plutarco - como ouvir

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PLUTARCO. Como ouvir. Prefcio e notas Pierre Marchaux. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

Prefcio * Silncio dos sbios e Msica das esferas

"Os homens no gostam de vos admirar, eles querem agradar; procuram menos ser instrudos, e mesmo divertir-se, do que serem apreciados e aplaudidos." Este julgamento de La Bruyre1 parece provir diretamente do Como ouvir, de Plutarco. Com efeito, se aprender a falar o primeiro passo, supondo que o estudo das palavras se conclui do das idias, aprender a ouvir deve ser a segunda preocupao do aprendiz de filosofia, e com [p.6] toda a certeza uma das questes centrais da educao, da paidia. Plutarco, no seu curto ensaio datado do ano 100 d.C., quis remediar esse vazio constitutivo da histria de uma retrica do ouvir. Pois a arte de ouvir, nas teorias ocidentais sobre a linguagem, prpria do extremo isolamento. A cultura do ouvir supe a aliana da eloqncia e da filosofia. Pois a paidia auditiva seria uma reles auxiliar da arte oratria se no tivesse a inteno de servir aos desejos secretos da meditao filosfica. Ao ouvir, aprendemos mais a pensar do que a falar, pois esta audio feita da prpria substncia das palavras, tendo a retrica, por assim dizer, apenas uma funo reguladora e exterior. Deste modo, a primeira dificuldade que compete ao professor resolver fazer o discpulo vido de frases e que sucumbe vertigem das palavras compreender a necessidade formadora do silncio. que a propedutica per aures no est isenta de perigo: a linguagem semelhante fita sonora, que d voz s coisas ausentes e lhes confere um acres-[p.7]cimo de presena, de sorte que o ouvido no passa de um lugar de fascinao, em cuja oficina o esprito encantado fabrica simulacros, pela meditao de palavras-miragens. Criar para os "sentidos interiores", animar com cor, sabor, odor, e prover com uma carnao humana quase real um teatro de palavras cuja fecundidade rivalize vitoriosamente com a lembrana dos espetculos naturais, unir as paixes e o querer a estes

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Os caracteres, "Sobre a sociedade e a conversao", 16.

espetculos mais verdadeiros que a natureza, tal o poder da retrica dos primeiros mestres; pois a paidia dos gregos supe alm de uma taciturnidade asctica, uma retrica da fbula. Ora, quando algum se atm exclusivamente ao agrado em lugar de tirar dela um proveito moral, esta retrica pode ser perniciosa. Assim, a phantasia-memoria, que entorpece a vontade no mundo das imagens, pode prender perigosamente o seu servidor imediato ao solo aderente do sentido literal, impedindo realizar esta converso das imagens em proveito do invisvel. preciso, portanto, uma grande fora de desapego para substituir esta pedagogia agradvel [p.8] por uma contenso muda. O silncio, conforme Plutarco, portanto uma propedutica na esteira da qual o iniciado, jovem Proteu vido de perfeio, se constri e se desprende dos poderes duma retrica primitivista sob o controle da palmatria. Contudo, alm da sua capacidade de fazer nascer no aprendiz de filsofo esta ponderao do ouvir, que a condio primordial de toda a meditao, o silncio, escreve Plutarco, um "adorno seguro" (ksmos asphals2). Com efeito, calar-se o meio mais seguro de no cair na surdez relativa sua prpria linguagem, o que leva o narrador de Roland Barthes por Roland Barthes3 a dizer sobre alguns faladores lisonjeiros: "Ele ouvia que eles no se escutavam." No mago desta dinmica solipsista da linguagem, cada um, portanto, constitui para si mesmo uma obcecao auditiva. Mas a crtica plutarquiana deste estado, na realidade, concerne menos diretamente ao desabafo pessoal, ao desejo de confidncia que tirania herme-[p.9]nutica de toda a paidia. Audies, exposies, dissertaes, discursos, exegeses, tais so as numerosas palavras que, em Como ouvir, descrevem o prprio objeto da palavra. Nunca livre, ela est, quer diretamente submetida s especialidades da arte oratria quer indiretamente, implicada no jogo imperioso do comentrio. Se Plutarco respeita a primeira atividade, porque ela emana de um mestre responsvel, mais ou menos consciente dos efeitos de sua linguagem, mas necessariamente constrangido a um rigor retrico. Em compensao, a segunda das manifestaes lingsticas depende mais freqentemente de jovens ouvintes, desejosos de sobrepor palavra do mestre a rede anrquica de suas perguntas e glosas. retrica autorizada do orador profissional Plutarco ope a confuso adolescente e a mania compulsiva que dela deriva. Mas no se deve pensar que os costumes em voga nas sociedades de consumo do Ocidente sejam to estranhos ao mundo helenstico. Se ns estamos, numa escala infinitamente mais considervel, submersos pelo2 3

Como ouvir, 4. Paris, Seuil, "crivains de toujours", 1975, p. 174.

comentrio, [p.10] solicitados por milhes de palavras, tratando de livros que jamais abriremos, ou obras musicais de que nossos ouvidos permanecero virgens, a atmosfera antiga no era menos saturada pelo zumbido perptuo dos tribunais e de apressadas sentenas "ex catedra". Deste modo, quando Plutarco estigmatiza a anarquia juvenil, ele visa essencialmente a inconseqncia da espontaneidade. E por esta mesma razo ele censura esta miragem de significao, atrs da qual uma pseudo-retrica dissimula o despreparo filosfico. Pois um bom nmero de oradores pedagogos girvagos, vidos de glria e de dinheiro, no recuam diante da mentira para louvar ou vituperar mais brilhantemente. Com efeito, a Segunda Sofstica, a despeito de sua importncia na histria da res literaria, favoreceu, como demonstrou muito bem, no sculo XVII, o Pe. Cressolles, certos fanfarres da palavra (gloriosi Thrasones Verbi4), cuja arte declamatria, por [p.11] mais refinada que se considerasse, tendia ostentao, pompa, jactncia frvola. Os temas de seus panegricos, como de suas injrias, eram tanto personagens ou objetos reais, como fices ou assuntos fteis e paradoxais. Freqentemente muito ricos, e pagos generosamente pelas cortes imperiais ou autoridades provinciais, tais estetas ostentavam celebrar os heris republicanos, mortos como mrtires em Salamina ou Maratona, ou faziam o elogio da febre quart, do vmito, da calvcie, da surdez, de tersites, da mosca ou do caro. Para proferirem comodamente os seus discursos de aparato, eles dispunham de verdadeiros teatros: odees, ateneus, museus, onde o declamador do dia, assentado como uma "vedete" num trono muito alto e s vezes debaixo de um dossel (canopeus), arengava a multido cuidadosamente e no deixavam de experimentar o medo. Adiantavam-se com suntuosa equipagem, levando reunida na orquestra. Estas sesses oratrias eram precedidas de convites assistncia sob formas publicitrias: os sofistas preparavam-se para isto [p.12] no dedo um anel realado com pedras preciosas, "tanto que eles consideravam este ornamento como necessrio luz e dignidade da eloqncia5". s vezes se opunha a esta escola de esplendor uma faco que alardeava misria e preferia apresentar-se com andrajos, de ps descalos, afetando desprezo pela elegncia. Tanto contra o brilho dos asiticos como a negligncia ostensiva dos cnicos que Plutarco se exalta; pois, atravs de um processo de efeitos literrios, ele visa os declamadores demasiado apressados, que se pem afoitamente a tratar da elocuo antes de comear pela

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Theatrum veterum rhetorum, oratorum, declamatorum quos in Graecia nominabant . Paris, S. Cramoisy, 1620, p. 91. 5 Ibid., p. 239.

inveno6: "Por isso se deve suprimir a prolixidade e a superfluidade do discurso e procurar somente o [p.13] fruto, imitando, no as tranadoras de coroas, mas as abelhas. As primeiras, de fato, considerando os ramos floridos e perfumados da folhagem, para uni-los e entran-los, realizam uma obra agradvel, mas efmera e estril; as outras, muitas vezes atravessam voando os prados ornados de violetas, rosas e jacintos descem sobre o tomilho mais agreste e acre e nele pousam, 'preparando o louro mel'. Depois de tomarem o que lhes til, voltam voando a seu trabalho peculiar. Assim, o ouvinte que aprecia a arte e puro deve abandonar o que for florido e langoroso nos termos e dramtico e pomposo nas aes, denominando a 'planta dos zanges', que so os que se fazem de sofistas." O gnio do sculo I d.C. consiste, portanto, neste desdobramento que, pelo seu fausto e desprezo de uma propedutica elementar, invade todos os cantos e recantos de uma conscincia estudantil. Mais do que uma indstria lucrativa, uma metafsica e uma fenomenologia que esto comprometidas atravs deste desencadeamento [p.14] da declamao sobre uma juventude pronta a acolh-la e mal disposta a defender-se dela. Com efeito, a inconscincia sofista emprega uma epistemologia e uma moral de uma "temporalidade" mais que duvidosa. A dimenso anedtica de discursos de aparato freqentemente intermutveis, sobrecarregados de quadros destacveis, convocados para o meio da oratio, caso haja necessidade, obedece s exigncias implcitas de uma simultaneidade niveladora. Os ouvintes de uma cidade escutam, encobertos com uma nova vestimenta retrica, os panegricos que uma cidade vizinha ouviu na vspera. O assunto, portanto, tem uma importncia secundria, visto que tudo se deve apresentar no grande "bluff" de uma metamorfose quotidiana. A matria do discurso precedente , por assim dizer, "soldada" de um dia para o outro, pois a acuidade do sofista estimula cada acontecimento especfico, cada situao individual ou coletiva, inerente ao lugar que o acolhe, para lhe conferir o mximo poder de penetrao. A faculdade de adaptao infelizmente, neste caso, a [p.15] arte de um aguamento uniforme7. Os saltos da Histria e os do atleta vencedor no pentatlo so submetidos ao mesmo corte. E, paradoxalmente, esta urgncia oratria, por seu aspecto montono, produz uma espcie de anestesia do pensamento. A beleza da descrio de um templo6

