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Sessão temática Sensibilidade - 750 MUSEU DE ARTE LEOPOLDO GOTUZZO: ASPECTOS DE SUA GÊNESE E RELEVÂNCIA SOCIAL PARA CIDADE DE PELOTAS Raquel Santos Schwonke 1 Resumo Este trabalho consiste em uma pesquisa histórica a respeito do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, situado na cidade de Pelotas RS. Com foco na gênese da Instituição e na notoriedade do artista que lhe confere o nome, busca-se elucidar a relevância social do Museu e do artista em questão. Com base no referencial teórico da História Cultural, emprega-se o método da pesquisa documental na abordagem dos arquivos da Instituição, tais como fotografias, obras de arte, álbum do artista, entrevista realizada pela pesquisadora. Como resultados, podem-se elencar os fatores que contribuíram para o surgimento do Museu, as relações estabelecidas entre memória e sociedade, a evidência de ações individuais e sociais, as relações entre arte e sociedade, a recepção da sociedade local ao artista. Palavras-chave: Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Leopoldo Gotuzzo, Instituição de Arte, memória. Considerações iniciais O presente trabalho tem como objetivo apresentar a pesquisa em fase inicial de desenvolvimento no Curso de Doutorado em Educação da FAE/UFPel, na Linha de Pesquisa Filosofia e História da Educação. Trata-se de uma pesquisa histórica a respeito do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG), Instituição de Arte ligada ao Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (CA-UFPel). O foco da investigação é a gênese da instituição e a notoriedade do pintor Leopoldo Gotuzzo, que dá nome ao local. Nesse sentido, não se busca narrar ahistória da Instituição, mas sim umahistória da Instituição, feita em um determinado momento por um olhar específico. A investigação busca elucidar não apenas a relevância social do Museu para o ensino da 1 Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Educação (FaE) - UFPel. E-mail: [email protected]

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Sessão temática Sensibilidade - 750

MUSEU DE ARTE LEOPOLDO GOTUZZO: ASPECTOS DE SUA

GÊNESE E RELEVÂNCIA SOCIAL PARA CIDADE DE PELOTAS

Raquel Santos Schwonke1

Resumo

Este trabalho consiste em uma pesquisa histórica a respeito do Museu de Arte

Leopoldo Gotuzzo, situado na cidade de Pelotas – RS. Com foco na gênese da

Instituição e na notoriedade do artista que lhe confere o nome, busca-se elucidar a

relevância social do Museu e do artista em questão. Com base no referencial teórico da

História Cultural, emprega-se o método da pesquisa documental na abordagem dos

arquivos da Instituição, tais como fotografias, obras de arte, álbum do artista, entrevista

realizada pela pesquisadora. Como resultados, podem-se elencar os fatores que

contribuíram para o surgimento do Museu, as relações estabelecidas entre memória e

sociedade, a evidência de ações individuais e sociais, as relações entre arte e sociedade,

a recepção da sociedade local ao artista.

Palavras-chave: Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Leopoldo Gotuzzo, Instituição de

Arte, memória.

Considerações iniciais

O presente trabalho tem como objetivo apresentar a pesquisa em fase inicial de

desenvolvimento no Curso de Doutorado em Educação da FAE/UFPel, na Linha de

Pesquisa Filosofia e História da Educação. Trata-se de uma pesquisa histórica a respeito

do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG), Instituição de Arte ligada ao Centro de

Artes da Universidade Federal de Pelotas (CA-UFPel). O foco da investigação é a

gênese da instituição e a notoriedade do pintor Leopoldo Gotuzzo, que dá nome ao

local. Nesse sentido, não se busca narrar “a” história da Instituição, mas sim “uma”

história da Instituição, feita em um determinado momento por um olhar específico. A

investigação busca elucidar não apenas a relevância social do Museu para o ensino da

1 Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação

(PPGE) da Faculdade de Educação (FaE) - UFPel. E-mail: [email protected]

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arte na cidade de Pelotas, mas também o reconhecimento do artista pela comunidade em

geral. Investigam-se e analisam-se as condições que proporcionaram o surgimento da

Instituição e também a figura expoente do artista Leopoldo Gotuzzo e sua trajetória,

apostando na reinterpretação dos elementos que contribuem para a construção

identitária do Museu.

As questões norteadoras da pesquisa são: Qual o contexto econômico,

sociocultural e político da época em que o MALG foi fundado? Quem fundou o Museu?

