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O Projeto Franciscano de Vida Frei Aldir Crocoli, Capuchinho
Introduzindo
Para começar, uma breve palavra sobre “projeto de vida” e sobre métodos de
leitura. Poderá ser útil, e não só em função deste ensaio.
Somos pessoas e também congregações com projeto de vida. Toda a pessoa ao
tomar consciência de sua existência já se sente em pleno vôo, “pro-jetada para o futuro”
(de: pro + jactum – impulso). Sente-se “acondicionada” nesta viagem, embora muitas
vezes não saiba para onde vai. Foram as condições: as qualidades e dons, os contextos
psicológicos, familiares e sociais, etc. Esta carga (ou carcaça) é irrenunciável. O êxito
está em assumir com responsabilidade, identificar-se (ajustar-se) com ela, ir
aprimorando o que é possível, dentro da especificidade de cada qual.
Toda a Ordem ou Congregação da mesma forma: foi criada por Deus como um
“projeto de vida”. Brotou também dentro de uma determinada realidade que lhe
imprimiu uma face irrepetível. No Caso da Congregação das Irmãs Franciscanas
Missionárias de Maria Auxiliadora, podem estar aí duas vertentes: a Franciscana,
anterior e mais geral, e a de Missionárias de Maria Auxiliadora, como especificação da
primeira. Ambas vertentes necessitam ser “conhecidas” em detalhes para poder dar-lhes
desenvolvimento adequado e pleno.
Pela minha experiência, parece-me que a vertente franciscana ainda carece de
melhor conhecimento. Vivemos atualmente um momento – embora difícil – muito
bonito. Temos condições de olhar com atenção para as nossas origens com muito
maiores e melhores recursos que no passado. Faz apenas um século que se começou
uma investigação científica das nossas fontes. Até então se fazia uma leitura mais ou
menos fundamentalista. A leitura mais científica trouxe à tona uma série de novidades
ainda de difícil assimilação porque se chocam com a carga histórica que se carrega
imperceptivelmente.
Dentre as fontes franciscanas, a mais rica e credenciada para nos revelar o
projeto de vida original sem sombra de dúvida é a impropriamente chamada “Regra não
Bulada”, objeto de nosso estudo, ao menos neste primeiro momento da caminhada.
Agora uma breve palavra também sobre método de leitura. Para uma metodologia
mais aprimorada de leitura importa ter presente, além das diversas formas em que
Francisco pode ser considerado autor, critérios mais científicos. A esses, sempre
convém explicitá-los, pois na maioria das vezes são usados inconscientemente, quando
acabam, geralmente, reproduzindo o status quo da compreensão tradicional ou, então,
distorcendo a análise.
Geralmente os textos são lidos dentro de uma compreensão fundamentalista,
mesmo por pessoas com certo grau de cultura acadêmica. Segundo essa metodologia de
leitura, os textos são vistos como meteoros: surgem abruptamente, sem saber de onde,
nem porquê. Não é levado em conta seu ambiente social, histórico, cultural,
existencial... O texto é visto sem contexto. Nem se levanta suspeita sobre as condições
Projeto Franciscano de Vida 2
do autor do texto. Já na antiguidade da Igreja, ao menos na bíblia, se considerava a
“leitura alegórica”, quer dizer, sabia-se que muitas vezes não é o sentido das palavras
que é o decisivo, mas sim a realidade a que as palavras apontam.
Em meados do século XIX começou-se a empregar o método (nas suas diversas
variantes) histórico-crítico. Significou um grande avanço, pois por ele foi possível
estabelecer critérios fidelidade ao original, perceber as influências e alterações
posteriores. Foi possível captar o Sitz im Leben (contexto de origem) de cada parágrafo,
etc. Geralmente, se observam três aspectos neste método: o texto, o pré-texto e o
contexto. Para estes dois últimos aspectos são necessárias informações que não se
encontram no texto de modo muito explícito. Significou um grande avanço na ciência
bíblica, sobretudo. Atualmente não se concebe uma exegese sem o método histórico-
crítico. Porém costuma ser complementado por outros métodos de caráter mais
sociológico e existencial-religioso. Sua deficiência reside na compreensão de história,
geralmente vista muito retilínea, transparente e pouco dialética.
Os métodos sociológicos (são muitos) aportam essa contribuição de que os
métodos histórico-críticos carecem. Entendem todo o texto como fruto de um contexto,
onde interagem muitos protagonistas. É fruto da correlação de forças sociais. Daí ser
necessário também identificar as forças (pessoas, grupos hegemônicos ou minorias) e
as reações que despertam nas demais pessoas ou grupos.
Os métodos sociológicos também ajudam a perceber as várias dimensões da
realidade humana. O método mais simplificado talvez seja o de ver a realidade desde os
quatro lados básicos da vida humana: econômico, social, político e ideológico. Cada
um destes pode ser subdividido. Especialmente o ideológico, por ser amplo demais e
funcionar como o coberto de uma casa: ele dá a sensação de segurança estrutural. Já o
político e o social apontam para as relações entre os integrantes de um grupo, sejam
estas afetivo-sentimentais, sejam relações de poder.
Um jeito (método) simples para nós que ajuda a fugir de uma leitura
fundamentalista é simplesmente fazer-se algumas perguntinhas antes de começar a
análise: quando foi escrito (identificar aí o contexto histórico do grupo, da Igreja, da
sociedade); por que se escreveu este texto (qual é a situação que provocou essa reação
do autor); e o que se passava com o autor naquele momento (contexto pessoal).
Há ainda outro dado importante para uma correta compreensão de um texto:
saber desde onde se lê, isto é, a partir de que lugar social, com o olhar de quem se
investiga a realidade. Importa lembrar que jamais existe uma leitura neutra. Todo o
conteúdo recebe a forma do continente. Certas dimensões do conteúdo apenas quem
vive a experiência poderá perceber. É o que acontece também com a teologia e com a
Bíblia. Carlos Mesters diz que “o que mais ajuda a compreensão de um texto é o lugar
onde pisam os pés”. A realidade que os pés pisam, em meio a que realidade
perambulam, que direção seguem etc, tudo isso faz enxergar coisas diferentes. Muitas
vezes, então, é preciso descontruir toda uma compreensão para poder alcançar o
provável conteúdo que o autor desejava transmitir. Às vezes isso “escandaliza” e gera
muita dor. “Pensar dói”.
É sabido que Francisco de Assis, desde muito cedo na história, quando ainda ele
vivia, foi mitologizado (e santificado). Com isso lhe foram cortadas muitas das
incidências proféticas de seus escritos, sobretudo as de sentido mais sócio-histórico,
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ficando tão somente com seus aportes enquanto peregrino da santidade (segundo a
visão medieval de santidade). Não por maldade de ninguém, e sim simplesmente
porque a compreensão hegemônica tinha esse formato.
1 História da Regra não Bulada
A Regra não Bulada é, segundo David Flood, o texto mais importante e mais
rico do movimento franciscano por carregar consigo uma história coletiva de 12 anos.
Conhecendo a ele, conhece-se, além de Francisco, o espírito que animava o movimento
na primeira década de existência. Se olharmos para as fontes, encontraremos muitas (e
quase só) referências a Francisco como autor da Regra não Bulada. Provavelmente se
deva ao fato de querer dar-lhe maior peso e importância para os seus seguidores. No
entanto, dispomos de algumas informações que são irrefutáveis e nos revelam com
segurança que a história deste texto é bem diferente, muito mais rica e significativa. Na
realidade, foi um texto construído a muitas mãos, onde certamente Francisco tinha
grande peso, mas não era o único a pensar e decidir. Alguém disse, com muita
propriedade, que o movimento franciscano foi uma espécie de “Assembléia Constituinte
Permanente” durante a primeira década de existência. O resultado de todo esse
trabalhado é chamado por D. Flood de “Documento-Base” do movimento franciscano.
Os primeiros estudos mais específicos deste texto datam de 1973. Um grupo de
estudos coordenados por David Flood, Willibrord van Dijk e Thaddée Matura publicou
“La naissence d’un Charisme”, o nascimento de um carisma. Exatamente uma década
mais tarde, D. Flood publica “Frère François et le mouvement franciscain” (Frei
Francisco e o Movimento Franciscano). Para esse estudioso, opinião atualmente
consensual entre os estudiosos, a Regra não Bulada de São Francisco, erroneamente
chamada de Primeira Regra, acompanhou o desenvolvimento do movimento.
Inicialmente era pequena. Foi chamada de “proto-regra”. Tomás de Celano diz que
“Francisco escreveu para si e para seus irmãos presentes e futuros, de maneira simples e
com poucas palavras (grifo nosso), uma forma e regra de vida, utilizando
principalmente palavras do santo Evangelho, a cuja perfeição unicamente aspirava. E
inseriu poucas outras coisas que eram absolutamente necessárias para a prática do santo
modo de viver” (1Cel 32, 1-2).
Convém recordar desde logo que originalmente esta Regra não tinha subdivisão
em Capítulos e versículos. Nem havia título para cada capítulo. Muitos deles, aliás, são
incorretos ou parciais. Como estão hoje pode-se dizer que mais prejudicam do que
favorecem. Alguns acabam deslocando a atenção para aspectos que não são os
(originalmente) prioritários, como é o caso já do capítulo 1º, mas também o sétimo, o
nono, o décimo sétimo, o vigésimo segundo, etc. Supõem alguns estudiosos que sua
introdução tenha sido obra de um funcionário da Cúria romana, quando recebeu as duas
cópias (a Regra nova - que viria a ser Bulada – e a versão anterior – esta aqui).
1.1 Uma obra coletiva.
Não obstante os biógrafos dizerem que a Regra é obra de Francisco, os
estudiosos se deram conta de que, na prática, é obra a muitas mãos. Para nos confirmar
nisso, além de análise interna do texto, encontramos nas fontes dois argumentos muito
fortes. Em primeiro lugar a de um bispo que conheceu o movimento franciscano de
perto e que não tinha interesse em dar autoridade a Francisco diante dos seus
companheiros. Trata-se de Jacques de Vitry. Numa carta escrita em Gênova, em outubro
Projeto Franciscano de Vida 4
de 1216, retornando de Perúgia onde se fizera ordenar bispo pelo papa Honório III,
falando dos frades que conheceu na Úmbria, dizia: “Uma vez por ano, os homens desta
Religião, com múltiplos proveitos, se reúnem em um lugar determinado para juntos
alegrarem-se no Senhor e para comerem juntos; e com o conselho de homens bons
elaboram e promulgam suas instituições santas, que depois eram confirmadas pelo
papa” (FF p. 1422). Num outro escrito “História Ocidental”, escrito por volta de 1222,
torna a escrever: “Uma ou duas vezes por ano, num tempo estabelecido, eles se reúnem
num lugar determinado para celebrar o Capítulo Geral, exceção feita àqueles que estão
separados por excessiva distância das regiões ou por interposição do mar” (FF p. 1425).
Era nestes capítulos que iam elaborando o texto da Regra, ano após ano, sempre
intercalando novos textos, conforme a necessidade.
Mas claro se torna o processo quando olhamos para um testemunho do próprio
Francisco. Encontramo-lo na “Carta a um Ministro”. Nela, depois de dizer ao ministro
como deve proceder com um frade mal comportando, escreve propondo um modo de
como se poderia estabelecer uma norma orientativa nestes casos (vv 13-20). E
acrescenta: “para que este escrito seja mais bem observado, peço que o guardes contigo
até Pentecostes (Capítulo Geral); lá estarás com teus irmãos. E, com a ajuda do Senhor
Deus, cuidarás de completar estar e todas as outras coisas que estão faltando na regra”
(v. 21). Se examinarmos na Regra o texto sugerido por Francisco para ser inserido, o
encontramos muito alterado (Ver cap 5, 5-6; e cap 12). Este testemunho, datado de
1220, é decisivo, porque relatado pelo próprio Francisco. Que ele tenha sido (mais ou
menos) forçado a proceder diversamente depois desta data é possível. Mas este era seu
método, pois até o Testamento foi corrigido mais de uma vez por Francisco a conselho
de alguns confrades (CA 57, 17; etc....).
