o conceito de federalismo e a idéia de interesse no brasil do século xix

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Dados - Revista de Ciências Sociais ISSN: 0011-5258 [email protected] Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Coser, Ivo O conceito de federalismo e a idéia de interesse no Brasil do século XIX Dados - Revista de Ciências Sociais, vol. 51, núm. 4, 2008, pp. 941-981 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=21817687005 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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O Conceito de Federalismo e a Idéia de Interesse No Brasil Do Século XIX

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  • Dados - Revista de Cincias SociaisISSN: [email protected] do Estado do Rio de JaneiroBrasil

    Coser, IvoO conceito de federalismo e a idia de interesse no Brasil do sculo XIXDados - Revista de Cincias Sociais, vol. 51, nm. 4, 2008, pp. 941-981

    Universidade do Estado do Rio de JaneiroRio de Janeiro, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=21817687005

    Como citar este artigo

    Nmero completo

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    Sistema de Informao CientficaRede de Revistas Cientficas da Amrica Latina, Caribe , Espanha e Portugal

    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

  • N este artigo, o objetivo abordar o conceito de federalismo e aidia de interesse provincial no Brasil do sculo XIX. A meu ver, oconceito de federalismo deve ser pensado de forma conjunta com o te-ma do interesse. Busco assinalar as mudanas sofridas pelo conceitoem momentos histricos fundamentais do sculo XIX. Usualmente a li-teratura discute o debate entre centralizao e federalismo sem perce-ber as descontinuidades, no mbito poltico, que acometeram o concei-to ao longo do sculo XIX1. Efetuo uma anlise dos momentos histri-cos nos quais estiveram em discusso propostas que descentralizavama organizao do poder a fim de perceber as alteraes na idia defederalismo.

    A anlise dos debates parlamentares ocorridos na Constituinte de 1823apontam para o fato de que o termo federalismo era entendido comoconfederao, ou seja, a reunio de Estados soberanos em torno de umcentro comum. Essa maneira de organizar o Estado era entendidacomo compatvel com a monarquia. Ao longo desses debates, emergecom clareza a idia de que a provncia deveria dispor dos meios neces-

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    * Este artigo rene aspectos discutidos em minha tese de doutorado defendida no Insti-tuto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ em dezembro de 2006, intitu-lada O Pensamento Poltico do Visconde do Uruguai e o Debate entre Centralizao e Fe-deralismo no Brasil (1822-1860), lanada posteriormente como livro pela editora da Uni-versidade Federal de Minas Gerais UFMG/IUPERJ em 2008.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 51, no 4, 2008, pp. 941 a 981.

    O Conceito de Federalismo e a Idia de Interesseno Brasil do Sculo XIX*

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  • srios para gerir sua justia e economia internas. O desenvolvimento ea eficcia da justia somente seriam obtidos caso a provncia dispuses-se de autonomia.

    O pensamento federalista articulado em torno do Cdigo do Processo(1832) entende que a descentralizao deve permitir que o cidado si-tuado no municpio participe da montagem do aparelho judicirio.Nesse contexto histrico, o tema da participao do cidado ativo e aeducao poltica que aquela propicia so os valores principais mobili-zados pelos federalistas. O conceito2 de federalismo passa a estar rela-cionado aos valores associados participao do cidado ativo na esfe-ra que lhe mais prxima, ou seja, o municpio. Nessa esfera, o cidadopoderia articular seus interesses particulares com a produo do bempblico.

    As revoltas regenciais levam o pensamento federalista a reformular essaperspectiva, concedendo precedncia ao tema do interesse provincial.Os debates em torno do Ato Adicional (1831-1834) apontam para umareviso do projeto federalista. A partir da anlise de debates parlamen-tares e de jornais da poca, considero que a idia de interesse provincialemerge como um aspecto central do conceito de federalismo.

    A DEFINIO CONTEMPORNEA DE FEDERALISMO

    A definio contempornea de federalismo o apresenta como um siste-ma de governo no qual o poder dividido entre o governo central (aUnio) e os governos regionais. O federalismo definido, em sua acep-o positiva, como um meio-termo entre um governo unitrio, com ospoderes exclusivamente concentrados na Unio, e uma confederao,na qual o poder central seria nulo ou fraco. Por sua vez, a confederao caracterizada como uma aliana entre Estados independentes. O go-verno central no poderia aplicar as leis sobre os cidados sem a apro-vao dos Estados, que seriam, em ltima instncia, a fonte da sobera-nia. A diferena essencial entre federao e confederao que, na pri-meira, o governo central possui poder sobre os cidados dos Estadosou provncias que compem a Unio sem que essa ao tenha de seracordada pelos Estados3. A experincia histrica que gera esse novocontedo a construo do Estado norte-americano a partir de 1787.

    A Conveno da Filadlfia foi convocada em 1787 com o intuito de re-ver os artigos aprovados no Congresso Continental em 1777 (usual-mente conhecidos como Artigos da Confederao)4. Observemos, ini-

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  • cialmente, que aspecto Hamilton, no artigo 15, criticava na confedera-o norte-americana produzida em 1777:

    O vcio enorme e radical na construo da Confederao atual est noprincpio da legislao para Estados ou governos em seu carter de cor-poraes ou coletividades, em contraposio legislao para os indi-vduos que os compem. Embora no se estenda a todos os poderesconferidos Unio, esse princpio invade e governa aqueles de que de-pende a eficcia dos demais. Exceto no tocante honra de rateio, osEstados Unidos tm direito ilimitado a requisitar homens e dinheiro;mas no tm autoridade para mobiliz-los por meio de normas que seestendam aos cidados da Amrica. A conseqncia que, embora emteoria as resolues da Unio referentes a essas questes sejam leis quese aplicam constitucionalmente aos seus membros, na prtica elas someras recomendaes que os Estados podem escolher observar oudesconsiderar (Madison, Hamilton e Jay, 1993:160-161).

    fundamental que assinalemos com nfase o principal defeito, paraHamilton, da confederao elaborada em 1777: o poder central nodispunha de autonomia para agir sobre os cidados que compunham aUnio. Poderia apenas recomendar a aplicao de suas resolues, ca-bendo aos Estados adotar ou no tais resolues. A soluo poltica,para o autor, consistia no reforo do poder central. Este deveria dispordos poderes necessrios para agir sobre os cidados, sem passar pelosEstados. A conseqncia desse reforo seria uma alterao fundamen-tal no status constitucional dos Estados, que deveriam dispor de auto-nomia, mas no seriam mais entidades soberanas; agora estariamsubordinados ao poder central.

    Podemos perceber claramente a nova direo que Hamilton pretendiaintroduzir no arranjo constitucional norte-americano. Entretanto, pa-ra se referir s inovaes que deveriam ser introduzidas, o autor aindafazia uso do termo confederao. Vejamos um trecho do mesmo artigo15 citado anteriormente:

    Com o abandono de todas as pretenses a um governo confederado,isso nos reduziria a uma simples aliana ofensiva e defensiva e nos po-ria em condies de sermos ciclicamente amigos e inimigos uns dos ou-tros, ao sabor de nossas cobias e rivalidades. Mas se no queremos serpostos nessa situao; e se ainda nos mantemos fiis ao projeto de umgoverno nacional, o que a mesma coisa, de um poder superintendentesob a direo de um conselho comum, devemos incorporar em nosso

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  • plano aqueles ingredientes que podem ser considerados pela diferenaentre uma liga e um governo; devemos ampliar a autoridade da Unios pessoas dos cidados os nicos objetos prprios de governo (ibi-dem:161-162).

    Observemos que Hamilton condenava o fato de que fossem abandona-das todas as pretenses a um governo confederado em detrimento deuma mera liga. Esta seria, segundo ele, a mera reunio de Estados, umaaliana com fins defensivos ou ofensivos. Para Hamilton, deveriam serintroduzidas inovaes que estabelecessem uma diferena radical en-tre uma confederao (confederate government) e uma liga (league). Paratanto, o autor argumentava que seria imprescindvel que a Uniotivesse os poderes necessrios para chegar at o cidado.

    Podemos assinalar que Hamilton j mencionava um de seus elementosdistintivos, ou seja, a capacidade de o governo central chegar at os ci-dados das unidades que compem o Estado sem passar pelo crivodessas unidades. Ocorre que o poltico norte-americano faz uso do ter-mo governo confederado, distinguindo esse novo arranjo poltico deuma mera liga sem fazer a distino entre federao e confederao,como seria mais usual em nossa contemporaneidade. Revela, dessaforma, que sob uma palavra antiga se manifestava um novo contedo.O uso do termo confederao de Estados para se referir aos EstadosUnidos da Amrica foi comum at a Guerra Civil (1861-1865)5. Essedescompasso entre o novo contedo histrico, gerado a partir daexperincia norte-americana, e a persistncia de velhas palavras foiclaramente percebido por Tocqueville (1977:123):

    Em todas as confederaes que precederam a Unio Americana de nos-sos dias, o governo federal, a fim de prover s suas necessidades, diri-gia-se aos governos particulares. No caso em que a medida prescritadesagradava a um deles, este podia sempre subtrair-se necessidadede obedecer. [...] Na Amrica, a Unio tem por governados, no Esta-dos, mas simples cidados. Quando quer cobrar um imposto no se di-rige ao governo de Massachusetts, mas a cada um habitante de Massa-chusetts. Os antigos governos federais tinham diante de si povos; o daUnio tem indivduos. No toma emprestada a sua fora, mas vai elemesmo busc-la. Tem seus prprios administradores, seus tribunais,seus oficiais da justia, seu exrcito. [...] Aqui o poder central age semintermedirios sobre os governados, julga-os ele prprio, como fazemos governos nacionais, mas s age, neste caso, dentro de um crculo res-trito. [...] Assim, achou-se uma forma de governo que no era, precisa-

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  • mente, nem nacional, nem federal; mas parou-se a, e a nova palavraque deve exprimir a coisa nova de maneira alguma existe ainda6.

    Em Tocqueville est presente a percepo da inovao da Convenoda Filadlfia para com as experincias europias de confederao, ouseja, a Unio atuava diretamente sobre os cidados, sem a necessidadede recorrer s unidades da federao. Entretanto, essa centralidade daUnio no era semelhante quela dos Estados unitrios, pois as unida-des que compunham o Estado dispunham de uma autonomia e de li-berdades que inexistiam nos Estados unitrios. Nestes, as partes quecompunham o Estado eram meramente unidades administrativas,sem dispor de autonomia e de liberdade para escolha de funcionrios,organizao da Justia e recolhimento de impostos, aspectos que ocor-riam no caso norte-americano.

