensordos concursos públicos: "O Alvar Aalto costu-

    mava dizer que os concursos, além do mais,são uma espécie de prática desportiva - ca-ríssima e extenuante! - para os arquitectos semanterem em forma." Acredita que "são umadas modalidades mais indicadas, de uma for-ma geral, para seleccionar um projecto", masressalva: "Quando bem feitos, é claro, já que,nos últimos anos, a esmagadora maioria dos

    poucos concursos públicos que tem havidotem sido lançada em termos completamenteinaceitáveis - digo mesmo degradantes -, oque dificilmente poderá deixar de se reflectirnos resultados finais", diz.

    nostade escolher palavras, subli-

    nhando quando lhe agradam oucorrigindo-se para que só lhe ou-çamos aquilo que quer mesmo,mesmo dizer. Também gosta

    I de assinalar aquelas de que não

    gosta mesmo nada ou que foramestragadas pelo uso corrente -

    i , "agora, usa-se muito a palavraV^ */ 'conceito', serve para tudo; os

    meus alunos estão proibidos de a usar nasaulas". Ou frases feitas. "Há uns dias vinha aouvir um governante nosso na rádio que namesma frase repetiu 'tempo é dinheiro' cincovezes", exaspera-se, sorridente. "É a maiormentira que pode existir, porque dizer quetempo é dinheiro é dizer que a vida é dinheiro,que é só dinheiro. O tempo em arquitectura éfundamental para se conseguir fazer um tra-balho ponderado, intenso, que acerte - paraconseguir identificar os problemas."

    À nossa volta, os alunos da educação espe-cial apanham sol e brincam, e outros, man-

  • dados sair da sala de aula pelos professores,amuam rumo às oficinas. Aparecem de todosos lados. Há hoje uma continuidade na esco-la Chica, inspirada numa característica dascidades que José Neves considera fundamen-tal: "Ter várias alternativas para se ir de umsítio para outro ou para se estar num sítio ounoutro. Fizemos tudo por tudo para enfatizaralgumas dessas sugestões que já existiam nes-ta escola. E agora há articulações, caminhos,pequenas escadas, que passam a permitir umadeambulação por este espaço. 'Deambulação'.Gosto muito desta palavra. É que sem possibi-lidade de deambulação não há cidade."

    E essa continuidade, de memória e de per-cursos, é um termo caro ao arquitecto. Tantoque, apesar de também estar desgastado - "seligarmos agora a TSF, algum político estará adizê-la" -, é o tema da tese de doutoramentoem que está a trabalhar. Nem lhe lembramosque esses abusos são tais que a "evolução nacontinuidade" de Marcello Caetano há muitose tornou um dichote do futebolês.

    A tese "A Arquitectura como trabalho decontinuidade: reflexões a partir de uma prá-tica do projecto" fá-lo falar do arquitecto Fer-nando Távora e do seu livro Organização doEspaço. "Os arquitectos trabalham imensocom os mortos, como trabalham com e paraos vivos, como para aqueles que vão nascer.Grande parte do que está aqui, este chão, es-tes edifícios, a Tapada, foi feito por pessoasque hoje estão mortas. Esta ideia a que Távo-ra chama 'colaboração vertical' para mim éuma evidência absoluta", diz, acrescentandoque a ideia de continuidade no que toca aoambiente construído é também perceber que"os limites de um projecto são muito maioresdo que ele. Porque ele passa a fazer parte deuma outra coisa".

    O tema que lhe é tão caro na carreira e numafutura dissertação parece jogar directamen-te com o projecto da Francisco de Arruda.Integrar, dar dois passos atrás para ver a bigpicture. Uma continuidade que não é só reve-rência ao já feito e que também pode ser rup-

  • tura. Uma escola enquanto espaço protegido,de aprendizagem e segurança, mas tambémuma peça do grande e vivo puzzle que é umapovoação, uma aldeia, uma cidade, um jar-dim. "Mas isto é muito difícil hoje, porque éa ordem do dia, na política como em tudo, adispersão é uma espécie de convite que nosé feito todos os dias." Lamenta a dispersão,a especialização, a circunscrição das coisas."Brecht costumava dizer: 'Comecem pelasbad new things, não comecem pelas good oldones'." Penso que o trabalho do arquitectopassa muito por saber, em cada instante, porqual delas começar."