1.2 Seu desenvolvimento.
Nos primórdios, em 1209, a proto-regra teria consistido praticamente nos
capítulos primeiro (a grande opção de vida: o seguimento de Cristo), parte do sétimo (a
vida cotidiana) e décimo quarto (a missão, isto é, o modo de ser no mundo). Depois,
conforme as circunstâncias encontradas na caminhada da vida, iam sendo debatidos os
desafios emergentes e estabeleciam-se novas orientações, anexando-as ao texto anterior,
a cada ano, sucessivamente, sem nunca subtrair o que já havia sido estabelecido. Desse
modo o texto foi crescendo conforme exigiam as novas necessidades, tanto internas
quanto externas ao movimento. Como o texto não tinha capítulos, as emendas iam
sendo inseridas próximas aos textos que tratavam do mesmo tema.
Pode-se dizer que o desenvolvimento da RnB teria acontecido como resposta a
três tipos de premências: a necessidade de aprofundamento das opções já assumidas,
uma vez que as circunstâncias mudavam e que ingressavam novos componentes no
movimento sem a experiência dos primórdios; a inserção de proibições para salvar os
valores originais, pois já não era possível debater com todos o que convinha ou não
fazer; e, por fim, a adequação às normas e orientações eclesiásticas, sobretudo às
decisões do Concílio de Latrão, de novembro de 1215. Vejamos com um pouco mais de
detalhes.
a) O aprofundamento se deu diante das necessidades provindas sobretudo da parte dos
novos ingressantes. Por exemplo: no capítulo sétimo se estabelecera que “todos os que
se aproximassem, fossem amigos ou adversários, ladrões ou bandidos, deveriam ser
acolhidos benignamente”. Quando, uns anos mais tarde, com o ingresso de pessoas de
classe mais nobre e motivados pela fama que o movimento começava a ter, surgiu forte
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a necessidade de aclarar o tipo de comprometimento dos frades com os pobres em
geral. Acolher é bom. Mas precisa fazer mais por eles. A fraternidade resulta de um
amor concretizado num trabalho de libertação e promoção. Por isso, em torno de 1214,
num capítulo de Pentecostes, se elaborou o atual capítulo 9 dessa regra. Outro exemplo
são os versículos 9-11 de capítulo 7 que tratam do trabalho. Se anteriormente (vv. 3-8)
se insistia na opção pelo trabalho manual, agora já se explicitará a necessidade que este
trabalho seja ao mesmo tempo promocional/libertador. E assim por diante.
b) Às vezes questões eram estudadas e delas eram tiradas proibições com o objetivo de
preservar o carisma. Por exemplo: os frades optaram por ser menores, viver na exclusão.
Ora, lá pelas tantas, por influência de sua vida, parecida com a de outros grupos laicais
como os humilhados, os frades começaram a ser solicitados a tomar a direção
econômico-administrativa de instituições públicas ou de caridade como hospitais, etc. A
questão foi debatida e a decisão, proibindo-se ocupar tais postos, resultou numa decisão
negativa, inserida nos versículos 1-2 do sétimo capítulo. O mesmo princípio pode ser
aplicado à proibição de andar a cavalo, no capítulo 15.
c) Por fim, a mesma coisa aconteceu em relação às adequações às normas eclesiais.
Por exemplo: a Igreja institucional era extremamente cuidadosa com o direito de
pregação. Grupos de leigos reivindicavam esse direito. Para preservá-lo minimamente
Igreja prescreveu o que os leigos poderiam dizer e o que não poderiam abordar. Os
frades se adequam inserindo na regra um exemplo de pregação laical que todos
poderiam fazer (cap. 21). Idem com relação à confissão e comunhão eucarística, aos
capítulos gerais, etc.
Reg
ra n
ão
Bu
lada
de
S.
Fra
nci
sco
1209-
1210
1211-1212 1213-
1214
1215-1216 1217-1218 1219-1220 1221-1222
Opçã
o f
un
dam
enta
l C
ap.
I
Cap.
2,14-15:
vestir
como
pobre
Cap. 3 –
oração
comunitária
e jejum
Cap. 20 –
Confissão e
Eucaristia
Cap. 6 -
Vigilância
e
entreajuda
Cap. 22 –
iIentificação
com Cristo;
Cap. 2 –
Ano de
noviciado;
Cap. 1,1b –
Os 3 Votos
Cap. 23 – A
grande
proclamação
Cap. 24 –
conclusão
geral.
Projeto Franciscano de Vida 6
Vid
a co
tid
ian
a C
ap.
7,
3-9
.13-1
6
Cap.7,10-
12
Trabalho
como boa
obra;
Cap 5,9-17
– Relações
igualitárias
Cap 11 –
Relações
fraternas
Cap.8 –
Longe
do $.
Cap. 10
–
Cuidado
com os
doentes
Cap. 9, 1-9 –
compromisso
com os
excluídos;
Cap. 9,10-16
entre ajuda
recíproca;
Cap. 11 – as
relações
fraternas.
Cap. 7,1-2:
Minoridade
social;
Cap. 12:
precauções
com as
mulheres;
Cap. 13 –
pecado de
sexo;
Cap. 4-
visita de
apoio dos
ministros.
Cap. 5, 1-8-
entre ajuda
fraterna na
opção
assumida
Cap. 18 –
capítulos
provinciais
e gerais;
Mis
são
C
ap.
14
Cap. 15 –
não andar a
cavalo;
Cap. 17 –
viver o
espírito do
Senhor na
contramão
da
sociedade.
Cap. 16 –
missão
entre os
sarracenos;
Cap. 21 –
Exemplo de
pregação
laical;
Cap. 19 –
viver como
católico
Observe-se também que os títulos e capítulos conhecidos atualmente não são originais.
Inicialmente a Regra não Bulada não tinha capítulos nem títulos. Estes teriam sido
acrescentados, dizem, por alguém, mais tarde, influenciado pela mentalidade
hegemônica da Igreja. Note-se que vários títulos se tornam verdadeiros empecilhos para
correta compreensão do texto, por direcionarem a atenção para aspectos de somenos
importância como é o caso dos capítulos primeiro, nono, dezessete, etc.
2 A Opção Fundamental de Vida - RnB 1 1A Regra e vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem propriedade e) seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo que diz: 2“Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no céu: e vem e segue-me (Mt 19,21) 3E, Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me (Mt 16,24). 4E também: Se alguém quer vir a mim e não odeia pai e mãe e esposa e filhos e irmãos e irmãs e até mesmo a sua vida, não pode ser meu discípulo (Lc 14,26). 5E ainda: Todo aquele que deixar pai ou mãe, irmãos ou irmãs, esposa ou filhos, casas ou campos por causa de mim receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna (Mt 19,29).
2.1 “A Regra e vida destes irmãos é esta” (v. 1º). Aqui os frades estão fazendo uma
equivalência interessante: a “Regra e a vida” destes irmãos. Quer dizer a Regra é a vida
e a vida é a Regra. Não é um amontoado de orientações jurídicas. Nada mais avesso a
Projeto Franciscano de Vida 7
Francisco que normas jurídicas. Estão dizendo que estes dois substantivos se
equivalem. Tornam assim a vida de Jesus de Nazaré uma Regra (parâmetro). O
conteúdo desta vida é, pois, o seguimento de Jesus Cristo. Ou melhor, a vida de Jesus
Cristo é a regra de viver, o “cânon” da vida, segundo o qual nosso viver se defronta e
confronta. O que vai ser escrito neste texto tem por objetivo explicitar o viver de Jesus
Cristo. Juntos vão tentar captar o “modus procedendi” de Jesus Cristo e fazê-lo próprio.
Aliás, as fontes franciscanas estão repletas de citações de Francisco em que ele se diz
exemplo para os frades ou que ele propõe o exemplo de Jesus Cristo e dos santos para
serem seguidos. A Admoestação VI é o texto de Francisco mais claro neste sentido.
2.2 “A Regra e vida destes irmãos é esta...” Se olharmos para a Regra Bulada
constataremos com clareza o nome que eles se dão: “A Regra e vida dos Frades
Menores é esta” (RB 1,1). Mas aqui, na Regra não Bulada, - o que mostra ser um texto
da primeira hora – eles ainda não têm nome. Os biógrafos nos contam que os
seguidores de Francisco demoraram um bocado para se dar um nome que expressasse
sua identificação com o projeto de vida. Inicialmente, se autodenominaram “Penitentes
de Assis” (LTC 37,7). Este nome não agradou muito por não definir sua identidade cm
maior propriedade. Dizia apenas que pertenciam ao movimento penitencial, muito
difundido e pluriforme naquele momento histórico em que a Igreja institucional, de
modo geral, estava envolvida em conflitos e lutas político-econômicas, quando não
bélicas, e o povo buscava viver o espírito evangélico, segundo sua compreensão. Havia
grupos de “penitentes” por todos os lados, e de todos os modos que se propunha o
“retorno ao Evangelho”. Francisco sente fazer parte deste movimento, mas ao mesmo
tempo sente ter um projeto bem determinado e diferente do deles. Faltava-lhe um nome
adequado.
Bugardo de Ursperg nos informa a existência de um segundo nome: Pobres
Menores. Mas, “percebendo depois que o título de grande humildade sempre traz a
glorificação e que muitos se vangloriavam diante de Deus mais do título da pobreza do
que de sua observância, preferiram chamar-se „Fratres Minores - Frades Menores‟,
obedientes em tudo à sé Apostólica” (FF. p 1432).
A Compilação de Assis nº 101, 13 também nos conta que “foi revelado ao bem-
aventurado Francisco que deveriam chamar-se (Religião dos) Frades Menores”. “O
Senhor quis que se chamassem Frades Menores” (CA 101,9). Percebe-se aqui uma
satisfação com o nome por expressar claramente sua identidade. Em primeiro lugar a
fraternidade num ambiente medieval onde a estratificação piramidal era uma realidade
universal e fazia parte da cultura. O movimento de Francisco quer romper com esta
praxe. Não querem saber de senhores e subalternos (RnB 6), nem pessoas importantes e
pessoas insignificantes entre eles. Querem irmãos, querem ser irmãos menores, irmãos
entre si e irmãos de todos, inclusive daqueles que se sentem excluídos: os leprosos, os
muçulmanos, os identificados como bandidos e maus. A fraternidade começa a partir
de baixo, dos últimos. O nome representa para Francisco uma revelação porque
comporta um programa de vida: ser irmão de todos. Não da boca para fora, mas em
“espírito e verdade”. Tornar possível aos outros nos sentirem como seus irmãos, o que é
possível apenas quando as relações não se calcam nem na posição social e nem no poder
econômico ou político.
2.3 “Seguir a doutrina e as pegadas de NSJC que diz” (v. 1b). O pequeno grupo de
frades, muito espertamente, junta duas palavras: doutrina (ensinamento) e pegadas para
não deixar dúvidas na compreensão. Ocorre que todos os cristãos da Europa de então se
Projeto Franciscano de Vida 8
diziam seguidores de Jesus Cristo: tanto os pobres dos movimentos penitenciais quanto
os grandes príncipes que promoviam guerras disputando terras para aumentar suas
posses ou as autoridades eclesiásticas, vivendo na maior mordomia possível. Todos
podiam se dizer “cristãos” porque seguiam a “doutrina”, isto é, os ensinamentos de
Jesus conforme sua compreensão e os ensinamentos dos teólogos a respeito de Jesus
Cristo e porque pertenciam oficialmente à instituição Igreja. Isso porque as teorias, as
glosas como as chama Francisco, conseguem justificar qualquer coisa.
Para evitar justificações racionais e para chamar à concretude o seguimento de
Cristo, eles juntam à palavra doutrina o termo “pegadas” da Primeira Carta de Pedro
2,21. Isto é, querem sempre confrontar a teoria cristológica com a prática de Jesus de
Nazaré. Querem estar atentos para observar nos evangelhos os caminhos por onde
passou Jesus, as pessoas que estavam em sua companhia e de quem Ele era amigo, a
proposta de vida que Ele apresentava, a quem Ele defendeu e porque, e a quem Ele
criticou e porque, etc. A prática de Jesus deverá ser seu referencial máximo pela vida
afora. Bastaria isso. Um exemplo muito ilustrativo se encontra na Compilação de Assis
57, 14-15: “E Francisco dizia: O Senhor quando esteve no deserto, onde orou e jejuou
por quarenta dias e quarenta noites, não mandou que aí se construísse cela ou casa
alguma, mas ficou sob uma rocha (gruta) da montanha. E por isso a exemplo de Cristo
ele não queria ter nem mandou que se construísse nem casa nem cela neste mundo”.
Era a justificativa prática para a decisão do movimento não ter residência própria, mas
viver nos “eremitérios”, quer dizer, nos lugares abandonados.