Por quê? Para quem? Qual era a proposta da Instituição? Para isso, faz-se um

levantamento anterior a 1986, ano de surgimento do Museu, chegando à Escola de Belas

Artes (EBA), no ano de 1949, ano em que se inicia uma pinacoteca para abrigar os

quadros do artista com a intenção de um futuro museu, além de alojar tantas outras

doações de alunos e da comunidade. Investiga-se também a participação da

Universidade e de gestores que colaboraram para a criação do Museu.

O trabalho emprega o método da pesquisa documental, sendo utilizados

principalmente os arquivos da instituição, a saber: ofícios, fotografias, obras de arte,

álbum do artista e entrevista realizada pela pesquisadora. Estes achados de pesquisa são

abordados de acordo com o referencial teórico da História Cultural ou Nova História

Cultural2. Pesavento (2005, p.15) aborda essa nova maneira de fazer história: “Se a

História Cultural é chamada Nova História Cultural, é porque está dando a ver uma

nova forma de a História trabalhar a cultura”. Pensando a cultura como significados

partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo, para a autora:

A cultura é uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de

forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às

coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portanto,

já com um significado e uma apreciação valorativa. (PESAVENTO, 2005, p.

15)

O Museu de Arte de Pelotas

A história do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG) inicia no ano de 1986,

quando é inaugurado como um setor do então Instituto de Letras e Artes, atual Centro

2 A expressão Nova História Cultural é usada para lembrar que antes teria havido uma velha, tradicional,

mais antiga – História Cultural. Foram deixadas para trás concepções que opunham a cultura erudita à

cultura popular. Para maiores informações, ver Pesavento (2005).

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de Artes (CA) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A Figura a seguir retrata a

solenidade de abertura da Instituição.

Figura 01 – Nota de divulgação. Solenidade de Abertura do Museu, Profa. Luciana Reis, Reitor da UFPel,

Pró-Reitor de Extensão e convidados especiais. Fonte: Jornal Diário da Manhã, de 08 de novembro de

1986.

Inicialmente, o Museu funcionou juntamente com a Editora e Gráfica da UFPel,

em um prédio no centro da cidade de Pelotas3, ocupando o andar térreo e o porão da

casa.

3 Inaugurado em 07 de novembro de 1986.

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Figura 02 – Fotografia do prédio que foi alugado para o Museu em 1986, situado à Rua Marechal

Deodoro, 673. Este foi o primeiro prédio do MALG, ficando ali até 1992. Arquivo Acervo do MALG.

Conforme já mencionado, o nome do Museu origina-se do artista que doou parte

de sua obra e que constitui a coleção fundadora do Museu. O artista já não residia em

Pelotas desde 1920, quando se transferiu definitivamente para a cidade do Rio de

Janeiro. Na sua cidade natal, aceitava-se a sua notoriedade em face dos expressivos

sucessos na sua carreira, especialmente considerando de onde partiu. Como forma de

reconhecimento de sua autoridade artística, a Escola de Belas Artes (EBA)4, fundada no

ano de 1949, através de sua Diretora, Professora Marina de Moraes Pires5, confere-lhe o

grau de patrono. É importante salientar que a EBA, durante seus 23 anos (1949-1973),

desempenhou papel fundamental na vida cultural da comunidade, formando artistas e

promovendo o interesse pelas artes visuais. Inclusive, foi pela agregação da EBA a

outras unidades de ensino superior que se fundou a UFPel, em 1969. Por essa soma de

acontecimentos, explica-se a proposta e a motivação dos envolvidos para a formação do

MALG. Porém, mesmo na sua origem, o Museu contou com a coleção da EBA.

O MALG nasceu, definiu-se e mantém-se na tipologia de um Museu de Arte e,

por conta do percurso traçado nos 27 anos, estabeleceu como meta o atendimento à

4 Sobre a Escola de Belas Artes, ver: MAGALHÃES, Clarice Rego. A Escola de Belas Artes de Pelotas:

da Fundação à Federalização (1949/1972) – uma contribuição para a História da Educação em Pelotas.

Pelotas:PPGE/UFPel. Dissertação de Mestrado, 2008. 5 Marina de Moraes Pires foi a única Diretora da EBA. Como era amiga de Gotuzzo, convidou-o para

ministrar aulas de pintura na Escola, mas Gotuzzo não aceitou. A esse respeito, é possível ler mais em

Magalhães (2008).