Para Ccero e Quintiliano, a inventio consiste em procurar idias e lig-las logicamente entre si, construindo um esquema argumentativo; a elocutio a faculdade de superpor idia simples uma figura de retrica que a embeleza e afina. Ela a "ltima demo" da eloqncia. 7 Como ouvir, 18.

e do horror macabro de Salamina no passam de sobejos e trapos quando cai a noite e termina o espetculo de elocuo. Esta ttica de eterna reapresentao em pblico, que faz da obra do sofista uma constante tapearia de Penlope, se situa no oposto da criao: pois o texto filosfico ou a composio musical, por exemplo, so apostas sobre a durao8. Eles encarnam o "duro desejo de durar" e seus limites temporais so da ordem de uma extenso desconhecida em direo ao futuro. Vo ao encontro do ideal sofista pela influncia que exercem [p.16] sobre ns, o desinteresse que suscitam e a pacincia exigida pela sua aprendizagem. Diante da sua poupana lenta e cristalizante, a sofstica, ao contrrio, nos pede que invistamos apressadamente na bolsa das sensaes momentneas. Esta fugacidade contrasta com a permanncia quase religiosa da dissertao e da audio filosficas que tm a intensidade dos banquetes rituais e dos preliminares de um sacrifcio9. Por outro lado, a inconstncia da linguagem dos declamadores, com suas trapaas, suas espertezas contingentes, no pode seno favorecer a inveja e a tolerncia que so, conforme Plutarco, os inimigos do silncio. A ausncia do ouvir torna-se ento um problema de superestimao ou subestimao de si mesmo. o caso dos tmidos e dos pequenos mestres: "Uns, com efeito, por vergonha ou para discrio daquele que discorre, hesitam em interrogar e assegurar-se do discurso, mas, como se o tivessem compreendido, fazem sinais de assentimento; ou-[p.17]tros, levados por uma pretenso intempestiva e um vo esprito de rivalidade para com os demais, ostentam vivacidade e capacidade de aprender facilmente, e, embora declarem ter antes de reter, ao final nada retm. Em seguida sucede que os primeiros, reservados e discretos, ao se afastarem, ficam aborrecidos e embaraados e, finalmente, com vergonha ainda maior, voltam novamente a importunar aqueles que discorreram com perguntas tardias e retornos ao que foi exposto. Porm, os pretensiosos e atrevidos sempre acobertam e dissimulam a ignorncia com a qual convivem10." Tais so os flagelos do prtico, pois o desconhecimento do seu verdadeiro valor constitui um peso que causa obstculo ao exerccio pedaggico. Este desconhecimento procede, num caso, de uma virtualidade de cincia que se ignora e, noutro, de uma ignorncia ostensiva que quer passar por cincia. contra esta presuno que Plutarco se insurge, sobretudo quando ela emana

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Pois se a msica aparentemente uma arte da fuga, ela , na realidade, o tempo liberado da temporalidade. Como ouvir, 6. 10 Ibid., 17.

de um ou-[p.18]vinte que passa do grau de discpulo complacente ao de colega contestatrio: odiar um orador porque no se quer examinar os defeitos que ele aponta em ns mesmos, ou testemunhar-lhe rancor sob o pretexto de que ele torna patente a nossa mediocridade na elocuo so uma s e mesma coisa que depende da m vontade ou da m conscincia. De fato, um dos eixos deste livro diz respeito a esta cegueira diante das reprimendas e do xito moral dos outros. Tudo questo de malevolncia por desejo de autoproteo. O ouvinte malvolo no cessa de corrigir, graas s lentes apropriadas do seu rancor, os atraentes simulacros do discurso que ouve. Em face dos aparatos das falcatruas retricas, ele todo desconfiana. Esta, para ele, freia a confiana espontnea do ouvinte ingnuo ou do epgono benevolente, mas ela tambm desconfiana, isto , desconhecimento fraudulento, conspirao voluntria do cime contra uma verdade que ele no conhece, mas recusa. H, em Como ouvir, uma hiptese muito bela do ouvinte desconfiado, um tipo atrabilirio de audi-[p.19]o filosfica que segrega em si mesmo o seu prprio veneno e que, diversamente do caluniador ou do bajulador, a causa do seu suicdio moral: "Sem dvida, vrias disposies estultas e ms engendram a inveja para com os outros, mas quando a inveja, originria do amor inoportuno da prpria glria ou de uma injusta ambio, se volta contra os que falam, no deixa a pessoa com esta disposio prestar ateno ao que se diz, mas confunde e distrai o entendimento, examinando o seu prprio potencial de ver se inferior ao de quem fala, e considera, ao mesmo tempo, se os outros ouvem com gosto ou se o admiram. Fica abatida com os louvores a quem fala, e exasperada contra os presentes se o acolhem favoravelmente. Mas deixa que passem e se percam as palavras cuja lembrana a entristece; perturba-se, temendo que sejam melhores que as anteriores, apressando aqueles que falam para que parem, quando dizem coisas excelentes. Acabada a audio, o invejoso, sem dar ateno a nada do que foi dito, mas julgando pelas exclamaes e disposies do as[p.20]sistente, foge para longe dos que louvam como de loucos, e vai correndo agregar-se aos que censuram e tambm distorcem aquilo que foi dito; se nada houver neste sentido, faz comparao com os que teriam falado melhor e de forma mais capaz sobre o mesmo assunto, at que, corrompendo e arruinando a audio, a torna intil e imprestvel para si11". Este lance de valentia resume um certo nmero de censuras que Plutarco formula com respeito obstinao. Acontece infelizmente que esta se fixa definitivamente com o tempo, e que a recusa do ouvir,11

Ibid., 5

efeito de uma jovem frivolidade, se muda em constncia culpvel, de preconceito ciumento. O problema da audio consiste menos no modo de acolher um sofista, que faz necessariamente um apelo desconfiana, do que na maneira de seguir, passo a passo, as injunes de um filsofo. Compreender-se- que o ttulo do tratado concerne audio moral e no audio epidtica. Ora, o paradoxo da educao [p.21] dos gregos provm desta supremacia da eloqncia que acaba por obscurecer ou erradicar a menor exigncia de escuta interior. Aprender a falar desaprender a arte de ouvir. E, atravs desta passagem floreada sobre os defeitos de um invejoso, Plutarco mostra que as doenas da alma, instiladas secretamente pela rivalidade retrica, acabam por se transferir para uma anti-retrica por excelncia, que a audio de outro. Em vista disso, o tratado no cessa de mencionar a necessidade de uma audio ativa. o ego do ouvinte que faz tudo nesta questo: ele pode tornar opaca a relao de escuta na sua neutralidade inicial, pode tambm enfraquec-la ou embelez-la. Acontece freqentemente, como no caso de um recital em que a sonoridade do piano depende tanto da acstica da sala como da disposio de esprito do pblico (sobretudo quando ele se comove, como diz Valry, por placas), o auditrio que molda o sentido da comunicao. Este "eu no sei o que" ou este "quase nada" de interesse que ele mostra tacitamente ao orador a condio mis-[p.22]teriosa da audio perfeita. Plutarco tem razo de falar sobre questes tolas dos imbecis, sobre digresses dos pedantes, mas ele sabe que tudo consiste no silncio e no mais nesta palavra-espetculo, onde tudo se perde e nada fica estabelecido. O invejoso de Plutarco sofre devido falta de educao ou de generosidade, desta constante desconfiana em face da linguagem dos outros. O invejoso, como homem consciente de sua retrica, se recusa a deixar-se iludir na vertigem das palavras. Representa o inverso da sofistica ostentatria e, apesar disso, no filsofo. O fato que, ouvindo um filsofo, ele se apega, tal como um becio diante de um Grgias, ao gesto tnue das palavras que, diante de seus olhos embotados, desenham inumerveis simulacros. Sem jamais ficar reconhecido ao conferencista por ter-lhe apresentado, debaixo de uma forma atraente uma matria rida e indigesta, ele deixa de lado o valor ontolgico da dissertao que se lhe faz. Atravs desta fbula Plutarco nos mostra o que preciso fazer, como aprendiz de filsofo, a parte das pala-[p.23]vras e das coisas. Deve-se primeiramente remeter a prosa afetada de Lsias bigorna da elocuo socrtica. Depois preciso perguntar simplesmente a si mesmo, no fim da exposio: "Eu sou sempre o mesmo?" Mansido em presena de quem fala e reconhecimento de que se est