Esta idéia de “seguimento das pegadas de Jesus Cristo” é uma espécie de
constante no pensar de Francisco, pois é encontrada mais 6 vezes nos seus escritos: aqui
RnB 1,1, em Rnb 22,2; na Cara a Frei Leão (Le 3); na Carta a toda a Ordem (Ord 51);
Na II Carta aos Fiéis (2Fi 13) e nos Fragmentos de outra Regra (Fg 1,1).
Outro detalhe interessante que encontramos lendo os escritos de Francisco:
quando faz citações evangélicas ele as faz sempre como se Jesus Cristo estivesse
falando no presente momento. Aqui, por exemplo, neste texto que estamos vendo, Jesus
Cristo “diz”, no presente do indicativo, e não disse, no passado como na leitura do
Evangelho da missa que sempre começa com as palavras “naquele tempo...”. Não é,
pois, uma lembrança longínqua, mas uma ação no presente. Este modo de proceder dá a
entender que para o movimento franciscano, e especialmente para Francisco, as palavras
do evangelho são palavras “diretas” de Jesus Cristo, atualizadas na história. Há uma
relação direta com Jesus Cristo. Juntando esta consciência da ação atual de Jesus e a
decisão de seguir as pegadas pode-se vislumbrar a relevância da pessoa de Jesus Cristo
para Francisco e para o movimento.
2.4 “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro
no céu; e vem e segue-me” (Mt 19,21 – v.2). Com esta citação os frades estão definindo
o modo de seguimento de Jesus Cristo. A primeira condição é o desfazer-se das coisas,
dos bens. Não porque as coisas sejam más (maniqueísmo). Os franciscanos, ao
contrário, têm uma concepção positiva das realidades históricas. Mas elas podem
distrair ou desviar a atenção, podem atrapalhar a caminhada, impedindo que se esteja
empenhado full time com o seguimento, que supõe escuta e contemplação. Quem
desejar subir uma montanha não pode carregar muito peso. Os frades vivem a
consciência de que “não se pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo”. Para
facilitar o cumprimento da decisão, valem-se do conselho evangélico. Na prática esta é
uma maneira prática de romper definitivamente com o sistema sociocultural reinante.
Projeto Franciscano de Vida 9
Mutatis mutandi essa hermenêutica permanece válida para todos os tempos. Porém,
não pode ser colocada como prova de seguimento de Cristo. É importante como
primeira condição, como primeiro passo.
Para a mentalidade medieval, no entanto, a capacidade de liberar-se dos bens
materiais era já sinônimo de conversão. Neste sentido Celano lê o gesto de
desnudamento de Francisco diante de seu pai Pedro Bernardone e do bispo de Assis,
Dom Guido II, como sinal preclaro de conversão, a ponto de cronometrar a vida de
Francisco em base a esta data: “tendo completado 20 anos desde que se uniu da maneira
mais perfeita a Cristo” (despojamento) Francisco entrega sua alma a Deus (1Cel 88,3).
Mas os franciscanos da primeira hora entendem o despojamento das coisas apenas
como o primeiro passo, a primeira condição do seguimento.
2.5 E “Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-
me” (Mt 16,24 – v.3). São dois aspectos a serem considerados aqui:
a) Renegar-se a si mesmo. Não se trata de autodesprezo como historicamente se
entendia no passado. Deus não quer a auto-anulação de ninguém. Trata-se antes da
renúncia ao projeto egocêntrico de vida, de renunciar ao autocentramento. Seguir a
Cristo é abraçar a causa dele, seu modo de ser, de pensar, de estar presente na
sociedade. É abraçar a dinâmica centrífica, do heterocentramento. É o que diz o próprio
Jesus: “Como podeis crer, vós que buscais a glória uns dos outros e não a de Deus” (Jo
5,44)? Renunciar a si mesmo é colocar os outros, sobretudo os mais ameaçados em sua
vida como centro de sua luta cotidiana.
b) Tomar a cruz: Facilmente se entende a cruz como os problemas pessoais, de nível
psicológico, familiar ou mesmo biológico (defeitos, doenças, etc). Não é que esses não
devam ser contados como cruz, pois são obstáculos difíceis de transpor. Mas isso todas
as pessoas, cristãs ou não, deveriam fazer. Jesus não estaria, neste sentido, pedindo nada
de novo. Trata-se, por isso, de outra dimensão. Tomar a cruz é tomar ou assumir sua
responsabilidade sócio-eclesial de cidadão do mundo e membro da Igreja, que pode ter
no horizonte a própria crucificação (morte). Na prática vivemos muito em função de
nossos pequenos interesses pessoais. O seguidor de Jesus Cristo é convidado a abrir os
olhos para a realidade mais ampla: aquela do povo, do povo de Deus. Aliás, só é
possível renegar a si mesmo quando se assume a “cruz” dos outros. Trata-se de
substituição de eixos e não de deixar vazios existenciais. É um redirecionamento das
energias e investimentos existenciais.
Então sim é possível o seguimento, palavra que precede e que (pro)ssegue os
dois aspectos mencionados – renegar-se e tomar a cruz. O seguimento nesta dimensão é
mais exigente que na dimensão anterior, pois implica renunciar à autoprojeção social, à
fama, ao status social, ao ser bem-visto pela sociedade. E como dizia um capuchinho
falecido no final do século passado (Lázaro Iriarte): é muito mais exigente viver sem
prestígio, no anonimato (excluído) do que sem dinheiro.
Observe-se que esta condição que o movimento franciscano se coloca atinge em
cheio a luta pela autopresevação, a busca de sobrevivência, presente em todos os seres
vivos, e como tal positiva. Dom Ângelo Salvador dizia certa vez que ser cristão é
assumir, em certo sentido, um modo de ser anti-humano. Jesus é o exemplo de pessoa
cujo centro de interesses não era sua pessoa, nem seus gostos, mas sim a causa dos
outros e a causa do Pai. A maior prova desta atitude é sua morte na cruz, por isso,
coroada pela ressurreição.
Projeto Franciscano de Vida 10
2.6 E também: “Se alguém quer vir a mim e não odeia seu pai e mãe e esposa e filhos
e irmãos e irmãs e até mesmo a sua vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26 – v.4).
Depois de desfazer-se dos bens (a), depois de desfazer-se do projeto pessoal em favor
do projeto do bem dos outros (= comunitário) (b), vem a terceira exigência: dispensar a
segurança afetiva dos familiares. No tempo de Jesus a família conferia, além da
identidade, segurança contra o abandono, segurança na doença, respaldo ao bom nome,
apoio afetivo, etc. Um membro da família não tinha autonomia para fazer qualquer
coisa, pois precisava dar continuidade à sua tradição, manter seu bom nome, etc. Todos
esses aspectos podem representar um grave perigo ao fiel seguimento de Jesus Cristo,
cuja causa muitas vezes levará a conflitos de interesse mesmo entre os membros da
mesma família. Por isso a família precisa ser “relativizada” enquanto ela não pode se
constituir em empecilho para dar os passos necessários no seguimento de Cristo. Esse
“odiar” do evangelho significa pôr em segundo plano, não assumir como critério
decisivo para minhas opções profundas o apoio dos familiares.
Os frades tinham por experiência que o seguimento mais radical de Jesus Cristo,
a começar pela primeira condição de desprender-se dos bens, não é um dado
pacificamente aceito pelos familiares. Pior ainda quando se compreende que é
necessário fazer também uma passagem para a exclusão social. A família se sente
desonrada com o gesto. Assim aconteceu com Francisco e com Clara de Assis.
2.7 “E ainda: „Todo aquele que deixar pai ou mãe, irmãos ou irmãs, esposa ou filhos,
casa ou campos por causa de mim receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna‟” (Mt
19,29). Os frades menores concluem o texto da “opção fundamental” com um olhar para
frente, ao futuro. Não se envereda por este caminho para levar uma vida morti-ficada,
para fazer sacrifícios porque os prazeres do mundo são maus. Envereda-se antes por este
itinerário para ir mais longe na realização humana profunda, para lhe conferir maior
plenitude. Vai-se por esta senda porque é o caminho mais garantido de viver “de modo
intenso e comunitariamente” a paz como soma de todos os bens. No horizonte não está
uma vida de penitência, mas antes uma plenificação e a ressurreição. Este modo de
viver foi o de Jesus Cristo que culminou sua caminhada como ressuscitado/exaltado.
É um versículo bíblico incluído aí com o objetivo de chamar a atenção para o
horizonte maior. Prender-se às condições de caminhada sem olhar para o que aguarda
no final não é nada alentador. Há uma sabedoria de quem já experimentou esse
cêntuplo...
2.8 A origem desses versículos e ênfase. Convém, por fim, recordar que as primeiras
duas citações evangélicas não foram inventadas ou colocadas casualmente no texto. Elas
surgiram por uma espécie de “revelação” quando, uns dois anos antes, Francisco, Pedro
Cattani e Bernardo de Quintavalle foram “consultar o Senhor” com a tríplice abertura
do evangelho na igreja são Nicolau (AP 4-5 ; LTC 28,6). - (A terceira citação será
inserida no atual capítulo 14 da Regra não Bulada.) - Isso que dizer que as presentes
citações eram revestidas de uma forte carga religioso-emocional, pois tinham sido luz
naquele momento fundacional. A nosso modo de ver, os frades devem ter meditado
longamente sobre elas e percebido que expressavam com precisão o que eles desejavam
viver, a tal ponto que dizem “Eis o que desejávamos, eis o que procurávamos”. Ao que
acrescenta Francisco: “Esta será a nossa Regra” (AP, 11, 4-5).
Martinho Conti, em a “Leitura Bíblica da Regra”, entende que a Regra é a
implementação da descoberta missionária de Francisco feita na escuta do evangelho de
Projeto Franciscano de Vida 11
Mateus (e/ou Lucas 9/10) quando Jesus envia os discípulos em missão. Segue, neste
aspecto, a Celano e Boaventura. Talvez tenha parcela de razão. Mas o certo é que a
opção feita pelos frades no primeiro momento é, acima de tudo, uma opção pelo
seguimento de Jesus. Aqui são colocadas frases que tratam do seguimento, do modo de
seguir, muito mais do que descrever a tarefa que deveriam desempenhar, mesmo se
ambos os aspectos são inerentes e complementares. Trata-se apenas de ênfase. Quem
entende que a missão é decisiva pode justificar o modo de seguimento. Ao passo que o
contrário é impraticável. O Documento de Aparecida parece dar razão ao Movimento
Franciscano quando deseja que os cristãos sejam “discípulos missionários”.
2.9 Seguimento e exclusão. Não resta dúvida que a razão principal desta opção é a
vivência do evangelho. Porém, porque, diferentemente de todos os demais santos, os
franciscanos escolhem esta articulação de idéias para concretizar o seguimento de
Jesus? No passado sua escolha sempre foi entendida como opção pela pobreza. Raul
Manselli e na sequência dele muitos outros (Miccoli, Ciceri, Accrocca...), porém, se
deram conta que o Testamento de Francisco ajuda a compreender a Regra. E no
Testamento, Francisco traduz a opção evangélica em termos de opção pelos excluídos,
mais concretamente pelos leprosos, e não pela pobreza. É muito diferente optar pela
pobreza que optar pelos pobres.
Optar pelos pobres é optar pela liminaridade social. É viver o Evangelho na
contramão da história, desde a margem e não desde o centro da instituição e do poder.
Escolhendo estes versículos evangélicos como portadores do modo de seguimento do
evangelho, os frades querem expressar uma passagem para a margem da sociedade. A
informação da Compilação de Assis 9, 2-3 (LP 102) de que Francisco desejava ver
todos os frades ao serviço dos leprosos e de que os noviços viviam seu período de teste
vocacional entre estes excluídos pode ser aceita como muito provável e comprovaria seu
entendimento do seguimento de Cristo.
Se o caminho do cristão consiste em refazer o caminho de Jesus, deve-se
observar que Jesus Cristo viveu toda sua vida, do nascimento “á beira do caminho, em
Belém”(OfP 15,7), até a morte como criminoso político entre malfeitores fora dos
muros de Jerusalém. Ele percorreu um caminho de crescente marginalização do sistema.
