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Paula Fontenelle
GUIA PARA SOBREVIVENTES
SUICIDIOO FUTURO INTERROMPIDO
EDITORIAL
GERACAO
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Paula Fontenelle
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SUICÍDIO
Copyright © 2008 by Paula Fontenelle1ª edição – Outubro de 2008
Editor e PublisherLuiz Fernando Emediato
Diretora EditorialFernanda Emediato
Capa, Projeto Gráfi co e Diagramação Alan Maia
RevisãoMarcia Benjamim
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Fontenelle, PaulaSuicídio : o futuro interrompido :
guia para sobreviventes / Paula Fontenelli– São Paulo : Geração Editorial, 2008.
Bibliografi a.ISBN 978-85-61501-07-5
1. Depressão 2. Jornalismo 3. Luto4. Vítimas de suicídio – Relações familiares
5. Repórtreres e reportagens 6. Pesar 7. Suicídio – Estudo e ensino8. Transtorno bipolar I. Título.
08-08440 CDD- 079
Índices para catálogo sistemático:
1. Suicídio : Reportagens : Jornalismo 079
GERAÇÃO EDITORIAL
ADMINISTRAÇÃO E VENDAS
Rua Pedra Bonita, 870 CEP: 30430-390 – Belo Horizonte – MG
Telefax: (31) 3379-0620Email: [email protected]
EDITORIAL
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www.geracaoeditorial.com.br
2008Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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SUICÍDIO O FUTURO INTERROMPIDO
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: Solidão e violência ............................................................ 13
Reclusão e timidez .................................................................................................... 16
Um fosso letal ............................................................................................................. 19
2 INFÂNCIA .............................................................................................................. 21
3 DEFININDO O SUICÍDIO .......................................................................... 35
Impulsos inconscientes .......................................................................................... 39
4 SINAIS DE ALERTA .....................................................................................43
Verbalizando a dor ...................................................................................................43
Gestos tão fortes quanto as palavras ...............................................................45
Como agir ....................................................................................................................48
5 FATORES DE RISCO .....................................................................................51
Tentativa anterior ......................................................................................................51
Transtornos mentais ................................................................................................ 53
Depressão ....................................................................................................... 53
Tratamento ...................................................................................................58
Identifi cando as causas psíquicas .................................................................. 63
O difícil acesso ao tratamento ....................................................................... 67
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6
Tratando o deprimido suicida ........................................................................ 70
Confi dencialidade médica .............................................................................. 72
Transtorno Afetivo Bipolar ........................................................................ 73
Tratamento ................................................................................................... 76
Substâncias psicotrópicas ........................................................................ 77
Tratamento da dependência...........................................................................83
6 ADOLESCÊNCIA .............................................................................................89
7 MITOS SOBRE O SUICÍDIO ................................................................. 105
8 JOVENS E SUICÍDIO: UMA PREOCUPAÇÃO MUNDIAL ......111
Grupo de discussão na Internet ensina jovens a se suicidarem .......112
Traços da idade .............................................................................................116
Coisa de adolescente? ................................................................................118
9 VIDA ADULTA ................................................................................................... 127
10 OS QUE FICAM PARA TRÁS:
SOBREVIVENDO A UM SUICÍDIO...................................................141
E se eu… .....................................................................................................................144
As lágrimas ................................................................................................................148
A raiva ..........................................................................................................................155
O medo da hereditariedade .................................................................................157
O incômodo dos outros ......................................................................................... 160
Como contar a uma criança ..................................................................................161
Abrindo o caminho para a cura...........................................................................162
11 CARTAS DE DESPEDIDA .......................................................................165
Mensagens de adeus: o que as cartas nos dizem? .....................................168
Tipos de despedidas ...............................................................................................170
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SUICÍDIO O FUTURO INTERROMPIDO
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12 ANEXOS ................................................................................................................. 177
Andréia, que era Adriana ...................................................................................... 177
E Andréia, quem é? .....................................................................................186
PANORAMA MUNDIAL .....................................................................................189
Regiões mais afetadas ................................................................................191
China e Índia .................................................................................................194
Brasil: onde a prevenção do suicídio ainda não é prioridade ..........197
Taxas de suicídio no Brasil por gênero ..........................................................198
Taxas de suicídio no Brasil por idade e faixa etária .......................................198
Métodos ..........................................................................................................201
Sentimentos associados ..........................................................................209
COMO A MÍDIA DEVE LIDAR COM O TEMA..................................217
Recomendações internacionais: o suicídio e
a ética jornalística ..................................................................................... 224
O suicídio é um fato jornalístico? ..........................................................226
Abordagem ................................................................................................... 227
Depoimento de familiares .......................................................................229
O tom da matéria .......................................................................................230
Explicando as causas ................................................................................230
Espaço ............................................................................................................231
Estatísticas ................................................................................................... 232
Ângulos e temas a serem estimulados ................................................ 232
Últimas considerações e exemplos de boas e más coberturas ...... 233
ENTREVISTAS: Andrew Solomon (autor de O Demônio do Meio-Dia) ............ 237
Pedro Luís Vieira (perito criminal) ........................................................ 247
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................253
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“Educação é o item mais importante na
diminuição dos índices de suicídio”.