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produção em Arte na contemporaneidade. Entretanto, sua identidade é fortemente

marcada pela produção do patrono. Segundo Werle (2002, p. 5), para se empreender a

narrativa histórica de uma instituição educacional, deve-se considerar que uma

instituição é transpassada e constituída por relações de poder, o qual está vinculado à

figura de uma pessoa principal que, nos primórdios da instalação da instituição,

contribuiu para criá-la, e a quem herda, para interpretar o ideário e as necessidades

institucionais:

Fazer história institucional exige revisitar o projeto primitivo, a posição do

fundador, aquele que lhe deu paternidade, retomar as formas de organização

jurídica e material. A abordagem da dimensão institucional poderá evidenciar

o conflito entre o instituído e os processos de institucionalização, os

momentos, fases ou períodos em que a instituição tendeu a tornar-se um

artefato, com funcionamento independente, destacando-se das propostas

fundadoras. O jogo entre o instituído e o instituinte, a totalidade em

organização, os processos de estruturação e não apenas o estruturado, esses,

os desafios a enfrentar no empenho de compor narrativas referentes à história

das instituições escolares. (WERLE, 2002, p.5)

De acordo com a Chefe da instituição, professora Luciana Araujo Renck Reis6, o

Museu surge com a filosofia de “recuperar a memória artística, registrar o presente e

educar para o futuro”. Em 1990, Reis fez um apanhado dos seus quatro primeiros anos

na administração, afirmando que “o Museu conquistou importante espaço junto à

comunidade, obteve credibilidade e, com isso, recebeu muitas doações de bons artistas

modernos de Pelotas e Rio Grande do Sul”, o que possibilitou a formação gradual de

um novo acervo – contemporâneo.7

Além disso, cumpre ressaltar que a inserção do museu na sociedade pelotense

deu-se em condições favoráveis. A cidade de Pelotas viveu um período de opulência, no

qual a educação e a cultura eram bastante apreciadas. Conhecida como a “Princesa do

Sul”8, a cidade tinha a EBA, o artista Leopoldo Gotuzzo, a valorização da cultura, uma

coleção, um acervo e, para fechar a trama da gênese do Museu, a figura ímpar da

professora Luciana, amiga de Gotuzzo, que fez a promessa ao pintor de fundar um

museu para guardar suas obras. Com esforço, dedicação e competência a professora

6 Professora do Instituto de Letras e Artes da UFPel. 1ª. Chefe do MALG.

7 Documento MEC – UFPel/ Pró-Reitoria de extensão. Depto. Atividades Artísticas e Culturais/ MALG.

Sem data, 1990. Acervo do MALG. 8 Para maiores informações sobre opulência e cultura na cidade de Pelotas, ver: Magalhães (2003).

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consegue sensibilizar as instâncias da UFPel e obtém um prédio para as instalações do

MALG.

O artista

Leopoldo Gotuzzo nasce em Pelotas, 1887, e morre no Rio de Janeiro, 1983,

filho do italiano Caetano Gotuzzo e da pelotense Leopoldina Netto Gotuzzo. Seu pai era

proprietário do Hotel Aliança, situado na Rua 15 de novembro, no centro da cidade – o

único do país com água encanada e serviço telefônico nos quartos. Gotuzzo, desde cedo,

mostrou o seu lado artístico e desenhava os hospedes do hall do hotel.

Figura 3 – Fotografia de Leopoldo Gotuzzo. Fonte: Acervo do MALG.

Gotuzzo inicia-se na pintura com Frederico Trebbi, artista italiano radicado no

município e, aconselhado por ele, segue em 1909 para a Europa estudar arte.

Primeiramente estuda em Roma (por quase cinco anos), depois Madri (1915), Paris

(1917) e, em 1918, volta para o Brasil. Nesse período, participa de salões nacionais e

internacionais, recebendo diversas medalhas de bronze e prata por seus trabalhos. No

ano de 1927, decide retornar à Europa, fixando residência em Portugal. Durante todo o

tempo, nas idas e vindas, ficava entre o Rio de Janeiro e Pelotas, onde tinha muitos

amigos e vendia suas obras. Manteve sempre viva a amizade com os amigos na sua terra

natal e em especial com Marina de Moraes Pires, fundadora da EBA (1949-1973), para

a qual faz sua primeira doação.

Em 1955, deixou um segundo conjunto de obras, que deveriam ser entregues

após sua morte. Em carta escrita pelo artista à Marina de Moraes Pires, Gotuzzo

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manifesta o desejo de ver criado um museu que acolhesse sua produção artística e que

tivesse seu nome: “É meu desejo que quando a Escola de Bellas Artes tiver local

adequado e meios para manter, se instale aí uma pequena coleção Gotuzzo, com alguns

quadros que possam caracterizar meu modesto trabalho”. No mesmo ano, na EBA, cria-

se o Salão Leopoldo Gotuzzo para abrigar e expor as obras doadas pelo artista.