    O autor francs lamentava que no houvesse um termo novo capaz dedesignar o arranjo norte-americano. Nesse sentido, Tocqueville assi-nalava o descompasso entre as palavras disponveis (federao e con-federao) e a novidade histrica. Ao longo do debate poltico anterior,federao havia sido um sinnimo de confederao. Quando, poste-riormente, o termo foi associado exclusivamente novidade introdu-zida pelo caso norte-americano, o que ocorreu foi meramente a reutili-zao de um antigo termo para um novo contedo.

    Portanto, podemos observar os seguintes pontos: 1) o uso dos termosfederao e confederao para se referir ao caso norte-americano eraum procedimento comum. Isso porque a palavra federao estava as-sociada confederao. 2) A inovao produzida pela experincia nor-te-americana consistiu no seguinte contedo: as unidades que compu-nham a Unio disporiam de autonomia poltica e administrativa, en-tretanto, isso no implicava um poder central fraco ou nulo; os Estadosno seriam entendidos como um poder soberano tal qual a Unio. Asresolues da Unio teriam carter impositivo para os Estados, e nomais seriam meras recomendaes. Ao mesmo tempo que o poder cen-tral era reforado, os Estados disporiam de autonomia decisria em as-pectos importantes. Nesse sentido, a idia de federao era uma novi-dade poltica, como bem escreveu Tocqueville; no era uma repetiodas confederaes, pois o poder central era forte, tampouco os estadosdesempenhavam o mesmo papel que em um Estado unitrio.

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  • O CONCEITO DE CONFEDERAO/FEDERALISMO NO DEBATE POLTICOBRASILEIRO NA CONSTITUINTE DE 1823

    Logo no comeo dos debates parlamentares da Constituinte de 1823,entrou em discusso uma emenda estabelecendo que o Imprio brasi-leiro compreendesse confederalmente as provncias que formavam o an-tigo Imprio portugus na Amrica7. Ao longo dos debates, e no ape-nas dessa emenda, os deputados utilizavam indistintamente os termosfederao e confederao. Em que pese o uso indistinto, ocorreu a pre-dominncia do contedo proveniente da experincia confederativa; asinovaes norte-americanas ainda no haviam sido incorporadas aodebate brasileiro. O termo confederao/federao definido como areunio de Estados soberanos com o objetivo de resistir a ameaas ex-ternas. Nesse modelo, o poder da Unio fraco ou mesmo nulo,dependendo, para sua ao, de recursos e de autorizao dos Esta-dos-membros:

    bem conhecida a confederao Helvetica, a dos antigos estados ge-raes da Holanda, quando este se constituiu em repblica, e a confedera-o do corpo germnico composta de estados independentes, ainda que as-sociados para a resistncia a inimigos comuns, contribuindo cada esta-do com seu contingente de soldados e dinheiro para as despesas geraisde sua associao, at sendo cada estado regido por sua particular for-ma de governo (Silva Lisboa, sesso da Cmara dos Deputados, 17 desetembro de 1823, p. 158; nfase do autor).

    Essa definio no implicava uma incompatibilidade entre a forma degoverno monrquica e o modelo confederativo/federalista. O deputa-do Carneiro Cunha expressava uma opinio bastante difundida naConstituinte: [...] federao no se ope monarquia constitucional,como h exemplos, tanto na histria antiga como na moderna, e mes-mo na Europa [...] (Assemblia Constituinte, 17 de setembro de 1823,p. 152). A definio de confederao/federao acarretava, para ascorrentes federalistas, trs pontos: 1) o rompimento do pacto colonialimplicava o retorno do poder soberano para as diversas provncias; 2)o pacto a ser firmado na Constituinte deveria retornar s provnciaspara sua aprovao ou recusa; 3) o arranjo constitucional deveria con-ferir autonomia s provncias8. Na elaborao desse ltimo aspecto, ascorrentes federalistas buscaram afirmar a precedncia da provncia.Na medida em que a provncia possua precedncia diante da Unio,

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  • os poderes escolhidos nesta deveriam dispor de autoridade e de auto-nomia:

    Que as provncias so ajuntamentos de homens com iguais direitos.Que neste exerccio de direitos iguais e maneiras de maior utilidade sefunda a unio federal de homens, casas, vilas, cidades, provncias e rei-nos, sujeitando-se todos ao Imprio de um, a quem tributo mantena e honrapara salvao certa de todos, ajuntando-se os seus procuradores em conclio co-mum, para se estabelecerem as regras da prol geral, ficando a prol de cada casa aindagaomais perspicaz e interessada dos filhos (Ferreira Frana, sesso daCmara dos Deputados, 18 de setembro de 1823, p. 130; nfase doautor).

    [...] federao no se ope monarquia constitucional, como h exem-plos, tanto na histria antiga, como na moderna, e mesmo na Europa,[...]; podendo haver em cada uma das provncias uma primeira assemblia pro-vincial, que tenha a iniciativa das leis regulamentares, e que informando commais conhecimentos assemblia dos representantes da nao tudo quanto formister para promover a sua prosperidade, consiga-se desta sorte o bem, quetodos desejamos. Considerada, e admitida por esta forma, a federaoopor-se- integridade do Imprio? No, decerto (Carneiro Cunha,Assemblia Constituinte, 17 de setembro de 1823, pp. 152-153; nfasedo autor).

    Para a corrente federalista, a forma de governo monrquica represen-tativa deveria permitir que cada provncia buscasse a realizao deseus interesses conforme cada qual os entendesse. Esse um limite le-gitimamente reconhecido pelas partes quando realizam o pacto. Asub-misso ao monarca ocorria tendo em vista a liberdade das provnciasem promoverem sua prosperidade. Essa busca implicava dois aspectos:a existncia de um Legislativo provincial que dispusesse de autono-mia em face do legislativo nacional e que a escolha ou a eleio dos fun-cionrios fosse feita a partir dos cidados ativos residentes na provn-cia e pelos poderes provinciais. Tal procedimento encontrava justifica-tiva nos motivos do comportamento do funcionrio oriundo da pro-vncia: vnculos para com a localidade. Esses funcionrios estariam di-retamente empenhados em contribuir para a prosperidade local. Pode-mos assinalar, no argumento federalista acerca do funcionrio, a pre-sena da idia de interesse, ou seja, velar pelo que seu9. O funcionriolocal seria mais eficiente do que um funcionrio sem vnculos nomea-do pelo poder central. Para os federalistas, o bom desempenho do fun-cionrio no provm de seu treinamento nem de seu vnculo com o po-

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  • der central, mas de sua ligao com a localidade. Na medida em que,por meio desse funcionrio, esto presentes os objetivos da provncia,ele superior a um funcionrio mais treinado e vinculado a interessesque no esto referidos dinmica provincial.

    Devemos enfatizar o seguinte aspecto: a forma de governo um fatorsecundrio neste debate. Observemos que, para Ferreira Frana, o que relevante que esteja garantido que cada provncia disponha de li-berdade para administrar seus interesses, para governar a casa. Desdeque esse dado esteja garantido, no h nenhum problema que a formade governo seja a monrquica. A provncia somente entraria no pactose ficasse assegurado que caberia a ela a administrao da casa.

    O uso da idia da casa no argumento federalista nos remete anlise deIlmar Rohloff de Mattos sobre o Imprio brasileiro. Ele elabora o concei-to de casa como um dos instrumentos fundamentais para a interpreta-o das idias dos liberais moderados no Imprio (1994:109-123). Se-gundo esse autor, a dimenso da casa envolvia a esfera privada; o res-ponsvel pela casa era o encarregado de regular a economia e sua ad-ministrao, cuidando da famlia, dos agregados e dos escravos. Os li-berais moderados projetavam para o Estado essa dimenso. Nessa pro-jeo, ganhava proeminncia o chefe da casa, que desempenhava o pa-pel ativo em sua administrao.

    No argumento federalista, a provncia desempenharia o mesmo papeldo indivduo com relao sua casa; o indivduo tem interesse em bus-car a prosperidade e a felicidade de sua casa. Nesse sentido, a provn-cia deve controlar as atividades que dizem respeito realizao deseus interesses. Os federalistas transpem uma idia proveniente daesfera privada para a esfera pblica: administrar o Estado da mesmamaneira que o cidado ativo vela por sua casa.

    Portanto, podemos delinear o seguinte contedo na idia de federa-o: o Estado mais bem administrado quando os interesses provin-ciais esto em primeiro plano. Para a corrente federalista, as provnciasdeveriam dispor do controle sobre a segurana, a administrao e aprosperidade material. A dimenso privada se projeta sobre a esferapblica no em sua dimenso patrimonial, mas como a precedncia dointeresse provincial como a mola fundamental na montagem doEstado.

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  • Ainda que na Constituinte de 1823 j esteja presente a idia de que, nomodelo federativo, a provncia vela por seus assuntos com a mesmaacuidade que o cidado ativo cuida de sua casa, essa temtica emergircom mais intensidade nos debates em torno do juiz de paz (1827) e doCdigo do Processo (1832). O debate poltico acerca dessas duas leis reve-lou uma dimenso relevante para a compreenso do conceito de fede-ralismo.

    O CDIGO DO PROCESSO: O FEDERALISMO COMO A DISSEMINAO DOPODER PELA SOCIEDADE

    Com a abdicao de D. Pedro I ocorreram mudanas significativas nacomposio social da elite poltica hegemnica. O perodo regencial foimarcado pela ascenso do setor social ligado ao abastecimento internono sul de Minas Gerais. Segundo Lenharo (1993), o setor mercantil deabastecimento desempenhou um papel importante na economia brasi-leira at a dcada de 1830, quando o caf se tornou a principal ativida-de e o setor foi disputado por dois grupos. O primeiro, localizado so-bretudo no sul de Minas Gerais, tambm inclua paulistas e fluminen-ses. Suas atividades estavam relacionadas produo mercantil desubsistncia e de exportao. J o segundo procedia da Corte e fora re-crutado principalmente entre a nobreza e a alta burocracia de Estado.Sua criao foi fruto de uma poltica generosa de D. Joo VI e de D.Pedro I, que distriburam vastas extenses de terra nas proximidadesdo Rio de Janeiro. O primeiro grupo apresentava fora poltica no m-bito provincial, mas era barrado na Corte pelo segundo grupo, que sevalia de sua maior proximidade com o novo monarca (ver Lenharo,1993:24). Em 1831, com a abdicao do imperador, o primeiro grupopassa a controlar o processo poltico. O segundo, com os recursos dosetor de subsistncia, financia a colonizao e a expanso da economiacafeeira no Vale do Paraba, vindo a dar o troco durante o regressoconservador.