convencido, tais so as armas do bom ouvinte. A audio , portanto, questo de cuidado pessoal, da cura animi. E atrs deste pequeno texto discretamente alegrico se projeta a sombra da recepo e da parentica morais. Livro sobre a disponibilidade, Como ouvir se reduz pergunta: estamos dispostos a mudar? Responder a esta pergunta perceber que, no fim da leitura de Plutarco, jamais faremos, neste domnio, seno pequenos progressos. Apesar disto h um domnio em que a audio est como que desembaraada dos vexames sensoriais sem se achar, entretanto, completamente indene de toda malevolncia crtica: a msica. Pois, com a diferena de uma retrica autctone, a msica um pouco semelhante a uma lngua estrangeira; embora imite com maior ou menor [p.24] convenincia feies, movimentos, posturas de pensamento ou afeto, ela sempre diferente, por no ser jamais recuperada pelos sentidos, isto , por esta sociabilidade superficial da linguagem que supe uma srie de efeitos corruptores: piscadelas de olhos, complacncia consigo e com os outros, vulgaridade. A msica parece dizer, refratadas numa lngua nova, as impossibilidades da nossa. No princpio ela nos faz desaprender o real que desarticula sob o efeito de novos cortes: ela possui a enunciao (e notadamente a voz) de seu lugar ordinrio; numa palavra, ela faz descer a palavra ao intraduzvel: em ns ento se abala todo o edifcio do sentido apreendido, enquanto vacilam os direitos usuais da lngua. , sem dvida, benfico transportar-se a uma viso das diferenas irredutveis que nos pode sugerir o campo musical por meio de vislumbres. Ele, por meio de sua abertura aparente e por sua possibilidade de repisamento infinito, mergulha no romanesco integral, uma vez que escutar estes entrelaamentos de sons perceber uma psicolo-[p.25]gia em atos, sem compreender os seus pormenores, sem prover esta confuso de linhas sonoras de uma significao inexorvel12. As primeiras aparncias da audio musical seriam ento as seguintes: quando eu escuto um tal trio de Schubert, ou tal pea breve de Webern, eu percebo, na confuso do sentido exato, dos movimentos sem corpos, dos afetos sem suporte, eu noto uma paisagem que a razo lingstica no pode de nenhum modo adivinhar nem atingir. Ademais, eu avano numa [p.26] esfera cuja complexidade no tem limite comum com a linearidade sem apelo deCertamente, com freqncia se quis sublinhar o mimetismo divertido do pitoresco nas obras barrocas ou produes do romantismo. Mesmo se o Scarbo de Ravel uma transubstanciao de Aloysius Bertrand, estas obras, literalmente, no tm nenhuma significao. Somente os elementos fortemente referenciados ("cuco" da Sinfonia pastoral, "galinha" de Rameau, "cabana sobre patas" de Mussorgsky, "zfiros" de Atys, etc.) tm a vocao de efeitos do real, mas eles falam sobretudo imaginao, isto , fundamentam o seu sentido aparente numa possibilidade de serem reconhecidos ou no pelo auditor.12

meu pensamento ou de minha lngua. Muitas composies so tecidas de precaues, silncios, repeties, demoras, insistncias, suspenses cujo volume final acaba por fazer da msica ouvida um grande involtrio vazio de sentido; mesmo se cada uma das partes tem a consistncia de um n cheio, mesmo se, no mesmo momento, eu entendo e vivo do interior a passagem de uma para outra, a audio retrospectiva (ser isto prprio de todas as artes do momento?) no me parece mais ser seno uma maneira de diluio, de hemorragia de afetos em uma linguagem sem palavras, parcelada, fragmentada, difratada at o vazio. Assim, em toda a msica, a imitao permanece contingente; a funo de uma frase musical no representar, mas constituir um espetculo sonoro que fica, no fim das contas, muito enigmtico, mas que no saberia ser de ordem imitativa. A realidade de uma seqncia musical no est no seguimento natural das aes que a compem [p.27] (citamos o encadeamento aparente da sonata op. 81a de Beethoven intitulada: "Os adeuses a ausncia o retorno"), mas na lgica dos tons que a se expe, se arrisca, e se satisfaz. O que se passa no recitativo musical no est jamais do ponto de vista referencial, o que acontece apenas a linguagem musical, a aventura desta linguagem cuja vinda nunca deixa de ser festejada. A msica, para citar Mallarm, "mostra a sucesso das exterioridades do ato sem que nenhum momento conserve a realidade e, no final das contas, nada passa13. Uma questo se apresenta: ouvir, dizia Plutarco, extrapolar, reter os fragmentos de sentido. Ora, o que se retm de uma audio musical? Literalmente nada, isto , talvez a lembrana dos afetos vividos e, a rigor, uma pequena frase. Se possvel em um pensamento sintico expressar todo o contedo de uma dissertao ouvida, ou expli-[p.28]car o tema de uma tragdia, no se pode relatar um concerto. Pode-se, entre especialistas, glosar um dedilhado, explicar no piano uma descoberta que nos encantou na interpretao da vspera, mas para sempre ficar-se- condenado ao fragmento, ao pormenor significativo, anedota. No h dvida: aparentemente no se retm a msica como as palavras. Nenhum pensamento, embora fosse "supersnico", pode ser bastante forte para abarcar a totalidade do discurso musical. Em outras palavras, a audio, movida unicamente pelo senso da utilidade, seria por isso v, por ser circunscrita a um prazer inteiramente passivo e irremediavelmente transitrio. Naturalmente, esta impresso errnea. Isto depende do estatuto respectivo do animado e do inanimado no seio da esfera musical. Enquanto a conscincia deste tempo fica ofegante em13

"Esboado no teatro", em Obras completas, Paris, Pliade, p.296.

decretar a "vida", a "realidade" em todas as produes do esprito ou da matria, a prpria estrutura da msica deste tempo traz ou retm aparentemente o som na sua qualidade de produto, de marca [p.29] concisa do "libi" referencial por excelncia: o da existncia, da coisa viva; do drama "psicolgico". Assim, enquanto j difcil creditar um sentido (embora lgico14) s produes da msica antiga ou "romntica", torna-se completamente impossvel na aparncia dar uma significao a certas obras que escolheram morada na singularidade e na brevidade de um som sutil (assim as formas breves no estilo de Schnberg que trabalham mais na qualidade de emisso sonora, valor superrogatrio que abriga o som o fraseado, por exemplo que sobre o contnuo total ou a rede sonora). Levado, portanto, por esta massa sussurrante de sons, que constitui uma proteo deliciosa con-[p.30]tra todas as alienaes semnticas, eu vivo como em meio de uma lngua desconhecida, cuja respirao e aerao emotiva, eu, apesar disso, percebo. Sua pura significncia (que no significao) me arrasta a uma ligeira vertigem, em vazio artificial que s se realiza para mim: eu vivo no interstcio, desembaraado de todo o sentido pleno15. Plutarco talvez no tivesse amado esta perda de sentido pois ela lhe teria parecido muito distante do princpio de audio filosfica. Talvez mesmo o gnero epidtico, desacreditado por ele, lhe tivesse parecido mais musical que a prpria filosofia. No obstante, como admirador de Pndaro e leitor de Plato, Plutarco sabia que as sedues [p.31] dos sofistas, por vezes poludas com mentiras, no tinham limite comum com a harmonia desinteressada dos citaredos ou dos flautistas, pois esta (com a condio de ela ser desprovida de vaidade virtuosista) era, sem dvida, a prefigurao do alm. Ele sabia que a msica no mentia e condio necessria de uma modstia to favorvel audio que ela jamais se poderia imaginar. Esta neutralidade , sem dvida, o mais belo presente que os msicos sem complacncia poderiam fazer aos oradores e aos que os ouvem. PIERRE MARCHAUX [p.32]Com efeito, fcil calcar sobre a composio musical as diferentes partes da retrica aristotlica ou ciceroniana. Do ponto de vista da inventio, por exemplo, revelam-se na gramtica de J. S. Bach verdadeiros silogismos musicais. De igual modo, a elocutio musical pede emprestado tropologia retrica o seu arsenal de figuras: hipotiposes da sonata op. 106 de Beethoven, anforas da 2 sonata de Prokofieff, etc. 15 Portanto, a audio musical no somente questo de intuio ou sensao indefinidas. Ouvir estruturar, inconscientemente ou no, a ordem dos sons. Com efeito, a obra, sem nunca ser o fruto de um esforo cego, vive sob o duplo signo da analogia e da diferena. graas primeira que o ouvinte se pode orientar na progresso da obra e devido diferena que ele pode seguir e captar esta progresso.14

1. [Ouvir, condio necessria de toda aprendizagem]