Edwin Schneidman
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Ao meu pai.
A G R A D E C I M E N TO S
Escrever sobre um assunto tão denso não foi fácil e teria sido ainda
pior se não fosse a ajuda dos amigos, dos entrevistados e de minha
família. Cada um deu sua contribuição, seja em pequenos gestos de
apoio, seja na trabalhosa revisão de capítulos.
Antes de qualquer agradecimento, quero parabenizar minha
mãe, Conceição, e minhas irmãs Renata e Eveline pela coragem de
permitir que eu expusesse uma ferida familiar e a intimidade de
nossas vidas.
Alguns amigos foram bastante presentes na produção deste livro:
obrigada à Erika, por fazer as transcrições das entrevistas, um traba-
lho chato que ela realizou com amor; ao Edu, pelo estímulo que sem-
pre me deu e por cada vibração que compartilhamos ao longo dos
meses; ao Jairo e ao Ricardo, pela revisão do conteúdo e pelo carinho;
e à minha querida Ciara, que sempre tarda, mas nunca falha.
A todos os entrevistados um agradecimento especial, particu-
larmente àqueles que dividiram comigo a dor da perda de um ente
querido. Aproveito para dizer um muito obrigada ao Dr. Sérgio
Baldassin, que, além de me orientar ao longo dos últimos meses,
mostrou-se generoso ao revisar o Capítulo Fatores de Risco, que eu
não ousaria publicar sem sua rigorosa avaliação.
Por último, mas não menos importante, obrigada ao amigo
Emediato, por acreditar no valor desta publicação e por ter me
dado dicas preciosas de como melhorar o seu conteúdo.
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SUICÍDIO O FUTURO INTERROMPIDO
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1
INTRODUÇÃO
Solidão e violência
Mahnaz tinha seis anos quando sua mãe jogou gasolina nela, nos dois
irmãos e em si própria. Queria todos mortos. Estava cansada das trai-
ções do marido, mais ainda de apanhar quando reclamava. Seria uma
maneira de puni-lo e de mostrar que, assim como ele, era capaz de ati-
tudes extremas.
Até hoje, Mahnaz não se recorda do que aconteceu naquele dia, só
que em momento algum teve medo, apenas pena da mãe, que chorava
muito e que acabou indo embora para a casa de seus pais, deixando-os
sozinhos e encharcados de combustível.
Mahnaz sempre enxergou a mãe como vítima de um homem bruto, in-
fi el e autoritário. Os fi lhos também apanhavam, o respeito que tinham pelo
pai, conta, era forçado. Mas no Irã esse comportamento masculino é tolera-
do e as mulheres são ensinadas a se calarem e a permanecerem casadas.
Não demorou muito para a mãe voltar para casa. Durante alguns
dias, uma tia cuidou dos sobrinhos — com tanto rigor quanto ele e ne-
nhum afeto —, mas o pai não agüentou o ritmo e pediu que a mulher
retornasse. Pouco mudou, e os anos se passaram até que Mahnaz com-
pletou doze anos.
“Preocupamo-nos com a destruição provocada pelos outros,
mas evitamos falar sobre a autodestruição.”
Edwin Schneidman
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Certo dia, ao chegar do colégio, notou que havia algo de errado no ar,
familiares entravam e saíam de sua casa, o telefone não parava de tocar
e sua mãe estava particularmente nervosa. O clima era pesado e conti-
nuou assim por algumas semanas. Ninguém comentava nada aberta-
mente, mas cochichavam pelos cantos da casa.