    E depois levantamo-nos para conhecer onovo átrio, que baptizou de Stoa (o nome naarquitectura grega antiga dado às passagenscobertas ou pórticos) - "chamámo-lo assimcom a máxima pretensão", sorri. É a nova en-trada da escola que se oferece à praça (o re-creio) e "tenta dar suporte ao que uma escolaé, ao que a vida é, ao que a condição humanaé, que é estarmos sozinhos e em colectivo".Fica no edifício novo, onde uma funcionáriao cumprimenta e a luz que entra pelos vãosabertos e fechados vai dando espectáculo aolongo do dia. "Sem as variações da luz comopassagem do tempo, não há arquitectura. Sóhá arquitectura em caves por relação com essaluz ausente."

    Lá de cima, de uma das pontes de estadiaque marcam o primeiro piso do edifício, feitas

    para convívio dos alunos, espreitam cabeças.São demasiado grandes, coloridas e fazemcaretas. São cabeçudos, representações debonecos algures entre as figuras populares ea cultura pop, sentados nas pontes que ter-minam em enormes janelas onde, "à medidaque vamos andando - talvez isto tenha quever com o cinema - vamos tendo uma sériede quadros: um pinheiro, a praça" e, do outrolado, "a ponte sobre o Tejo, os carros, o rio".Um travelling.

    Aí está a continuidade outra vez, porqueesta escola cuja "transfiguração é total" man-teve memória e virtudes que já pertenciamao espaço. "Acho que é sempre isso que osarquitectos estão a tentar fazer. As coisas têmraízes, estão agarradas a sítios. Há muitos ca-sos em que a própria situação fica no nomeda obra, como a Casa da Cascata do FrankLloyd Wright. Mesmo uma obra supostamentemenos ligada ao sítio, como a Casa da Música,no Porto - a sua influência na Rotunda daBoavista e na cidade é muito maior do que oobjecto que aparece nas revistas."

    Em caso de dúvida, José Neves faz-nos umdesenho. Num caderno preto onde há notas emuitos outros esboços, delineia o que é agoraesta escola. Tornou-se arquitecto por isto e

    ainda hoje é um arquitecto disto - "continuo adesenhar imenso e não só para a arquitectura.Não trabalho em computador. A equipa sim,mas eu não sei sequer desenhar em compu-tador. É uma questão de tempo e de necessi-dade, não vou pensar para o computador. Odesenho dá-nos esse tempo".

    Da equipa que trabalhou no seu projecto pa-ra a Francisco de Arruda, muitos emigraram."Receber um prémio nesta altura [do país]...sinto-me a receber um prémio no meio de ummonte de escombros e isso cria sentimentosdiferentes." O reconhecimento, ainda queno meio de ruínas e de rádios que parecemdar sempre Beatles a menos e políticos combengalas de linguagem a mais, "faz-me querertrabalhar mais e melhor... apesar do absurdode muitos dos regulamentos e da legislaçãoque hoje existem e que fazem com que só comuma grande dose de inconsciência é que umarquitecto possa querer continuar a arriscartrabalhar, se tiver trabalho, é claro... "

    Ainda assim, é claro que o Secil foi umO arquitecto a desenhar. Na páginaao lado, decima para baixo, concursopúblico para o Conservatório de Músicade Coimbra, 2004 (c/ arq. João Pernão);Centro de Artes do Carnaval em TorresVedras em maqueta com vista da praçae vista geral; desenho de viagem feitopor José Neves em 2000: a PiazzadelTAnfiteatroem Lucca, construídasobre as ruínas de um anfiteatro romano,serviu como referência para o projecto,em eu rso, do Centro de Artes doCarnaval, em Torres Vedrasmomento "maravilhoso", lembrando-lhe osgrandes nomes que o antecedem, como o seumestre Vítor Figueiredo, e outros grandes ar-quitectos como o vencedor de 2010, EduardoSouto Moura, com o projecto para a Casa dasHistórias, em Cascais. Este é o país do surpreen-dente rácio Pritzker: dois Nobel da arquitecturapara menos de dez milhões de habitantes. É aconta do costume, que valida que se diga quea arquitectura é uma área de excelência emPortugal. Mas não embandeiremos em arco -"Há muito boa arquitectura em Portugal, mastodos sabemos que nas últimas dezenas de anosé uma excepção - uma excepção magníficamas muito pontual. A maior parte do que seconstrói é pavoroso." E hoje há desemprego, emuito, na arquitectura, há paralisia nas obraspúblicas e consequente contracção nos atelierse os jovens arquitectos são os que mais sofrem.Manuel Graça Dias disse mesmo, quando daentrega do Secil 2012 em Julho, "que na pró-xima edição se notará um menor número decandidatos" porque se "não há trabalho, não

  • se constrói e isso vai começar-se a notar". JoséNeves, preocupado, inspira-se citando o filó-sofo e fundador do Partido Comunista italianoAntónio Gramsci: "Temos de ser pessimistas nainteligência mas optimistas na vontade."