Na ocasio em que tomas a toga viril, Nicandro1,j independente dos teus primeiros preceptores, eu te envio por escrito a dissertao que fiz sobre o modo de ouvir, para saberes ouvir convenientemente as pessoas desejosas de te persuadir. Pois a ausncia de autoridade, a qual certos jovens, por carncia de instruo, julgam ser liberdade2, constitui os desejos, como que libertos de [p.4] suas amarras, dspotas mais duros do que os mestres das crianas e os pedagogos; e assim como afirma Herdoto3 que as mulheres, ao despirem-se do vestido, despemse tambm da vergonha, igualmente alguns jovens, depondo a vestidura pueril, abandonam juntamente a vergonha e o temor; tirando a roupa que lhes impunha um carter, logo se enchem de desregramento. Tu, porm, que ouviste dizer muitas vezes que a mesma coisa seguir a divindade e obedecer razo4, tens por certo que a passagem da meninice para a idade viril no consiste, para os sensatos, em subtrair-se autoridade, mas na mudana de lder: em vez de ter como guia um assalariado ou um escravo comprado a dinheiro5, eles tomam a razo como condutor divino da vida. Somente aqueles que a seguem merecem ser considerados livres. Pois so [p.5] os nicos que, tendo aprendido a desejar o que se deve, vivem como desejam6; enquanto nos impulsos7 e aes estpidos e irracionais, a livre vontade envilecida e diminuda na intensaNo temos sobre Nicandro alguma informao que permita datar precisamente este tratado. Plutarco no visa uma roda particular. O que ele escreve sobre a loquacidade dos alunos (42 E, 43 A, 43 C, 48 B) ou sobre as reaes ora ruidosas, ora silenciosas dos ouvintes (41 C, 42 A, 43 F, 46 C, 39 D) de todos os tempos. Ele faz aluso, nesta frase, a uma clebre passagem da Repblica (339 c). 3 Enqute 1,8. 4 Cf. Plato, Crton, 46 f. 5 O didaskalos nomeado pelo Estado ou pelos pais dos alunos. 6 Segundo os esticos, somente a razo tem valor, pois apenas ela pode julgar o que bom para o indivduo: o que bom o que no pode ser transferido para foras estranhas. Aos olhos de Plutarco, como de Sneca, o essencial consiste em assegurar a pr6pria independncia. Ora, o meio e o objetivo da autonomia a soberania da conscincia, o governo por meio duma conscincia racional. Diante dum perigo, do apelo dos instintos, o indivduo s tem que se encerrar na fortaleza do governo prprio (hegemonikn); da ele sai com licena da sua razo para colher alguns honestos prazeres. 7 Ou seja, os impulsos dos sentidos independentes da razo (orm). Ver Ccero, Sobre a natureza dos deuses, II 22, 58.2 1

mudana das intenes. [p.6]

2. [O ouvido o rgo da sabedoria] Assim como dentre os inscritos8 como cidados uns, nascidos noutra terra e totalmente estrangeiros reprovam muito do que acontece e se aborrecem, outros do nmero dos metecos, educados segundo as leis e acostumados com elas, aceitam facilmente os deveres impostos e at os amam, igualmente mister que tu, durante muito tempo, criado junto da filosofia e habituado, desde o incio, a aplicar e unir tudo o que aprendeste e ouviste aos raciocnios filosficos, comeces a estudar a filosofia com nimo benevolente e familiar. S ela reveste verdadeiramente os jovens da beleza viril9e perfeita, proveniente da razo, e assim penso [p.7] que no ouvirs de antemo, com desagrado, o que Teofrasto10 diz do sentido da audio: ele , entre os demais, o mais venervel; nem as coisas visveis, nem as que se saboreiam, nem as tangveis trazem arroubos, perturbaes e terrores tais como aquelas que se apoderam da alma, irrompendo nela por meio da audio de certos estrpitos, golpes e sons. Mas ela tambm mais relacionada com a razo do que com as paixes. Com efeito, muitos lugares e partes do corpo proporcionam ao vcio a possibilidade de apoderar-se da alma, atingida por eles. Mas, para a virtude, os ouvidos dos jovens11 so o nico meio de conquistar a sua alma, se esta for pura, e se conservar, desde o princpio, inflexvel adulao e inacessvel s palavras licenciosas. Por isso Xencrates12 exorta [p.8] a colocar tapa-ouvidos mais nos meninos do que nos atletas, j que estes, com os golpes, s tm as orelhas deformadas, ao passo que aqueles ficam com os caracteres deformados. E no recomenda que nada ouam inicialmente, nem se faam surdos, mas se abstenham de ouvir palavras ms antes que outras ocupem, como vigilantes do carter13 sustentados pela filosofia, a parte da natureza pueril mais volvel e mais fcil de seduzir. Bias, o antigo, solicitado por

8 9

O termo estico; sobre este princpio ver Plato, Leis, 798 b Ler Sneca, Cartas a Luclio, I,4,2. 10 A referncia est igualmente nas Conversas de mesa, 666 C. 11 Plutarco talvez tenha em mente uma frase de Zeno. Ver Digenes Larcio, VII, 24. 12 Trata-se do discpulo de Plato que sucedeu a Espeusipo em 339, frente da Academia. 13 Plato na Repblica fala igualmente das cincias nobres que so como sentinelas (phrouroi) da alma. Ver 560 b.

Amasis14 para enviar-lhe a parte mais til e, ao mesmo tempo, mais vil do corpo duma vtima sacrificial, cortou-lhe a lngua e a remeteu, uma vez que a fala contm os maiores prejuzos e utilidades. A maioria das pessoas, ao beijarem ternamente as criancinhas, tocam as orelhas delas15 e as exortam a fazerem o [p.9] mesmo, dando-lhes a entender, de maneira pueril, que devem amar especialmente os que nos beneficiam por meio dos ouvidos. claro, sem dvida, que o jovem afastado de qualquer audio e sem experimentar nenhuma palavra, no s permaneceria sem dar fruto e nem sequer um verdor para a virtude, mas se transviaria para o vcio. Terrvel como se sua alma produzisse uma abundante vegetao em um campo inculto e em pousio. Se algum deixar o impulso para o prazer e a averso ao trabalho penoso (no os exteriores nem os introduzidos na alma pelas palavras, mas, por assim dizer, os inatos nela, fontes de inmeras afees e enfermidades) livres para avanarem para onde tm tendncia, se no disciplinar sua natureza, extirpando-os ou desviando-lhes o curso por meio de discursos intencionais, no haver entre as feras nenhuma que no se mostre mais domesticada que o homem16.[p.10]

3. [Sobre a maneira de ouvir] Portanto, visto que a audio proporciona uma grande utilidade aos jovens e tambm no menor perigo, julgo ser bom dialogar freqentemente sobre o modo de ouvir tanto consigo mesmo como com outra pessoa. Pois vemos tambm que a grande maioria vale-se mal disso, e exercitam o falar antes de se acostumar a ouvir. Julgam, de fato, que h um aprendizado e um estudo e que til valer-se da audio de qualquer maneira17. Certamente, para os que jogam bola, o aprendizado provm de lan-la e tom-la simultaneamente; contudo, no uso da palavra, o receber bem precede o lanamento, assim como o conceber e o conser-[p.11]var se antepem ao nascimento duma boa semente. Com efeito, dizem que os ovos vazios das aves so origem de14 15

Bias um dos sete sbios; Amasis um rei egpcio de que fala Herdoto (II, 162). Sobre este modo de beijar inslito ver Pollux, X, 100. 16 Nas Leis Plato compara o domnio e a domesticao das feras com a educao das crianas. 17 Epicteto fala duma necessidade da educao do ouvido (Entretenimentos, II, 24,4-5).

algo incompleto e resduos sem vida18; da mesma maneira, o discurso dos jovens incapazes de ouvir e desacostumados a beneficiar-se da audio vazio, e, ao discurso, cai-lhe bem o verso:Desconhecido obscuro disperso pelas nuvens19.

Para recolher o que derramado, as pessoas inclinam os vasos e os voltam para a posio inicial, para que o lquido verta realmente para dentro, e no para fora; os jovens entretanto no aprendem a se dispor e adaptar, com a devida ateno, o seu ouvido a quem lhes fala de sorte que nenhuma palavra til lhes escape. Todavia, o mais ridculo de tudo que, ao encontrarem casualmente com [p.12] algum que lhes faz o relato dum banquete, dum cortejo, dum sonho, duma altercao com outro, ouvem em silncio com toda a ateno. No suportam se algum os atrai para ensinar-lhes algo de til ou os exorta a cumprirem algum dever, ou repreend-los quando se excedem ou acalm-los quando encolerizados; mas, se podem, contestam soberbamente o que lhes foi dito, esforando-se por sarem vencedores; caso contrrio, afastamse e vo escutar palavras de outra espcie, bagatelas. Como a recipientes ordinrios e rachados, no enchem o ouvido com o que necessrio, mas com tudo. Os bons criadores de cavalos tornam a boca destes animais dcil ao freio; os bons educadores fazem os seus alunos dceis palavra ouvida, ensinando-os a ouvir muito e a falar pouco. Com razo Espntaro20, ao louvar Epiminondas, disse no ser fcil encontrar outro homem que conhecesse mais coisas e falasse menos. Ademais, dizem que a natureza deu a cada um de ns dois ouvidos e uma s lngua para falarmos menos e ouvirmos mais.[p.13]

4. [Elogio do silncio] Portanto, em todas as circunstncias, o silncio para o jovem um seguro adorno21,18

Estes ovos resultavam da fecundao da fmea pela brisa, sem interveno do macho (v. Varro, De re rustica, II,1,19). 19 Autor desconhecido. 20 Filsofo pitagrico, pai de Aristxeno. 21 Lembrana de Ajax, 293, de Sfocles.