Só descobriu o motivo de tanta tensão quando teve uma pequena
briga com a mãe que, num acesso de raiva, gritou: “você é igual ao seu
estúpido pai, esposa e a outra fi lha de um ano”. Mahnaz fi cou imóvel
sem entender o que a mãe dizia. Então era isso. Seu pai tinha vida dupla,
uma segunda família? “Vamos, lá mãe, vamos matar todos”, disse. Pegou
uma faca e partiram em busca do pai.
A lembrança mais forte que tem do momento em que chegou à se-
gunda casa da outra família foi a dor que sentiu quando uma mulher
abriu a porta e ela enxergou uma criança de um ano de idade nos braços
do pai. Até aquele dia, ela era a queridinha, única menina, mas nem isso
era mais verdade. Seu mundo desmoronou.
Durante alguns minutos, destruíram tudo o que viram pela frente. A
mulher correu para a casa dos vizinhos levando a criança. Seus pais briga-
ram muito e, ao ir embora, ela disse ao pai chorando: “espero que morra!”.
Dali para frente, tudo mudou para pior. A mãe propôs cuidar da
menina como se fosse sua, sob a condição de que o marido largasse a
amante e voltasse para casa. Como ele não aceitou, ela foi embora. E os
fi lhos, mais uma vez, fi caram sozinhos, só que dessa vez sem o pai, que
contratou empregados para cuidar deles. Nas poucas vezes que veio vi-
sitá-los, discutiam e ele batia nas crianças.
Alguns meses mais tarde, seu pai comprou uma nova casa em um
bairro nobre de Teerã e todos foram morar com ele: a nova esposa e a
fi lha pequena. Os três fi lhos se rebelaram, não aceitavam a “nova” famí-
lia. Acabaram morando no porão da residência.
Nessa época, Mahnaz se tornou uma criança agressiva e rebelde. Sua
mãe telefonava quase todos os dias dando instruções de como deveria se
comportar. Isso incluía pôr cabelo na comida feita pela mulher, desobe-
decê-la e não aceitar as inúmeras tentativas de aproximação.
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Os irmãos viviam na rua com os amigos, liberdade que uma iraniana
nem sonha em ter. A mãe não se preocupava com ela, queria apenas sa-
ber do dia-a-dia do casal, e Mahnaz não falava com o pai. Em pouco
menos de um ano, sua vida tinha virado de cabeça para baixo. Sentia-se
perdida, insegura e só.
O refl exo não demorou a aparecer nos estudos. Parou de freqüen-
tar o colégio, fi cava andando pela cidade e não ligava para as reações
agressivas do pai. A gota d’água veio durante uma discussão com a
madrasta quando Mahnaz decidiu dar uma lição em toda a família.
Foi até o banheiro e engoliu todos os medicamentos que existiam, cer-
ca de duzentas cápsulas.
A essa altura, todos haviam saído. Foi a mãe dela que notou na voz
da fi lha algo fora do normal, pois mal conseguia articular as palavras.
Imediatamente ligou para o irmão do ex-marido e ameaçou: “se alguma
coisa acontecer com minha fi lha, eu mato vocês”. Quando o funcionário
do pai chegou lá, Mahnaz estava no chão, inconsciente.
Dois dias depois, acordou no hospital e logo viu que seu plano não
funcionara. Tudo o que queria era transferir a culpa pela tentativa de
suicídio para a madrasta, assim seu pai se separaria e a vida voltaria ao
normal — por mais complicado que fosse essa normalidade.
Em vez disso, sua vida fi cou ainda mais infeliz. Três meses depois,
decidiu que queria mesmo morrer. Sabia onde o pai guardava ópio, dro-
ga utilizada pela classe média alta do Irã. Não pensou duas vezes, engo-
liu tudo o que encontrou e rapidamente começou a se sentir mal. Foi até
a vizinha, que a levou ao hospital.
Dessa vez, ouviu do pai: “Espero que morra. Os vizinhos agora sa-
bem o que fez, você acabou com a reputação de nossa família”. Seis me-
ses mais tarde, Mahnaz e os irmãos foram enviados à Índia. Durante três
anos, ela chorou diariamente, estava longe dos amigos, da família e im-
plorava que voltasse ao Irã. Mas suas palavras eram ignoradas.