    Na Constituinte de 1823, predominou a compreenso do federalismocomo uma dimenso que dizia respeito exclusivamente organizaodas provncias. A anlise acerca do debate em torno da lei do juiz depaz e do Cdigo do Processo nos revelou que o conceito de federalismofoi ampliado de sua dimenso inicial. O federalismo no estava rela-cionado apenas descentralizao do poder no mbito provincial; adescentralizao do poder deveria ser disseminada sobretudo pela so-ciedade, a fim de que o cidado ativo situado nos municpios partici-

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  • passe diretamente, ou por meio dos rgos municipais, da montagemdo Estado.

    Com a elaborao do Cdigo do Processo Criminal, parte substancial dosencarregados da justia criminal passou a ser eleita no municpio. OCdigo do Processo aumentou consideravelmente tanto os poderes dojuiz de paz, tornando-o o principal agente do Judicirio nas localida-des, quanto os do jri, alm de estabelecer que o promotor e o juiz mu-nicipal seriam escolhidos no municpio.

    De acordo com a Lei de 1827, o juiz de paz era eleito diretamente peloscidados da localidade, sendo, portanto, uma expresso da vontadepoltica destes. importante destacar algumas caractersticas dessaeleio: direta e nica, sem intermedirios entre o eleitor e a figura dorepresentante, ou seja, expresso direta das vontades do eleitorado.Observemos os motivos pelos quais o juiz de paz ganhou essa impor-tncia: em primeiro lugar, pela extino do delegado; em segundo,porque ficou encarregado de elaborar o auto do processo criminal10.

    No art. 19, o Cdigo do Processo aboliu os delegados, que antes eram no-meados pelo poder central e ficavam subordinados ao chefe de polcia,que tambm possua a mesma origem. Na medida em que no haviamais os delegados, as aes do chefe de polcia nos municpios passa-vam a depender do juiz de paz, o qual ficava encarregado de recrutar aGuarda Nacional para cumprir ordens judiciais, mandados de buscaetc. Nesse sentido, as aes do poder central passavam a depender dacooperao de uma figura eleita na localidade.

    Com o Cdigo do Processo, o juiz de paz era quem procedia ao corpo dedelito, que vem a ser o conjunto de elementos sensveis do fato crimi-noso (Almeida Jnior, 1920:7), e formava a culpa (verCdigo do Proces-so, art. 12, 4); esta era ento entregue ao juiz de direito e ao jri de acu-sao para que deliberassem se existia a necessidade de se instaurarum processo (ver Cdigo do Processo, art. 228). Em caso positivo, inicia-va-se o julgamento a partir das provas recolhidas anteriormente.

    Para que o juiz de direito declare a responsabilidade criminal e impo-nha a sano, necessrio ter certeza de que um ilcito penal foi prati-cado e de que possvel identificar seu autor (cf. Almeida Jnior,1920). No Estado moderno, a nica maneira pela qual um juiz pode serconvencido a emitir um julgamento por meio das provas, que devemser obtidas mediante certas formalidades marcadas constitucional-

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  • mente (ver Bajer, 2002). Alm desse importante papel no processo cri-minal, o juiz de paz julgava pequenos delitos e concedia o passaportepara o deslocamento interno (ver Cdigo do Processo, art. 12, 1-7).

    No Cdigo do Processo, alm do juiz de paz, havia trs importantes figu-ras que eram escolhidas entre os cidados da localidade: o promotor, ojuiz municipal e o jri popular. Segundo esse Cdigo, o promotor ficavaencarregado da denncia de crimes pblicos e policiais perante o jri,sendo escolhido pelo presidente de provncia a partir de uma lista tr-plice elaborada pela Cmara Municipal entre os eleitores locais. Qual-quer eleitor com bom senso e probidade reconhecidos poderia compora lista; a lei, ademais, mandava que se desse preferncia aos que fos-sem instrudos nas leis (verCdigo do Processo, art. 36). O juiz municipalficava encarregado de substituir eventualmente o juiz de direito e deexercer cumulativamente a jurisdio criminal. Era escolhido da mes-ma forma e com os mesmos pr-requisitos que o promotor (ver Cdigodo Processo, art. 33). J a lei do jri popular foi promulgada em setembrode 1830 em meio ao processo de dissdio entre o imperador, D. Pedro I,e a elite poltica brasileira, nesse momento ainda toda unida contra asaes daquele. No art. 15, a lei determinava que o jri fosse escolhidopelos eleitores da municipalidade e pelos vereadores. Com a promul-gao do Cdigo do Processo Criminal, em 1832, essa escolha passa a serfeita pelo juiz de paz, pelo capelo e pelo presidente da Cmara Muni-cipal (ver Lei da Eleio dos Jurados e Promotores, art. 15, e Cdigo doProcesso Criminal, art. 24). Podiam ser jurados todos aqueles que fos-sem eleitores de segundo grau; para aferir se havia algo contra eles,seus nomes eram publicados. Findas as contestaes, se porventurahouvesse, as urnas com os nomes eram lacradas para que fossem sorte-ados na poca dos julgamentos. Portanto, figuras importantes do fun-cionamento da Justia (juiz de paz, promotor, jri e juiz municipal)passaram a ser escolhidas ou eleitas a partir do municpio.

    Essa caracterstica levou a uma srie de artigos publicados no jornalAstro de Minas, assinados por Do Federalista, nos quais o aspecto posi-tivo do modelo federalista era a responsabilidade que o funcionrioeleito possua perante os cidados11. Esse jornal era ligado aos liberaismoderados. Nova Luz Brasileira, ligado aos liberais exaltados, argu-mentava que a federao acarretaria a eleio de todo o poder Judici-rio (ver Nova Luz Brasileira, 7/1/1831) e dos comandantes de armas(ver Nova Luz Brasileira, 4/1/1831).

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  • A idia de federao chega ao Brasil enfatizando a necessidade de queas atribuies do poder central sejam deslocadas para a provncia. Noentanto, esse movimento de retirar as atribuies do poder central nofica restrito a uma transferncia destas para as assemblias provin-ciais; chega at os municpios. No debate poltico brasileiro, a idia defederalismo esteve diretamente associada a um movimento no qual oexerccio do poder pblico espalhado na sociedade. Em outras pala-vras, posto ao alcance do cidado ativo.

    Nesse momento histrico, parte considervel dos federalistas acredi-tava que o federalismo permitiria que os interesses dos cidados ativose a liberdade caminhassem de maneira virtuosa. Um dos mais impor-tantes era Evaristo da Veiga12, que em 1833 o ano seguinte promul-gao do Cdigo escreveu acerca da importncia da eleio do juiz depaz:

    O dia das eleies se avizinha, e tenho de contribuir com meu voto paraa nomeao dos juzes de paz do meu distrito. Noutro tempo, eu nadaentendia da influencia que podia ter hum bom ou mau juiz de paz; dei-xava a escolha ao acaso, persuadido que de todo modo as coisas hiriobem [...]. Mas depois de 7 de abril, quando comearo a correr pelasruas magotes de gente armados de facas, grande nmero de ociosos, devagabundos [...] que assustavam o povo, ameaando os bens e a vida decada um. [...]. Duraram os sustos alguns meses: mas homens de bemexerciam o cargo de juiz de paz, eles animaram os cidados e reprimi-ram os perturbadores [...]. Aprendi ento a conhecer a importncia da-quele emprego e prometi ter grande escrpulo no meu voto toda vezque se tratasse de eleger juzes de paz. [...]. Contaram-me huma vez quese trabalhava para nomear eleitores a certos sujeitos que no mereciamconceito, que para este fim havia um ajuste, ou como eles dizem humacabala; e me convidaro a ligar-me com outros cidados que preten-diam votar em pessoas de mais estimao e confiana. Imbudo comoestava das minhas idias, respondi que no entrava em conluios. Ou-tros foram da mesma opinio, e a cabala que eu receava triunfou com-pletamente. Ento eu reconheci que em eleies necessrio ceder doprprio juzo, de particulares afeies, de relaes de comrcio ou defamlia, e encostar-se o votante quele crculo que melhor lhe agra-da, que est mais de acordo com seus desejos e esperanas (AuroraFluminense, 15/2/1833; nfase no original).

    Observemos que, para Evaristo, o eleitor despertado para a impor-tncia da eleio de juiz de paz quando desordeiros ameaaram sua

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  • propriedade. O cidado movido pelo interesse de que a lei garanta suaesfera privada no deve permitir que um funcionrio nomeado por umpoder distante tenha influncia sobre seus assuntos. Quando ocorremas primeiras eleies, esses cidados, pouco habituados ao exercciodo poder em sua esfera mais prxima, no se envolvem. Sculos deuma legislao colonial opressiva no lhes ensinou a se envolver comos assuntos pblicos. No entanto, quando fatos que pem em riscoseus interesses ocorrem, esses eleitores decidem participar. Evaristono se ilude acerca da capacidade da lei em mudar os costumes arrai-gados; reconhece que no ser imediatamente que os cidados ativossairo de seu isolamento. Segundo Evaristo, nas primeiras eleies, ascabalas vencem. O motivo reside no fato de os cidados ainda no teremsado de sua esfera privada. Apenas lentamente, mediante o exerccioda participao, o cidado ativo vai escolher melhor o juiz de paz. O ci-dado associar seus interesses individuais a proteo de sua pro-priedade escolha de funcionrios pblicos que respeitem seusdireitos. Reconhecer que, para que tal escolha recaia sobre um candi-dato correto, deve haver um envolvimento com outros eleitores.

    Essa ao coletiva somente pode ocorrer quando existe a liberdade deescolha, a eleio de um magistrado, por exemplo, na qual diversoscandidatos participam; muitos desses candidatos so homens que seimpem no por seu cabedal pessoal estudos e propriedades , massim em razo da alta estima de seus concidados. Essa participao socorre porque o funcionrio eleito responde perante os demais cida-dos ativos.

    Cabe pr em destaque o sentido que o conceito de federalismo recebenesse momento histrico. Em primeiro lugar, o arranjo constitucionalfederalista definido a partir de dois pontos: o mecanismo de respon-sabilidade que os funcionrios possuem para com os cidados seja naesfera provincial, seja na esfera municipal e a liberdade de que as pro-vncias devem dispor para administrar seus recursos e legislar tendoem vista suas realidades singulares. Em segundo lugar, e diretamenteassociado ao primeiro, esse modelo constitucional permite que o cida-do olhe para o que pblico como algo que lhe diz respeito, e nocomo algo que somente diz respeito a um funcionrio nomeado por umpoder distante. O cidado exerce seu interesse individual junto ao inte-resse pblico. Essa caracterstica do pensamento federalista formula-do em torno do Cdigo do Processo pode ser percebida por meio do con-ceito de interesse bem compreendido formulado a partir da leitura da

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  • obra de Tocqueville (1977). Na anlise que o autor efetuava da expe-rincia norte-americana, estava presente a idia de que nos EstadosUnidos o interesse individual, longe de colocar o cidado em uma pri-so, isolado dos demais, era capaz de lig-lo a outros. Para Tocqueville,o cidado norte-americano, ao efetuar uma ao tendo seu interesseprivado como mvel, terminava produzindo uma ao dotada devirtudes pblicas.