principalmente quando, ao escutar outro, no se excita, nem exclama a cada instante, mas, mesmo se esta absolutamente no lhe agradar, se contm e espera que o palestrante acabe de falar; ainda assim no ope logo a objeo, mas, como diz squines22, deixa passar algum tempo, para ver se o expositor deseja acrescentar, modificar ou suprimir algo em seus ditos. Portam-se de modo inconveniente os que imediatamente se opem, falando aos que falam sem ouvir nem serem ouvidos.[p.14] Quem se acostumou a ouvir com autodomnio e respeito, acolhe e retm o que til, discerne e reconhece melhor o que intil ou falso mostrando-se amante da verdade e no quereloso nem precipitado e genioso. Em conseqncia disto, no sem razo, dizem alguns que preciso antes expelir a presuno e o orgulho dos jovens como se faz com o ar dos odres, se querem infundir neles algo de bom; do contrrio, cheios de auto-suficincia e vaidade, no so capazes de o receber.[p.15]

5. [O que ouvir com complacncia] Assim, a inveja unida maldade e malevolncia no boa para qualquer tipo de trabalho e serve de empecilho a tudo o que belo: alm disso constitui um pssimo assessor e conselheiro para o ouvinte: torna as palavras teis importunas, desagradveis e mal aceitas, porque os invejosos gostam mais de todas as coisas do que de boas palavras. Com efeito, a quem a riqueza, a glria e a beleza presentes nos outros fere, este apenas um invejoso23: pois sofre com a prosperidade alheia: contudo, aquele que se incomoda com o discurso bem discursado, se aflige com o que bom para si mesmo. De fato, assim como a luz boa para os que vem, tambm o discurso o [p.16] para os que o ouvem, desde que queiram receber. Sem dvida, vrias disposies estultas e ms engendram inveja para com os outros, mas quando a inveja, originria do amor inoportuno prpria glria ou duma injusta ambio, se volta contra os que falam, no deixa a pessoa com esta disposio prestar ateno ao que diz, mas confunde e distrai o entendimento, o qual examina o seu prprio potencial para ver se inferior ao de quem fala, e22 23

Trata-se de squines, o socrtico, filsofo do sculo IV a.C. Ver Horcio, Epstolas, I, 2, 57.

considera, ao mesmo tempo, se os outros ouvem com gosto e se o admiram. Fica abatido com os louvores a quem estiver falando, e exasperado contra os presentes se o acolhem favoravelmente. Mas deixa que passem e se percam as palavras cuja lembrana o entristece; perturba-se, temendo que sejam melhores que as anteriores, apressando aqueles que falam para que parem, quando dizem coisas excelentes. Acabada a audio, o invejoso, sem dar ateno a nada do que foi dito, mas julgando pelas exclamaes e disposies dos assistentes, foge para longe dos que louvam como de loucos, e vai correndo agregar-se aos que [p.17] censuram e tambm distorcem aquilo que foi dito; se nada houver neste sentido, faz comparao com os que teriam falado melhor e de forma mais capaz sobre o mesmo assunto, at que, corrompendo e arruinando a audio, a torna intil e imprestvel para si.[p.18]

6. [Admirao e desprezo ao ouvir discursos] Por isso mister que, quem pelo gosto de ouvir, em prol do desejo de se valorizar, escute com benevolncia e indulgncia aquele que fala como se fosse admitido em um banquete sagrado ou nas primcias dum sacrifcio. Deve louvar a capacidade de quem encontrar, afeioando-se ao prprio ardor de quem expe publicamente aquilo que sabe e de quem tenta persuadir os outros por meio daquilo com o qual foi ele mesmo persuadido. Aqueles que conseguiram xito devem considerar que este no proveio do acaso, nem espontaneamente, mas pela diligncia, pelo trabalho rduo e pela aprendizagem, e imitar essas coisas com admirao, e, sobretudo, com emulao; quanto s faltas cometidas, preciso refletir sobre elas para descobrir as causas que deram origem ao erro. [p.19] Assim como Xenofonte24 afirma que os administradores tiram proveito tanto dos seus amigos como dos seus inimigos, igualmente tambm os que falam so teis aos seus vigilantes e atentos no apenas quando tm xito, mas tambm quando erram: com efeito, a mesquinhez do pensamento, o vazio da expresso e maneiras grosseiras, uma comoo diante dos louvores acompanha de uma alegria vulgar por receb-los. Todas as coisas deste gnero ficam mais patentes aos que ouvem sobre os outros do que queles que falam sobre ns mesmos. Por isso, preciso direcionar a ns mesmos a censura daqueles que24

Econmico, I, 15.

falam, examinando se cometemos faltas despercebidas deste gnero. Efetivamente, a coisa mais fcil de todas reprovar o prximo, mas isto se torna intil e vazio se no houver referncia correo ou precauo de coisas semelhantes. E no se deve nunca hesitar em repetir para si mesmo, sobre os erros alheios o que Plato disse: "Acaso eu no [p.20] seria assim tambm?"25 Nos olhos dos outros vemos o reflexo brilhante dos nossos e, de igual maneira, as nossas palavras devem ser representadas nas deles, para no desprezarmos os outros com excessiva presuno e prestarmos uma ateno mais cuidadosa a ns mesmos quando falamos. Para tanto, til tambm o uso da comparao quando ficamos a ss depois da audincia, e, retomando um ponto que no nos pareceu bem ou suficientemente expresso, tentemos refazer o mesmo e dediquemo-nos a completar, de certo modo, umas coisas, a corrigir outras, a exprimir outras de forma diferente e a outras ainda retomar desde o comeo, experimentando, para tratar do tema. o que o prprio Plato fez com um discurso de Lsias26. Realmente, no difcil, mas at muito fcil contradizer um discurso pronunciado: contudo, substitu-lo por um melhor trabalhoso sob todos os aspectos. Assim declarou o Es-[p.21]partano27, ouvindo falar que Filipe tinha destrudo inteiramente Olinto: Mas ele provavelmente no poderia reedificar uma cidade semelhante. Portanto, quando discursando sobre um mesmo assunto, ns nos mostramos bem pouco superiores aos que j falaram a respeito, subtramos muito do nosso desdm e a nossa arrogncia fica rapidamente diminuda, bem como o nosso amor-prprio vencido em tais confrontaes.[p.22]

7. [Examinar o orador para apreciar o que ele diz] A admirao, certamente, se ope ao desdm e prpria das naturezas mais generosas e sem dvida tambm das mais brandas, mas muito certo que exige no pequena, e at maior precauo, pois os desdenhosos e arrogantes, sem dvida, tiram menos proveito dos que falam, mas os levados admirao e ingnuos so mais prejudicados e confirmam Herclito28, que25 26

V. Plato, Alcibades, I, 2, 57. No Fedro onde Scrates corrige o estilo de Lsias (237 a). 27 Um espartano chamado Agespolis, rei de Esparta, em 371 a.C. 28 Herclito de feso, fragm. B 87 Diels-Kranz.

dizia: "O indolente gosta de deslumbrar-se por toda a palavra que ouve.29 preciso, portanto, elogiar sinceramente a quem fala, mas dar crdito s suas palavras com precauo, como um observador bene-[p.22]volente e franco do estilo e da elocuo dos disputantes, mas ser um examinador meticuloso e severo da verdade e utilidade daquilo que dito, para que, por um lado, os discursadores no os odeiem e, por outro lado, os seus discursos no nos prejudiquem: saibamos que, devido benevolncia e ao crdito para com os discursadores, acolhemos sem perceber muitas opinies falsas e perniciosas. Os arcontes dos lacedemnios, tendo colocado prova a proposio dum homem que no vivia convenientemente, mandaram a outro, reputado pela sua vida e costumes, que o proferisse. Assim, com muito acerto e proveito da plis, acostumavam o povo a guiar-se mais pelas maneiras do que pelas palavras dos conselheiros30. Mas, quanto aos discursos filosficos, mister prescindir da fama de quem fala e examin-los em si mesmos. Assim como na guerra, tambm nas confe-[p.24]rncias h muitas coisas frvolas. Com efeito, os cabelos brancos do conferencista, a modulao da sua voz, a sua gravidade, jactncia e, sobretudo, os gritos, os barulhos, os saltos dos presentes deixam aturdido o ouvinte inexperiente e jovem, como se fosse arrastado por uma correnteza. Ademais, o estilo encerra algo de falaz, quando agradvel e amplo, acrescentando uma certa magnitude e esmero aos temas tratados. Assim como nos que cantam ao som da flauta a maior parte das falhas escapam aos ouvintes, igualmente uma locuo prolixa e grave cega o ouvinte em relao ao que se declara. Assim Melncio, como parece, interrogado sobre a tragdia de Digenes31, disse que no a tinha compreendido por estar obscurecida pelas palavras. Deste modo, nos discursos e exerccios da maioria dos sofistas, eles no s usam das palavras vs para encobrir os pensamentos, mas, tornando a voz suave com certo tipo de harmonia, brandura e mo[p.25]dulao, agitam e arrastam quem ouve num furor bquico: proporcionam um vo prazer e recebem em troca uma glria mais v ainda. Assim acontece com eles o que disse Dionsio. Este havia prometido a um reputado tocador de ctara, durante um espetculo, presente-lo magnificamente. Mas depois nada lhe deu, como se j tivesse pago o suficiente, dizendo o seguinte: "enquanto me encantavas com o teu canto, tambm te deleitavas com tua

29 30

Ver tambm Plutarco, Como se devem ler os poetas, 9, 28 D. Este episdio relatado no Contra Timarco de squines (180-181). 31 Digenes de Snope, autor de sete tragdias.