Durante o tempo em que morou na Índia, ela se engajou em diferen-
tes comportamentos autodestrutivos. Foram meses de automutilação:
cortava os pulsos e os braços repetidamente. Toda a família sabia, mas
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ninguém falava sobre o assunto, nem a mãe quando vinha visitar os fi -
lhos. Era como se nada estivesse acontecendo.
Depois da mutilação, Mahnaz passou quase seis meses dormindo.
Ela tinha descoberto uma forma de comprar Valium no mercado negro,
guardou estoques em casa e começou a tomar a medicação, aumentan-
do gradativamente a dosagem. Às vezes acordava chorando, tomava o
medicamento e caía no sono de novo. Quando resolveu sair, tinha per-
dido muito peso, estava pálida e sem energia.
Mas ela havia decidido mudar de vida, deixar tudo para trás e se re-
cuperar. Estava com dezesseis anos. Tentou tirar vistos para diversos paí-
ses da Europa e conseguiu um para a Inglaterra. Pediu ao pai que a
deixasse ir e seu pedido foi aceito.
Hoje, Mahnaz mora em um bairro de classe média alta em Lon-
dres. Cursou Psicologia e trouxe, um a um, os irmãos para perto dela.
Queria dar a eles a oportunidade que teve, até porque ambos se tor-
naram dependentes de drogas, e um quase morreu de overdose. Em
2006, seu pai fi cou entre a vida e a morte, e foi Mahnaz quem cuidou
dele até sua recuperação.
Ela refez os vínculos com todos, inclusive com a madrasta e a irmã.
Tem episódios recorrentes de depressão, mas segue à risca o tratamento.
Na última crise, em 2007, sua irmã veio cuidar dela, hoje são muito ami-
gas. Mágoas ela não tem, é otimista e se transformou em referência de
orgulho pelas conquistas e pela forma como reconstruiu sua vida.
Reclusão e timidez
Ao contrário de Mahnaz, José Romero teve uma infância feliz. Cresceu
no interior de Pernambuco onde as casas não têm muros, todas elas
possuem quintal e os amigos transitam de uma residência para a outra
como se a vizinhança formasse uma única família.
As duas irmãs que entrevistei, Alexandrina (sua gêmea) e Célia,
não se recordam de maus momentos ou quaisquer demonstrações de
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problemas nesse período. Todos brincavam juntos nos quintais, su-
bindo e descendo das árvores e jogando bola. Era um etilo de vida livre
e saudável.
Não há dúvidas de que José Romero era tímido, sempre foi, mas nada
que fosse considerado fora do normal. Estudioso ao extremo, passava
horas lendo compulsivamente, “era brilhante”, dizem as irmãs, não ha-
via motivos para preocupação.
Até que chegou a adolescência. Pouco a pouco, a timidez passou a
difi cultar sua vida. Teve poucas namoradas e começou a demonstrar
sinais de inquietação e uma certa rispidez. Por um tempo, mostrou-se
irritado pela religião dos pais, achava um desperdício de energia e não
acreditava em Deus.
O primeiro sinal de que as coisas não iam bem foi quando gritou
com o pai — algo que nunca havia feito — criticando sua fé e suas prá-
ticas religiosas. Também estava mais recluso e fechado. A família decidiu
levá-lo ao Recife, capital do Estado, para uma consulta com um psicólo-
go, iniciativa avançada para a época. José Romero tinha 18 anos.
Logo toda a família se mudou para o Recife. Em retrospectiva, Célia
acredita que foi durante a adolescência que José Romero desenvolveu
depressão, tornando-se cada dia mais introspectivo, embora conseguis-
se manter uma vida equilibrada. Continuava tendo amigos, “poucos,
mas leais”, diz Alexandrina, mas os tinha.
Seu primeiro vestibular foi para Filosofi a, mas não chegou a termi-
nar, trocando para Letras. Ele demonstrava claras difi culdades em fi na-
lizar projetos, era pouco voltado à praticidade da vida. Nunca quis, por
exemplo, aprender a dirigir e morou com os pais até os 43 anos de idade.