    Seguindo as lies de Montesquieu, Tocqueville considerava que sinstituies deve corresponder um esprito que as anime. Nesse senti-do, o autor enxergou na experincia norte-americana cidados co-muns, movidos por seus interesses individuais, envolvidos nas solu-es de problemas coletivos, unindo sua liberdade com a liberdade p-blica. O interesse do indivduo por suas coisas, bem como o apego aoque lhe pertence, consegue se tornar uma virtude. A disperso do po-der na sociedade norte-americana leva o indivduo, na defesa de seuinteresse, a sair do isolamento e a buscar a cooperao de outros naprocura de solues (cf. Jasmin, 2000:77).

    O patriotismo municipal (expresso de Tocqueville apud Jasmin,2000) norte-americano o espao institucional primordial para a mani-festao do interesse bem compreendido. Sem este os cidados jamaisobtero o aprendizado prtico para a resoluo dos assuntos pblicos,tampouco associaro corretamente sua liberdade individual liberda-de pblica. Os Estados centralizados, equivocadamente, somente cha-mam seus cidados para decidir os assuntos gerais, abstratos, semuma ligao direta e imediata com a vida desses indivduos.

    importante assinalar que, para Tocqueville, o interesse bem compre-endido se manifesta sem nenhuma referncia a uma virtude hericaexterna aos interesses dos cidados; est relacionado apenas ao empe-nho do indivduo em resolver seus problemas. A partir dessa paixopouco nobre, o cidado supera seu isolamento, constri uma esfera p-blica baseada na liberdade e internaliza a lei como expresso do bempblico (Werneck Vianna, 1997:109).

    A Regncia marca a entrada no ncleo do poder de um grupo que noparticipava do poder na poca de D. Pedro I. A referncia a Tocquevillenos permite compreender o mecanismo que os defensores do Cdigo doProcesso pretendiam pr em movimento. A idia de federalismo for-mulada durante o Cdigo refora a idia de desconfiana para com oEstado. A nica maneira de assegurar os interesses e a liberdade dos ci-

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  • dados seria tornar os cargos pblicos mais importantes eleitos ou es-colhidos a partir dos municpios. Torna-se fundamental compreenderque os federalistas descrevem a eleio do juiz de paz e a escolha dosdemais cargos pelos poderes municipais como um espao no qual os ci-dados, movidos por seus interesses, criam um vnculo positivo com oEstado e com a liberdade pblica. Somente no modelo institucional emque o poder pblico esteja sujeito aos interesses dos cidados, estes po-dem internalizar a Lei. O federalismo era o arranjo poltico que permi-tiria a combinao entre virtude e interesse de maneira satisfatria.

    O pensamento federalista no desconhecia a demora para que essasprticas vingassem na sociedade brasileira. Nesse sentido, veja um tre-cho do jornal Astro de Minas:

    Ns no desconhecemos que o sistema federativo no Brasil h de acar-retar alguns inconvenientes; sobretudo no princpio. [...] mas ousamosasseverar, que para as futuras eleies os Povos j amestrados pelos poucos pre-juzos no votaro em semelhantes carrascos, e assim pouco a pouco iro abrin-do os olhos acerca da escolha dos candidatos. [...]. Mas formada que esteja a fe-derao de Estados fazendo as suas leis prprias e peculiares, tendo em seuseio todos os recursos, s por isso poder empregar toda a fora de que capaz; as autoridades sempre vigiadas e prestes a responder pelos seus abu-sos estaro em contato com os povos que as elegero (Do Federalista, Astro deMinas, 28/6/1832; nfases do autor).

    As alteraes nas leis no implicariam mudanas imediatas na prticasocial. Entretanto, uma mudana somente ocorreria caso fosse dadoaos cidados o espao pblico para que seus interesses individuais fos-sem lentamente educados a fim de combinar interesses e bem pblico.Os federalistas brasileiros no tiveram a preocupao de compatibili-zar esses interesses com uma virtude herica, proveniente de uma no-breza que de maneira desinteressada velaria pela res publica. Seu mun-do de origem e sua referncia eram os homens comuns que, dispondode propriedade e de interesses individuais, deveriam controlar umEstado. Este, em razo da experincia colonial e do reinado de D. PedroI, surgia como uma ameaa a seus interesses. No entanto, para os fede-ralistas, controlar o Estado a partir dos interesses era indissocivel dadescentralizao do poder, de colocar o poder sob a influncia dos ci-dados ativos e da esfera pblica na qual estes tomavam parte e detornar o poder sujeito influncia da opinio pblica, dos pasquins,das sociedades, entre outros.

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  • O ATO ADICIONAL13 CONTRA O CDIGO DO PROCESSO

    O conceito de federalismo, discutido a partir da promulgao e do fun-cionamento do Cdigo do Processo, sofre modificaes relevantes parasua compreenso. Em primeiro lugar, grupos defensores do federalis-mo efetuam uma crtica descentralizao presente no Cdigo do Pro-cesso; em segundo, a inovao da experincia norte-americana perce-bida; em terceiro, conferem precedncia ao interesse provincial emface do tema da liberdade. Essas alteraes ganham corpo ao longo dosdebates em torno do Ato Adicional.

    O Ato Adicional possui um histrico que tem incio em 6 de maio de1831, quando o deputado Miranda Ribeiro apresentou e conseguiu aaprovao do requerimento que previa a formao de uma comissopara propor a reforma da Constituio. Em 9 de julho de 1831, a comis-so formada por Paula e Souza, Miranda Ribeiro e Paraizo apresentavao resultado dos trabalhos. O momento poltico no qual se d a propostade Miranda Ribeiro era extremamente crtico. O imperador abdicarahavia apenas dois meses; a Regncia estava se assentando no poder; e acapital fora palco de vrias revoltas, durante as quais se pensou em re-tirar o jovem imperador da cidade em virtude da inexistncia de segu-rana para sua pessoa. A gravidade dos conflitos armados foi tamanhaque impulsionou o projeto da Guarda Nacional. Proposto em julho de1831, os pontos mais debatidos foram: o Senado temporrio eleito pelaAssemblia Provincial e a monarquia federativa.

    No primeiro artigo, sem deixar dvidas a que veio, o parecer da comis-so prope uma nova redao do art. 1o da Constituio: o Imprio doBrasil seria uma associao poltica dos cidados brasileiros de todasas suas provncias federadas por essa Constituio. Alm da monarquiafederativa, a comisso prope a separao entre rendas provinciais egerais, o que ser mantido no Ato Adicional. O Senado deixaria de servitalcio, escolhido pelo imperador a partir de uma lista trplice, e pas-saria a ser eleito pela Assemblia Provincial. Esta tambm ficaria en-carregada da eleio do vice-presidente. Por ltimo, o projeto prope asupresso do Poder Moderador e do Conselho de Estado14.

    O Senado reconheceu a constitucionalidade da reforma, entretanto,transferiu sua realizao para representantes eleitos para tal, ou seja,para a prxima legislatura, e negou a possibilidade de reforma dos ar-tigos que tornavam a monarquia federativa e o Senado temporrio eeleito a partir das Assemblias Provinciais15. A derrubada desses dois

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  • pontos monarquia federativa e Senado temporrio e eleito pelasAssemblias ps em marcha a tentativa de aprovar as reformas sem aparticipao do Senado. Um dos principais artfices desse movimentofoi o ministro da Justia, Diogo Feij. A Constituio de Pouso Alegre,principal documento poltico desse movimento, incorporava ospontos do projeto apresentado pela comisso16.

    Em 30 de julho de 1832, a Cmara se rene para tentar votar um parecersegundo o qual ela se converteria em Assemblia Nacional para empre-ender a reforma mesmo sem a anuncia do Senado. Durante os debatesna Cmara dos Deputados, Honrio Hermeto agrupou uma maioriacapaz de derrotar esse movimento. A derrota aponta para um reconhe-cimento, por parte dos descentralizadores, dos limites impostos peloSenado. Nesse sentido, forma-se, na Cmara, uma nova comisso com-posta por Bernardo Pereira de Vasconcelos, Limpo de Abreu e Paula deArajo. As linhas centrais do projeto elaborado por essa comissoformaro a base do Ato Adicional aprovado em 1834.

    Logo aps a promulgao do Ato Adicional, Alves Branco e Limpo deAbreu, dois importantes defensores do Ato Adicional e crticos do re-gresso conservador, efetuaram crtica ao Cdigo do Processo em basessemelhantes. O Cdigo do Processo transferiu atribuies para cidadosque, apesar de seus vnculos para com a localidade, no possuam pre-paro tcnico para o desempenho das pesadas funes que lhes foramdelegadas17. As leis descentralizadas so um instrumento por meio doqual os cidados ativos se civilizam18; porm, esses mecanismos deve-riam ser aplicados apenas em regies com um determinado nvel dedesenvolvimento19. Com o Ato Adicional promulgado em 1834, a apli-cao dos mecanismos descentralizadores presentes no Cdigo do Pro-cesso passou a ser controlada pelo Legislativo provincial. Esse espritopresente no Ato Adicional foi claramente percebido por TavaresBastos. Segundo este, no bastava escrever que todos os cargos do Ju-dicirio seriam eletivos; o nvel de civilizao existente no pas no per-mitia que esse mecanismo fosse aplicado indistintamente, apenas o Le-gislativo provincial poderia decidir como e onde essa legislao pode-ria ser aplicada (ver Bastos, 1937, parte II, cap. IV:162-163; 173). A ine-xistncia de um determinado nvel de civilizao20 homogeneamentedifundido na sociedade brasileira apontava para a possibilidade deque os conflitos polticos transbordassem para alm dos limites toler-veis para a elite poltica brasileira do sculo XIX. Vejamos alguns exem-

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  • plos mencionados no debate poltico do sculo XIX dessa funo de-sempenhada pelo Legislativo provincial.