expectativa. justamente esta a recompensa que tais audies merecem para os seus oradores: causam admirao enquanto do prazer; em seguida, ao dissipar-se a agradvel sensao de ouvir, a glria os abandona. Para uns o tempo que se perde, para outros, a vida.[p.26]

8. [julgar os discursos pelos benefcios que nos proporcionam] Por isso se deve suprimir a prolixidade e a superfluidade do discurso e procurar somente o fruto, imitando, no as tranadoras de coroas, mas abelhas. As primeiras, de fato, considerando somente os ramos floridos e perfumados da folhagem, para uni-los e entran-los, realizam uma obra agradvel, mas efmera e estril; as outras, muitas vezes atravessam voando os prados ornados de violetas, rosas e jacintos, descem sobre o tomilho mais agreste e acre e nele pousam, preparando o louro mel32.[p.27] Depois de tomarem o que lhes til, voltam voando ao seu trabalho peculiar. Assim, o ouvinte que aprecia a arte e puro deve abandonar o que for florido e langoroso nos termos e dramtico e pomposo nas aes, dominando a "planta dos zanges"33, que so os que se fazem de sofistas; mas esse ouvinte deve, por meio da ateno, retirar, mergulhando no esprito do discurso e na disposio do orador, o que for til e proveitoso. Que se lembre de que no veio a um teatro ou a um recital, mas a uma aula e uma lio, a fim de melhorar a vida por meio das palavras. Por conseguinte, deve-se examinar e julgar o valor da audincia em si mesma e pelas disposies impresses pessoais experimentadas; conjeturar se alguma paixo se abrandou, ou algum aborrecimento se aliviou, se suas boas resolues e sentimentos elevados se tornaram mais firmes, se brotou em si o entusiasmo para a virtude e o bem. Certamente, quem sai duma barbearia sem, diante do espelho, passar a mo pela cabea para [p.28] examinar o corte de cabelo e a diferena produzida por este. Do mesmo modo, quem32 33

Simonides, fragm. 47 Bergk. Palavra de Plato, Repblica, 564 E.

se retira duma audincia ou aula deve logo voltar-se sobre si mesmo, procurando saber se a alma, renunciando a algum sentimento importuno e excessivo, tornou-se mais gil e amvel. Como diz Arston34: "O banho e o discurso que no purificam no servem. [p.29]

9. Por isso, que o jovem sinta prazer em tirar proveito das alocues ouvidas, mas no deve fazer do prazer o fim delas, nem julgar ser necessrio sair das aulas dum filsofo "garganteando e radiante de alegria35", nem procurar ser ungido com perfumes, quando precisa de fomentaes e cataplasmas. Deve ficar grato como se algum purificasse com palavras acres a sua mente atordoada e cheia de obscuridade, do modo que se limpa uma colmeia com fumaa. Realmente, se no convm aos palestrantes negligenciar totalmente o encanto e a fora persuasiva do estilo, o jovem, ao menos no princpio, deve preocupar-se o menos possvel com ele. Depois, sem dvida, como os que [p.30] bebem, j matada a sede, observam as cinzeladuras das taas, girando-as, deve-se permitir aos jovens j imbudos de princpios filosficos e para tomarem flego, que examinem o estilo, a ver se tem elegncia e magnificncia. Quem, logo de incio, no se prende aos fatos e exige um discurso tico e simples36 semelhante a quem no quer tomar um contraveneno, se o vaso no tiver sido feito com argila tica de Clias37, nem vestir no inverno um manto que no fosse de l de ovelhas ticas, detendose inativo e imvel, por assim dizer, na vestidura gasta da prosa de Lsias38, rala e despojada. Pois essas doenas produzem, sem dvida, muita devastao mental e dos juzos sos, alm de muita charlatanice e lo-[p.31]quacidade nas escolas: assim os mocinhos no observam a vida nem as atividades pessoais e pblicas dum homem que faz profisso de filsofo, mas julgam dignos de louvor os floreados do discurso, da elocuo e da bela apresentao da matria. Quanto a esta, no sabem nem querem examinar se til ou intil, necessria ou vazia e suprflua.[p.32]34 35

Aristo de Quios, estico. A expresso de Plato, Repblica, 411 a 36 Pluto rejeita o aticismo de Lsias pois v nele uma maneira de esnobismo. 37 A argila do promontrio de Colias era muito procurada para a cermica. 38 Lsias tem um renome de finura. A comparao com uma se reencontra em Quintiliano, IX, 4, 17.

10. [Sobre os temas dos discursos] A isto se segue uma advertncia sobre as questes propostas. Pois quem vem a um jantar deve servir-se do que est posto mesa, sem exigir outros nem critic-lo. Assim, quando se chega ao festim das dissertaes filosficas, j determinado o assunto, se escuta em silncio a quem discorre; pois aqueles que o desviam para outros temas e interpem perguntas, apresentando sucessivas dvidas, no so agradveis nem se prestam audio atenta nem tiram proveito algum; perturbam aquele que discorre e, ao mesmo tempo, seu discurso. Quando, porm, aquele que discorre exorta os ouvintes a perguntar e postular, necessrio sempre mostrar que se postula algo de til e necessrio. Ulisses motivo de zombaria para os pretendentes [p.33] ao mendigar pedaos de po e no espadas e caldeires39, pois julgavam sinal de magnanimidade tanto dar como pedir algo de grande. Com maior razo, ainda algum zombaria dum ouvinte que impelisse o interlocutor para problemas insignificantes e intempestivos como certos jovens que procedem como um charlato e que, ostentando seu contedo apreendido de dialtica e matemtica, tm o costume de postular sobre a diviso do que indeterminado e o movimento produzido no sentido lateral e no sentido diagonal40. A estes pode-se dizer o que foi dito por Filtimo41 a um tsico e purulento. Quando este lhe falou pedindo um remdio para um panarcio, percebendo o seu estado pela sua pele e sua respirao, afirmou:[p.34] "No h para ti, meu caro, que se falar de panarcio." Portanto, nem para ti, jovem, tempo de refletir sobre tais questes, mas antes sobre como te estabelecers numa vida modesta e saudvel, tendo te livrado da presuno, da jactncia, dos amores e tambm das futilidades.[p.35]

39 40

Odissia, 5, 22. Ver Plato, Timeu, 63 c. 41 Trata-se do clebre mdico do qual fala Ateneu (III, 79 A, 81 B, 82 F, etc.).

11. [Propor temas com pertinncia] preciso ainda que, adaptando-se de modo inteiramente benvolo experincia e propriedade natural daquele que discorre, naquilo em que este muito superior a si prprio, faa perguntas e no force aquele que filosofa mais eticamente, levando-o a dificuldades de matemtica e de fsica, mas o que se gaba dos conhecimentos de fsica a decidir sobre as "posies conexas" ou soluo de "raciocnios falsos"42. Com efeito, se algum tentasse rachar lenha com uma chave ou [p.36] abrir uma porta com um machado, no pareceria tratar indignamente aqueles instrumentos, mas somente priv-los da utilidade de ambos; tambm os que exigem do que discorre o que no lhe natural e nem de sua prtica mas no colhem nem recebem o que ele tem e d, no apenas se prejudicam com isto, mas ademais incorrem na maldade e malevolncia.[p.37]

12. [Escolher oportunidades favorveis ao propor os temas] Deve-se precaver tambm de postular muitas coisas e insistentemente, pois isto , de certo modo, prprio de quem deseja pr-se em evidncia. Ouvir, porm, com boa vontade o outro expositor denota um apreo pelo saber e sociabilidade, a no ser se algo de pessoal o perturbe e uma paixo que precise ser refreada o impulsione ou uma enfermidade que necessite ser lenida. Certamente no " melhor esconder a ignorncia", como afirma Herclito, mas exibi-la a todos e cur-la. Se, porm, um assomo de clera ou um mpeto supersticioso ou uma repentina desavena entre os familiares ou um desejo passional proveniente do amor, "que tange as intangveis cordas do corao43" [p.38]As sunemmena aximata so proposies das quais a segunda induzida pela primeira. Cf. Aulo Glio Noites ticas, XVI, 8, 9. Os pseudmenoi logoi so raciocnios falsos nos quais o esprito sente a presena duma falha que ele no pode descobrir. 43 Fragmento dum autor desconhecido.42

agitar ainda mais o pensamento, no se deve fugir para outros discursos evitando a refutao, mas ouvir durante as discusses e depois dessas discusses aproximar-nos deles em particular e examinar ainda mais. Contudo, no se deve fazer o contrrio, como a maioria que se alegra com os filsofos e se admira quando falam sobre outros temas; quando, porm, o filsofo, deixando os outros assuntos, lhes fala em particular, com franqueza, e lhes traz memria assuntos importantes, eles o suportam de m vontade e o tm por indiscreto. Pois, de certo modo, pensam ser preciso ouvir os filsofos nas escolas como os atores trgicos no teatro, mas pensam que, nos atos praticados fora das escolas, em nada aqueles se distinguem deles prprios. Tendo experimentado isso com sucesso em relao aos sofistas (pois estes tendo-se levantado de seu trono e deixado os seus livros e tratados elementares, para a maioria, se mostram pequenos e inferiores nas partes verdadeiras da vida). Entretanto, tendo experimentado isso sem sucesso em relao aos verdadeiros filsofos, [p.39] no sabendo que a serenidade deles, a brincadeira, o aceno de cabea, o seu sorriso e ar severo, e principalmente o discurso, dirigido a cada um deles em particular, produzem algum fruto vantajoso para os que se acostumaram a estar pacientes e atentos. [p.40]