Não apenas nunca pertenceu à estrutura do sistema sócio-religioso de então. Foi sendo
cada vez mais perseguido, enxotado e eliminado. O nome de frades menores também
deve ser visto linkado com esta realidade de exclusão social. Por isso, o não ter
propriedades, nem casas, nem status na igreja, nem fama social. Estar aí como um
“irmão menor” que vive solidarizado com os últimos como Jesus Cristo. Eis o projeto-
programa dos frades menores que irá se desenhando com sempre maiores detalhes na
Regra não Bulada.
3 A vida cotidiana dos Irmãos Menores
Uma vez decido o seguimento da “doutrina e das pegadas de nosso Senhor Jesus
Cristo”, os primeiros irmãos, diz poeticamente David Flood, se perguntaram: Onde
vamos almoçar hoje? E esta noite, onde dormiremos? Quer dizer, precisaram ver
formatado o seguimento no cotidiano da vida, em meio aos desafios concretos
prioritários, relativos à sobrevivência. Por isso, passaram de imediato à abordagem
destas questões. Elas se encontram no atual capítulo 7 da RnB, sempre lembrados que
inicialmente a regra não tinha capítulos, menos ainda versículos. Começaremos logo a
olhar com atenção para o texto deste capítulo, ainda que não todo da primeira hora. É
Projeto Franciscano de Vida 12
um belo exercício para treinar uma leitura crítica, contextuando no ambiente social e
no tempo.
Regra não Bulada 7
1Nenhum irmão, onde quer que esteja para servir ou trabalhar para outrem, jamais seja
capataz, nem administrador, nem exerça cargo de direção na casa em que serve, 2 nem aceite
emprego que possa causar escândalo ou “perder sua alma” (Mc 8,36). 3 Em vez disso, sejam os
menores e submissos a todos os que moram na mesma casa.
4E os irmãos que forem capazes de trabalhar, trabalhem; e exerçam a profissão que
aprenderam, enquanto não prejudicar o bem de sua alma e eles puderem exercê-la
honestamente. 5Porquanto diz o profeta: “Viverás do trabalho de tuas mãos; serás feliz e terás
bem-estar” (Sl 127,2); 6 e o Apóstolo: “Quem não quer trabalhar não coma” (2 Ts 3,10). “Cada
qual permaneça naquele ofício e cargo para o qual foi chamado” (1 Cor 7,24). 7E como
retribuição pelo trabalho podem aceitar todas as coisas de que precisam, exceto dinheiro. 8E, se
for necessário, podem pedir esmola como os outros pobres. E podem ter as ferramentas
necessárias ao seu ofício.
9Todos os irmãos se esforcem seriamente em praticar boas obras, pois está escrito: ”Vê
se estás sempre empenhado em praticar alguma obra boa, para que o diabo te encontre
ocupado”; 10e ainda: ”A ociosidade é inimiga da alma”. 11Por isso os servos de Deus devem estar
sempre entregues à oração ou a qualquer outra boa obra.
12Cuidem os irmãos, onde quer que estejam, nos eremitérios ou em outros lugares,, de
não apropriar-se de qualquer lugar, nem disputá-lo a outrem. 13E todo aquele que deles se
acercar, seja amigo ou adversário, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade. 14E onde quer
que estejam os irmãos, e sempre que se encontrarem em algum lugar, devem respeitar-se e
honrar-se espiritual e diligentemente “uns aos outros, sem murmuração” (1 Pd 4,9). 15E
guardem-se os irmãos de se mostrarem em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas. 16Mas antes comportem-se como gente que se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como
convém.
É certo que, na sua maior parte, este capítulo integrava a assim chamada “proto-
regra”, aquela apresentada, provavelmente, no final de l209, ao Papa Inocêncio III. Mas
depois, por ser um assunto de extrema importância ele foi sendo retomado freqüentes
vezes e, dessa forma, acrescido de inserimentos1. Os estudiosos identificam várias
camadas históricas neste texto. A hipótese mais provável se apresenta, na opinião
daqueles especialistas, dessa maneira:
a) A parte mais original, de l209, seriam os versículos 3 a 9 que expressam o
sentido que o movimento pretende dar ao trabalho e os versículos l3 a l6 que tratam da
vida cotidiana: a moradia e o relacionamento fraterno entre os irmãos e com outras
pessoas.
b) Os versículos 9 a 11 teriam surgido algum tempo depois, entre os anos de
l211 a l212 e querem ser um aprofundamento dos versículos imediatamente anteriores
sobre o sentido do trabalho, fato que os fez inserir imediatamente depois.
c) Por fim, os últimos versículos a serem promulgados foram os dois primeiros.
São bem posteriores. Por volta de l2l5/7. Apresentam-se como um inserimento negativo
com o objetivo de preservar sua proposta de vida.
1Para todo o desenvolvimento da Rnb veja-se a pequena, mas interessantíssima obra de D. FLOOD, W.
VAN DIJK e T. MATURA: La nascita di un carisma. Milano, Bibliot. Francescana Provinziale,
l976.
Projeto Franciscano de Vida 13
Vejamos agora uma breve análise de cada uma dessas camadas, seguindo a
ordem cronológica de seu surgimento, para mais facilmente acompanhar o
desenvolvimento ideológico, as preocupações existenciais e as motivações evangélicas
que os fizeram emergir. De fato, nenhum texto, especialmente os da RnB, deve ser
considerado desligado do contexto, já que é sempre resposta a um contexto.
3.1 O trabalho braçal faz parte do projeto de Deus
As pessoas cultas da Idade Média viam com desprezo os trabalhos braçais.
Conveniente às pessoas “contemplativas”, que se ocupavam com as coisas de Deus e
àquilo que se refere ao transcendente, são as atividades nobres, as “artes liberais”. Por
isso a sociedade feudal era composta de três classes de pessoas: os oratores (os clérigos
– geralmente os mais cultos), os bellatores (os guerreiros) e os laboratores (os
trabalhadores). A primeira categoria, comparada com as ovelhas, fornece o alimento do
leite e a lã para a roupa. Os guerreiros, quais cães, defendem quer os clérigos quer os
trabalhadores dos lobos que tacam. Na prática estas duas classes, as mais importantes,
se assemelhavam em tudo: no poder econômico e político, no traje, nas relações sociais.
Os clérigos estão acima porque são os intermediários da divindade e numa sociedade
sacral como a da Idade Média, têm a precedência honorífica. Já a grande maioria das
pessoas pertencia aos laboratores, vistos como pessoas de segunda categoria. Seu
envolvimento com as coisas materiais era um empecilho para a contemplação das
realidades transcendentes, finalidade primeira na perspectiva platônica.
As Ordens Religiosas não adotavam o trabalho braçal como parte integrante de
seu carisma. Os próprios beneditinos acabaram formatando um grupo “diferente e
inferior de monges (os conversos) para os trabalhos braçais, inclusive com ofício
diverso, horários diversos, direitos diversos dos monges propriamente ditos que
passavam o dia entre a Capela e o “scriptorium”, onde se copiavam textos, pois não
havia a imprensa. Até meados do século XX nas Ordens Religiosas a ordem de
precedência, em tudo inclusive no refeitório, deixava os religiosos não clérigos depois
do noviço mais novo. É uma herança do que se vivia no passado. Nas igrejas da Idade
Média os trabalhadores braçais não podiam ocupar os bancos. Tinham de resignar-se a
permanecer de pé no fundo da igreja. Basta ver a catedral de Assis. A cena é bem
retratada no filme Irmão Sol, Irmã Lua. Houve um movimento religioso que se destacou
no rompimento desta discriminação: os humilhados. Eles tinham sacerdotes, mas a
grande maioria vivia do trabalho da lã, tecendo roupas para os pobres. Não é nada
impossível que Francisco os tenha conhecido pessoalmente.
A perícope da Regra começa com uma afirmação: os frades querem ser vistos
como trabalhadores: “Os irmãos, enquanto forem capazes de trabalhar, trabalhem”2.
Só é incapaz (a criança – não é o caso deles) o velho e o doente. Estes estão dispensados
e têm o mesmo direito à vida. Com esta afirmação os frades estão se enquadrando entre
a classe dos trabalhadores, daqueles que produzem realmente a comida. Com toda a
certeza sabiam do preconceito que incidia sobre esta classe. Mas é maneira concreta de
ser menor, de situar-se entre os menores, pois o trabalho é a linha divisória das classes.
É importante observar que não se trata apenas de uma opção por ganhar a vida com o
próprio trabalho. Eles escolhem ser trabalhadores, ser catalogados entre os
trabalhadores. A opção por viver dessa maneira irá determinar as demais dimensões da
vida, inclusive o tipo de missão a ser desenvolvida.
2 O texto original latino reza assim: “Et fratres, qui sciunt laborare, laborent et eandem artem...”. A
tradução portuguesa ainda que não literal parece conservar o sentido fiel do texto.
Projeto Franciscano de Vida 14
E para dar força a esta sua opção são recordadas três citações bíblicas, muito
enfáticas, no sentido se estimular para o trabalho manual. R. Manselli é do parecer de
que os frades constituíam verdadeiras comunidades de trabalhadores3. O sentido do
trabalho é completado com os versículos 6b, 7 e 8. Isto é: trabalha-se porque é desígnio
de Deus, para contribuir com seu gesto criador, para cultivar o jardim terrestre e, sobre-
tudo, como gesto de caridade para com os outros. Não é nem sequer para conseguir seu
sustento e muito menos ainda para acumular riquezas4.
Pode ser devido a esta circunstância que o movimento franciscano escolhe ser
trabalhador e reúna três citações bíblicas, a maior autoridade, para defender sua postura
diante da mentalidade hegemônica. Citam uma vez o Primeiro Testamento e duas vezes
o Novo (Segundo) Testamento. Justificam assim que trabalhar para viver é expressão da
vontade divina. Queriam com isso também contestar a visão dos teólogos e da Igreja de
então?
Há outros aspectos menores, mas interessantes a perceber nestes versículos:
a) A profissão: Os frades entre outras ocupações “serviam os leprosos,
trabalhavam na lavoura, nos trabalhos domésticos, eram lenhadores e hortelãos,
construíam casas, etc5. Permanecer na profissão aprendida, “se não for contra a salvação
da alma e se puderem executá-la honestamente”. Havia uma mentalidade geral na Igreja
de que algumas profissões eram anti-éticas, entre elas mercador, soldado, magarefe,
cambista de dinheiro e outras mais...6. Segundo Manselli, o “comerciante era um
condenado com mínimas chances de salvação, tanto que 1Cel julga a vida de Francisco
na família e na sociedade em base a esta mentalidade de condenação da atividade
mercantil, como atividade pecaminosa e fonte de pecado7. Por onde deveria passar o
critério de honestidade defendido pelos frades? Certamente não pela sujeira que o
trabalho ocasiona e sim pelo “projeto de Deus” que o “inventou” como continuação de
seu gesto de amor, convidando a humanidade a cuidar do jardim da natureza.
b) Exceto dinheiro. Negam-se a comercializar o trabalho e a considerar o
trabalho como meio de ascender socialmente. Em Assis, todos tinham de trabalhar pelo
“engrandecimento da cidade”. Naquele momento histórico o dinheiro era o símbolo
“número um” do acúmulo. Alguns anos mais tarde os frades vão acrescentar o capítulo
VIII, que infelizmente sempre foi entendido apenas no sentido moralístico. Eles só
podiam usar linguagem religiosa, mas a questão não deveria ser vista do ponto de vista
moral e sim sócio-econômico, pois é disso que estão abordando no momento.
c) “Se for necessário podem pedir esmolas como os outros irmãos”. Em
primeiro lugar convém esclarecer o sentido da “esmola”. Se os frades vão pedir
esmolas, “fazem-no por razões econômicas e não por motivos de bom exemplo ou de
3 MANSELLI, R. Francesco. Roma: Bulzoni, l980. P. 264: “Deste texto emerge clara a fisionamia da
fraternidade como uma comunidade de trabalhadores, de preferência, manuais”. 4 Sobre o sentido de trabalho adotado pelo Movimento recomenda-se a obra de FLOOD, D. e
CALOGERAS A. Dalla parte dei poveri. Una introduzione alla vita francescana. Padova:
Messaggero, l992, sobretudo pp. 99 - l20. E o pro-manuscrito "El capítulo sobre el trabajo en la
Regla no-bulada" de Fr. Jerônimo Bórmida. Córdoba, l995. 5 Cfr TEIXEIRA, Celso M. Op. cit. p. l9 6Sobre esta questão veja a obra do especialista da Idade Média LE GOFF, Jacques Mercadores e
banqueiros da Idade Média. Lisboa: Gradiva, pg. 55ss. Também MANSELLI, R. Op. Cit. p. 131. 7 MANSELLI, R. Op. Cit. p. 33.