    Em 1836, a Assemblia Provincial de Pernambuco retirou as atribui-es policiais do juiz de paz, passando-as para os prefeitos e subprefei-tos nomeados pelo presidente provincial (ver Bastos, 1937:169 e Souza,1997). Em 1838, o Legislativo provincial de Alagoas atribuiu cumulati-vamente aos juzes municipais o exerccio das atribuies criminais dojuiz de paz (Bastos, 1937:169-170). A Assemblia Provincial de Alagoasdeterminou a elevao do censo para a seleo do jri e criou a figurados prefeitos, nomeados pelo presidente provincial. A concesso defianas seria uma atribuio delegada sobretudo ao juiz de direito, eno ao juiz de paz. Em 1835, a Assemblia Provincial de So Paulocriou a figura do prefeito nomeado pelo presidente de provncia. Esteficaria encarregado de fiscalizar os empregados municipais, coman-dar a Guarda Policial, prender os delinqentes e vigiar as pessoas queentrassem no municpio (ibidem:169). Ou seja, incorporava diversastarefas que cabiam ao juiz de paz.

    Gostaria de chamar a ateno do leitor para o seguinte: esse conjuntode atos dos Legislativos Provinciais somente foram desencadeados emrazo do Ato Adicional. De acordo com aqueles, as Assemblias Pro-vinciais poderiam legislar sobre os funcionrios provinciais, bem co-mo sobre a diviso civil e judiciria. Os atos do Legislativo provincialatacavam as atribuies dos cargos eleitos ou escolhidos a partir domunicpio (o juiz de paz, o jri e o promotor) em favor do juiz de direitoe dos prefeitos. Como Tavares Bastos assinalava: Conforme j adver-timos quanto polcia, o que as leis fortificavam era o juiz de direito oujuiz municipal (1937:193). Em outras palavras, o Ato Adicional reali-zava a mesma tarefa do regresso conservador, ou seja, o esvaziamentodos cargos eletivos em detrimento dos cargos nomeados. No entanto,com uma diferena fundamental e chave: quem realizava essa tarefaera o Legislativo provincial, tendo em conta os interesses provinciais, eno os motivos do poder central. Alm disso, com o Ato Adicional oscargos nomeados eram controlados pelo Legislativo provincial. O pen-samento federalista procura deslocar a primazia poltica para o Legis-lativo provincial como um meio pelo qual seriam podados os excessosdescentralizadores presentes no Cdigo do Processo. A partir dos meca-nismos presentes no Ato Adicional, os diversos legislativos provin-ciais iniciaram a reforma do Cdigo do Processo, desmobilizando a par-ticipao dos cidados ativos exercida diretamente no municpio.

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  • A bibliografia tem usualmente creditado aos conservadores, a partirdo fim dos anos 1830, a reviso da legislao descentralizadora. Essacompreenso considera o Ato Adicional um desdobramento naturaldas idias federalistas presentes no Cdigo do Processo. Em minha com-preenso, essa viso implica reforar a idia de que os federalistas notentaram conter a ecloso do Brasil profundo, pois estavam imbu-dos de um liberalismo utpico.

    Neste artigo, a perspectiva distinta: os liberais moderados recusam oencontro com as demandas das classes subalternas por terra e vo bus-car a reforma do Estado imperial por dentro; a reforma do Estado seriaa obra das elites provinciais21. A descentralizao do poder, efetuadacom o Cdigo do Processo, forou o encontro das elites locais com amassa do povo sem direitos (Werneck Vianna, 1991:158). O pensa-mento federalista, com sua idia de tornar o poder responsvel peranteos cidados, recuou diante dos efeitos inesperados dessa opinio. Aidia de mobilizar a sociedade a partir do interesse bem compreendi-do, capturar o Estado e implementar a ordem e a justia sucumbe, nopensamento federalista, preocupao para com a ameaa unidadenacional e ordem social. A reforma do Estado Imperial no ser maisuma tarefa vinda da sociedade, mas de elites alocadas no Estado.Enxergamos no Ato Adicional, e no na Lei de Interpretao (1839), oprimeiro momento desse recuo. Ocorre que o regresso federalista era,em seus instrumentos e objetivos, bastante diferente daquele que serlevado a cabo pelos centralizadores. A inteno dos federalistas com oAto Adicional era conter os conflitos armados que apareciam no Brasil.Entretanto, para os federalistas, essa tarefa de conteno deveria serconduzida pelo Legislativo provincial, e no pelo poder central, con-forme os centralizadores pensavam diferena significativa se pensar-mos no papel do interesse provincial em cada corrente de pensamento.

    Os debates acerca do Ato Adicional, que comeam em 183122, revelama emergncia da idia de que a provncia possuiria negcios particula-res23, interesses particulares24, bem particular25, necessidades provinciais26,termos que denotam a presena da idia de que a provncia possua umconjunto de assuntos distintos daqueles que eram comuns a todo oImprio. Ao formular a existncia desses interesses provinciais, o pen-samento federalista sustenta que a provncia deveria buscar a realiza-o deles sem referncia a motivos externos:

    O que embaraa que isto sejam idias federativas, se so idias de justi-a e ordem? [...] No h povo que queira estar assim apertado e oprimi-

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  • do.Todos querem que as suas provncias tenham certosmeios administrativos,certa governana que tenda a promover o bem particular da provncia, no quevai igualmente compreendido o bem geral do imprio (Lino Coutinho, sessoda Cmara dos Deputados, 17 de maio de 1831, p. 48; nfase do autor).

    Para Lino Coutinho, defensor do federalismo desde a Constituinte deLisboa, no havia problema algum em ser tachado de federalista.Observemos, inicialmente, nos termos do autor, a idia presente no tre-cho acima. Para Lino Coutinho, cada provncia deve dispor de certosmeios administrativos que lhe devem permitir buscar o bem parti-cular da provncia. Ato contnuo, Lino Coutinho conclui que, nessabusca de seu bem particular, j est presente o bem geral do Imprio; odesenvolvimento da provncia contribui para o engrandecimento doImprio. Podemos assinalar que a passagem do interesse provincialpara o bem geral do Imprio automtica. No argumento do deputa-do, no se opera nenhum outro clculo que no seja o da provncia embusca de seus objetivos. Na medida em que no existe mais um centrocomum com poderes capazes de impor uniformemente uma polticapara todo o Imprio, o pensamento federalista formula a idia de que,a partir dos interesses provinciais, poderia brotar a unidade nacional.

    Na sesso de 26 de junho de 1834, estava em discusso a emenda quepermitiria s Assemblias Provinciais fixar o nmero de seusdeputados:

    Sabe-se que existem entre certas provncias certa rivalidade, certo cime, alis,necessrios at certo ponto: esta rivalidade, este desejo de primarem umas so-bre as outras, sendo razovel, pode vir a ser um princpio de progresso, semdvida de grande vantagem para o Brasil; mas se exorbitarem de certoslimites, ns veremos que o Brasil se fracionar (Evaristo da Veiga, ses-so da Cmara dos Deputados, 26 de junho de 1834; nfase do autor).

    O deputado Evaristo da Veiga acreditava que, nas provncias mais de-senvolvidas, tal atribuio poderia pertencer s Assemblias Provin-ciais. Entretanto, nas provncias menos desenvolvidas, essa atribuiopoderia dar margem a excessos. Evaristo conclui que, em face dessadistribuio desigual do desenvolvimento, deveria caber Assem-blia Geral estipular o nmero de deputados provinciais para cadaprovncia. O que nos parece relevante assinalar que, na idia de fede-ralismo, est presente um valor que nem sequer mencionado no argu-mento centralizador: a rivalidade provincial. Evaristo da Veiga, umdefensor do Ato Adicional, discute o grau de liberdade que ser dado

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  • s provncias tendo em vista que a [...] rivalidade, este desejo de pri-marem umas sobre as outras, sendo razovel, pode vir a ser um princ-pio de progresso [...]. Na idia de federalismo, est presente uma atri-buio de valor positivo para a rivalidade provincial, a perspectiva deque a competio motiva as provncias a buscar um desenvolvimentomaior. Cada provncia vai buscar se afirmar sobre a outra, dispor debens que a outra no dispe, incitando nas demais o desejo desuperarem o patamar alcanado pela mais desenvolvida.

    Observemos que, no conceito de federao, estava presente a idia deum desenvolvimento desigual entre as provncias, e que tal conse-qncia era inevitvel. O mal de um desenvolvimento desigual era opreo a ser pago por um bem maior, o progresso advindo da competi-o. A meu ver, esse aspecto, j presente no trecho analisado, pode serreforado a partir do trecho a seguir, que se revela de grandeimportncia:

    Eu disse que as provncias devem ter toda a amplitude para se governa-rem; mas que era preciso que se afrouxassem o n, e que ficassem sujei-tas ao governo central por uma unio doce e suportvel; [...]. Eu advo-guei unicamente a causa da justia com o objeto de impedir a separa-o. Eu no vejo, contudo, que j se tocou neste ponto, que ele traga con-sigo to graves inconvenientes, nem que d lugar a verificar-se um qua-dro to triste como o que foi apresentado pelo Sr. Cunha, acontecer-lhe-iao mesmo que sucede a respeito dos indivduos, alguns dos quais so mais ricos eoutros mais pobres. Haviam de florescer as provncias mais abundantes emprodutos e ficar atrasadas aquelas que produzissem menos, as quais se veropor isso foradas a limitar suas despesas, em proporo s suas rendas, at che-garem maior prosperidade (Lino Coutinho, sesso da Cmara dosDeputados, 17 de maio de 1831, p. 49; nfase do autor).

    No argumento federalista, a rivalidade provincial possui aspectos po-sitivos. ela que estimula as provncias a buscarem o desenvolvimen-to, pois cada uma no deseja ser ultrapassada pela outra. Se, por umlado, da natureza da competio que ocorra uma distribuio desi-gual dos bens, por outro, tal distribuio estimularia a provncia me-nos desenvolvida a buscar os meios para atingir um padro mais ele-vado de desenvolvimento. A nao um espao social comum s di-versas provncias, no qual cada uma busca maximizar sua situao.Dessa competio vai emergir uma poltica nacional capaz de ligar asdiversas provncias. A idia de interesse provincial presente no concei-

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  • to de federalismo estava diretamente ligada ao papel desempenhadopelo interesse na sociedade.

    Em 14 de novembro de 1828, escrevendo em seu jornal Aurora Flumi-nense, o deputado Evaristo da Veiga discorre sobre sua viso do papelda propriedade e do interesse na sociedade:

    A propriedade dos homens a f fundamental da sociedade. Se a possesso ex-clusiva, que contm a propriedade, parece a princpio prpria para dividir oshomens, a comunicao dos bens e servios os rene e restabelece a nica comu-nicao de bens conforme o interesse da reproduo. Sem propriedade de ca-pital e lucro, no se pode conhecer seno homens selvagens, dispersos,reduzidos a uma indigncia mais espantosa. O interesse a principal cau-sa da discrdia entre os homens; [...]. O interesse um motivo necessrio paralevar o homem ao trabalho. Sem a propriedade o homem se torna um entepuramente passivo sem ao (Aurora Fluminense, 14/11/1828; nfasesdo autor).