13. [Sobre o louvor moderado aos oradores] Igualmente se requer, no que toca aos louvores, a convenincia de uma certa precauo e de um meio termo, por no ser prprio do homem livre nem a falta nem o excesso. Pois penoso e fatigante o ouvinte em relao a tudo e impassvel quanto ao que dito cheio duma presuno no cicatrizada e duma jactncia imanente, como se pudesse dizer algo melhor do que aquilo que dito, sem mover as sobrancelhas nem emitindo a voz benvola como testemunha de seu prazer em ouvir, mas em silncio, com uma gravidade afetada e um ar altivo. Persegue deste modo a reputao dum homem equilibrado e profundo, como se parecesse que lhe privassem do dinheiro tanto quanto concedem elogios a um outro. So realmente numerosos os que entendem mal e de for-[p.41]ma equivocada o dito de Pitgoras: este afirmou que da filosofia proveio-lhe o no admirar-se com nada, aqueles, no entanto, disseram: nada louvar nem honrar, dedicando o

pensamento ao desdm e buscando intensamente um ar solene atravs da arrogncia. Sem dvida o discurso filosfico suprime o espanto e a estupefao provindos da inexperincia e da ignorncia por meio do conhecimento e da investigao da causa acerca de cada um, mas no extingue a facilidade, a modstia e o amor aos homens. Pois, para os verdadeira e seguramente bons, a honra mais valorosa honrar aquele que digno, e o ornato mais nobre o orn-lo com honras por um excesso e superabundncia de reputao. Porm, os mesquinhos em louvar os outros parecem ainda estar carentes e vidos de elogios. Em contraposio, o oposto destes nada criticando, mas a cada palavra, e a cada slaba ficando fora de si e vociferando, leve como pssaros, muitas vezes desagrada mesmo aos que debatem e aborrece sempre os ouvintes, fazendo-os tremer [p.42] de medo e excitando-os contra a sua opinio, como se fossem arrastados pela violncia e vergonha a fazer coro com eles. Nenhum proveito tira por ter perturbado e agitado a audio com louvores e dela se retira levando consigo uma das trs reputaes: parece ser dissimulado, adulador e desprovido de bom gosto no que tange aos discursos. Quando se pronuncia uma sentena, preciso que se ouam as partes sem averso alguma nem complacncia, mas com disposio favorvel para o justo; ora, nas audies eruditas nenhuma lei nem juramento44 nos impedem de acolher o interlocutor com benignidade. Tambm os antigos dedicaram os mesmos santurios a Hermes e s Graas na persuaso de que a palavra, antes de tudo, demandasse um acolhimento condescendente e amigvel. Efetivamente no possvel que aquele que discorre seja inteiramente rejeitado[p.43] ou equivocado, de sorte que no apresente algum pensamento digno de louvor, nem a lembrana de outros, nem o prprio tema e inteno do discurso ou ao menos a elocuo e a disposio do que dito45.

como por entre os cardos e as speras saras brotam as flores dos tenros goiveiros brancos46.

44 45

Aluso aos juramentos dos heliastas. Duas partes da retrica: a dispositio (taxis) consiste em pr em ordem o que se encontrou, em classificar os resultados da inventio (euresis); a elocutio reside em refazer estilisticamente aquela disposio. 46 Autor desconhecido.

Quando ento alguns apontam ostensivamente elogios ao vmito e febre e, por Zeus, marmita, sem perder com isso a sua fora persuasiva, ser que um discurso feito por um homem que, dum modo ou doutro, se cr filsofo ou tido por tal no proporcionaria absolutamente algum alento nem uma oportunidade aos ouvintes bem [p.44] dispostos e afveis aos elogios? Todos os que esto na flor da idade, como afirma Plato47, dum modo ou doutro instigam o apaixonado: assim, ele chama os de pele clara, filhos de deuses; os de pele escura viris; o de nariz adunco denomina principesco; o de nariz achatado gracioso; o de tez alourada tem cor de mel; com estes termos carinhosos ele os acolhe amigavelmente e trata com afeio. Pois o amor tenaz como a prpria hera que se agarra com todos os pretextos. Ora, com maior razo o que vido de ouvir e de ilustrar-se encontrar sempre algum motivo pelo qual no se mostrar despropositado em louvar manifestamente cada um dos que discorrem. De fato, Plato, embora no louvasse o discurso de Lsias48 quanto inveno e criticasse sua desordem, contudo elogia sua maneira de expor, dizendo que cada um dos termos " torneado" de modo claro [p.45] e preciso. Poder-se-ia censurar em Arquloco a temtica, em Parmnides a versificao, em Foclides a banalidade, em Eurpides a verbosidade, e em Sfocles a irregularidade do estilo; do mesmo modo, dentre os oradores, sem dvida nenhuma, h o que no tem um carter, o que indolente em relao paixo, o que desprovido de graa: cada um, porm, louvado pela capacidade particular que possui por natureza para mover e conduzir. Desta maneira, os ouvintes tm facilidade e abundncia para acolher com benevolncia os que discorrem. Com efeito para alguns, mesmo se no testemunhamos pela voz, basta proporcionar uma doura de olhar, uma tranqilidade do semblante, bem como uma disposio favorvel e isenta de enfado. Agora ento h aquilo, em relao aos desprovidos de tudo, como as ocupaes corriqueiras e comuns a toda audio: sentar-se austero, sem se inclinar, na postura correta, apenas um olhar dirigido quele que discorre e uma disposio para uma ateno ativa, o estabelecimento [p.46] de um semblante puro e que no exprima no somente qualquer insolncia e mau humor, mas tambm outros encargos e preocupaes: assim como em toda a obra o belo se perfaz de muitas coisas, como, por assim dizer, de nmeros que chegam a um ponto conveniente em virtude duma certa justeza de propores e harmonia, ao passo que o vergonhoso se origina logo da falta dum s elemento adequado ou do excesso, fora do seu47 48

Repblica, 474 d, que Plutarco cita numa ordem diferente, maltratando a sintaxe. Fedro, 234 s.

devido lugar, tambm, em se tratando da prpria audio, o rosto carrancudo, agravado pelas sobrancelhas franzidas e pelo desagrado, o olhar errante, as contores do corpo, o entrecruzar inconveniente das pernas, um aceno de cabea, um cochicho com outro, um sorriso, bocejos sonolentos, um rosto baixo e quaisquer outras atitudes anlogas so censurveis e devem ser evitadas com muito cuidado. [p.47]

14. [Erros cometidos ao ouvir] Por outro lado, aqueles que julgam que h alguma tarefa do que discorre e nenhuma do ouvinte pretendem que aquele venha tendo refletido e se preparado, enquanto eles mesmos, sem nada terem considerado e sem cuidado do papel que lhes incumbe vem precipitados se sentar, precisamente como se viessem a um jantar, para se regalar, ao passo que os outros se afadigam. Ora, tambm tarefa do conviva que tem bom gosto, muito mais do que do ouvinte. Pois o ouvinte companheiro no discurso e colaborador daquele que discorre, mas no deve ser obrigado a procurar amargamente as falhas daquele, fazendo-o prestar conta de cada palavra e circunstncia, enquanto, sem justificao a dar, cometendo incongruncias e muitos solecismos, se porta com desacerto [p.48] e deseducao durante a audio. Quando se joga bola quem a apanha deve movimentar-se num ritmo de harmonia com quem lana. De igual modo, nos discursos h uma certa harmonia entre aquele que discorre e o ouvinte, se cada um dos dois observa o que lhe compete.[p.49]

15. [Maneira conveniente de aplaudir. Da insolncia e da tolice dos ouvintes] Por outro lado, no preciso usar das expresses de louvor ao acaso. Pois Epicuro desagradvel ao falar sobre os bilhetes dos amigos pelo fato de suscitarem em si ruidosos aplausos. E os que introduzem atualmente nas salas de audio termos at ento estranhos exclamando: "que divino!" e "que inspirado!", "inigualvel!" como se ainda no bastasse dizer:

"que lindo!", "que sbio!", "que verdadeiro!", expresses usadas pelos ouvintes de Plato, Iscrates e Hiprides, como sinais de louvor. Aqueles, contudo, se portam de modo excessivamente desarrazoado e acusam os que discorrem de carecerem de louvores desmesurados e suprfluos. Extremamente desagradveis so tambm os que testemunham o seu louvor aos que discorrem, acompanhado de juramento, como [p.50] se testemunhassem num tribunal. No menos importunos do que esses so os que se desviam das qualidades; assim exclamam ao filsofo: "que picante!" e ao velho: "que vigoroso!", "que brilhante!" transferindo aos filsofos os termos empregados nos exerccios escolares de oratria. Assim tributam aos discursos sensatos um louvor conveniente quando se brinca e fazem-se elogios a uma cortes, como se coroassem um atleta de lrios e rosas e no de louros ou ramos de oliveira agreste. Eurpedes, o poeta, ao ditar aos seus coreutas um canto feito para um arranjo musical, um deles riu... Disse ento aquele: "se no fosses insensvel e ignorante no ririas, se eu o cantasse na semildia49". Um homem filsofo, poltico, como julgo, poderia abater a arrogncia dum ouvinte desenvolto com as seguintes palavras: "tu me pareces insensato e desregrado pois quando eu ensino, admoesto ou disserto sobre os [p.51] deuses ou a respeito da vida pblica ou do governo, no gargantearias nem danarias ao ouvir minhas palavras". Repara portanto se no verdadeiramente possvel que, quando um filsofo fala, os que esto do lado de fora ficam sem saber, devido aos gritos e alaridos dos que esto dentro, se os louvores so tributados a um flautista ou citaredo ou a algum danarino.[p.52]

