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ENGENHARIA I I ENGENHARIA WWW.BRASILENGENHARIA.COM.BR ENGENHARIA 607 / 2011 WWW.BRASILENGENHARIA.COM.BR ENGENHARIA 607 / 2011 28 29 “O Metrô de São Paulo foi Consultor empresarial – presidente do Metrô-SP de 1971 a 1977 LINHA DE FRENTE WWW.BRASILENGENHARIA.COM.BR ENGENHARIA 607 / 2011 28 Para o engenheiro Plínio Oswaldo Assmann, a Com- panhia do Metrô de São Paulo (Metrô-SP) – que ele presidiu nos seus primórdios, de 1971 a 1977, durante a implantação da primeira linha de metrô e o delineamento da segunda – constituiu-se, no final da década de 1960 e início da de 1970, numa das maiores competências mundiais em termos metroviários. Assmann recorda que no processo de seleção dos engenheiros era indispensável, na época, que estes apresentassem diploma e passa- porte. Já que todos – além dos técnicos de nível médio – deveriam ser enviados a diversos países, de onde sempre voltavam com as mais avançadas propostas tecnológicas.“Nesse sentido, o Metrô de São Paulo foi global antes da globalização”, diz ele, acrescentando que logo depois muitos avanços tecnológicos aconteceram em São Paulo e foram seguidos pelos metrôs de outros países – uma vitória da engenharia brasileira. Em cada item de que se compõe o sistema houve a preocupação de se escolher as mais modernas e avançadas tec- nologias. Divisor de águas na engenharia brasileira, a implantação do Metrô-SP deflagrou não só um formidável desenvolvimento em projetos, obras e equipamentos, mas também elevou a novos patamares a qualidade técnica e a capacidade de absorção de tecnologia. Máquinas perfuradoras gigantescas passaram sob prédios num centro ur- bano altamente adensado, como o Palácio da Jus- tiça, por exemplo, que foi construído por Ramos de Azevedo, a Caixa Econômica, a Praça da Sé – onde aconteceu a histórica implosão do Edifício Mendes Caldeira – e outros antigos edifícios. Segundo As- smann, eram edificações que não podiam ter um recalque maior do que 10 milímetros. Ele lembra que os túneis, com um diâmetro de 6 metros, passaram por debaixo desses prédios sem causar qualquer abalo. As obras se iniciaram na Avenida Engenheiro Armando de Arruda Pereira, no Jaba- quara, ainda na época do prefeito José Vicente Faria Lima. Mas o grande impulsionador foi o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, nomeado consul- tor especial pelo prefeito.“Não tínhamos nenhuma experiência nessa área, porém em pouco tempo o Metrô e as empresas nacionais de engenharia de projetos, construção e montagem tornaram- -se autossuficientes, enquanto altos índices de nacionalização dos equipamentos eram atingidos”, orgulha-se Assmann, que, entre muitos outros cargos, ocupou a presidência da Companhia Side- rúrgica Paulista (Cosipa) e foi secretário estadual de Transportes, na gestão do governador Mário Covas global antes da globalização” WWW.BRASILENGENHARIA.COM.BR ENGENHARIA 607 / 2011 29 FOTOS: LEONARDO MOREIRA / ARQUIVO ENGENHARIA I P l ínio O swaldo A ssmann FOTOS: ARQUIVO ENGENHARIA

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Page 1: “O Metrô de São Paulo foi global antes da globalização” · ENGENHARI I ˜I NGENHARIA 28 engenharia 607 / 2011 engenharia 607 / 2011 29 “O Metrô de São Paulo foi Consultor

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“O Metrô de São Paulo foi

Consultor empresarial – presidente do Metrô-SP de 1971 a 1977

LINHA DE FRENTE

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Para o engenheiro Plínio Oswaldo Assmann, a Com-panhia do Metrô de São Paulo (Metrô-SP) – que ele presidiu nos seus primórdios, de 1971 a 1977, durante a implantação da primeira linha de metrô e o delineamento da segunda – constituiu-se, no final da década de 1960 e início da de 1970, numa das maiores competências mundiais em termos metroviários. Assmann recorda que no processo de seleção dos engenheiros era indispensável, na época, que estes apresentassem diploma e passa-porte. Já que todos – além dos técnicos de nível médio – deveriam ser enviados a diversos países, de onde sempre voltavam com as mais avançadas propostas tecnológicas. “Nesse sentido, o Metrô de São Paulo foi global antes da globalização”, diz ele, acrescentando que logo depois muitos avanços tecnológicos aconteceram em São Paulo e foram seguidos pelos metrôs de outros países – uma vitória da engenharia brasileira. Em cada item de que se compõe o sistema houve a preocupação de se escolher as mais modernas e avançadas tec-nologias. Divisor de águas na engenharia brasileira, a implantação do Metrô-SP deflagrou não só um formidável desenvolvimento em projetos, obras e equipamentos, mas também elevou a novos patamares a qualidade técnica e a capacidade de

absorção de tecnologia. Máquinas perfuradoras gigantescas passaram sob prédios num centro ur-bano altamente adensado, como o Palácio da Jus-tiça, por exemplo, que foi construído por Ramos de Azevedo, a Caixa Econômica, a Praça da Sé – onde aconteceu a histórica implosão do Edifício Mendes Caldeira – e outros antigos edifícios. Segundo As- smann, eram edificações que não podiam ter um recalque maior do que 10 milímetros. Ele lembra que os túneis, com um diâmetro de 6 metros, passaram por debaixo desses prédios sem causar qualquer abalo. As obras se iniciaram na Avenida Engenheiro Armando de Arruda Pereira, no Jaba-quara, ainda na época do prefeito José Vicente Faria Lima. Mas o grande impulsionador foi o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, nomeado consul-tor especial pelo prefeito. “Não tínhamos nenhuma experiência nessa área, porém em pouco tempo o Metrô e as empresas nacionais de engenharia de projetos, construção e montagem tornaram--se autossuficientes, enquanto altos índices de nacionalização dos equipamentos eram atingidos”, orgulha-se Assmann, que, entre muitos outros cargos, ocupou a presidência da Companhia Side-rúrgica Paulista (Cosipa) e foi secretário estadual de Transportes, na gestão do governador Mário Covas

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engº Plínio Oswaldo Assmann, 78 anos, nascido na pequena cidade de Piratuba, no oeste de Santa Catarina, é o que se pode-ria chamar de “homem dos sete

instrumentos”. Engenheiro mecânico ele-tricista graduado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (turma de 1956), Assmann foi, entre outras coisas, professor da mesma Politécnica/USP, na cadeira de Má-quinas Elétricas; engenheiro da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa); gerente da companhia Aços Villares; presidente do Me-trô de São Paulo por sete anos; presidente da Cosipa; presidente dos conselhos de admi-nistração da privatização da Caraíba Metais (BA) e da Companhia Nacional do Cobre (RS) – empresas de propriedade do Banco Nacio-nal de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); presidente do conselho de adminis-tração do Metrô do Rio de Janeiro; membro da primeira diretoria da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM); secretário de Transportes do Estado de São Paulo, na gestão do governador Mário Covas, quando implementou o Programa de Concessões Ro-doviárias do Estado; diretor superintendente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT); presidente do Instituto de Engenharia (IE) na gestão 1983-1984.

“Eu sou um dócil indócil”, define-se As-smann. Sempre trajado com sóbria elegância, empertigado, cosmopo-lita sem afetação, de co-municação fácil e clara, ele costuma guarnecer algumas frases com um olhar demorado em dire-ção ao repórter e um riso que se interrompe tão ra-pidamente quanto aflora aos lábios: é a senha para que o interlocutor perce-ba que aquela fala merece tratamento VIP na estruturação da reportagem. Considerado um dos profissionais do setor de transporte pú-blico mais bem sucedidos e reconhecidos no Brasil em todos os tempos, Plínio Assmann é o focalizado desta edição na série de repor-tagens “Linha de Frente da Engenharia” sobre engenheiros que alcançaram grande destaque em suas trajetórias profissionais.