Em outro trecho, o artista manifesta o desejo que seu trabalho seja conservado

para o futuro:

Apesar da boa vontade e da expontaneidade com que fiz a doação, confesso

que muita cóusa tenho sentido na separação destes quadros que representam

tanto estudo, tanta luta, tanta duvida e... a mocidade “Che non torna piú”. É

também pouco cá de casa que se vae: muitos delles lhe cobriam as paredes e

são um pouco gente nossa. Alguns representam as primeiras recompensas

que dei a o esforço e à separação de meus Paes e meus irmãos, e também o

seu orgulho, a medida que, ainda no estrangeiro, ia ganhando as primeiras

premiações officiaes. Mas em tudo isso há também a grande satisfação de vêr

que o resultado do esforço de meus Paes, das dúvidas, da mocidade volta

para o ponto de partida do rapazola, que sahiu cheio de esperança, mas ao

mesmo tempo preocupado com o compromisso que assumia. Nossa Escola,

passados tantos anos, também assume um compromisso, o cuidado e a

conservação dessas telas que quanto mais durarem mais tempo dirão que um

filho de Pelotas lhe deu o que tinha de melhor. Receba, nossa cara Directora,

com todos da Escola, meus cordeaes cumprimentos e os melhores votos de

felicidade. Saudades do Gotuzzo. (Carta de Leopoldo Gotuzzo, 1955. Acervo

do MALG).

Diante disso, verificamos que a necessidade de memória de Gotuzzo revela-se

como uma permanência à vida na terra, de ligação a algo no passado para o futuro,

garantindo assim a sua eternidade. Em outra carta, o artista comunica que despachara

algumas obras pela Varig do Rio de Janeiro para Pelotas:

Digo, recapitulando, que entregarei à “Varig” amanhã, dezesseis quadros,

expressando diversos períodos de minha carreira artística. [...] Nossa Escola,

passados tantos anos, também assume um compromisso, o cuidado e a

conservação dessas telas que quanto mais durarem mais tempo dirão que um

filho de Pelotas lhe deu o que tinha de melhor. (Carta de Leopoldo Gotuzzo,

31/05/1955. Acervo do MALG).

Um mês após a morte do artista, em maio de 1983, a então Diretora do Instituto

de Letras e Artes (ILA)9, portando procuração

10 assinada pelo Reitor

11, vai ao Rio de

9 Professora Carmen Lucia Matznauwer Hernandorena, Diretora do ILA.

10 Mec-UFPel – Gabinete do Reitor – Procuração 30 de maio de 1983. Acervo do MALG.

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Janeiro com o fim de receber, em nome do outorgante, o acervo artístico doado pelo

pintor Leopoldo Gotuzzo à Escola de Belas Artes Dona Carmen Trápaga Simões. É

importante destacar que a doação de Gotuzzo foi para a Escola, Instituição de Ensino de

Arte da qual Gotuzzo era o Patrono e com a qual tinha profundas ligações desde a sua

fundação. Porém, pelo fato de a EBA ter sido absorvida pela UFPel em 1973, a doação

resultou em favor do ILA, departamento originário da antiga Escola. Em 14 de junho, a

professora Carmen Hernandorena recebe todo o acervo artístico doado pelo pintor,

juntamente com a lista das obras com os dados técnicos, elaborada por Elsamaria

Loureiro de Souza, especialista contratada para tal fim. Com tais obras, foi

constituída uma significativa Coleção do artista.

4

Figura 4 – Momento da doação da Obra a Espanhola à Escola de Belas Artes - com: Marina de Moraes

Pires, Leopoldo Gotuzzo, Aldo Locatelli e Heráclito Brusque, figura da elite pelotense. Fonte: Fototeca

Memória da Universidade Federal de Pelotas.

Gotuzzo teve uma vida longa e uma produção muito vasta. Conforme Tavares

(2006), Leopoldo Gotuzzo foi e ainda é um artista exponencial para a Arte no Rio

Grande do Sul.

As fontes documentais e a memória

11

Ruy Barbedo Antunes – Reitor da UFPel.