16. [Do justo meio-termo em matria de ouvir] certo que no se devem ouvir as admoestaes e reprimendas nem com insensibilidade nem de modo covarde. Pois os que suportam com facilidade e displicncia o fato de serem censurados pelos filsofos, a ponto de rirem quando so repreendidos e de louvarem a quem os repreende, se portam como os parasitas em relao aos que os alimentam quando so por eles insultados, so inteiramente atrevidos e arrogantes, no do boa nem verdadeira mostra de firmeza viril, devido ao seu descaramento. Sem dvida, suportar sem desgosto e alegremente a49

A respeito deste modo lento e pattico ver Plutarco, sobre a msica 1136 C.

zombaria isenta de insolncia e lanada com humor amvel para diverso no prprio do vil nem deseducado, mas daquele que livre e de carter espartano; pelo contrrio, quando se emprega uma censura ou [p.53] admoestao para a correo de um carter por meio de palavras convincentes tal como dum remdio acre, se o visado por elas no as ouve abatido, coberto de suor, e pleno de vertigem, com a alma inflamada pela vergonha, mas indiferente, galhofeiro e zombeteiro, se comporta como um jovem terrivelmente desprovido dum esprito de liberdade e insensvel vergonha, por ter o costume de errar e perseverar, na alma, a modo de carne endurecida e calejada, no recebe mais aoite. Dentre aqueles que so assim, os jovens dotados de disposio oposta, mesmo se uma s vez tenham sido censurados, fogem sem retornar e abandonam a filosofia. Possuem, por natureza, o belo princpio para se salvarem: envergonhar-se, mas o perdem por comodismo e moleza; sem fora para suportarem as repreenses nem aceitando as correes com nobreza de nimo, eles se voltam em sentido contrrio s conversas agradveis e amveis de certos aduladores ou de sofistas que os encantam com palavras inteis e vs, embora doces. Assim como quem, aps uma inci-[p.54]so, foge do mdico e, no aceitando o curativo com a ligadura, sofre na parte dolorida, e recusa a utilidade do tratamento, assim, quem no expe a sua ignorncia palavra aguda e cortante para cicatrizar e acalmar deixa a filosofia ferido e com dores, sem nada ter aproveitado. No apenas, como afirma Eurpedes, a ferida de Tlefo suavizada pelas limalhas da lana50, mas a palavra mordaz provinda da filosofia enraizada nos jovens de boa ndole, tambm a prpria palavra que fere cura. Por isso certamente necessrio sofrer e ser assim mordido, mas no aquebrantar-se nem desanimar ao receber uma censura. Contudo, como numa iniciao nos mistrios em que a filosofia nos introduz, depois de suportar as primeiras purgaes e as agitaes, necessrio esperar que algo de delicioso e brilhante resulte da presente inquietude e perturbao. [p.55] Mesmo se lhe parecer que a reprimenda tenha sido feita injustamente, bom suport-la e continuar ouvindo pacientemente. Quando este cessar de falar, v ter com ele para se justificar e pedir que reserve aquela franqueza e o rigor, ento usados para consigo, quando tiver verdadeiramente cometido algumas faltas.[p.56]50

Nanck-Snell, fragm. 724.

17. [Dois tipos de alunos: os tmidos e os sabiches] Ademais, como as primeiras lies sobre a escrita, a lira e os exerccios da luta produzem muita agitao, esforo e incerteza, mas depois de progredir pouco a pouco, como sucede com os homens, muitos usos comuns e o conhecimento adquiridos tornam todas as coisas agradveis, tratveis e fceis de dizer e fazer, de modo semelhante, apesar de a filosofia encerrar, certamente, algo de inextricvel e inslito nos primeiros nomes e questes, no se deve, por medo, abandonar os seus princpios covarde e timidamente. Deve-se esperar pacientemente o hbito comum que torna agradvel tudo o que belo, experimentando por si mesmo cada um dos pontos, perseverando e desejando ardentemente o ir adiante. Ele vir, realmente, dentro de no muito tempo, trazendo [p.57] muita luz para o nosso aprendizado, e inspirando-nos amores formidveis pela virtude, sem os quais s pode tolerar o restante da vida um homem desafortunado ou covarde que abandonou a filosofia por causa de sua covardia. Talvez tambm os assuntos apresentem algo difcil de compreender, no incio, para os jovens e inexperientes; entretanto, eles caem na maior obscuridade e ignorncia por eles mesmos, cometendo os mesmos erros a partir de naturezas contrrias. Uns, com efeito, por vergonha ou para discrio daquele que discorre, hesitam em interrogar e assegurar-se do discurso, mas, como se o tivessem compreendido, fazem sinais de assentimento; outros, levados por uma pretenso intempestiva e um vo esprito de rivalidade para com os demais, ostentam vivacidade e capacidade de aprender facilmente, e, embora declarem ter antes de reter, ao final nada retm. Em seguida sucede que os primeiros, reservados e discretos, ao se afastarem, ficam aborrecidos e embaraados e, finalmente, com vergonha ainda maior, voltam novamente a importunar aqueles que discorreram com perguntas tardias e retornos ao que foi exposto. Porm, os pretensiosos e atrevidos sempre acobertam e dissimulam a ignorncia com a qual convivem.[p.59]

18. [Sem ser inoportuno nem por demais minucioso, o aprendiz de filsofo dever exercer duas virtudes da aprendizagem: a cpia e a perfeita inteleco] Portanto, rejeitando toda a pusilanimidade e presuno desse tipo, dispostos a aprender e a compreender com inteligncia o que dito apropriadamente, suportemos os risos dos que se julgam de boa natureza, como Cleanto e Xencrates, que, no obstante parecessem ser mais lentos que os colegas, no se esquivavam de aprender nem se desencorajavam, mas se adiantavam em gracejar deles mesmos, comparando-se a vasos de gargalo estreito e a tabuinhas de bronze, como se recebessem com dificuldade as palavras, mas as conservassem fiel e firmemente. Pois no apenas, como afirma Foclides, preciso muitas vezes ser logrado ao procurar ser um homem nobre51 [p.60] mas tambm ser ridicularizado freqentemente e menosprezado e, tendo recebido sarcasmos e brincadeiras de mau gosto, repelir com todo o rigor a ignorncia e triunf-la. No se deve contudo negligenciar a falta cometida em sentido contrrio pela qual uns, desagradveis e fatigantes devido sua inrcia, no querem, quando ficam a ss, ter o trabalho, mas o do quele que discorre interrogando-o muitas vezes sobre os mesmos temas, semelhantes aos passarinhos que ainda no voam, abrindo sempre o bico para o bico dum outro, desejando receber tudo j inteiramente preparado pelos demais. Outros, caadores da glria da ateno e da acuidade onde no preciso, cansam os que discorrem com a sua loquacidade e sua coscuvilhice, sempre duvidando de coisas desnecessrias e buscando demonstraes do que no preciso: assim o caminho curto se torna longo52, [p.61] como afirma Sfocles, no s para eles, mas tambm para os outros. Em verdade, detendo o mestre a todo momento com perguntas fteis e suprfluas, como sucede numa viagem, impedem a continuidade da aprendizagem, afetada por paradas e dilaes. Com efeito, tais pessoas, segundo51 52

Fragm. 6 West. Sfocles, Antgona, 233.

Jernimo53, maneira de cachorrinhos medrosos e vorazes que mordem, em casa, a pele das feras e lhes arrancam os plos, no atacam. Exortamos estes preguiosos a que, quando tiverem compreendido os pontos principais para o entendimento, componham por si mesmos o resto, guiem, por meio da memria, a inveno e tomem o discurso alheio como origem e semente para nutrir e desenvolver. Pois a inteligncia no necessita de ser enchida completamente como um vaso, mas de ser inflamada como a madeira, produzindo um impulso inventivo e um apetite para a verdade. Como quem necessita do fogo da casa de vizinhos e, encontrando-o abundante e esplen-[p.62]doroso, ficasse sentado aquecendo-se indefinidamente, assim, aquele que vem para tomar parte no discurso de um outro no pensa ser preciso acender a sua luz pessoal e iluminar a prpria inteligncia, mas, alegrando-se com a audio, senta-se fascinado. Nem destri nem dissipa o bolor interno e a obscuridade da alma por meio da filosofia, da mesma forma que, ao inflamar-se e abrilhantar-se, retira dos discursos sua idia. Se preciso algum outro preceito sobre a audio, este consiste na necessidade de que se lembrem do que foi dito agora e se apliquem inveno simultaneamente aprendizagem. Isto para que no adquiramos uma disposio prpria do sofista nem da histria, mas profunda e filosfica, certos de que o princpio de viver consiste em ouvir bem.

Sumrio

Prefcio............................................................. V de Pierre Marchaux Como ouvir..................................................... 1

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Filsofo peripattico de Rodes.