Projeto Franciscano de Vida 15
moral”8, como ordinariamente se costuma entender numa leitura ascético-moralista .
Isto é, como a cidade de Assis não reconhecia o serviço aos leprosos e outras atividades
semelhantes como trabalho, poderiam não lhes dar o necessário para viver. Por isso os
frades forçam esta prática da misericórdia como autêntico trabalho pelo qual se tem o
direito de viver. Em segundo lugar, D. Flood levanta o dado histórico de que na Idade
Média o termo eleemosyna designava também a “casa dos pobres”. Podia então se tratar
de sair para socorrer os pobres: “Vadant pro eleemosyna”9. Os frades não estariam
denunciando que o modo de pensar da Igreja em relação ao trabalho era incorreto? Em
terceiro lugar, o texto atual fala “como os outros pobres”. Constata D. Flood que não
existe nenhum argumento em manuscritos para esta tradução. Nos códices mais antigos
encontrava-se originariamente “como os outros irmãos”. No presente caso a alteração
se deu por conta dos copistas, por motivos emotivos: é que já não mais sentiam os
pobres em geral como seus “irmãos” de família, e sim como pessoas carentes das quais
se deve ter compaixão. Por isso a frase se tornava incompreensível. Para adequar o texto
ao modus vivendi alteraram o texto ao invés da vida.
3.2 Ser fermento de fraternidade entre os excluídos Os versículos l2 a l6 referem-se à questão fraterna. Os frades tratam aqui da
convivência social e entre si. Chamam a atenção estes aspectos:
a) Não apropriar-se de lugar. A “não apropriação” está diretamente relacionada
com a convivência social, com a fraternidade com os que estão mais à margem da
sociedade e não, outra vez, com o aspecto moral e ascético, como geralmente se
costuma compreender. Quando o texto fala de eremitérios significa simplesmente
lugares semi-abandonados: igrejas velhas, casas abandonadas, grutas naturais ... e não
conventos retirados da população como logo após passou a ser prática construir e hoje
está em nossas cabeças. Um exemplo de eremitério era a estrebaria de Rivotorto (lCel
44), requisitada para guardar os animais. Quando eles escreveram conheciam bem as
grutas do Monte Subásio onde hoje ainda se podem ver as grutas de Frei Francisco, de
Frei Leão, de Frei Bernardo, etc. A não apropriação está em vista da fraternidade.
Apropriar-se é forma de afastar os demais, levantando uma cerca jurídica que impede o
outro de se aproximar.
b) Nem disputá-lo a outrem. A disputa de que trata aqui é reivindicação jurídica
diante das autoridades. Os frades renunciaram a isso na sua opção de vida de serem
irmãos de todos, conforme o projeto original. Como excluídos voluntários, abdicaram
deste direito.
c) Adversário, ladrão ou bandido. Não se trata de adversários dos frades, e sim
da cidade, que bane os que lhe são indesejáveis, como aconteceu ao próprio Francisco.
A punição para os bandidos e outros malfeitores não costumava ser a prisão quanto a
expulsão, a excomunhão social (aos ladrões inveterados se cortava a mão direita). A
Igreja excomungava do “espaço da salvação” e a sociedade bania do seu “território
geográfico e das relações sociais e econômicas”. Estas pessoas banidas passavam a
viver sem direito algum, nem mesmo o da propriedade. Não tinham aonde ir a não ser
para os bosques. Era o último grau de marginalização, semelhante ao dos leprosos e em
certo sentido mais triste, pois sobre eles pesava a culpa de um mal moral.
8 Ibidem.. p. 55. 9 Cfr FLOOD, D. Frei Francisco e o Movimento... p. 40. MANSELLI, observando desde outro ponto
de vista, sugere que a autorização da esmola revela o desejo de viver a condição de incerteza e
risco como a grande maioria da população citadina, sobretudo os trabalhadores”. Op. Cit p. 264.
Projeto Franciscano de Vida 16
Assemelhavam-se às bruxas e aos judeus. Em algumas regiões da França eram
conhecidos como “boisilleurs”, isto é, habitantes dos bosques10. A essas pessoas os
frades decidem acolher “benignamente”, partilhando com eles os recursos da vida e
cedendo seu “eremitério”, partindo em busca de outro.
d) Respeitar-se e honrar-se espiritual e diligentemente, não ser um hipócrita,
mas satisfeitos e amáveis, como convém. Trata-se da “ternura na luta”. A opção que os
frades fizeram era, inegavelmente”, dura e muito sacrificosa, “rigoroso acima das forças
humanas” como conta Boaventura na LM 3,9,3. Por isso, impunha-se a “necessidade de
ajudar-se mutuamente na fidelidade”. Aos irmãos esta seria a primeira responsabilidade,
pois são os companheiros de caminhada. E a alegria pela opção feita é um dos melhores
recursos para conseguir tal objetivo. Optar por um projeto de vida e depois não vibrar
por ele, é uma contradição, uma hipocrisia, no entender do movimento. Por isso,
convém honrar-se espiritualmente, isto é, estimular-se e amparar-se no espírito do
projeto, que é o Espírito do Senhor.
3.3 O trabalho miseri-cor-dioso
Este inserimento positivo visa aprofundar o sentido do trabalho. Há quem (a
maioria) entenda que estes versículos estariam supondo o fato de frades viverem na
ociosidade. Baseiam-se no argumento das citações de S. Jerônimo e de S. Bento
presentes no texto. O texto teria sido acrescentado para motivar os levados pelo “dolce
far niente” da vida, os “muito ocupados em nada fazer”, como diz o apóstolo Paulo (2
Tes 3,11). Esta hipótese encontraria sua razão de ser considerando-se o fato de
ingressarem na Fraternidade também nobres, portadores da rejeição pelo trabalho
manual. A estes seria difícil entregar-se a tais tipos de atividades. O texto os estimularia
a assumir o trabalho braçal, muito degradante para eles. Ou mesmo se refira aos
preguiçosos... Pode ser...
Todavia, outra interpretação parece mais plausível, considerando-se sua datação
(1211). Por três vezes o texto menciona as “boas obras”. Tal insistência leva a crer que
a tônica aponta nesta outra direção, a do trabalho misericordioso. As “boas obras” eram
também, na Idade Média, sinônimo de obras de misericórdia materiais: dar de comer, de
beber, de vestir, enterrar os mortos, visitar doentes, presos e confortar os tristes. Os
frades reunidos, alguns anos depois do início do Movimento, refletem sobre o tipo de
trabalho preferível, aquele que deve ser buscado em primeiro lugar. E concluem: deve
ser o trabalho “miseri-cor-dioso”, junto aos que não podem retribuir, especialmente os
leprosos11. Este tipo de trabalho, para eles, tem o mesmo valor da oração, no sentido de
afastar o diabo, o agente número um da divisão. Pela freqüência e modalidade de
emprego da palavra “alma” (três vezes só neste capítulo e sempre como sinônimo de
espírito, de orientação existencial, de opção fundamental...) tudo leva a crer que não a
entendiam de modo tão dualista como era corrente entre seus contemporâneos. Sua
antropologia é mais positiva e integradora de todas as dimensões da existência.
3.4 O trabalho determina o lugar social do frade
Parece ser mais fácil agora compreender o significado dos primeiros três versos
do capítulo. Eles são uma resposta encontrada no capítulo de Pentecostes daquele ano
10Sobre esta questão veja-se sobretudo MOLLAT, M. op. cit. pp. 56 a 65 11 Todo o trabalho de promoção humana era visto como obra de misericórdia: sepultar os mortos, cuidar
dos doentes, dos leprosos, dos peregrinos... A atenção dedicada a eles fez surgir inúmeras ordens
religiosas como os templários, os hospitalários, os mendicantes... Cfr. PAGLIA, Vincenzo. Storia
dei Poveri in Occidente. Milão: Biblioteca Universal Rizzoli. 1994. P. 218.
Projeto Franciscano de Vida 17
(l2l5/6). Supõe este texto que frades tivessem sido convidados ou até mesmo já
estivessem trabalhando em instituições públicas ou em fazendas de senhores feudais,
como era o caso dos humilhados mais ao norte da Itália12. Para Flood e Calogeras estes
versículos iniciais são o resultado de um longo e difícil debate dos frades. Por detrás
seguramente está a „vontade‟ de Assis que deseja que, mediante a promoção sócio-
econômica, os frades retornem ao „sistema de Assis‟ que vê o trabalho como mercadoria
e o trabalhador como proprietário (ainda que pequeno) de sua força de trabalho. Deste
sistema que faz do trabalho um comércio e que tem como meta o acumular nasce a
esmola como subsistema econômico. Por isso os frades definem seu trabalho como
“serviço”. O serviço é uma ação produtiva atenta aos outros (não atenta ao lucro) que
traz consigo a idéia de reciprocidade que solicita aos outros receber e trocar. Os frades
querem mudar o mundo a partir das relações de trabalho renovadas, postula Manselli13.
Alguns outros aspectos particulares a destacar:
a)“Camerarii vel cancellarii”. São termos quase sinônimos, de conceituação
imprecisa, e de prática mais imprecisa ainda. Segundo D. Flood14 “camerarium” seria
aquele que tem acesso à câmara, à secretaria, aquele que está informado dos planos do
patrão, o notário, que sabe dos negócios do dono, enquanto que o “cancellarium” seria
mais aquele que leva a “cancela”, a chave do cofre, o tesoureiro. Ambas as profissões,
portanto, supõem saber ler e escrever, fazer contas, etc. Por vezes ambas as funções
eram exercidas pela mesma pessoa. Para os frades, não é que estas profissões sejam
proibidas ou desonestas de per si. No entanto, elas implicam necessariamente em fazer o
jogo do dono; supõem uma aliança implícita, ainda que o envolvido diga não a desejar.
Ora, como os frades haviam decidido em ser “submissos e menores” seria um contra-
senso assumir tais cargos. O que importava para eles era manter bem claro o projeto de
seguimento de Jesus Cristo “desde os menores. O jeito de viver devia manifestar, sem
necessidade de explicações, a aliança com aqueles deserdados pelos quais optarem com
seu projeto de vida.
b)“Causar escândalo ou perder a alma”. Somos de opinião de que os frades
não estão julgando a sociedade. Mas olham para si mesmos. Causar escândalo está
relacionado com o fato de prometer uma coisa com o projeto de vida e depois camuflar
fazendo outra coisa diferente. Isto também poderia ser lido como “perder a alma”, isto
é, perder o espírito que anima o Movimento.
Tentemos imaginar a discussão que deve ter acontecido entre os cerca de 500
frades quanto colocaram em pauta estes pontos no capítulo geral! E que paixão pela
causa devia animar os principais líderes do Movimento, em número certamente grande e
não apenas Francisco como ordinariamente nos era apresentado.
3.5 Alguns desenvolvimentos posteriores
A história segue inexoravelmente seu ritmo. O Movimento Franciscano também
deu desenvolvimento aos gérmens que trazia em seu bojo. Aqui apenas citaremos
alguns aspectos, pois não é nosso objetivo descrevermos mais detalhadamente.
12 Sobre isso veja-se a obra de MANSELLI, Raoul. Francesco. Roma, Bulzoni, l989 pp. 102 e 263.
Segundo este estudioso da Idade Média era característica das Comunas italianas a utilização de
religiosos para os ofícios administrativo-financiários. Os Humilhados exerciam intensa atividade
neste sentido, manuseando, por vezes, altas somas de dinheiro. 13 Op. Cit. pp. 106 - l09. 14 FLOOD, D. Op. Ccit p. 3l
Projeto Franciscano de Vida 18
a) A Regra Bulada
A RnB nos fornece dados relativos ao trabalho até l2l5-6, no máximo. Este
assunto só passou a ser abordado, segundo as referências históricas de que se dispõe
hoje, depois de l22l, na reelaboração da Regra, aquela que foi Bulada, em l223, por
Honório III. Esta traz duas referências importantes em relação à questão econômica:
a) No capítulo seis reafirma a não propriedade como opção fundamental: “Os
irmãos não tenham propriedade sobre coisa alguma, nem sobre casa, nem lugar, nem
outra coisa qualquer, mas como peregrinos e viandantes que neste mundo servem ao
Senhor em pobreza e humildade...” (Rb 6, l - 2). E nisto ela segue fielmente o espírito
das disposições anteriores, embora no Testamento o próprio Francisco já altere ou
adéqüe à realidade existente.
b) Todavia há outro ponto mais crítico que precisa ser analisado com prudência.