A par de suas múltiplas realizações em outras áreas, não se pode desligar a figura de Plínio Assmann da história do Metrô de São Paulo. Divisor de águas na engenharia brasi-leira, a implantação do Metrô-SP deflagrou não só um formidável desenvolvimento em

projetos, obras e equipamentos, mas também elevou a novos patamares o aumento da qua-lidade técnica e capacidade de absorção de tecnologia. “Não tínhamos nenhuma expe-riência nessa área, porém em pouco tempo o Metrô e as empresas nacionais de enge-nharia de projetos, construção e montagem tornaram-se autossuficientes, enquanto altos índices de nacionalização dos equipamentos eram atingidos”, orgulha-se ele, que presi-diu a companhia durante a implantação da primeira linha e o delineamento da segunda, de 1971 a 1977. De fato, a implantação do Metrô-SP incorporou, à época, o que de mais moderno havia em termos de tecnologia e in-duziu as empresas nacionais a promoverem um grande salto de qualidade, pelo rigor de suas especificações. O metrô paulistano foi o primeiro no mundo a operar em Automatic Train Operation (ATO) e a ter um Centro de Controle Operacional (CCO) centralizado para todas as linhas. Muitos especialistas e estu-diosos, brasileiros e do exterior, asseguram que o Metrô-SP foi uma “universidade”, com contribuições altamente positivas para a en-genharia brasileira.

Em sua entrevista exclusiva à REVIS-TA ENGENHARIA, Plínio Assmann proferiu, à queima-roupa, uma frase de impacto. “O Metrô de São Paulo foi global muito antes

da globalização. Ou seja, apesar do metrô que foi construído na capital paulista ter sido execu-tado por engenheiros formados nas escolas brasileiras, ele foi extre-mamente moderno por-que esses profissionais foram verificar o que havia de mais avançado em termos de tecnolo-gia no mundo. Tudo isso foi feito sem outra coisa que não gosto de viajar e vontade de aprender.

Para trabalhar no Metrô de São Paulo, o jo-vem engenheiro tinha que ter diploma e pas-saporte. Ele saía, ia aprender alguma coisa lá fora e trazia para cá. Ou seja, a companhia foi mesmo global antes da globalização. Isso tudo foi feito com simplicidade, sem custos exagerados, só as despesas normais das via-gens. Os jovens pioneiros do Metrô passaram a conhecer os engenheiros dos outros metrôs do mundo que entendiam bastante daquele assunto, e que eles precisavam dominar para colocar em prática em São Paulo. O Metrô de São Paulo foi construído assim. Além disso, naquela época, os técnicos da companhia se correspondiam com os técnicos da mesma

especialidade dos metrôs de Londres, Paris, Toronto. Quer dizer, o Metrô de São Paulo teve acesso à melhor tecnologia disponível naquele momento.”

Para Assmann, o desenvolvimento tec-nológico não constitui, como poderia pa-recer à primeira vista, um processo de evolução gradual e contínuo tipicamente re-presentável por uma curva ascendente. Essa seria somente a imagem simplificada de uma realidade mais complexa, que se apresenta na forma de verdadeiros saltos qualitati-vos, ou “momentos tecnológicos”, seguidos de períodos relativamente prolongados de assimilação, maturação e aplicação. Desses “momentos” resultaram verdadeiras “ondas” de desenvolvimento tecnológico, que extra-vasaram os limites de seus setores originais, induzindo processos abrangentes. “São bem conhecidos os exemplos da introdução no país da indústria siderúrgica, através da im-plantação da Companhia Siderúrgica Nacio-nal [CSN], e da Chesf [Companhia Hidro Elé-trica do São Francisco], que abriu um longo caminho de construções de hidrelétricas com tecnologia e empresas nacionais; assim como outro ‘momento tecnológico’, o da instala-ção do parque automobilístico, todos com forte incentivo promocional do Estado, que criou o conceito de controle de qualidade do produto, ainda antes não atingido em nossa indústria”, enumera Assmann. Depois veio o caso do Metrô de São Paulo, que se perfila junto com esses exemplos, e estabeleceu as bases da transição para uma nova fase no desenvolvimento urbano, fundamentada no transporte rápido de massa de avançada tec-nologia. Era a democratização do transporte coletivo de massas com dignidade, apesar de, ironicamente, o início das obras ter-se dado exatamente no dia 14 de dezembro de 1968, quando as manchetes de todos os jor-nais brasileiros estampavam a assinatura, na véspera, do Ato Institucional nº 5.

A exemplo da siderurgia, das barragens e da indústria automobilística, as linhas de metrô constituíam também, no imaginário de seus idealizadores, um grande universo tecnológico aparentemente impenetrável, de segredos quase míticos. Teríamos enge-nheiros e arquitetos em condições de proje-tar e implantar obras subterrâneas e túneis em plena área urbana densamente ocupada e utilizada? Teríamos engenharia elétrica e eletrônica? Teríamos recursos humanos à al-tura da tarefa de operar e manter o sistema? E até mesmo nossa população, estaria ela preparada para utilizar um metrô moderno e automatizado? Como já deu a entender As-smann, para enfrentar o desafio – e em de-cidido gesto de autoestima –, optou-se por

A implantação do Metrô-SP incorporou, à época, o que de mais moderno havia em termos de tecnologia e induziu as empresas nacionais a dar um grande salto de qualidade

adotar os recursos mais modernos e de mais avançada tecnologia disponíveis na época, o que significou em muitos casos o pioneiris-mo absoluto em nível mundial.

— O senhor foi o primeiro presidente do Metrô? — indagamos.

“Não. Muita gente pensa que fui eu, mas o primeiro presidente do Metrô foi o Fran-cisco Quintanilha Ribeiro, que foi ministro--chefe da Casa Civil do então presidente da República, Jânio Quadros. Eu fui o que ficou mais tempo na presidência da companhia: sete anos. O Metrô de São Paulo foi uma das obras fundamentais realizadas pela moderna engenharia nacional. Mas como o resto do Brasil não acompanhava esta dinâmica de avanço tecnológico instaurada pela Com-panhia do Metrô, criamos uma associação, com o objetivo de ajudar a difundir essas inovações para as outras cidades brasileiras: a Associação Nacional de Transportes Públi-cos – ANTP. Para que as outras partes do Brasil tivessem uma referência melhor sobre o que de mais moderno acontecia no mundo. A ANTP englobava metrô, ônibus, rede fer-roviária, veio CBTU [Companhia Brasileira de Trens Urbanos], veio todo mundo que trata-va de transportes públicos. Então o Metrô de São Paulo uniu toda a comunidade nacional de transportes públicos. A ANTP está para fazer 35 anos de vida. De dez em dez anos há um congresso que une o Brasil inteiro. Ago-ra mesmo, na segunda quinzena de outubro, houve um, no Rio de Janeiro. E aí as pessoas que estão envolvidas com transportes públi-cos se informam umas com as outras sobre aquilo que o Metrô e demais companhias estão realizando. Por iniciativa do Metrô de São Paulo também se trouxe para o Brasil a reunião da União Internacional do Transpor-te Público, que é um congresso mundial na especialidade dos transportes públicos. De modo que foi criado um canal de comunica-ção permanente, sem custos, com o mundo. Ao fazer isso, o passo de modernidade que o Metrô de São Paulo deu foi enorme. Quer dizer, o Metrô trouxe a melhor tecnologia do mundo para ser feita no Brasil, mas com a participação ativa da indústria brasileira. Dessa forma, entramos no estado da arte, ou seja, atingimos o nível de desenvolvimento tecnológico mundial daquela época. Só para você ter ideia, o metrô da capital america-na Washington, que foi inaugurado depois do metrô paulistano usou tecnologia mais atrasada que a nossa. Então o Metrô de São Paulo foi pioneiro numa série de inovações. Na época, nós tínhamos consciência de que, se estávamos fazendo o primeiro metrô do Brasil, tínhamos que ter um nível de exce-lência, porque aquele deveria passar a ser o

padrão dali por diante. E esse padrão ainda hoje persiste, 40 anos depois.”

— O senhor costuma dizer que há 40 anos o Metrô de São Paulo inovou em tec-nologia da informação. Como é isso? — pe-dimos que explicasse.