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Para a constituição deste trabalho, o primeiro passo foi procurar o que já havia

sido escrito e publicado sobre a Instituição12

e o artista13

, bem como o que existia de

fontes documentais. Cabe salientar que nenhum dos trabalhos encontrados até o

momento analisava a Instituição em si. Quanto às fontes documentais, pode-se dizer que

o Museu tem preservado rico material de pesquisa, documentos de grande importância

para a memória da instituição, tais como recortes de jornais, convites, cartas, cópias de

documentos oficiais, fotografias, álbum do patrono, todos à espera de serem

pesquisados.

O método empregado consiste-se na pesquisa documental, sendo utilizados

principalmente os arquivos encontrados na Instituição. Com as fontes documentais

relacionam-se os referenciais teóricos que apontam para as questões de memória e

patrimônio, reconhecendo a forte participação de Gotuzzo. As fontes escritas utilizadas

na pesquisa possuem duas origens centrais: arquivo da instituição e periódicos da época.

No processo de análise da variedade de fontes documentais encontradas até o

presente sobre a Instituição e o artista, considera-se essencial a interpretação. Conforme

expressa Ragazzini (2001, p.14), as fontes não falam por si; a fonte é uma construção do

pesquisador. Para Le Goff (1996), todo o registro está num contexto, não sendo possível

analisá-lo isoladamente, dado que se encontra imerso em uma realidade que precisa ser

compreendida:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um

produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí

detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à

memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é,

com pleno conhecimento de causa. (LE GOFF, 1996, p. 545)

Nesse sentido, Magalhães (2004) apresenta um posicionamento metodológico

significativo para a presente pesquisa. O autor considera que, para o trabalho não cair no

empirismo e seguir numa reta dentro da historia cultural, todos os dados devem ser

colocados numa espécie de teia, em busca dos significados e significações, o que irá

12

Trabalhos onde foram encontradas referências a história do MALG: Magalhães ( 2008 ), Silva e Loreto

(1996) , Lacerda (2013) e Rocha (2010). 13

Com referência a Leopoldo Gotuzzo foi encontrado o trabalho de Tavares (2006) e o de Lacerda

(2013).

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provocar as problematizações a partir dos entrelaçamentos. É desse modo que este

estudo vem sendo construindo, em busca as perguntas que são apresentadas.

Na pesquisa sobre o MALG, estão imbricadas as questões de memória e

patrimônio, tanto por conta do conceito de memória, que estabelece o nexo entre o

museu e a comunidade, como pela discussão em torno do acervo, para qual a condição

de patrimônio é determinante. O objeto central dessa reflexão se constrói na relação

entre patrimônio (o acervo e o museu) e a memória de Arte por meio da valorização da

experiência estética através do acervo do Museu. Assim, surgem questões dos

confrontos entre um acervo deixado pelo artista, com o propósito estabelecido de ser

memorável, e o contexto da instituição na cidade.

Figura 5 – Álbum de Leopoldo Gotuzzo, feito pelo artista com recortes de jornais, fotografias, convites e

bilhetes. Fonte: Acervo do MALG.

No caso do MALG, a reflexão foi motivada pela circunstância na qual o mesmo

surge e no contexto indissociável de uma sociedade que se deseja afirmar memorável e

memoriosa. Dessa forma, é inerente ao processo o tom ideologizante que o acervo tende

a adquirir dentro das instituições de memória, o que confere a essas, a condição de

promulgadoras de conhecimentos seletivos. O fato de existir a Coleção Leopoldo

Gotuzzo, composta por obras doadas pelo próprio artista para o Museu, proporciona

condições para o estudo da sua produção, de sua vida, por constituir um conjunto

representativo do seu trabalho. Em outras palavras, a coleção é significativa por ter sido

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formada pelo próprio autor, constituindo o discurso de Gotuzzo a respeito de seu

próprio trabalho.

O problema funda-se sobre o conceito de memória, que permeia vários campos

do saber. Conforme observa Gondar (2005), não há um conceito único: “estamos diante

de um território móvel, cujas fronteiras alojam uma multiplicidade de definições,”

(p. 11); há de se destacar, dentre essas, um corpo conceitual operante. Quando Gondar

diz “essa coisa se move” (idem), tal ideia possibilita pensar na dinamicidade que o

pensamento exige frente à empiria, quando se trata de pensar como funciona o processo

memorial em determinada situação.

Segundo Halbawachs (2004), a memória pode ser distinguida como um produto

do presente e de relações do repertório das pessoas com aquilo que o presente solicita.