Trata-se do trabalho. Aqui parece claro que o partido dos “doutos” tenha levado a
melhor. Quando da redação da RB acabou ficando aprovado: “Os irmãos, aos quais o
Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção... (RB 5,l). Isto
é, leia-se: os irmãos que estão acostumados a trabalhar trabalhem; os demais continuem
a fazer o que faziam antes. Desaparece assim a opção pelo modo comum da
humanidade ganhar a vida e, com isso, também a opção social, tão clara na redação
anterior. O trabalho passa a ser visto na ótica ascética, como exercício de humildade,
perdendo sua conotação fundamental básica de “opção de classe sócia”, opção pela
minoridade social, opção pela categoria social que realmente está embaixo, como
excluída da história.
Além disso, outros aspectos ainda chamam a atenção nesta transição de uma
compreensão a outra:
a) Sobre o trabalho pesa a suspeita de que possa se tornar empecilho para a
oração (“desde que não extinga o espírito da oração e santa devoção” – RB 5,3).
Exatamente como a teologia da época apregoava, por influência do platonismo
agostiniano.
b) A dimensão ética do trabalho (“honesto”) vem transformada em postura
moral-religiosa: trabalhar “fiel e devotamente”. A razão de ser de ambas é muito
diversa. Também nisto se manifesta a influência do pensamento teológico.
c) A fraternidade já não está pensada em aberto como no início, abrangendo aos
excluídos, mas apenas em relação aos frades. “Podem receber o necessário para si e para
os seus irmãos”. Sentem-se já não participantes da situação de pobres, mas tendo um
projeto à parte, como grupo com identidade “religiosa”, distante talvez dos mais
necessitados.
d) O ideal de pobreza ascética parece suplantar o testemunho de um seguimento
da pessoa de Cristo pobre e nos pobres. E o ideal da pobreza daquele tempo era muito
diverso do testemunho de Cristo. Ele podia ser conciliado com grandes propriedades,
sem dificuldade alguma.
Numa palavra, há uma transformação de meta e de estratégia. O movimento
revela com isso que a teologia monacal tomou conta de sua caminhada (como
instituição ao menos). Perdeu muito de sua profecia social para um viver o Evangelho
na mortificação, segundo os esquemas da teologia monacal.
Não se quer negar aqui que a Rb não mantenha o sentido positivo de trabalho
contra toda uma mentalidade religiosa e da nobreza de então. Ele é “graça”. Ela mantém
também a relação direta entre não propriedade e fraternidade no capítulo seis. Conserva
Projeto Franciscano de Vida 19
ainda a relação de não propriedade e itinerância (“como peregrinos e forasteiros”(Rb
6,2). São aspectos positivos sem dúvida alguma, porém num enquadramento ideológico
que possibilitará as compreensões sempre mais conformes ao contexto sócio-eclesial
que desconhece a profecia e sobrevaloriza a dimensão ascética.
b) O Testamento
O Testamento é muito enfático. É bom recordar que foi escrito nas últimas
semanas de vida de Francisco. Ditado por ele mesmo. É interessante dar-se conta, que
como diz K. Esser, nele Francisco aproveitou o momento para dizer o que mais lhe
estava ao coração, o que lhe aflorava mais naturalmente. Nos versículos l9b a 22 ele
trata da questão do trabalho. E fica evidente que ali Francisco deseja recuperar algo que
estimava de grande importância. “E eu trabalhava com minhas mãos e quero trabalhar.
E quero firmemente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os
que não souberem trabalhar o aprendam...” Não há dúvida que Francisco intui aqui
algo maior que o simples trabalhar. Ainda mais que o texto original seria:” Et omnes alii
fratres volo quod laborent de laboritio...” Esta última palavra não existia no latim.
Teria sido uma tradução imediata e direta do italiano “laboraccio” isto é, trabalho que
suja, que faz parte daquela classe de atividades abrangidas pelo preconceito de
impróprias às pessoas “cidadãs”15 e inaptas à contemplação. Toda esta ênfase que
Francisco atribui ao trabalho revela que esta aspiração estaria profundamente ligada à
opção fundamental, muito mais do que a algum aspecto moral ou ascético periférico do
seu projeto de vida.
Concluindo
Impõe-se hoje recuperar o essencial da opção original do movimento
franciscano: estar entre os trabalhadores, como representantes da classe humilde. Hoje
nós diríamos, entre os assalariados, os que estão submetidos a todo o tipo de manobra
pela classe burguesa. A ala masculina do movimento franciscano, geralmente, se porta
como trabalhadores liberais e a sobrevivência geralmente não é sua preocupação básica,
nem estão associados aos que vivem esta preocupação! Com as mulheres, isto é, com as
congregações religiosas femininas, já as circunstâncias são mais duras e próximas à
experiência dos primeiros tempos do franciscanismo. Diferenciam-se no aspecto de que
administram bens próprios, capitais rentáveis (colégios, hospitais...). Para eles também
deveria retornar o sentido do “privilégio da pobreza”, isto é, não ter grandes
propriedades. Isto me parece um grande valor a ser resgatado, por todo o movimento.
4 A Missão dos Frades Menores Começa aqui a terceira dimensão da proto-regra de São Francisco. Se a primeira
clareava a opção pelo tipo de seguimento de Jesus Cristo e a segunda focava vários
aspectos da vida cotidiana, como a sobrevivência mediante o trabalho que por sinal
recebe outro sentido, a inserção entre os pobres, o modelo de residências e as relações
desejadas entre os integrantes do movimento. Nesta terceira dimensão da proto-regra, os
frades da primeira hora buscaram definir sua missão na sociedade, seu objetivo neste
mundo.
Geralmente as pessoas entram no mundo, tomam consciência aos poucos de sua
existência e à medida que fazem isto, se envolvem em empreendimentos de
sobrevivência e de progresso econômico-social-cultural “como todo o mundo”: casam e
15 Cfr. DESBONNETS, T. Da intuição à instituição. Petrópolis: Vozes-CEFEPAL, l987, p. 37.
Projeto Franciscano de Vida 20
procuram subir na vida. Mas há pessoas que fazem outras opções. Estas geralmente
são identificadas como vocacionadas. Ingressam na Vida Religiosa ou clerical.
Francisco pessoalmente estava orientado para fazer “como todo o mundo”. Mas
depois mudou de opção. A sua decisão não foi de ingressar na Vida Religiosa de então,
mesmo que o Cardeal João de São Paulo lhe tenham insistido bastante (1Cel 33,1). Com
certeza deverá ter ponderado muito a opção pelo caminho clerical. Mas não foi este o
caminho que encetou. Buscou outro espaço, outro modo de “estar no mundo sem ser do
mundo” e trabalhando para sua transformação. O que fazer então? E como fazer isso?
A resposta nos é dada com o capítulo 14 da RnB. O texto é relativamente difícil
de entender. Pressupõe que o leitor se situe naquele contexto: são cerca de doze irmãos,
no máximo um sacerdote, ainda são desacreditados pela população e são vistos com
desconfiança pela Igreja, mesmo se a LTC observa serem eles apoiados pelo Bispo Dom
Guido II. Transcrevemos aqui o texto para facilitar.
Regra não Bulada 14
1Quando os irmãos vão pelo mundo, nada levem consigo pelo caminho, nem
bolsa (cf Lc 9,3; 10,4) nem sacola nem pão nem dinheiro (cf Lc 9,3) nem bastão (cf MT
10,10). 2E, em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa
(cf Lc 10,5). 3E, permanecendo na mesma casa, comam e bebam do que eles tiverem (cf
Lc 10,7). 4Não resistam ao mau (cf Mt 5,39), mas àquele que lhes bater numa face,
ofereçam-lhe também a outra (cf MT 5,39 e Lc 6,29). 5E a quem lhes tirar a veste, não
lhe proíbam de tirar também a túnica (cf Lc 6,29). 6Tenham atenção para com todo
aquele que lhes pede: E se alguém lhes tirar as coisas que são suas, não as peçam de
volta (cf Lc 6,29).
Como se percebe imediatamente, o texto corresponde perfeitamente à descrição
que Celano faz da primeira regra apresentada ao papa: “seriam quase só citações
bíblicas” (1Cel 32,1). No texto o itálico identifica as citações bíblicas. Como é do estilo
de Francisco, ao invés de comentar os textos ele os cita, deixando-os como fonte de
inspiração. Certamente, ao meditá-los, se pode ir muito além das simples palavras.
Seguiremos este processo aqui abaixo.
4.1 Ser peregrino e forasteiro (v. 14,1). Este versículo seria uma das citações
encontradas naquela tríplice abertura do evangelho na igreja são Nicolau, quando
Francisco, Bernardo e Pedro Cattani “foram pedir conselho ao Senhor” (AP 10; LTC
28). Ela foi deslocada das outras duas porque ela cria o ambiente para a missão.
O advérbio de tempo “quando” parece desnecessário, pois, como os frades não
tinham moradia fixa, estavam sempre “indo pelo mundo”. Mas sua presença se justifica
porquanto a Regra não tinha capítulos nem títulos intermediários, o advérbio temporal
fazia a passagem do final do atual capítulo sete para este. Lá os frades falavam das
relações entre si; aqui abordarão sua realidade de peregrinos e viandantes.
A citação encontrada neste versículo não é literal. É uma composição de Lc 9 e
10 e Mt 10, também chamada de “diatésseron”, uma prática muito comum na Idade
Média. O que o movimento queria expressar com esta citação? A nosso ver: a condição
Projeto Franciscano de Vida 21
do evangelizador. Se por um lado retiram dos textos evangélicos os itens “sandálias e
duas túnicas”(Lc 10,4 e Lc 9,3) – sabe-se que eles andavam sempre descalços e com um
só burel - e são justamente os dois itens mais necessários ao corpo – insistem em não
levar nada consigo de provisão, pois esta é sempre uma defesa. Não se trata somente de
um mimetismo evangélico. Eles vislumbram aqui a condição de fragilidade ou
dependência que o evangelizador precisa adotar para atuar em nome de um Deus que se
fez humilde e servo de todos. Por que desse modo? Porque a fé em Deus não pode ser
imposta, mas sim ser acolhida como Boa Nova. Esse é o jeito de proceder de Deus:
nunca obriga a ninguém; simplesmente convida: “se queres...”. Deus não parou sequer
a mão daqueles que crucificavam seu Filho.
Observe-se que esta citação bíblica em Mt se encontra no contexto de envio dos
Doze, mas em Lucas aparece ao enviar os 72 discípulos, isto é, um múltiplo das doze
tribos de Israel. Portanto destinado a todo o povo. Em ambos evangelistas estão
relacionadas com a cura dos doentes, a purificação dos leprosos, a expulsão dos
demônios, além do anúncio do Reino de Deus. O envio dos discípulos por Jesus
ultrapassa a dimensão de pregação do Reino: é envio para transformar e libertar a
realidade humana e social. A teologia da libertação favoreceu alcançar esta
compreensão.
4.2 A construção da paz (14,2). Este versículo e o próximo são afirmativos. Os demais
se apresentam como proibição. Os frades se expressam aqui novamente com o emprego
de uma citação bíblica, em contexto de missão, assim como originalmente está nos dois
discursos de envio missionário em Mateus e em Lucas. Eles não acrescentam
comentários ao breve versículo. Deixam-no como fonte de inspiração. É assim seu
método, também em outros escritos.
Como entendê-lo? A criação de condições para o aparecimento da paz é a
primeira tarefa a se ter mente, “indo pelo mundo”. Logo, todas as atitudes que geram
medo, distância, sentimentos de opressão pela prepotente aparência do enviado, tudo
precisa ser retirado do caminho. Ocorre que a paz não é um fruto que possa ser colhido
diretamente, pois a paz não existe em si. A paz é uma realidade fruto de outros valores,
é como que a vibração harmônica de muitos sons. Estes são necessários para gerar a
harmonia. Os ministros gerais da Família Franciscana escreveram que a “paz é um bem
que se alcança com o bem”. A bíblia diz a mesma coisa afirmando que a “paz é fruto da
justiça”. Isso dá o que pensar!