“Bom, naquela época nem se usava esse nome. Mas nós fomos pioneiros ‘na base’. Ou seja, o Metrô de São Paulo, mesmo nos primórdios, foi profundamente automático. Uma automação ousada, adotada com êxi-to. Tanto que nunca houve ‘trombada’ en-tre trens no Metrô. Os trens sempre foram comandados pelo CCO [Centro de Controle Operacional] do Bairro do Paraíso, automa-ticamente. Eram três computadores. Naquela época os equipamentos eram enormes e hoje são menores, claro. Um que opera a linha, ou-tro que faz tudo igual – para o caso de acon-tecer algum problema –, e o terceiro para ver qual dos dois primeiros é que está certo. Para não ter erro mesmo. Então o Metrô de são Paulo foi praticamente do primeiro metrô do mundo a usar circuitos eletrônicos vitais com êxito. Teve o de São Francisco, na Califórnia, também. Mas num sistema cheio de passagei-ros, com o usuário aceitando a novidade para valer, o primeiro a ter circuitos eletrônicos vitais que comandavam o trem, foi o de São Paulo. Na época só se tinha isso na agência espacial americana, a Nasa. Para lançamento de foguetes. A confiabilidade desses circuitos eletrônicos que comandam frenagem, acele-ração do trem, todas essas coisas, foi plena-mente confirmada pelo povo. Então foi um sucesso tecnológico monumental. E também foi espetacular a forma como o Metrô de São Paulo internalizou essa tecnologia no Brasil. Havia o fornecedor estrangeiro – no caso, americano – que entregava os sistemas de se-gurança encomendados. Aí o Metrô contra-tou a Unicamp e a USP para conferir tudo que os americanos faziam. Os americanos tinham que fazer os projetos, preparar os desenhos. Tudo era checado. A título de curiosidade:

como subproduto desse processo, a USP aca-bou criando uma fundação, a Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Enge-nharia [FDTE]. A fundação foi instituída em 1972 por um grupo de professores da Escola Politécnica. Concebida e estruturada como uma interface entre o ambiente acadêmico e o setor produtivo, a FDTE estabeleceu, como seu objetivo básico, contornar as diferenças naturais entre esses dois ambientes, possibi-litando uma parceria eficiente e eficaz para o desenvolvimento tecnológico do Brasil. Além disso, contratamos outro laboratório – inde-pendente – que fazia testes nos Estados Uni-dos. De modo que tudo foi conferido. Tudo foi analisado pelos brasileiros, para que o fornecedor não cometesse erros. Até porque errar é humano. Interessante que hoje a Linha 4-Amarela do Metrô funciona sem operador. Mas há 40 anos o operador do trem só fica-va lá na cabine – e continuou ficando ano após ano – porque ninguém tinha coragem de dizer que o trem podia funcionar sozinho. Havia o medo de que as pessoas apelidassem os trens do Metrô de ‘trem fantasma’. Mas não quero, de forma alguma, tirar o valor do operador. Ele faz algumas coisas. Fala com o CCO e outros detalhes. Mas o fato é que hoje a Linha 4-Amarela está sem operador e fun-ciona normalmente.”

— Quais as dificuldades iniciais para perfurar túneis e lidar com os diferentes ti-pos de solo da cidade de São Paulo? — per-guntamos a seguir.

“As operações envolvendo o subsolo fo-ram outra aventura. Na região da Avenida Paulista é um tipo de solo, no Anhangabaú é outro solo. Então – muitos perguntavam – como é que o equipamento shield [Earth Pressure Balanced (EPB)], o popular tatu-zão, vai passar por baixo de regiões tão di-ferentes umas das outras, do ponto de vista geológico? Passando, ué! Na Rua Boa Vista, no centro bancário da cidade, não havia só o problema dos prédios aparentes, mas tam-

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bém as construções subterrâneas escondidas que existiam e não estavam no mapeamento. O tatuzão ia evoluindo pela Boa Vista e de repente trombava com verdadeiras caixas--fortes no subterrâneo dos prédios, sem co-nhecimento de ninguém.”

Segundo técnicos atualmente em ativi-dade no Metrô-SP, quando o primeiro shield furou túneis na primeira linha, a então Jaba-quara-Santana, os operários trabalhavam na frente do equipamento escavando manual-mente e sob pressão. Era um sacrifício muito grande. A pessoa entrava num compartimento que ficava dentro do túnel e que chamávamos ‘eclusa’. Na verdade, era uma câmara hiperbá-rica, um local em que a pressão de oxigênio pode ser elevada acima da pressão atmosfé-rica normal. O operário permanecia sentado durante três horas, submetendo-se à pressão que havia dentro da câmara, com temperatura muito alta e ambiente muito úmido. Quando ele estivesse pronto, isto é, ficasse com a mes-ma pressão existente na frente do equipamen-to shield, ele saía do compartimento e ia tra-balhar dentro do túnel. Ou seja, abria-se uma portinha e o operário trabalhava escavando por cerca de três horas. Eram vários operários, mas não muitos. Quando terminava aquele turno de três horas mais ou menos, eles vol-tavam para a eclusa e ficavam lá para mudar a pressão. Eram aproximadamente mais três horas na câmara hiperbárica reduzindo aos poucos a pressão para que esta se igualasse à pressão atmosférica e o trabalhador pudesse sair para o mundo exterior.

Hoje, conversando com técnicos do Metrô de São Paulo, apura-se que as pessoas que tra-balhavam nisso, sofriam bastante naquela época. As velhas shields que fi-zeram a Norte-Sul (hoje Linha 1-Azul), foram utilizadas também no trecho entre a Praça da Sé e o Largo do Arouche da Linha 3-Vermelha (Leste Oeste, na épo-ca). Depois elas viraram sucata. Não tinham mais utilidade. Segundo os especialistas, a shield tem uma vida útil bem determinada, passando daquilo não adianta insistir, por-que não dá para aproveitar.

— E o capítulo das implosões de gran-des edifícios, como foi? — pedimos que As-smann recordasse.

“A implosão do Edifício Mendes Caldei-ra, que deu lugar à Estação Sé do Metrô, vai completar 36 anos em 16 de novembro. Bom, pelo projeto, o Metrô tinha que de-

molir o prédio. E todo dia tinha gente que estava passando em baixo e levava tijolada na cabeça. Porque, apesar do tapume e de-mais cuidados, o trabalhador está lá em cima com a marreta... Broom! Pá! Pum! E atingia a pessoa. Não dava para continuar assim. Para demolir o Mendes Caldeira na base da marre-ta e picareta seria preciso isolar toda a Praça da Sé... Como seria possível? Um absurdo! Aí decidimos que iríamos fazer implosão. Mas antes teríamos que aprender a fazer implo-são. O problema era que só existia uma firma americana que fazia isso. Ela teria que se as-sociar a uma firma brasileira, para transferir conhecimento. Antes de o americano fazer a coisa, tinha que explicar tudo para a gente. Tínhamos que contratar um escritório de en-genharia para saber o que o americano estava fazendo. Era americano falando, brasileiro junto, japonês junto, IPT [Instituto de Pes-quisas Tecnológicas] junto... E uma compa-nhia de engenharia brasileira acompanhando tudo. E assim o Mendes Caldeira acabou vin-do abaixo. A implosão do prédio comercial de 30 andares com 364 escritórios durou apenas 8 segundos, num domingo, e reuniu centenas de espectadores que queriam ver de perto o espetáculo. A técnica ainda era novidade no Brasil. Nunca um prédio tão alto havia sido demolido desta forma. O edifício virou 20 to-neladas de entulho com o novo método que pela primeira vez no país substituiu a demo-lição por picaretas. Durante semanas, 360

quilos do explosivo tri-tonita foram colocados em 972 furos, nos pilares do prédio de 30 andares. O Metrô convidou 1 000 pessoas e credenciou 300 jornalistas para o espetáculo que mudou a paisagem do centro, unindo as praças Clóvis Beviláqua e a Sé.”

— Mas a ideia origi-nal não era fazer a im-plosão sem avisar nin-guém, num sigilo total

até a hora da detonação? — solicitamos que esclarecesse.