Para o autor, a memória coletiva é um produto social, resultado de um sistema dado

pelos fatos sociais, temporais, espaciais, com grupos formados por pessoas que

compartilham em suas relações e ou assimilam informações; e, com isso, constituem

memórias.

Intimamente relacionado a isso, colocam-se as questões de patrimônio cultural,

as quais são consideradas importantes à medida que diferenciam sociedades e grupos,

além de ajudarem a compreender a originem dos mesmos, ao possuírem ligação direta

com a cultura de um lugar. Nessa perspectiva, as obras de Arte, o mobiliário, os livros,

os documentos e os objetos são bens culturais. Buscando na etimologia da palavra,

“patrimônio” liga-se à ideia de herança, por exemplo, um conjunto de bens de

propriedade de uma família, uma empresa, uma instituição etc. Possamai (2012)

menciona “patrimônio histórico” enquanto atribuição de valores ligados à escolha ou

seleção realizada historicamente por um olhar especializado.

De acordo com Candau (2011), memória e identidade estão indissoluvelmente

ligadas, apoiando-se entre si no momento de produzir uma narrativa. A memória é

tomada como geradora de identidade, por ser partícipe de sua construção, tanto

coletivamente quanto individualmente. No caso de Gotuzzo, o artista queria ser

memorável e mostra preocupação em deixar para sua terra natal seu trabalho. Em

Pelotas é que deveria ficar o seu patrimônio, os seus anos de dedicação e esforço para

ser lembrado na eternidade, e o Museu seria o lugar para essa contemplação. Portanto,

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deve-se entender que o Museu, como um lugar de guarda, conservação e memória,

funda-se sobre as questões de permanência que dialogam conflitadas, com a necessária

inserção e reconhecimento que a comunidade demanda tanto de suas funções como de

sua existência mesma.

Considerações finais

Com os levantamentos obtidos pelo trabalho, pode-se afirmar que vários fatores

contribuíram para o surgimento do MALG, tais como: a evidência de ações individuais

e sociais implícitas nesse contexto, a exemplo da amizade entre a professora Luciana de

Araújo Renck Reis e Leopoldo Gotuzzo; a EBA e sua Diretora Marina de Moraes Pires,

que atribui ao artista o título de Patrono da Escola; as relações entre arte e sociedade; e a

recepção da sociedade local ao artista, que partiu cedo de sua terra natal para estudar

arte na Europa e que quer ser lembrado – como a cidade de Pelotas teve uma história

cultural de esplendor com as Charqueadas, havia uma valorização da cultura, e com o

MALG tinha-se um acervo para ser preservado.

Em busca de respostas ao questionamento sobre quem criou o Museu, para quem

e por que, pode-se constatar que o surgimento da instituição pesquisada se deu por uma

combinação de fatos que obtiveram êxito. Assim como os acontecimentos históricos são

resultados de vários fatores, para o MALG não foi diferente. A atuação de pessoas da

sociedade pelotense, o apoio da Universidade, a participação de Leopoldo Gotuzzo, que

deixa um acervo para um futuro museu, a Escola de Belas Artes, o Instituto de Letras e

Artes, que propiciaram o desenvolvimento das artes plásticas na cidade. A vocação

cultural de Pelotas, o reconhecimento dado ao artista e às artes. Foi essa combinação de

personagens e condições que resultou nos alicerces do MALG, que hoje representa, de

certa forma, o legado de um passado de opulências.

Há muito ainda para se investigar a respeito da história dessa Instituição e desse

artista. Sabe-se de que há mais informações para serem obtidas e outros personagens

para serem ouvidos, que podem ajudar a construir uma nova visão sobre o tema. É fato

que um maior conhecimento da trajetória e origens da Instituição ajudará na composição

de sua identidade e na sua valorização. É importante ver todo o contexto, as sutilezas, a

sensibilidade materializada nos documentos deixados pelo próprio artista, no gesto de

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doação de suas obras em vida. O significado afetivo para com sua cidade e o desejo de

ser eterno podem ser percebidos, por exemplo, quando Gotuzzo expressa que espera que

Pelotas compreenda e proteja a lembrança de seu filho.

Referências

CANDAU, Joel. CANDAU, Jöel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

GONDAR, Jô. O que é memória social? Contra Capa/Programa de Pós-Graduação em

Memória Social da Universidade Federal do Estado do RJ. Rio de Janeiro: 2005.

GOTUZZO, Leopoldo. Carta escrita pelo artista. Rio de Janeiro, 1955. Acervo do

Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

LACERDA, Claudia. História da Conservação e Restauro: estudo sobre o restauro das

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