Por isso a contribuição na construção da paz na proposta de vida franciscana
abrange, entre outros aspectos: a relação fraterna com todos os seres da natureza; a
autoproibição de qualquer posse por ser uma atitude que impele o outro ser o que
realmente é e torná-lo meu prolongamento; desfazer-se de qualquer forma de poder,
para não oprimir; colaboração com o crescimento do outro, seja pessoa ou outro ser da
natureza, etc. Tudo isso somente é possível se vivido num clima de uma fé confiante
num Deus paternal/maternal.
4.3 O desafio da inculturação (14,3). Aqui está outro detalhe importante. Não há
relação de igualdade quando não se aceita a realidade da outra pessoa, inclusive seus
hábitos e costumes, visto que a pessoa humana sempre será uma realidade ao mesmo
tempo física e cultural. A dificuldade ao clima, ao tipo de alimentação – muitas vezes
carregado de religiosidades e normas-tabus – é parte integrante da pessoa. Aceitar e
acolher a toda essa carga de dados é imprescindível para acolher a realidade da pessoa.
Projeto Franciscano de Vida 22
Quando Francisco e os frades falam isso eles têm diante de si o caso dos monges
cistercienses, por exemplo, que nunca comiam carne vermelha ou as regras rigorosas
dos beneditinos em relação ao jejum e à abstinência de carnes. Lembremos que conflito
semelhante foi vivido pelos cristãos no tempo dos apóstolos Pedro e Paulo, quando o
cristianismo saia do judaísmo para se adaptar à cultura helênica (Atos 15).
Talvez os frades tenham percebido que não aceitar os hábitos culturais e
religiosos das diversas populações seria uma forma de se mostrar superior. A atitude de
dependência solicitada no primeiro versículo não pode estar desvinculada desta postura
de inculturação, pois ela suprime as barreiras.
4.4 Os ditos da não violência ativa (14, 4-6). Antes de analisar o seu conteúdo, uma
breve constatação. Para incrível que os primeiros frades tenham se valido destes versos
para falar de sua missão. Não é sua formação acadêmica nem sua cultura bíblica que
lhes possibilitou ir a essa fonte. Por detrás desta opção está a experiência pessoal e o
contexto muito beligerante que os circunda. Afinal, Francisco, Assis, e toda a Europa
respirava violência, implícita quando não explícita. Era um clima de beligerância geral:
famílias se digladiando, reinos disputando espaços geográficos, piratas de mar e da terra
saqueando... a tal ponto que, como contam os Fioretti 21 ao falar do lobo de Gúbio,
todos andavam armados para se sentirem minimamente seguros.
Francisco e Clara, provavelmente, jamais ouviram falar no termo “não-violência
ativa”. Contudo esse fato não impossibilita que eles o possam ter captado (farejado,
intuído), vivido e praticado a realidade que eles apontam. Tal assertiva pode ser
comprovada pelo emprego do texto evangélico da não-violência ativa na Regra não
Bulada. A não-violência não se destina a “ensinar a submissão, a subordinação, a baixar
a cabeça aos pequenos e já indefesos. Geralmente os pobres já apresentaram as duas
faces para outros baterem” (Creusa Maciel). Já foram, há muito tempo, espoliados do
manto e da túnica, já carregaram o fardo por muitas milhas etc. Nem o evangelho de
Jesus, nem Francisco pretenderam humilhar ainda mais as pessoas, mesmo se
desejavam eles mesmos ser menores e propusessem para toda a sociedade a minoridade.
Se o Reino é dos pobres e para os pobres, com vistas à sua libertação e dignificação,
então a proposta de Jesus, assumida pelo movimento franciscano deve ter um conteúdo
muito diverso do que fomos acostumados a entender. E este conteúdo novo foi captado
pelos nossos fundadores. Para compreender a proposta de Francisco e Clara se
necessita, até certo ponto, desfazer-se das estruturas de compreensão e ter olhares
novos.
O Sermão da Montanha, contexto destes ditos da não-violência, explana a nova
lei dada pelo verdadeiro legislador, Jesus de Nazaré. Mateus mostra, em Jesus, o
confronto entre a antiga e a nova Lei. Jesus aponta como seu seguidor deve fazer frente
à violência institucionalizada com a não-violência (ativa), apresentando uma terceira via
de ação ou reação. Colocados no Sermão da Montanha, os ditos da não-violência se
tornam regra de vida, um novo mandamento a ser observado, diz Bernard Häring. Estão
situados no contexto da comparação entre a antiga e a nova Lei para indicar a
substituição de um pelo outro. Embora difícil de perceber „a primeira vista, esses
“ditos” comprovam que o Reino chegou para os pobres. Os pobres não devem mais
aceitar ser espezinhados, confirmando o estado de violência. Para cumprir o verdadeiro
espírito da lei antiga levando-a à perfeição, Jesus mostra agora a necessidade de agir
Projeto Franciscano de Vida 23
diferentemente, e assim impedir que a dignidade das pessoas continue sendo ultrajada.
Feita referência ao homicídio, ao adultério, ao juramento, Jesus vai agora falar da
superação da lei do talião, do “olho por olho e dente por dente”. Quer dizer, vai propor
atitudes que interrompam o círculo vicioso da violência. No passado, a Lei estava
preocupada apenas em limitar a violência. Oferece, agora, novas pistas: não resistir
(violentamente) ao homem mau, oferecer a outra face, deixar levar também o manto a
quem arrancou a túnica, caminhar duas milhas e não apenas uma e não pretender a
devolução do emprestado (Mt 5, 38-42). Essas orientações para transcender a lei do
talião (Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21) passarão a ser chamadas de “ditos da não-
violência”.
Para a melhor compreensão destes versículos na Regra não Bulada, convém
antes examiná-los no contexto evangélico original, no Sermão da Montanha. São ali
inseridos logo após as bem-aventuranças, dentro da nova interpretação da antiga Lei,
para conduzi-la à plenitude. Não aparecem aí por causalidade. Exatamente ao contrário,
são colocados no coração do evangelho de Mateus, porque devem determinar o modo de
ser do seguidor de Jesus Cristo. É isto que levou Bernhard Häring dizer que a “doutrina
da não-violência faz parte essencial do Sermão da Montanha”. Segundo esse autor,
Jesus contrapõe sete vezes16 as duas versões da Lei(a nova e a antiga), significando que
essa doutrina, ou melhor, essa postura social do cristão cobre a totalidade das situações
humanas. Assim como as bem-aventuranças geram um modo de ser diferente,
igualmente a não-violência leva o cristão a ter uma postura que Häring denomina de
“revolucionária”, enquanto rompe com o modo de proceder dos oprimidos de uma
sociedade.
Alberto DE MINGO ajuda a compreender esses “ditos da não-violência”
buscando sua leitura no contexto social do tempo de Jesus, superando o costume de vê-
los como um convite a sofrer, sem revolta, as ofensas e as injúrias, como se o cristão
fosse “uma pessoa que devesse evitar toda a reação e padecer com resignação as mais
diversas agressões”. Ao contrário, também para este biblista, esses ditos da não-
violência “são uma chamada à defesa da dignidade dos mais desprotegidos”.
Conforme estudos recentes, é difícil decidir qual das versões dos ditos da não-
violência seria a mais original, se a mateana (Mt 5, 38-41) ou a lucana (Lc 6, 27-36).
Provavelmente Jesus as teria evocado inúmeras vezes em seus discursos e instruções,
em diversos contextos e de diferentes modos. Os evangelistas as trabalharam dentro do
esquema próprio de seu evangelho. Neste ensaio privilegiamos a de Mateus, pois
escrevendo para judeus convertidos, parece traduzir com maior fidelidade o contexto
original. Para não nos estender, será examinado com maior riqueza de detalhes apenas o
dito da bofetada no rosto.
a) O dito de não resistir ao mau (com violência). Não se trata de passividade
generalizada. Ao contrário, o verbo grego “resistir” aqui empregado tem conotação
especificamente militar, isto é, é resistir com arma ou de modo violento. Flávio Josefo o
emprega 17 vezes, e sempre com esta conotação. Jesus introduz os ditos da não-
violência com este versículo para caracterizar a interrupção da lógica da violência.
Recomenda que não se afronte a violência com outra violência. Sabe que a paz é um
bem que se constrói com o bem e não com a violência.
16 Na prática, Jesus faz seis contraposições diretas e específicas. Creio que para o autor a sétima vez seria
a contraposição inicial que diz respeito a todos os casos específicos.
Projeto Franciscano de Vida 24
b) O dito de “oferecer a outra face”. Assim se expressa o versículo bíblico de
Mateus: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda”. Mateus,
que escreve para judeus convertidos e, portanto, como bom conhecedor dos costumes
judeus. A Misná, uma grande compilação dos ditos rabínicos do século III dC
mesclando leitura bíblica e costumes jurídicos, reportando tradições anteriores, talvez
contemporâneas a Jesus, ilustra o significado social de uma bofetada naquele contexto
cultural pela indenização a ser dada: “Se alguém desferir um soco a seu próximo terá de
indenizá-lo com uma selá. Se der uma bofetada, deverá dar-lhe 200 sus. E se a bofetada
for com o reverso da mão, com 400 sus”17. Por trás da diferença de sanções se esconde
o conceito antropológico-cultural da “honra social” ofendida, ocupando o centro do
sistema de valores nas sociedades mediterrâneas. Ali a honra abrangia tanto a auto-
estima pessoal quanto o “bom nome”, ou o reconhecimento e a valorização social. Esse
aspecto oferece a chave para entender a gravidade da ofensa.
A Misná é tolerante com o soco: a indenização é baixa. Isso permite entender
que tolera o soco como maneira violenta, mas ordinária, de resolver conflitos. A
bofetada é penalizada com indenização maior devido à humilhação produzida pelo
gesto. A bofetada fere mais a honra do que o corpo. Isso é intolerável entre “próximos”,
isto é, entre pessoas com o mesmo nível social. Pior ainda quando o tapa é desferido
com o reverso da mão. Note-se, porém, que esta punição, segundo a Misná, é aplicada
entre pessoas livres e nas relações sociais em geral. Não era absolutamente utilizável em
se tratando do patrão para com os escravos ou dos pais em relação aos filhos.
Busquemos agora compreender a aplicação feita por Jesus deste dito da não-
violência de mostrar a outra face. Segundo Alberto DE MINGO18, o dito corresponde a
uma cena em que um superior bate em um inferior (sem ser pai ou patrão). Jesus não
aceita a humilhação social por quem arrogasse sua superioridade e quisesse, batendo,
reafirmar essa sua superioridade (artificial). E pede ao inferior que “mostre a outra
face”. Que reações isso vai suscitar no agressor e em quem vê a cena? Em primeiro
lugar surpresa, pois que o agredido mostre a outra face não é nunca esperado. Agindo
desse modo, “o agredido toma a iniciativa de negar ao agressor o que ele se havia
proposto: reafirmar sua superioridade e obter a submissão do interlocutor”. O agredido
está, dessa maneira, “desmontando os pressupostos sociais que conferem ao agressor o
poder de humilhar e submeter”. Seu gesto é um desafio. Inclusive no caso em que um
agressor opte por dar-lhe um soco, estaria reconhecendo o outro como igual e não como
subalterno. De todo o modo, a iniciativa proposta por Jesus faz a razão mudar de lado e
passar para as mãos de quem era considerado inferior. Esse demonstrou que sua
dignidade de pessoa humana não desmoronou com uma bofetada.
c) O dito da túnica: A túnica e o manto eram as duas únicas peças de roupa usadas,
tanto por homens como por mulheres no tempo de Jesus. Tirar a túnica era tirar toda a
parte interna do vestuário. O manto era proteção do frio e agasalho para a noite. Quem
tirasse a túnica estava fazendo grave violência contra o outro, deixando-o
completamente nu. Observe-se que Mateus fala em “mover processo” para tirar a túnica.
Supõe-se que já tenha retirado desse endividado todos os bens que lhe pertenciam. Só
17 A selá equivalia a 4 sus. E um sus é o salário de um dia de trabalho ou um denário romano. Então um
soco teria a indenização de uma selá, isto é, o equivalente ao salário de 4 dias de trabalho. Um tabefe na
face esquerda, ao salário de 200 dias de trabalho. E se for com o reverto da mão, ao salário de 400 dias de
trabalho, isto é, mais de um ano de salário. 18 DE MINGO, A. Los dichos de La noviolencia. Em: Rev. Moralia. º 101-103, 2004 pp 125-146.