“De fato, tinha esse problema: a gente achava que não podia contar para ninguém. Não podia fazer chegar ao conhecimento dos jornalistas, não podia anunciar. Porque se anunciasse o povo vinha em massa e nin-guém segurava. Então chegou o sábado an-terior ao domingo da implosão, todo mundo teve que deixar os escritórios em volta, a praça foi fechada. Acontece que um jornalis-ta do extinto ‘Diário Popular’ [atual ‘Diário de S. Paulo’] anunciou que no dia seguinte,

domingo, haveria a implosão, porque o pa-dre da Catedral da Sé comunicou aos fiéis que ‘no domingo não vai ter missa, porque o Metrô vai fazer a implosão do Mendes Cal-deira’. Aí lotou. Afinal, quem tinha falado era padre. Não dava mais tempo de voltar atrás. Credenciou-se a imprensa e fizemos a implosão. De aprendizado em aprendizado, fomos seguindo. O Metrô estava aberto para a mídia, fez curso de metrô para jornalistas. Os jornalistas não sabiam o que era aquilo, nem sabiam fazer as perguntas. Então tem por aí jornalista que hoje é famoso e que fez o curso de metrô. E todo engenheiro ou técnico do Metrô podia falar com jornalista. Não tinha problema, podia falar à vontade. E os técnicos e engenheiros muitas vezes fala-vam besteira. Aí o jornalista vinha conferir comigo. E eu dizia se estava errado ou não.”

— O senhor diria que o Metrô repre-sentou um ponto de inflexão na cobertura jornalística da editoria de Cidades? — pe-dimos que opinasse.

“Eu diria que sim. Porque, com o adven-to das obras do Metrô, os jornais começaram a perceber que havia mais assunto para as editorias de Cidade que não apenas crimes e outros casos policiais. Porque, antes, as páginas de Cidade eram somente crime e afins. Os jornais perceberam que havia algu-ma coisa positiva acontecendo na cidade. Aí começaram a surgir os cadernos de Cidade com jornalistas de melhor qualidade. E, des-sa forma, o Metrô estava todo dia no jornal.

Na época, a censura à imprensa era bra-ba e tinha receita de bolo nas páginas do ‘Jornal da Tarde’ e versos de Camões nas do ‘Estadão’. As receitas e versos entravam nos vazios deixados pelas matérias censu-radas. Até que um dia aconteceu um fato muito interessante: o ‘Estadão’ publicou na primeira página uma fotografia do tapume do Metrô com aquela caveira sobre duas tí-bias cruzadas, que é a sinalização universal de perigo por alta tensão elétrica. Embaixo da fotografia estava escrito: ‘Liberdade in-terditada’. O Metrô interditou a Avenida da Liberdade etc., dizia o texto. Aí eu percebi que o censor estava de nosso lado, do lado do Metrô. Esse foi o recado que o censor deu para todo mundo: certas coisas não vão mais ser censuradas. Pode censurar o que for, mas não o Metrô. Quer dizer, o Metrô vinha agindo de forma correta, não escondia nada e merecia confiança. Inclusive o Me-trô ajudou a própria imprensa. E a imprensa ajudou o Metrô porque o editor só mandava para cá bons jornalistas. Aí, lembro-me que começou pelos jornais a polêmica do trem. Uns achavam o trem bonito, outros achavam feio. A companhia chegou a decidir colocar

uma máscara de plástico na frente do trem, para agradar quem achava que era feio. Só que, de repente, percebemos que o maior sucesso, o ‘galã’ do Metrô não era o trem, era a escada rolante. O povão adorou, não conhecia escada rolante. Porque não tinha. Só tinha na Galeria Prestes Maia, subindo do Anhangabaú para a Praça do Patriarca. O Metrô comprou 130 escadas rolantes, rápi-das e largas. Foi a sensação.”

— Qual o papel reservado para a enge-nharia brasileira no trabalho de ajudar o Brasil a superar suas insuficiências na área de infraestrutura? — perguntamos.

“Você aí toca no ponto nevrálgico. En-tão vou dizer o seguinte: a coisa que mais faz falta no Brasil de hoje – mas que o Brasil tinha 30 anos atrás – é um projeto de na-ção. O planejamento brasileiro hoje é reflexo do que o mercado mundial pede e quer. O mercado quer mina de ferro? O Brasil é um grande produtor mundial de minério de fer-ro. O mercado mundial quer soja. Então o Brasil atende. Mas, décadas atrás, o Brasil fazia coisas como, por exemplo, a maior hi-drelétrica do mundo: Itaipu. Recentemente Itaipu perdeu essa posição porque os chine-ses construíram a usina hidrelétrica de Três Gargantas, que a superou. Mas tudo bem. E veja que Itaipu foi feita pelos engenheiros brasileiros. O pessoal da área de engenha-ria começou a aprender a fazer hidrelétrica no Rio Tietê, no Rio Pardo, no Rio Grande, no Rio Paraná. Foi crescendo, crescendo... e chegou a Itaipu. No peito e na raça. Não fazemos mais hidrelétrica assim. Apesar de tudo o que se fala de Belo Monte, no Esta-do do Pará – uma hidrelétrica de tamanho inferior do que seria desejável para um rio monumental como o Xingu –, ela deveria ser projetada para produzir muito mais energia do que o volume que vem sendo anunciado. Admito que temos agora a questão do meio ambiente. Tá certo. Só que o meio ambiente virou maior que o próprio Brasil. O pano de fundo, no entanto, é que não temos projeto de nação. Porque o problema é o seguinte: as insatisfações dos mais diversos setores aparecem, mas como o Brasil não tem rumo, as insatisfações predominam. Então, minha resposta sintética a sua pergunta é essa: fal-ta de projeto de nação.”

— Qual a repercussão disso sobre a engenharia brasileira? — pedimos que considerasse.

“Ah! A engenharia nacional não morre-rá. O Brasil tem boas escolas de engenharia. Algumas são ótimas. A escola de engenharia ensina o aluno a estudar. Engenharia não é para vagabundo. Vagabundo não gosta de engenharia. Então a escola de engenharia en-

sina a estudar e o estudante sai de lá com capacidade para trabalhar e produzir. Como é uma pessoa culta, ele logo vira um líder. Ele vai liderar gente, chefiar equipes de operá-rios, vai ter que produzir para o Brasil. Então a engenharia brasileira não morrerá nunca. Mesmo porque nós ainda temos muito para construir neste país. A infraestrutura não cai do céu. Outras coisas caem do céu: produção agrícola, por exemplo – e outras coisas mais –, de-pendem do céu. Mas in-fraestrutura tem que ser feita por completo pela mão do homem, do co-meço ao fim. Nós obser-vamos uma falha enorme na área de infraestrutura. Para os mais jovens, que não se recordam, na dé-cada de 1970 veio o pri-meiro grande choque do petróleo. Justo quando nós estávamos para dar um grande salto para frente. Veio o choque... e o Brasil não produzia petróleo. Naquela época foi uma cacetada e tanto que o Brasil levou. A infraestrutura dos Estados Unidos foi feita com petróleo a 2 dólares por barril. E no primeiro choque do petróleo, o petróleo foi a 20 dólares o barril. Portanto, tivemos problema sério. Hoje nós temos petróleo. Hoje somos o país mais rico do mundo em recur-sos naturais. E temos tudo por fazer. E quem vai fazer isso? A engenharia. A engenharia é a profissão mais humana que existe. O en-genheiro é mais humano que os profissionais de ciências humanas. Por quê? Porque o en-genheiro faz a aplicação das leis da natureza em benefício do homem. Então o engenheiro aprende a domar um rio. Do conhecimento dele nascem estruturas, resistências de ma-teriais. O engenheiro é um indivíduo que trabalha junto com os liderados dele. O en-genheiro é assim: formou, foi procurar um emprego, é mandado a trabalhar em algum lugar – às vezes distante de onde foi criado –, e ele tem que virar líder. E os engenheiros brasileiros desempenharam bem as suas ta-refas até agora. Eu diria que estamos numa fase – eu espero – de fim de um período de transição. O processo de recessão durou uma geração. Acho que hoje toda a instituição brasileira está estruturada para não fazer as coisas. A legislação brasileira atual desesti-mula a realização de empreendimentos. A Lei das Licitações 8.666, os tribunais de contas brecando obras – dizendo que é em nome da honestidade, mas não é. No Brasil, toda essa legislação teria que ser refeita, se quisermos progredir. Então essa questão do projeto de

nação diz respeito diretamente à engenharia.”— No Brasil só existe projeto de poder?