    Podemos destacar, nesse trecho, duas idias centrais: propriedade e in-teresse. Inicialmente, vejamos a idia de propriedade. Evaristo associapropriedade possesso exclusiva de um bem, o qual o indivduo nodeseja compartilhar com outro. O deputado refora o sentido indivi-dualista, ou egosta, da propriedade por meio da associao entre pro-priedade e interesse. Da mesma forma que a posse exclusiva provoca adiviso entre os homens, o interesse causa discrdia. Segundo o Dicion-rio Moraes, em sua edio de 1823, interesse vem a ser: Proveito, utili-dade, lucro [...] cada um trata dos seus interesses. J interessar apontapara [...] lucrar. Segundo Evaristo, o sentimento de egosmo existen-te no interesse pode parecer algo negativo, pois a possesso exclusivapode parecer um meio para dividir os homens. Nesse sentido, seria apa-rentemente um vcio, ou seja, um sentimento que no traz benefcio al-gum ao indivduo e coletividade. No entanto, apenas aparentementeo egosmo um mal. Em primeiro lugar, o interesse, no argumento deEvaristo, est associado civilizao, ao progresso. Sem o interesse, ohomem se assemelha ao selvagem. esse vcio (o interesse, o egosmo, oamor-prprio) que o leva ao aperfeioamento e ao desenvolvimentomaterial. Em ltima instncia, somos levados a concluir que o apare-cimento do interesse que move a sociedade rumo ao progresso. Em se-gundo lugar, essa diviso remediada pela comunicao de bens e servi-os, que nos remete idia de mercado como um espao de troca. ParaEvaristo, esse espao de comunicao est dotado de uma lgica que,no final, institui uma paz entre os homens e sua luta pela posse

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  • exclusiva de um bem, pois da lgica dessa comunicao funcionarsegundo as necessidades de reproduo da sociedade27.

    Inicialmente, assinalamos a presena, no argumento federalista, deuma analogia entre a provncia e o indivduo natural. O pacto constitu-cional servir a seus propsitos caso permita provncia dispor de li-berdade para a manifestao de seus interesses; nos termos de FerreiraFrana analisados anteriormente, para cuidar de sua casa; e velar pelacasa implicava cuidar da segurana, justia e prosperidade. Nesse sen-tido, cada provncia cuidaria de seus interesses da mesma maneira queo indivduo vela pelos seus. A idia de interesse provincial mobilizadapelos federalistas era semelhante ao uso feito por Evaristo da Veiga.Cada provncia buscaria sua prosperidade movida por seu interesse.Cada provncia cuidaria de aperfeioar sua casa. Esse esforo movidopor seu egosmo, usando em seu proveito os benefcios gerados poresse empenho. O interesse geral nasce de um conflito entre os interes-ses. Nessa perspectiva, o interesse geral apenas uma agregao deinteresses particulares, dos quais se tira uma mdia, sem que esses emnenhum momento alterem seu carter egosta.

    Estabelecido que os interesses das provncias devam estar auto-referi-dos e que a unidade nacional/o Estado-nao nasce da soma desses in-teresses, logicamente os representantes destes, ao marcarem o grau deao do poder central, no devem permitir que este disponha de foraspara alterar sua dinmica natural. Nesse sentido, o grau de fora dopoder central deve ser necessariamente baixo.

    Na medida em que o conceito de federao ficava associado a um ar-ranjo constitucional que permitia s provncias a busca de seus interes-ses, sem que essa busca implicasse o rompimento da unidade nacional,era rechaada a idia de federao como uma reunio de Estados sobe-ranos. Em 4 de julho de 1834, Souza Martins realizava um importantediscurso na Cmara dos Deputados:

    A palavra federao pode-se depreender por verdadeira etimologia aliana,liga, unio concordo que no convm ao Brasil uma federao tal como a dosestados da Alemanha etc. Esta deve ter a oposio da maioria da cmara;mas no acho justo nivelar uma tal federao com as reformas que sevo agora estabelecer; estas reformas constitucionais nada mais soque dar algumas atribuies legislativas aos conselhos gerais sem de-pendncia do poder geral; neste sentido no merece censura a federao, nosentido de dar a certas autoridades locais certas atribuies que no podem ser

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  • exercitadas pelo governo central (sesso da Cmara dos Deputados, 4 dejulho de 1834, p. 29; nfases do autor).

    Souza Martins um deputado favorvel ao princpio federativo. En-tretanto, ele recusa, para que seja aplicado ao Brasil, um determinadosentido desse termo, o de liga, aliana e unio. Observemos que ostermos liga e aliana so utilizados por Hamilton para determinar omodelo oposto ao federalismo norte-americano. Souza Martins noconcordava que, no Brasil, fosse aplicada a idia de uma liga de Esta-dos independentes. Sua adeso ao princpio federativo se dava por ou-tros motivos. A idia de federao, para o deputado, abarcava o princ-pio de se conceder s provncias maior liberdade para gerir seus assun-tos. No caso em debate, a idia de federao implicava conceder pode-res mais abrangentes para as Assemblias Provinciais. O Legislativoprovincial no mais seria um rgo administrativo, mas sim um rgopoltico.

    O pensamento centralizador percebia alterao no conceito de federa-lismo. No se tratava mais da unio de Estados soberanos, como nomodelo confederativo: A federao que desejamos, dizem eles, no a germnica ou a helvtica ou da antiga Holanda ou da Amrica doNorte, apenas aquela que consiste em dar aos governos provinciais maioresatribuies para o expediente de negcios locais. E nisto insistem, senhores(Calmon, sesso de 1o de setembro de 1832, p. 234; nfase do autor).

    medida que se vai firmando a idia de interesse provincial, ocorre acompreenso da inovao presente na experincia norte-americana.No debate parlamentar de 1834, emerge a compreenso de que, no con-ceito de federalismo, ocorreram alteraes significativas em virtudeda Conveno de 1787. possvel afirmar que, em 1834, a idia de fede-rao no envolve mais o elemento confederativo, ou seja, a Unio lidacom seus membros como Estados soberanos aos quais ela recomendaprocedimentos. O pensamento federalista abandona a idia de que asprovncias so Estados independentes: Nos Estados Unidos h umatendncia por uniformidade de certas coisas nos diversos estados, hojemuito se fala em um cdigo para os diversos estados da Unio; eles vose aproximando centralizao quanto possvel (Paula Arajo,sesso da Cmara dos Deputados, 25 de junho de 1834, p. 173).

    Analisemos o trecho anterior tendo em vista o conceito de confedera-o presente at ento: os membros da Unio esto unidos, sobretudo,com fins de defesa, mantendo cada um suas leis prprias. Segundo

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  • Paula Arajo, comeavam a ocorrer mudanas no modelo norte-ame-ricano: a autonomia que cada membro da Unio dispunha para editarseus respectivos cdigos estava sofrendo restries. No debate polticonorte-americano, comeava-se a atribuir ao poder central a tarefa deelaborar os cdigos nacionais, uniformizando as diversas leis esta-duais (ver Kramnick, 1993). O poder central determinava os cdigosnacionais, cabendo aos poderes estaduais adequar-se a esses limitespreviamente estabelecidos. Portanto, a iniciativa poltica se invertia,cabendo agora ao poder central estabelecer os limites da ao dos Esta-dos-membros. A compreenso desse reforo do poder central, no casonorte-americano, encontra em Evaristo da Veiga outro porta-voz:

    Sigamos nossos mestres, nossos irmos mais velhos em prudncia e cir-cunspeo; os americanos do norte existiam isolados em provncias se-paradas: tentaram federar-se, e a este respeito h um abuso de palavraentre ns, que nos induz a gravssimo erro: chama-se federalista aqueleque no seno democrata, e chama-se unitrio aquele que chamado na Am-rica do Norte federalista; federalista o que quer os laos da unio, o que querque as provncias tenham em si aquilo que lhes convm para seu bem, mas queno se desliguem uma das outras. Qual foi porm a marcha que seguiramos americanos? Estados separados trataram de reunir-se, cederam uma por-o igual de seus direitos para constiturem a federao; hoje tendem a unifor-mizarem-se em suas instituies pela instituio da federao (sesso daCmara dos Deputados, 26 de junho de 1834, p. 182; nfases do autor).

    Analisemos essa passagem tendo em vista os pontos discutidos ante-riormente. Podemos assinalar que, para Evaristo da Veiga, o Estadonorte-americano formado a partir da reunio de Estados indepen-dentes. Entretanto, assinalava, essa situao j no correspondia rea-lidade naquele momento histrico. Naquela poca, nos Estados Uni-dos, o poder central estava empenhado em uniformizar as leis, refor-ando os laos comuns entre as partes. Nos Estados Unidos, federalis-tas eram aqueles que defendiam uma soma maior de poderes para opoder central. Fato novo se pensarmos que, na idia de confederao,o poder central no dispunha de atribuies para agir diretamente so-bre os cidados. Afinal, na viso dos deputados brasileiros, o queestava ocorrendo nos Estados Unidos? Vejamos um trecho de BernardoPereira de Vasconcelos:

    Na constituio dos Estados Unidos de 1778 os estados soberanos no per-mitiam ao governo geral arrecadar de indivduos a soma necessriapara as despesas da Unio; o governo orava as suas despesas econmi-

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  • cas e as provncias deviam dar a quantia necessria para fazer face a es-tas despesas, elas passavam a impor, a arrecadar e a remeter para o go-verno geral, mas o resultado foi que a maior parte das provncias se ar-rogaro o direito de investigar se o governo geral tinha feito o seu ora-mento com excesso; e disto resultou que no mandavam os meios ne-cessrios para a Unio, e esta foi a principal razo por que se convocou a con-veno geral de 1787, que reforou este artigo da constituio e determi-nou que o governo geral em todas as ocasies no contratasse com osestados como entidades coletivas, mas sim como indivduos, que pu-desse mandar recrutar, impor etc., enfim independentes de todos osatos por que se achava autorizado pela constituio (sesso da Cmarados Deputados, 1o de julho de 1834, p. 10; nfases do autor).