Seu apartamento era uma imensa biblioteca, por outro lado, não sabia
acender o fogão.
A relação com a família era próxima e afetuosa, embora ele não se
abrisse facilmente. Na conversa que tivemos, Célia relembrou das inú-
meras vezes em que ele telefonou dizendo que precisava conversar com
ela, mas ao chegar à casa da irmã, pouco era dito. Seu senso de privaci-
dade era extremo.
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Durante sua vida adulta, José Romero foi a diversos médicos e ten-
tou alguns tratamentos. Uma psiquiatra em particular o incomodou,
pois além do diagnóstico de depressão, que já havia sido feito, sugeriu
que ele apresentava também sintomas de esquizofrenia, diagnóstico
que nunca aceitou.
Seguir os tratamentos de forma adequada nunca foi fácil porque ele
tinha medo dos remédios, particularmente, de se tornar dependente
químico. Sempre resistiu, mas continuou sua busca pela cura.
Em 2002, quando fez 46 anos, José Romero telefonou para Célia,
mais uma vez tinha um assunto para conversar com ela. “Entrou mudo
e saiu calado”, recorda-se a irmã. Poucos minutos depois, ela recebeu
outra ligação, dessa vez de seu pai dizendo que ele havia chegado em
casa muito nervoso, foi para o quarto e, quando voltou, estava com os
dois pulsos sangrando.
José Romero foi levado ao hospital e logo voltou para casa. Desse dia em
diante, a família fi cou mais vigilante e preocupada. Seu psiquiatra sugeriu
terapia em grupo, onde ele foi apenas uma vez. Durante a sessão, não disse
uma palavra e, para os irmãos, continuou reclamando dos remédios.
No ano seguinte, mais uma tentativa, dessa vez com remédios, e mais
uma internação. Alexandrina se lembra que sentiu muita raiva dele e
disse ao irmão, ainda no hospital, que da terceira vez ele conseguiria se
matar. Infelizmente, ela estava certa, mas ninguém imaginava o quanto
o método que ele escolheu traumatizaria a família.
Em janeiro de 2005, José Romero foi para a casa de Alexandrina e lá
passou todo o mês curtindo a praia — ela mora numa avenida à beira-
mar. Nesse espaço de tempo, leram juntos, tiveram longas conversas,
foram ao cinema e a restaurantes. Nenhum sinal do que estava por vir
foi dado, embora se preocupasse com a perda de peso do irmão, Alexan-
drina não notou qualquer problema mais grave.
No mês seguinte, José Romero brincou todos os dias do carnaval
junto com a namorada, parecia estar bem. Mas não estava. Em fevereiro,
Célia recebeu várias ligações do irmão, mas ela estava resolvendo alguns
assuntos na rua e, assim que chegou em casa, telefonou para ele.
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Alguns minutos depois, ele tocou a campainha. Sentaram-se para
uma conversa que não durou mais de cinco minutos. Ele falava das me-
dicações, estava irritado e, novamente, insistiu que não os iria tomar.
José Romero tinha parado o tratamento um mês antes. Pela primeira
vez, Célia — que sempre tentava convencê-lo de que o tratamento era
temporário — foi fi rme com o irmão e disse que ele era doente e que
tinha de tomar medicamento pelo resto da vida.
Pela última vez, José Romero reiterou que não se transformaria em
um dependente químico. Depois, levantou, foi até a varanda e pulou do
vigésimo andar. Célia tem poucas lembranças dos minutos seguintes.
Recorda-se que tentou chamar o marido e correu para tentar segurar o
irmão que ainda tentou se segurar, em vão.
Um fosso letal
A distância que separa a iraniana Mahnaz do brasileiro José Romero
não se mede em quilômetros. De um lado, uma menina que cresceu
atormentada pela violência e pelo desamor. Do outro, um rapaz que ti-
nha graves difi culdades em lidar com as pessoas, com as pressões do
cotidiano, e, principalmente, com seus próprios sentimentos.
Cada um lidou com sua dor da forma que pôde. Mahnaz a exteriori-
zou com agressividade, rebeldia e atitudes perigosamente autodestrutivas.
Já José Romero interiorizou seu sofrimento e insegurança, fechando-se
para o mundo.