— indagamos. “O tio Nicolau Maquiavel já falava, há

mais de cinco séculos, que poder é algo que precisa existir e ser dominado. E não se pode escapar disso. Não é disso que estou falan-do em relação ao Brasil. O problema aqui é a falta de uma diretriz geral. De lideranças

que entendam o Bra-sil. Os líderes brasileiros normalmente entendem de uma parte, mas não entendem a propositura geral do Brasil. Mas du-rante 50 anos, de 1930 até 1980, nós tivemos uma liderança no Brasil. O Brasil, no fim da dé-cada de 1970 tornou-se a oitava economia do mundo. Então o Brasil, sempre teve projeto na-cional. A partir da reces-

são dos anos 1980, perdeu o rumo. Ainda não encontramos o caminho novamente, eu acho.”

— O PAC, por exemplo, o que o senhor acha dele? — perguntamos.

“É uma lista de obras. Não é um proje-to, é uma lista. Mas, tudo bem, pelo menos existe isso. É melhor que nada. Mas não é um II PND – Plano Nacional de Desenvolvimen-to – dos tempos dos ministros Simonsen e Reis Velloso [Durante a gestão de Mario Hen-rique Simonsen, como ministro da Fazenda, e João Paulo dos Reis Velloso, como ministro do Planejamento, foi implementado o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que visava dar seguimento ao processo de industrialização brasileiro no período mundial conturbado dos anos 1970, por meio de uma política de entra-da de capitais com o fim de promover o desen-volvimento da indústria de base e possibilitar uma economia mais ampla e diversificada, es-truturada para a dimensão do país]. O II PND era uma visão integrada do Brasil. O PAC é só um conjunto de obras.”

— Como o senhor vê o futuro das par-cerias público-privadas [PPPs] no país? — pedimos que analisasse.

“Eu diria o seguinte: nós temos três mode-los de contratação de obras públicas: as obras públicas regidas pela Lei 8.666 [de licitações]; nós temos a PPP e nós temos as concessões. Eu acho que esse modelo institucional que nós temos aí não é normal. A 8.666 não é um ins-trumento normal para contratação de obras públicas. A PPP é um pouco melhor, mas ela tem um viés parecido. E as concessões seguem a mesma linha. Então nós estamos dentro de uma instituição de direito que não facilita as

Com o advento das obras do Metrô-SP, os jornais começaram a perceber que havia mais assunto para as editorias de Cidade que não apenas crimes e outros casos policiais

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Criou-se uma associação, com o objetivo de ajudar a difundir para as outras cidades brasileiras as inovações trazidas pelo Metrô-SP: a Associação Nacional de Transportes Públicos

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contratações públicas. Claro que o pessoal es-pecializado entende muito bem da matéria, e contorna todas as proibições com instrumen-tos que nem sempre são muito recomendáveis. Quer dizer, esse processo de legislação que nós temos, não valoriza a engenharia. Ao contrário, pune a engenharia. Pela 8.666, o contratante, que é o governo, é obrigado a fazer uma li-citação de projeto – que a esmagadora maio-ria das vezes é feita pelo menor preço. E a coisa melhor para que se tenha uma boa obra, é que seja feito um bom projeto. Esse problema todo que a mídia bateu forte, com a queda do ministro dos Transportes, do pesso-al do DNIT, e assim por diante, tem um pano de fundo comum: a falta de projeto. A razão de tudo isso, com toda a corrup-ção envolvida, é não ter havido projeto nas obras. No Brasil, logo após a Segunda Guerra Mundial, tempos de Jusce-lino Kubitschek, foi construída uma das maio-res redes rodoviárias do mundo: em todos os casos, o DNER fazia a obra com projeto. Sem projeto, a obra não saía. As obras que são ta-xadas hoje como promotoras de corrupção, são obras feitas sem projeto. E o novo ministro dos Transportes simplesmente afirma em público que o projeto da obra da BR-116 em Pernam-buco, passava no meio de um lago. Quer dizer, o projeto simplesmente não foi feito. Por quê? Porque é licitação pelo menor preço. E nin-guém deveria economizar no projeto. Porque com um bom projeto o custo da obra cai pela metade. Hoje o Brasil não dispõe de consultoria independente. Infelizmente.”

— Como se explica essa falta de con-sultoria independente no mercado? — pe-dimos que abordasse.

“Veja bem: a consultoria independente é uma engenharia que emite uma opinião que nem sempre é a opinião do governo. Afinal, é independente. Nos Estados Unidos é obri-gatório – por lei do Congresso Nacional deles – que qualquer proposta de obra pública seja acompanhada de parecer de uma consultoria independente. Este poderia ser um caminho para o Brasil, mas aqui não é feito assim. Nos-so modelo é o seguinte: o político brasileiro, o que ele quer é iniciar coisas novas – e depois seu sucessor que termine a obra. E essas coisas novas são verdadeiras aventuras, porque não são estudadas a fundo. Mas o administrador público quer realizá-las de qualquer maneira, compreende? Isto é muito importante falar. Ou seja, nós destruímos nossa engenharia com

esses modelos da lei de licitação 8.666 & cia. ltda. Voltando à pergunta anterior: sem uma boa engenharia, a PPP não tem salvação e a concessão também não tem salvação. Então, a sua pergunta sobre a PPP – que eu acho muito boa – só tem uma resposta: é preciso haver bom projeto, é preciso que se tenha uma boa engenharia. Porque, com projeto ruim, tudo redunda numa solução ruim, numa demora

da execução do empre-endimento, e assim por diante. Então nada se faz – seja em concessão, seja em PPP, seja em lei 8.666 – sem um bom projeto. O setor privado brasileiro é ‘vivo’ o suficiente para se adaptar às circunstân-cias, mas os empresários reconhecem que se o se-tor pudesse contar com bons projetos ele pode-ria produzir obras muito melhores do que as que

está produzindo. Eles sabem disso.”— Pode falar um pouco de sua pessoa e

carreira? — solicitamos.“Eu sou um dócil indócil (rindo). O pri-

meiro aspecto que vou ressaltar – o mais im-portante – tem a ver com a minha geração. Eu me formei na Escola Politécnica da USP na especialidade de engenharia mais abrangente de toda a engenharia. Eu me formei enge-nheiro mecânico eletricista. Digo isso porque a engenharia mais popular é a civil. Mas ela não é a mais abrangente das engenharias. Pelo menos até recentemente. O desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil já aponta para que a engenharia mais popular não seja mais a civil. A engenharia de maior populari-dade hoje é a engenharia mecânica. Bem, é uma questão marcadamente mercadológica. À época em que eu me formei, a atividade tec-nológica brasileira era muito mais uma com-petência construtiva do que uma competência propriamente tecnológica. Da mesma forma, no futuro é possível até que as engenharias mais procuradas sejam as engenharias da tec-nologia da informação.

Então eu tive o privilégio de me formar numa modalidade de engenharia que cobria todas as modalidades de engenharias. Dessa maneira, eu aprendi bem as engenharias fun-damentais. Que são baseadas nas leis naturais. Eu me formei em 1956. Os professores da Poli/USP, na época, tinham salários corresponden-tes a desembargador. Infelizmente não é mais assim. A Politécnica não era no campus da universidade como é hoje. A escola funciona-va no Bom Retiro, na Praça Coronel Fernando Prestes, onde atualmente está a Faculdade

de Tecnologia, a Fatec-SP. Além da qualidade extrema do professorado, os estudantes eram jovens ciosos em ajudar no desenvolvimento brasileiro, de participar ativamente da vida da nação. Ou seja, participar da política brasilei-ra. Era realmente uma oportunidade raríssima, um caldeirão de ideias e de informações que se desenvolvia no âmbito daquele grupo de estudantes. Na época, comigo se formaram outros 230 engenheiros. Minha turma. Então eu, como muitos outros, participei da mili-tância da política estudantil. Ativamente. Eu participei da campanha do ‘Petróleo é Nosso’, que produziu mais tarde a Petrobras. E parti-cipei de um movimento político nacional da época, que se chamava Movimento Naciona-lista. E representei o Grêmio Politécnico, que era o Centro Acadêmico da Poli – e é até hoje, há mais de 100 anos. Representei o Grêmio nos congressos da UNE [União Nacional dos Estudantes].”

— Que figuras se destacavam? Quais os expoentes do Movimento Nacionalista, na época? — pedimos que enumerasse.