    O trecho de Vasconcelos extremamente importante. Pedimos ao lei-tor que observe a meno que o poltico mineiro faz Constituio nor-te-americana de 1778*, conhecida atualmente como os Artigos da Con-federao. Segundo Vasconcelos, nessa Constituio, o poder centralorava suas despesas e as provncias forneciam os recursos. Tal situa-o, segundo ele, levava o poder central a uma situao de dependn-cia das provncias, porque, caso estas no concordassem com as despe-sas, no haveria recursos disponveis para a ao da Unio. Se obser-varmos o conceito de confederao debatido at ento, notaremos o se-guinte: o governo central lida com os Estados-membros como Estadosindependentes, o que implicaria dizer que, em certos casos, o governocentral no poderia impor medidas ao Estado-membro, mas apenassugerir. Alm disso, o governo da Unio no poderia agir diretamentesobre os cidados sem a anuncia dos Estados soberanos. De acordocom Vasconcelos, o governo da Unio no tinha poderes para exigirque a provncia arcasse com a parte da despesa que lhe era devida. Emlinhas gerais, o poder central, para agir, necessitava da concordnciadas provncias. A Conveno de 1787 assinalou uma ruptura com essemodelo. A partir de ento, o poder central disporia de poderes que lhepermitiriam agir diretamente sobre os cidados sem necessitar daanuncia das provncias. Estas deixavam de ser entidades soberanaspara serem partes de um todo, do qual o poder central era o porta-voz.

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    * Segundo Kramnick (1993:8-9), os artigos da Confederao foram formulados em 1776 eaprovados pelo Congresso Continental em 1777. Em razo de o trecho citado mencionar1778, e no 1777, podemos considerar que, como se tratava da transcrio de um disurso, tal-vez tenha ocorrido um erro de reviso ou um lapso durante a fala. [N.A.]

  • Portanto, em nossa anlise do debate poltico brasileiro, podemos assi-nalar que a partir de 1834 ficava claro, para a elite poltica imperial, quenos Estados Unidos havia ocorrido um movimento que visava permi-tir ao poder central agir diretamente sobre os cidados sem lidar comas provncias, como se estas fossem Estados independentes. Nesse sen-tido, o conceito de federao ficava limpo dos elementos confederati-vos. O problema sempre espinhoso de que as reformas deveriam re-tornar s provncias para sua aprovao ou recusa, se no desapareciade todo, ficava em segundo plano; j no aparecia como um trao ne-cessrio do conceito de federao. Com isso, as correntes federalistaspassavam a centrar sua argumentao na defesa dos interesses provin-ciais. O pacto federativo era o espao no qual as diversas provnciasexplicitavam suas demandas forjadas forjadas internamente , semreferncia s restantes.

    EM DEFESA DOS INTERESSES DAS PROVNCIAS MAIS CIVILIZADAS

    Em 1837, era discutida a Lei de Interpretao do Ato Adicional, a qualimprimiu uma mudana nos rumos polticos do Imprio brasileiro.Seu contedo apontava claramente para um reforo do poder centralem detrimento do Legislativo provincial. A Lei de Interpretao doAto Adicional era formada por seis artigos. O primeiro e o segundo fo-ram os mais debatidos no Senado e na Cmara. O art. 1o estabelecia quea palavra polcia, presente no art. 10o do Ato Adicional, somente diziarespeito polcia administrativa e no judiciria, enquanto o art. 2o

    estabelecia que a Assemblia Provincial somente poderia alterar o n-mero dos empregos criados por lei geral. Dessa maneira, a AssembliaProvincial ficava impedida de alterar a natureza e as atribuies dessesempregos.

    A iniciativa dos centralizadores trazia as seguintes conseqncias: emprimeiro lugar, com o art. 2o, ficava vetado s Assemblias Provinciaisalterarem as atribuies dos cargos. Nos termos do debate poltico dapoca, com a Lei de Interpretao, as Assemblias Provinciais no po-deriam adequar as leis nacionais s necessidades das provncias. Se-gundo os federalistas, as leis nacionais deveriam ser adaptadas aosfins e meios estabelecidos pela Assemblia Provincial, o rgo maisprximo realidade provincial. Em segundo lugar, com o art. 1o, dis-tinguia-se a polcia administrativa da polcia judiciria, sendo esta su-bordinada ao poder central28. A polcia judiciria ficava inteiramentesubordinada ao poder central. Conforme os adversrios da Lei de

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  • Interpretao costumavam repetir, o ministro da Justia controlava danomeao do presidente de relao at o carcereiro.

    As correntes federalistas criticaram o contedo centralizador da lei,contrrio aos interesses provinciais. Segundo o senador Alencar, atransferncia de atribuies para a Assemblia Geral no seria apro-priada, pois esta estaria mais ocupada com o todo da nao sem capa-cidade para os negcios peculiares das provncias (sesso do Senado,29 de julho de 1839). O rgo encarregado de cuidar dos negcios pecu-liares das provncias deveria ser o Legislativo provincial. Vejamos o ar-gumento do ex-ministro da Justia e regente e, naquele momento,senador, Diogo Antnio Feij:

    Na verdade, j se mostrou que a polcia interna essencial a toda corpo-rao, desde a famlia at a associao geral, que dela depende a exis-tncia e a conservao da mesma sociedade; sendo isto assim, como que,podendo o chefe de famlia regular a sua economia domstica, o municpio a suaeconomia municipal, o mestre a economia de sua aula, na qual regula o servioe os castigos correcionais etc., as cmaras legislativas da mesma sorte, comoento se quer negar este direito s provncias? (sesso do Senado, 26 dejulho de 1839, p. 371; nfase do autor).

    Segundo Feij, o cidado ativo, para o bom funcionamento da casa,deve controlar a economia domstica. De acordo com o Dicionrio Mo-raes (1844), economia significava: O regime ou governo dos bensou da casa de cada um. Economia poltica: cincia que ensina a conhe-cer as riquezas naturais e industriais de um pas e os modos de aprovei-tar e acrescentar. Da mesma maneira, para o bom funcionamento edesenvolvimento da provncia, o Legislativo provincial deveria con-trolar a polcia judiciria.

    O argumento de Feij, ao mobilizar a idia do controle sobre a econo-mia domstica, confere uma dimenso extremamente ampla discus-so acerca da polcia judiciria. Desse modo, manifesta-se, em seu ar-gumento, um dos traos fundamentais do conceito de federalismo: aidia de que a provncia deve lidar com seus assuntos da mesma formaque o cidado ativo lida com a casa (ver Mattos, 1994). A justificativapara a liberdade provincial busca sua lgica na esfera privada e, maisespecificamente, em uma determinada idia de indivduo. O cidadoativo que melhor controla os recursos de sua casa obtm, na competi-o entre os demais, uma posio mais vantajosa. A provncia, ou me-lhor, o Legislativo provincial, eleito pelos cidados ativos, regula a po-

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  • lcia judiciria tendo em vista a melhor maneira de aproveitar os recur-sos naturais e sociais da provncia. Nesse sentido, o federalismo umarranjo poltico que permite s provncias a busca da melhor forma deaproveitar seus recursos sociais e naturais, de tal modo que, na compe-tio entre as demais unidades da federao, a localidade consigapredominar. A organizao retira sua lgica do cidado ativo e dacompetio entre esses cidados.

    O argumento centralizador apontava para os conflitos de interpreta-o desencadeados a partir da promulgao do Ato Adicional. Segun-do Paulino Jos Soares de Souza, deputado geral e ex-presidente daprovncia do Rio de Janeiro, a permisso para que a Assemblia Pro-vincial Legislasse sobre a criao e a supresso de empregos provin-ciais teria gerado leis provinciais que alteraram atribuies estabeleci-das por leis nacionais. Como Paulino escreveu no Ensaio, AssembliaGeral competia fazer os cdigos civil, de processos etc.; s assembliasprovinciais, criar os empregos necessrios e marcar-lhes a atribuiocomo se fosse possvel separar uma coisa da outra (ver Souza, 1997:373).

    O pensamento federalista reconhecia esses conflitos, mas apontavapara um aspecto positivo contido no Ato Adicional. Vejamos a defesaque Tefilo Ottoni realiza do Ato Adicional:

    Apontar-se-h um outro exemplo de leis provinciais absurdas; mas soesses casos excees de regra geral; e absurdos, leis mancas tambmtm sado desta casa, tm sido sancionadas pelo poder moderador, emuitas vezes no ano seguinte ns vemos na necessidade de refor-m-las. Talvez que pudesse apresentar como prova o que os nobres de-putados dizem a respeito do cdigo do processo; no o fao, porm,porque tambm creio que com ele no tem aparecido esses males que setm apregoado; pelo menos no os vejo na provncia donde sou filho, maspeo licena cmara para poder dizer que talvez nasa isso de ser a provnciade Minas uma das mais ilustradas, sem querer deslustrar as 17 co-irms. EmMinas posso assegurar que a administrao de justia tem melhoradocom os cdigos: citarei para exemplo os crimes contra a propriedade,avultavam muito mais do que atualmente. Em alguns municpios temsucedido muitas vezes, havendo neles autoridades ativas que nem ums processo se apresenta para se submeter considerao dos jurados:as coisas tm melhorado, e por conseguinte temos progredido. Ora, oque sucede em Minas talvez suceda na Bahia e em muitas outras importantesprovncias que esto em circunstncias de exercer todos os direitos que o AtoAdicional confere.

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  • Sr. Presidente, se h uma provncia em que os jurados no podem ainda ter lu-gar; e noutra em vez de guardas nacionais mais quadram as antigasmilcias nomaior nmero e nas mais importantes; a civilizao tem feito muitos progres-sos, e no acho justo que a maioria sofra quebra de prerrogativas, porque umaminoria insignificante pode abusar, ou no tirar vantagens que elas concedem(sesso da Cmara dos Deputados, 12 de junho de 1839, p. 383; nfasesdo autor).

    Inicialmente, observemos a referncia promulgao de leis provinciaisabsurdas. Esse era um dos pontos mais mencionados pelos defensoresda Lei de Interpretao. Segundo Paulino Jos Soares de Souza, em al-gumas provncias, o Legislativo provincial extinguiu cargos previstosno Cdigo do Processo transferindo suas atribuies para outros cargos,ou simplesmente suprimindo o cargo, mas sem definir que cargos her-dariam suas tarefas. Tefilo Ottoni reconhecia que tais exemplos esta-vam ocorrendo, mas destacava que o Legislativo geral ocasionalmenteaprovava leis para posteriormente reform-las. Em sntese, no Legisla-tivo geral, tambm eram produzidas leis absurdas. Em seguida, Tefi-lo Ottoni argumentava que, em Minas Gerais, desde a promulgao doAto Adicional a administrao da Justia havia melhorado. O polticomineiro no mencionava que a produo legislativa provincial de Mi-nas fosse caracterizada por leis incompatveis com as leis nacionais.Segundo ele, o motivo pelo qual isso se dava residia no fato de Minasser uma das provncias mais ilustradas. Um pouco mais adiante, seu ar-gumento indicava que o progressivo desenvolvimento da civilizaonoBrasil contribuiria para que cada vez um nmero menor de leis absur-das fossem promulgadas. Estabelecendo essas premissas, Ottoni con-clui que a supresso do Ato Adicional no poderia ser realizada por-que, nas provncias mais civilizadas, no eram encontrados motivossuficientes para cancelar a descentralizao.