    A ctualmente, José Neves, um apai-/\ xonado pelo cinema de Bunuel,/\ está também a construir uma co-/ \ lecção de textos saídos de confe-/ \ rências que reuniram arquitectos/ \ e cineastas portugueses na Cine-/ \ mateca em 2007, do seu amigo/ \ Pedro Costa a Manoel de Olivei-/ \ ra, passando por Paulo Rocha/ \ ou Souto Moura. O tema eram osricos e os pobres no cinema e na arquitectu-ra portuguesa e esse ponto de união, o fazeromeletes com poucos ovos, fá-lo concluir queo que une o que há de português nestas duasactividades tem que ver com "uma espécie de

    relação com o real que permite que se trans-formem abóboras em carruagens de princesa,para usar uma imagem que o arquitecto VítorFigueiredo gostava de usar".

    A forma como consome cinema, arquitec-tura, livros ou música não lhe permite fazerescolhas de grandes influências ou gostos. Sóa memória mais imediata e o fluxo da con-versa. "Há pouco tempo, revisitei a obra doBorromini em Roma, que não tem nada a vercom o que eu faço, mas depois talvez tenhatudo a ver. Uma igreja pequenininha numaesquina, San Cario alie Quattro Fontane. Éfeita com coisas simples - os elementos clás-sicos -, colunas, arcos, frontões, mas tem umacomplexidade incrível, e estava a lembrar-meque o John Ford, de que gosto imenso, faz amesma coisa no cinema. Pega em coisas muito

    simples, a paisagem, o cavalo, as palavras, aspersonagens... e depois há uma complexidademuito grande."

    A par dos Beatles, os Kinks "fizeram cançõesque ouço muitas vezes logo de manhã para tero tal optimismo na vontade - os Kinks são isso,o pessimismo na inteligência e o optimismona vontade", diz.

    Na era em que o espectáculo é invasivo eomnipresente, feito de realidade mais ou me-

    nos televisiva e contaminando quase todos ossectores, o arquitecto João Carrilho da Graça,Prémio Pessoa 2008, opinou há um par desemanas que "as pessoas estão fartas de espec-tacularidade na arquitectura". 0 starsystemdos arquitectos é hoje um dado adquirido, osgrandes nomes são celebridades e as grandesobras persistem, mas parecem nascer cadavez mais onde há ainda dinheiro, a oriente,médio ou extremo, por exemplo. José Nevespercebe a reacção a tal tendência forte e opu-lenta, mas "há lugar para tudo". Porque "hásituações em que não há nada mais bonito do

    que o espectáculo urbano". Mas se sublinhaque "a arquitectura não é um espectáculo,é ela o próprio palco", por outro lado hoje"as pessoas estão desejosas de fazer parte deum espectáculo que seja de facto uma festae em que sejam simultaneamente protago-nistas e espectadoras - as cidades na melhordas hipóteses são isso, não são coisas tristese ensimesmadas".

    É hora de almoço e já há adolescentes àporta das salas, sentados no chão ou empo-leirados nos varandins do edifício novo. Estaescola tem esquilos, ruivos por sinal, que an-dam a roer pelas copas das árvores do pátioe que são orgulho de funcionários e alunos.Nunca os chegamos a ver. Lá em baixo, ficamas oficinas, que antes tinham baixos-relevosde cenas "de façanhas colonialistas, de terrorgore", lembra o arquitecto, que até apoiavaque se mantivessem para poderem ser discu-tidos de forma crítica, mas a escola decidiuremovê-los. Ao longe, ouvem-se bolas e cor-ridas. Vêm do pavilhão desportivo coberto,"a que chamámos pomposamente Templo",diz José Neves.

    Falamos do lado lúdico e infantil da des-coberta de caminhos e carreiros, das acessi-bilidades e labirintos nas cidades. Descemosum desses caminhos. Os cerca de 700 alunosda escola ficam para trás. Fica a suspeita deum esquilo ruivo e um caminho que descepara a cidade que se volta a fazer ouvir. "Àsvezes custa voltar às obras, é preciso largá-las", sorri.