Projeto Franciscano de Vida 25
lhe sobrava a roupa do corpo. Nesse caso, Jesus manda entregar também o manto
(uma lei do Deuteronômio 24, 12-13 impedia ao credor permanecer com o manto à
noite, pois o pobre precisa dele para se cobrir). Ficando assim totalmente nu diante de
todos, denunciaria a grande violência sofrida e a total insensibilidade do credor. A razão
mudava de lado: o credor, sempre pessoas de grandes recursos econômicos, seriam
flagrados em toda a sua impiedade e maldade. Estando totalmente nu, o endividado
denunciava a violência do credor e o provocava a repensar seu procedimento. Jesus
coloca esse recurso “irônico” de uma violência não-violenta na mão dos pequenos, para
fazer frente à forte exploração e pressão fiscal dos detentores do poder econômico que
não receavam espoliar completamente seus devedores.
d) O dito da milha: Também aqui não se trata de uma generosidade ingênua ou
submissa. Lembre-se que Jesus está superando a “lei do talião”. Trata-se do costume
dos soldados romanos de obrigar civis dos países dominados a carregar seus pesados
equipamentos (cerca de trinta quilos) por uma milha, enquanto eles caminhavam
tranqüilamente ao lado, sem peso algum. Desse modo, indiretamente, faziam os povos
dominados reconhecer sua condição de humilhados. Jesus recomenda que o dominado
carregue o fardo por duas milhas, isto é, o dobro do solicitado. Não por generosidade e
sim para induzir a uma contravenção no soldado pela qual ele seria punido. Havia uma
lei proibindo obrigar a mesma pessoa a andar mais de uma milha com o fardo.
Os frades ao assumirem esses ditos da não violência omitem este da milha.
Talvez porque já não fazia nenhum sentido no seu tempo. Isso revela que eles
examinavam com muita atenção cada palavra do evangelho antes de inseri-la no texto
da Regra.
e) O dito do empréstimo: Em Jesus é outro modo de romper com o endividamento por
juros exorbitantes é instaurar uma economia de entreajuda recíproca. O mesmo que
Jesus pede a quem deseja segui-lo, a quem pede o que fazer para alcançar a vida eterna,
a quem reclama por ter ganho a mesma paga tendo trabalhado o dobro de tempo de
outro, etc. Jesus propõe sempre uma economia de partilha. E não podia ser diferente
aqui. Ocorre que a economia é o que mais submete pessoas a outras, porque ela tem
uma violência intrínseca muito forte.
Com esses “ditos da não-violência” Jesus confirmava que o Reino estava, de
fato, irrompendo com uma nova prática. Os gestos que propõe mostram o protagonismo
dos pobres. Por isso, esses ditos não são normas morais e nem simples atitudes internas.
São propostas de ação que mostram como o poder de Deus não atua violentamente nem
nas pessoas mais desprovidas, mas ao mesmo tempo encontra estratégias para
interromper toda a forma de violência. Os seguidores de Jesus são chamados a
surpreender e a destronar os que, amparados pelo sistema social, cometem atos de
injustiça contra os mais fracos. Esses ditos nada apresentam de passividade. Apontam
antes para uma terceira via entre as duas muito conhecidas (a luta ou a fuga) diante de
conflitos: a ação direta não-violenta. É assim que conclui o articulista:
Com esses ditos Jesus propõe estratégias de ação na qual os oprimidos podem
recobrar a iniciativa moral e encontrar uma alternativa criativa à violência. São
gestos que afirmam a dignidade dos pobres e a fazem ver aos opressores. Utilizam
o humor para romper o círculo da humilhação e denunciam a injustiça do sistema.
Aos agressores se dá uma oportunidade de arrependimento e para a mudança de
mentalidade diante da irrupção do Reino (MINGO, 2004, p. 146).
Projeto Franciscano de Vida 26
Cremos que essas conclusões podem oferecer nova luz para a compreensão do
capítulo XIV da Regra não Bulada de São Francisco. Se admitimos que os primeiros
frades, devido à sua experiência de vida, captaram a mensagem de Jesus, ao menos
parcialmente nesta perspectiva, então não resta dúvida de que eles se sentiam
verdadeiros revolucionários frente ao sistema imperante, muito mais do que poderíamos
imaginar até pouco tempo com nossa leitura fundamentalista das fontes. Pode-se dizer
que os frades queriam gerenciar uma nova pauta (pluridirecional) de paz. Pensavam,
talvez, naquilo que atualmente se fala em “cultura de não-violência”, como propõe
Creusa Maciel19, inspirando-se na prática não-violenta de M. Gandhi.
Este capítulo trata da missão dos frades e abre, historicamente, a seção dos
capítulos dedicados aos trabalhos missionários. É o primeiro deles, tanto na ordem
lógica quanto cronológica. Note-se em primeiro lugar que não se percebe aqui vestígio
algum de clericalismo na missão, permitindo deduzir que o grupo inicial de frades se
percebia mais próximo aos movimentos sociais do que das Ordens Religiosas. Raoul
Manselli diz que, nos primeiros tempos, os frades se sentiam “leigos e não clérigos”. É
impressionante que nem a frase de “anunciar o Reino” aparece aqui. Antes predominam
duas tensões: a forma de presença submissa a todos, portanto, desarmada, humilde,
serviçal, que se adapta aos outros; e o engajamento em favor da construção da paz,
ajudando o povo a romper com toda a forma de violência que dia mais ou dia menos
levará a conflitos abertos.
No primeiro versículo, os frades apresentam as condições do enviado: ir sem
nada de próprio. Toda a posse exigiria alguma forma de defesa (arma), e que viria
certamente a atrapalhar a verdadeira ação missionária. Logo a seguir é apresentada a
tarefa da paz, mediante uma singela frase do evangelho. Saudar dizendo: “Paz a esta
casa”. Este pensamento evangélico é usado para trazer à memória toda a pauta da
promoção da paz, muito mais do que servir apenas como saudação inicial. Aliás, este é
o modo de Francisco falar. Cita um versículo evangélico sem comentá-lo para que ele
próprio apresente sua força e conteúdo. Observe-se que se trata da única tarefa
afirmativa explícita no capítulo, e ocupa o seu centro, formando seu eixo, ao redor do
qual giram os demais aspectos da missão. Os outros versículos se referem às condições
ou à metodologia para a promoção da paz. As condições do “missionário” (ir sem nada
e se inculturando) e a metodologia para enfrentar as injustiças e a violência estão ambas
em função da construção da paz. Parece justo, pois, dizer que a GRANDE MISSÃO
DOS IRMÃOS É TRABALHAR PELA PAZ.
Concluindo
Duas constatações são claras ao final desta análise:
a) O movimento franciscano pensa sua missão a partir da secularidade. No que se
propõem como missão não se encontra nada que diga respeito aos clérigos como alguns
anos após a morte de Francisco os frades assumem. Tem consciência de ser um
movimento de seguimento de Jesus Cristo, de ser um grupo que deseja viver acima de
tudo o evangelho, mas o faz na condição de Leigos. Não apontam absolutamente para a
19 MACIEL, Creusa. A Não violência e a integridade da criação. In: SINFRAJUPE. Francisco e a
ecologia.
Petrópolis: Secretariado Nacional do Sinfrajupe, 1991, p. 59-73.
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dimensão eclesiástica da vida religiosa. Não se fala em pregação doutrinária. E a
preocupação prática parece não ser propriamente a explicitação da fé, como o foi com
os dominicanos. É antes um movimento penitencial: pretendem abrir os olhos do povo
para um novo modo de viver, calcado em valores esquecidos pelo povo, mas
proclamados com ênfase por Jesus Cristo. E o fazem desde sua condição de pessoas do
povo, sem status ou mandato especial (sacramento da ordem). Elegem principalmente as
praças para suas pregações. Parecem ter captado que Jesus também não pertenceu ao
segmento sacerdotal, não era investido de nenhum mandato oficial. Andava na periferia
da estrutura religiosa.
b) Em segundo lugar, o movimento franciscano assume a causa da paz. Naquele
ambiente de beligerância generalizada, a paz é a grande aspiração. Por isso a grande
acolhida do povo à proposta do movimento franciscano. E como “a paz é um bem que
se constrói com o bem” e não com palavras, os frades:
- propõem viver os valores de Jesus Cristo que é o caminho, a verdade e a vida. Querem
fazê-lo como que segue suas pegadas, bem no concreto da vida dele e da sua;
- tornam-se menores para não oprimir ninguém, mas antes para fazer os menores sociais
sentirem-se solidarizados e dignificados. O que mais humaniza é sentir-se
solidarizado...;
- abdicam ao direito de propriedade que sempre levanta cercas e distanciamentos
sociais. Não só levanta cercas, mas geralmente leva as pessoas confundir posse de bens
com dignidade humana, atribuindo valor à pessoa segundo sua posse. Na Idade Média
quem não fosse proprietário ao menos de um animal de trabalho não podia sequer
recorrer à justiça.
- Tratam a todos respeitosamente como irmãos, desde os leprosos e os hereges (infiéis)
até as pessoas de elite e as convidam a exercer cidadania. Implantam, quase sem saber,
um regime altamente democrático, onde as decisões são tomadas comunitariamente. Eis
a missão franciscana, extremamente válida ainda hoje.
Em forma de síntese, nesta conclusão, este capítulo poderia ser assim
apresentado: Olhando a estrutura do texto percebe-se que a questão nuclear é a CAUSA
DA PAZ. Senão vejamos:
- O v. 1 (não levem dinheiro...) fala das condições de quem deseja ser evangelizador: ir
sem seguranças de tipo algum, sem armas de defesa, na total dependência dos
destinatários. Assim não poderá se impor. Em RnB 16,6 fala em “estar submisso a toda
humana criatura” e do versículo 10 em diante em entregar a própria vida.
- O v. 2 (Paz a esta casa...) fala do anúncio da paz. É o único versículo do capítulo que
indica algo a fazer, que é propositivo. Embora apenas citando o evangelho (Mt 10,13;
Lc 10,5) deixa claro que é a primeira coisa a ter em mente. A atenção principal do
evangelizador é a causa da paz. Para os franciscanos ela seria o novo nome do Reino ou
seu sinônimo.
- O v. 3 (Comam e bebam do que tiverem...) é um versículo positivo, mas trata de outra
condição para a evangelização. A comida é o que mais expressa a realidade cultural de
um povo e acolhê-la é predispor à fraternidade, condição e caminho para a paz.
- Já os v. 4-6 recortam os ditos da não violência dos evangelhos (Mt 5, 38-42; Lc 6, 27-
36). Mesmo se tomadas mais da versão lucana – e os retrabalha – visam barrar o ciclo
da violência imperante, sentida nestas três dimensões:
Projeto Franciscano de Vida 28
a) no desprezo por pessoas (algumas categorias), expressa pelo tabefe na face
(direita). O tabefe mais que doer é sinal de desprezo, na cultura judaica. A forma de
violência aqui contornada é o desprezo por pessoas ou categoria de pessoas, etc;
b) na espoliação sofrida pelos mais pobres, de quem se arranca até a roupa do corpo,
isto é, se tira tudo o que é possível. Mesmo se os processos jurídicos fossem raros neste
sentido, a injustiça institucionalizada segue, sorrateiramente às vezes, fazendo este
papel.
c) na economia de acumulação que vai continuamente excluindo os mais frágeis da
sociedade, porque sempre favorece a aquém já tem mais. Basta ver o juro que recebe do
banco quem lhe confia pouco e quem lhe confia muito, ou ainda o valor do juro pago
por um pobre e por um rico ou uma grande multinacional.
Portanto, trabalhar pela paz é a “razão de ser dos irmãos menores”. E isso não
para ser revolucionário, mas para poder seguir os passos de Jesus Cristo, o grande
libertador, morto como criminoso político por querer reverter a situação de opressão
vivida pela grande maioria do povo. Com esse projeto de vida e missão, Francisco não
podia aceitar o conselho do Cardeal Jaó de São Paulo para ingressar em outra Ordem
(1Cel 33, 1-3), pois nenhuma delas vislumbrava essa perspectiva.
Francisco teria tido toda esta clareza? Provavelmente não de forma conceitual.
Mas a viveu de forma meridiana. É como a resposta de uma mãe idosa celebrando o
jubileu de casamento: a senhora amou mesmo seu marido. Disse ela: “eu não sei se
amei. Só sei que fiz tudo por ele, não pensei em mais ninguém, não me reservei
absolutamente nada só para mim. Sempre vivi assim”.