“Um era o Gabriel Passos, deputado fe-deral da UDN [União Democrática Nacional] por Minas Gerais e agora nome de refina-ria de petróleo da Petrobras. Ele foi o autor do primeiro projeto do petróleo na Câmara Federal, espaço que eu frequentei muito lá no Rio de Janeiro, que era a capital fede-ral. Quem assumiu o projeto finalmente foi o Getúlio Vargas, que era presidente da Re-pública. Mas a iniciativa foi da UDN. Esse era um movimento onde as várias faculdades da USP tinham a sua opinião política. A Poli tinha essa. Nacionalista. Havia as faculdades que tinham opiniões mais conservadoras. Ah! lembrei- me agora do nome de Dagober-to Salles, deputado federal paulista do PSD [Partido Social Democrático] que integrou com outros, como Darcy Passos, também paulista, a Frente Nacionalista que lutou pela preservação das riquezas nacionais. O ‘nacionalismo’ de então nada teve com o nacionalismo europeu que deu origem às duas grandes guerras mundiais. Dagober-to Salles foi o autor do projeto que criou o CNEN, Conselho Nacional de Energia Nucle-ar. Na época lutava-se pela preservação do minério de tório, mineral atômico das cha-madas areias monazíticas levadas à sorrata por submarinos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Bom, eu acabei dirigindo o Departamento de Cultura do Grêmio Po-litécnico, que se encarregava de trazer esses líderes nacionais para fazerem palestras para alunos e professores. Trouxe na época um intelectual brasileiro, Josué de Castro, au-tor de alguns livros importantes. Josué de Castro é uma destas figuras marcantes de

cientista que teve uma profunda influência na vida nacional e grande projeção interna-cional nos anos que decorreram entre 1930 e 1973. Ele dedicou o melhor de seu tempo e de seu talento para chamar a atenção para o problema da fome e da miséria que asso-lavam e que, infelizmente, ainda assolam o mundo. Ao escrever, em 1946, o festeja-do livro Geografia da Fome afirmava que a fome não era um problema natural, isto é, não dependia nem era resultado dos fatos da natureza: ao contrário, era fruto de ações dos homens, de suas opções, da condução econômica que davam a seus países. Nós trazíamos para o Grêmio Politécnico pesso-as de todos os matizes políticos. Trouxemos até Carlos Lacerda. Enfim, havia em torno da Poli um movimento em prol do conhe-cimento dos problemas brasileiros. A ideia central nascida na escola era a de que nós tínhamos que ajudar a industrialização do Brasil. E fizemos isso. Daí a vocação de mui-tos alunos da Poli que acabaram envolvidos na construção da indústria em São Paulo. Eu mesmo fui ser engenheiro da CSN em Volta Redonda. E, na época, a CSN era a maior e mais moderna empresa do Brasil. Petrobras ainda não existia. Nessa ocasião eu me casei com uma paulista e começamos nossa vida lá em Volta Redonda.”

— A CSN foi o seu primeiro emprego? — indagamos.

“Sim. E lá eu e outros de minha turma tivemos uma oportunidade raríssima: co-nhecer uma grande e moderna empresa na-cional, construída com assessoria americana – uma contrapartida do interesse brasileiro e americano na Segunda Guerra Mundial. E realmente tive a oportunidade de conhecer a mãe de todas as indústrias. Porque a indús-tria siderúrgica tem todas as indústrias den-tro dela. Ela tem uma indústria metalúrgica dentro dela, uma indústria química dentro dela, uma indústria mecânica dentro dela, e uma indústria eletroeletrônica dentro dela. E isso me deu uma visão de Brasil grande. Coi-sa que nunca mais perdi, nem consigo per-der. Aprendemos a fazer as coisas que nunca tínhamos visto antes, a não ser nas teorias dos professores da escola. E isso me deu uma confiança, não só a mim, mas a toda uma geração, de que nós éramos capazes de construir um país melhor e maior. Éramos capazes de fazer as coisas bem feitas. Aliás, o Metrô de São Paulo também foi constru-ído por uma geração de jovens engenheiros formados nas nossas escolas de engenharia. Mas não só engenheiros – também técnicos, economistas, administradores e advogados construíram o Metrô de São Paulo. O Me-trô não é obra de um homem só, e sim de

uma grande equipe: uma equipe que dialo-gava com a cidade. Então a cidade de São Paulo era fruto de um diálogo permanente. Tanto a Companhia do Metrô era capaz de ter sensibilidade suficiente para entender os anseios da cidade, como a cidade entendia o que estava sendo feito pela companhia. E a cidade participava, torcia para que tudo desse certo. E deu. Bem, digo isso tudo para mostrar que esse espírito coletivo presidiu o Brasil da época. E foi esse pensamento que construiu o Brasil até o outro dia mesmo.”

— O senhor é paulistano? — pedimos.“Não. Eu nasci em Santa Catarina. Eu

vim para São Paulo com sete anos de idade com meus pais e irmãos. Sou um produto de São Paulo. A minha família veio do interior catarinense, da cidade de Piratuba, no oeste do estado. Uma cidade mínima. Meus pais vieram para São Paulo para poder educar os filhos. Aliás, meus pais não vieram da Euro-pa. Foi meu trisavô que veio da Alemanha. Ele chegou com a mulher e seus 11 filhos em 1857. Junto com outros companheiros, meu trisavô acabou fundando uma cidade no Rio Grande do Sul, chamada Santa Cruz. Na época, ele viajou de caravela. Pegaram uma tempestade no caminho e a caravela pratica-mente voltou para as proximidades do litoral da Inglaterra. A viagem prosseguiu e meu trisavô fez uma promessa: se conseguisse chegar ao Brasil com a família, todos vi-vos, ele fundaria uma cidade chamada San-ta Cruz. Então meus ascendentes são dessa cidade gaúcha. E, como costuma acontecer com os gaúchos, aconteceu a diáspora. Mas os meus pais, não foram longe, entraram beirando Santa Catarina, numa cidadezinha que fica a 30 quilômetros da fronteira do Rio Grande do Sul: Piratuba.”

— Como foi sua chegada a São Paulo, com sete anos de idade? — solicitamos a seguir.

“Meus pais vieram porque estavam pre-ocupados com a educação dos três filhos.

A família chegou numa época em que as matrículas das escolas primárias tinham sido encerradas. A escola em que eu iria estudar chamava-se Escola Primária Manoel da Nóbre-ga, gerida pela Associação Paulista de Profes-sores. E eu não me conformava em perder o primeiro ano. Meus pais tentaram de tudo para que eu me matriculasse, mesmo tardiamente. Eles não conseguiram. Aí eu, com sete anos, resolvi ir sozinho até a escola, numa cidade que eu não conhecia e era grande demais para meus olhos. Aí falei com a diretora. E consegui o que eu queria: a diretora concordou que eu podia cursar o primeiro ano primário. Eu passei para o segundo ano primário com nota 50, que era a mínima. Mas quem me ‘desasnou’ (risos) foi uma professora, dona Rita da Silva Fleury de Freitas. Trinta anos depois eu vim a ser colega do filho dela. Enquanto eu presidia o Metrô, o filho dela foi secretário dos Transportes da pre-feitura paulistana, mandato do prefeito Figuei-redo Ferraz: Íon de Freitas. E assim conheci Íon, filho de dona Rita. Foi uma surpresa. Bem, daí eu fui fazer o secundário. Meu pai achava que o ginásio era fraco. Era Escola Primária Manoel da Nóbrega e Ginásio José de Anchieta, acopla-dos, no mesmo local. Foi então que ingressei no Instituto Mackenzie. Fiz o ginásio e o co-légio na escola presbiteriana. Uma recordação agradabilíssima. Lá aprendi português. Ou seja, aprendi a escrever e aprendi verdadeiramente a língua portuguesa. Fundamental. Até hoje eu me lembro do hino do Mackenzie. E aí chegou a época de escolher o curso de engenharia. Re-solvi tentar na Escola Politécnica, cujo vestibu-lar era mais difícil do que o do Mackenzie. Eu tive que fazer cursinho. Entrei na Poli e lá fui escolher a modalidade de engenharia mais difí-cil: engenheiro mecânico eletricista. E até hoje eu frequento a escola, por meio da associação dos ex-alunos.”

— Da CSN o senhor passou logo para a Cosipa? — pedimos que contasse.