    Podemos formular a seguinte pergunta: ser que Ottoni imaginavaque a maior parte das provncias no Brasil possua o mesmo nvel de ci-vilizao presente em Minas Gerais e na Bahia? Podemos afirmar que odeputado eleito pela provncia de Minas no considerava que a difu-so da civilizao na sociedade brasileira fosse homognea. A imagemmais comum no pensamento poltico brasileiro, seja nos centralizado-res, seja nos federalistas, foi a de uma sociedade com ilhas de civiliza-o cercadas por um vasto serto. Mesmo nas provncias mais ricas, apresena da civilizao estava restrita s cidades mais populosas. Ouso que Ottoni faz do termo maioria para se referir s provncias que

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  • no deveriam sofrer com a quebra da descentralizao prevista no Atonos parece mais um recurso parlamentar para angariar apoio do queum julgamento acerca da sociedade brasileira.

    Portanto, podemos formular a seguinte concluso: no argumento deOttoni, no havia motivos que levassem ao cancelamento do Ato Adi-cional. Tal posio decorria do lugar de onde Ottoni analisava o funcio-namento do Ato Adicional, ou seja, de uma das provncias mais civili-zadas. Em nenhum momento de seu argumento, introduzida a idiade que o Ato Adicional deveria ser mantido tendo em vista todo oImprio, formado por partes heterogneas, por provncias marcadaspela civilizao ou pela barbrie. Em resumo, Ottoni pensava o arranjopoltico que costurava o pacto entre as diversas partes que compu-nham a Unio com base nas provncias mais civilizadas e seus in-teresses.

    Amesma perspectiva estava presente em Tavares Bastos, em sua crticas leis centralizadoras e na defesa do Ato Adicional:

    No hesitamos em condenar a organizao policial e judiciria da lei de3 de dezembro; mas tambm no reputamos to elevada superfcie de nossacivilizao, que a todo o pas se possa aplicar o princpio da polcia eletiva. Se,por um lado, fora inconveniente estender este belo princpio s solides doAmazonas e s florestas de Gois eMato Grosso, , por outro lado, injustssimoprivar do gozo dessa liberdade as provncias superiores em civilizao. Porisso condenamos a uniformidade nas instituies secundrias do go-verno dos povos (1937:173; nfase do autor).

    Observemos o incio do trecho. Nele, Tavares Bastos criticava o meca-nismo descentralizador presente no Cdigo do Processo: tornar elegvela partir do municpio os principais cargos do aparelho Judicirio. Omotivo pelo qual Tavares Bastos criticava esse fato residia na difusodesigual da civilizao no Brasil. Sendo um pas heterogneo, as pre-condies civilizatrias para que esse mecanismo fosse aplicado noestavam homogeneamente espalhadas pelo territrio brasileiro. Coma descentralizao prevista no Cdigo do Processo, eclodiram diversasrevoltas que mobilizaram os setores subalternos da sociedade. Nestes,a fora do interesse era fraca em virtude de sua insero marginal nasociedade brasileira. Entretanto, devemos assinalar o seguinte: essaidia, a difuso desigual da civilizao na sociedade brasileira, utili-zada tambm para efetuar a crtica ao mecanismo centralizador a leide 3 de dezembro. Da mesma maneira que os federalistas aplicaram in-

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  • distintamente o princpio descentralizador em todo o pas, os centrali-zadores efetuaram esse mesmo molde; aplicaram uniformemente aconcentrao de atribuies nas mos do poder central.

    Em seguida, o argumento de Tavares Bastos opera uma passagem deci-siva. A centralizao aplicou uniformemente um princpio sacrifican-do as provncias mais civilizadas. Em sua perspectiva, est presente aidia de que os interesses das provncias mais civilizadas no podemser prejudicados pela necessidade de coeso entre as diversas partesque compem o Imprio brasileiro. Para Tavares Bastos, onde for pos-svel que o interesse fecunde a sociedade sem levantar a ameaa das re-belies, a descentralizao deve ser adotada; porm, nas regies nasquais esse interesse for ameaado, a descentralizao deve ser contida.O instrumento mais capaz para realizar esse clculo vem a ser o Legis-lativo provincial. Isso porque o guia de sua ao no sero os interessesvagos e vazios do todo, da nao, mas sim os interesses provinciais. Asprovncias mais civilizadas no deveriam perder a liberdade previstano Ato Adicional de controlar a polcia judiciria porque outras, me-nos civilizadas, haviam abusado dessa prerrogativa. Ou seja, no argu-mento de Ottoni, as provncias mais civilizadas no deveriam abrirmo da descentralizao em favor das provncias menos civilizadas.

    Devemos deslocar para dentro do argumento de Ottoni e de TavaresBastos o conceito de federalismo a fim de precisarmos seu sentido pol-tico. O conceito de federalismo envolve a idia de que a provncia pos-sui interesses que lhe dizem respeito exclusivamente. O pacto federa-tivo deve conceder liberdade s provncias para marcar os fins e osmeios a serem atingidos. No conceito de federalismo, essa liberdade fundamental, pois ela que assegura que esse interesse provincial semanifeste plenamente. O poder central no deve, para os federalistas,introduzir valores estranhos provncia. A prosperidade comum, se-gundo os federalistas, nasce da busca de cada provncia em satisfazersuas polticas. Nesse sentido, para Ottoni e Tavares Bastos, as provn-cias mais civilizadas no devem restringir sua liberdade provincial emnome de valores que dizem respeito a uma realidade estranha a seusinteresses. Em seu argumento, as provncias menos desenvolvidas de-sempenham o mesmo papel descrito por Lino Coutinho anteriormen-te: da mesma maneira que alguns indivduos no so bem-sucedidosna realizao de seus interesses, o pacto federativo deve permitir queas provncias mais capazes se imponham. Um dos valores que reagemao arranjo descentralizador a competio, bem como sua inevitvel

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    Ivo Coser

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  • desigualdade. Nesse sentido, considero que a compreenso do debateentre centralizadores e federalistas no sculo XIX no Brasil passa, ne-cessariamente, pela compreenso do conceito de interesse provincial eda maneira pela qual essas correntes avaliaram esse conceito.

    CONCLUSO

    Neste artigo, busquei identificar o contedo da idia de interesse pro-vincial e como este interage com a idia da formao do Estado-naoentre centralizadores e federalistas. Assinalar o vnculo entre o interes-se de grupos sociais e de provncias no debate entre centralizadores efederalistas um elemento de grande importncia29. O que falta conhe-cer como cada corrente poltica avaliou o papel desses interesses naconstruo do Estado-nao.

    No caminho percorrido, podemos assinalar que, para os federalistas, a partir dos interesses, caracterstica do cidado ativo, e de sua dinmi-ca que o Estado-nao deve ser montado. Esse cidado ativo se encon-tra mais presente nas provncias mais civilizadas. Nesse sentido, o pac-to federativo deve partir das provncias mais civilizadas para o centro.O movimento dos atores polticos que mais tarde vo se opor polti-ca centralizadora caminhava no sentido de adequar a descentraliza-o s regies mais civilizadas. Esse movimento poltico objetivo,como assinalava Alves Branco em seu relatrio de ministro da Justia,era fazer recuar esses chefes polticos turbulentos. Como faz-lo?

    Acorrente federalista operou com o Ato Adicional uma redefinio po-liticamente significativa na idia de federalismo. O debate poltico emtorno do Cdigo do Processo apresentou a idia de federalismo comouma poltica que deveria descentralizar o poder, colocando-o maisprximo ao cidado. O Estado colonial era visto como uma mquinapoltica estranha ao cidado ativo. Nesse sentido, descentralizar o po-der envolvia despertar o cidado para a importncia de sua participa-o nos assuntos pblicos de tal maneira que seus interesses fossemcombinados com o bem pblico.

    Com o Ato Adicional, essa dimenso posta em segundo plano. Paraos federalistas, a emergncia dos conflitos armados, com sua inevit-vel malta turbulenta, a partir da promulgao do Cdigo do Processo, exi-ge uma redefinio da idia de federalismo. O ator principal do federa-lismo no ser mais o cidado ativo, localizado nos municpios, mas o

    O Conceito de Federalismo e a Idia de Interesse no Brasil do Sculo XIX

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  • Legislativo provincial. As elites polticas situadas no Legislativo vocomandar a disseminao do poder pela sociedade.

    A ao desse Legislativo provincial apontou para a direo do esvazia-mento das figuras centrais do Cdigo do Processo: o juiz de paz e o jri.As atribuies destes so esvaziadas em favor do juiz de direito, quecom o Ato Adicional passa a ser controlado por esse Legislativo. A pr-pria Cmara Municipal passa a ser controlada pelo Legislativo provin-cial, com a criao da figura do prefeito. Se pensarmos que essa ao deesvaziamento no era coordenada, podemos supor, a partir de seu sen-tido inicial, que atingiria os demais cargos escolhidos no municpio opromotor e o juiz municipal.

    Ao mesmo tempo que os liberais moderados operavam essa redefini-o do conceito de federalismo, outro movimento intelectual era reali-zado: a idia de federao era apresentada de maneira distinta da idiade confederao. No comeo da dcada de 1830, as inovaes operadasno contexto poltico norte-americano eram percebidas no debate pol-tico brasileiro. O conceito de federalismo no envolvia a noo de queos Estados-membros do pacto fossem soberanos. Em contrapartida,emerge como aspecto central a idia de que as provncias possuam ne-gcios particulares, interesses, necessidades provinciais. Para que tais as-suntos fossem atendidos, era necessrio que o Legislativo provincialfosse o rgo encarregado de adaptar as leis nacionais realidade lo-cal. Na formulao dessa perspectiva, a corrente federalista mobiliza-va a idia de interesse: as provncias tal como o cidado ativo no con-trole da casa velava por seus interesses de tal maneira que estes eramforjados internamente, sem referncia ao interesse da nao. Esse era oresultado do conflito entre os vrios interesses provinciais. O conflitodeveria ocorrer dentro de limites pacficos, mas era essa dinmicaconflituosa que impulsionava o desenvolvimento nacional e impedia apossibilidade de arbtrio do poder central.

    Busquei destacar que as correntes federalistas favorveis ao Ato Adi-cional empreenderam uma resistncia s leis centralizadoras com basenas idias acima delineadas. O pensamento federalista reconhecia queo Ato Adicional havia permitido certas leis absurdas; algumas das me-didas tomadas por legislativos provinciais