Aos 16 anos, a iraniana despertou e resolveu recomeçar a vida. Em
um novo país e sozinha, mudou de escola diversas vezes, tinha imensa
difi culdade em se adaptar a novas situações e de dar continuidade a
qualquer projeto. Nessa idade, o brasileiro começava a dar sinais de que
a timidez era apenas um dos sintomas de algo mais grave. A família foi
sensível ao seu pedido de ajuda e o levou ao Recife para acompanha-
mento psicológico. A de Mahnaz fez justamente o contrário, pratica-
mente a abandonou.
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Nesses dois casos temos jovens que, em algum momento de suas vidas,
foram diagnosticados com depressão. Mas ele nunca aceitou a doença,
acreditava que fi caria dependente químico e lutou contra a orientação
dos médicos e da família. Mahnaz chegou a fazer tratamento, estudou
o assunto durante o curso de Psicologia e hoje sabe identifi car os si-
nais da depressão.
Com tudo que estudei para escrever este livro identifi co nessas duas
histórias um fosso que ajudou Mahnaz a caminhar rumo à superação e
incentivou José Romero a optar pela própria morte: o fosso do conheci-
mento. Talvez ele nunca tenha compreendido quais são os fatores de
risco associados ao suicídio e que os transtornos mentais são responsá-
veis por mais de 90% das mortes auto-infl igidas.
Outro ponto que ele também não devia saber é que os antidepressi-
vos agem diretamente no cérebro, equilibrando o nível de neurotrans-
missores — substâncias que regulam o humor —, e que são necessárias
algumas semanas para que seus efeitos sejam percebidos pelo paciente.
Em alguns casos, como o de José Romero, o medicamento precisa ser
ingerido durante toda a vida.
Foi justamente para preencher esse tipo de lacuna que decidi ir em
frente com esta publicação. Durante os capítulos que vêm a seguir, você
terá contato com um tema que ainda assusta, impressiona e causa medo.
Como tudo que amedronta, o suicídio é evitado pelas pessoas, mas o
efeito provocado pelo silêncio é devastador e se prolonga por uma cadeia
de sofrimento: ele impede quem pensa em tirar a própria vida de expressar
suas angústias; incapacita amigos e familiares de abordar o assunto direta-
mente; e, por fi m, alimenta a dor dos que perdem alguém para o suicídio.
Para cada um desses públicos dediquei pelo menos um capítulo deste li-
vro na tentativa de mostrar que o fantasma da morte voluntária afeta um
número maior de pessoas a cada dia, e em todos os países do mundo. Nin-
guém está livre de vivenciar esse pesadelo, mas estou convicta de que o acesso
à informação pode mudar radicalmente esse quadro. E é isso que pretendo:
provocar um debate amplo e vital para que casos como o de José Romero
possam se transformar em exemplos de superação como o de Mahnaz.
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2
INFÂNCIA
No dia dez de janeiro de 2005 eu acordei com um telefonema de minha
irmã Renata dizendo que nosso pai acabara de se matar com um tiro na
cabeça. Eu estava de férias em Miami e tive que antecipar a minha volta,
mesmo assim, não cheguei a tempo para o enterro. Daí para frente, mer-
gulhei no enigmático mundo do suicídio em busca de respostas, não só
do que leva alguém a tirar a própria vida, mas principalmente se esse ato
pode ou não ser prevenido. Nesse trajeto me deparei com lembranças da
infância, com nossa estrutura familiar e com os fantasmas de meu pai.
O que eu não esperava era que, para compreender a sua escolha de eli-
minar o amanhã, seria preciso relembrar, tão profundamente, o ontem
que havíamos construído juntos.
Meu ponto de partida foi a obsessão que nutria por minha mãe, um laço
cujo desligamento fora difícil até no parto. No dia vinte e cinco de julho de
1967, quando a bolsa rompeu, ela foi levada à Maternidade de Afogados,
subúrbio do Recife, achando que tudo aconteceria muito rapidamente,
como tinha sido no parto de minha irmã Renata. Portanto, não teria tempo
de esperar que meu tio Adisio — parteiro ofi cial da família — terminasse o
plantão e fosse para o outro hospital onde trabalhava. Ledo engano.
Tanta pressa logo se mostrou inútil: eu não queria sair. Tio Adisio
passou mais de sete horas manipulando a barriga dela, “me encaixando”,
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