“Na CSN fiquei três anos. Fui engenheiro lá quando a Companhia Siderúrgica Paulista

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estava iniciando a sua implantação. Eu parti-cipei da fundação, mas muito modestamen-te. Lá o crédito vai para o grande engenheiro Plínio de Queiroz. Ele e sua gente é que fun-daram a Cosipa. Bom, então eu voltei para São Paulo. Também porque minha mulher era de São Paulo. Tive três filhos com ela, dois homens e uma mulher. É muito melhor ter filha (rindo). Fui ser engenheiro da Cosi-pa. Na Cosipa éramos pouquíssimos entendi-dos do assunto. Não havia meia dúzia de en-genheiros que tivessem vivido e conhecido uma siderúrgica. E Plínio de Queiroz e seus companheiros – inclusive do Instituto de Engenharia, presidido por Plínio – estavam tentando construir uma grande siderúrgica. Quando eu cheguei aqui eu comecei a per-ceber, no entanto, que não havia o dinhei-ro necessário para construir a siderúrgica. Percebi que o pessoal não sabia o tamanho desse negócio. Os empresários paulistas que estavam no comando da Cosipa não tinham essa noção. Eu conhecia forno, aciaria, eu tinha ideia dos números, do custo. Eu dis-se: ‘Não dá, gente!’... Aí fui bater no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o BNDE – naquele tempo não tinha o ‘S’ de BNDES. O economista Roberto Campos era o superintendente. O presidente era o en-genheiro Lucas Lopes. Gente patriota, gente de um valor extraordinário. O BNDE era no Rio de Janeiro, na Rua 7 de setembro. Fui lá. Eu e diretores da Cosipa, naturalmente, pois eu era apenas um engenheiro. O que existia então naquele bairro de Piaçaguera, um distrito de Cubatão, era um bananal. Não ti-nha sido lançada nem a primeira estaca. E logo houve uma campanha política contra a Cosipa, aqui em São Paulo mes-mo. Os que protestavam diziam que a Cosipa ia afundar no pântano do mangue. Com aqueles equipamentos pesados, afundaria tudo. Conco-mitantemente, o pessoal de Minas Gerais, mais vivo que nós paulistas, já tinham conseguido passar a Usiminas para o BNDE. E aí começou o governo JK, que era de Minas Gerais. Os mineiros já tinham se acomodado com o BNDE e nós estávamos aqui com os empresários paulistas. Mas, de qualquer forma, o BNDE achou que tinha que nos ajudar. Só que o dinheiro não saía. Eu me lembro bem da época porque fazia minhas viagens ao Rio a bordo dos bimotores DC-3 da Cruzeiro do Sul, principalmente, e também da Vasp. A Panair era de um nível

melhor e a Varig estava apenas começando. E eu pegava toda hora o avião. Aí aconteceu que o Jânio Quadros foi eleito presidente. Já estamos em 1961. E nós batalhando pela Co-sipa. Bom, aí acontece o seguinte: Carvalho Pinto foi nomeado ministro da Fazenda pelo Jânio. E ele era paulista! Ah, agora vai... E batemos lá, na porta do ministério. Porque eu conhecia todo mundo do Plano de Ação do Carvalho Pinto aqui em São Paulo. E o Carvalho Pinto tinha um assessor, do grupo de planejamento, que era um craque: Jorge Hori. Até que saiu um cheque de 8 milhões de cruzeiros do BNDE para a Cosipa. Fui eu que trouxe o cheque, no avião. Porque era preciso ir buscar o cheque lá no Rio. Não ti-nha transferência, internet, nada disso. Eles deram o dinheiro e disseram: ‘Não enche mais!’. Tudo bem, pode deixar (risos). E aí começou a Cosipa.”

— A coisa deslanchou mesmo? Lembra de muitos fatos marcantes da época — pe-dimos que relatasse.

“Bom, o fato de ser mangue não era um problema maior, a engenharia resolve tudo. Lá na Inglaterra eles fizeram uma usina des-se tipo na charneca, no pântano! E nós tí-nhamos consultores, professores da Politéc-nica, o grande engenheiro Milton Vargas e tudo mais. Eles diziam: não tem problemas, podem estaquear e vamos em frente. Bom, aconteceram algumas coisas interessantís-simas na época. Por exemplo: o presidente francês Charles de Gaulle veio visitar a Cosi-pa. Tinham tido início as inaugurações dos

setores da usina siderúr-gica. Principiou em de-zembro de 1963, com a entrega da Laminação a Quente pelo então presi-dente da República, João Goulart, e completou-se com a Laminação a Frio, em outubro de 1964, por ocasião da visita de Charles de Gaulle. O pre-sidente francês veio com aquele encouraçado dele – ele não se hospedou

em hotel do Rio de Janeiro, ele ficou no encouraçado. Ele dizia que o Brasil não era um país sério, aquelas coisas. Acredito até que ele não tenha usado essa frase, mas en-fim... Eu me lembro que ele resolveu visitar a Cosipa e o pessoal da embaixada francesa começou a enumerar problemas. O De Gaulle era muito alto e foi preciso arrumar um jipe especial para que as pernas dele coubessem no veículo. Bom, havia problemas mais ‘sal-gados’: o movimento sindical naquele tempo era fortíssimo. De tempos em tempos a tur-

ma lá fazia greve porque não havia dinheiro em caixa para pagar o salário. Aí aparecia um cheque, e eram assim que a coisa andava.”

— O senhor ficou quanto tempo na Co-sipa? — perguntamos.

“Eu fiquei sete anos na Cosipa. Só para situar, saí um pouco depois da morte do presidente americano John Kennedy, que aconteceu em novembro de 1963. A Cosi-pa estava produzindo bem. Fazia muito aço e vendia muito. Antes disso, eu acabei vi-rando um engenheiro da área financeira da Cosipa. Eu era então um homem que lidava com dinheiro, tinha que ir ao BNDE. E nós ficávamos de olho também no dinheiro do mundo. Nessa ocasião os Estados Unidos criaram a USAID [United States Agency for International Development]. E nós fomos atrás do dinheiro da USAID. Porque o BNDE não dava mais. Minha área era muito próxi-ma da área de planejamento da Cosipa. E o diretor de planejamento da Cosipa era o meu professor: José Carlos de Figueiredo Ferraz. Então essa vida que estou contando para você, o Figueiredo Ferraz viveu na Cosipa. Um belo dia, o professor Figueiredo Ferraz virou prefeito. E me chamou lá, convidan-do para presidir o Metrô. Eu não entendia nada de Metrô. Eu disse: não. Ele disse: vai. Eu: não vou. Saí da sala dele e meus amigos todos: ‘Você aceitou?’. Eu: ‘Não’. Eles: ‘Mas você é um idiota mesmo, tinha que aceitar – volta lá para dentro’. Bom, com pressão de tudo quanto é lado, eu cedi. Ok, vamos fazer esse negócio juntos. E 15 dias depois fui chamado para a Câmara dos Vereadores para ‘vender’ o metrô, que eu não sabia o que era. E fui. Mas não é muito difícil, os vereadores também não entendiam nada (ri-sos). Era moleza. Bom, aí o negócio era o seguinte: todo sábado vamos visitar as obras do metrô. E vamos percorrer tudo a pé, para conhecer todos os problemas bem de perto.”

— Já tinha passado aquela fase do Grupo Executivo do Metropolitano de São Paulo, o GEM? — pedimos que historiasse.

“Ah, sim, tinha passado. O GEM acon-teceu no tempo do prefeito Faria Lima. O Figueiredo Ferraz fez parte do GEM, o Del-fim Neto também, o geógrafo Aziz Ab’Saber também. Então a Companhia do Metrô já es-tava constituída. Aí veio o Paulo Maluf pre-feito e parou tudo. E o Figueiredo Ferraz foi o sucessor do Maluf.

Então todo sábado a gente ia na obra. No percurso da obra se resolvia tudo quanto era problema com os empreiteiros. Porque o prefeito ia, a diretoria do Metrô ia, e a dire-toria dos empreiteiros ia também. E aí e que se resolviam as pendências. Não tinha esse negócio de ficar mandando recado. A coisa

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toda acontecia no sábado. E aí que começou a deslanchar o Metrô de São Paulo.”

— O senhor presidiu o Metrô por sete anos. E depois disso? — indagamos.

“Um belo dia, estou em Montreal, no Ca-nadá, participando de uma reunião interna-cional de metrôs. E recebo um telefonema do ministro Ângelo Calmon de Sá, da Indústria e Comércio do governo Ernesto Geisel. Eu nun-ca tinha visto antes o ministro. Eu estava no quarto do hotel, eu e minha mulher, e o minis-tro Calmon diz: ‘Nós aqui decidimos convocá--lo para que o senhor presida a Cosipa, que o senhor conhece muito bem’. Eu fiquei na dú-vida, mas o ministro insistiu e eu aceitei voltar para a Cosipa, agora como presidente. Antes, tive conversas com o prefeito Olavo Setubal. Eu comecei no Metrô com o prefeito Figuei-redo Ferraz. Depois veio o prefeito Miguel Colasuonno. E depois veio o Setubal. Eu co-mentava com o Olavo que as notícias que eu tinha da Cosipa da época eram horrorosas. A companhia não estava bem. Mas ele me libe-rou e fui para a Cosipa. Exigi escolher minha diretoria. Sempre costuma haver influência de um ou de outro, indicando apaniguados. Eu prefiro escolher a minha diretoria e que os erros sejam meus. A sede da Cosipa era aqui em São Paulo, no edifício da Galeria Olido, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Para a primeira visita que fiz à usina eu cha-mei toda a imprensa. Os jornalistas, quando se despediram de mim, disseram: ‘temos pena do senhor’ (rindo). ‘O Metrô é uma joia rara, um diamante lapidado, como o senhor troca por este negócio aqui?’. Mas aí começamos. O fato é que a Cosipa era muito maior que o Metrô. Quatro vezes maior. O Metrô hoje é grande, mas naquela época, a primeira linha tinha sido concluída – menos a Estação Sé. Aliás, se eu for falar da Estação Sé, isso dá ou-tra entrevista. Bom, a usina estava toda suja – e eu tinha um grande rigor com a limpeza, basta ver o Metrô até hoje. Empreiteiro tem que ser limpo. Não pode ter obra suja. O povão tinha direito de olhar para dentro da obra do Metrô, através do tapume. Era tudo aberto. Os engenheiros do Metrô podiam falar com os jornalistas. Lá na Cosipa, tudo era fechado. Aí eu levei o meu jornalista do Metrô para fazer minha assessoria. Era o Mario Chuquini, ele tinha ideias abertas. Tudo aberto e jogo lim-po. Na época, havia um jornalzinho interno na Cosipa: O Chapa. A qualidade de papel era excelente. Mas era aquele tipo de publicação que se preocupava mais em ver quem estava ao lado do presidente da Cosipa na foto. Aí re-solvemos que o jornal O Chapa seria impresso na gráfica do Estadão. Não seria mais o jornal do presidente. Seria um jornal aberto. O presi-dente não teria que aparecer no jornal. E havia

também o jornal do sindicato: O Metalúrgico. Começou a briga entre o jornal O Chapa e o jornal O Metalúrgico. Briga aberta, limpa. Fa-lava besteira lá, levava cacete do lado de cá. Se nós faziamos burrada, levávamos cacete do lado de lá. E o pessoal começou a respeitar. Aí aconteceu, logo de cara, que um operário se acidentou na usina. Caiu de um lugar alto e morreu. Eu fui no enterro, a família do ope-rário falecido estava raivosa. O que o senhor veio fazer aqui?! Eu vim dizer a vocês que eu sou o culpado. Eu disse aos familiares que re-conhecia o erro e que a falha seria corrigida na usina. E corrigi.”

— Isso gerou muito impacto? — indagamos a seguir.

“Aí o pessoal come-çou a perguntar: quem é esse presidente, qual será o estilo dele? Havia insultos por trás e fofo-cas. Resolvi iniciar, então, um programa de acidente zero. Esses programas de hoje em dia de acidente zero que existem pelo Brasil afora, começaram lá na usina da Cosi-pa. Pusemos uma placa de tamanho gigante na portaria: “Número de dias sem acidente: xis”. E começou a diminuir o número de aci-dentes. Até que não havia mais acidente, só de vez em quando. O operariado começou a sentir que a coisa tinha mudado. Mandei co-locar a bandeira do Brasil no alto do Morro da Tapera, também conhecido como Morro do Eusébio, bem no alto. Inclusive descobri como é que se confecciona bandeira no Brasil. Só havia um lugar que tinha grande experiência com bandeira. Era lá na Praça dos Três Po-deres, em Brasília. Porque a bandeira rasga com o vento. E tinha um japonês aqui em São Paulo que fazia as bandeiras lá de Brasília. É um trançado que aguenta o vento e, mesmo assim, de vez em quando rasga. Bom, então, em primeiro lugar: usina limpa. Não adianta chiar. O banheiro da usina tem que estar mais limpo do que o banheiro de casa. Porque em casa tem criança pequena e suja o banheiro. Na usina não. Outra coisa: uniforme. Os ope-rários andavam antes com um molambo qual-quer. Porque siderurgia é dureza. Tem que ter calça forte, não pode rasgar. E o pessoal daí começou a passear de uniforme, nos dias de folga. Interessante: veio o orgulho de perten-cer à Cosipa. A coisa começou a mexer com o povão. Virou símbolo. Caro repórter: a produ-ção cresceu quatro vezes.”

— Na fase de presidente da Cosipa o se-nhor ficou quanto tempo? — solicitamos.

“Eu sou como os sete anos bíblicos. Fiquei

sete anos. Em seguida, andei zanzando pelo mundo. Bom, aí o então governador paulista Mário Covas me convocou para ser secretá-rio estadual dos Transportes. Covas assumiu e deu de cara com um grande problema: o Estado estava quebrado. Não havia dinheiro nem para comprar gasolina para a polícia. Aí eu combinei com o então secretário da Fazen-da de São Paulo, Yoshiaki Nakano, o seguinte: eu não quero dinheiro de sua secretaria, eu vou viver de pedágio. Mas eu quero dinheiro para poder demitir o pessoal da Dersa [De-

senvolvimento Rodoviá-rio S.A.]. A Dersa tinha dois prédios. Eu conhe-cia bem a Dersa porque quando o Paulo Egydio Martins foi governador, o então diretor de obras do Metrô, Luiz Marri do Amaral, foi ser presi-dente da Dersa. E levou a turma do Metrô para fazer a Rodovia dos Ban-deirantes. Eu conhecia bem. Era gente demais

e dois prédios. Então resolvi acabar com um prédio. E era uma coisa muito chata porque eu ia aos sábados jantar com minha mulher num restaurante – faço isso há 55 anos – e encontrava um indivíduo que vinha e dizia: ‘O senhor me demitiu’. Mas o fato é que sane-amos a Dersa e a companhia passou a viver só do pedágio. Concluimos a Rodovia Carvalho Pinto, que estava quase no fim, e passamos a fazer as primeiras concessões rodoviárias do Estado. Sucesso absoluto. No começo ninguém acreditou, nem o Covas. Ele me res-peitava muito e não me pressionou. Mas ele achava que não ia dar certo. E deu certo. No decorrer do período sofri um AVC (acidente vascular cerebral). Afastei-me do governo e, para sobreviver, me dediquei à consultoria. Eu fui o cara que mais investiu em São Paulo até agora. Mas tenho que trabalhar para sobrevi-ver. Então eu não tenho rabo preso de jeito nenhum. Hoje, além de trabalhar, faço o se-guinte na minha vida: cuido do espírito. Mas não sou religioso. Como? Cuidando do corpo. Tem relação uma coisa com outra. Faço yoga, faço acupuntura... essas coisas todas. Passou a ser minha rotina. Acabei descobrindo ou-tro mundo que eu nem sabia que existia. E olha, só ando de metrô, não ando de carro. Vou lendo meu livro no metrô. Quando entro no vagão logo tem um jovem que me oferece lugar. Eu aceito para não deixar o jovem cons-trangido, para não parecer orgulhoso. Eu me viro de metrô, me viro de ônibus e vivo num estado de gratidão. Tenho seis netos que me dão muita alegria.”

“Eu comentava com o prefeito Olavo Setubal que as notícias que eu tinha da Cosipa da época eram horrorosas. Mas ele me liberou do Metrô e assumi a presidência da Cosipa”

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